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livros & leitores

UMA CAMINHADA
COM PATTI SMITH
POR ISABEL LUCAS
vergílio
RUE D’ANVERS ferreira
POR J. RENTES DE CARVALHO
A PARIS DOS ANOS 50
NÃO SE FAZIA APENAS
100 anos
POR HUGO PINTO SANTOS
DE «VIDA LITERÁRIA»

OBAMA, FIM DE HISTÓRIA


POR BERNARDO PIRES DE LIMA

HARRIE LEMMENS,
O TRADUTOR HOLANDÊS
POR ELE PRÓPRIO

CARLOS FIOLHAIS
ENTREVISTA CÉDRIC VILLANI,
GÉNIO DA MATEMÁTICA

JORGE LISTOPAD,
O POETA PERDIDO
POR NUNO COSTA SANTOS

Clara ferreira alves


Confissões, finalmente ENTREVISTA DE BRUNO VIEIRA AMARAL

PRIMAVERA 2016 | N.º 141 Crónicas de abel barros baptista, eugénio Lisboa, Leonor Baldaque, Tiago cavaco
Poesia para o trimestre

Vem à Quinta-feira

Vem à quinta-feira.

É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja


ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris
for muito caro – sei que isto não está fácil – podemos ir a Guimarães
assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar.

Vem à quinta-feira.

A seguir, temos ainda a sexta e talvez me esperes à porta do emprego,


e talvez fiques para sábado e domingo, e talvez o mundo pare
de acabar tão depressa.

Vem à Quinta-feira.
Mas não venhas nesta, vem na próxima.
Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
profissional – sabes que isto não está fácil – e talvez nos dê hipótese de irmos
a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo
para arranjar o cabelo, para arranjar o coração,
para elaborar a lista do que me falta fazer contigo.

Vem à quinta-feira e não te demores.


Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista
(sabes como gosto de pensar em tudo
ao mesmo tempo)
e afinal o que me falta fazer contigo
não é caro:
– viajar de autocaravana,
– dançar na Estrada Nacional,
– ver-te chorar.
Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente.

Vem à quinta-feira.

Se não pudermos ir a Paris ou a Guimarães, não te preocupes.


Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras,
eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona.
Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana.
Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.
Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor
– ou, pelo menos, é o que diz o Youtube.

Temos ainda tanto para fazer.


Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa quinta.

FILIPA LEAL
[Vem à Quinta-Feira. Assírio & Alvim, 2016]
REVISTA FUNDADA EM 1987. EDIção N.º 141. PRIMAVERA DE 2016. TERCEIRA SéRIE.

SUMÁRIO

PATTI
SMITH
Silenciosa, soli-
tária, tranquila.
Uma mulher comum atra-
vessa a paisagem carregando
fantasmas, deixando-se levar
pelo impulso, cedendo
a obsessões. No segundo
volume das suas memórias,
© Pedro Loureiro

Patti Smith experimenta a di-


gressão depois da narrativa
26 cronológica dedicada à sua
juventude – uma viagem
Clara Ferreira Alves Um balanço depois literária, e também uma linha
do primeiro romance de metro que atravessa Nova

© DR
Depois da publicação do seu primeiro romance, há muito aguardado, Clara Ferreira Iorque com todas as possibili-
Alves em discurso direto, numa longa entrevista em que fala de si, da sua entrada no dades desse cenário. Rentes de Carvalho em Paris 52
jornalismo, da geração de 80, de crítica literária – e também da solidão, da leitura e do Texto de Isabel Lucas. 92 A Paris dos anos 50 não se fazia apenas de «literatura».
risco de viver. Entrevista de Bruno Vieira Amaral. Veja-se a história da maîtresse da Rue d’Anvers. «E que
maîtresse. Muito procurada pela competência em domi-
nar e ferir, inventiva no uso do cavalo-marinho, especia-
lista de técnicas do afogamento, orgulhosa de provocar
ejaculações e orgasmos que faziam concorrência aos de
Radko.» Um mimo. Texto de J. Rentes de Carvalho

Crítica e politicamente correto


O editor Francisco Vale chama a atenção para
o aparecimento de uma censura literária gé-
110 60 mea e parceira do «politicamente correto». Se
© DR
© DR

esse movimento chegar a Portugal, as suas pri-


Vergílio Ferreira Reler o invisível De Praga a Lisboa Jorge Listopad meiras vítimas serão Os Lusíadas, de Camões,
Em 2016, cumprem-se 100 anos sobre o nascimento de Jorge Listopad é um mistério. Aliás, Jirí Synek (nome com ou Peregrinação, de Mendes Pinto. E, por mais
Vergílio Ferreira. A obra que nos legou é um testemunho que foi registado depois do nascimento) é um mistério. Um absurda que seja a ideia, essa possibilidade
que vibra e interpela o nosso presente. E que parece pro- enigma como autor e como pessoa. Podia ser uma perso-
existe. Texto de Francisco Vale.
jetar-se no futuro. Texto de Hugo Pinto Santos. nagem sua. Texto de Nuno Costa Santos.

LER
Diretor Francisco José Viegas editor-adjunto Bruno Vieira Amaral Design e Projeto Gráfico José Campos de Carvalho Fotografia Pedro Loureiro
secretariado da Revista Maria José Pereira Revisão João Assis Gomes Colaboram neste número Abel Barros Baptista, Ana Carvalho (tradução), Ber-
nardo Pires de Lima, Carla Maia de Almeida, Clara Macedo Cabral, Eugénio Lisboa, Fausta Cardoso Pereira, Francisco Vale, Harrie Lemmens, Hugo Pinto
Santos, Humberto Brito, Isabel Lucas, Ivone Mendes da Silva, João Leal, José do Carmo Francisco, José Riço Direitinho, Leonor Baldaque, Margarida
Santos Lopes, Nuno Costa Santos, Pedro Loureiro (fotografia), Pedro Vieira (ilustração), Tiago Cavaco, Tiago Moreira Ramalho.
LivRos & LeitoRes
Redação & Administração Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1; 1500-499 Lisboa; Tel. 217 626 000; Fax 217 609 592; ler@circuloleitores.pt.
Assinaturas Maria José Pereira Publicidade Marta Serra Controlo de Gestão Teresa Gomes Produção Teresa Reis Gomes impressão Bloco Gráfico, Lda. Distribuição para Livrarias
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todos os textos são publicados segundo o Acordo ortográfico em vigor. excetuam-se os de alguns cronistas e eventuais extratos de obras citadas.

LER primavera 2016 1


Segredos revelados
Oh, não, mais um livro so-
bre a maçonaria e a Opus
Dei! Mas, atenção, este
traz revelações explosivas.
Sabia que a maçonaria re-
cruta os seus membros
nas juventudes partidá-
rias do PS e do PSD? E sa-
bia que os membros da Opus Dei reservam
os sábados para se açoitarem com um chi-

37
cote de corda? Agora já sabe.
O Fim dos Segredos
Catarina Guerreiro
A Esfera dos Livros

Genealogia
Julián Fuks é uma das no-
vas vozes do Brasil. A Resis-
tência, o seu quarto roman-
ce, insere-se, de um certo
modo, no domínio da auto-
ficção. É a história de um
casal argentino que, após
o golpe de 1976, foge para o
Brasil, levando uma criança que tinham ado-
tado. É esta criança, agora um adulto, que nar-
ra a história da descoberta das suas origens.
A Resistência
Julián Fuks
Companhia das Letras
Antes que cheguem as ondas do verão – aqui está uma
lista de leituras. Ruy Belo pode ajudar: «Na minha juventude an- Fontes Pereira de Melo, o rebelde
tes de ter saído / da casa de meus pais disposto a viajar / eu O fontismo é talvez dos
conhecia já o rebentar do mar / das páginas dos livros que já ti- termos mais persistentes
não só na política como na
nha lido // Chegava o mês de maio era tudo florido/ o rolo das
sociedade portuguesa.
manhãs punha-se a circular / e era só ouvir o sonhador falar / da Mais do que as conse-
vida como se ela houvesse acontecido // E tudo se passava numa quências, positivas ou ne-
outra vida / e havia para as coisas sempre uma saída.» O seu País gativas do fontismo, David
Possível («o país que o mar não quer») inaugurou o trimestre dos Justino propõe-se analisar
neste livro o contexto em que aquelas políti-
livros de poesia.
cas foram decididas.
Fontismo – Liberalismo
numa Sociedade Iliberal
David Justino
Dom Quixote

2 primavera 2016 LER


Amor moderno Chernobyl Vaticano em números
Professor, ensaísta e crítico É difícil passar pelas pri- O Vaticano, com os seus la-
literário, António Carlos meiras páginas de Vozes de birintos e mistérios, é o ce-
Cortez regressa à poesia Chernobyl. Os relatos de nário dos romances de Luís
com este Animais Feridos, quem viveu a tragédia, a in- Miguel Rocha, o escritor
poemas de uma suave in- certeza sobre aquilo que se português que morreu no
tensidade, plácidos como estava a passar, os porme- ano passado. Este livro reú-
rios enganadores, onde se nores dilacerantes, o sofri- ne uma série de textos que
exibem memórias de férias mento, a agonia, a ameaça o escritor publicava na sua
da infância, lugares abandonados, vozes so- permanente de um inimigo invisível – como página do Facebook sobre o Vaticano, desde a
brepostas, sentimentos desarrumados e a lin- se a autora se tivesse apagado, deixando-nos história da Praça de São Pedro às dificuldades
guagem fria do amor moderno. Indispensável. sozinhos perante o horror. Uma obra-prima! em arranjar um lugar de estacionamento.
Animais Feridos Vozes de Chernobyl Curiosidades do Vaticano
António Carlos Cortez Svetlana Alexievich Luís Miguel Rocha
Dom Quixote Elsinore Porto Editora

O mundo em 18 histórias Filosofia para a hora da sesta Editor


Livros, mulheres que que- Tudo o que sempre quis sa- Na história da edição por-
rem voar, obsessões, escri- ber sobre filosofia e tem ver- tuguesa, Fernando Ribei-
tores falhados (e há tantos), gonha de perguntar pode ro de Mello (1941-1992)
personagens literários num ser encontrado neste livro. ocupa um lugar de prínci-
mesmo avião, um mistério. É um guia acessível e des- pe. Pedro Piedade Marques
Desnorte é a aventura de pretensioso que, em poucas relembra os combates de
Inês Pedrosa em 18 contos. páginas, procura apresen- FRM contra a censura, o re-
«Um corpo pode materiali- tar o pensamento de alguns gime – e os anos pós-revolu-
zar-se na ponta dos dedos de outro corpo, sem dos filósofos mais importantes da história ção. Magnífico trabalho que relembra um dos
sequer ter ideia disso. Se querem saber como, e, ao mesmo tempo, cativar o leitor comum grandes editores portugueses e a inesquecí-
sigam a minha história.» para a leitura das suas obras de referência. vel grande arte da Afrodite, a sua marca.
Desnorte Um Breve Guia para Clássicos Filosóficos Editor Contra. FRM e a Afrodite
Inês Pedrosa James M. Russell Pedro Piedade Marques
Dom Quixote Temas e Debates Montag

Cinema e memória O lugar da discórdia Como era doce a Itália


Fosse sobre cinema, fute- Há muito tempo que um li- Escrita com base nos seus
bol, memórias de uma Lis- vro não provocava tanta ce- diários, Viagem a Itália des-
boa desaparecida, polícias leuma. Ameaças, insultos, creve a viagem realizada
e ladrões, Dinis Machado um lançamento cancelado, pelo autor entre 1786 e 1788.
conseguia sempre fazer de petições para a proibição de No entanto, o livro é muito
um texto uma pequena ce- venda, enfim, tudo menos mais do que uma sucessão
lebração da literatura. En- o que interessava: a leitura de apontamentos pitorescos
tre filmes, realizadores, ato- da obra, que é um misto de com a cor local, é também
res e atrizes e salas míticas, esta é a história reportagem e livro de memórias, bem escri- uma coleção de apontamentos e reflexões
pessoal de um escritor com o cinema. Quem to e sem nada que possa indignar um bom de Goethe sobre a cultura, a arte e a literatura.
o diz é Marta Navarro, que organizou a edição. chefe de família. Tradução e prefácio de João Barrento.
O Lugar das Fitas Alentejo Prometido Viagem a Itália
Dinis Machado Henrique Raposo J.W. Goethe
Quetzal FFMS Bertrand

LER primavera 2016 3


O gulag Sob a abóbada do conto As cidades do visível
Rousset escreveu O Uni- Vinte histórias de 20 auto- Leonardo Lippolis recorre
verso Concentracionário res tendo como cenário o à ficção e ao cinema para re-
poucos meses depois de ter Mosteiro da Batalha. Os es- fletir sobre a crise das gran-
sido libertado do campo critores foram convidados des metrópoles ocidentais
nazi de Neuengamme. Este a passar um fim de semana e a forma como a qualidade
é considerado o primeiro no mosteiro e escrever um de vida nas cidades, nas úl-
testemunho sobre os cam- conto. O resultado, como é timas décadas do século XX,
pos de concentração. Foi natural, é desigual, mas se foi degradando, contribuindo para a ex-
também dos primeiros a denunciar as atroci- traz-nos algumas pérolas. Entre outros, con- clusão social e para a deterioração do espaço
dades nos gulagui, na União Soviética, o que tribuíram para o livro Afonso Cruz, Cristina urbano enquanto centro de mudança e revi-
lhe valeu as críticas impiedosas da esquerda. Carvalho, Paulo Moreiras e Cláudia Clemente. talização cívica e política.
O Universo Concentracionário Contos Imperfeitos Viagem aos Confins da Cidade
David Rousset AA. VV. Leonardo Lippolis
Antígona Arquivo Antígona

Direita, onde andas? O mistério napolitano Um crime que não é como os outros
Com textos de António Chega ao fim a tetralogia de A tese de Timothy Snyder,
Araújo, André Freire, Ma- Nápoles e os muitos leito- autor de Terra Sangrenta,
nuel Monteiro, Patrícia res de Elena Ferrante não é a de que devemos evi-
Silva, Luís Salgado de Ma- sabem se hão de ficar con- tar olhar para o Holocaus-
tos, entre outros, este livro tentes por conhecer o des- to apenas como História,
coordenado por Riccardo fecho ou tristes por saber como um acontecimento
Marchi possibilita uma vi- que já não há mais. Neste que não se pode repetir.
são ampla sobre a direita volume, Elena, a protago- Conhecer a história dos crimes nazis deve
(ou direitas) portuguesa na democracia, nista e narradora, abandona o marido e re- obrigar-nos a ver o Holocausto como um avi-
reinventada nos anos 80 quer através dos gressa a Nápoles, onde acaba por se reencon- so. O que aconteceu pode voltar a acontecer.
partidos, quer através da opinião pública. trar com a grande amiga de infância, Lila. Um dos livros do ano.
As Direitas na Democracia Portuguesa História da Menina Perdida Terra Negra
Riccardo Marchi (coord.) Elena Ferrante Timothy Snyder
Texto Editores Relógio d’Água Bertrand

Shakespeare e Dante O grande romancista Rússia, o mundo à parte


Borges comenta e enfrenta A Glaciar inicia com este Neste ensaio, José Milhazes
dois génios: Shakespeare e volume (que junta o pri- procura desfazer alguns
Dante: «Senti a felicidade de meiro romance do autor equívocos que pontuam as
ser Shakespeare; posterior- e Vingança, publicado em relações entre a Rússia e
mente, a opressão e o terror. 1858) a publicação das a Europa. O maior deles,
Com o tempo, o grande rio obras de Camilo Castelo segundo o autor, é a tenta-
de Shakespeare ameaçou, Branco, o mais moderno ção de descrever a Rússia
e quase fez desaparecer, dos nossos autores clássi- como uma «civilização se-
o meu modesto caudal.» Ensaios e narrativas cos – com ele, o romance não é o monstro parada», uma mistura de influências euro-
de descoberta ou de perdição, são textos de monumental que domina o século XIX […], peias e asiáticas que justificaria o autorita-
primeira grandeza sobre literatura. mas uma euforia sem regras nem geometria. rismo e o expansionismo russos.
A Memória de Shakespeare Anátema • Vingança Rússia e Europa: Uma Parte do Todo
Jorge Luis Borges Obras de Camilo Castelo Branco – Vol. I José Milhazes
Quetzal Glaciar FFMS

4 primavera 2016 LER


Um mundo em explosão Um mundo em explosão Arquitetura
Amigo é avilo. Baixinho Finalista do Man Booker Três Modernistas. Ar-
é cambuta. Dinheiro é Prize, O Regresso dos Lo- quitetura do Modernis-
cumbú. Confusão é Maka. bos é um romance que mo em Portugal, Uma
Óculos de sol são raias. narra a história de Rachel Síntese e Alguns Autores
Pistola é baba. Estes e Caine, que após vários anos é o título do belo livro de
muitos outros termos da a trabalhar numa reserva José Manuel Fernandes
linguagem quotidiana dos de lobos no Idaho regressa dedicado às obras de três
habitantes de Luanda sur- a casa, em Inglaterra, para grandes portugueses do século XX, Cristino da
gem nesta deliciosa compilação de Manuel levar a cabo um projeto de reintrodução da es- Silva, Chambers Ramos e Jorge Segurado.
S. Fonseca, que os foi buscar a blogues, pécie no interior britânico. Mas o regresso Além das imagens, um «suplemento» dedica-
caixas de comentários e, claro, à memória. também envolve uma reconciliação familiar. do a Cassiano Branco e Pardal Monteiro.
Pequeno Dicionário Caluanda O Regresso dos Lobos Três Modernistas
Manuel S. Fonseca Sarah Hall José Manuel Fernandes
Guerra & Paz Jacarandá INCM

Um mundo em explosão Arquipélago América em negro e negro


Um jovem húngaro sobre- O romance de estreia de O que sobra do mundo de
vive aos campos de concen- Nuno Costa Santos divide- violência racial? Um rasto
tração nazis e é enviado -se entre dois cenários e dois de violência e de incom-
para a Suécia. Aí, escreve temas: a solidão insular (e preensão. Ta-Nehisi Coa-
cartas para cada uma das suas formas de loucura) e a tes, uma das boas e novas
117 compatriotas que tam- memória de um avô doen- vozes do jornalismo ameri-
bém se encontram em te e internado na estância cano, relata e – em simultâ-
campos de refugiados. So- do Caramulo dos anos 40. neo – tenta compreender
brevivência, doença, uma bela caligrafia e uma As personagens são maravilhosas, deslizando a guerra em curso e os derradeiros sinais
história de amor pela mão de um realizador por histórias surpreendentes e paisagens peri- da discriminação racial e da violência de gé-
que se estreou no romance com este livro. gosas; a sua melancolia é uma obra de arte. nero. O género é o humano, por hipótese.
Carta à Mulher do Meu Futuro Céu Nublado com Boas Abertas Entre Mim e o Mundo
Péter Gárdos Nuno Costa Santos Nehisi Coates
Alfaguara Quetzal Ítaca

Uma casa para guardar na boca Mindelo, Cabo Verde Um triângulo de quatro lados
A poesia de Filipa Leal con- Diz-se de vários autores Conversa de exilados e en-
tinua a perseguir os seus te- que se repetem de livro tre Portugal, Angola e o
mas e as suas obsessões re- para livro ou que, no míni- Brasil: pode ser este um re-
gulares – o amor quase mo, escrevem e reescrevem sumo da relação que existe
perdido, as promessas, a o mesmo livro ao longo entre Ana Paula Tavares,
casa, uma certa inabilidade da vida. Germano Almeida Manuel Jorge Marmelo,
para o mundo real, as refe- explica que isso não é uma Ondjaki e Paulinho Assun-
rências geracionais. Este falta, mas uma virtude ini- ção, cada um no seu canto
livro celebra uma melancolia sem escape gualável: as suas histórias são uma revisitação do mundo, imaginando uma comunidade
e que se diz totalmente: «Eu era a mais alta permanente do seu cenário maravilho- ideal e irreal onde falamos a mesma língua.
representante da poesia / lamechas.» so, o Mindelo – e os seus personagens. Verbetes para Um Dicionário Afetivo
Vem à Quinta-Feira Regresso ao Paraíso Ana Paula Tavares, Manuel Jorge Marmelo,
Filipa Leal Germano Almeida Ondjaki e Paulinho Assunção
Assírio & Alvim Caminho Caminho

LER primavera 2016 5


O país que o mar não quer Uma história do Porto & O PRóxIMO LIVRO
Os poemas de País Possível Rio do Esquecimento é um José Viale Moutinho
Livro novo de poemas mais organização
provêm, à exceção de um, romance que se apropria
e prefácio dos contos de Trindade Coelho.
de outros livros. Trata-se, das regras narrativas do
por isso, de uma escolha (nosso) romance clássico osé Viale Moutinho nasceu no Funchal
centrada na ideia de um
país, uma pátria, uma rela-
e as subverte para chegar
a um resultado final que
JPorto(1945) mas a sua vida tem sido passada no
(Jornal de Notícias, Diário de Notícias)
ção com o território. Como mereceu elogios de figuras depois de isento do serviço militar por mio-
afirma Nuno Júdice no como Nuno Júdice ou Má- pia. Em 1964 a editora Brasília incluiu dois
prefácio, é provável tratar-se «do mais políti- rio Cláudio. Passado na cidade do Porto, na se- contos seus numa antologia policial; o pseu-
co» dos livros de Ruy Belo, aquele onde é mais gunda metade do século XIX, esta obra explo- dónimo era Ralph Connor. Com uma tira-
visível a natureza da sua deceção. ra minuciosamente a sociedade daquela época. gem de 500 exemplares e capa de José Ro-
País Possível Rio do Esquecimento drigues, O Corredor foi a sua obra de estreia,
em 1966, mas o autor viria a queimar toda a
Ruy Belo Isabel Rio Novo
edição. Assim, o primeiro livro é Urgência,
Assírio & Alvim Dom Quixote
também de 1966, com desenho de Augusto
Mota na capa. Dois anos depois publicou
Saudades, cantai! Autores Natureza Morta Iluminada – com ilustrações
de Fernando de Oliveira – que Luiz Pache-
Na lista de clássicos da Im- Faltam, nas redações dos co considerou «um texto promissor».
prensa Nacional (a «Biblio- jornais, os chamados «jor- O Grande Prémio do Conto Camilo Caste-
teca Fundamental de Lite- nalistas seniores» – uma lo Branco, da APE, foi-lhe atribuído pelo livro
ratura Portuguesa»), acaba espécie de controladores do Cenas da Vida de Um Minotauro. É também
de sair agora Menina e tráfego de textos e que, com autor da Fotobiografia de Camilo que o Gré-
Moça de Bernardim Ribei- a sua experiência, alertam, mio Literário distinguiu com uma menção
honrosa. Foi-lhe atribuído pelo PEN Club da
ro – com versão de Marta corrigem e melhoram. Ós-
Galiza o Prémio Rosalia de Castro, que ante-
Marecos Duarte – um dos car Mascarenhas (1949- riormente distinguira José Saramago, Agus-
livros sempre desprezado na nossa lista de -2015) é um desses nomes. Esta reunião de tina Bessa-Luís, Sophia de Mello Breyner,
clássicos ou, pelo menos, muito pouco lido. frases é um trabalho de anos de jornalista. António Lobo Antunes e Rubem Fonseca.
Saudades, cantai; Bernardim está vivo. O Grande Livro dos Pensamentos Cinquenta anos depois do primeiro livro,
Menina e Moça & das Citações afirma: «Nunca estive metido em nenhuma
Bernardim Ribeiro Óscar Mascarenhas capela, sempre trabalhei isoladamente, fui
INCM Marcador publicando ali e além, em diversas editoras.
Nem sempre foi fácil mas não vendi a alma
Curar o grande mal Trilogia ao diabo. Como dizia o Philippe Sollers: “Sa-
ber estar só é a verdadeira aventura de hoje.”»
De todos os males invisí- Este é o segundo volume da
E conclui: «Primeiro traduzi peças para com-
veis, a depressão é o mais trilogia que William Faulk-
panhias profissionais, depois escrevi textos
presente. Este clássico de ner dedica aos Snopes (o que foram levados à cena, como A Noite em
Andrew Solomon – publi- primeiro é A Aldeia), mas Ravensbruck. Os campos de concentração
cado originalmente há 15 o cenário de Yoknapataw- nazis e a guerra civil de Espanha são temas
anos – aborda a grande pha reenvia-nos ao que de recorrentes nos meus livros, tal como a lite-
ameaça tendo-se transfor- mais sombrio, complexo e ratura popular portuguesa. Gosto de escrever
mado numa espécie de tra- brutal – mas também bem- livros porque gosto de contar histórias. É de
tado sobre a matéria. Mais do que reconhecer humorado – há na obra do autor. A figura de família. O meu pai era um grande contador
os sinais da depressão, o livro reconstrói Eula atravessa o romance com um halo de be- de histórias. Meu avô também. E os livros
as pistas que a identificam e nos matam. leza e tragédia, uma imagem inesquecível. são a maneira de essas histórias ficarem.
O Camilo deixou-nos ficar tantas histórias
O Demónio da Depressão A Cidade
bem contadas! Ai de mim se chegasse a esta
Andrew Solomon William Faulkner
altura e ainda as não soubesse contar como
Quetzal Livros do Brasil sei!»José do Carmo Francisco

6 primavera 2016 LER


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três volumes da coleção «retratos da Fundação», publicados pela Fundação Fran-
cisco manuel dos santos. agora com a sua revista de livros.

Esquadra de Polícia Telenovela, Indústria Alentejo Prometido


Susana Durão & Cultura, Lda. Henrique Raposo
Esquadra de Polícia é um retrato de uma força Eduardo Cintra Torres Alentejo Prometido é um road movie familiar.
de segurança urbana mas é, também, a ilus- Durante seis meses, o autor acompanhou todas O autor conta-nos uma história do Alentejo
tração de um país onde, no que diz respeito ao as fases de criação de uma telenovela de suces- através de histórias familiares e memórias pes-
policiamento, a democracia se foi instalando aos so, desde a escrita até à sua apreciação pelos es- soais. O cenário é a região do Alentejo Litoral,
poucos. O livro traduz, nos aspetos mais sensí- pectadores, passando pela produção, realização, sobretudo o concelho de Santiago de Cacém.
veis da vida quotidiana e das relações humanas, representação e edição. Esteve em reuniões Entre cidades e aldeias, segredos familiares
as estratégias e táticas e gravações, visitou os e uma nova e impla-
desta instituição, dos bastidores. Este livro cável luz sobre uma
polícias nos bastidores pretende dar a conhe- região que se afoga
de uma esquadra e nas cer como se constrói a há décadas em luga-
ruas e vidas dos agen- telenovela portuguesa res-comuns. A ligar
tes, passando pelas tra- e, em especial, como se todos os quilómetros ,
mas do difícil policia- vive a tensão entre a di- encontramos três te-
mento de um crime mensão cultural e a di- mas: as mulheres, o
público, como é o da mensão industrial des- suicídio e o complexo
violência doméstica. te conteúdo televisivo. do desenraizado.

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Revista LER 141

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Círculo de Leitores. Assinale com X caso não pretenda que os seus dados sejam facultados a terceiros ___.
Manifestos
Uma banda do Minnesota escutada no trânsito do Cacém, o mau gosto em literatura,
«os estrangeiros» em Inglaterra, a sorte de uma técnica dos transportes de Braga. Nomeadamente.

AS ROTUNDAS DÍVIDAS DAS AUTARQUIAS


Tal como as selfies são um tributo ao retratismo clássico, as rotundas representam um desafio: são os monumentos do futuro. Toma.

e me pedissem para escolher duas pala- desta dívida monstruosa, a edilidade porti- País sabe que a rotunda solitária, deixada
S vras que definem as nossas autarquias
diria «dívidas» e «rotundas». Posso estar a ser
monense era a orgulhosa proprietária de 30
rotundas que, não podendo ser transplanta-
ao abandono, ignorada por condutores ne-
gligentes que por ela passam sem um gesto
injusto para as três autarquias que escapa- das para outras localidades nem trocadas por de atenção, é um problema social gravíssimo.
ram a este duplo flagelo, mas é disto que me estatuária diversa, continuaram a adornar o Em declarações à CMTV, a presidente da câ-
lembro quando vejo a presidente da Câmara espaço urbano daquela cidade. Ao fim de me- mara, com o sorriso rasgado dos visionários
de Portimão anunciar um programa de ado- ses a saltar entre dívidas e rotundas e dívidas míopes, disse acreditar que, daqui a uns
ção de rotundas. Vejamos: em 2014, a Câma- rotundas, algum cérebro autárquico sugeriu anos, os turistas irão de propósito a Portimão
ra de Portimão, com 159 milhões de euros de o revolucionário cruzamento entre uma visitar as rotundas que, na altura, fruto do
dívida, ocupava um honroso terceiro lugar na campanha de solidariedade animal e o me- investimento dos empresários na sua requa-
lista das autarquias mais endividadas, logo cenato viário: pedir aos empresários da terra lificação, estarão ao nível de um Taj Mahal
atrás de Lisboa e Vila Nova de Gaia. A par que adotem uma rotunda. Quem viaja pelo ou das pirâmides de Gizé. BVA

TANTA SORTE SÓ PODE SER AZAR FATWA


Há quem justifique os seus estipêndios com a sorte de ter um amigo generoso e de bolsos fun-
escritor argelino Kamel Daoud, autor do
dos. E há quem invoque apenas a sua sorte. Já é azar.

inda o maravilhoso submundo dos ne-


O premiado e magnífico Mersault, Contra-
-Investigação (Teodolito), tomou posição – na
A gócios autárquicos. Semanas atrás, al-
guns indivíduos que desempenharam fun-
sequência dos «acontecimentos de Coló-
nia» – sobre o assédio e a violência sexual nos
ções nos Transportes Urbanos de Braga países muçulmanos e nas comunidades ára-
foram detidos por suspeita de corrupção na bes dominadas por autoridades religiosas.
compra de autocarros à empresa alemã Um grupo de inteletuais respondeu, no mes-
MAN. Até aqui tudo bem: portugueses a mo jornal (Le Monde), acusando-o de «cul-
comprar, alemães a vender e dinheiro a cir- prietária – um Mercedezinho – saiu-lhe no turalismo e orientalismo», «essencialista» ou
cular por baixo da mesa. Surpreendentes fo- concurso de um hipermercado. Isto já não – claro – islamófobo, por «não compreender»
ram as declarações de uma das arguidas, é sorte, é uma maldição. Naturalmente, a rapaziada; a ideia, escreveu a escritora tu-
Cândida Serapicos, ex-vogal dos TUB, que tanta sorte levanta suspeitas, mas o que há nisina Fawzia Zouari (no Libération), é a de
justificou o seu nível de vida com a sorte de uma pessoa honesta fazer? Dar aos ou- que os inteletuais de Paris não concebem que
ao jogo. Atenção, não se trata da ocasional tros o que o destino teima em lhe oferecer? escritores como Kamel Daoud ou Boualem
bolada, um prémio chorudo e irrepetível Porém, mesmo que o desfecho deste caso Samsal (o autor de 2084), vindos do campo
no Euromilhões, é mesmo um caso de sor- não seja favorável aos interesses de Cândi- de batalha (ambos são argelinos) possam
te crónica, incurável. Serapicos ganhou da, o seu futuro parece assegurado. Basta pensar por si próprios, pondo em causa o
cem mil euros na lotaria, um prémio ele- entrar num casino e esperar que a sua mal- saber universitário e as suas categorias – e es-
vado no Totoloto e a viatura de que é pro- dita sorte faça o resto. BVA capando com vida às fatwas. FJV

10 primavera 2016 LER


AudioliVros. Nos
EUROPEUS, NÃO BRINQUEM COM COISAS DEMASIADO SÉRIAS EuA, a venda de audio-
Afinal, a magia dos índios é mesmo perigosa? livros registou um au-
mento súbito de vendas
uase ninguém – com a exceção breve The History of Magic In North tória seria cómica, a juntar aos exem- no último trimestre
Q natural dos seus fãs – tem pa-
ciência para as lições de bruxaria co-
America como uma espécie de «an-
tepassada» dos seus efeitos especiais.
plos do ressentimento cultural de
hoje. Mas acontece que a universida-
(28%, num total de
25 787 títulos publica-
metidas pelo círculo que rodeia Har- Mundo maravilhoso, «vingardium le- de americana e os seus «ativistas» dos). No top de vendas,
ry Potter e devidamente ministradas viosa», levitemos todos. Acontece que não brincam nem deixam brincar: dois livros tão diferen-
por J.K. Rowlling, que até parece a coisa não foi bem-vista do lado de lá «Os povos americanos são reais, e tes como Matadouro
uma figura simpática. Com o fim da do Atlântico: os mestres dos «estudos brincar com a sua bruxaria e tradi- Cinco, de Kurt Vonne-
saga de Hogwarts, a escola de magia culturais» índios acusam Rowlling ções mágicas pode ter efeitos sérios gut (lido por James
e bruxaria dos seus livros, a autora de apropriação indevida, imperialis- na luta pela descolonização, contra o Franco), e Orgulho e
– por irrequietude compreensível – ta, e de «agressão racista e colonial» domínio da supremacia ocidental.» Preconceito, de Jane
decidiu alongar o filão e publicar uma contra os nativos americanos. A his- Onde está o general Custer? FJV Austen (lido por rosa-
mund Pike).

A QUESTÃO DE GÉNERO: O MUNDO MUDA suPrEmo TriBuNAl


FEdErAl do BrAsil
a adaptação televisiva de The encarar o assunto como uma viola- tere o equilíbrio de forças na escolha o supremo brasileiro

N Night Manager (O Gerente


da Noite, canal AMC, a mais
cara produção da BBC – com Tom
ção de identidade ou com a trapalha-
da da «questão de género», John Le
Carré (também produtor da série)
de personagens. Esta lição de John
Le Carré é de uma simplicidade que
não requer esforço para ser com-
decidiu, finalmente, que
a publicação de biogra-
fias no país não neces-
Hiddleston, Hugh Laurie e Olivia explicou as coisas com simplicidade: preendida: nem alterando o texto ori- sita da autorização dos
Colman –, livro publicado pela Dom sim, na época (o livro foi publicado ginal (onde Leonard Burr ainda não biografados ou dos
Quixote), o primeiro romance de em 1993) era difícil ter colocado uma sabia que ia ser substituído pela feroz seus herdeiros. Pes-
John Le Carré depois da queda do mulher como uma das protagonistas Olivia Colman), nem deixando de ser soas como roberto
Muro de Berlim, um dos persona- do livro, era um mundo dominado uma versão para os nossos dias. Carlos, Chico Buarque,
gens masculinos aparece, no ecrã, por homens – mas 20 anos depois é Uma discreta lição de tolerância que Gilberto Gil ou sílvio
transformado em mulher. Em vez de natural que a adaptação televisiva al- merecia um prémio. FJV santos tinham impe-
dido a publicação de
livros. A aguardada
PARA A HISTÓRIA DO ESTABELECIMENTO DO MAU GOSTO biografia de roberto

Manuel Alegre protesta contra o mau gosto na literatura. Mas onde terá ele – o mau gosto – nascido? Carlos, de Paulo sérgio
Araújo, sairá este ano,
urante uma das sessões das culpar a «comunicação social» é fácil e pela herança cultural, a cedência bem como as de rober-

D Correntes d’Escritas de feve-


reiro passado, Manuel Alegre
alertou para «a ditadura do mau gos-
demais, embora venha sempre a
propósito – tal como vilipendiar o bei
de Tunes às seis da tarde. Acho pre-
ao «contemporâneo» e ao imediato,
a euforia escolar na «preparação
profissional» produzem maus leito-
to marinho ou roberto
Civita. Três robertos,
portanto.
to» na literatura – uma invasão que, ferível preocuparmo-nos com o tipo res e sim, até mau gosto. Sem inter-
em seu entender, tem o patrocínio da de ensino da língua e da literatura vir aí, onde é mais profundo e mais GEorGE r.r. mArTiN
«comunicação social», e que perver- nas nossas escolas, e também para subterrâneo, estaremos a substituir Em maio chega a sexta
te «a palavra do Homem», já tão ata- a ausência de uma educação para uma ditadura por outra (a mais con- temporada de Game
cada pelos vários «males do nosso a cultura e para a sensibilidade (mú- veniente) e a não dar margem de op- of Thrones, mas o autor
tempo» (aí, o catálogo é mais vasto). sica, cinema, história das religiões, ção aos leitores do futuro, que nun- inventa desculpas para
Manuel Alegre tem razão «na gene- história da arte, por exemplo). O fim ca poderão comparar o sublime adiar o sexto livro da sé-
ralidade», como de costume – mas te- dos estudos clássicos, o desprezo com o lixo que os cerca. Esse é o de- rie. Tudo indica, portan-
mos opiniões diferentes «na especia- pelo passado (sempre avaliado à luz safio perdido, como Manuel Alegre to, que demasiada tele-
lidade», como quase sempre. Ou seja, do que é mais popular hoje em dia) sabe. FJV visão faz mal aos livros.

LER primavera 2016 11


Manifestos

NÓS, OS EUROPEUS QUE VIVEMOS NO REINO UNIDO


Dear Mr. Cameron, de ter ganhado por uma unha negra o refe- Durante três décadas, os ingleses foram
Vivo há 11 anos neste país; o meu marido rendo da Escócia, vizinhos que se falavam encharcados de notícias antieuropeias; con-
há mais do dobro. Aqui fundámos uma fa- uma vida inteira, de um dia para o outro, venientemente ensaboados com sabão, lixí-
mília. O nosso filho pertence a este país deixaram de o fazer. O problema destes re- via e repelente anti-Bruxelas. E riram a bom
– diz-se inglês; nós, os pais, permanecemos ferendos é mexerem, não com argumentos rir das piadas anti-Bruxelas. Do monstro ca-
europeus. Estão para lá de considerações fi- mas com sentimentos. Com sentimentos re- ricato, burocrático, açambarcador da sobe-
nanceiras ou profissionais, as razões por que cônditos, escondidos, sombrios da natureza rania britânica. É sério, porém confrangedor,
aqui vivemos. Admiramos genuinamente humana. que, na BBC Radio 4, companheira de todos
aspetos da cultura inglesa, a língua, Lon- São tão emocionais, tão à flor da pele, as ra- os dias, um conhecido entrevistador massa-
dres: o tanto que a cidade tem para oferecer zões para um «não»: o Reino Unido não con- cre qualquer entrevistado que decline sim-
quanto é acomodatícia e aberta a quem aqui segue lidar com o fluxo imigratório que pres- patias europeístas. Na rádio estatal, em dire-
queira viver. Londres é um compromisso siona o seu sistema nacional de saúde, as to, o entrevistador sentenciou: «We are going
possível para tantos casais, que, tal como escolas estatais e o mercado imobiliário, esse to vote with our gut feelings» a propósito do
nós, são biculturais, casais que sentiriam infalível tema de cavaqueira nacional. As pro- referendo do dia 23 de junho. Ora, se é com
a balança desequilibrada se tivessem de re- priedades em Londres atingiram preços proi- os «gut feelings» que os eleitores irão votar,
gressar ao país do outro cônjuge. Dobrámos bitivos para a classe média, que assiste impo- Mr. Cameron, podemos estremecer.
há muito o ponto de não-retorno: encaixar- tente à frustração de filhos e netos condenados Em encontros em casa de gente polida,
-nos-íamos a custo se regressássemos aos ao arrendamento vitalício, proscritos de casa refinada, educada, vejo o quanto este refe-
países que nos viram nascer. Somos misfits, própria. Os imigrantes são bodes-expiatórios rendo mexe com emoções telúricas. Con-
peças desencaixadas, observamos com ou- fáceis quando a qualidade de vida se deterio- fronto-me com gentlemen das zonas rurais
tro olhar, de outro ponto de vista, e uma tal ra, quando os «refugiados» ameaçam conver- inglesas que colocam o «direito à liberdade»
abertura do caleidoscópio é motivo para gra- ter-se num problema crónico europeu. Para acima de qualquer peso e medida. E se o co-
tidão: o mundo pode ser diferente dos mun- tantos, este referendo reduziu-se a um voto rolário for a Escócia reivindicar um segun-
dos de que provimos. sobre a imigração, conferiu-lhes a oportuni- do referendo e obter a independência, pois
Creia, Mr. Cameron, que este referendo, dade irresistível de a cercear. seja. Orgulhosamente sós. Sentimentos de
independentemente do seu resultado, de- É verdade que ouço pela primeira vez, da superioridade e glória que, infelizmente, não
sencadeou uma viragem na forma como os sua e de outras bocas, em alto e claro som, colhem entre os motivos por que considero
europeus se sentem em Inglaterra. Desferiu as razões – e friso, são razões – a favor da o Reino Unido grande.
uma brecha na sociedade. A integração é permanência do Reino Unido na UE. Re- Já na City de Londres o que leva a pal-
uma conquista árdua, é um zelo diário. ceio, porém, que seja tarde demais e insufi- ma não são princípios, são ponderações
É um desconforto que nos agiliza a ultra- ciente. Too little, too pragmáticas. Ponderações dos ganhos que
passá-lo. É este esforço que tantos europeus late. uma saída da UE traria para a indústria
fazem por tornar este país e esta financeira, ensarilhada, aos tropeços, nas
cidade seus, que vejo ameaçado. malhas regulamen-
Imagine por um momento as tares comunitárias.
várias mensagens implícitas Constato-o nos de-
numa vitória do «não»: «Somos bates que a City e o
ingleses e não europeus»; «Somos FT promovem,
grandes independentemente da taco a taco, entre
Europa»; «Estamos melhor defensores do
sem os europeus e fora da Eu- «sim» e do
ropa». «não», ao lon-
Dear Mr. Cameron, sabe por go dos quais os
certo que, independentemente representan-

12 primavera 2016 LER


tes da «dissidência europeia» arrancam atos, intuiu o seu momento de oportunidade Sim, a Europa terá os seus problemas,
o aplauso da assistência. e desferiu o que já foi considerado como «the mas não é a causa de todos os problemas
É secundário que a libra caia para míni- most self-serving act ever practiced in politics». que flagelam o RU. O que vai ser dos três mi-
mos históricos, com subida do custo das im- Mr. Cameron, vejo-o com muita confian- lhões de europeus do RU e dos 1,8 milhões
portações numa balança comercial já de si ça, empolgado num assunto que sempre lhe de britânicos a viver na UE, cidadãos que
deficitária. A longo prazo, os adeptos do foi caro, e desejo-lhe sinceramente as maio- têm dois amores vividos sem nenhuma trai-
«não» creem poder negociar acordos bilate- res felicidades, porque a parada é alta. Da ção um ao outro? Esperemos que não te-
rais com as economias que interessam ao sua vitória depende muito do futuro deste nham de escolher, mas as suas vidas irão
Reino Unido e soerguer-se robustecidos do país, de muitas vidas que nele tudo aposta- certamente complicar-se.
inevitável embate que a saída da UE custa- ram, e afinal da própria Europa. Pois a divisão aguarda-nos a todos. Essa
rá. Um salto no escuro, uma aposta no des- Acredito consigo que as razões que nos que, Mr. Cameron já experimenta e conti-
conhecido que, bem o sabemos, tem o seu unem, ingleses e europeus, são bem maio- nuará a experimentar no seu partido e alas-
quê de aliciante para a especulativa City. res do que as que nos desunem. Sabem-no tra pela sociedade, essa não há mais como
Desde que Boris Johnson anunciou que os ingleses viajados; sabem que na China, na sustê-la e fazê-la recuar.
campeará pela saída da UE, os agentes de Índia, ou nos EUA nunca se sentirão em
apostas viram as apostas passarem de 12:5 casa, como se sentem na Europa. Essa casa
para 2:1. Boris cometeu um ato suicidário? de 500 milhões habitantes na qual, por Clara Macedo Cabral
Pelo contrário, praticou o mais populista dos vezes, é difícil coabitar. Escritora a viver em Londres desde 2005.
PUB
JohANNA BAsFord Manifestos
Esta escocesa, nascida
em 1983, é a autora dos
títulos mais vendidos
LOW, UMA BANDA DE DULUTH, MIN.
do ano, Mindfoulness: O disco dos Low (banda formada por Mimi e Alan Sparhawk) leva o título Low and Retribution Gospel Choir.
livros para colorir. Em
2015 vendeu 19 milhões Avenida dos Bons Amigos, no
de exemplares – tão
bons que nem é preciso
A Cacém, estava lenta de semáfo-
ros. Sentadas atrás de mim, duas se-
lê-los. nhoras de meia-idade comentavam
a situação política. Uma delas repe-
NomA dumEzwENi tiu quatro vezes, até chegarmos aos
A atriz negra, 46 anos, bombeiros, que pelo menos agora
nascida na suazilândia, já tínhamos virado a página. O que
interpretará o papel de durante uns segundos me pareceu
hermione Granger em uma admirável e surpreendente epi-
adulta, numa nova peça fania poética, logo foi lembrada como
inspirada na saga harry evidência de slogan eleitoral com re-
Potter. sobre o facto de sultados. A um continente de distân-
hermione mudar a cor cia, os Low. São uma banda de Dul-
de pele, J.K. rowling luth, Minnesota, a cidade onde Bob divino final não tardará. Os sinais são sabe, ninguém pode prever, se algu-
escreveu no seu twitter Dylan nasceu. Assente na melanco- demasiados e é coisa para um dia ma irá conseguir entrar. Se é certo
que «white skin was lia e na lentidão, a música dos Low é destes porque o seu livro sagrado que é por isso que se queimam li-
never specified». capaz de fazer os Madredeus parece- é bastante claro sobre isso. vros e se impõe o silêncio, também
rem um alegre e animado conjunto Em ambos os casos houve pala- é por isso que a arte tem o poder
ÓBidos. Ganhou a dis- de bailarico estival. O casal, compos- vras que caíram em solo fértil. Ger- de redimir. Não é uma grande con-
tinção de Cidade literá- to por Alan Sparhawk e Mimi Par- minaram até à certeza e agora pare- clusão, mas se alguma destas pala-
ria, integrando a rede de ker, é o núcleo da banda. Mórmones cem estar bem fixas. Todos os dias vras pousar perto de si, pelo menos
47 «cidades criativas» convictos, acham, que o mundo está milhões de palavras sobrevoam o já sabe o que pode acontecer. Fica
da uNEsCo (11 livrarias a dar as últimas e que o julgamento mundo, à espera, atentas. Ninguém o aviso. João leal
sob o signo da ler de-
vagar). A isto junta-se
o Folio, festival literário
ESPANHÓIS, TREMEI!
que, em 2016 se reali- esde o manifesto dos empresá- ca andarão a esta hora a defendê-la, por patriotas portugueses (alguns de-
zará em setembro. D rios pela «manutenção dos cen-
tros de decisão em Portugal» que não
de braço dado. Parece que o Presi-
dente terá mesmo avisado o rei de Es-
les também queriam a manutenção
dos centros de decisão em Portugal) a
idANhA-A-NoVA. A so- se via tanto patriotismo à solta e à vis- panha («Felipe, não podem ser só es- diabólicos castelhanos. Mesmo assim,
litária (9 716 habitantes) ta (apesar de, na altura, alguns desses panhóis a apanhar o bem bom»), os portugueses sabem que uma ban-
idanha-a-Nova, que ti- empresários se terem vendido logo a invocando a bula Manifestis Proba- ca estrita e exclusivamente lusitana é
nha já sido designada seguir, como lhes competia, ao inimi- tum (a que reconhece o reino) e pro- que é bom; a prová-lo, o sucesso de
presidente da comissão go estrangeiro). Trata-se da ideia mulgando o decreto de faz regressar «bancos de bandeira», valentes con-
de cultura do Clube de de resistir à «ocupação espanhola da o feriado do 1.º de Dezembro. destáveis da nossa finança, como o
Estrasburgo, integra a nossa banca», maquinada por em- Por mim, preferia que, em vez da BPN, o BPP ou o Banif, para não falar
rede de cidades criati- presários que têm em vista, natural- Caja Madrid, se abrissem balcões no BES – tudo exemplos de «gestão
vas da uNEsCo como mente, o bem da Pátria. Para lá de pa- da Caixa Faialense – mas já me avi- de proximidade» e de tão inesquecí-
Cidade da música (é lá o triótica, é uma iniciativa tão generosa saram que desapareceram ambas, veis serviços prestados aos portugue-
Fora do lugar, Festival para nós todos (além de tão exigente e que o Barclays, inglês, vendeu as ses, que estes nunca se recusaram
de músicas Antigas) – a em matéria legal), que empresários, suas contas portuguesas ao espanhol a pagar os seus rombos, passados
segunda da Península. governo e até Presidente da Repúbli- Bankinter. O Totta, aliás, foi vendido e futuros. Tremei, espanhóis. FJV

14 primavera 2016 LER


LER primavera 2016 15
GLOBO LITERÁRIO V JOSÉ RIÇO DIREITINHO

Capital: Abuja. Línguas mais faladas (para além do vaca (por vezes também galinha) tempera-
Cidade mais populosa: Lagos. inglês): haúça, ibo e ioruba. da com malaguetas, farinha de amendoim
Fronteiras: a sul, Camarões; a sudeste, Moeda: naira. e especiarias locais; é preparado enfiando
oceano Atlântico; a norte, Níger; a noroeste, a carne em varas e grelhando diretamente
Chade; a nordeste, Benim. Prato nacional: A cozinha nigeriana sobre o fogo.
Nº de habitantes: 173 milhões. é muito variada, consistindo em pratos tí- Bebida nacional: Sorrel – é uma bebida
Religião: 58% da população professa a reli- picos das centenas de grupos étnicos que à base de água e flores de hibisco, a que se
gião cristã (dos quais 74% são protestantes compõem o país. É bastante condimentada, junta gengibre e cravinho, pimenta, cascas
e os restantes católicos) e 40% são muçul- usando especiarias e ervas em conjugação de laranja, um pau de canela e mel. Ferve
manos (sobretudo os da tribo ioruba); os com óleo de palma. O uso de várias espécies tudo por 10 minutos. Passada meia hora,
restantes, são animistas, agnósticos e ateus. de malaguetas está sempre presente. Suya a bebida deve ser coada. Serve-se fria e com
Língua oficial: inglês. é o prato típico do Norte da Nigéria: carne de pedras de gelo.

16 primavera 2016 LER


Nigéria Abuja abuja: 9°4′N 7°29′E

ESCRITORES FAMOSOS
Wole Soyinka (n. 1934) – Estudou na Nigéria e no Reino Unido. meiro africano a receber o Nobel, em 1986. Para além da sua obra-
Foi professor convidado em Cambridge, e mais tarde em algumas -prima, Os Intérpretes, tem publicada em português a sua
universidades americanas. É considerado um dos mais impor- impressionante autobiografia, É Melhor Partires de Madrugada
tantes dramaturgos de África. Várias vezes premiado, foi o pri- (Pedra da Lua, 2008).

Chinua Achebe (1930-2013)


ato de contar uma história tem na sua natureza um ele-

O mento de magia. E esse efeito mágico cumpre, sobretudo


nas comunidades e nas sociedades mais tradicionais, a
função de organizar um suposto passado de maneira a estrutu-
rar o presente. É fazendo uso desse «poder feiticeiro» que Chinua
Achebe começa a recriar de maneira singular realidades até en-
tão ausentes dos romances sobre África. Com apenas 28 anos de
idade, publica em 1958 aquele que é considerado o livro seminal
de uma literatura africana pós-colonial, Quando tudo Se Des-
morona (Mercado de Letras, 2008). Escreve a partir de dentro de

© DR
uma realidade cultural e histórica, em oposição a romances em
que o olhar está do lado de fora, em que é «estrangeiro». Por vá- língua dos colonos para que os seus livros possam ser lidos em
rias vezes (e escreveu mesmo um ensaio para o demonstrar) ape- todo o continente – justifica-se assim quando é disso acusado).
lidou de racista o famoso livro O Coração das Trevas, de Conrad, Chinua Achebe é uma voz incómoda para alguns intelectuais afri-
por causa desse olhar etnocêntrico, ignorante da cultura africa- canos que a qualquer pretexto desfraldam a bandeira da «vitimiza-
na, arrogante e exterior ao continente. Achebe retoma as «regras« ção» do continente, demitindo-se assim de responsabilidades; e é-o
canónicas da forma do romance, as convenções clássicas do gé- também para um certo Ocidente trendy que não se consegue ver
nero, e «acrescenta-lhe» a estética da tradição oral africana. Não livre de um exacerbado complexo de culpa histórica, e que com essa
subverte a linguagem nem cai no facilitismo de lhe inventar efei- disfarçada atitude «paternalista» mais não faz do que legitimar
tos «folclóricos» (escreve num inglês perfeito; conta histórias na a hipocrisia e a desgraça.

Cimamanda Ngozi Adichie (1977) contadores de histórias. O seu nome é rias», daqueles que reúnem as aldeias
om a publicação em 2005 de A Cor Chimamanda Ngozi Adichie. Esta escri- na sombra das acácias-rubras.

C do Hibisco (Commonwealth Wri-


ters’ Prize), a literatura africana ga-
nhou uma nova voz: elegante, por vezes
tora, natural da Nigéria, publicou, três
anos depois, Meio Sol Amarelo (Orange
Prize, 2007) – que jornais ingleses e ame-
Depois dos dois romances, Chimamanda
Ngozi Adichie publicou A Coisa à volta do Teu
Pescoço, uma coletânea de 12 histórias que re-
luminosa, herdeira do talento dos antigos ricanos de referência se apressaram a elo- tratam principalmente as vidas e as experiên-
giar dizendo que vinha na tradição da cias de mulheres nigerianas divididas entre a
obra de dois grandes autores nigerianos, tradição e a modernidade, entre o viver na Ni-
Chinua Achebe e Wole Soyinka. Do outro géria e o viver nos EUA, na procura do difícil
lado do Atlântico, a escritora americana equilíbrio entre dois mundos, a África e o Oci-
Joyce Carol Oates chegou mesmo a afir- dente. Mas Chimamanda não se limita a
mar que Meio Sol Amarelo é um sucessor retratar: o seu tom é muitas vezes crítico, so-
de Quando tudo Se Desmorona, de Chi- bretudo para o sistema de «casamentos arran-
nua Achebe. O próprio Achebe reconhe- jados» (quer por tradição, quer por interesses
ceu que a jovem Chimamanda tem «o económicos) e para a corrupção que mantém
© DR

talento dos antigos contadores de histó- toda a sociedade presa nas suas garras.

LER primavera 2016 17


LEITURAS MIÚDAS V CARLA MAIA DE ALMEIDA

Scrapbook Wendy no divã


aNDRé lETRIa Como ilustrador ou editor WINNIE-THE-POOH Distraído, brincalhão, criativo e alheio à conquista de metas, o urso
da Pato lógico, foi-lhe diagnosticada «criati- «com poucos miolos» poderia ser apontado como um caso de défice de atenção. Mas
vidade hiperativa». Este ano, é um dos artis- o que parece não é, e o que é não parece.
tas convidados da exposição internacional
da Feira do livro de Bolonha. Já merecia. semelhança de outros lugares imaginá- este tem consciência de ser um urso «com
À rios como Oz, a Terra do Nunca ou o
País das Maravilhas, também o Bosque dos
poucos miolos». É neste aparente paradoxo
que assenta a sua liberdade e tendência para
Cem Acres foi inventado para acolher resi- o devaneio. Pooh esquece-se facilmente do
dentes que não encaixam em parte alguma. que está a fazer, distrai-se a meio de uma con-
Uma maneira de os autores exporem os seus versa, não sabe distinguir a esquerda da di-
fantasmas sem passarem pelo divã do psica- reita, prefere as letras de canções às palavras
nalista. A.A. Milne escreveu, E.H. Shepard com mais de três sílabas, cultiva os prazeres
© David Clifford

ilustrou, trabalhando em dupla na prodigio- da gula, não tem metas nem objetivos decla-
sa década de 20. rados, ignora a competição e, enfim, tem al-
Entre a hiperatividade impulsiva do Trigue guns hábitos só tolerados em comunidades
(não, não é gralha) e a depressão crónica do alternativas e empenhadas na permacultu-
Uma árvore perde as folhas e um homem burro Inhon, o caso de Winnie-the-Pooh ra. Seria trucidado pelo nosso sistema edu-
perde a cabeça. Outono, livro sem texto, (Joanica Puff, na tradução portuguesa) não cativo e poderia levar o mais motivado perso-
é uma alegoria do tempo ou da calvície? causa distúrbios de maior, desde logo porque nal coach à loucura – mas, para felicidade dos
Este Outono, que se vai desdobrando até à de- leitores, nenhuma des-
sistência final, não tem muito a ver comigo. sas ameaças existe no
Prefiro outros estados de espírito e revolto- Bosque dos Cem Acres.
-me antes de ficar melancólico. Há quem lhe Enquanto o Mocho e o
chame «mau feitio». E assim o tempo corre Coelho ditam pretensas
mais depressa e a calvície chega mais cedo. verdades, o Porquito se
Em Partida, outro livro sem texto, um bloco aflige e o burro Inhon diz
de gelo transforma-se num barco a vapor. mal do mundo, Winnie-
Provocar contradições poéticas é um vício -the-Pooh dedica-se a vi-
de ilustrador? ver – sem angústias nem
Esta coleção, a que chamei «Desconcertinas», afobações. Importante,
é ótima para criar vícios. Antes mesmo das mesmo, é continuar a
contradições poéticas, provoca o vício do di- flutuar, mesmo sob as
vertimento. Dá muito gozo pensar nestas piores condições atmos-
situações desconcertantes que se revelam fra- féricas. «Se uma garrafa
me a frame, como num zootrópico em câ- pode flutuar, um pote
mara lenta. também pode flutuar, e
Pode revelar um dos seus propósitos de vida se um pote pode flutuar,
(além do e pluribus unum)? eu posso sentar-me em
De muitos, aqui fica um: não deixar de ter cima dele, se for um pote
propósitos de vida. Outro, mais prosaico ou muito grande», diz ele.
talvez não, é voltar a ter tempo para ilustrar Pensem nisso. Mas
© DR

livros. não demasiado.

18 primavera 2016 LER


deStinatário incerto to à vida, e nem sequer a uma especial vida
interior.
Apesar de tímido, o Sr. Andersen foi um via-
O DICIONÁRIO DO MENINO aNDERSEN Um dicionário serve para arrumar ou para jante: só na Europa, fez perto de 30 viagens,
desarrumar palavras? Gonçalo M. Tavares e Madalena Matoso fizeram um livro perfeito incluindo a Portugal. O menino Andersen
para a Planeta Tangerina, editora habitada por destinatários incertos. também é um grande viajante, mas não pre-
cisa de sair do sítio: basta mudar de perspeti-
menino Andersen era um grande in- ganham forças para, a seguir, desarrumar va ou tentar ver as coisas do avesso. Evita o co-
«O ventor e não andava nada satisfeito
com as definições de palavras que lia no di-
a casa toda.»
Há uma coisa que o menino Andersen
mando da televisão: «É uma máquina que
impede que te levantes», explica ele. «Quando
cionário. Por isso decidiu começar a escrever tem em comum com o Sr. Andersen: a ca- carregas nos botões, ficas imobilizado.» O Sr.
um dicionário novo, um dicionário que en- pacidade de se espantar com os objectos e Andersen não tinha esse problema da televi-
tusiasmasse os seus amigos.» Ao contrário de observá-los como se fossem gente. Se a são, mas era um adulto muito estranho. Tal-
do Sr. Andersen, nascido há 210 anos na Di- toalha é «um objecto que tem sede» (atenção, vez o menino Andersen lhe quisesse contar a
namarca, o menino Andersen não sofre de o menino Andersen ignora o Novo Acordo sua definição de rir: «Rir é dizer muito rápido
melancolia nem parece preocupado com a Ortográfico), a banheira é «uma piscina algumas palavras. Rir é uma língua como
saúde. Por isso, é natural que tenha escolhi- egoísta porque só dá para uma ou duas o português, o espanhol ou o chinês.» Como
do palavras que o entusiasmem, palavras crianças». No seu tempo, o Sr. Andersen es- seria rir em dinamarquês
que façam lembrar jogo, movimento e tudo creveu diálogos incríveis entre uma pena e do século XIX?
o que sirva para brincar. Por exemplo, a ca- um tinteiro, os vários dias da semana ou as
deira: «É o sítio onde as crianças descansam cinco ervilhas de uma vagem, o que causou O Dicionário do Menino Andersen
Gonçalo M. Tavares
depois de desarrumar a casa toda. A cadeira algum espanto. Pensava-se então que só os Madalena Matoso (ilust.)
também pode ser o sítio onde as crianças piratas, reis e princesas é que tinham direi- Planeta Tangerina

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LivroS ao microScópio
O PIlOTO E O PRINCIPEZINHO Um novo
álbum de Peter Sís, Prémio Hans Christian
andersen de Ilustração, merece ser cele-
brado com champanhe. Ou Champomy.

Desde A Árvore da Vida, uma biografia de


Charles Darwin milagrosamente editada
pela Terramar em 2005 (é da natureza dos
milagres serem raros), que o nome de Peter Figura de Urso O Livro Que Explica Bicicleta à Chuva O Doutor Grilo
Sís não aparecia associado a uma chancela Álvaro Magalhães tudo sobre Raparigas Margarida Fonseca Carlos Nuno Granja
portuguesa. Nem mesmo a atribuição do Cátia Vidinhas (ilust.) e Rapazes Santos Vasco Gargalo (ilust.)
Prémio Hans Christian Andersen de Ilus- La Fragatina Françoize Boucher Booksmile Opera Omnia
Presença
tração 2012 contribuiu para divulgar a obra
de um criador superlativo e com dezenas de Texto e ilustração conju- Os personagens quei- Um livro honesto e pro- Um carvoeiro palrador far-
livros ilustrados, vinte e cinco dos quais com gam-se para criar um xam-se de que a autora fundo na forma como tra- ta-se de couves-de-bru-
texto também da sua autoria. Eis que surge equilíbrio poético capaz desenha mal – e ainda ta o problema do bullying xelas e vai para Coimbra
de suster temas essen- bem. Humor irreverente, (e também da violência estudar. Com um pouco
agora, toquem os sinos, o último título assi-
ciais: o nascimento, sem cair no mau gosto, doméstica), mostrando de manha e sorte (e a
nado por Peter Sís, num registo idêntico às a morte, o tempo, o amor, e uma visão perspicaz e as emoções da vítima e inocência dos tolos), logo
biografias de Darwin e de Galileu. Nascido o medo, a curiosidade generosa do comporta- do agressor em alternân- chega a doutor, mas não
na antiga Checoslováquia (Brno, 1949) e re- e tudo que há entre dois mento humano fazem o cia de blocos de texto. deixará de contar histó-
sidente nos Estados Unidos desde o início irmãos inseparáveis. Não sucesso. Também a não Um passo corajoso rias. Um conto tradicional
da década de 80, Sís não esconde a sua pre- é preciso ir a Espanha perder, O Livro Que Expli- para começar a coleção revisto e aumentado
para o encontrar. ca tudo sobre os Pais. «A Escolha É Minha». em ironia.
dileção por espíritos livres, e Antoine de
Saint-Exupéry não é um nome que espan-
te. Mas espantam sempre estas ilustrações
minuciosas que devem tanto à gravura
como à cartografia, exuberantes em por-
menores visuais, textuais e simbólicos. Se-
guir o percurso de vida de Saint-Exupéry
até ao seu desaparecimento súbito, em ju-
lho de 1944, representa mais do que satis-
fação de curiosidade enciclopédica. É um
deleite para os olhos de qualquer leitor exi- Um Livro A Baleia O Que Aconteceu Contos
gente, isso sim. de Sentimentos Benji Davies à Minha Irmã? Hans Christian
Amanda McCardie Orfeu Negro Simona Ciraolo Andersen
Salvatore Rubbino (ilust.) Orfeu Negro Temas e Debates/
Livros Horizonte /Círculo de Leitores

Zangados. Furiosos. En- Depois de uma tempesta- Depois do anterior Quero Andersen sempre recusou
vergonhados. Assustados. de, uma baleia dá à costa Um Abraço, a história de o estatuto de escritor para
Rabugentos. Sobre um e é acolhida por um meni- um cato cujo maior desejo crianças; e a profundida-
fundo narrativo de contex- no solitário. Mas o mais era ser abraçado, Simona de, inquietação e originali-
to familiar, os sentimentos interessante talvez seja o Ciraolo volta ao tema da dade da sua escrita não
e emoções retratam-se que acontece entre ele e família, desta vez esco- podem deixar de interpelar
aqui sem julgamentos, o pai. Com texto e ilustra- lhendo um ângulo mais o leitor adulto. Esgotada
porque «todas as famílias ções do mesmo autor, eis realista: o choque da pas- há muito a coletânea da
são diferentes e todas fun- uma estreia que venceu sagem da infância para Gailivro, a presente edição
O Piloto e o Principezinho
Peter Sís cionam de maneira o prémio Oscar’s First a adolescência, protago- reúne 156 contos com
Jacareca diversa». Book 2014. nizado por duas irmãs. novas traduções.

20 primavera 2016 LER


bibLioteca do nautiLuS
Demonstrando a coragem de reescrever os seus heróis juvenis
(caso de Dave Eggers, que recontou a história do Capitão Nemo),
a liberdade de escolha dos autores só pode ter beneficiado o projeto.
HISTÓRIaS INESQUECÍVEIS Numa edição ilustrada, cinco Resumir em poucas páginas uma obra como Crime e Castigo, de
romancistas contemporâneos recontaram algumas das melhores Dostoiévski, pode ser arriscado mas não impossível. Abraham
histórias da literatura universal. Don Giovanni, Antígona, Crime B. Yehoshua, escritor de origem judaica que quis explorar o seu fas-
e Castigo, Gulliver e Capitão Nemo. No fim do ano há mais. cínio pelo ambíguo Raskólnikov, afirma: «Numa época em que crian-
ças e adolescentes estão tão expostos à violência, fictícia ou real, exi-
s adaptações dos clássicos da literatura para os mais novos são, bida na televisão ou na internet, não lhes fará com certeza mal
A passe o exagero, um tema fraturante. A simplificação da lin-
guagem, a erosão da aura literária e da profundidade do enredo e
ler uma história que descreve um lento e profundo processo de to-
mada de consciência moral por parte de
dos personagens contam-se entre os principais argumentos dos que um jovem inteligente, embora arrogante, que
defendem o «não». Clássicos, só no texto original e nunca em versões se tornou culpado de um terrível crime.»
truncadas e de qualidade duvidosa. É uma posição respeitável, mas Fiéis à intenção de recontar uma grande his-
talvez demasiado século XX. tória ao público mais jovem, necessariamen-
Ora bem, e se déssemos a volta ao texto? Save the Story, o projeto te abreviada, os autores optaram por «não fa-
de origem italiana que concebeu os dois volumes de Histórias Ines- zer bonito», antes sobressair o essencial,
quecíveis (o segundo será publicado no final deste ano), convidou usando os epílogos e os enquadramentos his-
romancistas contemporâneos como Jonathan Coe, Ali Smith ou tórico-literários como remates úteis e também
Dave Eggers para reescreverem alguns clássicos que correm o ris- Histórias Inesquecíveis – algo pessoais. No final do ano, o segundo volu-
As Melhores Histórias da
co de cair no esquecimento, «tornando-os cativantes até para as ge- Literatura Universal Con- me traz-nos as histórias de Cyrano de Berge-
tadas aos mais Novos
rações que gostam mais de tocar num touch screen do que folhear AA. VV.
rac, Gilgamesh, O Nariz, Os Noivos e O Rei
um livro em papel». Nuvem de Letras Lear. Mal podemos esperar.
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Coisas verdadeiramente Importantes

Virtudes cardeais
O mundo governado por um certo absurdo, é esse o segredo.

Castidade – É no Museu de Orsay, em Paris, que se encontra rioka (donde, Livraria Morioka) substitui o título por um novo.
um dos quadros mais escandalosos da história da arte ociden- O conceito é inovador mas desafia a paciência do leitor que só
tal, Olympia, do sátiro Edouard Manet. Mas se o quadro já não compra livros na Morioka e tem de esperar uma eternidade por
choca ninguém, a não ser que João César das Neves visite «aquele» livro.
aquele antro de arte degenerada, o mesmo não se pode dizer de Humildade – A França condecorou o cidadão português Antó-
alguns gestos artísticos contemporâneos que escandalizam não nio Antunes com o título de cavaleiro da Ordem das Artes e das
apenas os defensores da moral mas até a direção do museu. Letras. O Sr. Antunes pediu que a cerimónia oficial tivesse lugar
A artista luxemburguesa Deborah de Robertis despiu-se perto na embaixada portuguesa em Paris. O Sr. Embaixador, cujo
do quadro de Manet e imitou a pose de Olympia. Resultado? nome nos escapa, disse que não podia ser. O Sr. Antunes ainda
Foi retirada das instalações pelas autoridades policiais. O qua- assim foi condecorado, publicou uma mensagem nas redes sociais
dro, esse, ficou no mesmo lugar. a agradecer a distinção e aproveitou para dar a conhecer a recu-
Generosidade – O Sr. Zuckerberg, aquele rapaz muito feio sa do Sr. Embaixador. «No meu país hão de valorizar-me quan-
que inventou o Facebook, ficou multimilionário e continuou feio, do tiver um pé para a cova», profetizou o Sr. Antunes, que é co-
anunciou que pretende doar ao longo da vida 99% das ações da nhecido em determinados círculos culturais como Tony Carreira.
empresa para obras de caridade. Visto que as ações valem Temperança – Ainda o Osservatore Romano. O jornal veio
atualmente uns 50 camiões carrega- acusar o Charlie Hebdo de fomentar uma sociedade laica em
dos de notas de cem dólares, dá que não há respeito pelos «crentes da fé em Deus, indepen-
para ter uma ideia da generosi- dentemente da sua religião». Um ano depois do aten-
dade do Sr. Zuckerberg e da tado, o jornal satírico fez uma capa mostrando
sua mulher, Priscilla Chan. o verdadeiro assassino, Deus, em fuga.
Malditos capitalistas! Não foi o suficiente para incendiar as
Diligência – Um cientista superinflamáveis redes sociais, mas deu
alemão, Edzard Ernst, que para chamuscar a sensibilidade dos jornalistas
tem dedicado muito tempo do Vaticano. É preciso ter calma, como cantava
a investigar a chamada Abrunhosa.
«medicina não-convencio- Caridade – Jay-Z, mastermind de tudo
nal» (homeopatia e outras técni- o que é hip, de tudo o que é hop, lá-lá-
cas), concluiu que isso é o mesmo que -lá, afirmou que num ano conse-
«brincar aos médicos». E então? gue transformar Harry Styles,
Quem nunca brincou aos dou- ex-membro da banda One Di-
tores? É verdade que ganhar rection, no maior artista do
dinheiro com a patranha enquanto mundo. Sem querer meno-
se diz às pessoas que estão a ser tra- rizar o desafio – cer-
tadas pode parecer errado, mas talvez tamente uma tare-
um médico imaginário consiga mais fa- fa árdua, apenas
cilmente convencer o doente de que a enfer- ao alcance de
midade também é imaginária. Jay-Z –, por-
Paciência – Restaurantes que só servem um prato que não em-
não são novidade mas um empresário japonês im- pregar tais ca-
portou a ideia para o negócio livreiro. A sua livra- pacidades em
ria – a Morioka Shoten (o que segundo o Google artistas ainda mais
significa Livraria Morioka) – só vende exemplares necessitados de auxílio? Por exemplo, pegar nos
do mesmo livro. Ao fim da semana, Yoshiyuki Mo- D.A.M.A e torná-los suportáveis. Pode ser?
© Pedro Vieira

22 primavera 2016 LER


Estetoscópio à escuta
De como o pudor nos leva a grandes descobertas
que transitam para a posteridade.

EM 1816, O JOVEM MÉDICO FRANCêS RENÉ-THÉOPHILE-MARIE-


-HYACINTHE LAENNEC (felizmente fez alguma coisa de jeito por-
que seria uma pena que um nome tão musical tivesse sido var-
rido da História) teve receio de encostar o ouvido ao peito de
uma paciente para a auscultar. Em alternativa, enrolou 24 fo-
lhas de papel e encostou uma extremidade ao peito e ficou do
outro lado a ouvir o que se passava no interior da senhora. Foi
este o ponto de partida para a invenção do estetoscópio. Por-
tanto, devemos aos escrúpulos de um bretão este prodigioso ins-
trumento cuja sobrevivência nos consultórios se encontra amea-
çada pela generalização de ecocardiogramas e restantes
evoluções talvez mais eficazes mas muito menos românticas.

o regresso de savimbi o mal menor


Há quem diga que o jogo regista grande sucesso O órgão oficial do Vaticano pede – e bem – que o cinema
em Luanda, no Comité Central do MPLA. use maus que sejam mesmo maus. Nada de meias-tintas.

«CALL OF DUTY: BLACk OPS II» é um videojogo de 2012. Quando foi QUANDO A IGREJA CATóLICA SE QUEIxA da fraca qualidade dos vi-
lançado, bateu todos os recordes de vendas. A ação decorre entre lões do cinema é caso para dizer que já não se fazem maus como
1980 e 2025 e, lá pelo meio, há uma missão em Angola, no antigamente. O mal costumava ter excelentes representantes
Cunene, em que o jogador é recebido por uma versão digital de Jo- mas, em tempos de relativismo, os criadores têm mais dificulda-
nas Malheiro Savimbi. A família do antigo líder da UNITA, tal- des em inventar maus que sejam convincentes. Esta é a opinião
vez mais habituada a jogos de estratégia, só agora reparou neste de um crítico do L’Osservatore Romano, o jornal da Santa Sé, de-
pormenor. No entanto, a reação foi pouco amigável porque a ima- pois de ver o novo Star Wars. Nem os regressos de Han Solo, da
gem de Savimbi neste videojogo é, de acordo com os parentes, «a princesa Leia e de Luke Skywalker comoveram o crítico que
de uma grande besta que quer matar toda a gente». A família in- achou kylo Ren e o líder supremo Snoke – as novas personifica-
terpôs uma ação em tribunal em que exige um milhão de euros de ções do mal – indignos sucessores de Darth Vader e do imperador
indemnização e a retirada desta versão do jogo de todas as lojas. Palpatine. Parece que os maus também carecem de bênção papal.
Catorze anos após a sua morte, Savimbi continua a fazer história:
é a primeira vez que um personagem de um videojogo motiva um
processo por difamação.
in utero
TODOS RECONHECEMOS A IMPORTâNCIA DA MúSICA na educação das
crianças desde a mais tenra idade mas desconhecíamos até onde
o conceito de «tenra idade» podia ir. Fique o leitor a saber que se
esperar que o seu filho veja a luz do dia para o expor à arte e ao
génio de Beethoven, Bach ou David Carreira já parte com nove
meses de atraso. Tudo isto graças à empresa espanhola Babypod
que desenvolveu um aparelho que a grávida deve introduzir na
vagina para que o feto oiça os mais recentes sucessos musicais.
Encostar a barriga às colunas da Bang & Olufsen não resulta vis-
to que a parede abdominal abafa os sons, segundo estudos cita-
dos pela Babypod. O aparelho custa 150 euros, uma ninharia
quando está em causa a produção de um futuro melómano.

24 primavera 2016 LER


Entrevista / Clara ferreira alves

Nos próximos tempos não


quero escrever nada assim
porque ainda não percebi
exatamente o que isto me fez
2015 foi o ano em que Clara Ferreira Alves publicou finalmente
o seu romance, Pai Nosso (Clube do Autor). Pretexto para uma con-
versa sobre escritores chatos, misoginia, os loucos anos 80,
o Médio Oriente e venda de publicidade na Estação do Rossio.

Entrevista de Bruno Vieira Amaral


Fotografia de Pedro Loureiro
Clara Ferreira Alves

Disse numa entrevista que a única coisa que gosta de fazer des- do onde se calhar não me interessa muito viver. Posso estar total-
de sempre é ler e escrever. Queria que falasse sobre esses pri- mente desatualizada, não sei. Ainda ontem escrevi um mail a um
meiros tempos, as primeiras leituras. Cresceu numa casa com amigo meu, o Onésimo Teotónio Almeida, a pedir-lhe um exemplar
livros? em papel da Pessoa Plural, e ele mandou-me um mail a dizer: «Bom,
Com livros, sim. Sem dinheiro mas com livros. Não havia dinheiro são 650 páginas, está em pdf, queres que te imprima o livro todo?»
mas havia alimento espiritual. O grande acontecimento anual para – e eu disse que não, não vão estar a imprimir um livro para mim.
mim, além da praia (gostava imenso da praia), era a ida à Feira Mas eu sou, de facto, do século XIX.
do Livro. E a escrever também?
Onde é que vivia nessa altura? Aí escrevo tudo no computador mas adaptei-me com grande dificul-
Vivia em Lisboa. E a Feira do livro com aqueles livros todos era… Eu dade, foi um sarilho. Eu e o José Quitério, no Expresso, da gastrono-
adorava aquelas coleções da Ulisseia, da Romano Torres, coisas que mia... Éramos os luditas da redação. Eu não queria largar a minha
já não existem, que já nem são do seu tempo. E os primeiros livros Olivetti e depois havia uma pessoa que passava da máquina para o
de bolso, acho que eram da Ulisseia... Não, eram da Minerva. Tinha computador. Compunha no computador as nossas brilhantíssimas
uma coleção que ainda hoje se vê na Feira do Livro que era a cole- peças feitas na máquina. O Quitério escrevia tudo à mão. E havia
ção «Miniatura», que era o primeiro paperback. O meu primeiro mais, o Francisco Belard, etc. Nunca fui muito dada ao futuro. Depois
Dostoiévski acho que é daí. Eram livros pequenos e as capas eram finalmente lá comecei a escrever no computador numa altura em
extraordinariamente bonitas. Levavam-se para todo o lado e eu gos- que ninguém tinha computador em casa. Fui-me habituando, mas
to muito da ideia da portabilidade do livro. De andar com um livro escangalhava aquilo tudo porque dava murros nas teclas. Aquilo era
na mala. Levo sempre outro livro para o caso de o primeiro ficar sem matraquear. Ainda hoje tenho esse problema com os meus mac-
bateria. [Risos.] Trazia sacos com livros da Feira. O meu pai deixa- books ou não sei quê. Preciso da relação material com a escrita,
va-me comprar tudo o que eu quisesse. Tinha um budget… a relação física, mecânica. Embora a minha caligrafia seja horrível.
Não tinha restrições à leitura? Mas consegue percebê-la?
Não. Havia uns livros que já estavam um pouco fora da minha alça- É horrível mas ainda consigo perceber.
da mas não estavam escondidos. Talvez estivessem um pouco mais O romance foi escrito no computador?
para trás na estante mas eu logo fui lá. O Zola. Quando li A Besta Sim. Escrito no computador mas sempre trabalhado em print, ou
Humana fiquei em estado de choque. seja, emendas em print é um processo complicado. Prints, prints,
O que é que a chocou? prints, depois organização em resmas, porque não sou capaz de or-
Aquilo é a consciência social. O que me chocou foi o sexo, a procria- ganizar no computador, nem sequer sei partir texto no computador
ção. Como católica que eu era, nunca tinha visto num livro aquela nem fazer copy/paste. Então faço resmas, leio em papel, introduzo
brutalidade. as emendas no computador e depois peço a alguém que me diga
A sua família era católica? como é que colo isto com isto – e foi assim.
Era. Bom, a minha mãe era católica, praticante. Bem, posso dizer E o seu gosto pela escrita também foi precoce.
que sim, da família da minha mãe eram todos ultracatólicos. Da fa- Foi, foi. Eu só gostava de fazer redações, nunca gostei de gramática.
mília do meu pai, não. Era um problema. Adoro o dicionário. Cheguei a decorar o dicio-
Mas ao mesmo tempo tinha alguma abertura. nário. Uma coisa que faço quando não consigo dormir em vez de
Existia completamente porque o meu pai gostava muito de livros contar carneirinhos começo pela letra «D» e tento pensar no maior
e deixava-me ler tudo. número possível de palavras. Sou capaz de ficar uma hora nisto.
Qual foi a sua primeira grande paixão literária? Isso é bom para alguns testes psicotécnicos.
Eu era muito eclética. Praticamente aprendi a ler sozinha por amor No outro dia estive com a letra «D» e pensei: «Não vou para as disse-
aos livros. Mesmo sem saber ler passava horas a folhear livros por- melhantes, vou para as derivadas.» A palavra «dado», por exemplo
que sendo filha única tinha muito tempo livre. Gostava e ainda gos- – e trabalho todas as modificações. Entretenho-me imenso assim.
to imenso do cheiro do papel. Isto é completamente inútil, como você calcula, e não dá dinheiro.
Ainda não se rendeu às novas tecnologias. Se surte efeito é o que interessa.
Nada. Sou uma ludita. Não aguento. Preciso do papel, do cheiro do Mas gosto disto, entretenho-me com as palavras.
papel. Preciso de sentir o livro fisicamente. Não sei o que é que vai E percebeu cedo que acabaria por, não digo viver da escrita, mas
acontecer ao livro mas um mundo sem livros de papel é um mun- a trabalhar com palavras?

28 primavera 2016 LER


Nem os estagiários tolerariam passar por aquilo que eu passei e que passou muito
gente. Não havia ego, era como no budismo. A primeira coisa que aprendíamos
no jornalismo era a dar cabo do ego. Tínhamos de deixar o ego de lado, quando se
trabalhava a prosa. O ego foi introduzido mais tarde, nos anos 80, e eu contribuí
bastante para isso.
Não. Isso foi talvez a coisa em que eu falhei extraordinariamente. Bom, umas chumbadas. O Pessoa não era dado e era largamente
Quando vejo escritores a dizerem que muito cedo perceberam que ignorado pela Pátria na altura. O grande ímpeto pessoano começa
era isto que iam fazer, ser escritor, acho admirável porque eu nun- nos anos 80.
ca imaginei. Os escritores portugueses que havia não estavam vivos. E em relação aos contemporâneos?
Aos que estavam vivos eu cheguei tarde. Não posso dizer que li as Não. Fernando Namora não me interessava nada e depois havia au-
coisas que toda a gente lia à exceção dos livros obrigatórios no liceu. tores que o regime não via com bons olhos, como o José Cardoso Pi-
O que é que lia nessa altura? res, que conheço mais tarde e que li mais tarde, e outros autores
Li sempre os ingleses. Desde Agatha Christie, romances policiais, como Alexandre O’Neill, que circulava pouco e muito menos no re-
aos franceses, aos russos, fui a toda a literatura internacional, gime pedagógico da época. Aquilo não dava grande amor à literatu-
os Tolstóis, os Dostoiévskis, os Turguénieves. ra portuguesa. Gostei, sim, do Fernão Lopes, das Lendas e Narrati-
O que é que a afastava da literatura portuguesa? vas, do Herculano, do Amadis de Gaula, que era outra coisa que se
Não sei bem. Em primeiro lugar, havia autores portugueses proibi- podia ler, mas não era nada como o Guerra e Paz. Depois de ser ler
dos no meu tempo. Havia a célebre [História da] Literatura [Portu- o Guerra e Paz, tudo aquilo parecia muito desinteressante e peri-
guesa] do Óscar Lopes e do Saraiva, que era um livro que não era férico. Depois de se ler o Shakespeare não se consegue ler A Dama
dado nos liceus. Tive uma professora de literatura que usou essa Pé de Cabra.
História da Literatura, mas quando já estávamos no fim do regime, Há uma diferença de escala.
em pleno marcelismo, mesmo antes do 25 de Abril, e ela já podia Sim. Depois vim a descobrir coisas maravilhosas na literatura por-
fazê-lo, mas antes disso seria impossível. A literatura que se ensi- tuguesa, mas mais tarde. Entro tarde na literatura portuguesa.
nava nesse tempo era dividir as orações d’Os Lusíadas, que é uma Quando foi para Direito foi logo para Coimbra?
coisa que não nos encanta particularmente. Depois havia excertos Não, comecei em Lisboa. Depois apanhámos o 25 de Abril, come-
de autores portugueses. Não se lia o Eça de Queirós, que era consi- çam as comissões de reestruturação, os professores foram todos sa-
derado um autor semiproibido. Nos meus tempos de liceu, o Eça neados, ficaram dois assistentes que resistiram aos saneamentos,
não tinha a boa reputação que tem hoje. Havia O Primo Basílio, que foram o Marcelo Rebelo de Sousa e a Leonor Beleza, que eram
O Crime do Padre Amaro, eram tudo livros a que o regime não acha- aqueles de quem os alunos gostavam, digamos assim, mas que se
va muita graça. Os Maias, com o incesto. A Igreja Católica, a ortodo- demitem em solidariedade para com os professores saneados. A fa-
xia, não apreciava particularmente o Eça de Queirós. Nesse sentido, culdade entra num período de lutas entre o MRPP e o Partido Co-
era mais o Camilo, com a grande paixão romântica, não tinha o ele- munista, e as juventudes comunistas e as M-L [marxistas-leninis-
mento proibido, a iconoclastia do Eça, nem tinha aquele humor. tas], que praticamente destruíram a faculdade... Começam as
O Amor de Perdição e As Viagens na Minha Terra eram obrigató- passagens administrativas, os «aptos», os trabalhos de grupo e eu dei
rios. Não morri de amores pelas Viagens mas gostei. Só descobri o por mim a certa altura não só não concordando nada com aquele
Garrett a sério nos discursos parlamentares que são absolutamente movimento lírico maoista, nem com os comunistas (nunca fui co-
extraordinários. Era A Dama Pé de Cabra e o Alexandre Herculano. letivista), como a ver-me numa situação em que acabava sempre por

LER primavera 2016 29


Clara Ferreira Alves

escrever os trabalhos de grupo, era sempre eu que fazia a redação guir investigação em direito penal queria ir para a Suíça, para Neu-
final, ou seja, estava a trabalhar para o boneco, como se costuma di- châtel, e disse-me para eu ir também, mas eu não tinha bolsas, não
zer. A meio do 2.º ano, disse: «Vou mas é acabar o curso noutro sí- tinha dinheiro para ir para Neuchâtel. Para mim aquilo foi destrui-
tio.» Nessa altura, há mais uma grande batalha: eram mesmo bata- dor. Ainda tentei saber se podia voltar para Lisboa para dar aulas
lhas campais, com cadeiras pelo ar, cabeças partidas… Eu percebi aqui e creio que até fui falar com o Marcelo Rebelo de Sousa na al-
que aquilo não ia para lado nenhum. A Ordem dos Advogados diz tura. Ele não se deve lembrar do episódio, mas disse-me que havia
que não aceitará cursos da Faculdade de Direito da Universidade de uma grande rivalidade entre as duas universidades, entre Lisboa e
Lisboa, o MRPP dominava os estudantes que estavam um bocado Coimbra, e que era um pouco difícil. Fiquei sem pátria. Era aquele
fartos dos comunistas, bem... aquilo não dava nada. Lembro-me de tipo que estava a viver no aeroporto e que não o deixam apanhar
um dia em que eu estava a estudar na biblioteca, e o COPCON en- o avião para lado nenhum. Foi um período complicado.
trou por ali dentro e começaram a destruir livros, a tirar livros das Como é que resolveu esse impasse?
estantes, foi uma selvajaria e foi aí que eu disse: «Acabou.» Um cole- Fui estagiar para um escritório de advogados completamente de-
ga mais velho estava a pedir a transferência para Coimbra, que ti- sinteressada daquilo, a fazer mudanças de sede social e coisas assim
nha de ser secreta (porque se descobrissem apanhávamos uma fascinantes.
sova), e eu resolvi fazer a mesma coisa. Pedi a transferência. Secre- E quando é que surge o jornalismo?
ta. De Coimbra disseram-me que naquela altura do campeonato ti- É quando eu estou completamente desesperada nesta vida jurídica
nha de prestar provas. Em Coimbra não destruíram o currículo aca- um pouco parecida com a do Eça de Queirós, para dizer a verdade.
démico, como em Lisboa, e também não havia batalhas campais, Já escrevia nessa altura?
estava tudo no sítio. O Prof. Rui Alarcão disse-me que não estavam Escrevinhei sempre, andei sempre a escrever. Não eram diários mas
a aceitar pessoas de Lisboa porque era o caos mas como não havia estava sempre a escrever coisas.
muita gente a pedir talvez fosse possível. Eu tinha dois «aptos» e duas É que por vezes esses trabalhos desinteressantes são ótimos
passagens administrativas do 1º ano e ele disse-me que em junho te- para…
ria de prestar provas para ver o que eu sabia e tinha que me apre- Pensar.
sentar a exames diretamente. Duvidava que eu conseguisse passar Pensar e escrever.
e disse-me para ver se compensava estar dois anos no segundo ano. E os casos humanos nesta área do Direito são interessantes, pura
Eu disse-lhe que preferia tentar e prestar provas em junho porque tragédia. Um divórcio, uma perda de propriedade, um processo de
em Lisboa não estava a ir para lado nenhum, era insuportável. En- partilhas, uma briga entre duas pessoas. Como sabe, aquilo depois
tão prestei provas e até passei com notas ótimas. tem dramas pessoais tremendos, as pessoas matam-se umas às ou-
Como é que via o seu futuro? tras. O direito penal decorre ou do drama passional ou da destrui-
Negro, negro. ção da propriedade. Para o Direito isto é tudo muito básico. Depois
Via-se como jurista? na vida real imagine a tragédia que você não tem. O Direito lida com
Eu gostava muito de Direito. Era muito abstrato e árido mas eu gos- a falta de dinheiro, a falta de amor, o fim do amor mas de uma
tava daquilo, sobretudo direito penal. Os estudantes de Direito co- maneira seca, árida, não conhecendo as pessoas. Regula a vida de
meçam por pensar na advocacia, notariado, magistratura – a ma- todas as pessoas, mas não as conhece e nem quer conhecê-las.
gistratura não me interessava nada e notariado ainda menos – e É como se sobrevoasse a vida, vai lá acima e depois aproxima-se e
o que me interessava era fazer investigação em direito penal. Mas vê os carros e vê a terra, mas não sabe nada em concreto sobre
foi-me dito muito claramente em Coimbra que naquela faculdade aquela terra.
não havia doutoramentos em penal para mulheres. Quando eu E a literatura é como saltar de paraquedas para essa realidade?
acabei o curso. É isso, é cair de paraquedas na selva amazónica. A literatura é por
Foi a primeira vez que se sentiu prejudicada por ser mulher? dentro, o Direito é por cima.
Não havia muitas mulheres em Direito, é um facto. Naquela época O jornalismo também tem esse lado de contacto direto. Foi isso
fiquei muito revoltada, hoje parece uma anedota mas naquela fase que começou a fazer?
da minha vida foi demolidor. Na verdade, eu nem comecei a fazer jornalismo. Eu estava completa-
E aí começou a pensar em alternativas? mente farta porque tinha havido um caso que tinha corrido muito
Na advocacia, mas não me interessava muito. Fiquei um bocado de- mal e era muito dramático. Era numa altura em que se penalizavam
sesperada. Tanto mais que um colega meu que também queria se- todos os comportamentos em Portugal e isto tinha a ver com um

30 primavera 2016 LER


Clara Ferreira Alves

jovem que tinha sido apanhado com um cigarro de erva ou qualquer tinha um espírito de vendas extraordinário e perguntava aos clien-
coisa e tinha sido preso, imagine. O que Portugal evoluiu em crimi- tes: «Porque é que em vez deste quadradinho não compra meia pá-
nalização de comportamentos é extraordinário porque na altura era gina?» Argumentava bem e conversava com as pessoas. Então o
tudo proibido. Havia um juiz absolutamente horrível e ortodoxo e Nuno Rocha foi lá para falar comigo. Ele devia pensar que eu tinha a
mau. Aquilo degenerou rapidamente numa verdadeira tragédia e eu 4.ª classe ou coisa assim; disse-lhe que tinha estudado Direito e ele
fiquei muito maldisposta e fui para um café com um amigo que hoje perguntou-se se eu não queria acabar o curso; disse-lhe que tinha
é um médico bastante conhecido e eu disse-lhe «Não aguento!», mes- acabado, e nem lhe disse que tinha feito pós-graduação. Ele ficou
mo como no fado: «Eu não aguento esta vida!» Ele disse-me que tinha muito espantado e perguntou-me o que é que eu gostava de fazer e
de acabar de uma vez por todas com aquela história, que tinha de ser disse-lhe «escrever». E ele disse-me que ia escrever uma carta para
pragmática. Comprámos um jornal para ver que emprego é que po- o diretor d’A Tarde para eu experimentar escrever num jornal. Dis-
dia arranjar. Eu disse-lhe que não era assim porque eu também tinha se-lhe que nunca tinha escrito para um jornal e ele: «Não faz mal.
um conceito elitista da minha pessoa. Era altamente imatura. É melhor do que estar a vender publicidade aqui.» E assim fui pa-
Ainda vivia com os seus pais? rar ao A Tarde. Entrei no jornalismo e adorei.
Sim. Ou talvez já vivesse fora. A certa altura quis ser independente, E o que é que foi fazer?
à inglesa, e aluguei um quarto e depois andei assim numa espécie Fui substituir a Teresa de Sousa, que na altura fazia a página femi-
de sistema de pernoitas, portanto não tenho a certeza onde estava. nina. Nós, mulheres, tínhamos uma posição de luxo na sociedade
Mas era um disparate, não tinha maturidade nenhuma. Então abri- portuguesa da altura. [Risos.] Ela fazia a página da mulher, o que é
mos o jornal da altura, que era o Tempo, do Nuno Rocha, um jornal extraordinário, não é? Quer dizer, fazia muitas coisas mas uma das
de direita – mas era o grande semanário. Os semanários que esta- coisas que fazia era a página da mulher. Também não havia muitas
vam na moda eram O Jornal, o Expresso e o Tempo, mas este é que mulheres. Entretanto ficou grávida do primeiro filho, creio, e fui
vendia mais. E pediam pessoas para venderem publicidade no jor- substituí-la. Eu não sabia nada do que era a página da mulher e dis-
nal, para o grupo editorial. Era o Tempo, o Correio da Manhã, A Tar- seram-me para inventar. Mas inventar o quê? Então fui ver as re-
de, tudo do Nuno Rocha. E o meu amigo disse-me que eu podia fa- vistas femininas, de moda (eu não me interessava nada por aquilo),
zer aquilo. Mas eu não sabia nada de publicidade, era um disparate. e comecei a inventar receitas, a ser criativa e depois comecei a rece-
Ele insistiu que eu tinha era de deixar a advocacia, mas eu tinha ber cartas de leitoras que tinham experimentado as minhas recei-
medo. Ele é que telefonou e marcou-me uma entrevista com uma tas e aquilo não tinha atinado. Era uma fraude completa.
senhora, que era a diretora da publicidade desse grupo editorial, tal- Trabalhava na redação?
vez o único que existia em Portugal, e eu fui – e ela contratou-me. Só Sim, sempre na redação. Adorava.
que aquilo era vender quadradinhos no terminal do Rossio até à Quem eram os figurões nessa redação?
meia-noite. O terminal, àquela hora, era tenebroso. Aquilo era uma O diretor era o Carlos Plantier, havia o Jorge Morais, que era um
lojeca por cima do que é agora o Starbucks. Era tenebroso: o com- grande jornalista de direita e era um estilista prodigioso do ponto de
boio para a periferia, homens de gabardine (coisa que não me ate- vista da palavra, escrevia muito bem, era absolutamente aterrador,
morizava nada) e eu estava com uma jovem professora que também mas rapidamente me integrei no grupo dos literatos, que passavam
estava no primeiro emprego. Eu queria era esquecer-me do Direito, muito tempo a discutir os livros que tinham lido, que liam doutrina
portanto tive ali uma fase que chamo a minha fase pessoana, de política, eram uns intelectuais. Naquela altura, os jornais tinham
escrita comercial, digamos assim, e em que pensei que aquilo era muito este tipo de intelectual, dos tipos assim parecidos consigo, com
capaz de ser uma coisa boa porque não me mobilizava do ponto barba e óculos, que escreviam prodigiosamente. Gostavam muito
de vista dos afetos nem das emoções. de jornalismo mas o que tinham era bibliotecas extraordinárias e
Não estava a investir e libertava-a para a escrita. sabiam muito de literatura portuguesa. E a minha primeira litera-
Ficava liberta para escrever e ler livros. Pensei: «Não ganho dinheiro, tura portuguesa é com essa gente – porque é gente que tem um ex-
nem sou importante, mas também não quero ser, quero apagar-me traordinário conhecimento, de alfarrábio mesmo, da literatura por-
nisto.» Ainda hoje tenho a nostalgia de fazer isso. Queria apagar-me, tuguesa, que escreviam muito bom português. Depois passei para
mudar de vida. E entrei naquilo como quem entra num convento e o Correio da Manhã, que era o do Vítor Direito. Era gente com mui-
passei muito tempo ali, quase um ano. Foi muito bom, porque li ta experiência. Havia um homem muito engraçado, do desporto,
muitos, muitos livros, pensei muito na vida, e vendi tanta publici- chamava-se Neves de Sousa. Ouviu falar?
dade que a certa altura o próprio Nuno Rocha me quis conhecer. Eu Claro.

32 primavera 2016 LER


O Torga era, todo ele, preponderante, mas eu não ataquei a obra completa do
Torga, ataquei aquele diário que tinha frases excêntricas e que eram quase cómi-
cas. Mas não ataquei a pessoa, nem vandalizei a estátua do Torga. Só que achei
que aquele diário já não tinha nada a ver com literatura mas com uma espécie de
diarística completamente obsoleta que já não tinha nada a dizer sobre o mundo.
E ele tinha 35 filhos. [Risos.] nária e tinham um amor pela prosa, pela reportagem enquanto gé-
Dois deles, se não estou em erro, são jornalistas. nero nobre do jornalismo, e também tinham uma certa humildade
O Neves de Sousa era uma personagem, era um Falstaff, uma per- no texto, que é uma coisa curiosa. Por exemplo, este Jorge Morais,
sonagem falstaffiana. Entrava, comia, bebia, era lido, erudito, era que eu não sei o que lhe aconteceu, escrevia editoriais – não vamos
magnífico. falar da ideologia – que do ponto de vista da gramática eram mag-
Isso era inspirador para si? níficos. Era uma pena extraordinária. E eu hoje vejo cada crime pu-
Sim. Veja, faziam notícias de futebol. O Vítor Direito também era um blicado, para além dos erros gramaticais… Uma vez dei uma entre-
estilista... Tinham um aprumo, uma prosa. A redação, o espaço físi- vista quando estava na Casa Fernando Pessoa e caí no erro de falar
co, era muito importante. Desde o início eles deram-me na cabeça, do ortónimo; saiu ortónimo com «H».
porque eu era uma snobe, citava T.S. Eliot a propósito de um comí- É como o Garcia da «Horta».
cio, eu queria pôr os meus autores, Wasteland a propósito de um E aquilo escrito com uma arrogância extraordinária, porque hoje
comício. há uma grande arrogância.
E deixavam-na usar isso? E naquela altura não havia?
Não. Cortavam tudo. Achavam piroso. O Morais cortava. Coisa que O que eu levei na cabeça! Também éramos arrogantes, mas rapi-
hoje ninguém faz. Estes meninos que hoje andam nos jornais e co- damente nos reduziam à nossa insignificância. Claro que eu queria
meçam a dizer que escrevem como o Joyce, naquela altura teriam de citar Eliot sobre um dramazinho do quotidiano e não me deixaram.
refazer o texto umas cinco vezes. Aquilo foi um treino, chama-se a isso Aquilo foi uma grande escola.
«a tarimba». Foi a recruta. Não se chega a general sem esta tarimba. E isso hoje não existe?
Ficava desanimada quando a criticavam? Não. Nem os estagiários tolerariam passar por aquilo que eu passei
Ficava furiosa, mas depois reescrevia tudo. e que passou muito gente. Não havia ego, era como no budismo.
Foi isso que ficou dessa experiência inicial? A primeira coisa que aprendíamos no jornalismo era a dar cabo
Adorei. Estes foram os meus melhores anos de jornalismo, o tem- do ego. Tínhamos de deixar o ego de lado, quando se trabalhava
po de aprendizagem. Foi tudo muito intenso. Esta gente tinha uma a prosa. O ego foi introduzido mais tarde, nos anos 80, e eu contri-
grande intensidade e tinham uma relação com a vida dramática, buí bastante para isso.
shakespeariana, no sentido em que na vida deles não havia peque- Quando é que acaba o período da tarimba e começa a fase
nos acontecimentos. Havia mulheres extraordinárias. Havia a Ma- estelar?
ria Virgínia de Aguiar, que escrevia também muito bem, fazia par- Começa quando fui para o JL. Estelar, não. Eu nunca fui muito
te deste grupo, e tinha sido casada com um poeta, o António estelar. O estelar é mais tarde.
Barahona, que hoje é um convertido ao islão e tal... Ela contava-me No JL começa a fazer crítica literária.
imensas histórias, conhecia meio mundo, tinha vivido em África. Eu ainda estive no Correio da Manhã e depois tive um interregno do
Ah, e depois havia os africanistas, os tipos que tinham estado em jornalismo em que fui trabalhar com o Mário Soares para o Partido
África. Portanto, era gente com uma experiência de vida extraordi- Socialista, embora nunca tenha sido filiada no partido. Mas eu ad-

LER primavera 2016 33


Clara Ferreira Alves

A esquerda controlava tudo quanto era a vida intelectual europeia. Só a partir


da queda do Muro de Berlim é que esse mundo começa a perder o aroma. foi lento,
ainda hoje há resquícios disso na sociedade portuguesa. Hoje aparecem umas pes-
soas de direita que são particularmente raivosas, mas na altura havia gente
muito raivosa na esquerda, extremista. Havia muito julgamento inquisitorial.
mirava muito a personagem do Mário Soares e houve esse inter- extraordinário mas nós nunca reparamos no que está ao lado. Hou-
regno, no período em que ele se opõe ao Eanes. Aí fui experimentar ve dois casos em particular que eu achei extraordinários e pensei:
a política mas não tinha nenhum talento. Não tinha a disciplina «A riqueza que isto tem.» Isso está por contar. A minha geração su-
necessária, era muito rebelde e aquilo é preciso uma grande disci- cede um pouco à do Lobo Antunes e da Lídia Jorge, à qual nós cha-
plina, de facto, e uma grande ambição, que eu também não tinha. mávamos de pós-colonial, que tinha participado na Guerra Colonial.
Mas permitiu-lhe ver o funcionamento da máquina por dentro. À minha geração aconteceram duas coisas: o 25 de Abril e a sida.
Sim, foi muito bom. Sobretudo, aprendi muito com o Mário Soares São os dois elementos determinantes. O 25 de Abril é a grande ca-
porque ele tinha convicções e eu nunca tinha conhecido uma pes- tapulta para a liberdade e no meio dessa liberdade, com a gente que
soa com convicções tão fortes e profundas sobre o que era impor- tinha vindo toda da repressão, liberdade que vai desde a ideológica
tante e o que era acessório na vida. à dos comportamentos, numa altura em que não havia direitos dos
A Clara tem citado várias vezes Ruy Belo sobre Portugal ser um gays e as mulheres ainda não tinham os direitos estabilizados, etc.,
país em que nada acontece mas existem figuras muito interes- há um período de euforia, do qual faz parte a vida noturna do Bairro
santes, quase romanescas. Alto, onde vagueavam fantasmas como o do Cesariny, que se tornou
São romanescas e eu estou no ponto em que vou utilizá-las. Um um grande amigo, e havia os poetas e toda essa gente que vagueava
escritor usa tudo o que pode e depois transfigura. Mas, na verdade, de noite... E depois de repente há a sida, que corta com isso tudo.
no País aconteceu muita coisa nestes anos. Como é que isso aconteceu?
Nos anos 80, quando passa para o Expresso, estava a acontecer Foi uma rutura brutal. Aquela gente, que eram todos vampiros que
muita coisa. tinham de voltar ao caixão às seis da manhã, antes de o Sol raiar, de
É quando o País começa a transformar-se. repente aquelas pessoas começaram a morrer. Instalou-se um gran-
Acha que faz falta um olhar literário sobre essa época? Nunca de medo porque evidentemente que havia uma grande promiscui-
se sentiu tentada a escrever sobre esse período? dade. Depois daquela repressão toda, era a afirmação da liberdade.
Confesso que há tempos tive uma conversa com uma pessoa dessa Eu tinha muitos amigos gays e começo a ver o terror. A primeira fase
geração, que tem a minha idade, fizemos uma espécie de balanço. foi quando morreu o António Variações e aquilo abalou-nos muito.
Eu já não falava com esta pessoa há muito tempo. E começámos a Depois morreram outras pessoas mas não se dizia ainda do que é
dizer o que aconteceu a X e o que aconteceu a Y, as histórias. E eu que tinha sido. As pessoas iam almoçar umas com as outras e per-
pensei: «Meu Deus! A quantidade de coisas que aconteceram em guntavam: «Olha lá, afinal o que é que ele teve?» Começam essas
vinte e tal anos.» Em alguns casos, coisas inacreditáveis. Pessoas que conversas um pouco crípticas em que as pessoas tinham terror por
foram para Angola, pessoas que tinham muito dinheiro e deixaram pensar que tinham dormido com outras. Quando se percebe que
de ter, pessoas que não tinham dinheiro nenhum e depois se torna- não são só os gays que têm sida, aí começa verdadeiramente o ter-
ram muito ricas, pessoas que se casaram e divorciaram e tiveram ror. Isso cortou aqui, cortou em Londres, em Nova Iorque. As pes-
filhos, pessoas que se mataram. E então pensei: «Caramba, isto não soas aqui não falavam muito nisso porque este é um país que repri-
é Os Amigos de Alex, mas quase.» Há aqui um potencial romanesco me muito. Enquanto nos EUA começam os movimentos de

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fund-raising e investigação, aqui não se falava nada. Eu tinha ami- Mas também contribuíram para isso. Havia uma certa icono-
gos aqui que foram para fora estudar imunologia porque se senti- clastia.
ram tentados a perceber o que era aquilo. Aquilo foi uma doença Havia total iconoclastia. Em todos nós.
com implicações extraordinárias. E a minha geração apanha com Uma tendência para atacar as vacas sagradas, as instituições.
isso quando estava, digamos, na plenitude da vida. Todas. Eu, por exemplo, ataquei o Torga. O Miguel Esteves Cardo-
A usufruir dessa liberdade. so atacou o Chico Buarque e os brasileiros.
Isso cortou-nos a liberdade. Ninguém ousava dizer mas estavam to- Mas o que pergunto é se havia um particular gosto em atacar
dos aterrorizados. Havia os interrogatórios tímidos, as chamadas o Torga e outros.
para namoradas e namorados, o medo do teste. Na altura os resul- Eu não ataquei o Torga. Há uma diferença. Os «Diários» do Torga é
tados do teste demoravam muito tempo e, quando as pessoas iam que eram insuportáveis. O Torga enquanto escritor não era insu-
fazê-lo, ficavam fichadas, ficavam estigmatizadas. Isto foi A Peste, do portável. Há uma diferença entre atacar um escritor pela pessoa que
Camus, atenção. Isto hoje parece que é tudo muito relativo mas na é e pelo que representa e… Neste caso particular era um volume do
altura foi o grande medo. A Susan Sontag escreveu exemplarmente Diário, que era de uma preponderância extraordinária. O Torga era,
sobre isso. Aquilo foi uma metáfora de punição do comportamen- todo ele, preponderante, mas eu não ataquei a obra completa do Tor-
to. A doença tornou-se um meio punitivo de certos comportamen- ga, ataquei aquele Diário que tinha frases excêntricas e que eram
tos considerados desviantes pelos sectores conservadores. Era como quase cómicas.
se uma imensa punição divina se tivesse abatido sobre aquela gen- Mas sentiu algum prazer ao fazê-lo?
te mais boémia, os artistas. Não, não senti nenhum particular prazer nem senti que aquilo se ia
Nessa altura também havia um cenário político e económico que tornar tão famoso. Senti que finalmente estava a dizer aquilo que pen-
também ajuda a essa narrativa, com a chegada do Reagan e da sava. Não fiz para me pôr em bicos de pés. Tinha consciência de que
Thatcher. Do ponto de vista económico é nessa altura que Por- o Torga era uma vaca sagrada, que muita gente ia ficar furiosa. Mas
tugal começa a acreditar que vai apanhar o pelotão da frente. não ataquei a pessoa que o Torga era, nem vandalizei a estátua do
Portanto, havia algum otimismo. Torga. Só que achei que aquele Diário já não tinha nada a ver com li-
Sim, havia algum otimismo e porquê? Porque depois dos anos tu- teratura mas com uma espécie de diarística completamente obsole-
multuosos que se seguiram à revolução, a sociedade estava mais ou ta que de tão autocentrada já não tinha nada a dizer sobre o mundo.
menos civilizada e pacificada, havia um Parlamento funcional, havia Coisa que continuo a achar. Evidentemente quando uma pessoa ata-
partidos políticos constituídos, havia uma Constituição, ou seja, de- ca uma vaca sagrada as pessoas acham que é um ataque ad homi-
pois de um período em que não se sabia que regime iríamos ter: se nem e não é. Há uma diferença entre fazer um ataque à pessoa e à
um regime civilista tutelado pelos militares, se um regime militar tu- postura do Torga nos «Diários» que é, em geral, insuportável. O Ver-
telado pelos civilistas... Falava-se muito da sociedade civil. O Francis- gílio Ferreira também foi atacado por causa dos Conta-Corrente,
co Balsemão estava sempre a apelar à sociedade civil. O Mário Soares mas para mim não é nada a mesma coisa. A Conta-Corrente ainda
contribui para estabilização do regime, o Freitas do Amaral pacifica é literatura e certos volumes do Diário do Torga não são literatura.
a direita. Isto não é uma coisa assim tão fácil como hoje se pensa, mas Quais foram as reações?
o País estava finalmente a entrar nos eixos. Há uma elite lisboeta, há Gente como o Manuel Alegre e outros ficaram muito incomodados.
ainda um ambiente de tertúlia intelectual, há uma boémia artística As pessoas em geral ficavam muito incomodadas com a secção de
engraçada. Era a altura em que toda a gente tinha um projeto. cultura da revista. Chegaram a chamar-nos o «grupo dos quatro»,
Esses são os seus anos dourados no Expresso? que era eu, o Augusto M. Seabra, o Alexandre Melo e o Miguel Este-
São os tempos dourados da Revista do Expresso. A cultura era do- ves Cardoso. Escrevíamos coisas que, do nosso ponto de vista críti-
minante. Tinha uma preponderância extraordinária porque as pes- co, achávamos que eram verdadeiras, porque não nos recusávamos
soas tinham a intuição de que era preciso formar elites, que hoje a criticar o que achávamos que era criticável, não nos pusemos
com a massificação, com a internet, já se diluiu. Na altura a socie- numa posição de submissão e o tom era completamente distinto do
dade estava organizada de cima para baixo ou de baixo para cima. tom anterior. Havia gente muito inteligente a escrever sobre cultu-
Hoje está organizada de um modo horizontal. Toda a gente quer ra mas que não era heterodoxa. E nós éramos heterodoxos. Lem-
estar no mesmo plano. Há a interatividade, a resposta imediata. bro-me de a certa altura o Alexandre Melo ter ido a Madrid, estava
Naquela altura, não. Nós acreditávamos que as elites eram forma- muito em contacto com a movida de Madrid, houve uma reunião
ções verticais, de cima para baixo. Isso hoje acabou. da revista e ele propôs que se fizesse uma peça sobre um homem

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Clara Ferreira Alves

chamado Pedro Almodóvar. Nunca ninguém tinha ouvido falar do nard nos deixar entrar, porque nunca havia bilhetes. O Francisco
homem. Houve um grande gozo com o nome, o Vicente [Jorge Silva] Belard, por exemplo, que era um grande crítico literário e um eru-
deve ter feito umas piadas sobre o Almodóvar mas ninguém sabia dito, tinha uma casa em frente à Gulbenkian... Eu nem sei se ele vi-
quem era o Pedro Almodóvar. Mas como era um sistema democrá- via lá, porque eram só livros e livros, pilhas de livros. Cheguei a per-
tico votámos a favor do Almodóvar e lá se fez a peça. Nós tivemos esta noitar naquela casa porque no dia seguinte passava A Desaparecida.
capacidade de perceber o que era importante à distância. Escreve- Nesse sentido, foi um período extraordinário.
mos sobre coisas que ainda não tinham acontecido cá mas já esta- O facto de um crítico hoje não ter o mesmo poder é o que faz com
vam a acontecer lá fora porque viajávamos, sabíamos o que estava que não se interesse tanto pela crítica literária?
a acontecer. Eu hoje gostava de abrir um jornal e ser surpreendida. Cansei-me da crítica porque a partir de certa altura aquilo são fór-
Hoje é diferente, com a internet. mulas. A crítica literária é sempre uma fórmula. O próprio James
Sim, é diferente, mas na altura não havia internet. Nós trazíamos Wood, que é um tipo muito virtuoso a escrever crítica literária, é cri-
coisas que se estavam a passar noutros sítios. ticado por uma série de jovens autores de Nova Iorque daquela re-
Confrontar-se com essas realidades, com o que se passava lá fora vista N+1 que não gostam dele. Já queimaram o James Wood que
e depois regressar a esta realidade desesperava-a? tem uma grelha de leitura que por vezes é maldosa para os autores
Não, não me desesperava porque o Expresso era um lugar muito in- de quem ele não gosta. Eu também já tinha esgotado certas fórmu-
teressante para se trabalhar. Era um grupo muito inteligente, mui- las e já tinha escrito três ou quatro vezes sobre o mesmo autor por-
to informado. Quase enciclopédico. O Seabra era enciclopédico, no tuguês e há um número finito de coisas para dizer sobre um autor
verdadeiro sentido do termo, uma cabeça prodigiosa. Tínhamos português. Quando gastamos os cartuchos todos, corremos o risco
uma vida muito intensa, passávamos muito tempo uns com os ou- de nos repetirmos. Ainda fazia alguma crítica mas queria experi-
tros, aprendíamos muito uns com os outros. Uns sabiam mais de li- mentar outras coisas, sobretudo reportagem, que era o treino es-
teratura. Eu, por exemplo, trazia os autores americanos, comecei a sencial. Antes disso fui editora literária e tinha de ler as críticas de
escrever sobre os americanos que também ninguém conhecia cá ou toda a gente. O «Cartaz» de livros, na Revista, era editado por mim,
não eram falados. Acho que fui a primeira pessoa em Portugal a es- tinha de escolher e distribuir os livros.
crever sobre o Bret Easton Ellis. As Mil Luzes de Nova Iorque, de Jay Gostou dessa função?
McInerney, essa gente toda dos anos 80, Tama Janowitz, sou eu que Gostei porque trabalhei como pessoas como o Torcato Sepúlveda,
começo a escrever sobre essa gente. Tivemos um papel fundamen- que era uma espécie de lugar-tenente, e outros, que eram pessoas
tal em ilustrar as massas. Havia muita gente que dizia: «Tu falas de muito competentes, mas a certa altura tornou-se um período mui-
autores que ninguém sabe quem são.» Eu escrevi sobre o Joseph to pouco criativo para mim. Lia as coisas alheias, corrigia textos.
Heller. Lembro-me do Nelson de Matos publicar o Heller na Dom Era quem decidia sobre que livros iam escrever?
Quixote, e não era o Catch-22... Editaram o Something Happened, Sim, eu é que decidia em função também dos interesses de cada um.
que era um livro fabuloso mas muito difícil, e o Nelson disse-me: Havia livros que passavam de uns para os outros e diziam: «Este eu
«Imagina tu que vendi 10 mil exemplares do Heller...» Havia muita não quero.» Mas de um modo geral eu tinha de organizar aquele es-
fome de livros, de filme. O Esteves Cardoso escreveu uma peça so- paço e era muita gente. O António Guerreiro entra nessa altura para
bre isso, os «Gremlins culturais», que comiam filmes no Quarteto, o quadro. Havia gente mais jovem do que eu e com apetites estéti-
iam às livrarias, não paravam. Ao pé do Expresso havia uma livra- cos muito diferentes do meu e que tinham outras áreas de conheci-
ria, a Castil, havia o Hermínio na Assírio & Alvim, que era uma ter- mento. Eu era uma anglo-saxónica e havia os alemães, os franceses,
túlia de poetas, com o Herberto, o Cesariny, essa gente toda. O Bair- essa gente toda, e eu tinha de distribuir o trabalho. Era interessante
ro Alto era a confluência deste mundo todo, a Castil era o sítio onde mas muito pouco criativo. Deixava-me pouco tempo livre. Passei
estavam os livros sobre os quais escrevíamos. Quando eu escrevia muitas horas a organizar o próprio arquivo, que era gerido pelo José
sobre um livro, o Miguel Bastos [dono da livraria] punha o recorte Quitério, of all people. E era tudo recortes, pastas com recortes e eu
em destaque – ninguém comprava espaço nas livrarias na altura. queria ter um arquivo e então recortava as fotografias dos autores,
Estávamos ali entre a Castil, a Buchholz e a Cinemateca. Lembro- como o Philip Roth, por exemplo. A pasta do Philip Roth tinha sido
-me de passar dias na Cinemateca a ver os ciclos do João Bénard da feita por mim. Tirava tudo o que tinha sido feito sobre o Philip Roth
Costa, o ciclo do John Ford, que foi na Gulbenkian e na Cinemate- e mandava para o arquivo. Depois fazia uma pasta «Martin Amis»,
ca, o ciclo todo, de um autor tão prolífico como o Ford, você imagi- uma pasta «Salman Rushdie». Era tudo feito por mim por pura ca-
na, foram dias e dias e dias... Tínhamos a vantagem de o João Bé- rolice. Passava horas a recortar fotografias e críticas para que quan-

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Clara Ferreira Alves

Mas eu acho que não surgiu o grande romance desses tempos porque estávamos
tão fragmentados por múltiplos interesses culturais, estávamos tão interes-
sados em ouvir música, viajar, ler, tínhamos demasiada vida social, demasiada
cinemateca, estávamos sempre em processo de aprendizagem, a absorver o mundo,
e a minha geração foi marcada por isso, um grande apetite pelo universo. Passá-
mos muitos anos, como dizia o Francisco Belard, a interessar-nos por tudo.

do as pessoas fossem fazer o artigo sobre um autor tivessem a tores e tinha que as escrever e desgravar. Até que um dia caí de can-
informação no arquivo. Não havia internet. Eu fazia de internet. saço, desatei a chorar e fui apanhada por uma secretária do Ex-
Eu era o Google. presso, a Paula Calisto, que já morreu, e que me disse que aquilo não
Até que se fartou disso e decidiu que queria fazer reportagem, merecia tanto. Eu estava a chorar de cansaço, de impotência, por não
foi isso? conseguir fazer tudo. Ainda publiquei algumas entrevistas, mas dis-
O que aconteceu foi que um dia a Fundação Getty fez um encontro se que não podia continuar a fazer aquilo, tinha de parar um boca-
em Portugal de grandes escritores no Palácio de Queluz, uma coisa do. E fui para o Peru. O Mario Vargas Llosa veio a Lisboa em 1989 e
sumptuosa. Vieram vários prémios Nobel, veio o Joseph Brodsky, o eu encontrei-o no Ritz, já não sei em que circunstâncias, se houve
Derek Walcott, que ainda não era Nobel. O Brodsky, eu tinha-o co- um almoço, não sei. Estive a falar com ele que me disse que se ia can-
nhecido em Londres, numa preleção. Eu passava muito tempo em didatar à presidência do Peru. Eu fiquei muito admirada.
Londres e conheci-o numa preleção na Royal Geographic Society. Ele contou uma história sobre essa visita a Portugal de se ter
Veio o Martin Amis, o Salman Rushdie, acho que veio o Ian Mc- encontrado com o Mário Soares e de ter ficado muito surpre-
Ewan. Veio o [Czeslaw] Milosz. Nunca tivemos em território por- endido por terem ido a um restaurante e terem pedido para ver
tuguês uma tal concentração de génios da literatura. Tirando o se havia mesa. Afinal, era o Presidente da República.
Expresso, houve algumas pessoas que se interessaram por aqui- Exatamente. Eu estava com o Mário Soares. Já não me lembro se foi
lo, pessoas que gostavam mesmo de livros e literatura, mas de um almoço. Sei que foi no Ritz. Quando ele disse que se ia candidatar
um modo geral poucos escritores portugueses foram lá. Foi o José eu pensei: «Vou fazer esta campanha eleitoral.» E fui. E foi extraor-
Cardoso Pires, o Almeida Faria e pouco mais. Houve uma grande dinário. Adorei fazer a campanha eleitoral.
ausência de escritores portugueses, que não aderiram àquilo. Quando foi para o Peru já conhecia bem a obra dele?
Ficaram assustados? Conhecia. Na altura Vargas Llosa ainda não era o Prémio Nobel.
Não sei o que aconteceu, foi muito estranho. Também muita gente Foi muito antes disso. O Vargas Llosa começa a ser célebre depois
que não sabia falar inglês, apesar de haver tradução simultânea. En- da polémica com o García Márquez.
fim, vi-me sozinha porque era a anglo-saxónica de serviço. Foi hor- O célebre murro.
rivelmente cansativo. Andei a mostrar ao Salman Rushdie o mo- E a esquerda toda toma o partido do García Márquez contra o
numento ao Pessoa nos Jerónimos, o túmulo do Camões, e depois Vargas Llosa, que é considerado um fascista.
andava com eles à noite porque nunca tinham estado em Lisboa. Politicamente como é que via o Vargas Llosa?
Como havia o Brodsky a falar no dia seguinte, não se dormia nada. Eu achava o Vargas Llosa um grande escritor, e acho-o um príncipe.
Eu deitava-me às quatro da manhã e tinha de estar de manhã cedo O Márquez é um escritor extraordinário. É impossível alguém pas-
em Queluz para assistir àquilo. Fiz não sei quantas entrevistas a au- sar pela obra do Márquez sem levar uma martelada mas o Vargas

38 primavera 2016 LER


Llosa é um grande escritor, como aliás o tempo veio a demonstrar. ressados em ouvir música, em viajar, em ler livros, tínhamos de-
Na altura não era tão evidente assim porque o outro era o autor do masiada vida social, comunitária até, demasiada Cinemateca, está-
Cem Anos de Solidão. O outro grande autor latino-americano, mui- vamos sempre em processo de aprendizagem, a absorver o mundo,
to reverenciado, era o Cortázar, não era o Vargas Llosa, que até por e a minha geração foi marcada por isso, uma espécie de grande ape-
causa das suas posições políticas estava um pouco desvalorizado. tite pelo Universo. Passámos muitos anos, como dizia o Francisco
A esquerda controlava tudo quanto era a vida intelectual europeia. Belard, a interessar-nos por tudo. E é verdade. Eu comprava o Daily
Aqui, em França, em Espanha, Itália. Telegraph e lia tudo. O meu problema é que eu lia a crítica gastro-
Isso atrasou o reconhecimento dele? nómica, a crítica literária, as notícias políticas, as colunas de opinião,
As coisas também mudaram, mas na altura na questão das ditadu- eu lia tudo e estava sempre a devorar conhecimento, até a trash in-
ras sul-americanas toda a gente era chilena, eu também era, mas sa- formation. Havia uma espécie de gula porque quando eu cresci não
bia destrinçar entre o que era a posição política – que no fundo era havia livros. Se alguém ia a Paris pedíamos: «Traz-me um Jean-Paul
a de um inglês, ele nem sequer era thatcherista, era um homem que Sartre.» Consegue imaginar o que é estar à espera de alguém que
acreditava na economia de mercado, o que era um anátema, um pe- vem de Londres com um livro?
cado mortal dizer que se era a favor da economia de mercado por- O romance exigia algum recolhimento.
que era tudo coletivista. Houve ali um período em que ele sofreu as Exige sair da vida.
consequências de ter tido essa hombridade, essa coragem, de dizer Era difícil abdicar dessa vida?
«Eu não concordo com isto» quando o coletivismo ainda não tinha Quando se escreve um romance não se pode andar no mundo. Você
entrado em crise. não pode dizer: «Agora vou sair à noite, vou beber copos até às três
Ainda tinha custos assumir posições como essa? da manhã.» Tem de se sair do mundo. Nós não tínhamos essa dis-
Sim, só a partir de 89, com a queda do Muro de Berlim e quando os ciplina, nem o espírito de sacrifício, nem essa devoção. Estávamos
partidos comunistas começam a desaparecer é que esse mundo todo dispersos por milhares de atividades intelectuais mas que depois
começa a perder o aroma. Mas isso foi lento, ainda hoje há imensos não eram unificadas sob um grande propósito solipsista, autista.
resquícios disso na sociedade portuguesa. Hoje apareceram tam- Ninguém era capaz de se fechar um ano para escrever um livro.
bém uns jovens de direita, umas pessoas de direita que são particu- O que fez com que as pessoas que eram talvez mais habilitadas
larmente raivosas, mas na altura havia gente muito raivosa na es- para escrever um livro sobre essa época, porque a conheciam,
querda, muito extremista. Havia muito julgamento inquisitorial. acabassem por não ter as condições, nem o tempo, para o es-
Como é que isso passava para o meio literário? crever.
Para os grandes autores não houve grandes repercussões. Até por- Não tínhamos o tempo nem tínhamos a disciplina. Estávamos sem-
que eram quase todos de esquerda, à exceção da Agustina e, depois, pre preocupados com o dinheiro. Era outro problema. Nós gastáva-
do Vasco Graça Moura. Eram todos mais ou menos socialistas, al- mos muito dinheiro porque todas as nossas atividades exigiam ter
guns eram comunistas, como o Saramago, que era um comunista dinheiro.
às vezes muito pouco ortodoxo. Eu tinha discussões com ele sobre Mas ganhava-se bem nos jornais nessa época.
o partido. Ele também era muito habilidoso a argumentar. Não, não se ganhava nada bem. Há um período nos anos 90 em que
É nessa altura das primeiras reportagens que se começa a falar se ganhava melhor mas eu complementava com a televisão. Só nos
do seu romance? jornais propriamente ditos, não. Nunca ninguém ficou rico a escre-
Não sei se é nessa altura. Acho que é mais tarde, já nos anos 90. Quer ver num jornal. Claro que hoje há uma chacina das pessoas e na al-
dizer, na altura toda a gente tinha um romance. tura não havia esta austeridade. Mas hoje também há muita gente
Ou estava a escrever. a escrever, muita oferta, muitos estagiários, muita mão de obra ba-
Eu fui apanhada nessa onda em que toda a gente estava a escrever rata que na altura não havia. Havia mais triagem. A vida que levá-
um romance. vamos implicava ter dinheiro, havia um desejo primordial de ga-
Não acha que havia uma expectativa legítima que, de entre tan- nhar dinheiro, que também era importante. É que o jornalismo dava
ta gente brilhante e talentosa, aparecesse um Eça, o grande ro- dinheiro e a literatura não dava. Os primeiros anos do Saramago di-
mance português? ficilmente se pode dizer que tenham sido anos de prosperidade. O Zé
Estava-se à espera que surgissem livros e que surgisse a ficção. Mas Cardoso Pires vivia ultramodestamente. Tive essa conversa com ele
eu acho que não surgiu, justamente porque nós estávamos tão frag- várias vezes. Eu perguntava-lhe como é que ele conseguia viver só a
mentados por múltiplos interesses culturais, estávamos tão inte- escrever livros, e ainda por cima era muito lento... Foram 10 anos

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Clara Ferreira Alves

A Agustina bessa-Luís uma vez disse-me isso no Frágil – o que é que a Agustina es-
tava a fazer no Frágil, não sei, mas alguém a levou para lá –, estava numa es-
quininha, com aquela curiosidade dela e eu perguntei-lhe o que é que era preciso
para escrever um romance, para me tornar escritora a tempo inteiro, e ela disse
a frase da minha vida: «arranje um marido rico.» Lapidar.

para escrever o Alexandra Alpha, era um escritor bissexto. Ele artigo que escrevi, «Lima la horrible», que é de 1990, o que é ex-
aguentava-se no limite da pobreza. A Edite, a mulher, trabalhava, e traordinário. Pode dizer que a audiência é muito diferente. Mas hoje
tinham uma vida ultrafrugal. Ele não viajava, não jantava fora todas fica tudo no Google e o que é que isso me interessa? Não me
as noites. O Alexandre O’Neill ganhava dinheiro na publicidade. interessa nada. O algoritmo. Pessoas que dizem mal de mim,
O Fernando Assis Pacheco, que era um extraordinário escritor que me insultam na internet, os bloggers. Há um cómico americano,
e poeta, estava na redação a fechar o jornal, outros davam aulas, que é o Bill Burr. Já viu o Bill Burr?
tinham que trabalhar. Hoje é mais fácil um autor viver dos livros Não.
do que na altura. A Agustina uma vez disse-me isso no Frágil (o que Pesquise uma coisa que é «Bill Burr destroys Steve Jobs», é muito
é que a Agustina estava a fazer no Frágil, não sei, alguém a levou bom, é um grande cómico americano. No outro dia estava no Col-
para lá), estava numa esquininha, com aquela curiosidade dela e eu bert, num desses talk-shows, e ele disse que não há maior perda de
perguntei-lhe o que é que era preciso para escrever um romance, tempo do que um comediante a responder a um blogger. É o cú-
para me tornar escritora a tempo inteiro, e ela disse a frase da minha mulo da humilhação. Porquê perder tempo com um tipo que está
vida: «Arranje um marido rico.» Lapidar. em casa a deixar cair butternut fingers derretidos na camisa e a es-
Não tinha medo de falhar? crever convencido que ganhou o Peabody, ou de que está no New
Não. Tinha medo de ficar sem dinheiro. Coisa que ainda tenho. Nun- York Times, e que está a insultar-me? É um pouco isso. O algoritmo
ca tive medo de falhar. Vou-lhe dizer uma coisa muito sinceramen- do Google recolhe biliões de sinapses humanas, vamos chamar-lhes
te: o medo de falhar é aquilo com que vive todo o jornalista. Quando assim, caridosamente, em que toda a gente está a opinar, like, dis-
já tem a reportagem toda feita na cabeça, com as notinhas todas, like, unlike, e tudo o que está na internet fica na internet.
uma reportagem de guerra, por exemplo, que é muito intensa e é Não liga a essas críticas na internet?
sob pressão, e você já tem tudo, as 10 histórias incríveis que lhe con- Deus me livre! Se ligasse não dormia descansada. Com a quantida-
taram, e tem a deadline, e todo o jornalista que tem a pressão da de de gente a insultar-me na internet por razões políticas ou porque
escrita, desde os tempos da tarimba de que lhe falei, em que me não gostam da minha cara. Porque há uma grande misoginia em
incutiram o terror da prosa malfeita – nessa altura tem o medo de Portugal.
falhar. E é o medo que alimenta o jornalista, o medo de no fim, Acha que há?
depois daquele trabalho todo, aquilo seja uma merda. Então não há? Não viu as piadas com a Marisa Matias? Acha que
A diferença é que um livro fica. em algum país europeu há um partido que diga que não arranjá-
Eu não distingo muito uma prosa da outra. mos uma candidata mais engraçadinha?
Mas uma reportagem desaparece e o livro fica. Tenho a ideia de que é tão odiada e tão amada como qualquer
Não sei se desaparece. Curiosamente verifico que as pessoas se lem- outro colunista.
bram de duas ou três reportagens que escrevi e que acho que são É a sua opinião? Então peço perdão por discordar. Até porque comi-
muito boas. Há coisas que ficam. Há uns tempos falavam-me de um go começa há mais tempo. E depois há poucas mulheres a comentar.

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No programa televisivo em que participa é a única. motoristas, são amas-secas, têm de ganhar um salário porque o
E não só. Viu quantas mulheres comentaram a noite eleitoral? dinheiro só de um salário não chega e estão muito puxadas entre
Duas? Não há muitas. O comentário político é uma arena de com- extremos, têm muito pouco tempo para si e ganham menos do que
bate. É MMA: mixed martial arts. Vale tudo, pontapés no estômago, os homens. Tirando algumas exceções que confirmam a regra.
na cabeça, rasteiras. Não é boxe, não tem regras. É violento e pre- Acha que quando uma mulher vence a primeira barreira, a
dispõe ao ódio. da publicação, ainda encontra mais barreiras, há obstáculos
Acha que além da discordância política há um ódio misógino? ao reconhecimento?
Sim. Até das mulheres. A misoginia também é das mulheres, aten- Aí já não sei. Eu falo da publicação. Depois não sei. Não faço ideia.
ção. A Patricia Highsmith escreveu sobre isso. A misoginia também Acho que não. Até à publicação é que é complicado. Eu por exem-
vem das mulheres. plo tive imensos problemas para fazer tudo, ser mãe, trabalhar, es-
Sentiu isso? crever, fazer tudo ao mesmo tempo. Achei que era capaz e hoje sei
Não mais do que nos homens, mas senti. Uma certa antipatia. Tam- absolutamente que não era capaz e foi também uma das razões por-
bém tenho muitas mulheres amigas. Nos EUA, há uma mulher que não escrevi o livro antes. Simplesmente não tinha tempo. Ou
muito engraçada, a Lena Dunham, que escreve uma série chama- então seria totalmente egoísta e diria. «Agora vou deixar de fazer
da Girls, um sucesso enorme, e é feminista. E há um grupo de mu- estas coisas e vou escrever um livro.»
lheres da moda, escritoras, da música, que não são solidárias, não é E não era capaz de o fazer?
o termo certo, mas são amigas e fizeram uma espécie de muro. Não, não era porque senti que era mais importante ser uma boa
Como também têm muita gente a atacá-las criaram uma barreira mãe do que uma grande escritora. E hoje desvalorizo muito a his-
feminina e aquilo tornou-se uma espécie de barreira de proteção. tória do grande escritor. Acho que o grande escritor foi muito mi-
É muito curioso ver isto. Há uns tempos entrevistou a Gloria Stei- tificado durante anos. Hoje um escritor não é o mito que era anti-
nem, que vem de um tempo em que os direitos das mulheres não gamente.
existiam, e acho que isso em Portugal não existe, há uma grande com- E isso é bom?
petição. E acho que há essa competição por causa da escassez de re- Acho que é bom. Antes era aquela coisa do homem que falava com
cursos. No mercado laboral português ou no mercado das artes por- Deus. Isso era uma treta. Os escritores são iguais aos outros. Têm
tuguês há uma escassez enorme de recursos, há pouco dinheiro. Isso vidas familiares complicadas, veem má televisão, vão ao shopping
faz com que quando uma mulher bonita faz duas ou três coisas, e es- mall. O escritor mítico dentro do quarto a falar diretamente com
tou a lembrar-me de uma em particular cujo nome não vou dizer, ela Deus, a ouvir a música de Deus, essas tretas todas. Nós, na crítica
é logo atacada porque se não fosse bonita não conseguia fazer aqui- literária, fomos os porta-vozes dessa mitologia porque queríamos
lo. Isso é uma grave injustiça. É o tipo de coisa que se diz de uma mu- pertencer-lhe, queríamos aceder ao Olimpo onde estavam os gran-
lher mas não se diz de um homem. Mesmo hoje na literatura acho des escritores. Depois, quando se começam a ler as biografias e
que há claramente uma supremacia do setor masculino. quando se conhecem os grandes escritores, então, é de gargalhada.
Em relação a autores? Mas quando se começam a ler as biografias dos mortos a gente per-
Sim, há muito mais autores jovens homens, digamos até aos cebe que o grande escritor era uma formiga igual às outras e isso
45 anos, do que mulheres. foi tudo desmistificado pela própria tecnologia, pela acessibilidade.
É uma questão de oportunidades antes da publicação? Isso é bom. Aquilo foi uma criação cultural muito dos anos 60 e 70.
Acho que as mulheres não têm muito tempo para se dedicar à lite- O escritor-estrela. Os escritores contribuíam para isso. O García
ratura. Márquez escreveu um texto a dizer que quando foi para Paris era
Não será uma questão de diferença no reconhecimento após um jornalista teso, como todos nós, que queria escrever um livro e
a publicação? viu passar o Hemingway… O Hemingway deu cabo disto tudo, deu
Não. Falta um quarto que seja seu. É sempre pela mesma razão que, cabo de nós. Toda a gente queria ser o Hemingway, até eu quis ser
como dizia Virginia Woolf, a irmã de Shakespeare não escreveu as o Hemingway. Então ele viu passar o Hemingway e ficou a tremer
obras de Shakespeare: porque as mulheres não têm um quarto que e disse «Adeus, Mestre!» e escreveu um texto fabuloso sobre isto.
seja seu e continuam a não ter. A situação em Portugal não é de Aquilo era o que nós queríamos. Queríamos já não ser o Heming-
igualdade. É de igualdade no sentido de haver direitos e deveres way mas ser o García Márquez que ia para Paris ver passar o He-
iguais, mas na prática as mulheres têm uma posição altamente de- mingway e dizia «Adeus, Mestre» e depois publicou o Cem Anos de
ficitária na sociedade portuguesa. São mães, são donas de casa, são Solidão. Agora, como é que ele publicou o Cem Anos de Solidão?

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Clara Ferreira Alves

no mercado das artes português há uma escassez enorme de recursos, há pouco di-
nheiro. Isso faz com que quando uma mulher bonita faz duas ou três coisas, e estou
a lembrar-me de uma em particular cujo nome não vou dizer, ela é logo atacada
porque se não fosse bonita não conseguia fazer aquilo. Isso é uma grave injustiça.
É o tipo de coisa que se diz de uma mulher mas não se diz de um homem. Mesmo hoje
na literatura acho que há claramente uma supremacia do sector masculino.

Com a mulher, a Mercedes, a trabalhar brutalmente para susten- e havia alguns que eram mesmo uns chatos. Eu pensava: «Este tipo
tar a casa. escreveu um grande livro mas, caramba, é tão desinteressante como
A venderem tudo. pessoa...» Isto aconteceu-me. É que depois o mito começa a esbo-
A empenharem tudo, a vender tudo, incluindo a máquina de escre- roar-se.
ver. A realidadezinha. Como dizia o T.S. Eliot, as pessoas não su- Mas também encontrou escritores interessantes.
portam a realidade. Sim, outros são muito interessantes, divertidos e boa companhia.
Ainda há sectores que insistem em cultivar essa imagem do es- Mas há uns que não são, que só falam para a história. São chatos.
critor. Quem, por exemplo?
Do escritor com as vestes. O Eugénio de Andrade cultivava imenso O Coetzee, meu Deus! Vamos lá deixar-nos destas cenas de Coet-
essa imagem. Era muito engraçado. Nós caímos naquela esparrela. zee. Ele é um grande escritor. Do último livro nem gostei nada, para
«Então Eugénio?» e ele «Ah, passei a manhã a ler os meus clássicos». dizer a verdade, mas gostei muito do Disgrace, que é um livro fa-
Era muito bom. [Risos.] Não havia hipótese de falar de peixe frito de- buloso. E basta um livro. Mas o Coetzee é intratável. Até cair nas
pois disto, de falar de Platão, de Aristóteles. Só podemos continuar. boas graças dele e conseguir extrair-lhe três frases sobre qualquer
A fasquia fica alta. coisa é um trabalho terrível. E depois, quando alguém entra,
Temos de manter o nível. É uma elevação brutal. Eu participei des- penetrar aquele território de silêncio. Mas ele é interessante?
tas mitologias tendo crescido neste período participei nisto. «Ah, o Não, não é.
Hemingway em Paris! Ah, o García Márquez!» O meu era o Graham São questões de personalidade.
Greene: «Ah, o Graham Greene a beber gim em Antibes!» Passei Eu fui falar com ele sobre a Irène Némirowski e discordei dele. Fi-
anos a pensar se teria coragem para entrevistar o Graham Greene cou um pouco irritado, mas deu conversa, mas não foi uma conver-
e ir a Antibes, onde provavelmente conseguiria entrevistá-lo... Bas- sa que me tivesse iluminado ou que me tivesse dado alguma coisa
tava ir ao restaurante... Era como ir ver o Woody Allen tocar clari- nova. Não me deu nada, não me acrescentou nada. Foi uma con-
nete, todos queríamos ir ver o Woody Allen. Mas depois o que é que versa bastante desinteressante.
eu ia fazer? Se ele por acaso aceder a falar comigo eu vou ficar tão es- Dos escritores que conheceu e com quem privou qual é que lhe
tupidamente nervosa que só vou dizer imbecilidades. Vou dizer «En- trouxe algo de novo?
tão e o Heart of the Matter?», de que ele não gostava, «E o catolicis- Há gente espantosa porque são pessoas inteligentes, gostam de con-
mo?», ia fazer uma figura de ursa e depois ou ele me põe fora ou me versar. Eu acho o Martin Amis muito inteligente. É um tipo muito
vai ignorar ou então não ia ser nada disto e ia ver que ele era huma- difícil, mas é muito inteligente. E aí tem, é odiado e atacado, mas é
no como toda a gente e ia ficar desapontada e a pensar que afinal um grande virtuoso da escrita e é uma pessoa interessante. O Chris-
o Graham Greene era um chato. E eu entrevistei muitos escritores topher Hitchens. São cabeças prodigiosas porque não era possível

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ouvir o Hitchens sem aprender qualquer coisa. Era um heterodo- Pedi que me fizessem uma triagem. Houve uma que li porque
xo, tinha um sentido de humor extraordinário, uma cultura histó- me disseram que era mais honesta, não dizia bem, mas era mais
rica prodigiosa, tinham uma memória, era hipermnésico, sabia honesta.
tudo, citava, tinha muita graça. Tive muita pena quando ele morreu. Eu li quatro críticas…
Há pessoas com quem se passa duas horas e ao fim desse tempo o Eu nem sabia que havia quatro. Pedi à editora que me fizesse esse
nosso mundo mudou um bocadinho. Foi bom, divertido, uma boa arquivo. Tenciono ler mais tarde, quando já tiver passado da fase
conversa, nós próprios conseguimos dizer coisas interessantes. Isto quente, do presente. O tempo histórico atual não me interessa. Es-
é estimulante. Há muitos anos entrevistei o Saul Bellow quando ele tou sempre ou no passado ou no que vai acontecer a seguir. Nunca
veio a Portugal e no pouco que estive com ele foi muito interessan- estou no momento presente. A publicação para mim é uma verda-
te. Outro foi o James Baldwin, interessantíssimo, inteligentíssimo. deira violência. É muito violento ver o meu nome, ver o meu nome
Depois fiquei a beber copos com ele no Tivoli. Há gente com quem na montra, não pus os pés no centro comercial porque sabia que ha-
apetece ficar a tomar copos. via lá uma fotografia minha. Não sou capaz. Sou um bicho da toca.
Alguma dessas experiências negativas fez com que reavaliasse Não saio muito.
a obra? Essa é a questão da visibilidade, mas podia encontrar alguma
Não, separo completamente. Agora se me perguntar se me apete- utilidade nas críticas...
ce ir jantar com o Coetzee digo logo: «Não, nem pense nisso.» É in- Mas não leio, porque sei que ia ficar perturbada. Houve uma críti-
fernal. Fica toda a gente intimidada. As pessoas ficam com medo ca que acho que foi particularmente assassina porque era contra
dele. Não é bom. As pessoas com medo do que ele possa dizer e mim, não era contra o livro. Isto ia perturbar-me desnecessaria-
do silêncio, pendentes do silêncio do Coetzee. E eu tenho mais que mente. Tenho muito pouco tempo para ser perturbada. Tenho mui-
fazer, não estou num período da minha vida em que me apeteça ta perturbação com coisas verdadeiramente importantes. A ques-
estar aterrorizada num jantar à espera que o Oráculo de Delfos tão da Síria perturba-me muito, aquilo que está a acontecer,
se pronuncie. Já não tenho esse tipo de reverência perante os perturba-me mesmo. E não posso porque já tenho muitos pesade-
escritores. los e muitas perturbações com coisas terríveis que aconteceram na
Com os anos perdeu esse medo? minha vida e com pessoas que perdi e com coisas de vida e morte
Hoje já seria capaz de entrevistar o Graham Greene. Não ficava ali não me posso perturbar com um tipo que quis ser particularmen-
a tremer e a pensar como é que eu vou fazer uma pergunta interes- te maligno a meu respeito. Não tenho espaço mental para isso. Des-
sante a este homem. É preciso maturidade. Aí tem o medo de falhar. de o início que eu disse que não ia ver nada. Não tenho o culto
O medo de falhar coexiste em toda a pessoa que tem consciência do de mim mesma, felizmente.
ato de escrever. A publicação é para mim muito pouco importante É incrível como acabamos por ser vulneráveis ao que dizem
e dolorosa. Eu por mim não tinha publicado. sobre nós.
Falemos então deste livro. Disse também que, por sua vontade, Claro que sim, ao julgamento alheio. E as pessoas que dizem que
teria publicado este livro com um pseudónimo. não são, estão a mentir. Não conheço nenhum escritor que não ti-
Sim, teria publicado com outro nome. Depois iam dizer que estava vesse ficado absolutamente furioso por alguma coisa que disseram
a imitar a Elena Ferrante. dele. A grande questão entre Salman Rushdie e John Le Carré, que
Seria libertador? eu conheci bem, começa porque o Rushdie escreveu uma coisa so-
Acho que era. É verdade que podia não vender nada. bre Le Carré em que disse que ele não tinha transcendido o género
E o livro tem vendido bem. do romance de espionagem, o que eu acho injusto. Mas aquilo pôs
Sim, e as pessoas têm reagido bem ao livro, mas também levei as o Le Carré absolutamente furioso. É claro que ele depois disse que
minhas cacetadas. As cacetadas não foram inesperadas e também nem sequer tinha lido a crítica, que a posição dele sobre a fatwa era
só doem quando vêm de pessoas que respeitamos muito. sincera, que achava que o Rushdie se devia ter controlado mais e ter
Leu as críticas? evitado aquelas mortes todas, etc. Portanto, pôs o ónus moral dos
Não, mas leram por mim. Houve pessoas que me disseram. Não assassinatos sobre o Rushdie. Mas tudo começou numa crítica.
li porque não leio nada sobre mim, não me vejo em programas de É que o escritor está muito tempo a fazer um livro, é o seu menino,
televisão. o seu filho, é a mesma coisa que dizerem: «O teu filho é feio, tem
Não acha que poderia haver nas críticas alguma coisa interes- umas orelhas grandes, é uma criança horrorosa.» Isto é ofensivo.
sante? Por exemplo, o Torga ficou furioso.

LER primavera 2016 43


«Não tive uma epifania porque não tenho epifanias, mas tive ali uma espé-
cie de revelação e passei para outra. E agora já estou noutra. Mas foi com-
plicado, demorou dois meses para cortar com o livro e sair dele. Agora
estou confortável, já não estou ansiosa. Porque toda a gente fica ansiosa,
eu estava, não vou mentir. Agora já não tenho ansiedade, nem angústia.»
Soube da reação dele? Já não podem. Às vezes voltam, mas é porque recusam participar
Claro que sim. Houve uma pessoa em Coimbra que me disse. nesse circo, nos cocktails, nas palestras, nas feiras. A Wislawa Szym-
Então não acredita nos escritores que dizem que não ligam à borska recusou completamente. Continuou a escrever poesia e quis
crítica? lá saber do Nobel. Há mais casos. Esta mulher, a Svetlana, duvido
Não. É como os escritores que dizem que não ligam aos prémios. que ande agora nos colóquios internacionais. Há muitos casos que
É como o Naipaul, que passou o tempo a dizer que não queria rece- escaparam a esse mundo e nunca mais produziram um grande
ber o Nobel e quando o recebeu chorou. Não só recebeu o Nobel livro. O García Márquez ainda conseguiu.
e nunca escreveu mais nada de jeito como chorou. Quem é que não Sim, escreveu O Amor nos Tempos de Cólera.
quer o Nobel? Você não quer o Nobel? Eu quero. Mas o García Márquez é um caso de prodígio, como diria o Eduar-
Mas uma coisa é falarmos do Nobel, outra é ver como até uma do Lourenço. Há casos prodigiosos. Também estava muito enclau-
pequena nota num jornal de província afeta um escritor. surado em Cartagena a escrever. Ia a Cuba ver o Fidel, de férias,
Claro que afeta, porque forma opinião. Tem esse efeito deletério. e voltava para Cartagena. Não podia andar aí de um lado para o ou-
Costuma-se dizer que as críticas não têm influência nenhuma. Tam- tro. Já falei com muitos escritores que me dizem que é uma vida in-
bém não é inteiramente verdade. Ainda por cima, como eu disse há fernal.
pouco, fica tudo no algoritmo do Google, o fel e o mel, e as pessoas Eu também falei com alguns escritores que me dizem que par-
vão à procura do fel. Aliás, o fel é que tem mel. ticipar nesses eventos é a única forma de viver da escrita.
Toda a gente vai ler a crítica com a bola preta. Há outras. Arranjando um grande agente literário que é coisa que
Claro. E há outra coisa. Em Portugal há pouca generosidade entre não temos em Portugal. Quem quer viver da escrita tem de arran-
autores. Em Inglaterra, durante anos, os escritores escreviam uns jar um bom agente. Os escritores lá fora participam nos festivais em
sobre os outros, o Amis escrevia sobre o Rushdie, o Ian McEwan so- que os agentes lhes dizem que devem participar, que são importan-
bre o Amis, às vezes não eram encomiásticos mas eram boas críti- tes. O resto, o agente literário trata. São a ama-seca do escritor.
cas e eles arriscavam falar do livro de uma pessoa de quem eram Nós não sabemos o que isso é, porque fazemos tudo aqui. O editor
amigos. Faziam isso com alguma generosidade de espírito. E faziam e o autor administram-se. Mas lá fora isso não acontece. Para já,
outra coisa interessante. Quando alguém atacava estupidamente um escritor nos EUA pode ter um avanço de um milhão de dólares.
um deles havia outro que respondia e atacava o texto. E isso em Por- São realidades muito diferentes.
tugal é completamente impossível. São mas às vezes o livro não vende isso. Não vende mais de 20 mil
Acha que ficam na sombra a ver os outros a ser atacados e exemplares nos EUA. Nem sequer estamos a falar de grandes ven-
a dizer «Ainda bem que não fui eu»? das. O que acontece é que eles apostam num autor desde o primeiro
Sim. Fica tudo contente. Ficam também contentes porque é menos livro. Estão já a apostar que aquele autor vai ter uma carreira inte-
um. O poço só tem para 50 baldes de água, é menos um a ir beber ressante e posicionam-se para gerir a carreira daquele autor. Lá, o
ao poço. Mesmo entre escritores amigos há por vezes uma malda- autor está muito protegido, porque tem agentes. Por vezes acontece
de e uma verrina extraordinárias. Nas costas, é terrível. Não é um serem vítimas do próprio sucesso, como aconteceu com o Martin
ambiente muito saudável. Um escritor tem de sair disso, não pode Amis, com o Money. Vamos ver o que acontece com o Michel Houel-
andar sempre nas palestras e nos colóquios, se andar sempre aí lebecq, que está um bocadinho fora do sistema.
acaba por ser um adereço de salão. Eu conheci escritores portu- Já disse várias vezes que o Houellebecq é o último grande escri-
gueses que se tornaram adereços de salão. Houve um que se per- tor europeu. Porquê?
deu completamente, não vou dizer quem, foi uma grande espe- Porque escreve sobre a Europa. O Mapa e o Território é um livro
rança, um escritor jovem de quem se esperava uma longuíssima absolutamente extraordinário, é para mim o último grande roman-
carreira nas letras e tornou-se um adereço de salão. Era um ho- ce europeu, é sobre o fim da era industrial. Agora com o Submissão
mem elegante, logo era convidado para tudo e estava sempre em que é sobre a crise atual, que é sobretudo uma crise de pensamento.
todos os colóquios e a administração dessa vida não é compatível Foi esses grandes temas que quis abordar no seu livro?
com escrever os livros seguintes. Não é possível andar no mundo e Eu sempre quis escrever sobre uma coisa importante, mas sei que
escrever grandes livros. É por isso que o Prémio Nobel é terrível o Médio Oriente em Portugal não tem valor de troca, não tem um
para a maioria dos escritores. Ou voltam para o buraco ou têm valor cambial. As pessoas não se interessam.
de racionar muito as aparições. Quando partiu para o romance pensou que tinha coisas novas
É raro voltarem a escrever um grande livro. e diferentes para dizer sobre o assunto?

LER primavera 2016 45


Clara Ferreira Alves

O que eu acho absolutamente inadmissível é que se brinque com isto, que se torne
isto numa sátira, acho terrível que se aproveite o livro para me satirizar. Isso
surpreendeu-me porque achei que esse tipo de maldade não seria possível dado que
eu falo de coisas que têm uma gravidade e um peso grandes. Julguei que o livro
não seria usado como arma de arremesso para me ridicularizar.

Se não tivesse não o tinha escrito. Em Portugal acho que nunca nin- Gama e havia imensas pessoas a passear com carrinhos de bebé,
guém escreveu sobre este tema. com aquilo a que nos anos 70 se chamava a «alienação urbana», com
Disse ao Público que é preciso ter um ego muito grande para se aqueles fatos de treino luzidios e gritavam uns com os outros. Eu fi-
pensar que se vai inovar, mas por outro lado se não se sentir que quei com uma angústia brutal. Depois no elevador havia uma fa-
se tem alguma coisa nova para se dizer não se escreve, não é? mília de trogloditas com um carrinho enorme e que empurraram
É preciso ter algum autoconvencimento. O Nabokov falou disso. Mas toda a gente. Tudo aquilo foi horrível. E eu pensei: «Antes Gaza, an-
também é como na fotografia, já está tudo fotografado. Não se vai in- tes Gaza.» A outra coisa que me angustia em Portugal é a televisão.
ventar nenhuma linguagem literária nova, portanto há que inovar Quando chego ao aeroporto da Portela vejo logo uma televisão a dar
noutros aspetos do romance. Mas ninguém começa a escrever a a telenovela. Angustia-me.
dizer que vai inovar, é um impulso emocional e também racional. Porquê?
No primeiro draft é emocional, mas depois em todos os outros é Porque é que alguém à espera da mala se põe a ver televisão? Nos
racional. Eu, pelo menos, escrevo assim. aeroportos de Nova Iorque, Washington, Paris não há nenhuma te-
Tem-se dito que o livro é sobre o terrorismo. levisão a dar a telenovela. Talvez no México ou na Venezuela. As pes-
É também sobre a religião e Deus. soas têm de esquecer que isto é um país pobre, com gente muito mi-
Eu vou arriscar um pouco e dizer que é um livro sobre pessoas serável, que vive muito mal, pessoas com uma vida lixada.
que fogem para os lugares onde acreditam que as coisas impor- Levantam-se às seis da manhã, passam duas horas para entrar em
tantes estão a acontecer. Pessoas que estão em ambientes claus- Lisboa, mais duas horas para voltar, não estão uns com os outros, já
trofóbicos ou entediantes e que partem à procura da aventura. não sabem falar porque desaprenderam a falar uns com os outros,
Concordo absolutamente. É mesmo sobre isso, o livro é sobre isso. e ficam a ver a telenovela à noite enquanto jantam, os filhos são edu-
Um processo de fuga. São pessoas que querem fugir da vidinha, cados na creche e na escola. Não é uma boa vida. Os velhos têm uma
como dizia o Alexandre O’Neill. Querem ir para um lugar onde vida terrível. Isto é um país muito ingrato. É muito bom quando
se possam esquecer da vida que têm. Esse lugar é a guerra. se tem uma casa na Lapa com vista para o Tejo, 300 metros qua-
Pessoalmente alguma vez se sentiu com essa dificuldade para drados, dois carros na garagem, motorista... Assim, talvez seja inte-
respirar? ressante viver em Lisboa.
Sim, sim, no terminal do Rossio. Aquilo funcionou como um espa- No livro é muito crítica das elites.
ço metafórico de onde eu queria escapar. Ainda hoje tenho horror Sou.
aos centros comerciais. Se estiver muito tempo num centro comer- Dessas elites que parecem não ter consciência dessas vidas
cial começo a ficar com uma angústia extraordinária. de que falava.
Portugal é esse centro comercial? Não têm consciência nenhuma. Já não tinham no tempo do Eça de
Sim. Há duas coisas que me causam uma angústia física extraordi- Queirós. N’O Primo Basílio, quando faz o retrato daquela família, do
nária: uma é o shopping. Uma vez fui ver uma exposição do Sebas- Jorge, da Luísa e depois da Juliana das botinas, a melhor parte é
tião Salgado na «Expo», estacionei no [Centro Comercial] Vasco da quando ele descreve a vida da Juliana. A explicar um pouco o ran-

46 primavera 2016 LER


Responder ao que se foi publicando sobre o livro? Não, isso não. Eu não gosto de
Mixed Martial Arts. E tenho uma pena poderosa. Se eu quisesse responder seria
muito violenta porque sei que sou capaz de atos de extrema violência com a pena
e até tenho algum talento para isso. Às vezes provoco efeitos mais devastadores
do que imaginava. Não, a uma crítica literária não se responde.

cor, o ódio, a velhacaria, mostrando o que foi a vida da Juliana que um grande banqueiro português alguma vez foi tratar do cartão do
evidentemente as elites portuguesas ignoravam e sempre ignora- cidadão ou do passaporte? Claro que não. Não ajudam ninguém,
ram e continuam a ignorar. Só que nós agora temos uma nova elite não dão dinheiro a ninguém, não dão dinheiro para uma ala do
que é a elite dos grandes assalariados: vão esquiar, têm uma vida hospital, não patrocinam. No outro dia estava no supermercado
muito confortável nas grandes empresas ou na banca, e muitos deles e ouvi qualquer coisa para ajudar o Sequeira a ficar em Portugal.
tomaram o aparelho de Estado, têm negociatas... Essa nova elite, que Até pensei que fosse um drama humano. Afinal era o quadro do
não se parece com as antigas (que eram as do nome de família, de Domingos Sequeira. Mas não há um desgraçado de um milionário
nascimento, os aristocratas, mas que eram quase sempre descen- em Portugal que permita que o quadro fique em Portugal? Acho
dentes de um merceeiro que tinha feito fortuna), essa nova elite é a isto incrível.
da democracia – mas não é melhor, só leem as revistas do coração, Também não há a ideia de capital cultural, de se pensar que
lixo, e consomem exatamente os mesmos produtos que o lumpen. ao fazer-se isso se está a conquistar um prestígio que de outra
Consomem a mesma televisão, as mesmas revistas e os mesmos forma não se tem.
jornais. Já fui a casa de pessoas com muito dinheiro, que têm uma Não há ideia de comunidade. As pessoas têm muito medo que lhe
casa maravilhosa, com arte – agora toda a gente tem arte –, objetos tirem coisas, não querem pagar impostos. Nos EUA, a partir do mo-
de design extraordinários e depois apercebemo-nos de que não há mento em que você é bem-sucedido tem de retribuir: ou ajuda a es-
um livro. cola onde andou, ou outra coisa. As pessoas acham que o seu su-
Acha que esse défice cultural resulta num défice de empatia? cesso não depende apenas delas, depende da comunidade, da escola,
O que transparece do seu livro é que essas elites não vivem pre- dos professores, depende dos seus empregados. Sentem que têm de
ocupadas com o que se está a passar com os outros. dar uma parte de volta. Aqui é o oposto. Quanto mais as pessoas têm
Não, estão preocupadas com os seus próprios bens. Tirando os que sucesso mais se afastam da comunidade, mais querem manter uma
têm uma consciência católica e sentem um dever moral da sua pró- distância litúrgica em relação à comunidade. Aqui, a elite caracteri-
pria religião (e há muita gente assim, é justo que se diga, que age za-se por dizer: «Eu sou melhor do que tu.»
por um imperativo religioso ou familiar), tirando isso estão muito Uma das coisas interessantes neste livro é que a protagonista é
pouco preocupados com a vida das pessoas. Não fazem ideia de uma fotógrafa, alguém que trabalha com imagens em vez de pa-
como vive uma pessoa que tem a mãe paralisada, ou o filho que não lavras e que levanta aquela questão, também tratada por Susan
é bom aluno, que moram na periferia, que têm de vir para a cida- Sontag em Olhando o Sofrimento dos Outros: se ver imagens do
de, que têm muito pouco dinheiro. Acha que essas elites têm algu- sofrimento dos outros – como a decapitação de Daniel Pearl –
ma ideia do que é ir para a bicha com o cartão da segurança social nos torna mais empáticos ou se nos torna mais insensíveis,
às seis da manhã, esperar que aquilo abra, tirar uma senha e espe- se essas imagens acabam por nos anestesiar.
rar até às duas da tarde para ser atendido? Uma vez escrevi uma Para uma pessoa não se matar tem de se anestesiar. Os grandes re-
crónica sobre isso. Nunca as elites portuguesas foram tratar pes- pórteres, quando sobrevivem, ou vão fotografar outras coisas ou
soalmente do cartão do cidadão. O cartão foi ter com eles. Acha que anestesiam-se no álcool. Ou então endurecem de uma forma ex-

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Clara Ferreira Alves

Mesmo entre escritores amigos há por vezes uma maldade e uma verrina extra-
ordinárias. Nas costas, é terrível. Não é um ambiente muito saudável. Um escritor
tem de sair disso, não pode andar sempre nas palestras e nos colóquios, se andar
sempre aí acaba por ser um adereço de salão. Eu conheci escritores portugueses
que se tornaram adereços de salão. Houve um que se perdeu completamente, não
vou dizer quem, foi uma grande esperança e tornou-se um adereço de salão.
Não é possível andar no mundo e escrever grandes livros.
traordinária. Ficam duros. Vi muitos vídeos de decapitações e aca- Auschwitz, o problema de se escrever sobre o raio dos campos
bei por anestesiar. Agora não volto a ver mais nenhum vídeo. Per- de concentração.
cebi que olhava para aquilo já em piloto automático. Esta última do A verdade é que também não se pode ignorar.
Jim Foley, o primeiro a ser decapitado pelo Estado Islâmico, inco- Foi a minha atitude, mas a verdade é que me custou muito. Acho
modou-me muito, foi um flashback. É muito violento escrever so- que me tirou qualquer coisa que ainda não recuperei. Fiquei sem
bre estas coisas e ver estas imagens. Às vezes penso se valeu a pena uma certa inocência. Isto não tem a ver com literatura. Nos pró-
ou se não feri uma parte de mim mesma. Penso se valeu a pena ter ximos tempos não quero escrever nada assim porque ainda não
feito essa investigação, essa pesquisa. Ao nível da descrição não há percebi exatamente o que isto me fez.
muito a dizer sobre aquilo. É demasiado clínico e brutal. Não se pode Há outro personagem do livro, também um fotógrafo, que está
fazer uma frase poética, predispõe à secura, não se pode ironizar, na guerra à procura de uma imagem fantástica, de uma Pietà.
não se podem aplicar comparações, é um ato único de uma tal in- Isso também é pornográfico.
tensidade maligna. É completamente seco. Eu pensei que se visse Eu conheci gente assim. À procura do quadro clássico na miséria.
tudo, aprenderia qualquer coisa e conseguiria extrair dali qualquer Escolhi uma jornalista por causa do problema da intervenção.
coisa que ajudasse a compreender e isso não é verdade. Como dizia O jornalista da escrita acaba por participar naquele espetáculo,
a Arendt, aquilo é de uma banalidade extraordinária. Não há ali é um ator daquele espetáculo que é o grande espetáculo do mun-
nada de salvífico, nem de redentor. do, a guerra, eu chamo a isso entrar no quadro. Há fotógrafos que
Há aquela ideia de que vale a pena mostrar as imagens para cap- decidem passar por aquilo sem intervir, como acham que nunca
tar a atenção das pessoas. devem intervir. É o problema daquela fotografia da criança com
É a crueldade. Seja a pequena crueldade de atacar o outro verbal- o abutre.
mente, seja a grande crueldade de lhe cortar a cabeça. A cruelda- Do Kevin Carter.
de é muito pouco generosa. Não dá nada a ninguém. Só retira. Di- Ele acabou por se matar. E diz que conduziu a criança para o cam-
minui. Não acrescenta. Aquela crueldade acaba por diminuir po. A questão é: fotografo o tipo que tem o pneu ao pescoço, na Áfri-
quem a pratica como quem a vê. Aquilo hoje aparece confundido, ca do Sul, tento impedi-los de fazer isso ou fujo? Este é um proble-
eu digo isso no livro, com a pornografia. Os sites onde estão as de- ma moral e achei que apesar de tudo nunca seria capaz de ser
capitações são os mesmos que têm pornografia ou vítimas de de- fotógrafa, daí ter escolhido esta personagem, que tem umas vagas
sastres de automóveis. Eu não sabia que este mundo existia. Não ambições literárias, que é um bocado snobe, que está completa-
fui muito para aí porque é um território que me horroriza e que mente fora do mundo até as coisas lhe caírem dentro de casa. Está
percebi que diminui a pessoa. A grande crueldade é o problema de sempre de fora, é uma assistente. Esse é um papel que nunca tive.

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Eu comovi-me, e continuo a comover-me. Entrei na vida das pes- co: querem boots on the ground, as tropas no terreno, obrigar o ou-
soas e saí e às vezes voltei. tro a ir combatê-los. Querem obrigar a Europa a entrar em guerra
É impossível ser-se apenas testemunha? com eles, querem que haja um ódio. Isto não tem nada a ver com o
Não conseguiria. Eu tive conhecimento de casos de mulheres com terrorismo convencional que procurava um objetivo político. Isto é
quem estive no Afeganistão e é impossível não ter o desejo de aju- uma guerra civilizacional em que uma fação de uma civilização quer
dar. Os fotógrafos não são assim, e dizem que se se envolverem não que a outra lhe declare guerra. Uma guerra de civilizações é para
fazem o trabalho deles, que o trabalho deles é dar a ver, não é inter- eles uma entrada na História.
ferir. E têm razão. Não é acudir à desgraça, é ser testemunha dessa Sendo Portugal um país que passou relativamente incólume aos
desgraça. Mas são problemas morais, metafísicos e que depois tor- grandes conflitos do século XX, acha que temos noção do que é
nam as pessoas extraordinariamente infelizes. vida das pessoas em cenário de guerra tal como descreve no livro?
Há aquela ideia de que os jornalistas são vampiros… Temos uma total insensibilidade. Não temos ideia nenhuma. Outro
E são. dia, no cabeleireiro, ouvi uma senhora que dizia que achava péssi-
Mas de cada vez que se morde a realidade, a realidade morde ma esta ideia de os sírios virem para cá. Este é um momento histó-
de volta. rico de grande importância. As pessoas acham que está tudo no mes-
É preciso ser-se completamente insensível e insensato para não mo sítio, mas não está. A Europa dificilmente se vai salvar da Síria,
morder. Testemunhar situações de guerra obriga-nos a fazer outra muito dificilmente. Isto vai ser terrível. O que está para vir é muito
vez as grandes perguntas: Deus existe? O que é a consciência? pior do que já aconteceu.
A grande crueldade é tão inacessível que quando acedemos a ela en- Depois de escrever este livro, que a obrigou a regressar a certas
tramos num território do qual se sai com dificuldade. Entra-se lá, experiências difíceis, não tem vontade de voltar ao tema?
mas sai-se com dificuldade. Há territórios assim. Um amigo meu Não. Tenho vontade de escrever textos e crónicas sobre isso porque
começou a fazer um trabalho há uns anos sobre crianças com sida. acho que devo continuar a escrever sobre coisas que conheço bem.
Ele achou que era capaz e depois não conseguiu. O grande sofri- Mas não consigo voltar a escrever um romance sobre aquilo. Tor-
mento pode humanizar-nos, mas também pode desumanizar-nos. nar-me-ia muito infeliz. E essa insensibilidade em Portugal de que
Lembro-me de ver há uns tempos uma reportagem fotográfica falámos há pouco é muito evidente. Vi isso em perguntas que me fi-
sobre uma criança com cancro acompanhada pela mãe até à zeram em entrevistas. Percebi que as pessoas ou não tinham lido o
morte. E por estranho que pareça, sendo extraordinariamente livro ou lhe tinham passado completamente ao lado. Estavam mui-
doloroso também acabamos por nos sentir bem a ver aquelas to mais preocupadas com ninharias e não com o que é o miolo do li-
imagens. Proporcionam um consolo estranho. vro. Isso deu-me um sentimento de frustração terrível, perceber que
Porque aí não há crueldade. Aí há bondade. Existe o amor pela crian- as pessoas não se interessavam. Estavam muito mais interessadas
ça, o afeto pela criança, o nosso próprio amor pela criança. Aí há su- em saber quem era o Eduardo Carneiro e quem era o banqueiro.
cessivas projeções de bondade num caso terrível. Agora, na cruel- Pormenores. Não estavam nada interessados no drama humano.
dade, não. Na crueldade pura não há nada de enriquecedor. E isso é que achei estranho. Também tive muitos leitores que per-
É doloroso e não nos acrescenta nada. É um deserto onde não entra ceberam. Houve um que me disse que tinha chorado a ler o meu li-
um único bom sentimento. Isso aconteceu-me quando vi o vídeo da vro. Houve leitores que tiveram reações como eu gostava que os lei-
decapitação do Daniel Pearl. No fim eu estava com um ódio surdo tores tivessem. Mas houve outras, até de jornalistas, que eram ao
àquela gente, àqueles muçulmanos. Desenvolvi uma espécie de lado. E percebi que as pessoas não se interessam. Também acho que
grande ódio que felizmente durou três dias. Tive uma reação visce- um livro demora muito até ser entendido. Um livro nunca é bem
ral de ódio, de querer matar aquela gente. Eu temo que entre os fa- lido logo a seguir à publicação. Depois como havia todo este forro-
miliares das vítimas destes atentados de Paris apareçam estas rea- bodó em torno do romance da Clara Ferreira Alves, as interpreta-
ções de ódio puro a quem interrompeu as suas vidas. É muito ções às vezes foram tão mesquinhas… Sei lá, as pessoas não enten-
complicado sobreviver ao ódio. A crueldade acaba sempre por nos deram certas coisas e isso deixou-me infeliz.
diminuir e retirar qualquer coisa. Mas esse era um risco que corria.
Neste tipo de terrorismo parece que mais do que a vontade Hoje percebi isso. Eu nunca tinha publicado um romance e hoje já
de inspirar terror há a vontade de inspirar o ódio, não acha? percebi que as pessoas gostam muito das coisas neutras, não que-
É a guerra. É impossível que quem fez o 11 de Setembro não sou- rem coisas que sejam muito complexas. Percebi que tinha de espe-
besse que ia ser perseguido... A mesma coisa com o Estado Islâmi- rar um tempo até o livro pousar, em que já não se falava sobre a Cla-

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Clara Ferreira Alves

As elites estão preocupadas com os seus próprios bens. Tirando os que têm uma
consciência católica, e há muita gente assim, que age por um imperativo religioso
ou familiar, tirando isso estão muito pouco preocupados com a vida das pessoas.
Não fazem ideia de como vive uma pessoa que tem a mãe paralisada, ou o filho que
não é bom aluno, que moram na periferia, que têm de vir para a cidade, que têm
muito pouco dinheiro. Nunca as elites foram tratar do cartão do cidadão.
ra Ferreira Alves, o Expresso, «O Eixo do Mal» e o que é que eu pen- meira vez que tomei a mistura perdi logo o passaporte no aeropor-
so sobre a esquerda e a direita. to. Bom, então vi o Tejo, vi a cidade, e tive um sentimento de confor-
No seu caso, havia sempre esse risco de a personalidade de quem to enorme, não sei, uma sensação de casa e de repente reconciliei-
escreve o livro se sobrepor ao livro... -me um bocado com o País e pensei: «Isto é um sítio bom, é um sítio
O que acho absolutamente inadmissível é que se brinque com isto, sem grande maldade.» Tive um sentimento de um enorme confor-
que se torne isto numa sátira, acho terrível que se aproveite o livro to existencial e justamente nesse instante comecei a escrever, co-
para me satirizar. Isso surpreendeu-me porque achei que esse tipo meçaram a vir-me à cabeça uma série de ideias. Cheguei a casa e co-
de maldade não seria possível dado que falo de coisas que têm uma mecei a escrever, a escrever e quando acabei senti que estava no sítio
gravidade e um peso grandes. Julguei que o livro não seria usado onde quero, que é o do próximo livro. Não tive uma epifania porque
como arma de arremesso para me ridicularizar. não tenho epifanias, mas tive ali uma espécie de revelação e passei
E isso aconteceu? para outra. E agora já estou noutra. Mas foi complicado porque este
Sim. livro foi publicado em novembro e estamos no final de janeiro, por-
Quem é que o fez? tanto demorou dois meses para cortar com o livro e sair dele. Agora
Não vou dizer. Não li o texto, mas percebi que era essa a interpreta- estou confortável, já não estou ansiosa. Porque toda a gente fica
ção. Achei estranho. Não tenho um grande adjetivo para isso. Achei ansiosa, eu estava, não vou mentir. Agora já não tenho ansiedade,
estranho. Afinal a minha personalidade é mais importante do que nem angústia.
aquilo que eu escrevo. Por isso é que achei que teria sido interessante Não teve a tentação de responder ao que se foi publicando sobre
publicar isto com outro nome para ver o que acontecia. o livro?
E perdeu a vontade de escrever mais romances? Não, isso não. Eu não gosto de mixed martial arts. E tenho uma pena
Não, não. Pelo contrário. Isso não. poderosa. Se quisesse responder seria muito violenta porque sei que
Agora, libertada do primeiro romance, vêm mais? sou capaz de atos de extrema violência com a pena e até tenho al-
Até já comecei a escrever. Já tinha umas coisas escritas, que estavam gum talento para isso. Às vezes provoco efeitos mais devastadores
também em pousio, à espera. Quando estou muito feliz e bem-dis- do que imaginava.
posta, só escrevo banalidades. Quanto mais mal estou, melhor es- Optou por não responder?
crevo. Isso é uma vantagem do ponto de vista da escrita, mas é uma Nem acho que se deva fazer. Nem tenho nenhum propósito vin-
desvantagem do ponto de vista da vida. Houve um em dia que esta- gativo. Os advogados é que fazem as alegações finais – e eu acho
va zangada, porque ninguém gosta de ser mal interpretado, nin- até que teria sido uma ótima advogada – mas em relação a tercei-
guém gosta de ser mal lido, e vinha de Londres... Detesto andar de ros. Como se costuma dizer, nunca há um bom advogado em cau-
avião. Como diz o Orson Welles, só há dois sentimentos possíveis: sa própria. A causa própria não me mobiliza. Não ia escrever um
ou tédio ou terror. Eu estou sempre no terror. O Martin Amis tinha texto a defender-me, nem que fosse o Coetzee a escrever um texto
uma boa receita para isso que era Valium com whisky mas da pri- a dizer mal de mim. Não o faria. Uma polémica política, doutriná-

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penso muitas vezes em inglês e tenho de me traduzir para inglês. Eu tive também
a tentação de escrever o livro em inglês e não tenho a certeza se não o deveria
ter feito. Seria uma grande traição à minha própria língua. Mas eu sei que se for
para Londres seis meses começo imediatamente a escrever em inglês. E sai-me. Até
sou mais rápida. A língua portuguesa é um cavalão e pô-lo a dançar é complicado.
É um cavalo teimoso.
ria ou até literária, mas que não tenha a ver com os meus livros, Ouça, eu faço isso todas as semanas. Isto é um músculo complica-
tudo bem. do. Se não escrevo, fico desempregada e deprimida. O mundo co-
Não põe a hipótese de uma discussão produtiva? meça a não fazer muito sentido. Ando para aqui às voltas, a ouvir
Não. A uma crítica literária não se responde. Os autores que eu cri- música, depois vou dar um passeio, fico um pouco estranha. Às ve-
tiquei nunca me responderam, como é evidente. zes faço uma espécie de dieta, nem escrevo no telemóvel, não tomo
Não acha que isso é mais uma tentativa de não dar valor à crí- notas que me podem vir a ser úteis, nem escrevo nos caderninho,
tica? tenho aqui milhões de caderninhos. Mas depois volto porque não
Claro. Também é um ato de desvalorização. O Torga certamente estou bem. O Houellebecq disse-me isso: escrever é mau, não es-
ficou furioso, mas não ia responder àquela rapariguinha. E eu tam- crever é pior. E é. Escrever é péssimo mas não escrever é pior. Por
bém não fiquei à espera que ele o fizesse. A primeira vez que repa- isso estou sempre a escrever. Ou para o jornal ou para mim, ou a
rei no nome do Pedro Mexia foi num texto em que ele dava cabo do apontar coisas. Agora é ótimo com o telemóvel. Há dias estava à es-
Saramago. Reparei logo na assinatura: embora fosse uma crítica li- pera num consultório e como vi que ia demorar comecei a escrever
terária, não era um ataque à pessoa, não era malicioso. E o Sara- no telemóvel. Dantes, provavelmente, teria estado a ler. Então es-
mago teve muitos ataques pessoais. Depois do Nobel é que toda crevi no telemóvel e depois o meu processo é passar para o compu-
a gente era amiga. tador e fazer um print e depois empilhar, empilhar, e depois fica em
Com 30 anos de exposição pública qual é a melhor forma de pousio. Quando pego novamente naquilo percebo que o que era im-
lidar com esses ataques? portante já estava na memória e então rapidamente vou lá, até por
É a minha. Continuar a fazer o que fazia antes da mesma maneira. intuição, e o que não é importante cai naturalmente, na fase final.
Nisso sou muito americana, é move on, segue em frente. E com a A língua portuguesa faz-nos tropeçar a cada momento, a língua
idade custa menos. Há um período na vida em que tudo custa mui- inglesa é clara, muito exata.
to. Nos primeiros anos, somos jovens e não queremos saber de nada. É mais limpa?
Depois há ali um período em que estamos a estabelecer uma per- Outro problema que eu tenho é que penso muitas vezes em inglês
sona pública e privada em que tudo nos afeta. Depois isso deixa de e tenho de me traduzir para português. Eu tive também a tentação
ser importante, a persona já está consolidada, tem amigos, inimigos. de escrever o livro em inglês e não tenho a certeza se não o deveria
A indiferença é que é o pior de tudo. Uma pessoa passar pela vida, ter feito. Seria uma grande traição à minha própria língua. Mas
escrever meia dúzia de livros e ninguém reparar nela é que seria eu sei que se for para Londres seis meses começo imediatamente
verdadeiramente trágico. O resto são atitudes normais: pessoas que a escrever em inglês. E sai-me. Até sou mais rápida. Posso ter de
não gostam, outras que detestam e que se sentem na obrigação refazer algumas coisas, mas não tenho os problemas de estrutura
de o dizer. Isso tudo é normal. que tenho com a língua portuguesa. Mas depois esses problemas
Apesar de todos os possíveis mal-entendidos acha que vale de estrutura também são interessantes. A língua portuguesa é
a pena escrever? um cavalão e pô-lo a dançar é complicado. É um cavalo teimoso.

LER primavera 2016 51


Rue d’Anvers
A Paris dos anos 50 não se fazia apenas de «vida literária». Veja-se a história desta
maîtresse da Rue d’Anvers. «E que maîtresse. Muito procurada pela compe-
tência em dominar e ferir, inventiva no uso do cavalo-marinho, especialista de
arriscadas técnicas do afogamento, orgulhosa de assim provocar ejaculações
e orgasmos que faziam concorrência aos de Radko.» Um mimo.

Texto de J. RENTES DE CARVALHO

Quem nasceu com as liberdades dos Beatles e do então pelo apartamento, a posse de uma Lambretta, a jovial cama-
Rock’n’Roll, só com excepcional esforço da fantasia conseguirá radagem, as raparigas que atraía, o entusiasmo com que falava
compreender um pouco do pasmo, da exaltação, febre e fome se- da arte do cinema.
xual de um rapaz que, mal feitos 20 anos, a década de 50 no come- Particular era a amizade que o ligava a Gabo, um colombiano
ço, descobre Paris e, por bagagem erótica, tem apenas o onanismo, de maus fígados, sobremaneira insolente para com quem se atre-
o dedilhar nas cuecas de uma Luísa na escadaria da Igreja da Se- vesse a contradizê-lo ou contrariar a sua certeza de que no marxis-
nhora da Agonia, em Viana; apalpões nas mamas e outras partes mo estava a salvação. Com o Ruy simpatizei, mas pus boa distân-
de várias Emílias e Teresinhas; cópulas peçonhentas em casas de cia entre mim e o colombiano, também íntimo de Novais, e de
tia da Rua Escura, no Porto; raras visitas ao bordel de Madame quem viria a apreciar Cem Anos de Solidão e, sobretudo, O Amor
Blanche na Rua da Glória, em Lisboa, raras porque duma assen- nos Tempos de Cólera.
tada me depenavam do pré de miliciano e do escasso mealheiro. Retirou essa antipatia a oportunidade de mais tarde me poder
A imaginação e overdoses de leitura só serviam para aumentar dizer compincha de um Nobel, mas poupei-me o trato com um
o desejo, acelerar as pulsões, e foi nesse estado que quase de súbito, personagem que, de tão cheio de si próprio e da ortodoxia das suas
dois ou três dias depois da chegada, me vi pela mão de Joaquim No- convicções, desafiava a paciência.
vais Teixeira (1899-1972), amigo de raras qualidades e precioso men- De melhor têmpera e mais siso, eram o François, o Jean-Luc,
tor, a entrar num diminuto apartamento na vizinhança da Rue du o sorridente e em permanente boa disposição Claude, rapazes de
Bac, cheio de gente, fumo, barulheira, comunicando aos berros com quem recordo o entusiasmo que partilhávamos pelo cinema ita-
o locatário que, achava Novais, seria para mim um útil contacto. liano e a admiração que tínhamos por Rossellini, Vittorio De Sica,
Ruy Guerra (1931), moçambicano, filho de pai rico, estudava no Anna Magnani, Lucia Bosè – paixão minha – mas nada que me
Institut des Hautes Études Cinématographiques e distinguia-se permita fazer valer intimidades com Truffaut, Godard ou Chabrol,
texto SeGUNDo o ANteRIoR ACoRDo oRtoGRÁFICo

52 primavera 2016 LER


© Three Lions/Getty Images
Rue d’Anvers

embora mais tarde, esporadicamente, os viesse a encontrar na ginação: redonda e espessa, inteiriça, saía das profundas uma
redacção dos Cahiers du Cinéma. coluna de aço que, tal um falo gigante, empurrava a geringonça até
Mencionei que o apartamento era diminuto, adjectivo que deixa às alturas.
margem para interpretação, e mais de acordo com a realidade se- A entrada era elegante, espaçosa, havia um pátio florido, do lado di-
ria classificá-lo minúsculo: uma salinha onde cabia um sofá e pou- reito ficava a loge de Madame Marie Louise, la concierge, rechon-
co mais, um quarto com uma cama estreita, um banheiro que chuda trintona de pele muito branca, cabelo muito loiro e permanente
ao mesmo tempo fazia de cozinha. boa disposição, casada com Monsieur Eugène, ele todo o avesso: seco
Minúsculo sim, mas paraíso de porta aberta onde havia sempre de carnes, amargo, queixava-se de ir nos cinquenta, queixava-se do
gente, às vezes tanta que o patamar servia de anexo. E quando digo seu trabalho na EDF (para meu benefício soletrava Eléctricité de
paraíso e gente, digo sobretudo mulheres, que em número excediam France), queixava-se dum ou doutro locatário e, sobretudo, do peso
os existencialistas que por ali rondavam, sombrios, pose de enfas- que era, por volta das seis da manhã, abastecer de carvão nos quar-
tiados, Gauloise nos dedos, citando passagens de L’Être et le Néant, tos de banho as enormes caldeiras do aquecimento central.
querendo ouvir opiniões sobre Heidegger, a importância dos planos – Sabe quanto pesa cada saco? E às vezes levo dois!
quinquenais, a ascensão das massas campesinas na América do Sul. Eu acenava que sim, fingindo compadecido, recordando a doçu-
Visita quase diária, arregalavam-se-me os olhos para o espectá- ra das manhãs em que Madame Marie Louise o substituía e, tendo
culo, e nesses mesmos olhos, na pele, no cérebro, nos dedos, nas enchido a caldeira, se esgueirava para o meu quarto, despia o rou-
mãos, sabe Deus em que partes mais, descobria eu, perplexo, qua- pão e caía nos meus braços, dando-me o consolo das friandises
lidades de esponja, uma propensão para, com urgência de obceca- de Lille, que assim chamava ela às suas, também várias, artes de
do, absorver o que se me deparava, me propunham ou ofereciam. copular e satisfazer, homenageando de passagem a cidade natal.
Das primeiras e inesperadas ofertas há muito esqueci os nomes,
as feições, e provavelmente confundo os locais, julgando que acon- ***
teceu por baixo do Pont des Arts o que fizemos no Pont Neuf,
ou mais certo é ter sido no Quai Voltaire. É verdade inegável que o Diabo as tece, e com tão subtil engenho
Guardo sim, inapagável, a lembrança de Felipa, madrilena, en- que nos aponta a ratoeira, mas no momento em que ao descobri-
tão futura arquitecta, dez réis de gente que de aparência pouco -la a queremos evitar, já ela nos apanhou, nada adiantam protestos
atraía, mas, garantiu o que ma passou, era senhora de dotes e ar- ou remorso. Quiseste? Pagas.
tes que me deixariam estonteado e de boca aberta. Sonhava eu com o ensaio de uma ou outra cena dos romances de
Ingénuo principiante, sorri da prognose, mas pronto se me foi Pierre Louÿs, ou de um episódio de Juliette, de Sade, e querendo
a arrogância e mais de uma vez sentiria descair os queixos, porque realizar o sonho esperei a boa conjunção, não dos astros, mas de
na cama ou nas esquinas, plateias de cinema, em vãos de porta, cais uma ausência prolongada da minha senhoria, a disponibilidade
do Sena, bancos de jardim, indiferente à hora, ao lugar ou teste- de Marie Louise, e que o horário mantivesse Monsieur Eugène nas
munhas, Felipa era bomba ninfomaníaca a explodir das mais va- oficinas da EDF. À Felipa bastaria acenar, porque mesmo ocupada
riadas, mas todas deliciosas maneiras, usando o corpo com a pai- noutra cama, sabia-o eu por desagradável experiência, cheirando-
xão, a febre e a arte de um Paganini agarrado ao violino. -lhe a novidade largava tudo.
Num único detalhe era severa e inflexível: o rasgão do hímen es- Assim aconteceu, durou o festim a tarde inteira de um sábado
tava reservado para aquele que, virgen purísima, a levasse ao altar. de Junho, e se alguma coisa se copiou dos clássicos franceses do
No mais valia tudo: o que custa imaginar, o acrobaticamente peno- deboche, o nosso entusiasmo tinha-lhe emprestado aparências
so, refinamentos que Vénus lhe tinha ensinado, outros que ela de originalidade.
aperfeiçoara ou inventara. Tudo, sim, mas la penetración? Jamás! Foi melancólica a despedida, eu babado em demasia com os cari-
nhosos adeuses que ambas se faziam, para me aperceber das care-
*** tas do Demo, a zombar da minha ignorância das mulheres e das
coisas do mundo. Porque a partir desse dia Marie Louise foi espa-
Em razão de uma velha amizade, nesse maravilhoso tempo era çando as matinas, até que para desconsolo meu e sem adeuses
eu hóspede de Madame Gournay num esplêndido apartamento da as terminou; e Felipa sumiu, embora numa ou noutra ocasião
Rue de Naples, edifício de opulência burguesa, dotado de um me parecesse reconhecê-la na vizinhança, o que era de estranhar,
venerável ascensor hidráulico que excitava a minha doentia ima- pois o seu habitat era a longínqua Rive Gauche.

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Num único detalhe Felipa, ninfomaníaca, era
inflexível: o rasgão do hímen estava reservado para aquele que, virgen purísima, a levasse ao altar.
No mais valia tudo: o que custa imaginar, o acrobaticamente penoso, refinamentos que Vénus lhe
tinha ensinado, outros que ela aperfeiçoara ou inventara. Tudo, sim, mas la penetración? Jamás!

Sofri um período de luto e quase abstinência, encontrando algu- aberto o que parecia um incunábulo, com iluminuras que a distân-
ma, mas fraca compensação, nas raparigas que, vestidas de túni- cia não permitia distinguir.
cas, formavam um coro da Grécia antiga num documentário de
Ado Kyrou (1923-1985), no qual eu figurava de hoplita, com elmo, ***
couraça, escudo e lança na mão, envergonhado com o saiote, so-
frendo as grevas que me apertavam as pernas, tendo ainda, entre Respirei fundo, três vezes premi a campainha, mas demoravam tan-
as filmagens, de sofrer longos discursos do realizador e amigo sobre to a atender que, mal-humorado, me ia retirar, quando a porta se
temas que o fascinavam, e de que viria a tratar num livro intitula- abriu e de surpresa involuntariamente espequei, custando-me a re-
do Amour – Érotisme et cinéma. cuperar a fala para reagir ao seco «Vous desirez?» pronunciado por
uma mulher de meia-idade, sobriamente elegante, vestida de preto,
*** que pela postura e a diferença dos degraus parecia olhar-me de mui-
to alto e a modos de intimidar.
Porque se apiedasse de me ver macambúzio, talvez com remorso de Tartamudeei que vinha da parte de Marie Louise, e o que me pa-
tão impiedosamente ter deixado de me aquecer a cama, ou ainda pelo recera altivez mudou para um quase sorriso, ela dizendo que sim,
agrado de que a minha inexperiência lhe proporcionasse uma forma sabia, o aceno da mão convidando-me a entrar.
de estrelato, Marie Louise retomou as visitas, parecendo que agora o Fechou-se a porta automaticamente, acenderam-se luzes, a se-
fazia menos pelo gozo que delas tirava e me dava, do que para satis- nhora apontou uma cadeira, sentou-se ela numa poltrona, eu a olhar
fazer uma inata veia pedagógica, ou por razões que me escapavam. em volta, reparando que me encontrava no que parecia uma loja de
Foi assim que numa manhã de fraco recreio, já em pé ao lado da alfarrabista, quiçá arrumada demais para esse género de comércio.
cama, embrulhando-se no roupão com vagares de odalisca, anunciou Iniciou a madame um interrogatório sem preliminares, pedindo
sem muitos detalhes que do que eu precisava era ir de visita à Rue les papiers, assegurando-se que a minha cara era a do passaporte,
d’Anvers. querendo saber como se pronunciava o nome, onde morava, o que
Pouco mais disse, mas malgrado a curiosidade eu tinha de fazer fazia na vida, se tirante Marie Louise poderia nomear alguém como
pela vida, suando dias e às vezes noites numa cabine a legendar referência.
filmes. Achei melhor fazer de desprotegido, respondi que não, chegara ha-
Demorou a que me aventurasse, até que uma tarde de sábado me via pouco, mas Marie Louise confirmaria a morada e as minhas boas
pus a caminho, rememorando o que Marie Louise explicara: não era intenções.
bem uma livraria, como estava na tabuleta, antes uma espécie de loja Pareceu-me que se divertia com ver-me gaguejar, e terminou
de livros antigos, e de um lado havia um retroseiro, no outro vendiam dizendo que voltasse, marcou-me o dia e a hora, falaríamos mais
pássaros e gaiolas. de espaço, e então explicaria o que necessitasse de ser explicado.
Lá chegado demorei a descobrir a Rue d’Anvers1, andei às voltas
pelo Square d’Anvers, sem contudo estranhar, mais vezes tinha no- ***
tado que Marie Louise mostrava pouco interesse por detalhes e era
avessa a explicações, certa de que as coisas sempre se arranjavam, Às gargalhadas, mas sem detalhes nem explicação, Marie Louise ti-
a bonomia do seu sorriso bastando para desculpa. nha afirmado «Ça va te faire un trou!», sugerindo que uma visita à Rue
Espreitei a loja dos pássaros e das gaiolas, confirmou-se a retrosa- d’Anvers abriria um rombo na minha mais que modesta carteira.
ria, e de facto assim era, flanqueavam a curiosa montra que tinha algo Valeria a pena? Fingia pôr-me seriamente a pergunta, dar-me ares
de um proscénio: orlada de veludo escuro, deixava apenas o espaço de sensatez, mas por dentro tudo eram tremuras de febre, desejo, ur-
onde, sobre uma peanha, ladeado por um grosso círio de igreja, se via gência de descobrir, o frenesim aumentando à medida que recon-

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Rue d’Anvers

tava as notas, sem auspício de que se repetisse nos meus poucos ***
francos o milagre da multiplicação dos pães.
A saleta devia ser insonorizada, porque embora a mulher pareces-
*** se gritar e agitar-se nada se ouvia, do mesmo modo que uma ou ou-
tra palavra do homem se adivinhava apenas pelo mexer dos lábios.
Estou de novo sentado na mesma cadeira, e Madame Françoise, Nua, estendida no que parecia uma maca excepcionalmente lar-
o nome que disse ao apertar-me a mão, ainda veste de preto, mas ga, era mulher de forte postura, pernas musculadas como de bai-
la petite robe noire foi trocada pelo que tem alguma semelhança com larina, seios firmes. Por estar de pés voltados para mim via-lhe mal
um uniforme militar, preto também, perfeito no corte, de um cabe- o rosto, mas distinguia os pulsos e os tornozelos presos à maca por
dal que mesmo sem tocar se lhe adivinha a macieza e a qualidade. correias de cabedal.
Faço o que posso para esconder o que me vai na cabeça, quero De pernas abertas ao que me pareceu o limite possível, tinha
fingir de atilado, porém, mesmo espaçadamente servidas, as suas espetadas na vulva, nas coxas e no ventre umas quantas agulhas
palavras desatinam-me. Baixo involuntariamente os olhos, sofro longas e finíssimas, em que o homem, um sexagenário de barba
com a minha parolice, tenho o sentimento de que, com gentileza e grisalha, bata branca e estetoscópio ao pescoço, por vezes mexia
suave ironia, recostada na poltrona como para aumentar a distân- com uma mão, enquanto com o polegar da outra pressionava aqui
cia que nos separa, Madame Françoise me vê mais nu do que quan- e ali, ora nas virilhas, ora na sola dos pés, numa carótida, na outra,
do vim ao mundo. às vezes parecendo desenhar com a unha.
A primeira paulada foi a da franqueza: desculpasse, mas com- O corpo contorcia-se em espasmos, o homem voltou-se, sorrin-
preendesse, eu nada tinha a procurar ali, nem era lugar que me do a alguém cuja sombra começava a desenhar-se no soalho, nes-
conviesse. Aceitara receber-me por favor a Marie Louise, que co- se mesmo momento a imagem desapareceu no «periscópio», a por-
nhecia há muito e lhe merecia enorme considération por razões ta do cubículo abriu-se, e Madame Françoise, acenando que me
com que eu não tinha a ver. Fez ainda uma ou outra observação despachasse, levou-me por um corredor muito estreito, descemos
sobre a juventude, o risco que corria aquele que, apressado, falto outra escadaria e, juntando um irónico «Au revoir!» ao aperto
de preparo, sem os meios nem as qualidades precisas, queria de mão, saiu da minha vida.
frequentar certos ambientes.
Atordoado, engolindo em seco, pois longe estava de esperar o ***
sermão, tive bom senso, travei os comentários patetas. E como ela se
erguia, dizendo que teríamos de nos despachar porque aguardava Desnorteado, sonâmbulo, mal dando pelo burburinho do boule-
visitas, levantei-me também, fiz de conta estar habituado a ver uma vard ou em que direcção caminhava, tomou-me o sentimento me-
enorme estante girar silenciosamente, dando acesso a uma escada. lancólico de que deveria aceitar a minha ignorância e, com remor-
so, envergonhar-me de por ter lido muito, julgar que muito
*** compreendia, que seriam escassas as ocasiões de novidade.
Magoava-me, sobretudo, a consciência do engano parvo de, por
Subiu ela ligeira, eu inseguro, fitando os degraus, desconhecendo estar em Paris e inesperadamente viver o que para outros seriam
se me impedia de olhar por receio, ou supunha esconder assim aventuras banais, supor que tinha chegado aonde queria, julgar-
o meu embaraço. Um patamar deu-me ideia de que entrávamos me arrivé.
noutro prédio, e Madame Françoise, sem uma palavra, ia abrindo
e fechando portas, mal me dando tempo a reter o que havia por ali: ***
azorragues, cavaletes, uma mesa de cirurgia, cordas e peças de fer-
ro de estranha forma, máscaras de veludo, de madeira, de metal, Esperei, desesperei, as mais das vezes ao entrar ou sair do prédio
uma parede toda de espelho como nas escolas de dança, grilhetas, dava com o «Je reviens!» na porta da loge, ou uma Marie Louise
uma forca, algemas, uma cruz de madeira negra, um inesperado apressada, a piscadela de olho a dizer que me tinha no pensa-
e luxuoso quarto de banho. mento.
Pondo os dedos nos lábios, fez-me sinal que entrasse num cubí- E de facto uma manhã surpreendeu-me com a visita, curiosa
culo que pouco mais era que um armário, indicou o que se asseme- de ouvir, mas sentada na borda da cama, dando a entender que
lhava a um periscópio, e saiu encostando silenciosamente a porta. não haveria friandises.

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Azorragues, cavaletes, uma mesa de cirurgia,
cordas e peças de ferro de estranha forma, máscaras de veludo, de madeira, de metal, uma parede
toda de espelho como nas escolas de dança, grilhetas, uma forca, algemas, uma cruz de madeira
negra, um inesperado e luxuoso quarto de banho.
– Racconte! ***
Contei a secura de Madame Françoise, o pouco que tinha visto,
cauteloso em guardar para mim os sentimentos com que de lá saí- A meio da confidência já eu esquecera o papel de investigador, es-
ra, mas o interesse de Marie Louise parecia distante, só se entu- forçando-me por disfarçar o desnorte e, tanto quanto era capaz, con-
siasmou quando falei da mulher com as agulhas. seguir uma expressão que não traísse em demasia o embaraço que
– Ah! Radko! É médico. Veio da Bulgária. Usa uma técnica me causava a ignorância – teria de procurar «acupuncture», «em-
de acupunctura para estimular orgasmos e dizem que foi ele que paler», «ondinisme», no Petit Larousse – nem quanto me doeria se
a descobriu. Faz rios de dinheiro. Marie Louise se arrependesse de me ter tomado para seu fugaz
De momento, porém, só Marie Louise me interessava, queria ou- brinquedo.
vir mais, tudo, não ia deixar que escapasse sem satisfazer a minha Mas o destino ata e desata os laços com que julgamos poder pren-
curiosidade e, segurando-lhe o pulso, que ela era ligeira, imprevi- der os outros. Estava nos astros que ao despedir-se sem mais pala-
sível, tomei ares de Maigret: vras, apenas um sorriso e um beijo, Marie Louise me deixaria ali
– Mas tu? com a parecença de um aprendiz de boxeur que, inexperiente peso-
Em vez de responder deitou-se ao meu lado, toda carícias e -pluma, se atreve a subir ao ringue, leva um directo e fica KO.
doçura, beijinhos, fintas, talvez descrente de que eu pudesse ser
tão teimoso, levasse a sério o interrogatório e a encarnação do ***
comissário.
A sequência foi corriqueira: porque o aluguer aumentava e os ga-
*** nhos ameaçavam diminuir, vi-me obrigado a procurar outro aloja-
mento, o que no Paris do tempo se assemelhava a querer descobrir
A Marie Louise de olhar doce, carne macia, pele muito branca, ca- a clássica agulha num palheiro.
belo muito loiro, uma festa na cama, era a que eu conhecia. Mas ha- Incrível e feliz acaso, ainda por cima como que ao preço da chu-
via a concierge prestimosa e cordial; a dedicada esposa de Monsieur va, fui encontrá-lo na Rue de Vaugirard.
Eugène; a cozinheira com fama no prédio; a rapariga que gostava Pobre de mim, que já tinha assinado o contrato – e por um ano –
de ópera e com uma bela voz de soprano acompanhava as árias do quando dei conta das razões da pechincha: ficava paredes meias
rádio; a filha dedicada que ao mais pequeno alarme corria a visitar com o gigantesco matadouro de Vaugirard, onde diariamente
os pais em Lille. se abatiam centenas de cavalos.
De certeza havia outras, mas finalmente, arrastando, chegámos Os pobres animais, pressentindo a morte, relinchavam noite
à que eu estava longe de imaginar: a Maria Louise maîtresse no es- e dia um soturno augúrio2.
tabelecimento da Rue d’Anvers. E que maîtresse. Muito procura- E eu, torturado pela insónia, pelas recordações de Marie Louise
da pela competência em dominar e ferir, inventiva no uso do cava- e da Rue d’Anvers, perguntava-me se estaria condenado aos sonhos
lo-marinho, especialista de arriscadas técnicas do afogamento, da ingenuidade, ou se havia esperança de que um dia algo com-
orgulhosa de assim provocar ejaculações e orgasmos que faziam preendesse das conjunções do prazer com o perigo, o pecado
concorrência aos de Radko. e a paixão.
Sorriu ao dar conta do passo em falso, aceitando que de verdade,
tal como o búlgaro, a respeito de paga não tinha razões de queixa, 1
A Rue d’Anvers desapareceu nos anos 70, anexada pela ampliação
fora ser Madame Françoise, além de sua amante, patronne de in- do Square d’Anvers.
vulgar generosidade. 2
Esse famoso e sinistro estabelecimento encerraria definitivamente em
1978. O espaço é agora ocupado pelo Parque Georges Brassens.

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ANATOMIA DE UM CLÁSSICO LEONOR BALDAQUE

A GRANDE SAÚDE DOS


GRANDES DOENTES
sobre Katherine Mansfield

primeira vez que li Mansfield, foi Prelude, com aquele seu iní- raro nela – ela que sempre trabalhou, e cada vez mais, contra as do-

A cio estonteante e indomado. Impressionou-me a indocilidade,


essa ausência de «feminino» – que aceita, se submete. A indo-
cilidade era quase o mistério em Mansfield: a azáfama da primeira
res, e apesar das inúmeras deslocações por motivos de saúde, nunca
tendo tempo verdadeiramente para se lançar numa empresa maior,
como a de um romance. Mas o conto era, além disso, com toda a evi-
cena, as palavras da infância, o entrelaçar das gerações, o enleio da pa- dência, uma forma que lhe convinha, uma forma difícil de dominar,
lavra, a facilidade com que os personagens se deslocavam, como se e que ela tanto estudara e admirara em Tchékhov. Em «At the Bay»
não fossem movidos por um esforço físico mas por um sopro que os Mansfield faz falar a infância com essa linguagem de que apenas es-
levava – e essa «facilidade» espelhava-se no próprio trabalho de escri- critores como ela ou Victor Hugo detêm ainda adultos o segredo, é um
ta. Quanto era evidente que se tratava da escrita de uma mulher, que dos aspetos mais fortes em Mansfield. Há o casal que partilha uma es-
se retira a um canto para observar, armazenar em silêncio. E pensei: pécie de amor, e mais do que a evasão através dos sonhos, há o des-
«Como teve uma vida fácil, vê-se que teve uma vida tão fácil…» perdício de uma vida com a desculpa dos sonhos que nunca se hão de
Mansfield foi um encontro – une rencontre, diria Deleuze. (Como realizar. Há um dia na praia, com esse amor pela beleza do corpo, e
é que Deleuze, que tanto amou Virginia Woolf, nunca encontrou do corpo em movimento, que tanto caracteriza Mansfield; a juventude
Mansfield?) Ninguém melhor que ele falou dessa grande santé dos à qual se contrapõe a experiência manipuladora da idade adulta. E es-
homens doentes – Proust, Nietzche, Mansfield, escreveram todos a sas ligações incompreensíveis entre seres que apenas o interesse pode
partir de uma grande agonia. «Não há um limite para o sofrimento juntar. O sublime e o sórdido, o gratuito e o mercantil, o potencial da
humano», escreve Mansfield numa página de diário. «Quando uma força, e a implacável ausência de ânimo para «fazer algo pela sua vida»:
pessoa pensa agora toquei o fundo do mar, agora não posso descer «fraco, fraco, nenhuma força interior, nenhuma âncora, nenhum prin-
mais baixo –uma pessoa desce mais baixo ainda. E assim é sempre cípio que me guie», diz sobre si o personagem Jonathan Trout. Em
[…] o sofrimento não tem confins – é a eternidade. […] O que se deve Mansfield (que atravessara a Primeira Guerra), o impensável insinua-
fazer ? Não podemos ultrapassar: é falso. Devemo-nos submeter. Não -se lentamente, até que deflagra como uma sua evidência intolerável;
resistir. Receber. Ficar devastado. Aceitar completamente – fazer com é um mundo onde nunca nenhum evento «dá o tom». Um encontro
que se torne parte da vida.» feliz não é presságio de um final feliz. Aliás em Mansfield qualquer
«At the Bay» é talvez um dos melhores dos contos de Mansfield. Não momento de leveza é de mau agouro. As aparências são em geral mui-
é muito representativo, na medida em que é bastante longo, o que é to lisas, por trás delas esconde-se a trama de cada história. Os pores

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do sol, os beijos arrebatados, os vestidos de luxo, os automóveis e en-
Virginia Woolf, que tanto invejara a sua amiga
tradas de casino, lembram por vezes Fitzgerald, mas vão muito mais
longe, muito mais depressa – há uma miséria que Fitzgerald não atin- Mansfield (a única escritora viva que ela invejara),
ge. Mansfield não teme dececionar, Fitzgerald permanece sempre um dizia que os seus contos cheiravam a perfume
sedutor, e com a decadência procura seduzir ainda. Mansfield não en-
tra nesse jogo de mulheres. Há em Mansfield muitos maus encon- barato.É um dos seus maiores talentos, essa
tros, e a questão será sempre a de antecipar se sim ou não o persona- capacidade de dar o cheiro do perfume barato.
gem será capaz de ultrapassar esse mau encontro. Há encontros que
marcam vidas inteiras em Mansfield. Por vezes parece demais, que
uma vida se jogue assim, num só encontro. Mas a vida é talvez isso
– e a própria vida de Mansfield era esse constante negociar o futuro,
através de certas escolhas, no seio de um conjunto restrito de pessoas
que formavam o seu círculo de frequentações – acima do qual trona-
va o sinistro Murry. (Quem conhece essa obra-prima que são as me-
mórias de Leonard Woolf, não terá esquecido o retrato de Murry.)
Como se cada laço não fosse senão uma aparência de vínculo, e como
se o único vínculo verdadeiro fosse apenas aquele possível consigo
mesmo – e graças a esta possiblidade de união consigo mesmo, e com
a Natureza, não se pode colocar Mansfield por entre os escritores pes-
simistas. O indivíduo encontra-se face a uma sociedade que no fundo
pede (já) ao seu coração um desinvestimento de todas as tarefas so-
ciais, de tudo o que o ponha em riscos de criar um laço social. Os se-

© DR
res que secretamente se sacrificam por alguém, são sempre perde-
dores. Mas também o são as jovem raparigas que descem de um mentos e das sensações, que gozam da sua simples existência, e que
yacht, e que não foram contidas pelo amor dos pais, e que inevitavel- nesse prazer secreto da sua realidade saciam todas as suas ambi-
mente não encontrarão nunca prazer algum durante a vida inteira, ções de luxo, de magnificência, e de abundância, são a grande con-
apesar da beleza, do à vontade e da riqueza. A capacidade de sonhar, quista humana e literária desta imensa escritora «sentimental». Nis-
e o sonho como espaço legítimo, e fértil, nestes tempos modernos em to, ela lembra Proust, mas o caminho para chegar às sensações não
que vive Mansfiled, é insensivelmente tirado desse pedestal onde fora podia ser mais distinto. Em Mansfield, uma escrita que se limita ao
posto por séculos de teatro e poesia ocidental, destronada em nome essencial, sem desvios, apartes, floreados, quedas de ritmo – uma
de uma nova sociedade, produtora de realidades. lança que se espeta, como num quadro de Uccello, na boca em fogo
Virginia Woolf, que tanto invejara a sua amiga Mansfield (a úni- de um dragão. Proust, claro, é todo o contrário: o tempo, os divaga-
ca escritora viva que ela invejara), dizia que os seus contos cheira- res, os vagueares, as frases infinitamente densas e infinitas, uma
vam a perfume barato. E cheiravam, por vezes cheiravam; mas perda de si mesmo nos recantos envolventes das recordações. Mans-
Mansfield, contrariamente a Woolf, apanhou muitos comboios de field escreve um presente, era o que ela sentia que a vida lhe dava,
terceira classe, e aguardou em muitas salas de espera, e frequentou esse dia a dia, enfeitiçada às vezes por essas impressões de sereni-
muitas pensões, muitos pequenos restaurantes, onde certamente dade, essa dissociação entre o mundo vivido e o mundo criado pela
cheirava, por entre outros cheiros desagradáveis, a perfume bara- mente do artista, e que lhe permite simplesmente viver, levar a vida
to. É um dos seus maiores talentos, essa capacidade de dar o cheiro adiante, como se diz (é arte apenas isto: o que dá vida). Em «At The
do perfume barato. Mas no meio de Virginia e Katherine (que se Bay», o infeliz Jonathan Trout, que tanto lamenta a sua fraqueza,
cruzavam nessa Inglaterra erudita), não se podia falar seriamente, faz-nos o presente inestimável de um desses momentos : «Que be-
até gravemente, e com respeito, do cheiro do perfume barato. O per- leza! Aqui vem outra onda! Assim é que se devia viver – descuida-
fume barato era o apanágio dos romances baratos. Aí residia a lei- damente, imprudentemente, gastando-nos. Pôs-se de pé e começou
tura tendenciosa de Woolf. Há muito de barato no mundo de Mans- a caminhar através das ondas até à costa, apoiando firmemente os
field. Ela que vinha de um meio ultraprivilegiado neozelandês, e que seus pés na areia fina e enrugada. Levar as coisas com leveza, não
o abandonara para viver em Inglaterra, contra a vontade da sua fa- lutar contra os fluxos e refluxos da vida, mas ceder-lhes – isso é que
mília, aprendera brutalmente o que era o luxo, o necessário, o mí- se devia fazer. Era esta tensão que estava errada. Viver – viver! E a
nimo necessário, e a sua aflitiva privação. A descrição dos grandes manhã perfeita, tão fresca e luminosa, apanhando sol, como que
contrastes da existência, e dessa vida secreta e luxuriante dos senti- rindo da sua própria beleza, parecia sussurrar “porque não?”.»

LER primavera 2016 59


Jorge Listopad

TUDO NÃO PASSA


DE LITERATURA
A sua dimensão de escritor talvez não seja tão evidente em Portugal
por nunca ter aceitado traduzir os poemas que lhe trouxeram prestígio
na terra onde nasceu e cresceu – e em países como a Alemanha. Quem
for a Praga encontrá-los-á em qualquer livraria. Só por uma vez um
dos seus poemas, cheio de referências à sua infância e aos seus primei-
ros lugares, foi lido por cá em público. Faltam os outros. Talvez um dia.

Texto de NUNO COSTA SANTOS

Jorge Listopad é um mistério. Aliás, Jiří Synek diversas, da encenação à realização, passando pelo ensino na área
(nome com que foi registado depois do nascimento) é um misté- do teatro e pela crítica – são dados que podem ser confirmados
rio. Um enigma como autor e como pessoa. Podia ser uma per- numa pesquisa virtual, na qual se podem também confirmar os
sonagem sua. A sua biografia é tão intrigante e traz consigo tantos múltiplos reconhecimentos públicos. Vamos aos livros. Alguns,
espaços vazios, ainda não contados, que é um atrevimento dese- pelo menos.
nhá-la por completo. Nascido em Praga em 26 de novembro de «Gosto de trabalhar no efémero.» A frase é sua e poderá justificar
1921, Listopad («novembro» em checo) passou pela resistência aos que as suas obras sejam territórios conhecidos por poucos – ao con-
nazis, pelo exílio em França, pelo conhecimento travado com per- trário dos espetáculos que encenou, cheios e vibrantes. O relativo des-
sonalidades como Jean-Paul Sartre, Albert Camus. Edgar Morin, conhecimento é imerecido. Contêm uma escrita rara que não tem
Marcel Marceau, Tristan Tzara e Samuel Beckett. E pela vinda para equiparação com a de nenhum autor que escreva em português.
© DR

Portugal motivado pelo amor por uma mulher. O resto – vocações Agustina Bessa- Luís, com quem conviveu no Porto (primeira cidade

60 primavera 2016 LER


Não passa tudo de literatura

lusa onde viveu), sublinhou que Listopad, não sendo um latino, é «es- Aqui e ali, textos sobre o gesto da escrita. Não com intenção de
sencialmente um eslavo com qualquer coisa de nebuloso». Uma de- chegar a conclusões. Especulando com aparente segurança. Como
finição que combina bem com a sua prosa, dispersa por livros vários, acontece num texto pequeno de Contos Carcomidos: «Só a escrever
de diferentes editoras, e que um dia poderá ser reunida como mere- acontecem coisas. Escrevo. Entra nesta linha o cão, mas foge, já fu-
ce. Diogo Madredeus, seu editor na Cavalo de Ferro, assume que seria giu, alguém o chamou. Escrevo. [...] É difícil explicar a uma árvore
benéfico olhar para a totalidade dos seus escritos e organizá-los – des- que apenas escrevo e não viajo [...].» Ou no conto-título de Reming-
de a crítica de teatro do século XX português até às crónicas do «Coe- ton: «Escrever. Escrever sem sentido. Fazer bolas de sabão. Deixar
lhinho» (do Jornal de Letras, publicação na qual escreveu desde a sua andar os dedos sobre as teclas do piano que não toca, mergulhado
fundação), artigos ligeiros feitos de um estilo subtil e inimitável. um dia no Atlântico [...].»
Tristão ou A Traição de Um Intelectual, livro de 1960, reeditado em Noutras vezes há como que uma relação mística com o gesto de
Fruta Tocada por Falta de Jardineiro (Quasi, 2003), começa deste escrever. Como nestas frases que inauguram «Bolinhos de Ronda»,
modo: «Não tenhamos receio das velhas lendas, pois a vida é mais ve- sexto conto de Remington: «Uma folha de papel branco é hipócrita.
lha que todas elas.» Oscila entre o ensaio, a narrativa e a poesia em pro- Finge. Nela nunca se inscreve o que se quer dizer. Tudo está pré-es-
sa. Nota-se um gosto pelo aforismo, pela frase inspirada. E pela refle- crito como sempre foi e será.» Em «Pedágio» quase que utiliza uma
xão à medida que se vai desenrolando um ponto de vista sobre uma linguagem que se poderia dizer cabalística, ligada ao oculto: «Es-
história antiga: «Quantos significados a morte não pode ter! O nome crevo respeitosamente o que sei de novo e, quando acabar, mandá-
de Tristão acorda em nós um sentimento de angústia transparente.» lo-ei pelo Mensageiro a todos os filhos do coração.» Redige «com ou-
Perante a morte de Tristão e Isolda, «experimentamos uma sensação tra escrita, mais leve, menos fria». E remata fazendo referência
de pureza cristalina». E faz-se um aviso importante sobre a motivação a um destinatário com privilégios: «Só o iniciado a decifra.»
da arte: «E não acrediteis que as amoreiras uma noite tenham florido Essa convivência entre ironia e transcendência faz parte destes
na campa de Tristão e Isolda. Não passa tudo de literatura.» labirintos. Como se a própria vida fosse isso: contingência e abso-
Não passa tudo de literatura. Eis uma máxima que cabe bem no luto e competisse ao escritor tentar decifrá-la. Em viagem constan-
modo como o checo naturalizado português em 1962, pai de seis fi- te. Na literatura de Jorge Listopad os desvios geográficos são per-
lhos, todos de olhos azuis, e casado com Helena Simões (há muito manentes. Num momento estamos em Linda-a-Velha (Biografia
ligada ao teatro – diretora de cena da Gulbenkian, é crítica teatral há de Cristal, Relógio d´Água, 1992) e noutro, logo a seguir, estamos
vários anos) lida com as histórias que escreve – e que protagonizou. em Zurique. «Toda a literatura é viagem.»
Há sempre um género de vivência e literatura como incógnita, entre Tendo percorrido o País acompanhado pelo etnólogo Jorge Dias,
o verdadeiro e o inventado, entre a biografia dos factos e «as amorei- fez anotações mentais quase antropólógicas e comportamentais,
ras». Entre episódios vivenciados e criados. Assumiu no seu último nas quais refere uma «arquitetura de bruma» e o «Mercedes do emi-
livro de contos (Cavalo de Ferro, 2013) que o seu interesse vai para grante» que passou «velozmente». «Mais uma hora de caminho do
essa «proposta entre o real e a ficção». É esta síntese que o atrai «tre- descer abrupto, limpo pedra a pedra, continuo entre rochas, amo-
mendamente» e que de certo modo o frustra quando não é praticada. ras imemoriais e fetos; e por fim entro na tenda onde leio o Jornal
Uma das especialidades listopadianas está numa espécie de «ilu- de Notícias da semana passada enquanto espero o transporte.»
minações» ou «flashes», textos curtos, condizentes com uma escri- A calmaria engana. «Nada estremece mas algo vai doer.»
ta checa que consegue dizer em poucas palavras aquilo que é im- Há viagens comprovadamente reais como aquela que foi consa-
possível exprimir numa língua como o português. Deixou pistas grada em Outubro-Oriente (ASA, 1992), livro que assina com Lagoa
sobre os problemas do relacionamento entre o checo e o português: Henriques. Mas também há lugares que se confundem como num
«O melhor é ir traduzindo o poema do Eugénio. Que Rosa abria? sonho. Em «Estrangeiro Procura Estrangeiro» uma primeira pes-
Rosa ou ardor? Etc... Porém, em checo “rosa” é delgada, pálida, soa (que se pode confundir com o autor) afirma ter vivido em Paris,
raramente quente, talvez tépida.» em Temesvár, na ilha da Jutlândia e por fim em Boston. Verda-
Em Contos Carcomidos reflete justamente na questão das pala- de, ilusão? «La Vida es Sueño», diz o texto que encenou na Torre de
vras: «As palavras compridas (exceto a palavra “palavra” e a palavra Belém em 1988 com o Teatro da Universidade Técnica de Lisboa.
“comprida”) são menos utilizadas do que as palavras curtas. As pa- Deixa-se levar por geografias que nunca pisou: «Mas onde estou
lavras compridas são, em geral, abstratas, e as palavras curtas são eu? Afinal onde estou, para me ver assim, com um pulôver azul, tão
concretas exceto a palavra “concreta” que é de resto abstrata.» Tudo azul que ilumina o declínio do dia?» Será tudo uma memória?
é jogo. Não passa tudo de literatura. – pergunta-se. «De facto, esse pulôver ainda o tenho, mas não re-

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conheço a bicicleta.» E Baku? – questiona.
«Nunca fui a esse ponto lírico e duro, situa- «Procuro o livro. O livro que me falta. Sei que existe. Quero e
do na margem do mar Negro.» E há refe- tenho de o encontrar sozinho. [...] Quando o encontrar, e sei
rências recorrentes a florestas e bosques, es- que um dia isso obviamente acontecerá, construirei sobre
conderijos possíveis para quem tanto
ele a minha casa, a minha justiça não só minha, a minha
calcorreou em busca de um abrigo contra
a agressão brutal e traumática. revelação definitiva e talvez circular, e poderei então morrer,
Claro que o seu passado biográfico (qua- as flores secas do tabaco semeadas entre as páginas.»
se inimaginável pela sua violência) vai sen-
do evocado. Em «Biografia de Cristal» apon- procura de Otelo Saraiva de Carvalho. E, em Delphine, Janine (Remington), Bárbara,
ta-se um dedo «contra a fome do mundo e «Ordenamento do Território», criou um qua- Maria da Piedade, Dora, Teresa, Eva, Tâ-
contra Hitler, um dedo contra a desgraça, se encontro entre Fernando Pessoa e Franz mara (Deslizamento). E há momentos
um dedo contra as serpentes». Noutro texto Kafka numa modesta pensão de Merano (Al- amorosos, muitas vezes fugazes, sem dei-
parece confessar o infortúnio: «Vivi como pes). Em «Casaco de Stravinsky» sonha que xarem de ser significativos. A procura é
um animal acossado: com documentos fal- está no aeroporto da Portela à espera do com- constante: de paixões, de perfumes, de ape-
sos, mal fabricados, todas as noites tinha de positor. Conta também, novamente em Re- teências, de livros.
procurar asilo.» Nos aposentos de amigos mington, que terá sido Jean-Paul Sartre a ofe- Em «Quatro Estações e Outono» refere-se
com medo, «em casa de desconhecidos que recer-lhe, nos bons anos de Paris, uma aos milhares de livros que leu e à insatisfa-
acreditavam que perdera o último com- máquina de escrever ao vê-lo esboçar os seus ção de não ter encontrado ainda o livro.
boio», «nas caves entre batatas e carvão», em pedaços de prosa em guardanapos. Se tives- «Procuro o livro. O livro que me falta. Sei
sótãos, «no chão de jornais, em bordéis [...]». se de voltar atrás no tempo (perguntou-lhe que existe. Não pergunto ao livreiro se o
Os últimos três anos de guerra, narra, foram um dia o seu atual editor), Listopad regres- tem. Quero e tenho de o encontrar sozinho.
passados nesta clandestinidade. saria a Paris, logo a seguir à libertação, onde Não sei o título em nenhuma língua. [...]
Mas mesmo a figura maestra que viti- se ia comprar chocolate nas farmácias, onde Quando o encontrar, e sei que um dia isso
mou o seu povo e o seu pai (um dentista ninguém tinha dinheiro e «toda a gente era obviamente acontecerá, construirei sobre
que morreu numa prisão em Dresden) é genuinamente feliz». ele a minha casa, a minha justiça não só mi-
objeto de um sentido de humor só possível Também há na sua literatura considera- nha, a minha revelação definitiva e talvez
a quem conseguiu conquistar, apesar de ções sobre teatro, área em que, é mais do que circular, e poderei então morrer, as flores se-
todo o sofrimento, uma distância suficien- sabido, se afirmou como encenador e como cas do tabaco semeadas entre as páginas.»
te. Acontece na abertura de Remington. docente (presidiu à Comissão Instaladora da Em Secos e Molhados (Quasi, 1982) reve-
Mahler, pressionado pela mulher, Alma, ar- Escola Superior de Teatro e Cinema), tendo la uma dimensão fundamental da sua exis-
ranjou uma entrada para a estreia de Salo- marcado, entre muitos, figuras como Carlos tência jornalística: as anotações sobre os tó-
mé, de Richard Strauss, a Hitler (um ho- J. Pessoa, do Teatro da Garagem, que o cha- picos mais díspares uns terrenos outros
mem de mochila de viagem cheia de pão ma mestre. «Para Uma Encenação de Ham- culturais. Fez notas sobre a Abelha Maia,
com manteiga e queijo), que depois ficou let», inserido em «Pedágio», é uma delas. Mas o Super-Homem, um livro de João Medina,
sentado num banco rebatível. «Uma vez há mais, disseminadas. Uma referência im- Tom Stoppard («ainda não produzido em
sentado começou a pensar se ia ficar nesse portante ao primeiro espetáculo que ence- nenhum Nacional nosso»), Fernando Pes-
lugar humilhante, se deveria sair ainda an- nou em Praga, ainda adolescente: Albergue soa e o seu alegado fascismo, Walt ou O Frio
tes do início da abertura de Salomé, ou, pelo Noturno, de Máximo Górki. Onde é que o di- e o Quente, de Fernando Assis Pacheco (lido
contrário, se sairia provocatoriamente rigiu? Debaixo de uma ponte. Começou aí a na praia), Leoš Janácek (um dos seus com-
antes do fim.» Segundo diz o narrador do afirmar-se a sua apetência por um teatro fora positores preferidos), a Casa da Comédia e
conto, Alma e Mahler foram os causadores dos espaços convencionalmente teatrais. as suas metamorfoses, Fernando Namora,
dos «primeiros laivos de antissemitismo de Foi homem de relações e casamentos vá- Joaquim Paço d’Arcos, Eduarda Dionísio,
um tal Adolf Hitler». rios, de charmes distribuídos. Talvexz seja um estreante António Lobo Antunes («é ób-
Noutro conto de Remington, «Albatroz», por isso que passeiem muitas mulheres nos vio ter de se esperar pelo segundo livro»),
conta que Graham Greene veio a Portugal à seus textos. Lili, Gina Lucchini, Solange, Ruben A., os «apanhados» do Tal & Qual.

LER primavera 2016 63


Não passa tudo de literatura

E uma lembrança de Boris Vian, que afirma ter conhecido no final M. Tavares alude a um aspeto decisivo: ele «olha para o mundo
dos anos 40 na «aldeia» chamada St. Germain-des-Près. Recorda- e não grita nem elabora um discurso; apenas sorri».
ção a propósito de que circunstância? Do facto de o Grupo 4 ter en- Em «Tédio Português» escreve um diálogo revelador deste hu-
cenado O Chá dos Generais. Há mais: o Tchékhov contista, Mário- mor tranquilo, sem acinte. Um excerto:
-Henrique Leiria, A Fome de Knut Hamsun (a quem perdoa o «O Sr. Dr. Juiz perguntou-me: – Que fez no dia 25 de novembro?
colaboracionismo, já em fase caquética, com os hitlerianos). Gran- – Trabalhei.
de parte dos «assuntos» são amavelmente abordados, sem deixarem – Em quê?
de ser, aqui e ali, objeto de observações críticas tão diretas como – Na montagem dum filme.
serenas, feitas sem alarde. – Dum filme? Qual era o assunto?
Já se falou do humor. É um humor distante da sátira, género pre- – Não tinha propriamente assunto. [...]»
dominante em Portugal – um escárnio que nos chega de Gil Vicen- Jorge Listopad é um dos estrangeiros mais portugueses da nossa
te, sempre disponível para atacar «os poderes». O seu humor não se cultura. Mas a sua nacionalidade não se restringe, é difusa. Regres-
apresenta como se constituído contra nada nem ninguém. Madre- semos a Tristão ou A Traição de Um Intelectual, para arriscar uma
deus classifica-o como sendo de «desapego e de leveza». Gonçalo retrato possível seu nestas palavras: «“Sou um estrangeiro” – disse

PEDRA um certo Brasil. Bem-vindos sejam os vales a que se chamam vere-


das. As veredas são um mistério escondido e sempre presente, tão
Não há nenhuma pedra que se pareça com outra. E uma pedra sig- nosso, tão fino, tão subtil, diria, tão misterioso (se a palavra miste-
nifica alguma coisa mais do que ter sido encontrada numa estrada. rioso se pudesse dizer em literatura) como as uvas de castas dife-
Tem a sua estrutura, a sua força, o seu princípio, mas não tem fim. rentes arrancadas à natureza, belas falsificadas que nos pertencem
É de uma outra natureza, mas é a própria natureza que por vezes por certo direito num domicílio que é ou podia ser a natureza. São
imita essas belezas que se encontram, tal como, por exemplo, uma outros esconderijos, se assim se pode dizer, as veredas, lindíssima
pera que se come, como se estivesse pintada e pudesse eventual- visão de árvores virgens que Guimarães Rosa soube assimilar numa
mente mais tarde ser comida e assumida no seu todo com uma for- verdadeira obra, leve mas ponderada, de um Brasil que somos nós.
ma irregular fantasmagórica e ao mesmo tempo amiga. Como é o Há uma mitologia das veredas que desenham quer a natureza quer
sumo dessas coisas que nos pertencem? Não se pense que a natu- uma espécie de esconderijo, uma ode à realidade.
reza não faz o que quer; utiliza a madeira de uma pintura de Dufy Pode sentir-se um arrepio, porque tudo poderia acabar por ser
que termina num grande relevo de pequena dimensão, e tudo isso nosso, essas uvas como pedrinhas falsas, outras verdadeiras, numa
é parecido com outra paisagem. Ah! Para não esquecer, tenho um palavra: beleza. Sei do que falo: os pequenos vales subtis, perfeitos,
amigo do campo que é mesmo um campo feito onde o dito faz es- como tudo o que é olhado com o sentido de olhar para belezas úni-
culturas que aprofundam a nossa visão do mundo. Neste momen- cas e feitas para nós, feitas para os outros, feitas para… sim, real-
to, continuamos sempre, nós e os outros, com luz e noite, a ouvir- mente nada nos escapa.
mos uma voz que nos lembra que estamos aqui por alguma coisa. Andamos, olhamos, somos, estamos, em vez de falar sussurra-
Oh, pedra! Como precisei de ti como se fosses o princípio do alfa- mos, tal é a nossa beleza que quase deseja ser dita com lágrimas
beto, e amanhã vamos continuar nessa loucura tranquila. a que só a beleza aspira, que só algo superior deseja. Não se pense
A natureza esconde-se por vezes nos espaços artificiais ou pro- que falamos de alguma coisa firme ou fixa, pelo contrário estamos
fundos. Quem se lembra dos caramanchões? Com pequenas flore- exatamente no ponto certo do mistério, pela sua beleza, exacto.
zinhas, pequeninas, amarelas e verdes, antes que a temporada aca- De que falaste? De tudo o que é nosso. Falo sobre o que isto é, o
be, levezinhas mas atentas a tudo o que está em volta de nós, quase que significa a beleza perfeita como as pequenas flores brancas,
aguarelas na sua essência. Alguém diria: – Que belo! Um outro di- amarelas e depois, quando o outono chega, vermelhas, inimitáveis,
ria os pássaros selvagens, e tudo é nosso. Chamam-se caramanchões como já uma vez vimos. Uma vez e para sempre.
e são passagens transparentes extraordinárias, invisíveis e visíveis,
nossas sempre. Mas há outras passagens no espaço: são passagens Janeiro 2016,
por baixo de tudo o que o que nos rodeia escondendo um Brasil ou JORGE LISTOPAD

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Tristão.» Era de facto estrangeiro, mas sen- Há notícias sobre Jorge Listopad que ain- A sua dimensão de escritor talvez não seja
tia-se acima de tudo estrangeiro – estado este da vão sair. Está a ser construída uma bi- tão evidente em Portugal por nunca ter sido
que lhe causava poucos problemas. «Acha- blioteca com o seu nome na República Che- entusiasta da ideia de se traduzir os poemas
va que ser estrangeiro era tão natural como ca, onde é uma das figuras maiores do que lhe trouxeram prestígio na terra onde
não sê-lo.». Nunca havia considerado o pro- século XX. Quando estiver construída, quem nasceu e cresceu – e em países como a Ale-
blema da terra natal e da «pátria urgente», lá for poderá encontrar obras anotadas, ma- manha. Quem for a Praga encontrá-los-á,
ou uma estranha fatalidade do destino. nuscritos, autógrafos, objetos pessoais. E vai com destaque, em qualquer livraria. Só por
Via a terra natal para além da geografia. ser editado ainda este ano o seu primeiro uma vez um dos seus poemas, «Terra É Car-
«Já amadurecido, verificou que o espírito de romance, na Cavalo de Ferro. Quando apre- vão e Limões», pleno de referências à sua in-
aventura e a coragem não passavam de par- sentou o projeto, falou a Madredeus com fância e aos seus primeiros lugares, foi lido
cela numa noção mais vasta – a pátria era uma postura de romancista nos seus pri- numa versão em português perante uma pla-
a vida.» Ao olhar os mapas despercebidos, meiros passos receoso da reação do editor. teia. Aconteceu durante Noite da Literatura
poderia dizer que onde estava «a imprudên- Acontecimento invulgar: um romancista Europeia 2014 pela voz do ator Julío Martín
cia, a vida, estava a sua pátria.» estreante depois dos 90 anos. da Fonseca. Faltam os outros. Talvez um dia.

MEETING POINT num espaço, à entrada de uma espécie de lojeca que não vendia nada.
Não se tratava de dissidentes, por assim dizer, mas de uma seita pro-
[…] testante. Assistiu a duas conferências, sempre às sextas-feiras, e pare-
Quando Ramón voltou a Cuba, ainda a coxear da perna esquerda e ceu-lhe que queriam um mundo diferente, e não só para Cuba; mais
desequilibrando, portanto, o seu andar, jurou a si próprio que nunca rigoroso, mais exato, talvez mais triste, porém justo. Também se can-
mais se interessaria por essa ação humana inspirada por uma coisa tava, mas não muito alto para não serem ouvidos. Nem sequer fazia
chamada política. Mas como seria possível ele não se interessar por po- ideia de que, a milhares de quilómetros, o avô Francisco cantava a mes-
lítica? Não tinha trabalho, e a sua velha mãe já não podia ajudá-lo. Mui- ma melodia mas com palavras de uma outra língua: a canção de Lu-
to já tinha feito. Sentou-se no chão de uma rua de um bairro frequen- tero, Ein feste Burg ist unser Gott…
tado por pedintes, e todo o dia lá ficou com o chapéu no colo, um antigo
chapéu de palha, para recolher pequenas moedas que nessa época cir- (Esta é a partitura da melodia.)
culavam. Às vezes, as horas passavam sem haver movimento, quer O meu avô cantava esta canção em língua checa, com muito entu-
dele, quer financeiro, e o chapéu continuava vazio. Semanas mais tar- siasmo, e acreditava que era um canto destinado a eleitos.
de começou a engraxar sapatos, e para isso arranjou utensílios mais
ou menos apropriados, duas graxas de cores diferentes, uma para os
sapatos castanhos e outra para o calçado mais escuro, eventualmente
para as sandálias então tão populares, chamadas fidelinas, mas que
eram de verdadeiro couro, e andava pelos cafés a oferecer os seus ser-
viços. Nem todos os cafés o deixavam entrar. Um dia, um homem re-
quereu os seus serviços. Era um homem estranho, que ao ouvir a his-
tória do engraxador, a história da sua vida, propôs-lhe que fosse com
ele até uma cidade chamada Trinidad, uma velha cidade um tanto can-
sada, que distava de Havana quase tanto como Cuba dista da Florida.
O homem explicou-lhe que frequentaria aí uma organização onde o
seu triste fado seria compreendido. Esse homem chamava-se Synod.
Diziam os habitantes dessa cidade que chegava a todas as reuniões a
cavalo, com um charuto na boca, um chapéu de abas largas usado pelo
tempo, pelo sol, pela chuva, sempre o mesmo chapéu... Ramón hesi-
tou, mas um dia tomou uma decisão e foi-se embora. Encontravam-se

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Traduzir
é inventar
o que lá está
Nos vários «círculos da escrita», Harrie Lemmens, um dos divulgadores e tradu-
tores de literatura portuguesa para neerlandês, considera que «a tradução
é um processo inventivo». Mas «apenas inventar o que lá está, ou melhor, o que já
lá está». No seu caso, inventar uma história de amor com a língua portuguesa.

Texto de HARRIE LEMMENS

uma terça-feira de manhã do ano apropriado. Um prédio cinzento de vários an- lha, paquetes russos e navios de guerra ame-

N de 1981 encontrei-me numas es-


cadas de Berlim Oriental com a
língua portuguesa. Ela era baixi-
nha, tinha os cabelos castanhos compridos e
falava alemão. Uns dias antes eu tinha atra-
dares cujas paredes tinham ainda buracos
das balas da Segunda Guerra Mundial. Ia eu
todo entusiasmado a subir para o meu futu-
ro gabinete e cruzo-me com a língua portu-
guesa. Nos anos seguintes nomes como Pes-
ricanos). A literatura está na rua, ou melhor,
está nas tabuletas com os nomes das ruas.
A Rua de Gil Vicente onde morávamos, fica
ao lado de um pequeno jardim onde assistía-
mos regularmente a farsas ao estilo medieval
vessado no Checkpoint Charlie a fronteira do soa passaram, por um desvio do alemão, representadas pelos doentes psiquiátricos
Ocidente para o Oriente num carro a abarro- a soar cada vez mais familiares aos meus da filial do Hospital Miguel Bombarda, que
tar de tralhas pessoais. Não para fugir à liber- ouvidos. Assim se criaram os alicerces para por lá vagueavam, enfiados em uniformes
dade mas por pura curiosidade. Queria ver uma relação pessoal e literária com uma de aviador. O meu primeiro contacto com
como era, na realidade, a vida por detrás da influência decisiva na minha vida futura. o mundo do Lobo Antunes.
«cortina de ferro» e tinha, por esse motivo, ar- Uns três anos mais tarde mudei-me com a Tal como tinha feito na RDA com a litera-
ranjado um emprego na capital da RDA. minha colega portuguesa da Intertext, agora tura holandesa e na Holanda com a literatu-
O meu trabalho seria traduzir para o neer- fotógrafa e tradutora literária, Ana Carvalho, ra da RDA, em Lisboa eu e a Ana andávamos
landês folhetos informativos sobre esse país para Lisboa. Mais exatamente para o Alto de editora em editora tentando «vender» a li-
comunista, aquilo a que se costuma chamar de Santo Amaro, o charmoso bairro entalado teratura alemã e holandesa. Conseguimos
de propaganda. Para a agência de traduções entre Alcântara, uma freguesia então comu- desse modo convencer, designadamente,
estatal Intertext, situada mesmo ao lado do nista, e o Tejo a correr eternamente para o a Difel, a Dom Quixote e a Quetzal a abrir as
Checkpoint Charlie na Mauerstrasse, a rua mar (pela janela via deslizar através de farra- suas portas a escritores como Hugo Claus,
do Muro. Impossível imaginar nome mais pos de nevoeiro por debaixo da ponte verme- Cees Nooteboom, Adriaan van Dis e Chris-

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©DR

toph Hein. Uma das maneiras de divulgar num caminho em linha reta. Resumindo aprendido na RDA a abordar as pessoas
e traduzir literatura estrangeira. e concluindo, foi sobretudo a literatura que e em Portugal continuei a fazê-lo.
Entretanto, fui-me apropriando da língua, me ajudou a entender a «minha nova pátria». Assim, telefonei um dia ao Lobo Antunes
ia lendo o que podia e estabelecendo contac- É claro que as minhas idas à padaria da es- dizendo-lhe que estava a ler os Cus de Judas
tos. Umas vezes por acaso, outras inspirado quina para comprar pão, a repetida confron- e o Fado Alexandrino e que gostaria de co-
nas minhas experiências passadas. Foi o que tação com funcionários públicos desconfia- nhecê-lo e ele aceitou encontrar-se comigo.
aconteceu com o dramaturgo, ator e encena- dos como manda a sua profissão, as notícias Combinámos o encontro nos magníficos jar-
dor José Peixoto, que estava a preparar nesse do mundo publicadas em jornais portugue- dins do Museu de Arte Antiga envoltos nesse
momento com a sua companhia das Caldas ses e a dependência televisiva em forma de te- dia de primavera na luz transparente e tão es-
da Rainha a encenação de Philoctete, da auto- lenovela (em que me habituei ao português pecial de Lisboa, da sua Lisboa: ninguém
ria do alemão-oriental Heiner Müller. A mi- falado no sertão nordestino pela voz do coro- como ele, nem sequer Pessoa, conseguiu até
nha admiração pelo teatro tinha começado nel Sinhozinho Malta do Roque Santeiro...). hoje retratar e descrever tão bem a cidade nos
justamente em Berlim Oriental, e por gestos e Foi como esbracejar num mar agitado em seus romances e crónicas. Estávamos em
misturando três línguas lá nos fomos enten- que a literatura serve de boia de salvação. 1986. E ainda não houvera qualquer contac-
dendo nas nossas longas conversas sobre lite- Logo de início me apercebi da importância to com editoras holandesas. Muitas mais con-
ratura e teatro. Por exemplo, sobre a peça Ah de conhecer pessoalmente os escritores que versas se seguiriam nos 30 anos entretanto
Q de Christoph Hein, traduzida pela Ana, que traduzo – se possível, é claro – porque acho decorridos.
subiu à cena um ano mais tarde. Entretanto, que o homem ou a mulher que escreve está, Saramago morava, nesse mesmo ano, ain-
já me ia bastando uma única língua para dia- quer se queira quer não, sempre presente na da por detrás da Assembleia da República.
logar: o desvio pelo alemão transformou-se sua obra, na sua escrita. Além disso, tinha E também ele teve a simpatia de me receber

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Traduzir é inventar o que lá está

para uma conversa. Não, o Memorial do Convento, nessa altura já mui- mediou o meu contato com a editora Arbeiderspers que acabara de
to falado por toda a parte, ainda não tinha sido comprado por nenhu- publicar uma antologia da poesia de Pessoa e tinha também Rentes
ma editora holandesa. Esta seria igualmente a primeira de muitas de Carvalho entre os seus autores. E que, por acaso, procurava mais
outras conversas. um tradutor do português. A minha paciência e persistência foram
As minhas diligências junto das editoras holandesas não deram assim recompensadas.
logo frutos. Mas a paciência também é uma das virtudes do tradutor. A primeira tradução que fiz para a editora Arbeiderspers foi um
Pelo menos, se a sua profissão for encarada num sentido mais lato conto de Rentes de Carvalho, sobre os seus primeiros tempos em
e se o tradutor agir como um arauto ou caixeiro-viajante da língua Amesterdão. Depois, ainda em Lisboa, comecei a traduzir a minha
de que traduz. Para mim, estes dois aspetos encontram-se indisso- seleção de textos do Livro do Desassossego. Para um tradutor um jan-
ciavelmente ligados. Tradutores são embaixadores, dão a conhecer tar de três estrelas Michelin. Em preparação de uma tal empresa, falei
uma língua permitindo aos leitores o acesso ao que essa língua com várias pessoas, entre as quais Georg Lind, tradutor alemão
de mais belo tem para oferecer. de Pessoa, e, em 1988, escrevi para um jornal um artigo sobre as
Mas como é que as editoras holandesas e flamengas sabem da exis- comemorações do centenário do nascimento de Fernando Pessoa, com
tência e da qualidade dos escritores de língua várias referências ao Livro do Desassossego.
portuguesa? Através das universidades, é a pri- O objetivo deste ensaio era abrir o apetite para
meira reação, mas o português deixou de ser es- «Traduzir é inventar a tradução holandesa que seria publicada dois
tudado na Alma Mater holandesa. Através das o que lá está» é a minha anos mais tarde. Para mim um mergulho algo
grandes feiras internacionais, sobretudo a de definição de tradução temerário num mar encapelado de inventividade
Frankfurt, onde as editoras procuram vender os literária, que me causou muitas dores de cabeça
seus autores, e Ana de Castro e Assunção de
de uns anos a esta mas também uma enorme satisfação. O des-
Mendonça da DGLAB, que gastam as solas dos parte. O livro já existe, construir e o construir do puzzle das palavras
sapatos para entusiasmar as editoras e explicar- mas para renascer numa e do seu sentido deu lugar a outro puzzle na se-
-lhes como aceder a subsídios à tradução e a ou- outra língua, é preciso quência dos fragmentos. No verão de 1989 o chão
tras formas de apoio. Através dos agentes lite- da sala lá de casa estava semeado de folhas soltas
rários, como é o caso da Nicole Witt da agência
inventar palavras que com fragmentos que eu ia deslocando, retiran-
Mertin-litag, que na Feira do Livro de Frankfurt correspondem ao original. do, repondo, encaixando, como se faz com as pe-
joga em casa, mas que, tal como os seus colegas, ças de um puzzle. Como compor um livro a par-
se farta de bombardear as editoras com notícias tir de um livro não existente, de um conjunto
e informação sobre os seus autores. Mas, acima de tudo, através dos avulso de fragmentos perfeitos, magistrais?
tradutores que reúnem todas estas funções. A base de tudo é tradu- Um ano antes deste quebra-cabeças trocáramos Lisboa por Nij-
zir bem e bonito, mas não menos importante é detetar novos auto- megen, onde eu tinha vivido nos meus tempos de estudante. Com
res, acompanhar escritores, escrever posfácios, fazer entrevistas, etc., grande pena minha (adeus bela luz de Lisboa!). Mas essa mudança
etc. Em suma, insistir e persistir o tempo necessário até todos sabe- facilitou em muito a colaboração com Rentes de Carvalho. Para tra-
rem que há uma língua de enorme beleza que produziu e continua duzir o seu Portugal – Um Guia para Amigos, tive que deixar Pessoa
a produzir uma literatura fora de série. Um tradutor não é um mon- algum tempo de lado. Essa tradução foi, todavia, essencial porque
ge que fica eternamente na sua cela a resolver quebra-cabeças. Este criou a base para uma colaboração de vários anos: contos, artigos e
monge tem de sair de vez em quando do mosteiro. crónicas para o jornal, mais tarde compilados e publicados em forma
Ou ter a sorte de alguém lhe bater à porta. No outono de 1986, de livro (por exemplo, O Milhão), e romances como O Rebate. Apren-
Almeida Faria perguntou-me se eu queria participar num novo pro- di muito e descobri, sobretudo, que o tradutor não só tem a liberdade,
grama de intercâmbio literário entre Portugal e os Países Baixos. mas também a obrigação de, sempre que necessário, se afastar do ori-
O projeto era traduzir prosa e poesia nos dois sentidos. Estava a cola- ginal. (Em 2015 fiz a experiência inversa, quando o meu livro Deus É
borar na Holanda com August Willemsen, tradutor de Fernando Pes- Brasileiro foi traduzido no Brasil). No total, traduzi nove livros de Ren-
soa e de outros escritores. Alguns meses depois fui visitar com os dois tes de Carvalho, dos quais a maioria já saiu, felizmente, em português.
o último domicílio de Pessoa onde agora, como se sabe, funciona Estávamos ainda na era pré-internet, e isso queria dizer passar a vida
a Casa-Museu Fernando Pessoa. Nessa época um espaço vazio por a correr para os Correios para cumprir prazos, faxes aos soluços e pra-
cima de uma pequena fábrica de tintas. Foi August Willemsen quem guejar com os malditos carteiros. E incursões pelo mundo dos alfarra-

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bistas à procura de dicionários e enciclopédias, portugueses. Só fui infiel à língua portugue- fevereiro de 2002, encontrei-me em Bad
aliás imprescindíveis para os dois grandes ro- sa uma única vez, com Suttree, a obra-prima Homburg com José Eduardo Agualusa. Aca-
mances que, entretanto, me tinham ido parar de Cormac McCarthy. O inferno nas margens bara de traduzir a Nação Crioula, o extraordi-
às mãos: Memorial do Convento e Viva o Povo do Tennessee River que se chama Knoxville. nário romance epistolar em que Fradique
Brasileiro, a epopeia magistral sobre o Brasil Paulo Coelho marcou, nos anos 90, uma vi- Mendes pisa solo africano e penetra no mun-
a partir da sua descoberta até aos anos 70 do ragem na política editorial. Seria boa ideia pu- do do comércio de escravos. E queria falar
século passado, escrita pelo saudoso João blicar um autor como ele? O que ele escrevia com ele antes de escrever um posfácio. Bad
Ubaldo Ribeiro. O escritor barroco de voz rim- era literatura? O então diretor da Arbeider- Homburg era a cidade da agente literária
bombante com quem me encontrei pela pri- spers admitiu que era preciso publicar de Ray-Güde Mertin, que representava os inte-
meira vez em Berlim, onde passou um ano uma forma mais diversificada, que, para so- resses de Agualusa e de muitos outros auto-
como escritor residente. breviver, era preciso derrubar fronteiras. Foi res portugueses e brasileiros. Mas era tam-
Pássaros, plantas, gastronomia – procurar alvo da troça do mundo literário, mas afinal bém a cidade do casino em que Dostoiévski
e folhear e encontrar um equilíbrio entre tra- agora todos pensam da mesma maneira. Pior esbanjou nas mesas de jogo muito do dinhei-
duzir e integrar as palavras originais no texto. ainda, parece que o conceito de literatura ad- ro que não tinha. O hotel onde ficámos aloja-
Porque isto é também algo que compete ao quiriu um novo conteúdo. Basta olhar para dos fora outrora a residência de uma princesa
tradutor: deixar o leitor saborear os sons dife- as listas de bestsellers. Aliás, durou ainda al- russa que deu abrigo ao homem por detrás
rentes de outras línguas, muito embora a sua gum tempo até Paulo Coelho entrar nessas d’O Jogador. Um romance em que ele trans-
missão consista, por princípio, em dar ao lei- listas, mas até agora foram vendidos na Ho- forma a sua realidade pessoal em ficção.
tor a impressão de que está a ler um livro na landa e na Flandres mais de meio milhão de Ficção e realidade, o mundo de Agualusa.
língua em que foi escrito, sem que se aperce- exemplares d’O Alquimista, o segundo livro Ninguém como ele consegue tão perfeita-
ba disso: se os seus olhos tropeçarem em for- dele que traduzi. Também é verdade que essa mente dar a ilusão de que é real aquilo que
mulações estranhas, frases que não fluem ou mesma editora pediu-me para compor um li- não pode ser real e apresentar o que é real
perturbam o ritmo de leitura, é porque o tra- vro com textos do Padre António Vieira, como ficção. No fim do ano passado, saiu o
dutor não fez o que devia. «Traduzir é inven- da sua relação de amor-ódio com a Holanda, seu quinto romance traduzido por mim, Teo-
tar o que lá está» é a minha definição de tra- a que dei o título de Een natte hel («Um In- ria Geral do Esquecimento. E a ficção que é
dução de uns anos a esta parte. O livro já ferno Alagado»). E neste momento estou a aqui levada ao extremo, é vista por muitos
existe, mas para renascer numa outra língua, preparar uma antologia do grande jesuíta, como pura realidade.
é preciso inventar palavras que correspondem no âmbito da edição da sua obra completa, Em 2007, esteve patente no Palácio das Be-
ao original. Ou, mais exatamente, é preciso sob a orientação de José Eduardo Franco. las-Artes (Bozar) de Bruxelas uma exposição
reinventar o todo: ritmo, cores, sons, estrutu- Estávamos então em 1996. Já era tempo de sobre os Descobrimentos portugueses, «En-
ra, mas mantendo-se fiel e servil ao original. mudar de novo. Dessa vez para Bruxelas. Mas compassing the Globe», acompanhada de um
E, por fim, António Lobo Antunes. O escri- essa mudança não alterou em nada o meu programa completíssimo de música, cinema
tor com quem aprendi português e a traduzir ritmo de trabalho. Títulos novos e antigos de e dança. E literatura. Para este capítulo pedi-
do português. Os Cus de Judas. Monólogo valores consagrados como Lobo Antunes, ram-me para organizar umas sessões literá-
emocional cheio de vitalidade e de raiva. Con- Saramago, Rentes de Carvalho, João Ubaldo rias e eu pensei: porque não trazer de volta à
vidaram-me para falar sobre o livro na rádio Ribeiro, Eça, a que se vieram juntar outros: Europa o mundo «descoberto»? Foi assim
e para escrever em revistas literárias. Tal Autran Dourado, Pepetela, Pedro Rosa Men- que vieram do Brasil João Ubaldo Ribeiro e
como tinha falado antes sobre o Memorial do des, Dyonélio Machado, Miguel Sousa Tava- Paulo Lins, de Timor-Leste Luís Cardoso e de
Convento. E sobre Pessoa no Teatro Munici- res. Li o Equador um mês depois de ter sido Angola Agualusa e Pedro Rosa Mendes (infe-
pal de Nijmegen. Esta tipo de atividade inten- publicado em Portugal e, em menos de meio lizmente Paulina Chiziane e Mia Couto, que
sificou-se à medida que o número de escrito- ano, o livro já estava nas livrarias holandesas. tanto gostaria de ter como convidados, não
res ia aumentando. No caso de Rentes de A Holanda foi o primeiro país estrangeiro a puderam estar presentes) e, em remate per-
Carvalho, a situação era diferente porque ele publicá-lo. Por vezes, insistir e persisitir leva feito, Lobo Antunes que faz os «descobri-
falava fluentemente neerlandês. Mas eu que- imediatamente a um resultado. Bruxelas ofe- dores» regressarem do mundo descoberto
ria ser a voz de todos os outros escritores, receu-me novas oportunidades para colocar na sua inversão d’Os Lusíadas, o romance
achava que era esse o meu dever. no mapa a literatura lusófona. Mas antes dis- hilariante e surrealista As Naus.
Nos anos seguintes, juntaram-se novos no- so, outro encontro, novamente na Alemanha. Nesse mesmo ano, publiquei um livro que
mes: Machado de Assis, Eça de Queirós, Má- Pouco antes de Jonas Savimbi ter sido defi- compusera com base nas cartas do rei con-
rio de Sá-Carneiro, Mia Couto. Todos nomes nitivamente eliminado pelo MPLA, em 22 de golês Dom Affonso, no relato sobre as guer-

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Traduzir é inventar o que lá está

ras africanas de Cadornega e no relatório da viagem de Capelo e Ivens a tremer de medo me perguntei: «Era mesmo isso o que tinha em
De Angola à Contracosta. Quatro séculos de relações entre Portugal mente? A tradutora entenderá o que quero dizer? Porque é que ela
e África que liguei com textos da minha autoria e a que dei a forma não traduz a palavra especial que escolhi também de uma forma es-
de um único relato. pecial, fora da norma? E no meio disto tudo onde fica o original?»
Para além do Bozar, há em Bruxelas a livraria-centro cultural Pas- O resultado foram dentes cerrados e suores frios. Acordar aos gritos
sa Porta que transformou a cidade num palco literário. Foi lá que apre- de um pesadelo em que o meu livro foi parar à fogueira dos inquisi-
sentámos em 2005 a nova tradução integral, a partir da versão de Ri- dores da tradução. E não poder exprimir o meu desespero, porque
chard Zenith, do Livro do Desassossego. Foi também a Passa Porta que a maldita tradução tinha de ficar pronta para o livro sair na data mar-
convidou Mia Couto, Lobo Antunes, Pedro Rosa Mendes e José Luís cada. Felizmente, tinha uma tradução em mãos e precisava de me
Peixoto. Todos encontros memoráveis. Nesses momentos é que a concentrar. E, de repente, notei que ela fizera um trabalho excelen-
literatura salta para fora da capa do livro e começa realmente a viver. te. Que para surtir o mesmo efeito no português do Brasil, o livro ti-
E eis que chega esse dia triunfal de outubro de 1998. A minha tra- nha de ser traduzido como ela traduziu. Ao afastar-se do original,
dução do Ensaio sobre a Cegueira tinha saído umas semanas antes uma tradução não tem forçosamente de atentar contra ele, é-lhe por
e eu acabara de entrevistar Saramago perante vezes até mais fiel. E se eu ainda não tivesse che-
um público interessado, primeiro em Amester- gado a essa conclusão, o poeta brasileiro Zuca
dão e depois em Antuérpia. Na altura tratava-se Queremos chamar a Sardan, ex-diplomata e anarquista metafísico de
apenas de mais uma visita de um escritor portu- atenção para a literatura Hamburgo, me teria aberto os olhos com o seu
guês, mas a partir desse dia histórico já se dizia: de língua portuguesa. prefácio: «O livro de Harrie Lemmens, ora edi-
acabámos de receber a visita de um laureado tado pela Zouk, de Porto Alegre, foi excelente-
pelo Prémio Nobel. Mais uma vez tive de desem-
Mas a atenção de quem? mente traduzido por Mariângela Guimarães,
penhar o papel de embaixador, respondendo a É tudo uma questão que lhe conseguiu transpor inclusive o gingado
uma chuva de perguntas diante das câmaras da de insistir, persistir pessoal de se expressar. Eu sei porque converso
televisão belga, em programas de rádio da Flan- e não desistir. E ter, muito com Harrie, e senti, na tradução, tal qual
dres e a vários jornalistas da imprensa flamenga. o estivesse ouvindo.»
Pelos vistos, não é fácil assentar: em 2009 re-
de vez em quando, Estas palavras só vieram reforçar a minha con-
gressámos à Holanda, agora para os arredores de um pouco de sorte. vicção de que a tradução é um processo inventi-
Amesterdão, o que facilitou os contatos com as edi- vo. Mas apenas inventar o que lá está, ou melhor,
toras. Dulce Maria Cardoso, Mário Sabino, Gon- o que já lá está. Agora também entendo melhor
çalo M. Tavares, Edney Silvestre, Padre Manuel da Costa (A Arte de Fur- porque é que o António Lobo Antunes costuma dizer que os seus li-
tar), Luis Fernando Verissimo, Michel Laub e Daniel Galera estavam à vros noutras línguas já não lhe pertencem a ele, mas ao tradutor. Isso
espera de ser lidos em holandês. E de novo procurámos trazê-los à Ho- claro que vai longe de mais, mas indica que tradução e original são
landa para participarem em festivais literários. Por exemplo, em 2013, uma espécie de irmãos siameses. Estão ligados um ao outro, são
no City2Cities em Utreque, onde as cidades convidadas eram Lisboa parecidos, mas não deixam por isso de ser dois seres autónomos.
e Berlim, as «minhas» duas cidades. E assim se fechou o círculo. Onde se fechará o novo círculo de escrita? Francamente não sei. Te-
E novo círculo se abriu. Em 2007, Ana e eu tínhamos ido visitar o nho já uma resma de projetos à minha espera, por exemplo, um livro
João Ubaldo Ribeiro a Itaparica, a sua ilha mágica. E aproveitámos sobre Lisboa, outra vez com base na literatura.Mas a tradução tam-
para ir até Salvador e Ilhéus. Três anos mais tarde resolvemos fazer bém continua. Mulheres de Cinza de Mia Couto sai em maio, simul-
mais duas viagens a seis cidades brasileiras. Tudo junto resultou num taneamente com as crónicas de Clarice Lispector, A Descoberta do
livro com o título Deus É Brasileiro, que saiu na Holanda na prima- Mundo. E, muito em breve, vou começar a traduzir Conhecimento do
vera de 2014 e, no ano passado, no Brasil, na Editora Zouk de Porto Inferno de António Lobo Antunes. E espero que haja mais, muito mais
Alegre. Um (auto)retrato do Brasil entre ficção e realidade, com a aju- para traduzir… Além disso, criámos uma revista digital, Zuca-Maga-
da de escritores e literatura. zine, em que queremos chamar a atenção para a literatura de língua
Em vez de traduzir fui traduzido e passar por este processo inver- portuguesa. Mas a atenção de quem? É tudo uma questão de insistir,
so de ver o meu holandês vertido em português foi uma experiência persistir e não desistir. E ter, de vez em quando, um pouco de sorte.
que não gostaria de perder por nada deste mundo. Por mais dura
e difícil que ela tenha sido, por vezes. Sobretudo no início, quando Tradução de Ana Carvalho

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IPSISSIMA VERBA EUGÉNIO LISBOA

Bestiário

É
sabido que os críticos têm mau nome: podem erguer-se taire: «Se o nosso século é inferior ao de Luís XIV, não procure-
bibliotecas que recolham os ditos malévolos que os ar- mos para isso outra causa que não seja a religião. Já mostrámos
tistas criadores proferiram contra os seus críticos – des- como Voltaire teria ganhado em ser cristão; disputaria hoje
de Sibelius, o grande compositor finlandês, que lembrou nunca a palma às musas de Racine.» Goldsmith, o da prosa de ouro
ter sido erigida uma estátua a um crítico, até Groucho Marx inglesa, o autor de The Vicar of Wakefield, executa sumaria-
que dizia levar tanto tempo a escrever uma recensão crítica, mente a peça mais famosa de Shakespeare: «O monólogo de
que nunca lhe chegava o tempo para ler a obra criticada, os tes- Hamlet, que tantas vezes ouvimos louvar em termos enco-
temunhos arrasadores abundam. Mas não são só os críticos miásticos, é, na nossa opinião, um amontoado de absurdos,
que se revelam, com alguma frequência, míopes: os próprios quer consideremos a situação, os sentimentos, a argumentação
criadores, com toda a sua farronca, não têm deixado de profe- ou a poesia.» Balzac, por sua vez, é impiedoso para com o Hugo
rir os seus magníficos dislates acerca dos seus pares. Wilde ob- dramaturgo, como se todo o teatro tivesse que seguir o «traço
servava com finura, a este respeito: «A própria concentração de natural»: «O Senhor Victor Hugo não encontrará nunca um
visão, que faz de um homem um artista, limita, pela sua vera traço natural, a não ser por acaso, e, a menos de se render a tra-
intensidade, a faculdade de fina apreciação. A energia da cria- balhos conscienciosos, de uma grande docilidade aos conselhos
ção precipita-o cegamente no seu próprio objetivo. As rodas do de amigos severos, a cena é-lhe interdita.» O professor da Uni-
seu carro levantam poeira que faz uma nuvem à sua volta. Os versidade de Rennes, J. Le Roux, avalia Einstein em termos
deuses ficam escondidos uns dos outros.» E ficam: incapazes vigorosamente sem apelo: «Não é uma doutrina científica, é,
de se verem mutuamente. Os exemplos, repito, são mais do que antes, uma espécie de misticismo bizarro, quase uma religião
muitos e atingem em doses iguais a cegueira de críticos e de nova de que Einstein é o profeta…» Tolstói é reduzido a quase
criadores. O grande poeta e dramaturgo John Dryden não se nada, às mãos do emérito professor da Universidade de Zuri-
fica por menos, ao avaliar o autor de Hamlet: «Shakespeare é que, Ernest Bove: «Muito significativo para a Rússia [Tolstói]
ininteligível.» Voltaire, também, mesmo com toda a sua ad- não passa, para nós, de uma moda.»
miração pela Inglaterra, farpeia impiedosamente o bardo de Para terminar, por hoje, aqui fica esta pérola do homo criticus
Stratford: «Um saltimbanco com algumas saídas felizes.» Flau- por excelência, o grande Sainte-Beuve, sobre Balzac: «Tem todo o
bert, fabro exigente e em geral sanguíneo e generoso, fere de ar de estar ocupado a acabar como começou… por cem volumes
morte o grande Balzac: «Que homem seria Balzac, se soubesse que ninguém lerá.» Se quiserem mais, exemplos não faltam. O dis-
escrever!» Chateaubriand, mestre de futuros grandes escrito- late, não o bom senso, é a mercadoria mais bem distribuída
res como Barrès e Montherlant, diz dislates infantis sobre Vol- do mundo.

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BONS VELHOS
NORUEGUESES
Foram, no seu tempo, dois nomes marcantes da literatura europeia os no-
ruegueses Bjørnstjerne Bjørnson (1832-1910) e Sigrid Undset (1882-1949). Am-
bos foram distinguidos pelo Comité Nobel, o primeiro em 1903, e a segunda
em 1928. Muitos dos seus escritos, ao serem lidos hoje, estão datados no tem-
po, mas outros – dois ou três romances de cada um destes autores – sobrevi-
veram à erosão da História.

Texto de JOSÉ RIÇO DIREITINHO


Fotografia de PEDRO LOUREIRO

om algumas traduções em portu- Tendo vivido em épocas algo diferentes esta luta; na sua estreia literária, Undset

C guês, feitas a partir de outras línguas


que não a original, as suas obras (ou,
por vezes, apenas versões trunca-
das) foram por cá bastante lidas; sobretudo
um romance de Sigrid Undset, Vigdis, a Indo-
(Undset publicou o seu primeiro romance,
A Filha de Gunnar, um ano antes da morte
de Bjørnson), os dois autores tiveram em
comum algumas preocupações cívicas que,
à época, foram consideradas revolucioná-
chocou logo a luterana sociedade norue-
guesa com a primeira frase do seu roman-
ce: «Tenho traído o meu marido.» Depois, e
ao longo da sua vida, participou em várias
polémicas públicas, sobretudo – e já depois
mável – que ainda em 2004 teve uma reedi- rias. Bjørnson foi dos primeiros intelectuais da sua conversão ao catolicismo, pois a sua
ção para uma coleção «Prémio Nobel» publi- europeus a bater-se publicamente pela família era agnóstica mas ela foi batizada
cada pelo jornal Diário de Notícias. Algumas emancipação feminina e pelo direito ao di- e educada nos ensinamentos do luteranis-
editoras mostraram mais recentemente inte- vórcio por parte das mulheres (note-se que mo – em debates de cariz religioso em que
resse em tornar a publicar as suas obras, mas estávamos na segunda metade do século «atacava» os dogmas luteranos defendendo
agora traduzidas do norueguês. E tudo apon- XIX, antes de todos os movimentos cívicos), alguns ensinamentos católicos (numa épo-
ta para que os possamos ler ainda este ano. e Sigrid Undset continuaria, mais tarde, ca e numa sociedade em que o catolicismo

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Velhos noruegueses

era praticado por uma ínfima maioria dos Lillehammer – que fora, durante o tempo da mesmas preocupações, homens presos en-
noruegueses). O tema da emancipação das ocupação alemã, requisitada pela Wehr- tre as velhas crenças pagãs e os novos ideais
mulheres na Europa fez sempre parte macht para alojar oficiais do exército. Não tor- do cristianismo, a luta para conciliar ambas
dos seus livros. nou a escrever uma linha; morreu em 1949. as visões. Este seu novo estilo, que funde a
Sigrid Undset nasceu na Dinamarca mas Curiosamente, e algumas décadas antes, saga com o relato oral dos contos populares,
a família mudou-se para a Noruega tinha ela foi também um lugar perto de Lillehammer influenciou, à época, muitos aspirantes a es-
dois anos de idade. Devido à morte precoce do que Bjørnstjerne Bjørnson escolheu para vi- critores. Um deles foi o jovem Knut Hamsun,
pai (um eminente historiador e arqueólogo) ver. (As casas de ambos os escritores, adqui- que escreveu um romance (nunca foi publi-
foi obrigada a interromper os estudos e a ar- ridas pelo Estado, são hoje casas-museus bas- cado) ao estilo de Bjørnson e que lho enviou;

Bjørnson foi-se tornando numa espécie de agi tador radical, criticando a Igreja
Luterana, a hipocrisia sobre os assuntos sexuais (e os exageros da libertinagem),
pregando a tolerância religiosa, a educação cívica e a emancipação feminina.
ranjar trabalho como dactilógrafa aos 16 anos, tante visitadas; os anexos da de Sigrid Undset tempo depois passou por casa do escritor
em Oslo. O seu interesse pela História mos- foram ainda transformados num centro cul- para lhe ouvir a opinião, e o que ouviu não
trou-se desde cedo, e aproveitou os ensina- tural). Aquele que é considerado um dos lhe agradou de todo mas, felizmente, não o
mentos do pai para a sua formação. Em 1920 «Quatro Grandes» autores noruegueses (em fez desistir: «Meu jovem, depois de ler o que
iniciou a publicação dos três volumes (termi- conjunto com Ibsen, Lie e Kielland) começou escreveu tenho um conselho a dar-lhe: talvez
nada em 1922) da sua obra-prima (ainda hoje a sua vida profissional como jornalista que es- deva tentar uma carreira de ator.»
assim considerada), Kristin Lavransdatter, crevia crítica teatral; aos 22 anos tornara-se Por volta de 1873 Bjørnstjerne Bjørnson
uma trilogia modernista ambientada na Ida- já conhecido e respeitado. Foi também por viajou longamente pela Europa (Itália e Ti-
de Média na Escandinávia – recorrendo aos essa altura que ele desencadeou, em Oslo, rol). Os seus interesses mudaram um pou-
seus profundos conhecimentos de História e uma campanha para que no palco se substi- co com essa «experiência emocional», e em
de arqueologia, retrata a vida, do nascimento tuísse a língua dansk-norks (falada pelas clas- 1875 publicou duas peças teatrais, as pri-
à morte, de Kristin, uma mulher com um ca- ses elevadas) pelo norueguês comum. Ele é meiras a lidar com os problemas sociais da
rácter extraordinário. Apesar de muito ter es- hoje considerado o «poeta nacional» (é o au- Escandinávia, abrindo assim caminho para
crito sobre a Idade Média, os seus romances tor do hino norueguês), apesar de a sua obra a crítica social. Os seus personagens têm
têm um traço de atemporalidade, pois são as se ter tornado conhecida sobretudo pelos sempre (à sua semelhança) personalidades
emoções humanas o que sobressai do cená- romances e peças dramáticas. fortes e rebeldes, em continua luta consigo
rio em que se movem os seus personagens Em 1857, aos 25 anos de idade, publicou próprias para conseguirem controlar a sua
complexos e multifacetados. o primeiro romance, uma história onde exal- mal contida truculência. Aos poucos Bjørn-
Anos depois de lhe ter sido atribuído o Pré- tava a vida campestre, e este livro tornou-se son foi-se tornando numa espécie de agi-
mio Nobel (1928), Sigrid Undset, já divorcia- um ponto de viragem na literatura norue- tador radical, não deixando de fora a Igreja
da e com três filhos, manifesta-se por várias guesa, que até então tinha preferido histórias Luterana, atacando a hipocrisia sobre os as-
vezes contra o regime nazi que tomara o po- passadas num meio urbano e com persona- suntos sexuais (ao mesmo tempo que tam-
der na Alemanha, país onde de imediato os gens da classe letrada. A sua obra foi alter- bém criticava os exageros da libertinagem
seus livros são proibidos. Com a invasão da nando, pelo menos durante cerca de 20 anos, de alguns artistas), pregando a tolerância
Noruega por Hitler, Sigrid Undset vê-se obri- entre as histórias da vida rural contemporâ- religiosa, a educação cívica e a emancipação
gada a exilar-se, em 1940, na neutra Suécia, e nea e a escrita de peças teatrais que têm lu- feminina. Teve também um importante pa-
mais tarde nos EUA. Um dos seus filhos, mi- gar em tempos idos, muito perto do tempos pel na fixação do norueguês como língua
litar, acaba por morrer anos depois num com- das antigas sagas; os heróis míticos e os cam- literária. Em 1903 foi-lhe atribuído o Prémio
bate contra os alemães. Ela regressa à Norue- poneses modernos têm, na escrita de Bjørn- Nobel. Morreu em Paris, em 1910, e o seu
ga em 1945, à sua casa nos arredores de stjerne Bjørnson, os mesmos problemas e as funeral teve honras de Estado.

74 primavera 2016 LER


Um bom escritor
é um escritor
morto
José Saramago e Fernando Pessoa são populares na República Islâmica. O por-
tuguês Nobel da Literatura tem 25 livros publicados em pársi. Um deles, Ensaio
sobre a Cegueira, esteve proibido. Não é caso único. A censura é implacável,
mas os escritores resistem. Onde e quando menos se espera, há surpresas boas.

Texto de MARGARIDA SANTOS LOPES


© DR

eis fotografias a preto e branco reluzem numa parede maior rede mundial de livros sobre o Irão, em persa e noutras

S
do Mehr Cafe, numa viela harmoniosa da cidade de línguas.
Yazd. Uma funcionária, alegre e afável, confirma a Entre os cerca de cem mil títulos do catálogo da Ketab, os que pro-
identidade dos geniais Nima Yooshij, Ahmad Sham- curam Saramago encontram Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio so-
lou, Forugh Farrukhzad, Ali Shariati, Mehdi Akhavan bre a Lucidez, A Viagem do Elefante e Jangada de Pedra; O Caderno
Saless e Sadegh Hedayat. São autores de livros proi- e A Caverna; As Intermitências da Morte e O Ano da Morte de Ricar-
bidos e/ou censurados. Quem os conhece – e saber quem são ajuda do Reis; Memorial do Convento e Manual de Pintura e Caligrafia;
a compreender o Irão – talvez se interrogue: estará a liberdade a pas- O Homem Duplicado e Todos os Nomes; História do Cerco de Lis-
sar por aqui? boa e O Evangelho segundo Jesus Cristo. Menos sorte teve A Última
Nem por isso, mas há alguns sinais de abertura num país onde Tentação de Cristo, de Nikos Kazantakis, ainda ilegalizada.
escritores nacionais de palavras e ideias interditas, sobretudo críti- Outro português famoso é Fernando Pessoa, com seis obras em
cos do regime, ainda se arriscam a prisão e morte, ou buscam o exí- pársi, sendo a mais popular, segundo Khalili, Livro do Desassosse-
lio. Um país onde Salman Rushdie e os seus Versículos permane- go. Há várias edições de tradutores diferentes, como no caso de Sa-
cem satânicos, mas Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, foi ramago, o que dificulta o controlo de qualidade e de tiragem. No Irão
retirado de uma lista de obras malditas, na qual permanece Ulisses, não existe lei que proteja direitos de autor.
de James Joyce. Um país onde Memórias das Minhas Putas Tristes, Judeu curdo, o antigo engenheiro civil Bijan Khalili, agora com
de Gabriel García Márquez, foi publicado como Os Meus Amores 65 anos, fugiu do Irão no final de 1980, após 11 dias na cadeia, por se
Tristes, para ser logo proibido como «erro burocrático» do censor. opor à Revolução Islâmica e «pertencer a uma minoria étnica». Temia
Um país onde O Banquete (O Simpósio ou Do Amor), de Platão, fi- ser «executado sem julgamento», e exilou-se no bairro conhecido
lósofo d’A República que inspirou Khomeini, teve finalmente licen- como «Tehrangeles», na Califórnia. Neste estado americano vivem,
ça para ser lido. segundo várias estimativas, mais de meio milhão de iranianos, que
Pelo menos 25 obras do português Nobel da Literatura de 1998 começaram a chegar como estudantes, nos anos 60.
estão disponíveis em pársi, diz-nos, por e-mail a partir de Los An- Em 1981, com os «10 livros favoritos» que levou na bagagem, Kha-
geles, Bijan Khalili, fundador e presidente da Ketab Corporation, lili abriu uma pequena livraria, e esta transformou-se, rapidamente,

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Um bom escritor é um escritor morto

num quase império. Inclui um muito pro- de iranianos, jovens que só conhecem a teo- táculos que enfrentam os escritores. «Zohreh
curado serviço online, que também distribui cracia. Na sua banca improvisada, num pas- demorou dois anos e meio a acabar um ro-
discos e filmes. Anualmente, a Ketab edita seio onde se cruzam mulás e mulheres com mance de 350 páginas. Contacta um primei-
uma média de 15 livros em pársi. Um dos coloridos roosaris (lenços) deslizando sobre ro editor. Não está interessado. O livro corre
mais recentes é Camarada Khomeini – O Pa- justas roopoosh (túnicas), os Pahlavi estão o risco de ser chumbado pelo MCOI. Ela pro-
pel do KGB Soviético na Ascensão de Kha- em destaque. Mas não só. cura outro editor, um pouco mais corajoso,
menei (o Supremo Líder). Quem imaginaria descortinar um vídeo disposto a investir algum dinheiro na edição,
Política, ficção, dicionários e história são de Googoosh, cantora que recuperou voz na revisão, na impressão, no design e na pu-
as áreas mais procuradas pelos clientes da e celebridade no exílio, depois de silenciada blicação. Antes de enviar aos censores o ma-
Ketab. A companhia vende pouco para o Irão pela Revolução Islâmica? E um velho filme nuscrito em PDF, tem de preencher formu-
devido às muitas restrições da censura, mas de Mohammad Al Fardin, pugilista e ator, lários, para saber se os que têm a última
Khalili admite que deixou de ter dificuldades afastado dos ecrãs por um sistema hostil às palavra o vão aprovar ou rejeitar. Passam oito
em importar. cenas românticas deste «rei dos corações» meses e o ministério sugere “algumas emen-
onde o álcool abundava e as garotas encur- das”. Ela elimina 50 páginas, troca a palavra
O xá na Praça Ferdowsi tavam as saias? “vinho” por “água” e muda o carácter do pro-
Vamos até Teerão, onde vão caindo tabus A censura oficial no Irão remonta à con- tagonista, de bêbado para marido dedicado.
como a evocação da monarquia. Autobio- quista árabe em meados dos anos 600. Mui- Mais uma espera longa, até que, finalmente,
grafias do último xá vendem-se na avenida tos textos zoroastras, a primeira religião vários milhares de exemplares recebem au-
que em tempos homenageou a sua dinastia, do país, foram queimados para solidificar o torização para ser distribuídos. Um exem-
Pahlavi, e hoje é dedicada a Vali Asr, o último poder das novas autoridades muçulmanas. plar é entregue na Biblioteca Nacional. Só en-
de 12 imãs xiitas. Uma delas éResposta à His- A língua persa escrita só renasceu, a partir do tão o título fica registado na base de dados
tória, publicada pouco depois de ser forçado século X, com os poetas Ferdowsi, Rudaki e estatal, ketab.ir.»
a deixar o Trono do Pavão em 1979. Outra é Daqiqi. Nos anos 1500, quando o xá safávida
Missão para o Meu País. Foi impressa quan- Ismail I oficializou a conversão ao xiismo, Ahmadinejad e Rouhani
do ainda era «Sua Majestade Imperial, Sha- muitos estudiosos sunitas foram executados O período pós-revolucionário mais toleran-
hanshah’ (Rei dos Reis)». Também se pode ou desterrados. Em 1923, com o fim da di- te, para escritores, jornalistas e bloggers, foi
comprar as Memórias de Farah Diba, viúva nastia Qajar, o autocrata Reza (Khan) Pah- o da presidência de Mohamad Khatami, en-
do autoproclamado Aryameh (Luz dos Aria- lavi encerrou as escolas privadas, impôs tre 1997 e 2005. Como ministro da Cultura
nos). Uma das edições está autografada manuais centrados na história e geografia (1982-1992), já defendia uma «conceção pro-
na capa. Ela escreveu até a data: 27.08.05. pré-islâmicas e transferiu a «competência de gressista dos valores culturais: liberdade
O passado mais recente deixou, suposta- censura» do Ministério da Educação para de pensamento e respeito pela honra inte-
mente, de constituir uma ameaça, numa a Polícia Nacional. lectual».
altura em que o país, que aceitou um acor- No seu reinado, o filho-herdeiro Moham- Uma era de trevas foi inaugurada por
do nuclear histórico, pretende reafirmar-se mad Reza Pahlavi criou um gabinete para Mahmoud Ahmadinejad em dois mandatos
como potência regional. Na capital, não é pre- censurar previamente todos os livros. Os es- presidenciais, de 2005 a 2013. A sede dos
ciso ir a mercados obscuros, à procura dos critores enfrentavam ainda perseguição por censores passou a ser o Ministério dos Servi-
homens que, em Persépolis, quadradinhos parte de outra entidade: a Savak. A temível ços Secretos. Chegou-se ao absurdo de o res-
de Marjane Satrapi, transacionavam discos polícia política foi dissolvida após a revolu- ponsável por «avaliar» os filmes ser um cego.
de «Estevie Vonder» e «Jikael Mackson», ção de 1979, mas dois anos depois, formou- O ministro da Cultura, Hossein Saffar-Ha-
escondidos nas gabardinas. -se uma instituição igualmente repressiva: randi, revogou as licenças de Khatami e or-
Na rua que tem o nome Ferdowsi, autor o Ministério da Cultura e Orientação Islâ- denou a proibição de numerosas obras (al-
do épico Shahnameh (Livro dos Reis), um jo- mica (MCOI). gumas já editadas e reeditadas), apenas por
vem alfarrabista afasta momentaneamente Um relatório de 2015, intitulado «Writer’s considerar os autores personae non gratae.
os olhos do smartphone e, sorridente, anun- Block – The Story of Censorship in Iran» e re- A eleição de Hassan Rouhani – um «prag-
cia: «Viva o xá!» Terá menos de 30 anos, sultante de uma investigação dirigida por Ja- mático» e não «reformista» como Khatami –
como mais de metade dos quase 78 milhões mes Marchant, explicou deste modo os obs- fez reviver a esperança. O legado do ultra-

78 primavera 2016 LER


conservador Ahmadinejad foi tão nocivo lumes e três mil páginas, perguntou aos car-
que exasperou o atual ministro da Cultura. cereiros qual o crime que justificava dois
Disse Ali Jannati, citado pela Rádio Europa anos numa cela. «Nenhum», responderam-
Livre: «Se o Corão não fosse a palavra divina -lhe. «Mas toda a gente o lê, o que faz de
também teria sido censurado.» si um provocador.»
Os livros não foram as únicas vítimas
de Ahmadinejad. Pinturas no valor de mais Censurados e amados
de três mil milhões de dólares mantiveram- Dowlatabadi é um colosso da literatura ira-
se fechadas numa cave húmida até serem niana contemporânea, tal como Nima,
finalmente expostas, no Museu de Arte Shamlou, Forugh, Shariati, Saless e Hedayat,
Contemporânea de Teerão, em novembro os escritores emoldurados na parede do
de 2015. Quadros de Giacometti, Warhol, Mehr Cafe. O espanto de os ver numa ruela
Monet, Pollock, Magritte, Lichtenstein, Ko- de Yazd é tanto maior quanto A Coruja Cega,
oning e outros são agora objeto de estudo de Hedayat (1903-1951), nunca teve auto-
e adulação. rização para ser publicado, embora seja
Toda a coleção foi adquirida por Farah referência obrigatória do século XX.
© DR
Diba graças às receitas do petróleo quando o Antimonárquico e anticlerical, simpati-
mercado de arte estava em crise. Agora é um O legado de Ahmadinejad zante do Tudeh, o extinto partido comunis-
Irão com necessidade de divisas que põe ta, Sadegh Hedayat é conhecido como o «Kaf-
a render o património que antes renegava.
foi tão nocivo que exasperou ka iraniano». Foi ele quem introduziu o
o atual ministro da Cultura. modernismo na ficção iraniana. Estudou na
O Fórum dos Artistas «Se o Corão não fosse a pala- Bélgica e em Paris, entre 1926 e 1930. Dei-
Rouhani e Jannati têm advogado maior li- vra divina também teria xou-se influenciar, além de Kafka, por Sha-
berdade pessoal e artística, mas é limitada kespeare, Goethe, Sartre e Rilke. Nunca con-
a margem de manobra do atual Governo. sido censurado.» Os livros seguiu conciliar os seus dois mundos: persa
Apesar de tudo, vão despontando na socie- não foram as únicas vítimas e europeu. Escreveu A Coruja Cega em Bom-
dade vários nichos onde a audácia desafia de Ahmadinejad. Pinturas baim (Índia), sabendo que só clandestina-
a tacanhez. mente esta história sobre medo, perda e
no valor de mais de três mil
Um deles é o Fórum dos Artistas Irania- morte entraria no seu país. Psicótico e infe-
nos, no Parque Honarmandan em Teerão, milhões de dólares foram liz, Hedayat suicidou-se, em 1951, num apar-
um complexo arquitetónico erguido das ruí- fechadas numa cave húmida: tamento que arrendara na capital francesa.
nas de um edifício que foi usado por milita- Giacometti, Warhol, Monet, Amigo de Hedayat, porta-voz dos pobres
res e depois resguardou toxicodependentes. e dos oprimidos, outra figura notável da lite-
Mais de uma década após a sua construção,
Pollock, Magritte, Lichten- ratura iraniana é Nima Yooshij (1896-1960).
aqui se encontram todas as classes, os mais stein, Kooning e outros. Aclamaram-no como «pai da nova poesia
pobres do sul e os mais ricos do norte. Para persa», por romper com a métrica rígida dos
namorar no jardim. Conversar com amigos. e livros. Um deles é Kar nameh sepanj clássicos. Compararam-no ao modernista
Beber um café. Comer um prato vegetaria- (O Arquivo 3.5), de Mahmoud Dowlataba- americano Ezra Pound. Inscreveram-no no
no. Assistir a uma peça de teatro. Ver um fil- di, autor de O Coronel, que jamais saiu da movimento dos simbolistas franceses (Bau-
me. Apreciar e apreçar esculturas ou foto- gaveta do censor, apesar de traduzido para delaire, Verlaine, Rimbaud e Mallarmé). Nos
grafias. Ouvir um concerto da orquestra várias línguas. seus versos há muitas referências à «noite»
sinfónica criada em 2014. Que salto em fren- Dowlatabadi, 75 anos, recusa cortes no ro- e ao «amanhã», interpretadas como metáfo-
te, num país onde, em tempos não muito mance que demorou um quarto de século a ras de um tempo de tirania e, simultanea-
longínquos, se incendiavam cinemas e a mú- escrever, até 2008. O destino trágico dos cin- mente, de resistência à injustiça e à miséria.
sica era proibida. co filhos de um oficial do exército, todos re- Entre os discípulos de Nima está Forugh
Do conjunto de galerias e auditórios, cafés presentando fações diferentes da revolução Farrukhzad (1935-1967), que o descreveu
e restaurantes do Fórum sobressai uma loja que os devorou, é parte da sua história pes- como seu «guia». Não fosse o seu carácter as-
irresistível. Vende artesanato exclusivo, soal. Em 1974, depois de detido pela Savak, sumidamente profano e também ela pode-
em têxteis, madeira ou cerâmica, CD, DVD o autor de Kelidar, magnum opus de 10 vo- ria reclamar o título religioso xiita de marja-

LER primavera 2016 79


Um bom escritor é um escritor morto

e taqlid («fonte de emulação»), porque conti- destruir os seus livros, por ele ser militante meiro-ministro nacionalista derrubado pela
nua a cativar muitos iranianos. do Tudeh. CIA em 1953, atraíam os estudantes univer-
A vida desta grande feminista não foi Em 1977, o intelectual marxista que nun- sitários. As suas aulas eram gravadas em
banal. E foi breve. Acabou num acidente de ca concluiu o liceu emigrou primeiro para a cassetes e transcritas para panfletos, distri-
viação aos 32 anos. Aos dezasseis, começou América e depois para o Reino Unido, em buídos clandestinamente. Ele não incomo-
a escrever os seus ghazals, poemas líricos protesto contra o despotismo. Em 1979, vol- dava apenas o palácio mas também a mes-
carregados de erotismo e, aos dezasseis, tou a Teerão, mas rapidamente o velayat-e quita. Os teólogos (ulamas) preocupavam-se
casou-se com o cartunista Parviz Shapour. faqih (governo do jurista) o desiludiu. Mui- com as afirmações de que não seriam eles a
Desta união que a família reprovou, nas- tos dos seus poemas, incluídos em 20 cole- liderar «o regresso a um islão genuíno», mas
ceu um filho, em 1956. Forugh e Parviz mu- tâneas, foram proibidos. Um deles mobili- sim os intelectuais (rushanfekran), únicos
daram-se de Teerão para Ahwaz, no Sul. zaria a oposição contra Ahmadinejad, em capazes de oferecer ao Irão «a Renascença
A cidade era conservadora e escandalizou- 2009. Está traduzido, em inglês, como «In e a Reforma», anotou Ervand Abrahamian.
-se com a beleza magnética de uma das This Dead-End» («Neste beco sem saída»): De 1972 a 1975, Shariati esteve preso sob
primeiras mulheres a aderir à moda das «In this dead end / They smell your a acusação de propagar um «marxismo is-
roupas coleantes e curtas. O divórcio consu- mouth / To find out if you have told someo- lâmico». Ficou em detenção domiciliária até
mou-se após o parto. O pai ficou com a cus- ne: I love you! / They smell your heart! / 1977, ano em que foi autorizado a partir para
tódia da criança. / Such a strange time it is, my dear; / And Londres. Pouco tempo após a chegada, mor-
Por ser divorciada, Forugh atraiu ainda they punish Love / At thoroughfares / By reu de «ataque cardíaco». Tinha 43 anos.
mais atenção e recriminação. Indiferente e flogging. / We must hide our Love in dark Sobrevive a suspeita de que foi assassinado
independente, ela transpôs para a sua poesia closets. [… ]» por agentes da Savak.
todas as dores e paixões. Um dos poemas Se a poesia era a arma política de Ahmad Contemporâneo de Shariati e também ati-
mais marcantes é «The Sin» («O Pecado»), Shamlou, a de Ali Shariati (1933-1977) foi vista político, Mehdi Akhavan Saless (1929-
em que descreve um de vários relaciona- a história das religiões. Sociólogo doutora- -1990) é, tal como Nima Yooshij, um dos pio-
mentos amorosos de curta duração: do na Sorbonne, em França, pertenceu a neiros da nova poesia persa, obcecado pela
«I have sinned a rapturous sin / in a warm um movimento que tentou fundir o xiismo «luta eterna entre luz e escuridão». Em 1951,
enflamed embrace, /sinned in a pair of vin- com o socialismo europeu. Ganhou o epíte- publicou a primeira antologia: A Todos
dictive arms, / arms violent and ablaze. / In to de «ideólogo da Revolução Islâmica». No os Combatentes da Liberdade.
that quiet vacant dark/ I looked into his mys- entanto, entre os seus seguidores estão tam- Após o golpe que afastou Mossadegh,
tic eyes, / found such longing that my heart / bém opositores do regime atual, e algumas esteve várias vezes preso, por pertencer ao
/ fluttered impatient in my breast. / In that das suas obras críticas dos zelotas xiitas con- Tudeh. Só em 1957 foi autorizado a retomar
quiet vacant dark / I sat beside him punch- tinuam censuradas. uma existência normal, como professor
drunk, / his lips released desire on mine, / Tradutor para persa do psiquiatra, filóso- e jornalista. Entre 1969 e 1974, para poder
/ grief unclenched my crazy heart […].» fo e ativista anticolonial Frantz Fanon (1925- sustentar-se financeiramente, trabalhou na
Sexualmente explícitos, vários livros de Fo- -1961), autor de Peles Negras, Máscaras Bran- televisão oficial, em programas de história
rugh foram proibidos durante mais de uma cas, Ali Shariati admirava muito esse antigo e literários. Em 1981, após vários anos ao
década depois da Revolução Islâmica. Hoje, escravo da Martinica, mas ambos divergiam serviço do Estado, foi afastado sem motivo
ainda que censurada, é reconhecida como num ponto essencial, segundo o historiador e sem direito a reforma. Em 1990, morreu
a maior poetisa nacional do século XX. Ervand Abrahamian. Fanon aconselhava os num hospital em Teerão. Sepultaram-no
No panteão dos gigantes está também Ah- «povos do Terceiro Mundo» a abdicar das em Tus, na província de Khorasan, junto ao
mad Shamlou (1925-2000): poeta, drama- suas religiões tradicionais «na luta contra o mausoléu de Ferdowsi – a quem muitos
turgo, tradutor, jornalista. Conheceu várias imperialismo ocidental». Shariati defendia o comparavam.
prisões: a dos aliados que ocuparam a sua que os países em desenvolvimento precisa- De Teerão a Yazd, uma reabilitação pós-
pátria quando a Segunda Guerra Mundial vam de «redescobrir as suas raízes religio- tuma de prosas e versos parece dar razão
chegava ao fim; a de separatistas na provín- sas para poderem desafiar o Ocidente». ao romancista Esmail Fasih (1935-2009):
cia do Azerbaijão que quase o fuzilaram; a As ideias do antigo militante da Frente Na- «Nas terras esplendorosas do Irão, um bom
de Mohammad Reza Pahlavi, que mandou cional, de Mohammad Mossadegh, o pri- escritor é um escritor morto.»

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A ORDEM D OS CRÍTICOS ABEL BARROS BAPTISTA

O alegado binómio
ara já estarem ali em cima, ima- – Esquece o teu tio, caramba. Que papéis tarde, se só houver uma colecção, o que nun-

–P – Quem?
gina a que horas saíram de casa... eram?
– Agora o cão já não te interessa? Que cão
era, essa é que é a pergunta a fazer.
ca se poderá provar.
– E o cão? Afinal de quem era o cão?
– Não podia ser do José António.
– Os homens no tabuleiro da ponte. Manu- – Explica lá então. – Qual José António?
tenção, será? – Os papéis, descobriu-se logo. Uma colec- – Comecei por dizer que um dos homens
– Ocorre-me que uma vez estavam três ho- ção de artigos do jornal Público, todos dum tal da ponte se chamava José António.
mens no tabuleiro da ponte, não desta, outra Tavares. – Sim, é verdade, e o outro...
qualquer. Um tinha sido assessor de im- – Qual deles? Olha que há mais do que – O ex-assessor do ministro, também não,
prensa de certo ministro, o segundo atirou-se um... os assessores não têm disposição para cães.
ao rio, e o terceiro chamava-se José António. – Não vem ao caso. Quando o corpo do ale- – Que coisa, achas que se vai descobrir
– Caneco! As coisas que te ocorrem... gado suicida apareceu, já um tanto comido alguma vez o que aconteceu?
– Com efeito! É vezo meu. Parece que um pelos peixes do rio, abraçava um maço de pa- – Não só vai como foi, quero dizer, já se des-
irmão da minha mãe também o tinha. Nin- péis que eram exactamente os mesmos que cobriu. Foi o polícia.
guém o suportava, segundo consta. o cão trazia na boca. Percebes agora que – O do Amor de Perdição?
– Como assim? Não o conheceste? a identidade do cão é todo o problema? – Não, esse inventei-o eu agora, desculpa, é o
– Não, foi para a Austrália antes de eu nas- – Essa agora? Os mesmos? Não pode ser. tal vezo do meu tio. Não, refiro-me ao polícia que
cer, e morreu lá há meia dúzia de anos. – Pois não, e no entanto eram. Um polícia tirou o alegado suicida do rio. Esse é que disse
– Então não foi com ele que aprendeste... chegou a sugerir-me que o alegado suicida se que o desgraçado vinha abraçado a um maço
– Não, não, é sestro, vício, sei lá. Aparece tivesse atirado ao rio abraçado aos papéis, de papéis igualzinho ao que o cão trazia na boca.
quando menos se espera, e depois são asso- como a Mariana do Amor de Perdição... – Ah percebo, e ninguém viu esses segun-
ciações, divagações, desconversas... – Tinha graça, um dos Tavares havia de dos papéis.
– Pois, já nem sei bem de que é que estáva- gostar... – Viram, sim, e os dois maços foram cote-
mos a falar... –Talvez, mas a sugestão é absurda. O cão jados. O polícia é que não viu nem cão nem
– Da ponte, dos três homens na ponte. Sem apareceu com os papéis antes de o corpo papéis do cão.
contar com o cão. do alegado suicida ter sido encontrado. – E que tem isso?
– Havia um cão?! – Então como se explica a coincidência? – Ó homem, ele não podia saber que os
– Não. Falávamos dos três homens, não – A única explicação viável exige este pres- dois maços eram iguais.
do cão, com o cão seriam quatro. suposto: há pelo menos duas colecções – Mas eram ou não?
texto SeGUNDo o ANteRIoR ACoRDo oRtoGRÁFICo

– Então sempre havia um cão, gaita! de artigos do tal Tavares. Possível mas es- – Eram, já te disse. Eis todo o enigma. O po-
– Haver propriamente não havia. Depois quisito. E daí se depreende também que é lícia nem sequer podia saber que havia dois
de o alegado suicida se ter atirado ao rio, en- possível haver n+2 colecções de artigos do tal maços!
tão é que apareceu o cão. Com um molho Tavares. – Se não tivesses inventado o primeiro po-
de papéis na boca, encharcados como se os – Possível mas sinistro, nem imagino um lícia, impunha-se concluir ter sido ele a in-
tivesse pescado do rio. Artigos de jornal, cor- mundo em que isso acontecesse. ventar o cão.
tados e colados em folhas de papel A4. Como – Acontece. Chama-se reprodutibilidade. – Não, ninguém consegue inventar um cão.
aquelas colecções de recortes que antes se fa- Imagina um admirador a produzir artesa- Aliás, ocorre-me agora... Claro, é isso! Tudo
ziam. Aquele meu tio, ao que parece tinha nalmente uma antologia do colunista e dedi- se explica. Era um cão polícia! O binómio
várias. cando-se a isso anos a fio. Ou dias, ou uma homem-cão, percebes?

LER primavera 2016 81


O mitO
dO
messias
negrO
A vitória de Obama foi o espelho da ascensão política do liberalismo
cultural americano, manifestada na coligação que o elegeu: minorias
latina e afro, jovens, mulheres e a chamada creative class, gente com
educação superior, rendimentos anuais acima dos 75 mil dólares, que
compunham um quarto do total de eleitores e onde Obama garantiu
60% de apoio. Obama concentrou em si o resultado das eleições gerais:
uma incontrolada expectativa planetária e a alvorada de um messias
na América. Oito anos depois o saldo é confrangedor para os primeiros
e angustiante para os últimos. Só que, convenhamos, isso diz muito
mais sobre eles do que sobre Obama.

Texto de BERNARDO PIRES DE LIMA


© JIM WATSON/AFP/Getty Images
memorável vitória de Obama em 2008 não o colo- A raça, o modo e o estilo

A
cou na História apenas por ter sido o primeiro afro- Timuel Black nasceu há 97 anos no racista Alabama, neto de es-
-americano a chegar à Casa Branca ou mesmo pela cravos, filho da primeira grande migração sulista para Chicago,
natureza revolucionária da sua campanha eleito- combatente na Normandia e um dos primeiros a ver o horror de Bu-
ral, muito assente nas redes sociais e na mobiliza- chenwald. Numa manhã de verão na zona sul de Chicago, contou-
ção entusiástica de nove milhões de novos eleitores -me detalhadamente como se tinha tornado no homem forte de
registados com idade de votar. Ela foi o espelho da ascensão política Martin Luther King na capital do Illinois e como tinha liderado duas
do liberalismo cultural americano, manifestada na coligação que o mil pessoas até Washington para abraçar o seu eterno discurso.
elegeu: minorias latina e afro, jovens, mulheres e a chamada creati- O discurso de King foi o ponto de inversão na segregação legalizada.
ve class, gente com educação superior, rendimentos anuais acima O «sonho» evocava os pais fundadores, as escrituras criadoras da
dos 75 mil dólares, que compunham um quarto do total de eleito- América, o centenário da proclamação de emancipação e as imor-
res e onde Obama garantiu 60% de apoio. Depois de ter substituído tais palavras de Lincoln em Gettysburg. O discurso de King não par-
Hillary Clinton como candidato apoiado pelo establishment do par- tia do zero, recuperava momentos zero. Por isso foi tão forte. Mas se
tido nas primárias democratas, Obama concentrou em si o resulta- a legalização da segregação seria abolida, esse vício ainda permane-
do das eleições gerais: uma incontrolada expectativa planetária e a ce vivo nos EUA e em muitas outras democracias liberais. Práticas
alvorada de um messias na América. Oito anos depois o saldo é con- de marginalização forçada contra mulheres e homossexuais, tal
frangedor para os primeiros e angustiante para os últimos. Só que, como o desprezo racial e religioso, continuam a manchar as socie-
convenhamos, isso diz muito mais sobre eles do que sobre Obama. dades mais desenvolvidas. A americana não é exceção.
A máxima de Ortega y Gasset aplica-se à história política america- Barack Obama fez-se político em Chicago e foi pelo Illinois que
na como uma luva. Ao contrário do que nós, iluminados europeus, chegou ao Senado. No início dessa travessia, um dos que mais ou-
habitualmente concluímos, o inquilino da Casa Branca não é o todo- via era precisamente Tim Black, ativista sénior pela conscienciali-
-poderoso que resolve os problemas que afligem os quatro cantos do zação da raça como bloqueador da convivência social na América
mundo carregando num botão. Além de o sistema político america- moderna. A sua expectativa era por isso imensa, assim como o de-
no estar desenhado para evitar precisamente essa arbitrariedade salento: Obama nunca levou esse discurso para Washington, no
– com Congresso, tribunais, imprensa, universidades e iniciativa pri- sentido de corporizar uma presidência de fação racial, apesar do
vada fortes –, a ação presidencial acaba por ter maior ou menor am- clima tenso exposto pelos tumultos em Baltimore, pela criminali-
plitude consoante a dinâmica que o tempo e o espaço permitem. Por dade violenta entre os gangues de Chicago ou pela infame atuação
outras palavras, sabendo previamente que iria encontrar o Tesouro policial contra jovens negros. A verdade é que Obama nunca foi um
com o maior défice da sua história, a maior taxa de desemprego des- Presidente de fação, nem a campanha hope and change de 2008 o
de a Segunda Guerra Mundial, duas guerras em simultâneo bem sugeria: a coligação que o elegeu e que ele motivou como poucos na
longe do sucesso desejado, uma banca em falência, um declínio re- História americana era suficientemente heterogénea para mere-
lativo face a outras regiões do mundo ou um crescimento económi- cer essa resposta. Mas desde que a crise rebentou, os afro-ameri-
co quase 10 vezes inferior à China, Barack Obama dificilmente po- canos foram quem mais perdeu em rendimento individual e pa-
deria vir a ser um Presidente desamarrado do cenário que encontrou. trimónio familiar. A sua taxa de desemprego é quase o dobro da
Vale a pena insistir nisto: a alvorada dos messias é incontrolável média nacional, a escolaridade universitária completada é metade
no que diz respeito às populações angustiadas, mas a razão deve pre- da percentagem dos alunos brancos. Além disso, representam uma
valecer quando falamos de políticos. Sobretudo de políticos. Mais fatia desproporcionada da população prisional, mesmo que nos
ainda quando falamos de políticos eleitos para liderar a maior po- últimos anos tenha diminuído.
tência da História. A razão devia ter-nos levado a baixar expectati- Permaneçamos ainda no tempo do Dr. King, fazendo um para-
vas, a fazer um esforço por compreendermos a gigante tarefa que ti- lelismo com J.F. Kennedy no campo da suposta fação identitária e
nha de ser enfrentada, a lermos melhor a realidade complexa e mesmo sob outros ângulos. JFK esteve para a televisão como Oba-
heterogénea dos EUA – e, já agora, deste nosso mundo –, a aceitar- ma para as redes sociais: foram os primeiros a usá-las como tram-
mos que a natureza humana, gostemos ou não, tem lados profun- polim de poder. Ambos despertaram o sonho americano de forma
damente erráticos, cinzentos, cruéis, impotentes, trágicos até. Ba- extrema: Kennedy, jovem e moderno, era o contraste com o velho
rack Obama nunca foi um super-homem: só um político normal se Eisenhower, marcado pelos destroços da guerra; Obama, pioneiro
engasgaria ao jurar fidelidade à Constituição na tomada de posse. das minorias e sofisticado na palavra, era o contraponto evidente à
Se partirmos de um pressuposto mais humilde talvez consigamos pertença de Bush a uma certa aristocracia política e ao desgaste dos
perceber melhor o mundo em que vivemos. seus anos. A veterania de John McCain fez o resto. O tempo de Ken-

84 primavera 2016 LER


nedy era de radicalismo atroz, socialmente racista, geograficamente média. O que estes últimos anos questionaram era se esse quadro
entrincheirado. O Congresso vivia um apogeu conservador, com a tradicional seria sustentável perante a maior crise financeira dos
presença determinante de legisladores sulistas sem qualquer aber- últimos 70 anos conjugada com uma tímida performance da eco-
tura à mudança. O tempo de Obama é de polarização aberta, desi- nomia. No fundo, a era Obama expôs de forma mais assertiva e
gualdades sociais, pós-segregacionista mas nem por isso antirra- crispada as opções políticas que definem a sociedade americana:
cista. O Congresso também funciona como bloqueio intransigente, quem valoriza ou não o papel do Estado federal na saúde, educa-
protelando legislação e, sobretudo, a agenda presidencial. Sendo ção e fiscalidade, quem defende o uso da força limitado ou mais vo-
Américas diferentes, elas continuam entregues aos mesmos defei- luntarista no exterior, quem aceita ter a Constituição uma nature-
tos. Um deles é o abuso permanente do simbólico na política. Da- za desadequada, por exemplo sobre o uso e porte de armas, ou
tas, episódios, frases, objetos, escândalos, edifícios, expectativas ou manifesta uma crença inabalável na sua infalibilidade. Ou ainda
silêncios, tudo é passível de ser elevado a um plano místico, ence- quem está disponível para aceitar a expansão da vigilância e
nado, pintado com cores imagináveis e que mascaram a normali- espionagem ou renega totalmente o caminho arbitrário em nome
dade dos homens. As presidências que se refugiam neste períme- da segurança individual. Estas são heranças culturais histori-
tro tendem a esconder a fragilidade e a inconsistência dos comuns, camente enraizadas e que prevalecem nas políticas púbicas, na
promovendo as características que o tempo exige. Foi assim com politização da fé ou na religiosidade inscrita na ação política. Para
Kennedy e tem sido assim também com Obama: homens normais percebermos Obama temos de o fotografar numa atmosfera hete-
mitificados politicamente em função, respetivamente, da agoni- rogénea como esta, à qual ele nunca procurou fugiu. Mais: nunca
zante tragédia e da incontrolável expectativa. Só que enquanto não se coibiu de tocar em todas as opções contraditórias se o momen-
as ultrapassarmos não lhes faremos justiça. to e a realidade o justificassem.
Kennedy falhou em quase tudo na política externa e não teve Por isto, apesar de ideológico, Obama nunca deixou de ser um
tempo para celebrar vitórias internas (Lyndon Johnson agradeceu). pragmático. Foi promotor de um intervencionismo estatal expan-
Obama tem sido errático e demasiado contemplativo. Com tantas sionista por parte da Reserva Federal e do Tesouro, sem os quais
limitações políticas, é o simbolismo quem melhor os define: mes- não teria havido uma inversão progressiva do pânico sistémico no
tres da imagem, profetas da palavra. Não vejam isto como uma crí- sector financeiro ou da habitação. Poderá alguém dizer que isso ini-
tica destrutiva: se a palavra política fosse tão bem tratada na Euro- biu o risco ou a iniciativa privada dos americanos quando só o sec-
pa como é nos EUA talvez tivéssemos outra relação com os seus tor privado criou em sete anos 12 milhões de novos postos de tra-
oradores e executores, perceberíamos melhor o que defendem, balho, fixando a taxa de desemprego nos 5% no final de 2015
para onde querem ir, como querem lá chegar. Uma das tragédias (metade da de 2009), 92% de confiança nos índices de consumo e
europeias é o desprezo pela liturgia política, erro que os america- um PIB a crescer 5%? Quem acharia isto possível quando o Leh-
nos teimam em não cometer. E ainda bem. O problema é outro: man Brothers caiu no outono de 2008? Ou quando se expandiu a
a política feita em Washington não colhe simpatia no resto do país. rede de vigilância interna e externa e o uso indiscriminado de dro-
Pude testemunhar isso mesmo numa longa viagem feita recente- nes como arma preferencial de guerra sem limites ou balizas re-
mente por todo o país, de Nova Iorque a Minneapolis, de Anchora- gulatórias, num contraste com o modo como a Administração sal-
ge a Rapid City, de Houston a Chicago. Os EUA vão continuar a ser vou a indústria automóvel do Midwest mas deixou que Detroit
heterogéneos, com estados progressistas e conservadores. Wa- entrasse em bancarrota? Este é um bom exemplo da ação hetero-
shington carregará o fardo do ódio popular, o Congresso, a culpa génea de Obama, o qual na verdade não pode ser encaixado numa
e a Casa Branca, a impotência. só categoria política ou filosófica, mas sim visto com uma síntese
Os mandatos de Obama expuseram, no entanto, novas variáveis de várias tradições ideológicas e até de perfis presidenciais.
no centro do debate, nomeadamente uma aproximação das políti- De Lincoln herdou o peso da palavra e a perseverança numa uni-
cas públicas a um certo «modelo europeu» de intervenção do Es- dade nacional ilusória; de Truman a valorização das alianças; de
tado. Quem esperasse aceitação popular ou estadual, conhece mal Lyndon Johnson o assistencialismo social alargado; de Reagan o
os EUA: o país foi e continuará a ser o resultado constitucional da realismo externo; de Kennedy o estilo e a noção do espetáculo; e de
tensão permanente entre o centro e a periferia, entre o núcleo e a Clinton um misto de voluntarismo com fina arte política. Também
autonomia, entre representante e representado, entre a legitimi- por isto, seria uma ilusão esperar que Obama fosse um messias
dade e a lei, entre a tradição e a modernidade, entre o costume e a fundador de uma era nova, um redentor dos vícios da América ou
inovação. Historicamente, os EUA estiveram mais disponíveis um restaurador das virtudes constitucionais atribuídas aos pais
do que os europeus para tolerar altos índices de desigualdade, fundadores. Nem o tempo, nem o timing, nem as armadilhas, nem
se acompanhados por forte crescimento e uma pujante classe a rispidez do debate, nem a herança de Bush, nem a desordem

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O mito do messias negro

internacional jogavam a favor desse mítico desígnio. No fundo, Estados passou a ser a pedra de toque da política externa. Mas se o
ele foi simplesmente um Presidente normal e, na política atual, Irão, a China, Cuba e a Birmânia encaixam nessa dinâmica, de fora
isso é muito. ficaram a Rússia, a Arábia Saudita, a Turquia e até Israel, os quais,
com as devidas nuances, foram progressivamente invertendo alguns
A herança bons ofícios de Washington ou entrando em clivagem com os seus
Vamos a números. De acordo com o Pew Research Center, Obama comportamentos. Não se pode dizer que a política externa de Oba-
tem, entre todos os Presidentes desde Kennedy (56%), o índice mais ma tenha sido um sucesso, mas é preciso responder a uma questão:
elevado da taxa de aprovação mais baixa (41%) e, desde que se ini- se qualquer Presidente herda os fracassos e os sucessos dos seus an-
ciou a Guerra Fria, o índice mais baixo da taxa de aprovação mais tecessores, que poderia Obama ter feito melhor? Vali Nasr coloca o
alta (64%) entre todos os Presidentes. Neste grupo, Bush pai conse- dedo na ferida em The Dispensable Nation: Obama tem sido incapaz
guiu o máximo em março de 1991 (89%), seguido de Bush filho em de definir os termos de uma grande estratégia americana neste mo-
setembro de 2001 (86%). Também por aqui se retira que Obama foi mento de transição da ordem internacional. Não que o declínio dos
muito mais um Presidente avaliado dentro de um arco de aprova- EUA seja uma evidência ou fatalidade (Nasr contesta-o), mas porque
ção moderado, sem que os extremos de popularidade positiva e ne- a influência de Washington nos assuntos internacionais, em parti-
gativa refletissem a polarização em que a política americana tem vi- cular no Médio Oriente, esbarra na impreparação da Administração
vido nos seus mandatos. Ele nunca foi um excêntrico, a Casa Branca Obama em definir os termos do exercício do seu poder. É por isto que,
nunca protagonizou um escândalo na esteira de Kennedy, Nixon ou para Vali Nasr, a retração estratégica em curso pode levar a que os
Bill Clinton, e a sua Administração pode ser acusada de muita coisa EUA não mais venham a ser a «nação indispensável» e, por via disso,
mas não de estar envolvida em processos menos claros que puses- o mundo passe a ser um sítio mais instável e perigoso.
sem em xeque a credibilidade do Presidente. A haver novidade é Numa linha mais ou menos coincidente, Robert Singh defende em
mesmo esta: serenidade no exercício dos mandatos. Ora, nem isto Barack Obama’s Post-American Foreign Policy que Obama tem pro-
seria previsível no início, tendo em conta a herança de George curado gerir o declínio americano ao mesmo tempo que deseja
W. Bush, a inexperiência executiva de Obama e o clima político aci- preservar a supremacia entre as grandes potências. Como é que o
catado pelo radicalismo republicano. Hoje, mesmo quando discor- tem feito? Através da crença excessiva no soft power e na diplo-
damos das opções de Obama poucos se atrevem a atacar o seu ca- macia direta, sem com isso conseguir grandes resultados. Singh
rácter ou a pegar nalgum dispositivo pessoal para atacá-lo. Mas se critica a validade da ligação feita por Obama entre interesses parti-
esse ângulo pode definir a lente externa, já o mesmo não se pode di- lhados e alinhamentos sustentados com as grandes potências, de for-
zer internamente, o que diz mais do nível da oposição republicana ma a lidar com ameaças e desafios globais, à qual chama «política ex-
do que propriamente de Obama. terna pós-americana». Dá os exemplos das tentativas para
Convém por isso perceber a herança para chegar a um legado. restabelecer melhorias na relação com Rússia, Irão, Afeganistão, Pa-
Quando Obama tomou posse, em janeiro de 2009, a sangria labo- quistão, China e países árabes do Médio Oriente, para concluir que
ral chegou ao milhão e meio de desempregados só no ano anterior, apenas essa estratégia benigna e ingénua não chega para garantir
com a respetiva taxa nos 10% e o défice federal nos 9,8% do PIB. Não um papel decisivo nem de líder aos EUA. A calibragem necessária
vale a pena lembrar o pânico bancário ou sequer a fadiga das duas após os anos de Bush tem também os seus limites, tal como é limita-
longas guerras, a do Iraque e a do Afeganistão, sendo esta mesmo a do o alcance da linha diplomática traçada por Obama. Robert Singh
mais prolongada da História dos EUA. A credibilidade da Casa Bran- defende que o hard power militar deve permanecer no centro da po-
ca em casa e no exterior estava muito delapidada e foi este o racio- lítica externa, precisamente porque a natureza das potências emer-
nal de Obama: restaurar para transformar. Para tal foi fundamen- gentes e de outros players regionais com crescente influência nem
tal ter feito de Foreign Policy Begins at Home, de Richard Haass, sempre olha para Washington com admiração e respeito pela sua
o seu livro de cabeceira. posição sistémica ou pelos meios usados.
À entrada para 2016, o défice federal estava já nos 2,8% do PIB, Já David Sanger, em Confront and Conceal, é mais condescen-
a atividade económica tinha estabelecido um recorde no crescimen- dente com Obama, ao assumir uma análise sobre a ação externa de
to sustentado do emprego pelo 63º mês consecutivo, muito alavan- Obama mais próxima de Bush do que de afastamento. Ao olhar, por
cado no sector privado, como vimos anteriormente. A promessa de exemplo, para a sua política antiterrorista, descreve-a como «uma
fazer regressar a quase totalidade das tropas do Iraque e do Afega- mudança de enfâse mais do que uma mudança de direção». E com
nistão tinha sido cumprida, e o desanuviamento bilateral com alguns razão. O erro de Bush foi combater o terrorismo apocalíptico islâ-

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mico numa frente demasiado alargada, Mesmo que a figura de Clin- pulistas antissistémicas, assentes num
assente em longas e distantes permanên- rancor visceral a Washington. Por outro,
cias de tropas, pagando um preço finan- ton não desperte a simpatia nenhum quer verdadeiramente agarrar
ceiro e político demasiado caro. Obama com que Obama cativou o no legado de Obama. Sanders critica a sua
corrigiu o tiro de partida. Congelou as falta de ambição revolucionária, enquan-
«mudanças de regime» e a nation buil-
mundo e milhões de ameri- to Trump ataca o seu excesso de zelo ad-
ding para se concentrar na captura dos canos, qualquer moderado ministrativo. O melhor para esta Améri-
terroristas, com o sucesso que se conhece ou reformista aprecia a previ- ca em restauração é que os dois fiquem
ao nível da cúpula da Al-Qaeda. Onde pelo caminho, que os republicanos per-
Bush era maximalista e propunha uma sibilidade, a sensatez, a ca- cebam a encruzilhada política e socioló-
visão revolucionária típica da agenda ex- dência, a palavra certa e a gica em que mergulharam e que Hillary
terna neoconservadora (mudar o xadrez Clinton vença as primárias e as presiden-
árabe, depor ditadores, usar o poder ame- acalmia administrativa à tem- ciais em novembro. Porquê? Por ser a
ricano maciçamente), Obama tem sido pestuosidade, ao populismo, única que assegura uma continuação
minimalista, na defesa de uma abor-
dagem mais austera, privilegiando os pro-
ao ímpeto revolucionário, ao serena das políticas públicas de Obama
– saúde, educação, imigração, segurança,
blemas imediatos de segurança face estímulo para a clivagem so- política externa – com margem suficien-
à transformação das sociedades que os cial e ao medo sobreposto te para as afinar. Para esse perfil contri-
criam. Neste sentido, há uma diferença, buem duas características que merecem
mas não uma completa rutura. à inclusão. Hillary Clinton é ser valorizadas.
Mas pegando precisamente neste pon- quem está mais bem coloca- A primeira é a experiência política
to, o principal corte tem uma natureza e executiva de Clinton, na advocacia, no
mais profunda, epistemológica até. Como
da para aproveitar o legado Congresso e no Departamento de Estado.
diz James Mann, autor de The Rise of the de Obama. A segunda é a capacidade para assegurar
Vulcans e The Obamians, Barack Obama a manutenção da grande coligação eleito-
«será visto como o primeiro Presidente ral que tem dado as vitórias a Obama,
que encarou seriamente o facto de ser impossível aos EUA man- composta por minorias étnicas, jovens, mulheres e classe média. Mes-
terem os termos da hegemonia detida após a Segunda Guerra mo que a contenda das primárias dilua este eleitorado, não tenhamos
Mundial e prolongada depois do fim da Guerra Fria». É um ato de dúvidas de que ele se reunirá à volta de Clinton se ela for a candidata
realismo e de humildade que normaliza a presidência, tem impacto do partido à Casa Branca. E mesmo que a figura de Clinton não des-
nas relações internacionais e efeitos na maneira como as outras po- perte a simpatia com que Obama cativou o mundo e milhões de ame-
tências preenchem os espaços deixados pela retração americana. ricanos, qualquer moderado ou reformista aprecia a previsibilidade,
Tem custos e benefícios. Agrada a uns e desagrada a outros. Estamos a sensatez, a cadência, a palavra certa e a acalmia administrativa à
a ver isso na Ucrânia, na Síria, no Iraque, vamos ver isso no Afe- tempestuosidade, ao populismo, ao ímpeto revolucionário, ao estí-
ganistão. Esperamos não assistir ao mesmo se a absoluta falta mulo para a clivagem social e ao medo sobreposto à inclusão. Hilla-
de coesão comunitária desferir um tiro fatal na União Europeia. ry Clinton é quem está mais bem colocada para aproveitar o legado
Se a testosterona mostrou os limites da hegemonia agressiva dos de Obama sem deixar de corrigir os desacertos que o pautaram.
EUA no mundo, o excesso de contração traz riscos igualmente sis- Veremos se os EUA estão preparados para continuar a fazer His-
témicos. O Presidente que conseguir equilibrar com mestria as tória: depois de um afro-americano, eleger a primeira mulher para
medidas certas dos dois comportamentos terá encontrado um lega- a Casa Branca é também um efeito da ascensão do liberalismo cul-
do justo e duradouro. Obama ensaiou o passo, mas não chegou lá. tural renascido com Obama em 2008. Mas não só. Desde 1900, só
três estreantes candidatos à Casa Branca chegaram à presidência
O legado após o seu partido ter estado oito anos no poder: William H. Taft, Her-
A popularidade de Donald Trump e de Bernie Sanders nas primá- bert Hoover e George H. Bush, todos eles republicanos. E com uma
rias republicanas e democratas encerram um duplo teste ao mo- curiosidade extra: só cumpriram um mandato. Hillary pode ser o pri-
mento americano. Por um lado, ambos representam matizes po- meiro democrata a integrar este restrito grupo.

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U M A N O VA
D E S C O B E R TA
DA AMÉRICA
Uma série desirmanada destes livros recentemente publicados
pode bem servir de introdução ao conhecimento da América de
hoje. Descobrir esta ignorada, marginal literatura americana
seria uma aventura bastante benigna, deleitável e até proveitosa.

Texto de LUIZ SANTOS-ROZA

«Quem, em Portugal, se interessa pelas coisas li- páginas de Cidade em Chamas estavam em português a ser pre-
terárias foi levado a circunscrever a literatura norte-america- maturamente julgadas pelos nossos resenhistas uma obra-prima.
na à obra de cinco ou seis escritores quase sempre tardiamente Curámo-nos da desatenção de antanho?
revelados e traduzidos», escreveu João Palma-Ferreira no seu Diá- Claro que não. Perdemos a melhor literatura americana das dé-
rio, em 1962. Faulkner, Fitzgerald, Capote, nomes já então ungi- cadas de 60 e 70. Palma-Ferreira de novo: «O neo-realismo lis-
dos, contavam-se entre os párias. Agora, a situação parece bem boeta e coimbrão foi pai do mundo. E pau para toda a obra. Dis-
melhor; livros novos de Paul Auster e Jonathan Franzen têm edi- tribuiu cacetada a eito. Levou o Pessoa, levou a Presença, levaram
ções quase simultâneas por cá. Garth Risk Hallberg ainda mal o Kafka e o Freud, não escapou o Beckett nem o Joyce, levaram o
começara a receber as primeiras resenhas negativas e já as mil Zola, o Eça e o Miller; foi um dar sem dó nem piedade de que hoje

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© DR
De I Like America and America Likes me, uma performance realizada por Joseph Beuys em 1974.

alguns encabulados refratários se envergonham.» É claro que, por Os primeiros romances de Barth, embora existencialistas à ma-
exemplo, John Barth, um escritor com uma obra altamente ce- neira do seu tempo, já mostravam enfado com o esgotamento da
rebral, inventor de labirintos formalistas e reflexões sobre a arte fórmula e buscavam novos modos de expressão. É já existencia-
de narrar, teve de esperar por uma era mais propensa à literatura lismo decadente: um parodia a famosa questão de suicídio de Ca-
como jogo, uma vez que não escreve dentro da estrita gama mus; o outro, The End of the Road, levando as ideias de Sartre ao
de razões por que os émulos de Alves Redol o faziam. absurdo, desemboca em desumanidade. Ambos como que lhe
Oxalá que à tradução do seu primeiro romance, Ópera Flu- limparam a bancada de trabalho para ele montar a sua verdadei-
tuante (Sextante, 2013), se sigam The Sot-Weed Factor e Lost in ra obra. O aprendiz Barth não sabia como prosseguir, mas sabia
the Funhouse que mudaram a ficção americana há meio século. para onde não queria ir.

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Para uma nova descoberta da América

Quando o realismo social anunciava a morte do enredo, as tra- casa. Hum, pois. Ah, mas o fascínio vem da voz de Frederick Koh-
mas e reviravoltas do pícaro The Sot-Weed Factor trouxeram nova ler, um misantropo que lança uma estrondosa verrina contra a His-
dignidade à arte de contar histórias. Os contos interligados de Lost tória, a Humanidade, a família, o amor; um exuberante odiador que
In the Funhouse levaram mais longe o jogo de ficção sobre ficção, faz Céline soar como uma monja a orar. Só esta voz, de um humor
com o narrador a discutir técnicas narratológicas, narrativas den- negro saturado de sensações levadas ao extremo, faz a leitura valer
tro de narrativas e brincadeiras com as expectativas do leitor, como a pena. Mas o verdadeiro feito de Gass está na escrita; ele é um se-
em Saramago. E sempre o humor inesperado: o protagonista guidor de James Joyce e acredita que o como escrever é mais im-
de um conto é nada mais, nada menos que um espermatozoide. portante do que o tema. «Eu tenho muito pouco para comunicar»,
Barth é divertido, acessível, muito generoso para com o leitor; a disse ele uma vez. «Não tenho a certeza de compreender esse pou-
musa dele é Xerazade, por isso o contar bem e deleitar são-lhe ful- co que tenho.» Além disso, Gass ainda acredita na Beleza, talvez o
crais. Ele vai ao encontro do estereótipo português dos escribas único, principal tema da sua obra. Nada é demasiado grotesco para
americanos, que os vê como meros entertainers de prosa simples. Gass – e ele adora o grotesco – que não possa ser redimido pela pa-
Fica-se com a impressão de que antes de os ingleses começarem lavra virtuosa. The Tunnel é um romance de 650 páginas aliteran-
a escrevinhar penny dreadfuls ninguém sabia contar histórias tes. Eu repito: 650 páginas aliterantes. As frases, escritas para o ou-
empolgantes; nunca a França teve Dumas, Féval, Verne; nunca vido, sucedem-se sob a lei da eufonia, como se formassem um vasto
Emilio Salgari deleitou meninos italianos com aventuras de pira- poema. Cada livro que publica é um evento para deixar marcas,
tas; nunca Edogawa Rampo cativou o Japão com os seus perfeitos como um terramoto, não para se sobrevalorizar, consumir e esque-
contos policiais. cer semanas após a rentrée. Aí está ele, à espera de poder encantar
Se eu baseasse juízos só no que leio por cá, também pensaria que leitores que leem, não pelo enredo e para saber o que acontecerá a
a única ambição dos ianques é escrever livros facilmente adaptáveis seguir, mas pela beleza da prosa, o mapeamento da deriva huma-
a filmes. As loas usadas nas nossas resenhas desanimam; serei eu na, a sedutora misantropia, a riqueza de metáforas e símiles que
o único a reparar na tendência para se elogiar os americanos ape- apenas tem igual em António Lobo Antunes.
nas por enredos lineares, prosa escorreita, vocabulários minúsculos, Igualmente lento a escrever, Alexander Theroux publicou quatro
temas mediáticos e morais banais? Discutir literatura romances desde 1972, não menos elaborados que
americana é também discutir preconceitos os de Gass, aplicando a minúcia de Proust
portugueses contra ela e como eles condi- à frase bela e original. Mas se Gass pre-
cionam a escolha de obras a traduzir. za o som, Theroux é louco por lé-
Mas hoje em dia não temos de xico. Numa entrevista gabou-se
esperar pelas editoras e o des- de usar «palavras que não
conhecimento sana-se facil- são ditas há cinco séculos».
mente. Posso apresentar- Theroux não vai à bola
-vos William H. Gass, Ale- com catacreses e «coisa»
xander Theroux, Carole rareia nos seus livros;
Maso, Joseph McElroy, ele sabe que há um
Mary Caponegro? nome para tudo e in-
Gass, que aliás cu- siste em prová-lo em
nhou o termo «metafic- cada página. Em ter-
ção» a pensar em Barth, mos de riqueza e pre-
passou 25 anos a escrever cisão vocabular, não
um romance, The Tunnel conheço igual na atuali-
(1995): o enredo, como em dade. Em Darconville’s
todos os livros dele, importa Cat, a sua obra-prima, um
pouco: um professor universitá- professor e uma aluna num
rio, após anos a compor um estu- colégio feminino apaixonam-
do sobre o Terceiro Reich, farta-se de -se; planeiam o casamento; mas à
escrever o prefácio e passa a divagar sobre última da hora ela rompe o noivado.
a vida enquanto cava um túnel por baixo de Entra em cena uma figura sinistra que as-

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Há 500 anos atrás, Pedro Álvares Cabral, ao deparar com o Brasil, teve um papel na des-
coberta das Américas. Hoje em dia há outra América por nós desconhecida
que vale a pena descobrir. Era bom que esses livros viessem para cá, não como
escravos num porão para trabalharem por nós, mas como o humanista Cataldo Sículo que
D. João II chamou ao reino para educar o filho.

sombra os corredores do colégio, um antigo professor chamado Cru- hilariante The Public Burning, uma autópsia da paranoia antico-
cifer, um eunuco cristão hipermisógino; pressentindo uma alma gé- munista dos anos 50, tem um inseguro Richard Nixon como nar-
mea em Darconville, tenta persuadi-lo a matar Isabella. Um dos ca- rador; William Gaddis, o crítico da América das grandes corpora-
pítulos mais delirantes do livro não é mais que uma barroca lista de ções, do capitalismo e dos litígios. Leiam isto como um alerta: eles
métodos bizarríssimos de matar mulheres: existem, eles são ótimos, eles merecem traduções. A maioria sur-
«Vapulate her! Wherret her! Sneg her! Bash her on the pan- giu nos anos 60 e 70 para renovar as letras americanas; coincidi-
bone! Thwitch out her innards! Strip off portions of her skin, ram com um período em que só fazíamos olhinhos a franceses.
paint them, and then use them for tiny kites! Abacinate her by Muitos nunca foram traduzidos, ou foram--no há décadas (e só
placing a red-hot basin near her eyes! Take her first-born infant obras menores) e estão esgotados. Voltámos a interessar-nos pela
by the ankle and flog her with it until both are dead! Carve an Es- América nos anos 80, e não admira que conheçamos melhor Paul
kimo tupelak with her face on it and blaspheme it, scomfitting Auster, Raymond Carver e Bret Easton Ellis, ou então nomes que
it with whispers, obscenities, and dark curses! Throw her into se tornaram conhecidos por motivos paraliterários: Lydia Davis
a huge thirlpool! Break a needle in her finger and watch her die com o Man Booker internacional, Cormac McCarthy após a adap-
of lockjaw!» tação cinematográfica d’Este País Não É para Velhos. Geralmente
Darconville’s Cat é um livro fecundo que explora estilos e for- chegam-nos por pequenas editoras: Gaddis teve a primeira tra-
mas diferentes em cada capítulo. Um, intitulado «Quanto vale dução em português em 20 anos graças às Edições Ahab, que nau-
uma imagem?», tem exatamente mil palavras; outro tem uma só. fragou pouco depois; a 7 Nós começou a editar William T. Voll-
Citações latinas e alusões intertextuais abundam. Theroux espe- mann em 2014 e corre o risco de pagar por tanto bom gosto porque
ra que o leitor ponha empenho na leitura. Three Wogs, o primei- a crítica anda ocupada a celebrar autores menos exigentes. Mui-
ro romance, bastante atual, é um tríptico sobre xenofobia, nacio- tos destes nomes têm de ser «tardiamente revelados e traduzidos»,
nalismo e multiculturalismo; Darconville’s Cat é uma meditação mas têm de sê-lo de qualquer modo dada a singularidade das suas
profunda sobre amor, traição, vingança e arte; Laura Warholic visões. Não é de estranhar que muitos deles, vanguardistas na sua
demole todas as correções políticas da atualidade. Em termos altura, nunca foram bem aceites pelo mainstream americano.
de estilo, Theroux irmana-se de Aquilino Ribeiro, o que na minha A visão deles sobre a América, a sua sociedade e história, não é
dúbia escala de valores estéticos é o maior elogio que posso prestar agradável, e por isso mesmo são cruciais. Foram radicais no pen-
a um autor. Lê-lo, como ler Aquilino, é como brincarmos ao sar, por isso radicais na forma como encaravam a ficção, o que os
Indiana Jones, só que em vez de irmos à procura de relíquias afasta do consenso que torna tanta literatura internacional indis-
andamos à procuramos de palavras, e as recompensas são bem tinguível de país para país.
melhores do que espreitar o conteúdo da Arca Perdida: ele é Há 500 anos atrás, Pedro Álvares Cabral, ao deparar com o Bra-
divertido, erudito, sensível, irado, opinado, perspicaz e um exímio sil, teve um papel na descoberta das Américas. Hoje em dia há ou-
observador da desventura humana. tra América por nós desconhecida que vale a pena descobrir; é
Falta de espaço impede-me de aprofundar estes três autores, uma de livros e cultura; as suas riquezas são muitas: divertem-
merecedores cada um de artigos individuais. Foco-me neles por -nos, comovem-nos, ensinam-nos sobre o mundo, desafiam-nos
predileção, mas podia rescrever este artigo de mil maneiras e men- intelectualmente. Gostaria que os livros dela viessem para cá, não
cionar outros tantos: Stanley Elkin e Rosellen Brown, autores de como escravos num porão para trabalharem por nós, mas como
sóbrios, íntimos romances realistas; Ishmael Reed, que pegou na o humanista Cataldo Sículo que D. João II chamou ao reino para
tradição oral dos contadores afro-americanos para questionar a educar o filho – para nos abrir a mente a novas mundividências e
civilização ocidental; o absurdista cómico Richard Brautigan; o ero- inspirar possibilidades. Descobrir esta ignorada, marginal litera-
tismo de Carole Maso; estilistas líricos como Paul West, John Haw- tura americana seria uma aventura bastante benigna, deleitável
kes e Caponegro; Robert Coover, cuja obra-prima, o extravagante, e até proveitosa. Estão todos convidados a embarcar nela.

LER primavera 2016 91


um
rEquiem
feliz
Uma mulher comum atravessa a paisagem carregando fantasmas,
deixando-se levar pelo impulso, cedendo a obsessões. Silenciosa,
solitária, tranquila. No segundo volume das suas memórias, Patti
Smith experimenta a digressão depois da narrativa cronológica
dedicada à sua juventude em Apenas Miúdos. Este M Train é uma
viagem literária, e é também uma linha de metro que atravessa
Nova Iorque com todas as possibilidades desse cenário.

Texto de ISABEL LUCAS

© Michael Ochs Archive/Getty Images


Um requiem feliz

Onde estará o travesti velho bungalow que comprou ali no verão wood, Atlantic City, Ocean City – mais ani-
de 2012, antes da tempestade Sandy des- mados talvez mas não tão bonitos. Parecia
que saiu em Herald Square? truir quase tudo? Reconstruiu-o. Chamou um sítio perfeito, sem placares e poucos
Quem o viu no metro não à casa e ao quintal à volta o «Álamo» e é o sinais de um comércio enraizado. E o bun-
o esquecerá e no entanto ele seu refúgio. «Um lugar para pensar, cozi- galow escondido! A rapidez com que me
nhar spaghetti, mexer um café, um lugar encantou.»
permanece anónimo. Tinha para escrever», diz em M Train, o segundo Seguir a pista de Patti Smith obedece ao
umas calças de licra coladas volume das suas memórias, publicado em mesmo impulso que a levou atrás da geo-
às pernas magras e com 2015 e que está prestes a sair em Portugal grafia e das marcas físicas de Sylvia Plath,
pela Quetzal. É o livro que se segue a Ape- Frida Khalo, Roberto Bolaño. Será que ao
músculos, sapatilhas cor nas Miúdos (2010) e, ao contrário desse pri- sentar-me por breves momentos na cadeira
de rosa e um casaco de pele meiro, uma divagação menos cronológica, onde Bolaño escreveu pensei que poderia re-
a imitar raposa. guiada por memórias, impulsos de viagem ceber alguma coisa do seu talento? Foi mais
e por uma nostalgia que lhe vem do senti- ou menos este o pensamento de Patti no dia
mento de perda, de se saber uma sobrevi- em que não resistiu e se sentou nessa cadei-
Tinha auscultadores e cantava uma canção vente cada vez mais solitária. Os amigos da ra, para no mesmo instante sentir que tinha
de Amy Winehouse quando se esquecia de geração Beat já não estão. Não está Todd, o profanado ou usurpado um lugar que não
que estava a discutir com o homem do lado. irmão que a acompanhava na produção dos era o dela. «Há dois tipos de obras de arte. Há
O homem fingia não o conhecer e ninguém seus espetáculos. Morreu um mês depois os clássicos monstruosamente divinos como
teve certeza de que se conheciam mesmo. de Fred «Sonic» Smith, o marido de Patti Moby-Dick ou O Monte dos Vendavais ou
Cantava, dizia palavrões e mascava pastilha durante 14 anos, que não sobreviveu a um Frankenstein: o Moderno Prometeu. E de-
elástica na carruagem de metro quase vazia. ataque cardíaco em 1994, pai dos seus dois pois há o tipo em que o escritor parece in-
Entrou em 4th West e foi sempre assim, uns filhos, Jackson e Jesse. Ele é central em fundir energia de vida às palavras ao mesmo
10 minutos, até correr para a porta em He- M Train, quase tanto como Robert Map- tempo que o leitor rodopia nelas, se retorce e
rald Square e, na corrida, deixar cair uma plethorpe foi em Apenas Miúdos. M Train é pendurado na rua a secar. Livros devasta-
pestana postiça. Voltou atrás e conseguiu é sobre tudo isto num estilo digressivo. Pat- dores. Como 2666 ou O Mestre e Margarita.
apanhá-la a tempo de seguir caminho. Pen- ti Smith é aqui alguém que se movimenta Crónica do Pássaro de Corda [de Haruki
so nele já bem longe, em frente ao mar de numa paisagem de memórias e alguns pro- Murakami] é um livro desses. Quando o ter-
Rockaway Beach que só conhecia, e muito jetos e que no caso de lhe faltar um livro por minei fui imediatamente obrigada a relê-lo.»
vagamente, de uma canção dos Ramo- perto escreve para ter alguma coisa para ler. Levou-o na viagem de que regressara recen-
nes. Era do album Rocket to Russia, de 1977, Em Rockaway Beach construiu um lugar temente a Tóquio e voltava a ele. M Train
e tinha o mesmo nome daquela praia de para pensar e para a escrita, a única coisa tem muita da energia vital de que fala e a as-
Queens. «Chewing out a rhythm on my bub- que, confessa, não lhe aconteceu por acaso. sociação é imediata. Como quando lhe ocor-
ble gum / The sun is out and I want some / Num dia de maio de 2012, sentada num reu que talvez pudesse encontrar Murakami
/ It’s not hard, not far to reach, we can hitch dos muitos bancos ao longo do passeio ma- nas ruas de Tóquio quando lia um dos livros
a ride to Rockaway Beach.» rítimo, Patti Smith elaborava sobre o que po- do escritor japonês, penso que Patti Smith
Há poucos surfistas no mar. Poucas on- deria ser essa existência, ali, pela primeira terá mais a fazer do que aparecer por ali oca-
das, um vento que vem de oeste, não muito vez numa casa só para si e pensada para sionalmente para minha conveniência.
frio. Nenhum cheiro a iodo e uma gritaria isso, para ser vivida a sós. Um espaço aber- O que nos faz ir atrás de um livro? Poder es-
de gaivotas no areal quase sem ninguém. to, com janelas e uma mesa para escrever. tar mais intimamente com ele, sem pisar o
Só um ponto ou outro ao longe e corredores Há uma solidão tranquila a atravessar toda risco do pudor, sem profanar o espaço que é
solitários no longo passeio junto mar. É in- esta escrita, melancólica mas viva. «O pas- do autor. Qual daquelas casas será o Álamo?
verno. O que fez com que Patti Smith se sadiço ecoava uma juventude passada em Pequena, de madeira, com cortinas de linho
sentisse atraída por Rockaway Beach e pelo Nova Jérsia com os seus boardwalks – Will- branco nas janelas, entre a linha de comboio

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e o oceano. É pela falta de resposta que me Seguir a pista de Patti Smith conduzir e caminha ou usa os transportes
mantenho por ali. obedece ao mesmo impulso que públicos para se mover por ali, gorro ou cha-
Patti Smith foi pela vez primeira a Rock- a levou atrás da geografia e das péu na cabeça, casacos e T-shirts largas, bo-
away Beach atrás de um café num feriado tas rasas, um bloco e por vezes uma máqui-
marcas físicas de Sylvia Plath,
onde quase tudo estava fechado em Manhat- na fotográfica. O título leva-me à linha de
tan. «No Memorial Day [feriado americano Frida Khalo, Roberto Bolaño. «Há metro real. O «M» vem agora num círculo
que corresponde à ultima segunda-feira de dois tipos de obras de arte. Há os vermelho quando entro na Broadway-La-
maio] acordei cedo, ajeitei o quarto, e enchi clássicos monstruosamente divi- fayaette, entre o SoHo e o Village. Um judeu
um saco com tudo o que precisava – óculos sefardita pergunta por Alphabet City, mas
nos como Moby-Dick ou O Monte
escuros, água alcalina, um muffin de farelo, e desconfia das minhas instruções. Pergunta
o meu Crónica do Pássaro de Corda.» Apa- dos Vendavais ou Frankenstein: a mais duas pessoas e sobe as escadas pelo
nhou o metro uns quarteirões acima da sua o Moderno Prometeu. E depois há caminho que todas lhe indicaram. O «M» de-
casa no SoHo e fez uma viagem de cerca de o tipo em que o escritor parece mora. Leva mais de uma hora entre uma
uma hora até Broad Channel, na zona sul de ponta e outra, quase um círculo que atra-
infundir energia de vida às pala-
Queens, não muito longe do Aeroporto JFK. vessa o mesmo rio em dois pontos diferen-
Daí até Rockaway são duas estações de com- vras ao mesmo tempo que o leitor tes. O East River, primeiro de Brooklyn para
boio. Uma área suburbana de casas baixas, rodopia nelas, se retorce e é pen- Manhattan, e depois de Manhattan para
pequenos quintais, situado numa baía, Ja- durado na rua a secar. Livros Queens. As carruagens vêm cheias. São seis
maica Bay. Em Rockaway, vivendas e edifícios da tarde. Não sei quantas pessoas entraram
devastadores. Como 2666 ou
vitorianos estão próximos de blocos de apar- e saíram ao longo do percurso. Milhares.
tamentos de habitação social e outros de cons- O Mestre e Margarita. Crónica Olhar atentamente para elas, juntar infor-
trução moderna que testemunham um in- do Pássaro de Corda [de Haruki mação e imaginação e consegue-se traçar
vestimento recente naquela área. «Havia uma Murakami] é um livro desses. um perfil da cidade, da sua complexa carto-
atmosfera feliz e tranquila com uma mistura grafia social. Basta uma longa linha de me-
Quando o terminei fui imediata-
agradável de surfistas descontraídos e famí- tro. Um rapaz lê um compêndio sobre mi-
lias de operários», conta pouco antes de se de- mente obrigada a relê-lo.» croprocessadores, um grupo de estudantes
clarar atraída por aquele sítio. Sentou-se a be- asiáticos ri do que mais ninguém parece en-
ber o café que o amigo lhe ofereceu, esquecida de desbotado como as costas de um louva- tender, uma mulher muito nova ajeita o saco
do romance de Murakami, recordando o tem- -a-deus.» Um «M» de memória – ou o mais de plástico no colo, usa peruca, vestido por
po em que se mudou para uma casa no cam- abrangente mind. É a mente e as suas digres- baixo dos joelhos, gola da blusa branca fe-
po, no Michigan, com Fred, e onde teve os dois sões, sobretudo de memória, o verdadeiro chada até ao último botão. E vai puxando a
filhos. No regresso, a Manhattan percebeu tema deste livro. Mas M Train é também a li- saia, temendo que ela suba, sem nunca des-
que tinha perdido o livro e esse passou a ser nha de metro que percorre três dos maiores compor a pose. Há outra mulher que dor-
outro dos fantasmas a habitar M Train e fa- bairros de Nova Iorque: Brooklyn, Manhattan me, muito direita, pasta sobre os joelhos.
zem dele uma longa canção melancólica, e Queens. O jogo entre uma coisa e outra E entre todos estava o travesti que entrou e
onde o refrão é feito de imagens recorrentes: esteve na mente de Patti Smith ao escolher saiu num percurso estranhamente calmo
Fred, o livro de Murakami, uma casa de in- um título que tem uma sonoridade muito do M Train.
fância na Pensilvânia, William S. Burroughs, familiar aos nova-iorquinos. Patti Smith chama também «casa» a essa
cafés nas cidades por onde andou, o México Nova Iorque. Foi lá que conheceu Robert
ou Frida Khalo. Foi depois de visitar a Casa Mapplethorpe e os poetas do movimento
Azul, hoje museu e onde a artista viveu os úl- OS BOnS FantaSMaS Beat, e os músicos que com ela iniciaram o
timos anos, que Patti fechou os olhos, depois Também começo a colecionar os meus fan- Punk. Foi lá que se libertou da província
de beber um copo de tequilha e viu «um com- tasmas enquanto ando pela cidade com o li- com os seus preconceitos, do estigma da ra-
boio verde com um M num círculo; um ver- vro de Patti Smith, a mulher que não sabe pariga pobre que o pai temia que nunca en-

LER primavera 2016 95


Um requiem feliz

contrasse pretendente por não ser bonita. tica e escritora que completou 69 anos a 30 Smith a partir do Ino. Mas o Ino já não exis-
Depois de Fred morrer foi lá que encontrou de dezembro. Diz que ter sido artista, se- te e há nada no seu lugar. Sei disso quando
o refúgio e fez o luto junto dos amigos, foi lá nhora do punk rock americano que em 1975 cai uma chuva miúda que não chega para
que anos depois voltou aos palcos. E foi ficou na história da música com o álbum arrefecer o fim de tarde em Bedford Street.
lá também que durante 10 anos se sentou Horses, foi um acaso. A escrita é outra coisa. Em Greenwich Village, o café só existe na
a uma mesa de café a escrever como em Não pode viver sem escrever, e durante anos memória dos que o frequentaram ou leram
casa. Até que um dia… escreveu, mantendo a escrita uma das con- sobre quem por lá andou. Nos guias on-line
Um dia constatou: «Não é fácil escrever dições mais privadas da sua vida pública em da cidade ainda aparece assinalado, está nos
sobre nada.» É a primeira frase do livro. palco, tentando passar anónima, quase mapas, há críticas, fotografias, e um aviso
Mas que «nada» é este? É um nada que invisível, preenchendo blocos de notas nos a vermelho: «Fechado permanentemente.»
se vai repetindo, um dos tais refrões desta cafés de Berlim, Londres, Tóquio, Detroit, No lugar onde esteve, há uma porta fechada,
canção melancólica mas não depressiva Madrid, Cidade do México, Nova Iorque. duas janelas gémeas com madeira por den-
que é M Train. Passaram três anos desde aquela manhã tro, rés do chão de um prédio modesto igual a
Pode ser o nada que sucedeu ao Café Ino. ventosa de março de 2013 em Manhattan. Ti- tantos. A mesa onde Patti escrevia e a cadei-
É verdade. O Café Ino já não existe. Fechou vesse Patti Smith sabido interpretar a exis- ra onde se sentava estão com ela. No último
para sempre. Não há música de fundo nem tência de pelo menos duas vezes mais pom- dia, depois de lhe ter preparado um café
uma pergunta para tentar saber a causa. bos na rua do que era costume e talvez o quando ela bateu na vidraça, o dono ofere-
Para quê? Uma ária de Tosca, de Puccini, es- embate com a ausência das letras «INO» na ceu-lhe esses móveis cativos onde ela pediu
tava a tocar na manhã em que Patti soube da fachada vermelha do nº 21 da Bedford Street para ser fotografada uma derradeira vez.
morte de Robert Mapplethorpe, o seu ami- tivesse sido menos violento. O seu corpo, que Uma fotografia nesse sítio exato está na capa
go, o seu ex-amor. Ela esperava a notícia e, lhe dava sinais de aproximação de tempesta- da edição americana de M Train, o livro que
de algum modo, preparou-se. Mas não ha- de, apenas lhe indicara sintomas de jetlag a revista Pichfork chamou a mais feliz re-
via indício de fim na manhã em que, ao re- e o único remédio para isso era a chávena presentação da melancolia e que começa
gressar à cidade após uma ausência de se- de café bem forte. O que sentiu? Faça-se com a tal frase: «Não é assim tão fácil escre-
manas, se preparava para cumprir a sua a pergunta assim: o que acontece quando nos ver sobre nada.» São palavras que marcam
rotina diária de uma chávena de café forte, tiram uma «casa»? E casa «é uma secretária», o tom e estabelecem o desafio. Temos um
uma torrada de pão escuro, azeite. Foram escreveu também Patti em M Train; ou uma grande nada que é preciso preencher e esta-
10 anos assim, uma caminhada quase me- mesa de canto do café de todos os dias onde mos perante um exercício íntimo de movi-
cânica, atravessar a Sexta Avenida desde se pode escrever, pensar, desenhar, ler e mento e perda, de solidão quando se perce-
casa, até à Bedford Street, umas poucas cen- molhar o pão no azeite. Fazer uma pausa. be, sob várias perspetivas, a tirania do tempo.
tenas de metros a oeste. Chegava, sentava-se Pausa. Quando seguia no avião e sobre- Desta vez, à porta do Ino e ao contrário
na «sua» mesa de canto, tirava o bloco, às ve- voava Nova Iorque tentava situar esse lugar do que aconteceu no dia da morte de Robert,
zes um livro, e era o de sempre sem precisar e também o papel do acaso a partir dali. o luto seria em silêncio e depois disso, se em
de o dizer. Só que agora a porta estava fe- Com as luzes acesas, o chão parece um ce- vez de escrita houvesse uma imagem, via-se
chada e isso é como um separador. Tempo- nário para imensas possibilidades. Patti uma mulher a atravessar uma paisagem no
ral, físico, de vida. Uma linha fina onde é pre- Smith refere-se à cidade à noite como um tal movimento quase sempre guiado pela in-
ciso encontrar um equilíbrio. E o café quente grande palco iluminado. Eu ainda não sabia tuição, pelo impulso. Uma mulher esquiva
forte, agora? A partir de agora? do travesti, de Rockaway, do Ino fechado, ou lenta. Sentada num banco em frente ao
Percebe-se que os dois volumes que com- que duas mulheres sem se conhecerem – eu mar ou a beber um Nescafé na varanda de
põem a autobiografia de Patti Smith são dois e outra — estariam lado a lado a ler o mes- casa em noite de fim de ano. Nessa noite,
réquiens. Apenas Miúdos, vencedor do Na- mo livro numa linha de metro cujo nome quando um grupo de rapazes e raparigas a
tional Book Award, e M Train assinalam era o título desse livro. Quando, no avião viu e lhe perguntou que horas eram, ela res-
despedidas estruturantes em dois períodos fecho o livro, estou decidida a começar a pondeu «São horas de vomitar» e prontifi-
da existência da cantora, poetisa, artista plás- minha viagem com as memórias de Patti cou-se a oferecer um casaco à rapariga que

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seguia de vestido curto numa noite fria. Ela Haverá um lugar para onde vai tudo. «Rimbaud tinha as chaves para uma
é também a mulher à janela de um avião ou o que se perde? Ela acha que sim. linguagem mística que eu devorei, na im-
de um café urbano; a apanhar um comboio, possibilidade de a decifrar por inteiro. O meu
a andar ao frio pelas ruas de Manhattan, a Chama-lhe «o vale das coisas per- amor não correspondido por ele era para
comprar um gorro a um vendedor de rua ou didas», um sítio de uma extrema mim tão real quanto qualquer outra coisa
aquecida por um casaco negro que um dia solidão onde repousam objetos, que eu houvesse experimentado. Na fábrica
um poeta lhe ofereceu e ela perdeu. É uma onde eu trabalhara com um grupo de mu-
memórias, gente que espera ser
mulher que se interroga sobre se haverá um lheres rudes e iletradas, fui atormentada em
lugar para onde vai o que se perde? Ela acha encontrada. Pode ser em sonho. nome dele. Suspeitando que eu fosse uma
que sim. Chama-lhe «o vale das coisas per- Por isso, um dia, permitiu que comunista, por andar a ler um livro em lín-
didas», um sítio de uma extrema solidão a literatura substituísse a reli- gua estrangeira, elas ameaçaram-me nos la-
onde repousam objetos, memórias, gente vabos, incitando-me a denunciá-lo. Era no
que espera ser encontrada. Pode ser em so-
giãona sua vida. É ela a mulher seio dessa atmosfera que eu fervilhava.» Um
nho. Na literatura pode-se. Por isso, um dia, que se vê a atravessar a paisagem dia fugiu com o exemplar das Iluminações.
permitiu que a literatura substituísse a reli- e se encara a si própria num tem- O que há de Patti Smith neste M Train
gião na sua vida. É ela a mulher que se vê a po finito onde após cada perda há dedicado à sua vida adulta são fragmentos.
atravessar a paisagem e se encara a si pró- A viagem à Guiana Francesa, pouco depois
pria num tempo finito onde após cada per-
uma partida, um vazio a preen- de estar com Fred Smith, atrás do rasto de
da há uma partida, um vazio a preencher, cher, um nada que a escrita irá Jean Genet, talvez seja o episódio mais des-
um nada que a escrita irá ajudar a ser algu- ajudar a ser alguma coisa, a escri- critivo. Ainda assim pontuado de outras re-
ma coisa, a escrita sim, infinita. «Eu acredi- ferências. O fragmento pode proteger da pro-
ta sim, infinita. «Eu acredito na
to na vida, que um dia, cada um de nós irá ximidade com o presente. Não há revelações
perder», escreve, e a imortalidade fica só vida, que um dia, cada um de nós incómodas, por exemplo, para os filhos. Esta
numa folha de papel. É essa a sua fé, guia do irá perder», escreve, e a imortali- escrita revela uma intimidade colada à pele,
seu movimento alicerçado na convicção dade fica só numa folha de papel. que não dá espaço para as deformações. Ao
de que ser escritor é ser vagabundo. No es- escrever a sua memória ela experimenta
paço, no tempo, no modo como delírio, dois estilos, não repete a fórmula. Aqui esta-
razão e ficção se contaminam, como à en- Pensamos na irreverência dos anos 70 e mos no seu circuito interior, na matéria de
trada de um sonho, ainda sob vigília. não é fácil encontrá-la em muita da quietude que é feito o pensamento ou o sonho. E tam-
O mapa de uma viagem a partir de M que estas memórias sugerem. Mas a energia bém na rotina e no que ela desvenda sobre
Train – o comboio da mente — nasce desse mantém-se. No palco, em viagem. Nas con- quem a vive. Alimentar os gatos, arrumar
torpor. É impossível seguir pelos muitos ca- vicções. Defensora da natureza, dos direitos livros, decorar uma casa nova, ter de fazer
fés do mundo a partir dos quais o leitor ga- dos animais, admiradora do budismo, so- 50 ou 60 concertos e leituras públicas para
nha intimidade com a mulher que se apre- nhadora, fã de séries policiais, infantil… Na- poder comprar a tal casa de sonho. Ou tentar
senta neste livro. Patti Smith, Patricia Lee tural de Chicago, criada num subúrbio de imaginar como é que Sylvia Plath viveu os úl-
Smith, filha de um operário fabril e de uma Nova Jérsia, admiradora e amiga dos poetas, timos minutos da sua vida com a cabeça no
empregada de mesa que um dia lhe ofere- ela mesma poeta, cantora de voz meio ner- forno à espera que o gás a matasse enquan-
ceu Mulherezinhas e ela passou a gostar de vosa e inimitável, desenhadora, fotógrafa to os filhos lá em cima dormiam. Como?
Louisa May Alcott até hoje. Refere, aliás, é uma mulher comum. É assim que ela se Deambulatória mas sem uma palavra a
a autora de Mulherezinhas várias vezes. apresenta, com os seus gatos, o vício da ca- mais a resvalar para a pieguice ou o sen-
E agradece aos pais e à casa onde não havia feína, o gosto por listas, a memória da oração timentalismo. Outro dos refrões desta sua
muitos livros, o gosto pela leitura. É a sua da noite antes de dormir, a admiração por literatura é: «Eu sou uma mulher comum»
obsessão. É dela que deriva para quase tudo Rimbaud de que já falara em Apenas Miú- – e, acrescente-se, com algumas obsessões
o resto. dos, e que parece ter estado no princípio de como convém aos comuns.

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Uma chuva
de tolices,
desculpem,
de «ideias
diferentes»
O editor Francisco Vale (da Relógio d’Água) chama a atenção para o apare-
cimento de uma censura literária gémea e parceira do «politicamente cor-
reto». Se esse movimento chegar a Portugal, as suas primeiras vítimas serão
Os Lusíadas, de Camões, ou Peregrinação, de Mendes Pinto. E, por mais
absurda que seja a ideia, essa possibilidade existe.

Texto de FRANCISCO VALE

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ssistimos a uma chuvada «Grotesco na Ficção Sulista». Os seus contos dem ser designados por «pessoas de tama-

A
de politicamente correcto são exemplos do que de melhor fizeram as nho diferente»).
em Itália, num museu de grandes «escritoras sulistas», como Carson
Amesterdão, em univer- McCullers, Eudora Welty e Katherine Anne O pudor forçado das estátuas
sidades norte-americanas Porter. E todos eles poderiam ter a epígrafe Um exemplo da incúria pelo seu passado
e em jornais portugueses. que escolheu para O Céu É dos Violentos: cultural foi recentemente dado por um dos
Num período em que as redes sociais dão «Desde os dias de João Baptista até agora, países que mais razões tem para se orgu-
a sensação de um presente sem História, as o reino dos céus tem sido objecto de violên- lhar dele.
obras literárias são arrancadas ao seu con- cia e os violentos apoderam-se dele à força» Para não incomodar o Presidente do Irão,
texto ou soterradas pelas opiniões dos auto- (Mateus, 11:12). Hassan Rouhani, em visita oficial a Roma,
res mesmo quando estas não têm qualquer Flannery O’Connor viveu na cruel e racis- o Governo de Matteo Renzi mandou cobrir
reflexo naquilo que criaram. ta sociedade do Sul dos Estados Unidos nas as estátuas gregas e romanas nos Museus
O caso mais recente, tão risível que vale décadas de 30 a 50 do século passado, onde Capitolinos, entre elas uma cópia de Praxí-
apenas como sintoma, é uma crítica que Jor- os negros não tinham nome para os patrões. teles. A chefe de protocolo italiano deslocou
ge Lopes fez na Time Out de 17 de Fevereiro E com a sua imaginação deu-lhe cores ain- mesmo as cadeiras e mesas de modo a que
a Tudo o Que Sobe Deve Convergir de Flan- da mais sombrias do que as que na realida- Rouhani, ao sentar-se, não visse na estátua
nery O’Connor. Num tom desenvolto, J. Lo- de possuía. equestre da sala Esedra os testículos do
pes informa que «O’Connor nasceu, viveu Um crítico como Harold Bloom conside- cavalo montado por Marco Aurélio.
um bom bocado e faleceu na Geórgia» (tra- rou-a um dos «Cem Autores mais Criativos É sabido que estátuas nuas ofendem as al-
ta-se certamente de uma elegante alusão à da História da Literatura», o que não deve mas sensíveis como a do Presidente irania-
frágil saúde e à prematura morte de O’Con- abalar as certezas de J. Lopes, que conside- no, habituado a condenar homossexuais
nor). Sublinha o crítico que «o esforço de em- ra certamente Bloom um crítico elitista que à forca e mulheres à prisão por assistirem
patia de quem escreveu estes contos está no- teria muito a aprender com uma literatura a uma prova masculina de basquetebol.
toriamente do lado da geração mais velha, cheia de esperança e bons sentimentos. Como as negociações e os acordos comer-
branca e abastada q.b., quase invariavel- «O génio do grotesco é relativamente raro ciais poderiam naturalmente ter ocorrido
mente racista» e que, de «99 % dos persona- e O’Connor e Carson McCullers juntaram- em vários palácios sem estátuas nuas, nem
gens negros, os “pretos”, nem os nomes se -se a Faulkner e a Nathanael West nesta arte cavalos tão expressivos como o do estóico
conhece». O texto «Os Coxos Hão-de Entrar tão difícil. O “grotesco” geralmente define- Marco Aurélio, o Governo italiano mostrou
Primeiro» estaria «cheio de maldade mani- -se como uma espécie de distorção: bizarro, que quis oferecer a Rouhani uma prova de
puladora, cruel e sem ponta de esperança». ridículo, fantástico», escreveu Bloom. submissão cultural. É que essas esculturas
Condescendente, J. Lopes admite que o que «[Flannery O’Connor] pretende, através fazem, há cerca de 2500 anos, parte das tra-
vale a Flannery O’Connor é «a sua escrita do terror, que alcancemos um estado de dições europeias influenciadas pela cultura
seca e cénica». Mas claro que o prefácio graça e talvez se regozijasse sombriamente greco-latina.
de Rogério Casanova, «tradutor da obra, com a nossa insegurança perante a nova
é um espelho do elitismo da traduzida». Era do Terror fundamentalista islâmico», O perigo dos clássicos
Flannery O’Connor foi um dos escritores acrescenta. Isabel Lucas referiu no Público, de 7 de Fe-
que melhor reflectiu sobre a sua obra, des- Se não dizemos que a crítica de Jorge Lo- vereiro, o movimento surgido entre os es-
de o precoce Um Diário de Preces, onde é pes é completamente tola, é porque a al- tudantes universitários dos Estados Unidos
visível a sua relação ansiosa com o divino, guém que cultiva o politicamente correcto para excluir alguns clássicos da literatu-
até aos ensaios de The Habit of Being, à sua devemos dizer neste caso que tem ideias di- ra grega e romana dos currículos. Os es-
correspondência e a conferências como o ferentes (na Alemanha, os gordos preten- tudantes alegam que tais livros põem em
texto SeGUNDo o ANteRIoR ACoRDo oRtoGRÁFICo

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Uma chuva de tolices, desculpem, de «ideias diferentes»

perigo o seu bem-estar mental. Entre essas em muitos casos facilitam a identificação.
temíveis ameaças estão as Metamorfoses Excluí-los é julgar a História à luz dos pre-
de Ovídio (cujo desconhecimento faz per- conceitos actuais.
der a possibilidade de dilatar a imaginação Como diz Javier Marías, em artigo publi-
e de certo modo a vida até aos 2000 anos cado no El País:
que o autor tem). «Se digo “esse negro” para me referir a al-
O pedido surgiu no Verão passado na Uni- guém, a minha intenção não é pior do que
versidade de Colúmbia, em Nova Iorque, quando digo “aquele loiro” ou “o de sardas”.
e foi rejeitado pela direcção. Não se trata, É um modo de identificar, mais nada. E se
porém, de um caso isolado. Já em Setembro me falarem do quadro Cabeça de Homem
de 2015, a revista Atlantic referia que os vai ser mais ser mais difícil para mim reco-
estudantes de Direito de Harvard pediram nhecer essa pintura do que se continuasse
que não os traumatizassem com o ensino a ser intitulada Cabeça de Negro, como até
da legislação sobre violação. há pouco.»
Se o movimento chegar a Portugal, a pri-
meira ameaça deverá recair sobre Os Lusía- A crítica em Portugal
das (para J.L. Borges, «a Eneida lusitana»). Em artigos recentes, a propósito da publica-
Como é sabido, no seu Canto IX, os mari- ção de Carol de Patricia Highsmith, surgi-
nheiros portugueses desembarcam numa ram críticas ao carácter e opiniões da auto-
ilha onde o seu desejo «se ceva nas alvas car- ra, que se sobrepuseram às feitas ao livro. Ao
nes» das «belas ninfas», que perseguem em mesmo tempo, e como já fizera J. Lopes so-
«caça estranha» pelo meio dos bosques. Isto bre Flannery O’Connor, responsabiliza-se
para não referir já que Camões chama o autor pelo carácter do narrador ou dos per-
«mouros» aos mouros e os negros são refe- sonagens, o que é sempre abusivo e desres-
ridos com metáforas tão pouco amáveis peita os poderes da imaginação (nunca me
como «os povos a quem é negada a cor do pareceu boa ideia incriminar Dostoiévski
dia» ou que são «da cor da escura treva». pelo crime de Raskólnikov). Misoginia (1957), livro há muito desapareci-
A segunda ameaça irá naturalmente para No Público de 19 de Janeiro, Helena Vas- do das livrarias portuguesas.
a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, concelos abandona a sua habitual subtileza O texto de PM surge quando é publicado
pois nos fala de um tempo em que cristãos e termina um artigo sobre Carol, dizendo em Portugal o romance Carol e quando nas
e muçulmanos em conflito tinham orgulho que Patricia Highsmith tinha «fama de me- salas é exibido o filme com o mesmo nome
em passar à espada os infiéis. gera», que era «racista e anti-semita» e que de Todd Haynes, e não pode deixar de lhe
«parecia estar de acordo com os seus perso- ser referenciado. Mexia menciona aliás Pa-
Saneamentos museológicos nagens, psicopatas e violentos». tricia Highsmith como a «autora de Carol».
Uma outra notícia refere-se à iniciativa do Por um caminho semelhante vai um dos Ora, este romance, o segundo que Patricia
Departamento de História do Rijksmu- nossos melhores críticos, Pedro Mexia, na Highsmith escreveu, é uma história do
seum em Amesterdão. A equipa dirigente sua crónica no Expresso de 13 de Fevereiro. amor entre duas mulheres na América con-
do museu decidiu retirar dos títulos dos Afirma que, «como todas as criaturas misó- servadora dos anos 50 e o seu fim quase fe-
quadros 23 termos que poderiam ofender ginas, Highsmith também sofria de misan- liz fez dele uma referência das feministas
os visitantes. A decisão não abrangeu ape- tropia», e que «inúmeros documentos e tes- norte-americanas. Durante anos a autora
nas nomes ofensivos, cuja exclusão seria temunhos confirmam que ela detestava recebeu milhares de cartas de mulheres
compreensível, mas outros como «negro», católicos, judeus, americanos, negros, ho- apoiando a sua obra. Ou seja, o livro é o con-
«índio», «anão», «esquimó», «mouro» ou mossexuais, até crianças», tendo declarado trário da misoginia que só mais tarde se tor-
«maometano», que nada têm em si de pejo- certa vez que não gostava de ninguém. nará um traço da personalidade de Patricia
rativo. Trata-se, pelo contrário, de termos E, para ilustrar essas afirmações, PM des- Highsmith, o que a não impediu de ter
que para os europeus são descritivos e que fia as personagens de Pequenos Contos da diversas relações amorosas com mulheres.

100 primavera 2016 LER


os negros do Quénia e as pessoas em geral,
do que com Patricia Highsmith (embora
esta gostasse de animais e a baronesa Blixen
fosse caçadora).
Ser convidado para passar um fim-de-se-
mana em casa de Alice Munro, que imagino
rodeada de árvores, seria bem mais agra-
dável do que na da autora de O Talentoso
Mr. Ripley, onde de qualquer modo ador-
meceria sem preocupações.
As opiniões dos autores e os eventuais tra-
ços negativos do seu carácter que podem
merecer denúncia só me parecem relevan-
tes na crítica às suas obras quando nelas dei-
xaram marcas. Sobrepô-los ao resultado do
seu talento ou génio parece-me uma das
mais nefastas consequências do politica-
mente correcto.
Quando penso em Patricia Highsmith
como escritora, vejo nela a criadora da per-
sonagem de um psicopata do nosso tempo
como Ripley e de romances que atraíram
realizadores como Hitchcock, Wenders
e Todd Haynes.
Nunca notei vestígios do anti-semitismo
© DR de T.S. Eliot nos seus poemas. Nunca con-
Algumas das acusações neutralizam-se, As opiniões dos autores segui detectar em Ser e Tempo de Heidegger
pois considerar «racista e anti-semita» as suas provadas ligações ao nazismo. Nos
alguém que detestava com equidade «cató- e os eventuais traços Cantos de Ezra Pound não há vestígios das
licos, judeus, americanos, negros, homos- arengas radiofónicas a favor de Mussolini,
sexuais, até crianças» é pelo menos contra-
negativos do seu carác- nem no humor de Woodhouse das cedên-
ditório. ter só me parecem cias ao Terceiro Reich. Apesar do que sa-
Por outro lado, é inexacto afirmar que os bemos de Céline, não podemos deixar de ver
misóginos são necessariamente misantro-
relevantes na crítica em Viagem ao Fim da Noite um grande
pos. Em declarações recentes a actriz Isa- às suas obras quando romance.
belle Huppert afirma ser habitual que as Nunca considerei Shakespeare suspeito de
mulheres belas que envelhecem se tornem nelas deixaram marcas. anti-semitismo por ter escrito O Mercador de
misóginas, nem sempre se retirando da vida Sobrepô-los ao resul- Veneza, misógino por causa de Lady Mac-
social. Pavese e Schopenhauer eram dados beth ou suspeito de ser violento e até sangui-
à misoginia sem padecerem de misantropia. tado do seu talento nário pelos desenlaces de Ricardo III, de Con-
Sociedades e instituições e muitos dos seus ou génio parece-me to de Inverno ou de Coriolano. E interessará
membros podem ser misóginos sem qual- muito à literatura e aos leitores de O Rei Lear
quer misantropia, como no caso da Atenas uma das mais nefastas e de A Tempestade, que Shakespeare se te-
de Péricles e da actual Igreja Católica. nha retirado para Stratford-upon-Avon nos
Claro que deveria ser mais agradável
consequências do poli- últimos anos de existência e, aí tenha vivido
tomar chá com Karen Blixen, que estimava ticamente correcto. burguesmente de rendas?

LER primavera 2016 101


O antigo Pip

Pertencem a Fernando Pessoa todos os seus heterónimos?


Ou seja: são todos eles membros de uma mesma família una e indivisível?

Texto de HUMBERTO BRITO

explicar que, apesar desta semelhança – e contrariando todos os


1
de opinião geral existir hoje uma visão de conjunto mais cla-
relatos demográficos disponíveis –, O Palrador mostra que exis-
tem, hoje, heterónimos a mais.
É ra da obra de Fernando Pessoa que a de há dez, vinte anos.
Que esta crença, baseada na gradual revelação de um sem-nú-
De passagem, ainda a propósito de artefactos da infância, todos
recordamos «um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por
mero de papéis desconhecidos, seja verdadeira, está longe de ser quem escrevia cartas dele a mim mesmo» (v. fig. 7; Teoria da He-
evidente. De entre os achados do espólio, o mais eloquente a este teronímia [TH], ed. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith,
respeito – e, na verdade, um dos mais remotos no tempo – é talvez Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 276), para o qual sobrevivem, de
texto SeGUNDo o ANteRIoR ACoRDo oRtoGRÁFICo

o jornal fictício O Palrador, de cuja existência se sabe desde que facto, para regozijo dos paleógrafos, duas assinaturas (idem, 47).
Hubert D. Jennings descobriu «um velho caderno de exercícios es- Encontrada a forma dos heterónimos como explicação retrospe-
colares», de Durban («Alguns aspectos da vida de Fernando Pes- tiva da obra, nada exclui que vinhetas autobiográficas dentro des-
soa na África do Sul», Colóquio/Letras nº 52, Fev. 1969, pp. 64-69; te género (mais ou menos comuns em escritos tardios) não pas-
v. figs. 1-5). Sobressai de O Palrador menos a qualidade dos artigos sem de fantasias retrospetivas, acomodando a existência, entre os
que uma semelhança interessante com aquilo a que a partir de papéis guardados, de assinaturas assim e de artefactos como O Pal-
1928 Pessoa viria a tratar por «heterónimos» (e com aquilo a que, rador, no prisma geral das «obras heterónimas». (Gesto que vale
por precaução, passámos a chamar entretanto «autores fictícios»). o que vale, mas que alguma coisa vale.) Seja como for, a profusão
A saber, todos os colaboradores deste falso jornal eram já perso- de personagens a que O Palrador nos apresenta parece ser, de lon-
nagens inexistentes com nomes inventados. Este ensaio procura ge, a principal corroboração da imagem da infância dada por al-

LER primavera 2016 103


O antigo Pip

doras. São, todos eles, porque não existem, fictícios – e são, porque
escrevem coisas, autores. Daí a expressão «autores fictícios». Por
outras palavras, julga-se em geral que nem todos os autores fic-
tícios de Fernando Pessoa são heterónimos, mas que todos os
heterónimos são autores fictícios. Por maioria de razão, o grupo
de nomes associado a O Palrador pertence a esta grande classe
de figuras.
«Na lista que se segue,» observam Fernando Cabral Martins
e Richard Zenith, a respeito da sua Tábua de Heterónimos e Outros
Autores Fictícios, «incluímos todas as personagens que Pessoa criou
para lhes delegar tarefas de escrita» ou que assumem «o papel de
supostos colaboradores na produção de obras do autor» (ibid., 42).
Essa lista «visa reportar todos os colaboradores fictícios de Fernan-
do Pessoa com pelo menos uma obra original ou uma tradução
– por pequena que seja – original ou prevista» (ibid. 45), critério
de que resulta um levantamento de 106 nomes de autores, 28 deles
associados a O Palrador. Adotando o mesmo critério («apenas in-
cluímos […] quem “autora” um escrito ou detém uma tarefa», i.e.,
«subautores e tarefeiros criados por Fernando Pessoa», Eu Sou Uma
Antologia [ESUA], ed. Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari, Lisboa:
Tinta-da-china, 2013, p. 17), Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari che-
gam por sua vez a 136 autores fictícios, 51 dos quais (portanto, mais
de um terço) associados ao mesmo jornal. Discrepância que nos traz
de volta ao princípio. Se, graças a uma (nem sempre saudável) com-
petição paleográfica em curso, existe hoje uma perceção muito mais
nítida do espólio no seu conjunto, a nitidez dessa perceção está as-
sociada, em parte, a estas populosas fotografias de grupo, tomadas
guns relatos pessoais (o que leva muitos leitores a tomá-los como pelos especialistas como um significativo progresso. Semelhante va-
autobiograficamente fidedignos, logo, interessantes e úteis). Ima- riação de resultados levanta, porém, uma questão. Apesar de terem
gina-se então que tais personagens e os indivíduos chamados «Al- acesso aos mesmíssimos documentos e apesar de adotarem os mes-
berto Caeiro», «Ricardo Reis» e «Álvaro de Campos» são todos eles, míssimos critérios de seleção, não parece existir acordo entre os es-
por assim dizer, membros de uma mesma família, criaturas de pecialistas a respeito de o que se classifica como um «autor». Ora,
uma mesma espécie, manifestações de um mesmo fenómeno. não existindo acordo a respeito de o que é um «autor» (ou pelo me-
Este salto gera, porém, certas dúvidas. nos de o que é um «autor» para Pessoa), poderemos fiar-nos na ima-
Por um lado, Fernando Pessoa determinou que apenas aqueles gem que nos dão dos heterónimos? E se essa imagem permanece
últimos «três nomes de gente» são autores de «obras heterónimas» relativamente confusa, ou objetivamente contraditória, teremos real-
(«Tábua Bibliográfica», Presença 17, dezembro de 1928: ibid., 227). mente alcançado – muito embora na posse de todos estes novos re-
Por outro lado, na mesma célebre carta de 1935 sobre a origem dos cursos e decifrações – uma perceção realmente mais nítida e pro-
heterónimos, levanta a possibilidade de existir ainda «um ou ou- funda da obra de Fernando Pessoa?
tro» por aparecer, notando que o seu «primeiro heterónimo, ou, O Palrador é, a este respeito, um interessante caso de estudo.
antes, o meu primeiro conhecido inexistente» (ibid., 276), tinha Ajuda a ver de perto a maneira como os especialistas interpreta-
sido Chevalier de Pas. Esta retificação («ou, antes») aconselha-nos ram o conceito de «autor» (claro está, de «autor fictício»). Dado que
a pensar que nomes como os associados a O Palrador sejam, não revê e acomoda as lições de todas as anteriores, tomaremos de se-
exatamente «heterónimos», mas pelo menos nomes de «conheci- guida a antologia de Pizarro e Ferrari, em particular o seu levan-
dos inexistentes». Conhecidos que, a avaliar pelos estudos mais fiá- tamento de figuras de O Palrador, como o mais exaustivo entre
veis, partilham com os heterónimos duas características defini- as edições disponíveis.

104 primavera 2016 LER


2
juda talvez começar pelo caso do autor fictício nº 6 da antolo-
A gia de Pizarro e Ferrari: um «José Rodrigues do Valle», que
passou pelas funções de diretor literário, diretor e secretário de
O Palrador – autor também conhecido pelo pseudónimo «Scicio».
Acostumados a acreditar que, para se ser um autor, ainda que fic-
tício, é necessário que se produza alguma coisa (uma carta, um so-
neto, uma patente, etc.), constatamos, de início com alguma sur-
presa, que Pizarro e Ferrari o considerem enquanto tal, já que
«não foram localizados escritos de Rodrigues do Valle, nem pro-
jectos literários associados a essa figura» (idem, 39). Surpresa que
se transforma em suspeição ao depararmos transcrito, duas pági-
nas depois, um poema do pseudónimo Scicio (ibid., 41). (Seria
como asseverar que não são conhecidos escritos ou projetos lite-
rários associados a Adolfo Correia da Rocha e logo depois recitar
um poema de Miguel Torga.) Verdade seja dita que, para os anto-
logistas, este não se trata «exactamente de uma personagem au-
tónoma». Mesmo assim, «parece-nos conveniente distinguir a pes-
soa “real » [Rodrigues do Valle]... da figura fictícia [Scicio]» (ibid.,
40). Sem hesitação, derivam assim da existência de um pseudó-
nimo (um nome falso, alternativo) uma figura fictícia (uma per-
sonagem autónoma – o que haviam acabado de rejeitar). «Conve-
niente», como verificaremos de seguida, é, sem dúvida, a palavra
certa neste caso.
Sucede que Scicio (ou seja, Rodrigues do Valle) é ainda identifi-
cado como o «antigo Dr. Pancracio» (ibid., 40), autor fictício nº 11.
Importa notar que este «Dr. Pancracio», um dos protagonistas de «Pipitus», ou «Pipitos», ou talvez «Pevide») é o autor, entre outras,
O Palrador, «envia decifrações exactas de charadas», «assina um dessa obra-prima ignorada, «Os Ratos»: «o poema em português
relato», «colabora com um soneto», «assina versos humorísticos mais antigo de Pessoa que chegou até nós» (TH 48).
em redondilha maior», «assina ainda três sonetos», «publica uma Para facilitar, Pizarro e Ferrari falam-nos aqui de cinco «auto-
crítica», «ocupa-se também da secção de Correspondência e trans- res fictícios» distintos. Por comparação, para Cabral Martins e Ze-
creve uma charada» (ibid., 49). Além disso, «assina», noutro jor- nith existem neste conjunto apenas dois autores, «Pip» e «Dr. Pan-
nalinho de Fernando Pessoa (A Palavra), «o poema “Quando ella cracio», com a ressalva embora de a este último se conhecer ainda
passa”», tendo publicado igualmente, no já referido bissemanário o pseudónimo (e apenas isso) «Zé Fininha» (idem, 49). (A meti-
lisboeta O Pimpão, entre outras coisas, «um enigma saltitante», culosidade de Pizarro e Ferrari a respeito deste último nome, cau-
«uma charada em frase», «um fraseado» e «uma charada eléctri- telosamente desclassificado da categoria de autor fictício, não dei-
ca» (ibid., 50). Nada mau para alguém a quem não conhecíamos xa de ser digna de nota: na sua opinião, Zé Fininha – «(leia-se “Zé
quaisquer projetos literários. E como se não bastasse, o mesmo Fuinha”) é uma invenção literária do Dr. Pancracio» (ESUA 708).
«Dr. Pancracio» surge ainda como alcunha de «Francisco Páu» Mas não era «Scicio» uma invenção literária de Rodrigues do Val-
(nº 38, ibid., 91), diretor da secção humorística. Quando pensáva- le (idem, 40)? E não era Rodrigues do Valle «Inicialmente… o
mos ter chegado ao fim, descobrimos por último que o «antigo Dr. pseudónimo de “Dr. Pancracio”» (ibid. 39)? Duplo critério para
Pancracio» (ou seja Francisco Páu, ou seja Scicio, ou seja Rodri- que não se vislumbram quaisquer explicações. Tais explicações
gues do Valle) corresponde ainda ao poeta também conhecido obrigariam a justificar uma resposta coerente para «uma série de
como o «antigo Pip» (v. fig. 8, TH 48; v. também ESUA 30 e 49). perguntas» («O que é um autor? O que é uma obra? E ainda: o
Para quem não o conhece, o antigo Pip (ou antes «F. Pips», ou que é um livro[?]», «O que é um editor[?]», «O que é uma assina-

LER primavera 2016 105


O antigo Pip

usa para ocultar a verdadeira identidade. E ainda que um autor


recorra a mais do que um pseudónimo, não pensamos que cor-
respondem pessoas separadas a cada um desses nomes. Se assim
fosse, não se justificaria designar tais nomes como «pseudónimos»,
já que estaríamos a referir-nos aos nomes verdadeiros de indiví-
duos distintos (por hipótese, autores inventados). Foi afinal a pen-
sar neste último género de casos que Fernando Pessoa passou a
referir-se por «heterónimos» a, como vimos, apenas «três nomes
de gente». Abreviando, tomemos como exemplo o nome de «Álva-
ro de Campos», que é (ou deve ser entendido como) o nome ver-
dadeiro do autor da Ode Triunfal (um indivíduo distinto de Pes-
soa), e não como um nome falso – isto é, um pseudónimo – de
Fernando Pessoa. As obras de Campos são obras de Campos, ou
seja, estão agarradas a uma sensibilidade, a um estilo, e a uma
vida, muito particulares, distintas da de Pessoa, ainda que
inventadas por si. Por outras palavras, são obras escritas «fora de
sua pessoa» (TH 227). Por outras palavras, o nome «Álvaro
de Campos» (e nomes que funcionem como funciona «Álvaro de
Campos») não deve ser confundido com um pseudónimo da pes-
soa de carne e osso que o criou, sendo pelo contrário o nome
de uma personagem sua, que acontece ser um poeta com obra
própria. Posição que, podendo ser considerada implausível
e contraintuitiva, não deixa de ser a posição de Pessoa.
Ora, por contraste com «Álvaro de Campos», o nome «Dr. Pan-
cracio» (ou seja Scicio, ou seja Rodrigues do Valle, ou seja o antigo
Pip) é, nas palavras dos próprios Pizarro e Ferrari, um simples
tura[?]», «O que é um heterónimo, um ortónimo, um semi-hete- «nom de plume de Fernando Pessoa, ou melhor, de “F. Pessôa”»,
rónimo, um pseudónimo, uma figura, uma personagem, uma o director do jornal» (ESUA 50). Cabral Martins e Zenith estão de
máscara, uma personalidade?» – e por aí em diante). Mas «não é acordo neste ponto: esse nome «figura entre parênteses como o
nosso objectivo», comentam Pizarro e Ferrari, «responder aqui a presumível pseudónimo de “F. Pessôa”» (TH 48). Ora, tratando-
estas ou outras questões – o leitor poderá […] esboçar as suas pró- se de pseudónimos, não deveríamos referir-nos a diferentes indi-
prias conclusões» (ibid., 16). É natural, no entanto, que o leitor se víduos, mas a nomes diferentes usados por um único indivíduo,
sinta um pouco desorientado. Em momentos de perplexidade, um certo garoto de 13 anos – para facilitar, o antigo Pip. No entan-
nada então como uma pergunta simples para nos ajudar a pen- to, a resposta dos antologistas é inequívoca. Cada um destes no-
sar. E a pergunta, neste caso, não passa de senso comum. Devem mes corresponde, do seu ponto de vista, a um «autor fictício» se-
todos os nomes mencionados referir-se a «autores fictícios» dis- parado.
tintos, ou antes a diferentes nomes – pseudónimos – para um Considere-se ainda outro nome de O Palrador, «Pad Zé», nome
mesmo autor? que, segundo Pizarro e Ferrari, é «o pseudónimo de Pedro da Silva
É bem possível que a distinção entre «heterónimo» e «pseudó- Salles» (ESUA 58) – e que em 1903 surge como «alcunha de Rober-
nimo» seja de interesse duvidoso para a maioria dos leitores. Mes- to Kóla» (idem, 90). Sob os nomes Pad Zé (autor fictício nº 14) e Sil-
mo Herberto Helder decidiu (não sem controvérsia) deflacionar va Salles (nº 4) existe uma mão-cheia de coisas «publicadas»: enig-
esta distinção, referindo-se a Álvaro de Campos como um mero mas, charadas, decifrações, etc. Contudo, «Roberto Kóla» parece não
«pseudónimo» de Fernando Pessoa (Edoi Lelia Doura, Assírio & ter publicações, sendo dado como autor separado na qualidade de
Alvim, 1985, 93). Pessoa, não obstante, acreditava na acuidade des- diretor charadístico do jornal. Ora, voltando um pouco atrás, deve-
ta distinção. A pseudónimos (nomes falsos) não associamos iden- mos falar aqui de três autores, ou antes de três nomes para uma
tidades separadas da do autor que os usa: antes, dizemos que os mesma pessoa (ainda que se trate de uma pessoa fictícia), um tal

106 primavera 2016 LER


Silva Salles? E por falar em Silva Salles, ve- como tal, seja associada ao seu nome. O Palrador. Justificar-se-á no entanto con-
rifica-se ainda o interessantíssimo caso dos O subdiretor «Nat Gould» (autor nº 39 – siderá-los «autores»? – autores exatamen-
autores fictícios cujas obras foram anuncia- anagrama de «António Nogueira Pessoa»?) te de quê? A mesma pergunta pode ser fei-
das pelo mesmo: «Adolph Moscow» (autor ocupa-se da secção de histórias curtas; ta a respeito desse misterioso «Z.E.» (autor
nº 43), «Marvell Kish» (autor nº 44), «Ga- o subdiretor «Oswald Kent» (autor nº 40), nº 49), cujos «supostos versos […] não se en-
briel Keene» (autor nº 45) e «Sableton Ray» da secção desportiva; o subdiretor «Sileno contram, no entanto, no espólio» (ibid.,
(autor nº 46). Embora, do primeiro, nos te- Ladino» (autor nº 42) está a cargo da sec- 105); ou do «soneto supostamente enviado»
nha chegado a crónica Os Rapazes de Bar- ção de caricaturas; outro dos subdiretores, (ibid., 106) pelo autor nº 50, o não menos
rowby e, do segundo, o primeiro capítulo de «Marino Zeca» (autor nº 41), é «responsável misterioso «M.»; ou da charada e do enigma
Os Milhões d’um Doido (ilustrado por um pelas restantes secções do periódico», sen- atribuídos ao nº 51, um tal «Philokalio» –
«Lucian Arr», autor nº 47, e um «Alberto Rey charada e enigma as quais, adivinhe-se,


da Costa», autor nº 29 – autores, convém no- «não se encontam no espólio pessoano»
tar, das ilustrações; ilustrações que, tanto (ibid., 107).
quanto podemos determinar, não se sabe se E saindo por instantes da ficha técnica de
alguma vez existiram), o romance Em Dias
É bem possível que a distinção O Palrador, estamos longe de dar as contas
de Perigo, atribuído a Gabriel Keene «não entre «heterónimo» e «pseudóni- por encerradas. Para dar alguns exemplos,
consta no caderno em que Pessoa redigiu a as obras atribuídas ao autor nº 57, «David
nova série d’O Palrador e também não se en-
mo» seja de interesse duvidoso. Merrick», nunca chegaram a ser escritas,
contra no espólio pessoano» (ibid., 100). Do Mesmo Herberto Helder decidiu pelo menos não pelo mesmo, sendo o seu
mesmo modo, de Lucta Aerea, obra atribuí- nome associado a uma (curta) peça de crí-
da a Sableton Ray, «não há», segundo Pizar-
deflacionar esta distinção, re- tica literária. O autor nº 58, «Lucas Mer-
ro e Ferrari, «testemunhos no espólio pes- ferindo-se a Álvaro de Campos rick», muda simplesmente de nome, para
soano» (ibid., 101). Os nomes «Moscow», «Sidney Parkinson Stool», autor fictício
«Kisch», «Keene» e «Kay» «não parecem ter
como um mero «pseudónimo» nº 59, cujos contos policiais em língua in-
perdurado no espírito de Pessoa; existiram de Fernando Pessoa, que, glesa também parecem nunca ter sido
fugazmente», comentam, a propósito, Ca- escritos – mas aí vão dois autores, na cate-
bral Martins e Zenith, «apenas em função da
acreditava nesta distinção. goria de candidato-a-autor (categoria já des-
única obra de que são autores nominais. crita por Cabral Martins e Zenith como a de
É como se o nome de cada um fosse parte in-
tegrante do título do romance a que está as-
sociado e nada mais» (TH 54), intuição-cha-
ve a que voltaremos no final.
Seja como for, todos os últimos são, ao
menos, personagens de autores (ainda que

do considerado por Pizarro e Ferrari como
um autor separado, muito embora «Não
[existam] […] textos atribuídos a esta per-
sonagem» (ESUA 94). O mesmo parece su-
«autores previstos». «Os nomes de autores
previstos de obras ou traduções que não
chegaram a ser feitas também são aceites
como pseudoautores», TH 44). De facto,
num grau bastante maior que os últimos,
Pizarro e Ferrari aplicam «o critério de
não nos tenham chegado as suas obras). Já ceder com o administrador «Benjamin pseudoautoria alargadamente» (idem, 44).
o mesmo não se passa com uma boa parte Vizetelly Cymbra» (autor nº 36), «Não O autor fictício nº 62, «Professor Trochee»,
da ficha técnica de O Palrador. A «Francis- [existindo] projetos ou textos que lhe sejam embora uma reencarnação do Dr. Pan-
co Páu», também conhecido por Dr. Pan- atribuídos» (idem, 89); e com o administra- cracio, é «um dos candidatos a autor»
cracio, também conhecido por Pip, tam- dor «Antonio Augusto Rey da Silva» (autor (ESUA 170) de um certo ensaio inacabado.
bém conhecido por Scicio, também nº 8), do qual «Não são conhecidas colabo- De «António Cebola» (autor fictício nº 66),
conhecido por Rodrigues do Valle, também rações literárias» (ibid., 42). «Não há textos assinados sob o seu nome»
conhecido por Pessoa, dá-se talvez o des- O que há de comum a Roberto Kóla, (idem,199). O mesmo se passa com o can-
conto de ter publicado uma data de coisas Francisco Páu, Nat Gould, Oswald Kent, didato a autor nº 93, «Gervasio Guedes» e
sob outras assinaturas, embora nenhuma Marino Zeca, Sileno Ladino, Benjamin Vi- com o candidato a autor nº 94, «L. Guerrei-
obra literária, salvo a tarefa de diretor da zetelly Cymbra, António Augusto Rey ro». Já o autor nº 92, um tal «Navas», «Mis-
secção humorística, que não se qualifica da Silva é, claro está, serem personagens de teriosa personagem da qual não se sabe

LER primavera 2016 107


O antigo Pip

praticamente nada» salvo que «só existe as funções habituais de qualquer jornal por desse mesmo rapaz. E sendo textos pseudó-
um registo da palavra e nenhuma outra re- recurso a nomes inventados. Deste modo, nimos, não se justifica falarmos de «autores
ferência a ele» (ibid., 344), é-lhe atribuída, existem n’O Palrador nomes associados a ta- fictícios» distintos, mas apenas de vários
não sem reservas, a função de, repare-se, refas (secretário disto, diretor daquilo, etc.) pseudónimos; e nesse caso os resultados
traduzir obras nunca escritas. e nomes associados a textos (assinaturas). dos levantamentos dos antologistas são, na
De facto, a fasquia dos especialistas des- Uma óbvia semelhança destes últimos com melhor das hipóteses, no que diz respeito
ceu a tal ponto que as distinções práticas os heterónimos é a de serem ao mesmo aos nomes associados a textos, amplamen-
entre ser um autor e ser um tradutor, ou tempo nomes inventados e, aparentemente, te inflacionados.
entre ser um autor ou um prefaciador, e pelo menos, nomes que denotam persona- No que respeita a nomes associados a ta-
por aí em diante, deixaram já de importar. gens (os inventados autores desses textos). refas, derivar da existência de personagens
Seja como for, podemos, ao menos, nesses e de alcunhas de personagens a suposição


casos, falar do autor da tradução ou do au- (também ela, como vimos, amplamente
tor do prefácio (ou aliás, de pseudoautores exagerada) de todas elas, por terem tarefa
fictícios de todas essas coisas). Que dizer, atribuída, merecerem ser tomadas por «au-
porém, de «Giovanni B. Angioletti» (autor
O que promete um certo ar de tores», sugere, talvez injustamente para os
nº 132), objeto de uma falsa entrevista pu- existência a estas figuras não especialistas do presente, uma queda irre-
blicada n’O Sol, 20 de novembro de 1926? freável por contar cabeças e comparar lis-
Generosamente, sempre podemos aventu-
é a simples quantidade em que tas. Tal é o que menos importa perante um
rar que se trata, enfim, do autor das res- ocorrem , mas o aspeto decisi- artefacto tão precioso e excecional como
postas. Nada impede, nesse caso, admitir- O Palrador.
mos que espíritos astrais como «Henry
vo de se relacionarem umas Pelo contrário, importa notar, por um
More», «Wardour», «Voodoist», «Joseph com as outras, de escreverem lado, a intuição, ou a mesmo a descoberta,
Balsamo», «Henry Lovell», «James Joseph, precoce e invulgar, da parte de Fernando
«J.H. Hyslop» e «George Henry Morse» (au-
e resolverem charadas umas Pessoa, de a existência literária das suas fi-
tores fictícios nºs 114-121) sejam «autores» das outras, a circunstância guras de sonho ser uma questão relacional.
de comunicações mediúnicas. O que promete um certo ar de existência a
Tudo somado, assim se chega sem es-
de se corresponderem. estas figuras não é a simples quantidade
torvo de monta à impressionante marca de em que ocorrem, nem a simples incum-
136 autores. Não, claro, sem um aponta-
mento iconoclasta. Pizarro e Ferrari não
terminam a antologia sem clarificar que
deixam de fora Chevalier de Pas, pela razão
de – pasme-se! – «não existirem testemu-
nhos da sua produção escrita» (ibid., 707).

São personagens não de uma narrativa mas
de uma publicação fictícia. Há assim que
conceder a plausibilidade do princípio se-
guido pelos antologistas. Segundo o critério
bência de uma dada tarefa, mas o aspeto
decisivo de se relacionarem umas com as
outras, de escreverem e resolverem chara-
das umas das outras, a circunstância de se
corresponderem. Essa, sim, é a primeira
grande lição a retirar de O Palrador e o seu
adotado, a existência de diferentes persona- mais interessante traço em comum com o
gens é derivada de uma discriminação de que viemos a conhecer por heterónimos.
3
oltando um pouco atrás, as dificuldades
funções. Por outro lado, no que respeita aos
nomes associados a textos, não se verifica,
Regressando à intuição de «o nome de cada
um» ser como se «parte integrante do títu-
V descritas têm origem numa particulari-
dade de composição de um projeto como
nesses textos, porém, a mais remota marca
de quaisquer estilos ou individualidades dis-
lo [da obra] a que está associado e nada
mais» (TH 54-55), a segunda grande lição
O Palrador. Visto que um jornal (seja ele fic- tintas das do rapaz de 13 anos que as inven- tem que ver com o mais antigo vislumbre
tício ou não, e portanto a ficcionalidade é tou. (Estranho seria que assim não fosse.) da originalidade de Pessoa como poeta: a de
aqui um aspeto ancilar) presume uma dis- Não obstante a verificada distribuição de pa- a forma da pessoa –e não, por exemplo,
tribuição de tarefas e visto que tarefas de- péis, que nos faria pensar em muitos indiví- a forma do livro, ou a forma do conto, ou
sencarnadas é coisa que jamais existiu, o jo- duos separados, os nomes associados a tex- a forma do jornal – ser o seu princípio bási-
vem Pessoa vê-se conduzido a personificar tos não parecem passar de pseudónimos co de composição.

108 primavera 2016 LER


EFÉSIOS TIAGO CAVACO

John Updike: o Obadias que


é escritor sem ser sacerdote
N
a Europa, há casos em que a qualidade de um escritor a trazer-lhes baixeza. Se Updike pôs a Time a debater a infidelidade,
cresce na medida inversa à quantidade de vezes que qual dos nossos escritores poderia pôr a Sábado ou a Visão embru-
aparece em capas das revistas. Portugal também de- lhada em semelhantes lençóis?
monstra este fenómeno nos escribas-ermitas. Estes Para muitos a literatura serve para guardar a pureza que o mun-
escribas-ermitas têm o condão de ser bem-sucedidos na litera- do perdeu. Ha quem diga que esta sacralização intelectual é parale-
tura do mesmo modo que um extremista é bem-sucedido no ter- la à confiança que a sociedade perde na crença. Quanto mais o Oci-
rorismo: poucas são as fotografias que lhe conhecemos. Aliás, dente perde a fé, mais a cultura se torna uma religião em si mesma.
há quem ache que só os escribas-ermitas são dignos do ofício Um dos problemas consequentes é que quando os escritores tomam
literário que exercem, lançando uma suspeita para qualquer o lugar dos santos, o resultado fica a desejar. Fugir de retratos de re-
um que consiga dar-se a convívios além das letras. vistas só pode ser uma virtude para uma sociedade que se rendeu a
Por comparação, na América há experiências tão contrastantes que todos os vícios. Digamos que é uma disciplina espiritual demasiado
merecem a nossa surpresa atenta. De um modo geral, qualquer es- fraquinha para gerar resultados sólidos.
critor americano respeitável acalenta desavergonhadamente o dese- A Bíblia fala-nos de Obadias, mordomo real (não confundir com o
jo de ser capa de revista, e da Time em particular. Uma das conclu- profeta Obadias que dá nome a um dos livros do Velho Testamento).
sões que permito tirar desta larga comparação é que pode dizer-se Obadias organizava a casa dos piores reis de toda as Escrituras – Acab
que o escritor europeu, quando comparado com o americano, tende e Jezabel. Quando Jezabel começou a sua campanha de paganização
a preservar um instinto monástico, realmente religioso no sentido e mandou matar os profetas, Obadias abrigou e escondeu cem deles
mais restrito do termo. Como se aquilo que fosse bom num livro cor- em duas cavernas, alimentando-os e cuidando deles. Obadias era um
responda ao que naturalmente o afasta de uma revista. homem de Deus trabalhando com monarcas do Diabo. Quando se
Desta conclusão pessoal olho com admiração acrescentada para encontra com Elias, provavelmente o profeta mais heroico do Velho
a tarefa ingrata de editar na Europa, e sem remorsos, uma revista li- Testamento, precisa de lhe explicar que é difícil trabalhar naquela
terária que coloque rostos humanos na capa. Já pensámos na verve empresa mas até aí era possível ser fiel a Deus. Aconselha alguma
contracultural desta revista LER? Por isso, com frequência esta calma a Elias pelo risco de vida que ele próprio, Obadias, corria. A Pa-
corajosa publicação que agora folheia se torna saco de pancada para lavra parece demonstrar que os dois tipos de fidelidade a Deus eram
os puristas da linha escriba-ermita. Nos Estados Unidos parece que possíveis: o do homem que tem o emprego numa companhia con-
um escritor é mais livre para se entregar a sessões fotográficas sem duzida pela malícia da mulher do patrão, e o do ativista corajoso que
receios de que os flashes lhe roubem a alma, talvez porque o escritor denuncia a corrupção dos governantes.
não se comporta como um sacerdote. Neste sentido, John Updike é como Obadias, mordomo real.
Há uma capa memorável da Time em que John Updike aparece Ambos nos recordam uma ética do trabalho que não sacraliza umas
desenhado (por David Levine) com um título provocador: «A Socie- profissões para desespiritualizar outras. Não é por se ser escritor que
dade Adúltera» (porque tinha acabado de escrever Couples). Apa- se é sacerdote, nem é por trabalhar para Governos que se é maldito.
rentemente, um escritor não é premiado na América por suposta- Certamente que há atividades mais inspiradoras que outras – pou-
mente se purificar do convívio com a alegada baixeza dos meios de pemos, todavia, os nossos escritores de cavalgarem púlpitos que não
comunicação de massas. Muito pelo contrário, na América um es- lhes pertencem. A próxima vez que se cruzar com um escriba-er-
critor pode ir até aos meios de comunicação de massas para ser ele mita, tire-lhe uma fotografia.

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Foto de Luís Ramos. @ LER, 1987
Vergílio Ferreira
Os 100 anos de um escritor
único na Língua Portuguesa
Em 2016, cumprem-se 100 anos sobre o nascimento do escritor Vergílio Ferreira – e
passam também 20 anos sobre o seu desaparecimento. A obra que nos legou é um tes-
temunho que vibra e interpela o nosso presente. E que parece projetar-se no futuro, pela
amplidão da sua universalidade, pela força clássica da sua apresentação. Como Carta
ao Futuro (1958), toda a sua obra, podemos supô-lo, foi escrita «para daqui a um século,
cinco séculos, para daqui a mil anos…», já que o seu alcance nos revela «uma verdade de
origens», como se lê naquele livro. Aquela vibração, de que o próprio autor também
falava, tentando explicar o impulso para a escrita, é a mesma que o leitor atual experi-
menta ao tomar contacto com uma obra que tornou o romance um aliciante debate
de ideias. Uma escrita que nunca desistiu de investir intensivamente no apuro de uma
forma de arte, mesmo nos momentos em que era de perceber o ser humano que funda-
mentalmente se tratava. «A verdade és tu», escreveu o autor em Pensar (1992). Uma afir-
mação que revela, muito mais do que a preocupação consigo próprio, o interesse deste
autor pelo ser humano como tema fundamental e como estímulo decisivo para escrita
e a reflexão.

Texto de HUGO PINTO SANTOS

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VERGÍLIO FERREIRA, ROMANCE DE IDEIAS senta-se, de Maria da Glória Padrão, 1981).
HOMEM INTRANQUILO IDEIAS SOBRE O ROMANCE Num estudo modelar sobre a diarística
Quando lhe perguntaram se era um ho- Vital a dar forma ao romance de ideias en- vergiliana – Conta-Corrente 6: Ensaio so-
mem tranquilo, Vergílio Ferreira respon- tre nós – se é que não foi mesmo um dos bre o Diário de Vergílio Ferreira (1990) –,
deu negativamente. «Não, não posso», afir- seus verdadeiros introdutores na literatu- dizia Luís Mourão que «o diário de Ver-
mou nessa conversa com o jornalista Pedro ra portuguesa –, Vergílio Ferreira foi um gílio Ferreira não é apenas um diário
Rolo Duarte, registada há 25 anos, «porque ficcionista que fez do pensamento um ins- filosófico ou sequer predominantemente
sou sempre maior do que eu próprio. Quer trumento da escrita, e desta uma platafor- ensaístico, assim como não é apenas a ofi-
dizer: a diferença que vai entre aquilo que ma para refletir sobre o mundo e o ser. cina do romancista»; por outro lado, aque-
se sonha – vagamente, claro, porque quan- «Mas justamente porque a literatura se le ensaísta salientava, ainda, em relação
do o sonho se torna nítido, realiza-se – e funda genericamente na ideia», defendia a um livro como Invocação ao Meu Corpo
aquilo que se faz é sempre muito grande. em Arte Tempo (1988), «ela é a mais (1969) «um regime discursivo misto:
Às vezes, releio os meus livros antigos e de ameaçada das formas de arte». E em Espa- a estrutura e articulação temática são ba-
alguns ainda gosto, mas com outros quase ço do Invisível - 1 (1965), interrogava: «Aca- sicamente ensaísticas, mas a argumenta-
cortei relações, não os visito sequer...» so as “ideias” num romance não serão o si- ção e a escrita são no fundo romanescas».
(K, nº 7, abril 1991). Neste testemunho, nal da nossa trágica maioridade, da nossa Curiosamente, Vergílio Ferreira corrobo-
Vergílio fazia cruzar três vetores fulcrais bela maioridade?» Não deixa de ser im- rou essa linha de leitura, ao afirmar:
da sua identidade enquanto escritor:
a importância, sempre tensa e lúcida, do
romance, a temática do «eu», e o carácter
reflexivo da sua marca autoral. Évora tornou-se um núcleo decisivo para as vivências e re-
E no entanto, a importância da proble- memorações de Vergílio. A releitura de Aparição, de resto
mática do «eu» nunca se revelou linear
na prática de escrita de Vergílio Ferreira. (como se pode verificar pela leitura dos diários), se foi amiú-
O próprio autor discorria sobre a questão,
estendendo o seu olhar perscrutante até
de provocada pela força das circunstâncias de aquele ro-
aos limites daquela noção, em Espaço do
Invisível II (1976): «A identidade afirma-se
pelo simples facto de a negarmos. Porque portante reparar no modo como é formu- «Carta ao Futuro e Invocação ao Meu Cor-
negá-la é unirmo-nos a nós na negação, lada a frase, a sua forma interrogativa. No po, não tendo a ação de um romance, têm-
é reconhecermo-nos no ato de negar, é inte- mesmo livro de ensaios, postulava Vergí- -lhe a sensibilidade com as “ideias” que são
grarmo-nos de nós próprios para afirmar lio: «O pensamento hoje, aliás, opta menos de ambos» (Um Escritor Apresenta-se).
a desintegração, é em suma sermos nós pela demonstração do que pela interroga- A leitura de romances como Rápida, a
no ato de dizer que não somos». De resto, ção.» Não por acaso, decerto, o título Pen- Sombra (1974), Signo Sinal (1979), Para
o «eu» que interessava a Vergílio era mais sar para a recolha derradeira da sua não- Sempre (1983), Em Nome da Terra
o antropológico, se assim se pode dizer, do -ficção. A novelística por si assinada, essa, (1990), Na Tua Face (1993), de ensaios
que o psicológico. Com alguma frequência, nunca deixou de ser a do homem que pen- como os contidos nos vários volumes de
e não pouca acrimónia, o autor chamou sava o seu lugar no mundo. E que sempre Espaço do Invisível (1-5, 1965-1998), ou
conversa de comadres à psicologia. Numa questionou que mundo seria esse. O pen- das páginas diarísticas dos vários volumes
entrada de diário, por exemplo, registava: samento que a sua produção veiculou, em da Conta-Corrente (1-5, 1980-1987; Nova
«A TV deu um programa sobre Ibsen. Uma romances, ensaios, diários e testemunhos Série, I-IV, 1993-1994), permite-nos con-
vez mais observei em mim o desinteresse reflexivos e críticos, mais ou menos bre- frontar uma das obras mais instigantes
pelos problemas psíquicos. Na realidade ves, foi sempre uma forma de trabalhar a e menos redutíveis a fórmulas, ditados
não sei bem porquê. Na realidade toda a matéria-prima da linguagem. «Amo as pa- de estética ou política, ou mesmo limita-
escolha é indiscutível como a pessoa que lavras», declarou Vergílio numa entrevista ções epocais. «Para mim, o romance e
se é» (Conta-Corrente, Nova Série, I, 1993). (em Vergílio Ferreira – Um Escritor Apre- o ensaio», resumia Vergílio Ferreira

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(Um Escritor Apresenta-se), «foram sempre atividades gostava de citar. Escrevendo sobre Aparição, o seu autor chamou-
paralelas». E fazia mesmo a precisão de defender: «A atividade -lhe «pequeno protesto contra a asfixia de todo o mundo fechado,
ensaística ideal é a que prolonga a ficcionista» (idem). de toda a sociedade fechada, para a qual achei um símile num pe-
«O romance está em crise», escreveu em 1976 Vergílio Ferreira queno mundo conhecido» (Do Mundo Original, 1957). Como é sa-
(Conta-Corrente 1, 1980). «A arte está em crise. A cultura está em bido, Vergílio ingressou com 10 anos no seminário menor do Fun-
crise. Por força dos meus sessenta anos, estou em crise. O meu dão, instituição onde permaneceu durante seis anos. Tratar-se-ia
país está em crise. Como posso pensar ainda em escrever roman- de uma experiência que, como não é difícil imaginar, viria a marcar
ce?» (idem). «O romance acabou», declarava o autor à LER (pri- profundamente o futuro escritor; mas configurou, de igual modo,
mavera 1988), em entrevista concedida a Francisco José Viegas, um conjunto de circunstâncias que forneceram matéria para o ro-
«ou pelo menos acabou uma dada forma clássica de praticar e mance que viria a ser adaptado ao cinema (e à televisão) pelo reali-
de ler o romance — como ele nos chegava do século passado e da zador Lauro António. O que ocasionou a ironia do escritor, que, en-
época de ouro deste século. As ligações do romance contemporâ- tre ameno e meditativo, lamentou, em páginas de Conta-Corrente,
neo com o ensaio e outras formas de escrita não propriamente a guerra desequilibrada entre décadas de labor intenso e honesto
ficcionais fazem-me pensar que isso a que você chama romance nas letras, e uma presença fugaz no pequeno e grande ecrã. Cum-
está com os dias contados. A nossa imagem do mundo mudou. primentado por transeuntes, desconhecidos e até pelo então Presi-
A forma como víamos o mundo foi mudando. O romance tam- dente Ramalho Eanes, Vergílio Ferreira anotava sardonicamente
bém.» Esta noção de romance esteve sempre na mente de Vergí- no seu diário que o seu destino deveria ter passado antes pelo Par-
que Mayer. Vergílio Ferreira desempenhou o papel do carrasco
(como anota no diário, igualmente), o tenebroso reitor de Manhã
Submersa. Lauro António justificou a sua escolha pondo em realce
mance ter sido dos mais reeditados do autor, a postura austera e sisuda do professor e escritor, o facto de Vergí-
constituiu o ensejo para novas e recorrentes lio, como é óbvio, saber latim (que ensinou de par com o português
e o grego), mas também a ironia perversa de a vítima passar a ser
questionações de si próprio, à luz do para- o algoz, num volte-face do destino que a sétima arte viria a tornar
mais plástico e notável. Também Cântico Final (1960) fora adapta-
digma de Évora e da descoberta de si próprio. do para cinema pelo realizador Manuel Guimarães (1975). Filme
interrompido na fase da montagem pela morte do cineasta (con-
cluído pelo filho do realizador, Dórdio Guimarães), valeria a Vergí-
lio Ferreira. Género maior, enquanto investimento forte do idio- lio Ferreira palavras de amarga ironia, a respeito do destino trágico
ma literário, e como contraponto das correntes da ciência e da do cineasta, que compartilhou com o protagonista do romance e do
filosofia, ele foi motivo de uma luta imparável consigo mesmo, filme. No que respeita a Aparição, é sabido quanto o binómio per-
mas também uma porfia para fora, que abria a discussão para o sonagem/narrador se aproxima do autor empírico neste consagra-
vasto universo da ficção alheia e de todos os tempos – mas muito do romance de Vergílio. O professor que chega de fora e abala, de
em particular o seu. Teorizando sobre aquele género que tipifica- forma gradual mas decisiva, a pacatez da pequena cidade «branca
va as suas ideias e aspirações em relação à literatura, afirmava como uma ermida» – simbólica, na sua topografia isolada na planí-
Vergílio: «O que acontece é que, a meu ver, há dois tipos de cie, da própria condição do protagonista e narrador Alberto Soares
romance: o romance-espetáculo, que quer dar uma imagem na sua procura e revelação de si próprio – não pode deixar de rela-
do real que nos circunda, e o romance-problema, chamado cionar-se com o escritor. Évora tornou-se um núcleo decisivo para
romance-ensaio, cujo saldo final é uma reflexão. Este romance as vivências e rememorações de Vergílio, que posicionava a cidade
tem como objetivo fundamental pôr um problema.» alentejana num lugar de claro destaque no seu cosmos pessoal e
artístico. A releitura de Aparição, de resto (como se pode verificar
VIDA E OBRA pela leitura dos diários), se foi amiúde provocada pela força das cir-
Não será inusitadamente especulativo perceber nos romances cunstâncias de aquele romance ter sido dos mais reeditados do au-
Manhã Submersa (1954) e Aparição (1959) emanações transfigu- tor, constituiu, não raro, o ensejo para novas e recorrentes questio-
radas do homem e da sua circunstância, dir-se-ia, parafraseando a nações de si próprio, à luz do paradigma de Évora e da descoberta
fórmula consagrada por José Ortega y Gasset, que Vergílio Ferreira de si próprio.

LER primavera 2016 113


Vergílio Ferreira

Quanto àquela estratégia narrativa – a de posicionar o protago- de O Existencialismo É Um Humanismo, de Sartre (1962)
nista em situação de grande provação –, ela foi, claramente, um («Da Fenomenologia a Sartre»), «não passa apenas pelos dados
elemento frisante da ficção de Vergílio Ferreira. Serviu ela, afinal, imediatos de um problema imediato: passa pelo homem todo,
o propósito de fazer convergir no sujeito – da narrativa, mas o que sofre no estômago e na inteligência». A integralidade
também da própria realidade histórica – os fluxos da narrativa, complexa e imponderável do humano conheceu na obra
as tensões do pensamento do autor e os seus objetivos artísticos. romanesca e ensaística de Vergílio um dos terrenos mais férteis
Diante de si, o indivíduo desafia-se, define e redifine o seu destino de toda a literatura portuguesa.
como agente histórico. Segundo um exegeta como João Palma-
-Ferreira, Alegria Breve (1965) e Nítido Nulo (1971) constituíam UM CLÁSSICO MODERNO
«o pináculo da ascensão do indivíduo no sentido das descobertas Vergílio Ferreira falava algures do prazer que há em passar a
privadas». Esteja esse indivíduo perante forças como as da neces- mão sobre madeira aplainada, arrancar películas, retirar crostas.
sidade familiar e social, em Aparição (1959), ou encare ele a mor- São gestos aparentemente menores, mas que materializam apre-
te, em Cântico Final (1960), ou Em Nome da Terra (1990), a no- ço pelo que é simples na sua eficácia, certeiro na sua ação. Se pen-
velística de Vergílio é a de um humanismo crítico e atento às sarmos no rigor clássico do romance derradeiro do autor (com
dinâmicas de um mundo mutável e vário. O próprio autor refle- exclusão do inacabado Cartas a Sandra, 1996), Na Tua Face, per-
tiu diversas vezes sobre essa condição da sua obra romanesca, ceberemos até que ponto esta simples reflexão marginal pode
pondo em evidência, em retrospetiva, o facto de o autor Vergílio ajudar a entender a depuração a que Vergílio levou a sua escrita.
Ferreira matar com marcante frequência progenitores – o pai e a
mãe em Mudança (1949), ou em Rápida, a Sombra (1974); o pai
em Aparição –, a mulher – Alegria Breve, Para Sempre, Na Tua
Face – e até um filho – Na Tua Face, de novo. Nesse aspeto, são É do que permanece, naquilo que é mutável,
particularmente reveladoras as palavras iniciais de Alegria Bre- que aqui se fala. A escrita de Vergílio Ferrei-
ve: «Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha
mulher? Enterreia-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da ra, informada pelo saber e pelos lastros do
velha figueira.» O homem assume, assim, o seu lugar de entida-
de a sós com o seu destino finito e terrestre. Refratário à moral
universo do classicismo é profundamente
religiosa, à ideia de salvação e de transcendência, opaco mesmo
perante o oásis fugaz da conjugalidade. Condenados todos ao
óbito, eles confirmam-no nesse poder dúbio – porque ameaçado Talvez se pudesse encontrar na formação clássica do autor, a ori-
também pela sua própria finitude – enquanto decisor do seu gem desse impulso da brevidade do estilo. («Fui para letras», dis-
próprio porvir. se o autor na já citada entrevista a Pedro Rolo Duarte, «porque ti-
Mas talvez poucos livros de Vergílio Ferreira tenham revelado nha aprendido latim no seminário e resolvi capitalizá-lo, pô-lo a
de forma tão impressionante como Nítido Nulo (1971) a concen- render, tirando um curso que por outro lado eu presumia dar-me
tração do destino do homem nos seus próprios meios. O homem rapidamente uma colocação».) O simples percorrer das epígrafes
na prisão, um revolucionário que aguarda o desfecho da sua ati- de vários dos seus romances indicia esse classicismo. O trecho da
tude de desobediência, uma pena de morte, fornece ao autor um Antígona de Sófocles escolhido em Alegria Breve revela o prodí-
esquema ideal para desenvolver essa noção do ser humano posi- gio do ser humano. É o homem o «mais espantoso» entre todos os
cionado no centro das suas encruzilhadas. Não por acaso, este motivos de maravilha, nestas palavras do tragediógrafo que Ver-
romance questiona as regras do jogo, desobedece-lhes, subverte gílio cita em texto bilingue, como a frisar a distância e a proximi-
as suas implicações. Há o escritor Vergílio Ferreira, a compare- dade entre dois idiomas, em dois extremos das eras. Uma ode de
cer na diegese, como há a interpelação que consiste nessa quebra Píndaro abre Rápida, a Sombra. É a famosa VIII Pítica, que des-
dos pactos ficcionais – e que obras como Signo Sinal só viriam a creve o homem como «o sonho de uma sombra», e não serve o
fortalecer – que, no fim de contas, é uma outra forma de elevar simples propósito de estabelecer uma similitude semântica com
a Humanidade à condição de leme e tema das suas demandas. o título e o desenvolvimento do romance. Antes cumpre a função
«A força que abala o mundo e o sonho reconstruído», escrevia de fazer cair sobre o próprio homem a sua condição, que é, si-
Vergílio Ferreira no prefácio que elaborou para a sua tradução multaneamente, uma condenação e um fascínio: a fugacidade da

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existência enquanto limite e estímulo, fan- A relação desse estado ali enunciado com agora não sei que ler», anotava ele em
tasma e sedução. Em Signo Sinal, há um o romance é de uma acuidade perturban- 1982 (Conta-Corrente 4, 1986), «retornei
passo de Heraclito que opõe a harmonia te. Pois é de uma entrega que ali se trata. aos clássicos latinos. Irei depois aos gre-
visível e a invisível, fazendo desta uma for- O corpo que se entrega, porém, fá-lo real- gos talvez». Quase 10 anos volvidos, Vergí-
ça superior àquela. Trata-se de um mote mente diante da profanidade de uma lio entreabria a porta da sua oficina, reve-
que sintetiza um romance que se faz tam- doença física. Um membro enfermo, a lando os estágios preparatórios de Na Tua
bém como meditação sobre a linguagem; perna que será amputada. O pontapé fute- Face: «Passei a tarde a revolver papéis
um livro sobre o visível e o invisível, ou so- bolístico, que o narrador relata em retros- velhos à procura dos rascunhos de cartas
bre o dizível e o indizível. É à Vulgata e ao petiva, e que todo o romance vai recriando em latim que troquei com uma namora-
seu latim que Vergílio recorre em Na Tua em fases distintas, parece-nos descrever o da de Clássicas. Porque me serviram para
Face. Um passo do Génesis em que Deus arco da vida no seu trajeto imaginado. As uma personagem do romance que vou
retorna a quanto criou e considera o bem palavras cerimoniais, repetidas ao longo ideando» (Conta-Corrente, Nova Série, 3,
que fez. Um passo de uma ironia profun- do livro – «Eu te batizo em nome da Terra, 1994). Essa personagem, Ângela, viria a
da, não só porque Vergílio Ferreira era de- dos astros e da perfeição» –, concentram, ser descrita, meses corridos, nas mesmas
claradamente agnóstico, mas, sobretudo, como numa outra prece, o fulgor do corpo páginas de diário: «mulher prática, fria,
porque o seu derradeiro romance é sobre que se despede da sua inteireza, um sem “sentimentos”».
dois tipos de deformação da visão. A dos ser que abdicará da sua breve harmonia. O «horror ao natural» de Daniel, prota-
gonista de Na Tua Face, um artista que
pinta distorcendo feições e realidades de-
masiado figurativas, é quase a epítome do
moderna na sua capacidade de entender o ser humano como sujeito da modernidade. Afastado de um
unidade transitória. Por mais que possa parecer paradoxal, centro estável, ele é o habitante do impon-
derável e do indeterminado. Só aparente-
passa pelo seu enraizamento no solo clássico a força e a soli- mente existe um movimento de contradi-
ções entre o clássico, representado pela
dez da sua proposta de modernidade. figura tutelar de Lucrécio – em cujo Natu-
reza das Coisas a mulher do protagonista
se especializa e que influenciará o nome
monstros caricaturais que o narrador pro- Em Nome da Terra descreve por diver- do filho de ambos (que se suicida), Luc,
duz, mas também a literal cegueira que sas vezes a reprodução de um fresco de para abreviar –, e o moderno, que se ma-
ataca a sua mulher. O Deus que vê a sua Pompeia. Este quadro é algo a que o nar- terializa na figura de Daniel. Pois, na ver-
obra e considera bem-feita a realização rador pretende agarrar-se, quando transi- dade, é de «uma verdade de origens» que
aproxima-se demasiado do autor que en- ta para o lar da terceira idade que marca sempre se tratou. É do que permanece,
caminha as suas ficções, e do pensador a fase final da sua vida. Uma imagem que naquilo que é mutável, que aqui se fala.
que em todas as suas palavras reflete so- introduz marcas notórias e determinan- A escrita de Vergílio Ferreira, informada
bre as possibilidades da vida. Já Em Nome tes, ao longo daquele romance. Como pelo saber e pelos lastros do universo do
da Terra chamara até si um trecho da Vul- o movimento aparente do Sol, a descrever classicismo é profundamente moderna
gata. Mateus relata a Última Ceia, e as pa- a sua ilusória elipse por sobre o aparta- na sua capacidade de entender o ser hu-
lavras do discurso de Jesus resgatadas por mento de Rápida, a Sombra. Mas o pró- mano como unidade transitória. Por mais
Vergílio Ferreira são os quatro termos que prio nome (grafado com «e») com que as- que possa parecer paradoxal, passa pelo
concentram naquele corpo o destino do sinou a sua obra é uma recordação do seu enraizamento no solo clássico a força
Filho de Deus e o destino da Humanidade. poeta latino. Vergílio Ferreira recorria e a solidez da sua proposta de moder-
Ou da parte da Humanidade que quer à cultura clássica em variadas ocasiões, nidade. O conhecimento do passado
fazer parte daquele mistério. O corpo que como quando compara o labor docente e o confronto com os dados da contempo-
ali se invoca é, naturalmente, o corpo que com o suplício de Sísifo, na sua repetição raneidade conferiram à obra vergiliana
se prepara para o seu próprio sacrifício. incessante de tarefas similares. «Como a sua peculiaríssima qualidade.

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Entrevista

Cédric Villani
Cédric Villani é professor de Matemática na Universidade de Lyon, mas passa uma boa parte do
tempo em Paris a dirigir o Instituto Henri Poincaré, uma organização conjunta do Centro Nacional
para a Investigação Científica (CNRS) e da Universidade Pierre e Marie Curie (Paris VI). É conside-
rado uma estrela da ciência mundial após ter ganhado a Medalha Fields, o prémio mais importan-
te na sua área, equivalente a um Nobel, com a diferença de que o laureado não pode ter uma idade su-
perior a 40 anos. Ele tem pouco mais do que quarenta, embora aparente menos. É novo mas veste
à antiga: o vestuário vintage que usa lembra um personagem de Oscar Wilde, onde o elemento mais
estranho é uma aranha negra na lapela sobre cujo significado ele mantém o mistério.

Entrevista de CARLOS FIOLHAIS*

J
á o conhecia de uma troca de e-mails, mas só o vi ao vivo a 10 Mesmo sabendo que estava cansado pela sua intensa agenda e pe-
de novembro passado, no dia em que o seu nome foi anun- las numerosas solicitações feitas pela comunicação social, pedi-lhe
ciado como membro de um conselho de sábios da União Eu- uma entrevista pessoal e especial para a LER que ele não hesitou
ropeia, quando ele entrou no Teatro Nacional de D. Maria II em dar, quando lhe expliquei que era a melhor revista literária por-
para apresentar o seu primeiro livro em português. Foi no tuguesa e que os leitores da LER estariam decerto interessados em
Salão Nobre desse teatro, com as paredes esculpidas por Vhils, que saber mais sobre o seu livro acabado de sair em português e em
tive o prazer de apresentar, a meias com o matemático Jorge Buescu, conhecer a sua visão da criação matemática e da criação artística,
o seu livro Teorema Vivo, acabado de sair do prelo da Gradiva. Um li- em particular a criação literária. Está aqui o essencial da nossa
vro sem paralelo, que conta na primeira pessoa a descoberta de um conversa.
novo resultado matemático. No dia seguinte, sob a égide da Funda- O teu livro é tão original que não coube em nenhuma coleção.
ção Francisco Manuel dos Santos, proferiu uma conferência sobre a Não corresponde ao tradicional livro de divulgação científica.
criação matemática que encheu a plateia do Teatro Académico de Gil No entanto, pode servir esse propósito, mostrando, ao contrá-
Vicente em Coimbra (o vídeo está online no sítio da fundação). Antes rio do que é costume, o processo de fazer matemática, em vez
da conferência visitou a Biblioteca Joanina, que o encantou (não foi de desvendar alguns dos seus conteúdos. Como chegaste à ideia
tratado como um turista normal, mas sim como um convidado do ex- de escrever Teorema Vivo? Conheces algo de semelhante sobre
-diretor da biblioteca, com direito a subir a uma estante alta por uma a criação na matemática ou noutra área científica?
das espantosas escadas setecentistas) e tinha feito um breve tour de Na verdade, a forma deste livro foi realmente fora do comum.
Coimbra, que incluiu além da universidade, o Museu Nacional Ma- Olhando em retrospetiva, para o que eu tenho feito após a Meda-
chado de Castro, a Sé Velha, o Arco de Almedina e a Igreja de Santa lha Fields, acho que este foi o meu projeto mais ousado, porque
Cruz. O matemático, embora inseparável do seu portátil e do seu te- quebra algumas regras fundamentais de comunicação social para
lemóvel, mostrou curiosidade em conhecer Portugal, tanto a longa os cientistas. A ideia deste livro veio de um encontro com alguém
História como as pessoas de hoje. De vez em quando cotejava na in- que não era nem um cientista nem sequer alguém familiarizado
ternet alguma informação e tomava notas. Não era a primeira vez que com a comunicação científica. Foi Olivier Nora, o diretor da edito-
aqui vinha, pois no ano passado já tinha estado entre nós para fazer ra Grasset. Conheci-o num jantar alguns meses antes da Medalha
parte do júri do Festival de Cinema de Lisboa e Estoril. O facto de um Fields. Ele estava interessado em obter a colaboração de um mate-
dos grandes matemáticos mundiais (a New Yorker chamou-lhe mático que escrevesse um livro para a sua editora. Mas, quando lhe
«a Lady Gaga da matemática», título que ele não enjeitou) voltar a Por- dei vários temas possíveis – como, por exemplo: «Porque não um
tugal em menos de um ano mostra que gosta do País. livro popular sobre entropia?» –, recusou, dizendo que para ele

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© Cedric Villani.org/DR
a coisa mais importante era saber leitores ficaram frustrados por-
como nós, investigadores, trabalhamos que queriam saber mais sobre matemática
e vivemos. Eu fiquei bastante embaraçado com este pedido, mas e ciências. Mas a divulgação é um género diferente e eu contemplo
depois pensei que devia ser capaz de escrever a história de uma des- esse tipo de preocupações, por exemplo, nas minhas palestras pú-
coberta matemática como se fosse um livro de aventuras ou um po- blicas. Uma questão no cerne do livro é a natureza da linguagem,
licial. Ora, se fiz isso mesmo, e se insisti na aventura, não poderia as impressões que ela transmite, o seu papel na poesia. O conde de
ao mesmo tempo insistir na ciência, pois teria resultado demasia- Lautréamont mostrou que algumas palavras matemáticas podiam
do exigente para o leitor, quebrando o ritmo de leitura. Assim, sem surtir um grande efeito inseridas dentro da poesia. As palavras
ter consciência disso, estava a reusar uma técnica usada por Hen- transmitem outras coisas para além do seu significado.
ri Poincaré nos seus textos sobre a inspiração: ele colocava lá a lin- Uma das maiores dificuldades de transmitir a matemática re-
guagem técnica, mas nunca a explicava. Na verdade, eu estendi side na necessidade de conhecer a sua linguagem simbólica.
tal técnica ainda mais, uma vez que para muitos leitores o jargão Achas que a matemática pode chegar ao grande público, que
técnico e as fórmulas matemáticas acrescentam poesia à aventura, não compreende praticamente nada da linguagem?
na verdade colocam os leitores na atmosfera. Com certeza, a matemática pode atingir o público em geral, mes-
Stephen Hawking descreveu no seu best-seller Uma Breve His- mo quando ele não entende a linguagem. Os leitores podem ficar
tória do Tempo que uma só equação como E = mc2 reduz para fascinados pela forma das palavras, pelas ideias que elas expres-
metade o número de leitores. Não houve ninguém que te dis- sam, pelas aventuras humanas que elas contam – ou pelas repre-
sesse que o número de equações diminui drasticamente o nú- sentações que podem ser feitas a partir das palavras. As analogias
mero de leitores? Como foi a reação dos teus leitores ao con- são muito boas para esse efeito assim como as metáforas. Os jogos
junto de equações que, muito provavelmente, não conseguirão também podem ajudar. Existem inúmeras possibilidades!
entender? Fernando Pessoa, ou melhor o seu heterónimo Álvaro de Cam-
Se a lei de Hawking se aplicasse sempre, dificilmente mais do que pos, escreveu, num poema muito curto, que «O binómio de
algumas moléculas de leitor comprariam o meu livro. Mas, ao in- Newton é tão belo como a Vénus de Milo / O que há é poucas pes-
vés, ele vendeu mais de cem mil exemplares. Esse resultado não soas para dar por isso.» Concordas?
tem qualquer comparação com os meus livros de matemática, dos Eu gosto dessa fórmula e da bela provocação que contém. A minha
quais me orgulho muito, mas que venderam muito, muito menos! única reserva é que não sou um grande fã da fórmula do binómio
Portanto, obviamente, numerosos leitores não se deixaram inti- de Newton, talvez porque a beleza nela contida é de natureza com-
midar pelas fórmulas. Na verdade, observei que o livro era mais di- binatória. A comparação é também um pouco estranha porque
fícil de ler por pessoas que tinham algum conhecimento científico: a Vénus chegou até nós de uma maneira quebrada, imperfeita, ao
eles tentaram entender e ficaram frustrados, ao passo que aque- passo que a fórmula binomial é hoje completa e totalmente com-
les que não tinham qualquer preparação científica não fizeram preendida! Por outro lado, eu seria facilmente levado a comparar,
qualquer esforço para entender e ficaram felizes assim. Sim, alguns digamos, a beleza do teorema H de Boltzmann à de uma das gran-

LER primavera 2016 117


Cedric Villani

des esculturas de Miguel Ângelo – poderosa, não tão polida como (que a matemática era demasiado difícil para ser deixada apenas
a Vénus, mas de tirar o fôlego. aos matemáticos!). Os dois estavam a investigar a teoria da relati-
Na palestra em Coimbra tentaste mostrar a beleza intrínseca vidade geral, que realmente está na fronteira entre a física e a ma-
da matemática. Todavia a arte lida com emoções enquanto a temática. Na verdade, a relação entre essas duas disciplinas é mui-
matemática lida com a lógica. Como podem os dois ser reuni- to próxima e muito enriquecedora. A física fornece problemas
dos? Por outras palavras, como pode a questão das duas cultu- surpreendentes para os matemáticos considerarem e, muitas ve-
ras ser superada? zes, suscita novos conceitos matemáticos. Para dar apenas um
Claro que a matemática lida com lógica, respira lógica, faz-se com exemplo, a noção matemática de matriz foi desenvolvida para es-
tijolos lógicos. Mas também se enche de emoções quando se pre- tudar a estabilidade do sistema solar... Por outro lado, a matemáti-
tende descobrir o esquema geral de uma demonstração, quando ca fornece novas ferramentas, novas ideias, novas demonstrações;
se procura, se pesquisa, se questionam os colegas e o Universo. Tal- no caso da teoria da relatividade geral, a teoria não poderia ter sido
vez uma analogia ajude: se um arquiteto construir um grande edi- elaborado sem conceitos matemáticos muito delicados. No meu
fício, estará limitado pelas leis da física e o grande edifício poderá próprio trabalho tive de usar conceitos matemáticos que tinham
ruir se os pormenores não tiverem sido adequadamente cuidados. sido desenvolvidos para o estudo de outros problemas físicos. Tam-
No entanto, o arquiteto poderá ficar não só animado mas também bém tive de desenvolver alguns novos conceitos matemáticos.
emocionado no processo de construção, cujo resultado final pode E consegui fazer algumas previsões e compreensões físicas que não
ser uma obra de arte. Uma outra analogia: recentemente vi uma tinham sido alcançadas por raciocínios físicos diretos. Este foi cer-
exposição surpreendente de um artista que só constrói com peças tamente o caso do estudo que fiz com Laurent Desvillettes de osci-
de Lego («A arte do Tijolo» era o título). Bem, os blocos eram ape- lações da produção de entropia ou do estudo que realizei com Clé-
nas peças de Lego, muito geométricas, algo que não deixa nenhum ment Mouhot das origens do amortecimento de Landau não-linear.
espaço à imaginação. Mesmo assim, os pedaços juntos pelo artista Assim, considero-me realmente um matemático inspirado pela
transmitiam emoções fantásticas! Portanto, não há nenhuma con- física, ou um físico matemático; mas o importante é que a minha
tradição entre a lógica e as emoções: os dois entram no mesmo qua- visão e o meu estilo são os de matemático.
dro global embora em níveis diferentes. Estamos a celebrar os cem anos da teoria da relatividade geral
Queres comentar esta frase do físico inglês Paul Dirac: «É mais de Einstein e Hilbert esteve muito perto das equações finais.
importante ter beleza nas equações do que tê-las de acordo com E o mesmo tinha acontecido 10 anos antes, com Henri Poinca-
a experiência.» A beleza pode ser um critério para alcançar ré, no contexto da teoria da relatividade restrita. Porque es-
a verdade, no sentido de uma boa descrição da natureza? tiveram dois dos maiores matemáticos de sempre tão perto
A beleza é sem qualquer dúvida um critério para encontrar a ver- da meta e nenhum deles conseguiu bater Einstein? Será a in-
dade, ela pode guiar e ajudar. Esse facto tem sido verificado em mui- tuição de um físico realmente assim tão diferente da de um ma-
tos casos e tenho-o observado também nas minhas pesquisas, já temático?
desde a época em que andava a investigar problemas relacionados Acho que Poincaré alcançou a meta mais ou menos ao mesmo tem-
com o crescimento da entropia na equação de Boltzmann: o cami- po que Einstein, no caso da teoria da relatividade restrita, no senti-
nho mais belo é muitas vezes o caminho certo. No caso de Dirac, o do em que ele obteve as fórmulas corretas assim como tudo à vol-
seu dito tem um swing especial uma vez que a busca de uma bela ta delas. A principal diferença residiu na interpretação: Poincaré
equação o levou à descoberta de uma equação muito relevante e pensou que as fórmulas eram uma espécie de truque, ao passo que
da antimatéria! Einstein considerou que elas eram a verdade. Einstein era extre-
O pai da física Galileu escreveu que «o Livro da Natureza está mamente talentoso na matemática e confiava na matemática; um
escrito em caracteres matemáticos». Tu trabalhas na fronteira de seus pontos fortes foi precisamente a capacidade de acreditar
entre a física e a matemática, procurando ler esses caracteres. nos resultados matemáticos como sendo a verdade. A história de
Sobre a relação entre a física e a matemática, o grande mate- Hilbert é, penso eu, um pouco diferente: tinha havido uma forte in-
mático alemão David Hilbert afirmou que «a física é demasia- fluência recíproca, mas toda a motivação para o problema vinha de
do difícil para ser deixada apenas entregue aos físicos». Estás Einstein. E não se deve esquecer que Einstein publicou parte
de acordo? da sua teoria com o seu colega Marcel Grossman, que era um ma-
A frase de Hilbert tem uma aura especial, que tem a ver com a sua temático. Será difícil chegar a conclusões com base em apenas dois
concorrência com Einstein, o qual bem poderia ter dito o contrário casos. Ainda assim, decerto que existem algumas diferenças entre

118 primavera 2016 LER


a intuição de um físico e a de um matemático, havendo lugar para pósito, ambos tiveram uma formação científica). Além de roman-
todos os tipos de subtis variações. ces e poesia, li um rol de livros de não-ficção (ensaios, livros sobre
Vieste a Portugal como membro do júri do Festival de Cinema História, etc.) e um monte de histórias aos quadradinhos. Eu pró-
de Lisboa e Estoril, pelo que depreendo que és apaixonado pelo prio sou autor de um álbum de banda desenhada, recentemente,
cinema. Quais são os teus realizadores favoritos? Gostaste, por com um artista altamente considerado, tendo esta sido uma das
exemplo, do filme sobre o matemático recentemente falecido minhas melhores experiências nos últimos anos.
John Nash, Uma Mente Brilhante? Os matemáticos gostam, em regra, do argentino Jorge Luis Bor-
Os meus realizadores favoritos são os mesmos que os de muita gen- ges. É também um dos teus autores de eleição? Há o espantoso
te, acho eu: na minha lista de favoritos estariam, em desordem total, escritor francês Georges Perec. E há Hans Magnus Enzensber-
Lang, Lynch, Wong Kar-Wai, Welles, Tarkowski, Bergman, Mizo- ger, o alemão que tem também feito incursões pela matemáti-
guchi, Kurosawa, Cocteau, Truffaut, Almodóvar, Satyajit Ray, etc. ca. Queres salientar outros nomes particularmente interes-
Houve um tempo em que eu ia ao cinema todos os dias ou quase. santes nesta fronteira entre a literatura e a matemática?
Paris é uma boa cidade para isso! Alguns filmes têm-me deixado Gosto muito de Borges. Mas odeio o seu famoso conto sobre a bi-
ultimamente muito perplexo. No festival de cinema reconheci mui- blioteca de Babel e, em geral, não aprecio o seu uso da matemática.
tas influências de autores clássicos, em particular, a influência de A biblioteca de Babel não faz qualquer sentido. As probabilidades
Truffaut foi bem visível. Outros membros do júri, que sabem mais estão erradas e a ordem das descobertas, tal como vem explicada
do que eu, reconheceram mais influências. Estar no júri com o fi- no texto, é bastante inverosímil. Preferiria que ele não tivesse es-
lho de Tarkowski, cujos filmes eu tanto estimo, foi emocionante... crito esse conto ou que, pelo menos, tivesse tido um matemático
O festival foi um evento de uma incrível qualidade, com uma gran- que o aconselhasse. O que eu gosto em Borges são as atmosferas
de organização. Está à altura da reputação do grande cinema por- que cria, os seus conflitos trágicos com a consciência, as suas his-
tuguês e tem uma natureza muito internacional, que vai muito tórias de fracassos e sucessos, a sua capacidade única de descrever
bem com a cultura portuguesa, julgo eu. Foi um verdadeiro prazer. rapidamente uma situação, insistir numa ideia-chave e deixar o lei-
Sobre o filme sobre John Nash, de facto não gostei. Demasiado tor a pensar sobre ela. Por seu lado Perec é um dos melhores au-
ethos, ao estilo de Hollywood no pior sentido, e muito pouco sobre tores que usou ideias interessantes que ligam matemática e lite-
as coisas de que realmente gosto em matemática. Nada sobre a ratura. Queneau é outro. Não estou familiarizado com a obra
emoção na busca de um teorema... Nada sobre as grandes reali- de Enzensberger, tenho ainda muito para aprender...
zações de Nash, as obras que marcaram e mudaram a matemáti- Finalmente, sobre Portugal. Visitaste a Biblioteca Joanina, na
ca. Fiquei muito infeliz com isso. No entanto, o filme recente sobre Universidade de Coimbra. Como descreverias aquela biblioteca
Alan Turing ainda foi mais tortuoso para mim! a alguém que nunca a visitou?
Em Teorema Vivo referes muitas composições musicais e não É um lugar extraordinário no qual o passado se torna presente, reu-
tanto literárias. Significará isso que, entre as várias artes, a tua nindo os vestígios de tantas gerações de seres humanos que luta-
sensibilidade é maior para o cinema e a música do que para a ram para escrever e deixar impresso aquilo que compreendiam
literatura? Poderás indicar alguns romances ou livros de poe- e aquilo que sonhavam. O conjunto está tão bem preservado e é tão
sia que foram essenciais na tua formação cultural? belo que me fez lembrar que o conhecimento é um tesouro e deve
Penso que a música é a arte mais popular na comunidade dos ma- ser tratado como tal. Vagueando entre as miríades de livros anti-
temáticos e eu não sou a exceção a essa regra. Cinema e música são gos, o visitante sente-se transportado ao passado, mas, ao mesmo
de facto extremamente fortes nas minhas influências. Quanto a ro- tempo, sente que constitui um pequeno elo numa grande cadeia
mances e livros de poesia, acho que não tenho obras especiais a re- eterna. Ocorre-me citar aqui um curto poema da arqueóloga nor-
ferir; como filho de dois professores de Literatura, tive uma educa- te-americana Hilary Stewart sobre artefactos, pois julgo que o mes-
ção muito boa na literatura francesa clássica. Hugo, Balzac e Zola mo pode ser dito de um livro antigo: «Portanto, quando agarras
estiveram entre os meus favoritos numa certa fase da vida. Quan- num artefacto, olhas para ele e maravilhas-te. / É uma herança
to aos romances, fiquei fascinado pelas obras de Conan Doyle (acho do passado que teve a sorte de sobreviver, superando o abismo de
que li todas as histórias de Sherlock Holmes), de Maurice Leblanc tempo. / Ele faz uma ponte entre a mão da pessoa que o fez e a da
(li a maioria, mas não todas, das histórias de Arsène Lupin), e de pessoa que ora o contempla. / É como pontas dos dedos que tocam
Júlio Verne, claro. A minha preferência dirigiu-se sempre para li- nas pontas de outros dedos.»
vros em que há um bom ritmo e um sentido de aventura. O Moby Muito obrigado pelo poema e pela entrevista.
Dick foi um dos meus favoritos, mas não consegui ler Proust. Quan-
to a livros de poesia, refiro como grandes influências os poemas e * Professor de Física da Universidade de Coimbra, divulgador científico e ex-
textos poéticos de Lewis Carroll e também os de Boris Vian (a pro- -diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.

LER primavera 2016 119


Correspondentes
Vidas insuspeitas em todo o lado – em Londres, onde a nossa correspondente conversa
sobre a maldade do mundo, ou em Pailobo, na Beira Alta, onde um cão dá lições de urbanidade.
Em Paris, há lugares para prolongar os encontros e em Torres Novas há casas, casas, casas.

R Arrumam-na no sítio do costume: um inter- meiro nunca se atrasam, entram na carrua-


valo entre duas pedras, na parede da casa, gem e o Chinhas fica a vê-los partir.
Carta de Pailobo onde esperam encontrá-la quando regres- Aos domingos, Messias Pereira vai à missa
Fausta Cardoso Pereira sarem. Passam pelo largo da aldeia, acenam na Miuzela, a pé ou de bicicleta, e o Chinhas
ao Ti Zé Rita e dizem-lhe que vão apanhar vai com ele. Na igreja o cão pode entrar. O Sr.
Lindo Chinhas, lindo o comboio porque hoje é dia de tratar de Padre considera-o mais uma criatura de
assuntos em Vilar Formoso. Deus e esta, ao contrário de outras, mantém-
O cão está a ladrar para o comboio, a pedir que O Chinhas segue Messias Pereira e Maria -se quieta, sentada ou enroscada ao pé do
espere; dali não passam; o seu faro, ou o horário Romeiro a uma distância irregular. Não pre- dono, quase sem respirar para não incomo-
dos comboios, que ele também conhece, dão-lhe cisa de ir colado a eles porque sabe bem para dar o protocolo e a religiosidade do culto.
conta de que o dono ainda não saiu. onde vão e se o instinto o obriga a farejar o Em Vilar Formoso, o casal vai ao banco,
rasto de um coelho ou a marcar o território, à farmácia, paga a luz, a água e o telefone,
essias Pereira levanta-se antes do dia logo a seguir, numa corrida rápida, apanha- Maria Romeiro compra um lenço, uma mala
M clarear. A mulher, Maria Romeiro, já
acendeu o lume e tem o café preparado. Mes-
-os. O caminho não é a direito, mas é sempre
a descer. A manhã desta Primavera está fres-
e Messias Pereira selos, envelopes e papel
de carta.
sias pega numa faca de lâmina fina e afiada ca e os dois idosos não se queixam dos 15 mi- No regresso, o calor incomoda, principal-
por si no dia anterior, corta com ela uma fatia nutos que os separam da estação. mente quando se trazem às costas e nas
de pão espanhol e de queijo do Sabugal. Não Estamos em 1990. O comboio ainda faz pernas os anos deste casal; principalmente
se senta, toma sempre o pequeno-almoço as- uma paragem rápida no Noémi, em horários quando 15 minutos separam a estação da po-
sim, de pé, a andar entre a cozinha e o pátio. que não se podem consultar porque a estação voação e depois de tantas voltas para ter os
O Chinhas espera-o lá fora, em frente ao pra- mais parece um apeadeiro, no entanto, sa- assuntos tratados; principalmente se o cami-
to azul de alumínio que Messias leva para bem-se de cor. Messias Pereira e Maria Ro- nho é a subir. O comboio pára no Noémi
dentro. Escolhe meia dúzia de batatas cozi-
das, restos do jantar, parte-as, depois com um
garfo desfaz-as em puré e deita-lhes azeite
por cima. Volta para o pátio e entrega o prato
ao cão.
– Lindo Chinhas, lindo.
É sabido que o cão é o melhor amigo do
Homem, mas o Chinhas sabe bem que este
homem é o seu melhor amigo.
Maria Romeiro está pronta, de mala na
mão, mas Messias vai ainda buscar o casaco
cinzento, igual às calças e no mesmo tom do
chapéu. Agora estão os dois preparados para
sair. Fecham a casa com a chave preta de fer-
ro, grande e pesada como se pensa ser a cha-
© DR

ve com a qual S. Pedro abre as portas do céu.


texto SeGUNDo o ANteRIoR ACoRDo oRtoGRÁFICo

120 primavera 2016 LER


e Messias Pereira diz à mulher que o melhor
será seguir até à Cerdeira e aí apanhar um
táxi para casa. Ela concorda.
O comboio não anda. A paragem está a ser
mais demorada do que é habitual. Passa-se
alguma coisa. O comboio apita. Será um in-
cêndio? Uma avaria? Mas que aborrecido...
Os passageiros não são muitos, trocam
olhares, consultam o relógio, receiam chegar
atrasados às suas vidas. O comboio volta
a apitar. Alguns assomam-se às janelas e
esticam o corpo.
– Olha! – grita um. – Está um cão na linha.
– Um cão? Mas que diabo! Tirem o cão
da linha!
Messias Pereira ouviu. Em passos largos
dirige-se até à porta e abre-a. Confirma. Sim,

© DR
o Chinhas está na linha, a ladrar para o com-
boio, a pedir lá na linguagem dele que espe- confirma ao olhar em redor que há um uma dúzia de telhados que se sobrepõem na
rem, que pode até demorar algum tempo, quinto andar com duas janelas iluminadas linha do horizonte. De igual modo falam de
mas dali não passam; o seu faro, ou o horário e um terceiro com uma meia janela de luz. boa exposição solar quando apenas um único
dos comboios que ele também conhece, dão- Depois quando sai vê que mais duas janelas raio de sol atravessa a sala ao fim da tarde para
-lhe conta de que o dono ainda não saiu. na esquina do prédio em frente se ilumina- logo ceder ao império do crepúsculo. Nunca se
– Pronto Chinhas, pronto. Lindo Chinhas, ram como é hábito. A cidade é bifronte e tem acusará de impropriedade esta forma de dizer.
lindo. – E o casal não cumpre o planeado. um rosto exterior com fachadas pardacen- Por certo que é mais uma boa intenção tão
Anos mais tarde, quando Messias Pereira tas que se pontilham de luz ao começar dos confiante como fazer florir as jarras e acredi-
for levado para a sua última morada, logo dias úteis e um outro rosto interior e sono- tar na transfiguração do espaço circundante.
à entrada de Pailobo, o Chinhas há-de lá ir lento que olha de dentro através das janelas Quem procura as casas e julga supor os
todos os dias, passando o seu corpo delgado para a rua. Conhecer a cidade é encontrar as ritmos da sua vida interior para depois os fi-
de rafeiro por entre os intervalos do portão. duas faces desse rosto dúplice. Mas quem gurar num texto sabe que essa demanda
poderá ver o seu rosto de dentro e as suas pode tomar a forma de uma obsessão mas
manhãs domésticas? O interior das casas é não crê que daí possa vir mal ao mundo.
R um mistério nunca desvendado e trazê-lo ao Chega até a pensar que a inspiração mais
Carta de Torres Novas texto só por artes da imaginação que como não é do que uma obsessão bem tratada.
Ivone Mendes da Silva se sabe é um fraco consolo. Quem conhece o lugar das casas sabe que
Quem percorre as ruas sem se cansar do iti- há casas que permanecem inacabadas. São
O problema da habitação nerário repetido fá-lo pela evidência do tempo urbanas capelas imperfeitas que ficaram pre-
que em camadas sobrepostas conta a história sas no tempo como um insecto preso no âm-
das casas e dos seus muitos anos ou mostra as bar e expõem aos olhos da rua os vãos sem
Quem conhece o lugar das casas sabe que há ca- cores ainda não desbotadas de uma constru- portas nem portadas que os vedem. Onde se-
sas que permanecem inacabadas. São urbanas ção recente. Belas são as casas que são concha ria a sala ficaram abandonadas umas tuba-
capelas imperfeitas que ficaram presas no tem- e asa e são filhas do tempo que as devora.Re- gens do aquecimento e os tectos sem estuque
po como um insecto preso no âmbar. conhece-as depois nos sites das agências imo- desistiram de esperar. Cá fora pelo jardim
biliárias descritas numa língua em que é pre- que nunca foi amontoa-se o entulho que nin-
uem acorda cedo e sai para a rua ainda ciso ser fluente para se entender o pleno guém tirou. São sofredoras essas casas e há
Q escura sabe de antemão quais as jane- sentido de algumas expressões. Dizem de quem desvie os olhos para não ver os braços
las onde haverá luz porque também têm uma vista que é deslumbrante e quem por lá que estendem sobre o passeio empedrado.
uma rotina diária as janelas das casas. Antes acorda todos os dias com o realçado deslum- E há casas desabitadas que vivem num
de entrar no café que acaba de abrir a porta bramento diante dos olhos apenas descortina abandono controlado à distância. São heran-
texto SeGUNDo o ANteRIoR ACoRDo oRtoGRÁFICo

LER primavera 2016 121


Correspondentes

ças incómodas e adiamentos diversos. Es- Quem olha para as casas levanta muitas Quem procura as casas tem a grande in-
preitam de algumas os cortinados puídos e vezes os olhos para as persianas descidas no genuidade de pensar que nessas casas é que
ouve-se bater com o vento uma gelosia mal fe- alto de um prédio novo e tenta perceber se a vida é como deve ser. Mas quem procura as
chada. São impacientes essas casas cheias de há por detrás alguma luz ou movimento ou casas sabe bem que em algum canto uma
memórias com as quais desafiam quem pas- se continuam no ar os cheiros de tinta que casa deve ter duas janelas altas sobre a rua e
sa pela rua. habitam as casas nunca habitadas. E não que de lá seja visível a mudança das estações
As casas são as rugas da cidade. Linhas tendo como sabê-lo desenha em pensa- e a dança das árvores quando houver vento.
de riso ou marcas de dor e por elas se conta mento o interior das casas no alto dos pré- E sabe que vistas da rua em frente as duas
como correu o tempo e o caprichoso suce- dios novos e abranda o passo porque imagi- janelas altas hão-de estar iluminadas nas
der dos acasos. nar requer caminhos lentos. manhãs dos dias úteis a uma hora certa.

R
Carta de Londres
Clara Macedo Cabral

Euphorium
A partir de um café de bairro em Londres.
Interrogações sobre o capitalismo global.

á anos que venho a este café: o Eu-


H phorium. Começou por ser uma pada-
ria. Um simples balcão atrás do qual se ven-
dia pão, um apertado corredor em frente ao
qual os clientes formavam bicha. Rapida-
mente, comprou espaço, dilatou, evoluiu
para pastelaria, passou a oferecer refeições li-

© DR
geiras de saladas, quiches e sopas. Refinou a
decoração. «Manners maketh man» está es- mente. O Euphorium tem agora uma deze- A cadeia Euphorium acabou vendida em
crito a giz num quadro de ardósia frente a na de réplicas disseminadas por Hampstead, 2015 a uma cadeia de supermercados (Tes-
um sofá de cabedal ao estilo Chesterton. Os Kensington, Camden ou Angel, bairros resi- co) por 37 milhões de libras. O que significa
clientes que ali se sentam pagam para senti- denciais de uma afluente classe londrina. que, mesmo amortizando o investimento
rem esta fusão entre o contemporâneo hip e Talvez o sucesso se explique por ter sido total, os donos fizeram uma fortuna e se qui-
o tradicional british. Entre as regras de refi- uma cadeia pioneira em acondicionar mães serem podem reformar-se aos quarenta,
namento britânico o quadro de ardósia debi- e crianças. Das primeiras, onde avistei mães jovens sob a aura do sucesso. Quantos em-
ta: «Encete um diálogo acerca do tempo a fim a amamentar em público, fraldários, carri- preendedores se podem gabar do mesmo?
de espaventar o silêncio:» Bom, não foi bem nhos que entram e saem, crianças que gati- Mérito deles, sem dúvida, mas só numa ca-
sobre o tempo mas sobre os negócios do Eu- nham enquanto as progenitoras esticam e pital com a dimensão de Londres, e uma
phorium que um dia me apanhei à conversa esgarçam o tempo até o volume de som não escala de vários milhões de consumidores,
com Danny, um dos sócios fundadores. Já lá mais poder ser ignorado. Abandonado se atinge um resultado tão estrondoso:
vão uns bons 15 anos. E há que reconhecer à pressa, o café retoma a normalidade acús- 37 milhões de libras esquadrinhados do bal-
que, de então para cá, o plano de expansão tica, mas o espaço acusa as marcas do fura- cão de uma padaria.
que ele me desvendou e ao qual sempre vo- cão com charcos, pedaços de bolo e pacotes Isto parece bom, à primeira vista. Os ne-
tei alguma dúvida, foi executado magistral- de açúcar disseminados pelo chão. gócios são feitos para serem bem-sucedidos.

122 primavera 2016 LER


Mas ao segundo olhar, é inquietante. É qua- à margem para crescimento. Basta-lhe co- A economia real que dá postos de trabalho
se um dano marginal ou colateral que os locar as saladas e sanduíches do Euphorium e assenta na relação direta com o cliente não
empregados sejam mal pagos e não se à venda nos seus 59 supermercados espa- compensa e recua ante formas de multipli-
aguentem por muito tempo. Quanta cara, lhados por Londres. E assim as ditas saladas cação do capital que evitam o ónus da cria-
quantos países, quantas línguas vi ou ouvi e sanduíches, que eram produzidas a uma ção dos postos de trabalho e das relações
eu: nem um só permaneceu. O assustador escala de escoamento de dezenas, passaram diretas com clientes e entre colegas de tra-
reside mesmo no cerne deste modo de mul- a inundar centenas de estabelecimentos. balho.
tiplicar negócios em vertigem, passá-los de Produzir, produzir, produzir – mesmo quan- Veja-se a política de hot desk implemen-
mão em mão, mal atinjam um pico, astuta- do o desperdício se impõe e a fatura passada tada, entre outras, pela BBC. A hot desk
mente discernido. Recolher o lucro, rein- ao Planeta nos abocanha. é uma forma de cortar no custo do espaço.
vesti-lo, talvez, numa área nascente e sem Outra cruel premissa é que por detrás do Trocado por miúdos, o trabalhador, cada vez
afinidade. triunfo dos tubarões existe um cardume di- que se queira deslocar ao local de trabalho,
É certo que o fim de qualquer negócio zimado. Uma amiga minha italiana foi um tem pela frente uma luta para encontrar
sempre teve de ser o lucro. Mas este não se desses peixes-miúdos. Tinha remodelado uma secretária livre e disponível onde se
centuplicava em 15 anos, levava tempo a fer- um café-restaurante nas traseiras da Tate possa sentar. Assim se promove o trabalho
mentar e, como tal, obrigava a mais consi- Modern, quando, ao fim de poucos meses, a partir de casa. Os colegas são uma massa
deração pelos obstáculos que se entrepu- os donos renegociaram com ela a renda do de gente disforme com quem que se compe-
nham no caminho. Mas, agora, a máquina ano seguinte. Hélas, a cadeia Wagamama te até pela mesa de trabalho, com quem não
quase desconhece constrangimentos. O ob- ofereceu nas calmas 210 mil libras/ano con- se forjam alianças. E não só o trabalho em
jetivo único e excludente que o lucro é, não tra as 80 mil libras que a italiana pagara em equipa sai penalizado; os empregados des-
se coaduna com atrasos, vinculações afeti- 2015. Era uma luta desigual, se acompa- conhecem e eventualmente participam me-
vas ou outras gratificações que não sejam o nhasse a oferta da rival teria um ano de la- nos nas decisões que afetam a empresa.
puro e duro: lucro. Fazê-lo por gosto? Fazê- buta e preocupações pela frente apenas para E assim continuamos todos, empregados
-lo por arte? Continuar um negócio porque saldar despesas. ou empregadores, jogando os dados de um
se esteve na sua génese e se ganhou afeição, Em Mayfair, num dos bairros residenciais jogo viciado, quem sabe, perdedor para a
orgulho, se adquiriu um know-how que le- mais caros de Londres, entre 10 a 15 restau- grande maioria, exceto para a minoria que
vou anos a aperfeiçoar e se quer continuar a rantes, alguns com estrelas Michelin estão detém o capital ou a propriedade e não cor-
aprimorar e a devolver ao cliente? Os tem- a tentar trespassar os seus negócios por não re riscos de perdas maiores. Encurralados
pos são outros. aguentarem o aumento vertiginoso das ren- nesta autoestrada, por muito autodestrutiva
A cadeia é um modelo triunfante elimina- das, segundo notícia que saiu no FT de feve- que ela seja, na miragem do crescimento,
tório de modelos independentes. Em Lon- reiro. Os proprietários fazem-se valer de um da rapidez, do lucro.
dres, ou fora de Londres, é já uma raridade regime de renda livre e sem teto e do facto de
encontrar lojas que sobrevivam indepen- Mayfair estar repleta de hedge funds (fundos R
dentes. Elas foram destronadas pelas ca- de investimento especulativo), clubes e casi-
deias de ginásios, restaurantes, papelarias, nos que entram na assassina competição Carta de Paris
livrarias, cabeleireiros e spas. por rendas comerciais. Tiago Moreira Ramalho
Onde quer que vamos, nas high streets Ante a constatação de que os lucros são es-
de qualquer cidadezinha de província, te- magados pela escalada de rendas, os restau-
Les Beaux Esprits
mos os mesmos ambientes e produtos, cen- rantes reagem, e de duas uma: ou preparam
tuplicados. É um pouco entendiante? Outros a transferência para o leste de Londres ou A certa altura vimos um bar que, no toldo,
dirão que é conveniente continuarmos nes- para a City de Londres com rendas mais su- tinha escrito «Les Beaux Esprits se rencon-
sa autoestrada que não permite alamedas portáveis ou, simplesmente, planeiam ven- trent».
laterais, com outros jardins e espécies. der o negócio, encerrá-lo, e anunciam no
Subjaz a toda esta história uma ou outra mesmo FT estar à venda por um milhão À D.
premissa brutal que conviria desocultar. e 500 mil a dois milhões de libras. Para quê ma celebração de aniversário levou-
É que isto só resulta se continuar a crescer
imparavelmente. Uma cadeia de supermer-
manter o árduo trabalho de confecionar,
satisfazer clientes, manter empregados,
U -me um destes dias a Belleville, bairro
considerado geralmente aprazível para o
cados como a Tesco consegue recuperar renegociar empréstimos com bancos quan- jovem alternativo (nesta lógica conhecida
o custo de aquisição do Euphorium graças do se pode ter uma ceifa destas? do «alternativo» ou «marginal» que, na rea-

LER primavera 2016 123


Correspondentes rante chinês (ali há-os em abundância). nal de Saint-Martin, uma das raparigas
Acabámos num espaço quase sumptuoso, apercebe-se de que já tinha estado ali; mais
ainda que em conta, e com fotografias do Sr. especificamente, já tinha estado no Café
lidade, constitui a norma – um paradoxo Mitterand na entrada (aparentemente, ele Bonne Bière, um dos cafés atacados nos
bonito para mais uma tese de doutora- estimava o seu pontual porco agridoce). Ti- atentados de novembro. Explicou-nos
mento). Reunimos o grupo por volta das rámos nós as nossas, com poses e sorrisos, como, tendo ido lá parar por acaso (como
cinco da tarde à porta do La Bellevilloise, que um dia ainda podemos ser presidentes, desta vez, aliás) estremeceu ao reparar nas
na Rue Boyer. Como tantas vezes acontece e comemos. Esta parte interessará pouco ao flores e dedicatórias deixadas ao largo e ao
com grupos de gente não-alternativa leitor, até porque não duvido que já muito fazer a fácil associação. Olhámos com algu-
naquelas bandas, batemos com o nariz na se tenha escrito sobre comer em restauran- ma atenção, mas já não havia flores e a es-
porta, que a recreação só começava mais tes chineses em Belleville. Por isso, faça-se planada estava cheia de luz e de gente a be-
tarde. Pouco dados a derrotismos, fomos uma pequena elipse e coloque-se a troupe ber e a conversar alto. Nós, pelados de frio,
discutindo vivamente os males da nossa ge- a descer a Rue du Faubourg du Temple à continuámos a demanda pelo Quai de Jem-
ração pela Rue de Ménilmontant abaixo até procura de abrigo alcoolizante que permi- mapes até chegarmos ao destino planeado:
que, na grande praça ao fim da rua (depois tisse uma digestão mais alegre. Entrámos o Comptoir Général. Só uma pessoa no gru-
começa a Rue Oberkampf) contornámos numa perpendicular, a Cour des Bretons, po tinha visitado o espaço, circunstância
uma grande manifestação de jovens e nos que tinha ar simpático, e numa das casas que lhe permitiu o sorriso concordante en-
sentámos descansadamente na terrace demos conta de uma valente festança. En- quanto os outros iam tecendo as suas loas
dum café, o Le Biarritz, onde um grande tretivemos o nosso antigo projeto de um dia ao ambiente instalado. Munimo-nos dos
cartaz anunciava o horário da happy hour: penetrarmos sem convite numa festa des- nossos copos e fomos enfiar-nos num can-
das 5 da tarde às 11 da noite, para evitar des- tas durante um pedaço e uma das raparigas to a conversar pelo meio de pouco hábeis
gostos, a pinte vendia-se a três euros. Per- assegurou-nos mesmo ter ouvido, vindo de passinhos de dança. Aos poucos, o espaço
corremos as trivialidades típicas das con- lá de dentro e por cima do berreiro das foi ficando mais cheio e nós, que tínhamos
versas de amigos durante um par de horas, colunas, um tipo qualquer a dizer «caralho», saído de casa demasiado agasalhados para
pelo meio de golinhos de cerveja e bocas sinal positivo, que os portugueses enten- ajuntamentos tamanhos, cedemos o nosso
cheias de pão com queijo. Quando nos co- dem-se sempre bem quando se encontram lugar e fomos procurar paragens mais cal-
meçaram a adormecer as pernas e os pul- fora de Portugal. Apesar do mar de possibi- mas e temperaturas menos tropicais. An-
mões do fumo imenso, tratámos de pagar lidades, optámos pela civilidade de não in- dando pelas ruas, fomos dar à Place de la
o que devíamos e metemo-nos pela Boule- comodar o espaço alheio e voltámos à Rue République, lugar escolhido para a expres-
vard de Belleville em busca de um restau- du Faubourg du Temple. Chegados ao Ca- são coletiva do luto parisiense e que eu, por
alguma razão, procurei evitar. De novo vol-
támos a falar dos ataques e de novo voltá-
mos a percorrer a normalidade instalada.
Entrámos pela Boulevard Voltaire e, cami-
nhando, ia-me ocorrendo como por vezes
nestas alturas quase damos razão a uma
certa sociologia antiga que via as comuni-
dades como entidades de carácter quase
biológico. Era como se a cidade se estivesse
curando aos pedaços, feita gente que por al-
guma razão se viu ferida ou doente. A certa
altura vimos um bar que, no toldo, tinha es-
crito «Les Beaux Esprits se rencontrent» e
que anunciava as heures heureuses até às
duas da manhã. Entrámos e uma vez mais
bebemos, animados pelas conversas e pelas
graças; nós e os outros que ocupavam as ou-
tras mesas do bar e as outras mesas dos
© DR

outros bares em todo o 11º arrondissement.

124 primavera 2016 LER


OBITUÁRIOS
Em 1980, um romance abalou o meio
editorial. O Nome da Rosa, escrito por um
reconhecido professor e intelectual italiano,
era um policial complexo, labiríntico e erudi-
to, e um romance histórico cuja abundância
de detalhes maravilhou os leitores. Best-sel-
ler instantâneo, foi traduzido para dezenas de
línguas e em todos os países conheceu um su-
cesso avassalador. Umberto Eco, o seu autor,
tornou-se uma celebridade literária à escala
global. Nos círculos académicos, europeus e
norte-americanos, o seu nome era familiar.
Obra Aberta e Apocalípticos e Integrados fo-
ram importantes contribuições para os estu-

©DR
dos literários e culturais. Alguns conceitos aí
apresentados foram absorvidos pelo discur- mances refletiam também as suas preocupa-
so corrente, uma medida fiável para avaliação
Umberto Eco ções com a linguagem e a comunicação e as
(1932-2017)
do impacto de um trabalho académico. Após consequências funestas que podiam advir da
a publicação de O Nome da Rosa (adaptado falta de preparação dos cidadãos para lidarem
ao cinema por Jean-Jacques Annaud em cussões políticas e sociais mais relevantes do com tentativas de manipulação, como é notó-
1986), Eco foi alternando os romances com nosso tempo. Nesse aspeto, foi o exemplo do rio em O Pêndulo de Foucault, O Cemitério
ensaios e a coordenação de obras de referên- cada vez mais raro intelectual público empe- de Praga ou Número Zero, o seu último ro-
cia (sobre a Idade Média – o seu tema predi- nhado em causas como a condenação da mance no qual faz um diagnóstico sombrio
leto –, a beleza e a fealdade), participando Guerra do Iraque ou as críticas à berlusconi- sobre o jornalismo contemporâneo. Umber-
sempre de forma bastante intensa nas dis- zação da política. De certa forma, os seus ro- to Eco morreu a 19 de fevereiro.

São raros os escritores que precisam de tão poucos mo-


mentos para definir uma carreira literária como Harper Harper Lee
(1926-2016)
Lee. O primeiro momento foi a publicação, em 1960, de To Kill a Moc-
kingbird (Não Matem a Cotovia), que rapidamente se tornou um clás-
sico da literatura norte-americana, tendo recebido o Prémio Pulitzer Matem a Cotovia abordava diretamente a questão das relações raciais
em 1961. No ano seguinte, o livro foi adaptado ao cinema, com Grego- e de classe e foi tão celebrado pela sua dimensão literária como pela
ry Peck a desempenhar o papel de Atticus Finch, o mais importante sua importância social. O segundo momento foi a colaboração de Har-
da sua carreira e que lhe valeu um Óscar. Numa altura em que em per Lee com o seu grande amigo Truman Capote na investigação que
muitos estados dos EUA ainda vigoravam leis segregacionistas, Não daria origem a A Sangue-Frio, a obra-prima do jornalismo literário.
O terceiro momento talvez tenha sido aquele que gerou maior polé-
mica visto que a escritora aparentemente não teve grande interferên-
cia na decisão de publicar Vai e Põe Uma Sentinela em 2012, uma su-
posta sequela do seu único romance, mas que afinal se tratava de uma
primeira versão que nunca tinha saído da gaveta de Lee. A situação
foi estranha porque a autora não voltou a publicar qualquer livro e, ao
longo dos anos, manteve uma postura reservada, evitando entrevis-
tas e outras aparições públicas. O livro vendeu milhões em todo
o mundo, mas pouco contribuiu para reforçar o lugar de Harper Lee
na história da literatura norte-americana. Esse lugar há muito estava
garantido e também não seria este último e estranho ato a pô-lo em
©DR

risco. Harper Lee morreu a 19 de fevereiro.

LER primavera 2016 125


Resumo
«As histórias são o melhor antídoto contra na grande imprensa é a mesma de o meu a maioria dos escritores são monomaníacos;
o fanatismo.» cão não comer uma salsicha. A chance o remédio é ir em frente. Continuar.»
Jostein Gaarder, escritor. El País. de um autor indie ser convidado para um Anita Brookner, escritora, falecida em março de 2016.
grande festival de literatura? É como Última entrevista no The Daily Telegraph.
«Nós, artistas, somos canibais.» Donald Trump pedir desculpa ao México.»
John Banville, escritor. El País. Ros Barber, escritor. The Guardian. «Apesar das virtudes, ele era um maluco.»
Juan Thompson, sobre o pai, o escritor Hunter
«O melhor crítico é sempre o leitor.» «Por algum motivo preocupamo-nos mais S. Thompson. O Globo.
António Tavares, vencedor do Prémio LeYa. Diário em mudar o mundo do que mudar-nos a
de Notícias. nós mesmos.» «Sou egoísta, uma egocêntrica, polígama,
Rodrigo Cortés, cineasta e escritor espanhol. ABC. amoral, irresponsável, desequilibrada,
«Sem erotismo, a vida não tem a menor definitivamente um péssimo exemplo
graça.» «Terei sido inconveniente e arrogante, para a sociedade.»
Chico César, músico e poeta, autor de Versos mas neste momento sou um gajo normal.» Doris Lessing, escritora, numa carta de 1944 agora
Pornográficos. O Globo. Manuel João Vieira, músico. Notícias Magazine. divulgada. The Guardian.

«A poesia tem uma sensualidade infernal.» «A guerra está à nossa porta mas as músicas «Em Portugal, andamos todos a ver quem é
Maria Bethânia, cantora. O Globo. de hoje são lamechas.» que arranca os olhos a quem.»
Zé Pedro, músico. Diário de Notícias. Mariza, fadista. Diário de Notícias.
«No nosso tempo há uma sacralização
das vítimas. São convertidas em heróis.» «O maior orgulho da minha vida não são «Não me apetecia nada morrer amargurado.»
Javier Cercas, escritor. i. os livros, é ter o amor dos meus soldados.» Jorge Silva Melo, autor e encenador. Diário de Notícias.
António Lobo Antunes, escritor. Jornal de Negócios.
«A edição não é uma ciência, é antes uma «Só para explicar de que trata o romance
questão de gosto.» «A cultura da nota é nociva.» são precisos 45 minutos. E, no entanto,
Sonny Mehta, editor. El País. Tiago Brandão Rodrigues, ministro da Educação. toda a gente fica surpreendida com
Diário de Notícias. a velocidade a que avança o livro.»
«O assédio sexual na ciência começa Robert Falls, encenador do Goodman Theatre, de
geralmente assim: uma mulher (uma «Um dos meus sonhos de sociólogo era Chicago, que adaptou 2666, de Roberto Bolaño (1100
estudante, uma técnica de laboratório, uma assistir a um concerto de Tony Carreira.» páginas), para a nova temporada. The New York Times.
professora) recebe um e-mail e percebe que Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios
a linha onde vem o “assunto” é um pouco Estrangeiros. Diário de Notícias. «Eu tenho uma ideia que não sei se está
estranha: “Preciso de falar contigo” ou confirmada, mas creio que toda a situação
“Os meus sentimentos”. As primeiras linhas «O conflito do século XXI é entre os fanáticos de tensão, medo e claustrofobia
referem-se ao estado físico e mental alterado e nós.» desencadeada em Lima naqueles tempos
do seu autor: “É tarde e eu não consigo dormir” Amos Oz, escritor israelita. O Globo. [os de Alberto Fujimori na presidência]
é um clássico, embora “Talvez seja das três mostrou o sexo como uma tábua de salvação
doses do conhaque” também seja popular «A crítica? Ela é sobretudo mal no meio do caos, uma forma de fugir
nas universidades.» fundamentada e mal escrita. É pegar da realidade. Uma busca do prazer para
Hope Jahren, professora de geobiologia e autora do livro ou largar. Louvores, grandes frases escapar de todo aquele horror político.»
de memórias Lab Girl (Random House). The New York na capa do livro?'Irrelevante. Na verdade Mario Vargas Llosa, sobre Cinco Esquinas,
Times. eu não entendo muitos dos comentários o seu novo romance. El País.
sobre os meus livros. Os meus amigos
«A chance de um romancista em auto- não costumam lê-los. Devem achá-los «Exprimir preocupação sobre o racismo
publicação ter uma recensão ao seu livro deprimentes. Não me importo. Eu acho que é uma nova religião, e concentrar-se em

126 primavera 2016 LER


questões de linguagem em vez de analisar pela segurança, há também «Estamos a produzir muito mais do que
a mecânica política e os seus significados um sequestro do conhecimento o habitual na nossa fábrica de Stein, na
é o meio mais fácil e mais seguro de ter humanístico em nome do utilitário.» Baviera, a fim de satisfazer as necessidades
a certeza de que se é visto na primeira Ricardo Menéndez Salmón, escritor. ABC. globais de “lápis de artista” relacionadas
fila da nova igreja.» com os livros de colorir para adultos.»
Jarett Kobek, autor do romance I Hate the Internet. «Nada falha tanto como o sucesso.» Sandra Suppa, relações públicas da Faber-Castell.
The New York Times. Jean d’Ormesson, escritor. Le Magazine Littéraire. The Independent.

«Há de haver sempre um caminho «Os políticos, que me fazem concorrência «O Brasil é também um grande mercado
armadilhado entre o autor e o seu leitor, desleal, fazem rir mais do que eu.» de livros para colorir. O país passou por
graças aos agentes, editores à percentagem, Francisco Ibañez, cartunista, criador dos uma escassez de lápis de cor.»
técnicos de marketing, números de vendas personagens Mortadelo e Filémon. ABC. Susanah Calahan, analista. The New York Post.

© Pedro Vieira

«Como o Estado tem agora uma base de dados completa com os consumos nas farmácias, pode projetar
de forma bem precisa as pensões que vai pagar nos tempos que se seguem ao período de declaração do
IRS porque pode prever, com um algoritmo relativamente básico, quem é que está prestes a bater a bota.
Mais, como tem as faturas do resto, pode correlacionar facilmente com o consumo de carne, batatas fritas,
fast food, vinho, etc. A gestão da coisa pública pode tornar-se perfeitamente eficaz.»
João Pires da Cruz, físico. Observador.

na Amazon, por aí fora. A vida era «Não se devem transpor conclusões de «Frankenstein faz-nos tremer um pouco,
mais fácil quando os editores não pediam artigos científicos para a legislação nacional, mas logo a seguir sentimos uma simpatia
uma sinopse, mas simplesmente liam porque se se tentar fazer isso é um passo irresistível e até ternura por ele.»
o romance (sobretudo isso: tinham tempo para o desastre.» Fernando Savater, filósofo. El País.
para lê-lo) e tomavam uma decisão.» Mário Centeno, ministro da Economia. Diário
Fay Weldon, escritora. The Independent. de Notícias. «Sem medo não há criação.»
Rosa Montero, escritora. Le Monde.
«O homem sem memória, sem filosofia e «Há dias Kafka e há dias Agatha Christie.
sem escrita não é nada. Também não é nada Há dias em que se vai passear acompanhado A um tonto não há forma de convencê-lo a
sem tristeza, sem fatalismo, sem violência e por D’Artagnan e Athos, e outros dias pelo que deixe de ser tonto. É preciso descer ao seu
paixões. Como um sequestro da política pela Rei Lear.» nível. E,nesse nível, os tontos são imbatíveis.»
economia e um sequestro da liberdade Javier Marías, escritor. El País. Arturo Pérez-Reverte, escritor. ABC.

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SINDICÂNCIA V JOANA BÉRTHOLO
Nasceu em 1982. É autora de Diálogos para o Fim do Mundo (2010), Havia (2012), O Lago Avesso (2013)
e Inventário do Pó (2015), todos publicados pela Editorial Caminho.

Um livro que não leu.


2666. Admiro muito outros livros de Bolaño,
mas algo neste me...
O(a) autor(a) que mais a irrita.
Não me ocorre nenhum/a. Há livros que me
dão fastio mesmo antes de os abrir, mas não
chega a ser irritação.
Que frase tatuaria se a obrigassem?
Não tatuaria.
Um exemplo de beleza.
O primeiro beijo. A primeira frase para um
novo livro, o alvor da manhã, os primeiros
acordes de uma música que adoramos e nos
surpreende na rádio. Os gestos inaugurais,

© vitorinio Coragem
recomeçar todos os dias. O primeiro beijo.
Um exemplo de elegância.
O sistema de 128 trigramas, 64 hexagramas
e 384 máximas que compõe o I Ching e que
faz dele o mais fascinante e elegante livro uma linha invisível no chão. Ou seja, em qual- O palavrão que usa mais vezes.
da história dos livros. quer lado. Neoliberalismo.
Um exemplo de fealdade. A que político daria sempre o seu voto? O fim de semana ideal.
Deixarmo-nos convencer de que não há alter- Àquele que soubesse restituir um lugar à Natureza, livros, amigos, criançada, boa mú-
nativas para o atual sistema económico. imaginação, à utopia, e a um projeto coletivo. sica e telemóveis desligados.
A resposta internacional à crise dos refugia- Terrenos que a História encheu de minas; O lugar ideal para passar férias.
dos. Salvar bancos e corporações e deixar pes- ainda assim, lugares necessários. Fé... férias? Interessante. Como assim?
soas no desamparo. As tentativas de patentear Que proibição alimentar lhe seria mais cus- A sua finest hour.
sementes. Esquecermos que o nosso corpo tosa? Está mesmo a chegar!
e o corpo da terra são o mesmo corpo. O esta- Viveria bem do ar se o ar fosse docinho. Um jogador de futebol.
do geral de passividade indignada – implodir- Quem lhe suscita inveja? Zidane no filme de Douglas Gordon...? Não
mos porque já não sabemos como explodir. Todos os que ultrapassaram o medo da rejei- presto nenhuma atenção ao futebol.
Um livro para oferecer ao pai. ção e conseguem aparecer tal qual como são. O que escolheria para última ceia?
Este Natal ofereci ao meu pai As Primeiras Um passeio no parque ou uma noite na Estar rodeada por amigos, família, e por todos
Coisas (Bruno Vieira Amaral) e os Cadernos ópera? a quem algum dia bem-quis.
de Memórias Coloniais (Isabela Figueire- Uma ópera no parque e um passeio na noite. Que livro a impressionou mais recentemente?
do) e à minha mãe o Azul-Corvo (Adriana Cerveja, vinho tinto, vinho branco ou whisky? A Noite e o Riso de Nuno Bragança e As Teo-
Lisboa). Vinho most definitely tinto. rias Selvagens de Pola Oloixarac.
Em que país gostaria de ter nascido? A música que nunca lhe sai da cabeça. Um disco eterno.
Na Lapa lisboeta, a 21 de junho de 1982, O tirititan-tan-tan-tah típico da abertura de Dummy, Portishead. Há lugares da minha
aí pelas três da tarde, se pudesse ser... uma Alegría, um dos muitos palos do baile adolescência que ainda me retêm.
Em que país gostaria de morrer? flamenco. Um epitáfio.
Num momento em que esta intoxicação com Um insulto. «Quem não amou / assim? Quem não amou?
a ideia de nação tivesse perdido o sentido, «Pagar não pagamos; mas damos-te visibi- / Quem? / Quem não amou está morto»
e que tivéssemos parado de nos guerrear por lidade.» (de um poema de Eugénio de Andrade).

128 primavera 2016 LER

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