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UMA CAMINHADA
COM PATTI SMITH
POR ISABEL LUCAS
vergílio
RUE D’ANVERS ferreira
POR J. RENTES DE CARVALHO
A PARIS DOS ANOS 50
NÃO SE FAZIA APENAS
100 anos
POR HUGO PINTO SANTOS
DE «VIDA LITERÁRIA»
HARRIE LEMMENS,
O TRADUTOR HOLANDÊS
POR ELE PRÓPRIO
CARLOS FIOLHAIS
ENTREVISTA CÉDRIC VILLANI,
GÉNIO DA MATEMÁTICA
JORGE LISTOPAD,
O POETA PERDIDO
POR NUNO COSTA SANTOS
PRIMAVERA 2016 | N.º 141 Crónicas de abel barros baptista, eugénio Lisboa, Leonor Baldaque, Tiago cavaco
Poesia para o trimestre
Vem à Quinta-feira
Vem à quinta-feira.
Vem à quinta-feira.
Vem à Quinta-feira.
Mas não venhas nesta, vem na próxima.
Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
profissional – sabes que isto não está fácil – e talvez nos dê hipótese de irmos
a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo
para arranjar o cabelo, para arranjar o coração,
para elaborar a lista do que me falta fazer contigo.
Vem à quinta-feira.
FILIPA LEAL
[Vem à Quinta-Feira. Assírio & Alvim, 2016]
REVISTA FUNDADA EM 1987. EDIção N.º 141. PRIMAVERA DE 2016. TERCEIRA SéRIE.
SUMÁRIO
PATTI
SMITH
Silenciosa, soli-
tária, tranquila.
Uma mulher comum atra-
vessa a paisagem carregando
fantasmas, deixando-se levar
pelo impulso, cedendo
a obsessões. No segundo
volume das suas memórias,
© Pedro Loureiro
© DR
Depois da publicação do seu primeiro romance, há muito aguardado, Clara Ferreira Iorque com todas as possibili-
Alves em discurso direto, numa longa entrevista em que fala de si, da sua entrada no dades desse cenário. Rentes de Carvalho em Paris 52
jornalismo, da geração de 80, de crítica literária – e também da solidão, da leitura e do Texto de Isabel Lucas. 92 A Paris dos anos 50 não se fazia apenas de «literatura».
risco de viver. Entrevista de Bruno Vieira Amaral. Veja-se a história da maîtresse da Rue d’Anvers. «E que
maîtresse. Muito procurada pela competência em domi-
nar e ferir, inventiva no uso do cavalo-marinho, especia-
lista de técnicas do afogamento, orgulhosa de provocar
ejaculações e orgasmos que faziam concorrência aos de
Radko.» Um mimo. Texto de J. Rentes de Carvalho
LER
Diretor Francisco José Viegas editor-adjunto Bruno Vieira Amaral Design e Projeto Gráfico José Campos de Carvalho Fotografia Pedro Loureiro
secretariado da Revista Maria José Pereira Revisão João Assis Gomes Colaboram neste número Abel Barros Baptista, Ana Carvalho (tradução), Ber-
nardo Pires de Lima, Carla Maia de Almeida, Clara Macedo Cabral, Eugénio Lisboa, Fausta Cardoso Pereira, Francisco Vale, Harrie Lemmens, Hugo Pinto
Santos, Humberto Brito, Isabel Lucas, Ivone Mendes da Silva, João Leal, José do Carmo Francisco, José Riço Direitinho, Leonor Baldaque, Margarida
Santos Lopes, Nuno Costa Santos, Pedro Loureiro (fotografia), Pedro Vieira (ilustração), Tiago Cavaco, Tiago Moreira Ramalho.
LivRos & LeitoRes
Redação & Administração Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1; 1500-499 Lisboa; Tel. 217 626 000; Fax 217 609 592; ler@circuloleitores.pt.
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todos os textos são publicados segundo o Acordo ortográfico em vigor. excetuam-se os de alguns cronistas e eventuais extratos de obras citadas.
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cote de corda? Agora já sabe.
O Fim dos Segredos
Catarina Guerreiro
A Esfera dos Livros
Genealogia
Julián Fuks é uma das no-
vas vozes do Brasil. A Resis-
tência, o seu quarto roman-
ce, insere-se, de um certo
modo, no domínio da auto-
ficção. É a história de um
casal argentino que, após
o golpe de 1976, foge para o
Brasil, levando uma criança que tinham ado-
tado. É esta criança, agora um adulto, que nar-
ra a história da descoberta das suas origens.
A Resistência
Julián Fuks
Companhia das Letras
Antes que cheguem as ondas do verão – aqui está uma
lista de leituras. Ruy Belo pode ajudar: «Na minha juventude an- Fontes Pereira de Melo, o rebelde
tes de ter saído / da casa de meus pais disposto a viajar / eu O fontismo é talvez dos
conhecia já o rebentar do mar / das páginas dos livros que já ti- termos mais persistentes
não só na política como na
nha lido // Chegava o mês de maio era tudo florido/ o rolo das
sociedade portuguesa.
manhãs punha-se a circular / e era só ouvir o sonhador falar / da Mais do que as conse-
vida como se ela houvesse acontecido // E tudo se passava numa quências, positivas ou ne-
outra vida / e havia para as coisas sempre uma saída.» O seu País gativas do fontismo, David
Possível («o país que o mar não quer») inaugurou o trimestre dos Justino propõe-se analisar
neste livro o contexto em que aquelas políti-
livros de poesia.
cas foram decididas.
Fontismo – Liberalismo
numa Sociedade Iliberal
David Justino
Dom Quixote
Direita, onde andas? O mistério napolitano Um crime que não é como os outros
Com textos de António Chega ao fim a tetralogia de A tese de Timothy Snyder,
Araújo, André Freire, Ma- Nápoles e os muitos leito- autor de Terra Sangrenta,
nuel Monteiro, Patrícia res de Elena Ferrante não é a de que devemos evi-
Silva, Luís Salgado de Ma- sabem se hão de ficar con- tar olhar para o Holocaus-
tos, entre outros, este livro tentes por conhecer o des- to apenas como História,
coordenado por Riccardo fecho ou tristes por saber como um acontecimento
Marchi possibilita uma vi- que já não há mais. Neste que não se pode repetir.
são ampla sobre a direita volume, Elena, a protago- Conhecer a história dos crimes nazis deve
(ou direitas) portuguesa na democracia, nista e narradora, abandona o marido e re- obrigar-nos a ver o Holocausto como um avi-
reinventada nos anos 80 quer através dos gressa a Nápoles, onde acaba por se reencon- so. O que aconteceu pode voltar a acontecer.
partidos, quer através da opinião pública. trar com a grande amiga de infância, Lila. Um dos livros do ano.
As Direitas na Democracia Portuguesa História da Menina Perdida Terra Negra
Riccardo Marchi (coord.) Elena Ferrante Timothy Snyder
Texto Editores Relógio d’Água Bertrand
Uma casa para guardar na boca Mindelo, Cabo Verde Um triângulo de quatro lados
A poesia de Filipa Leal con- Diz-se de vários autores Conversa de exilados e en-
tinua a perseguir os seus te- que se repetem de livro tre Portugal, Angola e o
mas e as suas obsessões re- para livro ou que, no míni- Brasil: pode ser este um re-
gulares – o amor quase mo, escrevem e reescrevem sumo da relação que existe
perdido, as promessas, a o mesmo livro ao longo entre Ana Paula Tavares,
casa, uma certa inabilidade da vida. Germano Almeida Manuel Jorge Marmelo,
para o mundo real, as refe- explica que isso não é uma Ondjaki e Paulinho Assun-
rências geracionais. Este falta, mas uma virtude ini- ção, cada um no seu canto
livro celebra uma melancolia sem escape gualável: as suas histórias são uma revisitação do mundo, imaginando uma comunidade
e que se diz totalmente: «Eu era a mais alta permanente do seu cenário maravilho- ideal e irreal onde falamos a mesma língua.
representante da poesia / lamechas.» so, o Mindelo – e os seus personagens. Verbetes para Um Dicionário Afetivo
Vem à Quinta-Feira Regresso ao Paraíso Ana Paula Tavares, Manuel Jorge Marmelo,
Filipa Leal Germano Almeida Ondjaki e Paulinho Assunção
Assírio & Alvim Caminho Caminho
muito direta
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Manifestos
Uma banda do Minnesota escutada no trânsito do Cacém, o mau gosto em literatura,
«os estrangeiros» em Inglaterra, a sorte de uma técnica dos transportes de Braga. Nomeadamente.
e me pedissem para escolher duas pala- desta dívida monstruosa, a edilidade porti- País sabe que a rotunda solitária, deixada
S vras que definem as nossas autarquias
diria «dívidas» e «rotundas». Posso estar a ser
monense era a orgulhosa proprietária de 30
rotundas que, não podendo ser transplanta-
ao abandono, ignorada por condutores ne-
gligentes que por ela passam sem um gesto
injusto para as três autarquias que escapa- das para outras localidades nem trocadas por de atenção, é um problema social gravíssimo.
ram a este duplo flagelo, mas é disto que me estatuária diversa, continuaram a adornar o Em declarações à CMTV, a presidente da câ-
lembro quando vejo a presidente da Câmara espaço urbano daquela cidade. Ao fim de me- mara, com o sorriso rasgado dos visionários
de Portimão anunciar um programa de ado- ses a saltar entre dívidas e rotundas e dívidas míopes, disse acreditar que, daqui a uns
ção de rotundas. Vejamos: em 2014, a Câma- rotundas, algum cérebro autárquico sugeriu anos, os turistas irão de propósito a Portimão
ra de Portimão, com 159 milhões de euros de o revolucionário cruzamento entre uma visitar as rotundas que, na altura, fruto do
dívida, ocupava um honroso terceiro lugar na campanha de solidariedade animal e o me- investimento dos empresários na sua requa-
lista das autarquias mais endividadas, logo cenato viário: pedir aos empresários da terra lificação, estarão ao nível de um Taj Mahal
atrás de Lisboa e Vila Nova de Gaia. A par que adotem uma rotunda. Quem viaja pelo ou das pirâmides de Gizé. BVA
Manuel Alegre protesta contra o mau gosto na literatura. Mas onde terá ele – o mau gosto – nascido? Carlos, de Paulo sérgio
Araújo, sairá este ano,
urante uma das sessões das culpar a «comunicação social» é fácil e pela herança cultural, a cedência bem como as de rober-
Capital: Abuja. Línguas mais faladas (para além do vaca (por vezes também galinha) tempera-
Cidade mais populosa: Lagos. inglês): haúça, ibo e ioruba. da com malaguetas, farinha de amendoim
Fronteiras: a sul, Camarões; a sudeste, Moeda: naira. e especiarias locais; é preparado enfiando
oceano Atlântico; a norte, Níger; a noroeste, a carne em varas e grelhando diretamente
Chade; a nordeste, Benim. Prato nacional: A cozinha nigeriana sobre o fogo.
Nº de habitantes: 173 milhões. é muito variada, consistindo em pratos tí- Bebida nacional: Sorrel – é uma bebida
Religião: 58% da população professa a reli- picos das centenas de grupos étnicos que à base de água e flores de hibisco, a que se
gião cristã (dos quais 74% são protestantes compõem o país. É bastante condimentada, junta gengibre e cravinho, pimenta, cascas
e os restantes católicos) e 40% são muçul- usando especiarias e ervas em conjugação de laranja, um pau de canela e mel. Ferve
manos (sobretudo os da tribo ioruba); os com óleo de palma. O uso de várias espécies tudo por 10 minutos. Passada meia hora,
restantes, são animistas, agnósticos e ateus. de malaguetas está sempre presente. Suya a bebida deve ser coada. Serve-se fria e com
Língua oficial: inglês. é o prato típico do Norte da Nigéria: carne de pedras de gelo.
ESCRITORES FAMOSOS
Wole Soyinka (n. 1934) – Estudou na Nigéria e no Reino Unido. meiro africano a receber o Nobel, em 1986. Para além da sua obra-
Foi professor convidado em Cambridge, e mais tarde em algumas -prima, Os Intérpretes, tem publicada em português a sua
universidades americanas. É considerado um dos mais impor- impressionante autobiografia, É Melhor Partires de Madrugada
tantes dramaturgos de África. Várias vezes premiado, foi o pri- (Pedra da Lua, 2008).
© DR
uma realidade cultural e histórica, em oposição a romances em
que o olhar está do lado de fora, em que é «estrangeiro». Por vá- língua dos colonos para que os seus livros possam ser lidos em
rias vezes (e escreveu mesmo um ensaio para o demonstrar) ape- todo o continente – justifica-se assim quando é disso acusado).
lidou de racista o famoso livro O Coração das Trevas, de Conrad, Chinua Achebe é uma voz incómoda para alguns intelectuais afri-
por causa desse olhar etnocêntrico, ignorante da cultura africa- canos que a qualquer pretexto desfraldam a bandeira da «vitimiza-
na, arrogante e exterior ao continente. Achebe retoma as «regras« ção» do continente, demitindo-se assim de responsabilidades; e é-o
canónicas da forma do romance, as convenções clássicas do gé- também para um certo Ocidente trendy que não se consegue ver
nero, e «acrescenta-lhe» a estética da tradição oral africana. Não livre de um exacerbado complexo de culpa histórica, e que com essa
subverte a linguagem nem cai no facilitismo de lhe inventar efei- disfarçada atitude «paternalista» mais não faz do que legitimar
tos «folclóricos» (escreve num inglês perfeito; conta histórias na a hipocrisia e a desgraça.
Cimamanda Ngozi Adichie (1977) contadores de histórias. O seu nome é rias», daqueles que reúnem as aldeias
om a publicação em 2005 de A Cor Chimamanda Ngozi Adichie. Esta escri- na sombra das acácias-rubras.
talento dos antigos contadores de histó- toda a sociedade presa nas suas garras.
ilustrou, trabalhando em dupla na prodigio- da gula, não tem metas nem objetivos decla-
sa década de 20. rados, ignora a competição e, enfim, tem al-
Entre a hiperatividade impulsiva do Trigue guns hábitos só tolerados em comunidades
(não, não é gralha) e a depressão crónica do alternativas e empenhadas na permacultu-
Uma árvore perde as folhas e um homem burro Inhon, o caso de Winnie-the-Pooh ra. Seria trucidado pelo nosso sistema edu-
perde a cabeça. Outono, livro sem texto, (Joanica Puff, na tradução portuguesa) não cativo e poderia levar o mais motivado perso-
é uma alegoria do tempo ou da calvície? causa distúrbios de maior, desde logo porque nal coach à loucura – mas, para felicidade dos
Este Outono, que se vai desdobrando até à de- leitores, nenhuma des-
sistência final, não tem muito a ver comigo. sas ameaças existe no
Prefiro outros estados de espírito e revolto- Bosque dos Cem Acres.
-me antes de ficar melancólico. Há quem lhe Enquanto o Mocho e o
chame «mau feitio». E assim o tempo corre Coelho ditam pretensas
mais depressa e a calvície chega mais cedo. verdades, o Porquito se
Em Partida, outro livro sem texto, um bloco aflige e o burro Inhon diz
de gelo transforma-se num barco a vapor. mal do mundo, Winnie-
Provocar contradições poéticas é um vício -the-Pooh dedica-se a vi-
de ilustrador? ver – sem angústias nem
Esta coleção, a que chamei «Desconcertinas», afobações. Importante,
é ótima para criar vícios. Antes mesmo das mesmo, é continuar a
contradições poéticas, provoca o vício do di- flutuar, mesmo sob as
vertimento. Dá muito gozo pensar nestas piores condições atmos-
situações desconcertantes que se revelam fra- féricas. «Se uma garrafa
me a frame, como num zootrópico em câ- pode flutuar, um pote
mara lenta. também pode flutuar, e
Pode revelar um dos seus propósitos de vida se um pote pode flutuar,
(além do e pluribus unum)? eu posso sentar-me em
De muitos, aqui fica um: não deixar de ter cima dele, se for um pote
propósitos de vida. Outro, mais prosaico ou muito grande», diz ele.
talvez não, é voltar a ter tempo para ilustrar Pensem nisso. Mas
© DR
PUB
LivroS ao microScópio
O PIlOTO E O PRINCIPEZINHO Um novo
álbum de Peter Sís, Prémio Hans Christian
andersen de Ilustração, merece ser cele-
brado com champanhe. Ou Champomy.
Zangados. Furiosos. En- Depois de uma tempesta- Depois do anterior Quero Andersen sempre recusou
vergonhados. Assustados. de, uma baleia dá à costa Um Abraço, a história de o estatuto de escritor para
Rabugentos. Sobre um e é acolhida por um meni- um cato cujo maior desejo crianças; e a profundida-
fundo narrativo de contex- no solitário. Mas o mais era ser abraçado, Simona de, inquietação e originali-
to familiar, os sentimentos interessante talvez seja o Ciraolo volta ao tema da dade da sua escrita não
e emoções retratam-se que acontece entre ele e família, desta vez esco- podem deixar de interpelar
aqui sem julgamentos, o pai. Com texto e ilustra- lhendo um ângulo mais o leitor adulto. Esgotada
porque «todas as famílias ções do mesmo autor, eis realista: o choque da pas- há muito a coletânea da
são diferentes e todas fun- uma estreia que venceu sagem da infância para Gailivro, a presente edição
O Piloto e o Principezinho
Peter Sís cionam de maneira o prémio Oscar’s First a adolescência, protago- reúne 156 contos com
Jacareca diversa». Book 2014. nizado por duas irmãs. novas traduções.
Virtudes cardeais
O mundo governado por um certo absurdo, é esse o segredo.
Castidade – É no Museu de Orsay, em Paris, que se encontra rioka (donde, Livraria Morioka) substitui o título por um novo.
um dos quadros mais escandalosos da história da arte ociden- O conceito é inovador mas desafia a paciência do leitor que só
tal, Olympia, do sátiro Edouard Manet. Mas se o quadro já não compra livros na Morioka e tem de esperar uma eternidade por
choca ninguém, a não ser que João César das Neves visite «aquele» livro.
aquele antro de arte degenerada, o mesmo não se pode dizer de Humildade – A França condecorou o cidadão português Antó-
alguns gestos artísticos contemporâneos que escandalizam não nio Antunes com o título de cavaleiro da Ordem das Artes e das
apenas os defensores da moral mas até a direção do museu. Letras. O Sr. Antunes pediu que a cerimónia oficial tivesse lugar
A artista luxemburguesa Deborah de Robertis despiu-se perto na embaixada portuguesa em Paris. O Sr. Embaixador, cujo
do quadro de Manet e imitou a pose de Olympia. Resultado? nome nos escapa, disse que não podia ser. O Sr. Antunes ainda
Foi retirada das instalações pelas autoridades policiais. O qua- assim foi condecorado, publicou uma mensagem nas redes sociais
dro, esse, ficou no mesmo lugar. a agradecer a distinção e aproveitou para dar a conhecer a recu-
Generosidade – O Sr. Zuckerberg, aquele rapaz muito feio sa do Sr. Embaixador. «No meu país hão de valorizar-me quan-
que inventou o Facebook, ficou multimilionário e continuou feio, do tiver um pé para a cova», profetizou o Sr. Antunes, que é co-
anunciou que pretende doar ao longo da vida 99% das ações da nhecido em determinados círculos culturais como Tony Carreira.
empresa para obras de caridade. Visto que as ações valem Temperança – Ainda o Osservatore Romano. O jornal veio
atualmente uns 50 camiões carrega- acusar o Charlie Hebdo de fomentar uma sociedade laica em
dos de notas de cem dólares, dá que não há respeito pelos «crentes da fé em Deus, indepen-
para ter uma ideia da generosi- dentemente da sua religião». Um ano depois do aten-
dade do Sr. Zuckerberg e da tado, o jornal satírico fez uma capa mostrando
sua mulher, Priscilla Chan. o verdadeiro assassino, Deus, em fuga.
Malditos capitalistas! Não foi o suficiente para incendiar as
Diligência – Um cientista superinflamáveis redes sociais, mas deu
alemão, Edzard Ernst, que para chamuscar a sensibilidade dos jornalistas
tem dedicado muito tempo do Vaticano. É preciso ter calma, como cantava
a investigar a chamada Abrunhosa.
«medicina não-convencio- Caridade – Jay-Z, mastermind de tudo
nal» (homeopatia e outras técni- o que é hip, de tudo o que é hop, lá-lá-
cas), concluiu que isso é o mesmo que -lá, afirmou que num ano conse-
«brincar aos médicos». E então? gue transformar Harry Styles,
Quem nunca brincou aos dou- ex-membro da banda One Di-
tores? É verdade que ganhar rection, no maior artista do
dinheiro com a patranha enquanto mundo. Sem querer meno-
se diz às pessoas que estão a ser tra- rizar o desafio – cer-
tadas pode parecer errado, mas talvez tamente uma tare-
um médico imaginário consiga mais fa- fa árdua, apenas
cilmente convencer o doente de que a enfer- ao alcance de
midade também é imaginária. Jay-Z –, por-
Paciência – Restaurantes que só servem um prato que não em-
não são novidade mas um empresário japonês im- pregar tais ca-
portou a ideia para o negócio livreiro. A sua livra- pacidades em
ria – a Morioka Shoten (o que segundo o Google artistas ainda mais
significa Livraria Morioka) – só vende exemplares necessitados de auxílio? Por exemplo, pegar nos
do mesmo livro. Ao fim da semana, Yoshiyuki Mo- D.A.M.A e torná-los suportáveis. Pode ser?
© Pedro Vieira
«CALL OF DUTY: BLACk OPS II» é um videojogo de 2012. Quando foi QUANDO A IGREJA CATóLICA SE QUEIxA da fraca qualidade dos vi-
lançado, bateu todos os recordes de vendas. A ação decorre entre lões do cinema é caso para dizer que já não se fazem maus como
1980 e 2025 e, lá pelo meio, há uma missão em Angola, no antigamente. O mal costumava ter excelentes representantes
Cunene, em que o jogador é recebido por uma versão digital de Jo- mas, em tempos de relativismo, os criadores têm mais dificulda-
nas Malheiro Savimbi. A família do antigo líder da UNITA, tal- des em inventar maus que sejam convincentes. Esta é a opinião
vez mais habituada a jogos de estratégia, só agora reparou neste de um crítico do L’Osservatore Romano, o jornal da Santa Sé, de-
pormenor. No entanto, a reação foi pouco amigável porque a ima- pois de ver o novo Star Wars. Nem os regressos de Han Solo, da
gem de Savimbi neste videojogo é, de acordo com os parentes, «a princesa Leia e de Luke Skywalker comoveram o crítico que
de uma grande besta que quer matar toda a gente». A família in- achou kylo Ren e o líder supremo Snoke – as novas personifica-
terpôs uma ação em tribunal em que exige um milhão de euros de ções do mal – indignos sucessores de Darth Vader e do imperador
indemnização e a retirada desta versão do jogo de todas as lojas. Palpatine. Parece que os maus também carecem de bênção papal.
Catorze anos após a sua morte, Savimbi continua a fazer história:
é a primeira vez que um personagem de um videojogo motiva um
processo por difamação.
in utero
TODOS RECONHECEMOS A IMPORTâNCIA DA MúSICA na educação das
crianças desde a mais tenra idade mas desconhecíamos até onde
o conceito de «tenra idade» podia ir. Fique o leitor a saber que se
esperar que o seu filho veja a luz do dia para o expor à arte e ao
génio de Beethoven, Bach ou David Carreira já parte com nove
meses de atraso. Tudo isto graças à empresa espanhola Babypod
que desenvolveu um aparelho que a grávida deve introduzir na
vagina para que o feto oiça os mais recentes sucessos musicais.
Encostar a barriga às colunas da Bang & Olufsen não resulta vis-
to que a parede abdominal abafa os sons, segundo estudos cita-
dos pela Babypod. O aparelho custa 150 euros, uma ninharia
quando está em causa a produção de um futuro melómano.
Disse numa entrevista que a única coisa que gosta de fazer des- do onde se calhar não me interessa muito viver. Posso estar total-
de sempre é ler e escrever. Queria que falasse sobre esses pri- mente desatualizada, não sei. Ainda ontem escrevi um mail a um
meiros tempos, as primeiras leituras. Cresceu numa casa com amigo meu, o Onésimo Teotónio Almeida, a pedir-lhe um exemplar
livros? em papel da Pessoa Plural, e ele mandou-me um mail a dizer: «Bom,
Com livros, sim. Sem dinheiro mas com livros. Não havia dinheiro são 650 páginas, está em pdf, queres que te imprima o livro todo?»
mas havia alimento espiritual. O grande acontecimento anual para – e eu disse que não, não vão estar a imprimir um livro para mim.
mim, além da praia (gostava imenso da praia), era a ida à Feira Mas eu sou, de facto, do século XIX.
do Livro. E a escrever também?
Onde é que vivia nessa altura? Aí escrevo tudo no computador mas adaptei-me com grande dificul-
Vivia em Lisboa. E a Feira do livro com aqueles livros todos era… Eu dade, foi um sarilho. Eu e o José Quitério, no Expresso, da gastrono-
adorava aquelas coleções da Ulisseia, da Romano Torres, coisas que mia... Éramos os luditas da redação. Eu não queria largar a minha
já não existem, que já nem são do seu tempo. E os primeiros livros Olivetti e depois havia uma pessoa que passava da máquina para o
de bolso, acho que eram da Ulisseia... Não, eram da Minerva. Tinha computador. Compunha no computador as nossas brilhantíssimas
uma coleção que ainda hoje se vê na Feira do Livro que era a cole- peças feitas na máquina. O Quitério escrevia tudo à mão. E havia
ção «Miniatura», que era o primeiro paperback. O meu primeiro mais, o Francisco Belard, etc. Nunca fui muito dada ao futuro. Depois
Dostoiévski acho que é daí. Eram livros pequenos e as capas eram finalmente lá comecei a escrever no computador numa altura em
extraordinariamente bonitas. Levavam-se para todo o lado e eu gos- que ninguém tinha computador em casa. Fui-me habituando, mas
to muito da ideia da portabilidade do livro. De andar com um livro escangalhava aquilo tudo porque dava murros nas teclas. Aquilo era
na mala. Levo sempre outro livro para o caso de o primeiro ficar sem matraquear. Ainda hoje tenho esse problema com os meus mac-
bateria. [Risos.] Trazia sacos com livros da Feira. O meu pai deixa- books ou não sei quê. Preciso da relação material com a escrita,
va-me comprar tudo o que eu quisesse. Tinha um budget… a relação física, mecânica. Embora a minha caligrafia seja horrível.
Não tinha restrições à leitura? Mas consegue percebê-la?
Não. Havia uns livros que já estavam um pouco fora da minha alça- É horrível mas ainda consigo perceber.
da mas não estavam escondidos. Talvez estivessem um pouco mais O romance foi escrito no computador?
para trás na estante mas eu logo fui lá. O Zola. Quando li A Besta Sim. Escrito no computador mas sempre trabalhado em print, ou
Humana fiquei em estado de choque. seja, emendas em print é um processo complicado. Prints, prints,
O que é que a chocou? prints, depois organização em resmas, porque não sou capaz de or-
Aquilo é a consciência social. O que me chocou foi o sexo, a procria- ganizar no computador, nem sequer sei partir texto no computador
ção. Como católica que eu era, nunca tinha visto num livro aquela nem fazer copy/paste. Então faço resmas, leio em papel, introduzo
brutalidade. as emendas no computador e depois peço a alguém que me diga
A sua família era católica? como é que colo isto com isto – e foi assim.
Era. Bom, a minha mãe era católica, praticante. Bem, posso dizer E o seu gosto pela escrita também foi precoce.
que sim, da família da minha mãe eram todos ultracatólicos. Da fa- Foi, foi. Eu só gostava de fazer redações, nunca gostei de gramática.
mília do meu pai, não. Era um problema. Adoro o dicionário. Cheguei a decorar o dicio-
Mas ao mesmo tempo tinha alguma abertura. nário. Uma coisa que faço quando não consigo dormir em vez de
Existia completamente porque o meu pai gostava muito de livros contar carneirinhos começo pela letra «D» e tento pensar no maior
e deixava-me ler tudo. número possível de palavras. Sou capaz de ficar uma hora nisto.
Qual foi a sua primeira grande paixão literária? Isso é bom para alguns testes psicotécnicos.
Eu era muito eclética. Praticamente aprendi a ler sozinha por amor No outro dia estive com a letra «D» e pensei: «Não vou para as disse-
aos livros. Mesmo sem saber ler passava horas a folhear livros por- melhantes, vou para as derivadas.» A palavra «dado», por exemplo
que sendo filha única tinha muito tempo livre. Gostava e ainda gos- – e trabalho todas as modificações. Entretenho-me imenso assim.
to imenso do cheiro do papel. Isto é completamente inútil, como você calcula, e não dá dinheiro.
Ainda não se rendeu às novas tecnologias. Se surte efeito é o que interessa.
Nada. Sou uma ludita. Não aguento. Preciso do papel, do cheiro do Mas gosto disto, entretenho-me com as palavras.
papel. Preciso de sentir o livro fisicamente. Não sei o que é que vai E percebeu cedo que acabaria por, não digo viver da escrita, mas
acontecer ao livro mas um mundo sem livros de papel é um mun- a trabalhar com palavras?
escrever os trabalhos de grupo, era sempre eu que fazia a redação guir investigação em direito penal queria ir para a Suíça, para Neu-
final, ou seja, estava a trabalhar para o boneco, como se costuma di- châtel, e disse-me para eu ir também, mas eu não tinha bolsas, não
zer. A meio do 2.º ano, disse: «Vou mas é acabar o curso noutro sí- tinha dinheiro para ir para Neuchâtel. Para mim aquilo foi destrui-
tio.» Nessa altura, há mais uma grande batalha: eram mesmo bata- dor. Ainda tentei saber se podia voltar para Lisboa para dar aulas
lhas campais, com cadeiras pelo ar, cabeças partidas… Eu percebi aqui e creio que até fui falar com o Marcelo Rebelo de Sousa na al-
que aquilo não ia para lado nenhum. A Ordem dos Advogados diz tura. Ele não se deve lembrar do episódio, mas disse-me que havia
que não aceitará cursos da Faculdade de Direito da Universidade de uma grande rivalidade entre as duas universidades, entre Lisboa e
Lisboa, o MRPP dominava os estudantes que estavam um bocado Coimbra, e que era um pouco difícil. Fiquei sem pátria. Era aquele
fartos dos comunistas, bem... aquilo não dava nada. Lembro-me de tipo que estava a viver no aeroporto e que não o deixam apanhar
um dia em que eu estava a estudar na biblioteca, e o COPCON en- o avião para lado nenhum. Foi um período complicado.
trou por ali dentro e começaram a destruir livros, a tirar livros das Como é que resolveu esse impasse?
estantes, foi uma selvajaria e foi aí que eu disse: «Acabou.» Um cole- Fui estagiar para um escritório de advogados completamente de-
ga mais velho estava a pedir a transferência para Coimbra, que ti- sinteressada daquilo, a fazer mudanças de sede social e coisas assim
nha de ser secreta (porque se descobrissem apanhávamos uma fascinantes.
sova), e eu resolvi fazer a mesma coisa. Pedi a transferência. Secre- E quando é que surge o jornalismo?
ta. De Coimbra disseram-me que naquela altura do campeonato ti- É quando eu estou completamente desesperada nesta vida jurídica
nha de prestar provas. Em Coimbra não destruíram o currículo aca- um pouco parecida com a do Eça de Queirós, para dizer a verdade.
démico, como em Lisboa, e também não havia batalhas campais, Já escrevia nessa altura?
estava tudo no sítio. O Prof. Rui Alarcão disse-me que não estavam Escrevinhei sempre, andei sempre a escrever. Não eram diários mas
a aceitar pessoas de Lisboa porque era o caos mas como não havia estava sempre a escrever coisas.
muita gente a pedir talvez fosse possível. Eu tinha dois «aptos» e duas É que por vezes esses trabalhos desinteressantes são ótimos
passagens administrativas do 1º ano e ele disse-me que em junho te- para…
ria de prestar provas para ver o que eu sabia e tinha que me apre- Pensar.
sentar a exames diretamente. Duvidava que eu conseguisse passar Pensar e escrever.
e disse-me para ver se compensava estar dois anos no segundo ano. E os casos humanos nesta área do Direito são interessantes, pura
Eu disse-lhe que preferia tentar e prestar provas em junho porque tragédia. Um divórcio, uma perda de propriedade, um processo de
em Lisboa não estava a ir para lado nenhum, era insuportável. En- partilhas, uma briga entre duas pessoas. Como sabe, aquilo depois
tão prestei provas e até passei com notas ótimas. tem dramas pessoais tremendos, as pessoas matam-se umas às ou-
Como é que via o seu futuro? tras. O direito penal decorre ou do drama passional ou da destrui-
Negro, negro. ção da propriedade. Para o Direito isto é tudo muito básico. Depois
Via-se como jurista? na vida real imagine a tragédia que você não tem. O Direito lida com
Eu gostava muito de Direito. Era muito abstrato e árido mas eu gos- a falta de dinheiro, a falta de amor, o fim do amor mas de uma
tava daquilo, sobretudo direito penal. Os estudantes de Direito co- maneira seca, árida, não conhecendo as pessoas. Regula a vida de
meçam por pensar na advocacia, notariado, magistratura – a ma- todas as pessoas, mas não as conhece e nem quer conhecê-las.
gistratura não me interessava nada e notariado ainda menos – e É como se sobrevoasse a vida, vai lá acima e depois aproxima-se e
o que me interessava era fazer investigação em direito penal. Mas vê os carros e vê a terra, mas não sabe nada em concreto sobre
foi-me dito muito claramente em Coimbra que naquela faculdade aquela terra.
não havia doutoramentos em penal para mulheres. Quando eu E a literatura é como saltar de paraquedas para essa realidade?
acabei o curso. É isso, é cair de paraquedas na selva amazónica. A literatura é por
Foi a primeira vez que se sentiu prejudicada por ser mulher? dentro, o Direito é por cima.
Não havia muitas mulheres em Direito, é um facto. Naquela época O jornalismo também tem esse lado de contacto direto. Foi isso
fiquei muito revoltada, hoje parece uma anedota mas naquela fase que começou a fazer?
da minha vida foi demolidor. Na verdade, eu nem comecei a fazer jornalismo. Eu estava completa-
E aí começou a pensar em alternativas? mente farta porque tinha havido um caso que tinha corrido muito
Na advocacia, mas não me interessava muito. Fiquei um bocado de- mal e era muito dramático. Era numa altura em que se penalizavam
sesperada. Tanto mais que um colega meu que também queria se- todos os comportamentos em Portugal e isto tinha a ver com um
jovem que tinha sido apanhado com um cigarro de erva ou qualquer tinha um espírito de vendas extraordinário e perguntava aos clien-
coisa e tinha sido preso, imagine. O que Portugal evoluiu em crimi- tes: «Porque é que em vez deste quadradinho não compra meia pá-
nalização de comportamentos é extraordinário porque na altura era gina?» Argumentava bem e conversava com as pessoas. Então o
tudo proibido. Havia um juiz absolutamente horrível e ortodoxo e Nuno Rocha foi lá para falar comigo. Ele devia pensar que eu tinha a
mau. Aquilo degenerou rapidamente numa verdadeira tragédia e eu 4.ª classe ou coisa assim; disse-lhe que tinha estudado Direito e ele
fiquei muito maldisposta e fui para um café com um amigo que hoje perguntou-se se eu não queria acabar o curso; disse-lhe que tinha
é um médico bastante conhecido e eu disse-lhe «Não aguento!», mes- acabado, e nem lhe disse que tinha feito pós-graduação. Ele ficou
mo como no fado: «Eu não aguento esta vida!» Ele disse-me que tinha muito espantado e perguntou-me o que é que eu gostava de fazer e
de acabar de uma vez por todas com aquela história, que tinha de ser disse-lhe «escrever». E ele disse-me que ia escrever uma carta para
pragmática. Comprámos um jornal para ver que emprego é que po- o diretor d’A Tarde para eu experimentar escrever num jornal. Dis-
dia arranjar. Eu disse-lhe que não era assim porque eu também tinha se-lhe que nunca tinha escrito para um jornal e ele: «Não faz mal.
um conceito elitista da minha pessoa. Era altamente imatura. É melhor do que estar a vender publicidade aqui.» E assim fui pa-
Ainda vivia com os seus pais? rar ao A Tarde. Entrei no jornalismo e adorei.
Sim. Ou talvez já vivesse fora. A certa altura quis ser independente, E o que é que foi fazer?
à inglesa, e aluguei um quarto e depois andei assim numa espécie Fui substituir a Teresa de Sousa, que na altura fazia a página femi-
de sistema de pernoitas, portanto não tenho a certeza onde estava. nina. Nós, mulheres, tínhamos uma posição de luxo na sociedade
Mas era um disparate, não tinha maturidade nenhuma. Então abri- portuguesa da altura. [Risos.] Ela fazia a página da mulher, o que é
mos o jornal da altura, que era o Tempo, do Nuno Rocha, um jornal extraordinário, não é? Quer dizer, fazia muitas coisas mas uma das
de direita – mas era o grande semanário. Os semanários que esta- coisas que fazia era a página da mulher. Também não havia muitas
vam na moda eram O Jornal, o Expresso e o Tempo, mas este é que mulheres. Entretanto ficou grávida do primeiro filho, creio, e fui
vendia mais. E pediam pessoas para venderem publicidade no jor- substituí-la. Eu não sabia nada do que era a página da mulher e dis-
nal, para o grupo editorial. Era o Tempo, o Correio da Manhã, A Tar- seram-me para inventar. Mas inventar o quê? Então fui ver as re-
de, tudo do Nuno Rocha. E o meu amigo disse-me que eu podia fa- vistas femininas, de moda (eu não me interessava nada por aquilo),
zer aquilo. Mas eu não sabia nada de publicidade, era um disparate. e comecei a inventar receitas, a ser criativa e depois comecei a rece-
Ele insistiu que eu tinha era de deixar a advocacia, mas eu tinha ber cartas de leitoras que tinham experimentado as minhas recei-
medo. Ele é que telefonou e marcou-me uma entrevista com uma tas e aquilo não tinha atinado. Era uma fraude completa.
senhora, que era a diretora da publicidade desse grupo editorial, tal- Trabalhava na redação?
vez o único que existia em Portugal, e eu fui – e ela contratou-me. Só Sim, sempre na redação. Adorava.
que aquilo era vender quadradinhos no terminal do Rossio até à Quem eram os figurões nessa redação?
meia-noite. O terminal, àquela hora, era tenebroso. Aquilo era uma O diretor era o Carlos Plantier, havia o Jorge Morais, que era um
lojeca por cima do que é agora o Starbucks. Era tenebroso: o com- grande jornalista de direita e era um estilista prodigioso do ponto de
boio para a periferia, homens de gabardine (coisa que não me ate- vista da palavra, escrevia muito bem, era absolutamente aterrador,
morizava nada) e eu estava com uma jovem professora que também mas rapidamente me integrei no grupo dos literatos, que passavam
estava no primeiro emprego. Eu queria era esquecer-me do Direito, muito tempo a discutir os livros que tinham lido, que liam doutrina
portanto tive ali uma fase que chamo a minha fase pessoana, de política, eram uns intelectuais. Naquela altura, os jornais tinham
escrita comercial, digamos assim, e em que pensei que aquilo era muito este tipo de intelectual, dos tipos assim parecidos consigo, com
capaz de ser uma coisa boa porque não me mobilizava do ponto barba e óculos, que escreviam prodigiosamente. Gostavam muito
de vista dos afetos nem das emoções. de jornalismo mas o que tinham era bibliotecas extraordinárias e
Não estava a investir e libertava-a para a escrita. sabiam muito de literatura portuguesa. E a minha primeira litera-
Ficava liberta para escrever e ler livros. Pensei: «Não ganho dinheiro, tura portuguesa é com essa gente – porque é gente que tem um ex-
nem sou importante, mas também não quero ser, quero apagar-me traordinário conhecimento, de alfarrábio mesmo, da literatura por-
nisto.» Ainda hoje tenho a nostalgia de fazer isso. Queria apagar-me, tuguesa, que escreviam muito bom português. Depois passei para
mudar de vida. E entrei naquilo como quem entra num convento e o Correio da Manhã, que era o do Vítor Direito. Era gente com mui-
passei muito tempo ali, quase um ano. Foi muito bom, porque li ta experiência. Havia um homem muito engraçado, do desporto,
muitos, muitos livros, pensei muito na vida, e vendi tanta publici- chamava-se Neves de Sousa. Ouviu falar?
dade que a certa altura o próprio Nuno Rocha me quis conhecer. Eu Claro.
chamado Pedro Almodóvar. Nunca ninguém tinha ouvido falar do nard nos deixar entrar, porque nunca havia bilhetes. O Francisco
homem. Houve um grande gozo com o nome, o Vicente [Jorge Silva] Belard, por exemplo, que era um grande crítico literário e um eru-
deve ter feito umas piadas sobre o Almodóvar mas ninguém sabia dito, tinha uma casa em frente à Gulbenkian... Eu nem sei se ele vi-
quem era o Pedro Almodóvar. Mas como era um sistema democrá- via lá, porque eram só livros e livros, pilhas de livros. Cheguei a per-
tico votámos a favor do Almodóvar e lá se fez a peça. Nós tivemos esta noitar naquela casa porque no dia seguinte passava A Desaparecida.
capacidade de perceber o que era importante à distância. Escreve- Nesse sentido, foi um período extraordinário.
mos sobre coisas que ainda não tinham acontecido cá mas já esta- O facto de um crítico hoje não ter o mesmo poder é o que faz com
vam a acontecer lá fora porque viajávamos, sabíamos o que estava que não se interesse tanto pela crítica literária?
a acontecer. Eu hoje gostava de abrir um jornal e ser surpreendida. Cansei-me da crítica porque a partir de certa altura aquilo são fór-
Hoje é diferente, com a internet. mulas. A crítica literária é sempre uma fórmula. O próprio James
Sim, é diferente, mas na altura não havia internet. Nós trazíamos Wood, que é um tipo muito virtuoso a escrever crítica literária, é cri-
coisas que se estavam a passar noutros sítios. ticado por uma série de jovens autores de Nova Iorque daquela re-
Confrontar-se com essas realidades, com o que se passava lá fora vista N+1 que não gostam dele. Já queimaram o James Wood que
e depois regressar a esta realidade desesperava-a? tem uma grelha de leitura que por vezes é maldosa para os autores
Não, não me desesperava porque o Expresso era um lugar muito in- de quem ele não gosta. Eu também já tinha esgotado certas fórmu-
teressante para se trabalhar. Era um grupo muito inteligente, mui- las e já tinha escrito três ou quatro vezes sobre o mesmo autor por-
to informado. Quase enciclopédico. O Seabra era enciclopédico, no tuguês e há um número finito de coisas para dizer sobre um autor
verdadeiro sentido do termo, uma cabeça prodigiosa. Tínhamos português. Quando gastamos os cartuchos todos, corremos o risco
uma vida muito intensa, passávamos muito tempo uns com os ou- de nos repetirmos. Ainda fazia alguma crítica mas queria experi-
tros, aprendíamos muito uns com os outros. Uns sabiam mais de li- mentar outras coisas, sobretudo reportagem, que era o treino es-
teratura. Eu, por exemplo, trazia os autores americanos, comecei a sencial. Antes disso fui editora literária e tinha de ler as críticas de
escrever sobre os americanos que também ninguém conhecia cá ou toda a gente. O «Cartaz» de livros, na Revista, era editado por mim,
não eram falados. Acho que fui a primeira pessoa em Portugal a es- tinha de escolher e distribuir os livros.
crever sobre o Bret Easton Ellis. As Mil Luzes de Nova Iorque, de Jay Gostou dessa função?
McInerney, essa gente toda dos anos 80, Tama Janowitz, sou eu que Gostei porque trabalhei como pessoas como o Torcato Sepúlveda,
começo a escrever sobre essa gente. Tivemos um papel fundamen- que era uma espécie de lugar-tenente, e outros, que eram pessoas
tal em ilustrar as massas. Havia muita gente que dizia: «Tu falas de muito competentes, mas a certa altura tornou-se um período mui-
autores que ninguém sabe quem são.» Eu escrevi sobre o Joseph to pouco criativo para mim. Lia as coisas alheias, corrigia textos.
Heller. Lembro-me do Nelson de Matos publicar o Heller na Dom Era quem decidia sobre que livros iam escrever?
Quixote, e não era o Catch-22... Editaram o Something Happened, Sim, eu é que decidia em função também dos interesses de cada um.
que era um livro fabuloso mas muito difícil, e o Nelson disse-me: Havia livros que passavam de uns para os outros e diziam: «Este eu
«Imagina tu que vendi 10 mil exemplares do Heller...» Havia muita não quero.» Mas de um modo geral eu tinha de organizar aquele es-
fome de livros, de filme. O Esteves Cardoso escreveu uma peça so- paço e era muita gente. O António Guerreiro entra nessa altura para
bre isso, os «Gremlins culturais», que comiam filmes no Quarteto, o quadro. Havia gente mais jovem do que eu e com apetites estéti-
iam às livrarias, não paravam. Ao pé do Expresso havia uma livra- cos muito diferentes do meu e que tinham outras áreas de conheci-
ria, a Castil, havia o Hermínio na Assírio & Alvim, que era uma ter- mento. Eu era uma anglo-saxónica e havia os alemães, os franceses,
túlia de poetas, com o Herberto, o Cesariny, essa gente toda. O Bair- essa gente toda, e eu tinha de distribuir o trabalho. Era interessante
ro Alto era a confluência deste mundo todo, a Castil era o sítio onde mas muito pouco criativo. Deixava-me pouco tempo livre. Passei
estavam os livros sobre os quais escrevíamos. Quando eu escrevia muitas horas a organizar o próprio arquivo, que era gerido pelo José
sobre um livro, o Miguel Bastos [dono da livraria] punha o recorte Quitério, of all people. E era tudo recortes, pastas com recortes e eu
em destaque – ninguém comprava espaço nas livrarias na altura. queria ter um arquivo e então recortava as fotografias dos autores,
Estávamos ali entre a Castil, a Buchholz e a Cinemateca. Lembro- como o Philip Roth, por exemplo. A pasta do Philip Roth tinha sido
-me de passar dias na Cinemateca a ver os ciclos do João Bénard da feita por mim. Tirava tudo o que tinha sido feito sobre o Philip Roth
Costa, o ciclo do John Ford, que foi na Gulbenkian e na Cinemate- e mandava para o arquivo. Depois fazia uma pasta «Martin Amis»,
ca, o ciclo todo, de um autor tão prolífico como o Ford, você imagi- uma pasta «Salman Rushdie». Era tudo feito por mim por pura ca-
na, foram dias e dias e dias... Tínhamos a vantagem de o João Bé- rolice. Passava horas a recortar fotografias e críticas para que quan-
Mas eu acho que não surgiu o grande romance desses tempos porque estávamos
tão fragmentados por múltiplos interesses culturais, estávamos tão interes-
sados em ouvir música, viajar, ler, tínhamos demasiada vida social, demasiada
cinemateca, estávamos sempre em processo de aprendizagem, a absorver o mundo,
e a minha geração foi marcada por isso, um grande apetite pelo universo. Passá-
mos muitos anos, como dizia o Francisco Belard, a interessar-nos por tudo.
do as pessoas fossem fazer o artigo sobre um autor tivessem a tores e tinha que as escrever e desgravar. Até que um dia caí de can-
informação no arquivo. Não havia internet. Eu fazia de internet. saço, desatei a chorar e fui apanhada por uma secretária do Ex-
Eu era o Google. presso, a Paula Calisto, que já morreu, e que me disse que aquilo não
Até que se fartou disso e decidiu que queria fazer reportagem, merecia tanto. Eu estava a chorar de cansaço, de impotência, por não
foi isso? conseguir fazer tudo. Ainda publiquei algumas entrevistas, mas dis-
O que aconteceu foi que um dia a Fundação Getty fez um encontro se que não podia continuar a fazer aquilo, tinha de parar um boca-
em Portugal de grandes escritores no Palácio de Queluz, uma coisa do. E fui para o Peru. O Mario Vargas Llosa veio a Lisboa em 1989 e
sumptuosa. Vieram vários prémios Nobel, veio o Joseph Brodsky, o eu encontrei-o no Ritz, já não sei em que circunstâncias, se houve
Derek Walcott, que ainda não era Nobel. O Brodsky, eu tinha-o co- um almoço, não sei. Estive a falar com ele que me disse que se ia can-
nhecido em Londres, numa preleção. Eu passava muito tempo em didatar à presidência do Peru. Eu fiquei muito admirada.
Londres e conheci-o numa preleção na Royal Geographic Society. Ele contou uma história sobre essa visita a Portugal de se ter
Veio o Martin Amis, o Salman Rushdie, acho que veio o Ian Mc- encontrado com o Mário Soares e de ter ficado muito surpre-
Ewan. Veio o [Czeslaw] Milosz. Nunca tivemos em território por- endido por terem ido a um restaurante e terem pedido para ver
tuguês uma tal concentração de génios da literatura. Tirando o se havia mesa. Afinal, era o Presidente da República.
Expresso, houve algumas pessoas que se interessaram por aqui- Exatamente. Eu estava com o Mário Soares. Já não me lembro se foi
lo, pessoas que gostavam mesmo de livros e literatura, mas de um almoço. Sei que foi no Ritz. Quando ele disse que se ia candidatar
um modo geral poucos escritores portugueses foram lá. Foi o José eu pensei: «Vou fazer esta campanha eleitoral.» E fui. E foi extraor-
Cardoso Pires, o Almeida Faria e pouco mais. Houve uma grande dinário. Adorei fazer a campanha eleitoral.
ausência de escritores portugueses, que não aderiram àquilo. Quando foi para o Peru já conhecia bem a obra dele?
Ficaram assustados? Conhecia. Na altura Vargas Llosa ainda não era o Prémio Nobel.
Não sei o que aconteceu, foi muito estranho. Também muita gente Foi muito antes disso. O Vargas Llosa começa a ser célebre depois
que não sabia falar inglês, apesar de haver tradução simultânea. En- da polémica com o García Márquez.
fim, vi-me sozinha porque era a anglo-saxónica de serviço. Foi hor- O célebre murro.
rivelmente cansativo. Andei a mostrar ao Salman Rushdie o mo- E a esquerda toda toma o partido do García Márquez contra o
numento ao Pessoa nos Jerónimos, o túmulo do Camões, e depois Vargas Llosa, que é considerado um fascista.
andava com eles à noite porque nunca tinham estado em Lisboa. Politicamente como é que via o Vargas Llosa?
Como havia o Brodsky a falar no dia seguinte, não se dormia nada. Eu achava o Vargas Llosa um grande escritor, e acho-o um príncipe.
Eu deitava-me às quatro da manhã e tinha de estar de manhã cedo O Márquez é um escritor extraordinário. É impossível alguém pas-
em Queluz para assistir àquilo. Fiz não sei quantas entrevistas a au- sar pela obra do Márquez sem levar uma martelada mas o Vargas
A Agustina bessa-Luís uma vez disse-me isso no Frágil – o que é que a Agustina es-
tava a fazer no Frágil, não sei, mas alguém a levou para lá –, estava numa es-
quininha, com aquela curiosidade dela e eu perguntei-lhe o que é que era preciso
para escrever um romance, para me tornar escritora a tempo inteiro, e ela disse
a frase da minha vida: «arranje um marido rico.» Lapidar.
para escrever o Alexandra Alpha, era um escritor bissexto. Ele artigo que escrevi, «Lima la horrible», que é de 1990, o que é ex-
aguentava-se no limite da pobreza. A Edite, a mulher, trabalhava, e traordinário. Pode dizer que a audiência é muito diferente. Mas hoje
tinham uma vida ultrafrugal. Ele não viajava, não jantava fora todas fica tudo no Google e o que é que isso me interessa? Não me
as noites. O Alexandre O’Neill ganhava dinheiro na publicidade. interessa nada. O algoritmo. Pessoas que dizem mal de mim,
O Fernando Assis Pacheco, que era um extraordinário escritor que me insultam na internet, os bloggers. Há um cómico americano,
e poeta, estava na redação a fechar o jornal, outros davam aulas, que é o Bill Burr. Já viu o Bill Burr?
tinham que trabalhar. Hoje é mais fácil um autor viver dos livros Não.
do que na altura. A Agustina uma vez disse-me isso no Frágil (o que Pesquise uma coisa que é «Bill Burr destroys Steve Jobs», é muito
é que a Agustina estava a fazer no Frágil, não sei, alguém a levou bom, é um grande cómico americano. No outro dia estava no Col-
para lá), estava numa esquininha, com aquela curiosidade dela e eu bert, num desses talk-shows, e ele disse que não há maior perda de
perguntei-lhe o que é que era preciso para escrever um romance, tempo do que um comediante a responder a um blogger. É o cú-
para me tornar escritora a tempo inteiro, e ela disse a frase da minha mulo da humilhação. Porquê perder tempo com um tipo que está
vida: «Arranje um marido rico.» Lapidar. em casa a deixar cair butternut fingers derretidos na camisa e a es-
Não tinha medo de falhar? crever convencido que ganhou o Peabody, ou de que está no New
Não. Tinha medo de ficar sem dinheiro. Coisa que ainda tenho. Nun- York Times, e que está a insultar-me? É um pouco isso. O algoritmo
ca tive medo de falhar. Vou-lhe dizer uma coisa muito sinceramen- do Google recolhe biliões de sinapses humanas, vamos chamar-lhes
te: o medo de falhar é aquilo com que vive todo o jornalista. Quando assim, caridosamente, em que toda a gente está a opinar, like, dis-
já tem a reportagem toda feita na cabeça, com as notinhas todas, like, unlike, e tudo o que está na internet fica na internet.
uma reportagem de guerra, por exemplo, que é muito intensa e é Não liga a essas críticas na internet?
sob pressão, e você já tem tudo, as 10 histórias incríveis que lhe con- Deus me livre! Se ligasse não dormia descansada. Com a quantida-
taram, e tem a deadline, e todo o jornalista que tem a pressão da de de gente a insultar-me na internet por razões políticas ou porque
escrita, desde os tempos da tarimba de que lhe falei, em que me não gostam da minha cara. Porque há uma grande misoginia em
incutiram o terror da prosa malfeita – nessa altura tem o medo de Portugal.
falhar. E é o medo que alimenta o jornalista, o medo de no fim, Acha que há?
depois daquele trabalho todo, aquilo seja uma merda. Então não há? Não viu as piadas com a Marisa Matias? Acha que
A diferença é que um livro fica. em algum país europeu há um partido que diga que não arranjá-
Eu não distingo muito uma prosa da outra. mos uma candidata mais engraçadinha?
Mas uma reportagem desaparece e o livro fica. Tenho a ideia de que é tão odiada e tão amada como qualquer
Não sei se desaparece. Curiosamente verifico que as pessoas se lem- outro colunista.
bram de duas ou três reportagens que escrevi e que acho que são É a sua opinião? Então peço perdão por discordar. Até porque comi-
muito boas. Há coisas que ficam. Há uns tempos falavam-me de um go começa há mais tempo. E depois há poucas mulheres a comentar.
no mercado das artes português há uma escassez enorme de recursos, há pouco di-
nheiro. Isso faz com que quando uma mulher bonita faz duas ou três coisas, e estou
a lembrar-me de uma em particular cujo nome não vou dizer, ela é logo atacada
porque se não fosse bonita não conseguia fazer aquilo. Isso é uma grave injustiça.
É o tipo de coisa que se diz de uma mulher mas não se diz de um homem. Mesmo hoje
na literatura acho que há claramente uma supremacia do sector masculino.
Com a mulher, a Mercedes, a trabalhar brutalmente para susten- e havia alguns que eram mesmo uns chatos. Eu pensava: «Este tipo
tar a casa. escreveu um grande livro mas, caramba, é tão desinteressante como
A venderem tudo. pessoa...» Isto aconteceu-me. É que depois o mito começa a esbo-
A empenharem tudo, a vender tudo, incluindo a máquina de escre- roar-se.
ver. A realidadezinha. Como dizia o T.S. Eliot, as pessoas não su- Mas também encontrou escritores interessantes.
portam a realidade. Sim, outros são muito interessantes, divertidos e boa companhia.
Ainda há sectores que insistem em cultivar essa imagem do es- Mas há uns que não são, que só falam para a história. São chatos.
critor. Quem, por exemplo?
Do escritor com as vestes. O Eugénio de Andrade cultivava imenso O Coetzee, meu Deus! Vamos lá deixar-nos destas cenas de Coet-
essa imagem. Era muito engraçado. Nós caímos naquela esparrela. zee. Ele é um grande escritor. Do último livro nem gostei nada, para
«Então Eugénio?» e ele «Ah, passei a manhã a ler os meus clássicos». dizer a verdade, mas gostei muito do Disgrace, que é um livro fa-
Era muito bom. [Risos.] Não havia hipótese de falar de peixe frito de- buloso. E basta um livro. Mas o Coetzee é intratável. Até cair nas
pois disto, de falar de Platão, de Aristóteles. Só podemos continuar. boas graças dele e conseguir extrair-lhe três frases sobre qualquer
A fasquia fica alta. coisa é um trabalho terrível. E depois, quando alguém entra,
Temos de manter o nível. É uma elevação brutal. Eu participei des- penetrar aquele território de silêncio. Mas ele é interessante?
tas mitologias tendo crescido neste período participei nisto. «Ah, o Não, não é.
Hemingway em Paris! Ah, o García Márquez!» O meu era o Graham São questões de personalidade.
Greene: «Ah, o Graham Greene a beber gim em Antibes!» Passei Eu fui falar com ele sobre a Irène Némirowski e discordei dele. Fi-
anos a pensar se teria coragem para entrevistar o Graham Greene cou um pouco irritado, mas deu conversa, mas não foi uma conver-
e ir a Antibes, onde provavelmente conseguiria entrevistá-lo... Bas- sa que me tivesse iluminado ou que me tivesse dado alguma coisa
tava ir ao restaurante... Era como ir ver o Woody Allen tocar clari- nova. Não me deu nada, não me acrescentou nada. Foi uma con-
nete, todos queríamos ir ver o Woody Allen. Mas depois o que é que versa bastante desinteressante.
eu ia fazer? Se ele por acaso aceder a falar comigo eu vou ficar tão es- Dos escritores que conheceu e com quem privou qual é que lhe
tupidamente nervosa que só vou dizer imbecilidades. Vou dizer «En- trouxe algo de novo?
tão e o Heart of the Matter?», de que ele não gostava, «E o catolicis- Há gente espantosa porque são pessoas inteligentes, gostam de con-
mo?», ia fazer uma figura de ursa e depois ou ele me põe fora ou me versar. Eu acho o Martin Amis muito inteligente. É um tipo muito
vai ignorar ou então não ia ser nada disto e ia ver que ele era huma- difícil, mas é muito inteligente. E aí tem, é odiado e atacado, mas é
no como toda a gente e ia ficar desapontada e a pensar que afinal um grande virtuoso da escrita e é uma pessoa interessante. O Chris-
o Graham Greene era um chato. E eu entrevistei muitos escritores topher Hitchens. São cabeças prodigiosas porque não era possível
O que eu acho absolutamente inadmissível é que se brinque com isto, que se torne
isto numa sátira, acho terrível que se aproveite o livro para me satirizar. Isso
surpreendeu-me porque achei que esse tipo de maldade não seria possível dado que
eu falo de coisas que têm uma gravidade e um peso grandes. Julguei que o livro
não seria usado como arma de arremesso para me ridicularizar.
Se não tivesse não o tinha escrito. Em Portugal acho que nunca nin- Gama e havia imensas pessoas a passear com carrinhos de bebé,
guém escreveu sobre este tema. com aquilo a que nos anos 70 se chamava a «alienação urbana», com
Disse ao Público que é preciso ter um ego muito grande para se aqueles fatos de treino luzidios e gritavam uns com os outros. Eu fi-
pensar que se vai inovar, mas por outro lado se não se sentir que quei com uma angústia brutal. Depois no elevador havia uma fa-
se tem alguma coisa nova para se dizer não se escreve, não é? mília de trogloditas com um carrinho enorme e que empurraram
É preciso ter algum autoconvencimento. O Nabokov falou disso. Mas toda a gente. Tudo aquilo foi horrível. E eu pensei: «Antes Gaza, an-
também é como na fotografia, já está tudo fotografado. Não se vai in- tes Gaza.» A outra coisa que me angustia em Portugal é a televisão.
ventar nenhuma linguagem literária nova, portanto há que inovar Quando chego ao aeroporto da Portela vejo logo uma televisão a dar
noutros aspetos do romance. Mas ninguém começa a escrever a a telenovela. Angustia-me.
dizer que vai inovar, é um impulso emocional e também racional. Porquê?
No primeiro draft é emocional, mas depois em todos os outros é Porque é que alguém à espera da mala se põe a ver televisão? Nos
racional. Eu, pelo menos, escrevo assim. aeroportos de Nova Iorque, Washington, Paris não há nenhuma te-
Tem-se dito que o livro é sobre o terrorismo. levisão a dar a telenovela. Talvez no México ou na Venezuela. As pes-
É também sobre a religião e Deus. soas têm de esquecer que isto é um país pobre, com gente muito mi-
Eu vou arriscar um pouco e dizer que é um livro sobre pessoas serável, que vive muito mal, pessoas com uma vida lixada.
que fogem para os lugares onde acreditam que as coisas impor- Levantam-se às seis da manhã, passam duas horas para entrar em
tantes estão a acontecer. Pessoas que estão em ambientes claus- Lisboa, mais duas horas para voltar, não estão uns com os outros, já
trofóbicos ou entediantes e que partem à procura da aventura. não sabem falar porque desaprenderam a falar uns com os outros,
Concordo absolutamente. É mesmo sobre isso, o livro é sobre isso. e ficam a ver a telenovela à noite enquanto jantam, os filhos são edu-
Um processo de fuga. São pessoas que querem fugir da vidinha, cados na creche e na escola. Não é uma boa vida. Os velhos têm uma
como dizia o Alexandre O’Neill. Querem ir para um lugar onde vida terrível. Isto é um país muito ingrato. É muito bom quando
se possam esquecer da vida que têm. Esse lugar é a guerra. se tem uma casa na Lapa com vista para o Tejo, 300 metros qua-
Pessoalmente alguma vez se sentiu com essa dificuldade para drados, dois carros na garagem, motorista... Assim, talvez seja inte-
respirar? ressante viver em Lisboa.
Sim, sim, no terminal do Rossio. Aquilo funcionou como um espa- No livro é muito crítica das elites.
ço metafórico de onde eu queria escapar. Ainda hoje tenho horror Sou.
aos centros comerciais. Se estiver muito tempo num centro comer- Dessas elites que parecem não ter consciência dessas vidas
cial começo a ficar com uma angústia extraordinária. de que falava.
Portugal é esse centro comercial? Não têm consciência nenhuma. Já não tinham no tempo do Eça de
Sim. Há duas coisas que me causam uma angústia física extraordi- Queirós. N’O Primo Basílio, quando faz o retrato daquela família, do
nária: uma é o shopping. Uma vez fui ver uma exposição do Sebas- Jorge, da Luísa e depois da Juliana das botinas, a melhor parte é
tião Salgado na «Expo», estacionei no [Centro Comercial] Vasco da quando ele descreve a vida da Juliana. A explicar um pouco o ran-
cor, o ódio, a velhacaria, mostrando o que foi a vida da Juliana que um grande banqueiro português alguma vez foi tratar do cartão do
evidentemente as elites portuguesas ignoravam e sempre ignora- cidadão ou do passaporte? Claro que não. Não ajudam ninguém,
ram e continuam a ignorar. Só que nós agora temos uma nova elite não dão dinheiro a ninguém, não dão dinheiro para uma ala do
que é a elite dos grandes assalariados: vão esquiar, têm uma vida hospital, não patrocinam. No outro dia estava no supermercado
muito confortável nas grandes empresas ou na banca, e muitos deles e ouvi qualquer coisa para ajudar o Sequeira a ficar em Portugal.
tomaram o aparelho de Estado, têm negociatas... Essa nova elite, que Até pensei que fosse um drama humano. Afinal era o quadro do
não se parece com as antigas (que eram as do nome de família, de Domingos Sequeira. Mas não há um desgraçado de um milionário
nascimento, os aristocratas, mas que eram quase sempre descen- em Portugal que permita que o quadro fique em Portugal? Acho
dentes de um merceeiro que tinha feito fortuna), essa nova elite é a isto incrível.
da democracia – mas não é melhor, só leem as revistas do coração, Também não há a ideia de capital cultural, de se pensar que
lixo, e consomem exatamente os mesmos produtos que o lumpen. ao fazer-se isso se está a conquistar um prestígio que de outra
Consomem a mesma televisão, as mesmas revistas e os mesmos forma não se tem.
jornais. Já fui a casa de pessoas com muito dinheiro, que têm uma Não há ideia de comunidade. As pessoas têm muito medo que lhe
casa maravilhosa, com arte – agora toda a gente tem arte –, objetos tirem coisas, não querem pagar impostos. Nos EUA, a partir do mo-
de design extraordinários e depois apercebemo-nos de que não há mento em que você é bem-sucedido tem de retribuir: ou ajuda a es-
um livro. cola onde andou, ou outra coisa. As pessoas acham que o seu su-
Acha que esse défice cultural resulta num défice de empatia? cesso não depende apenas delas, depende da comunidade, da escola,
O que transparece do seu livro é que essas elites não vivem pre- dos professores, depende dos seus empregados. Sentem que têm de
ocupadas com o que se está a passar com os outros. dar uma parte de volta. Aqui é o oposto. Quanto mais as pessoas têm
Não, estão preocupadas com os seus próprios bens. Tirando os que sucesso mais se afastam da comunidade, mais querem manter uma
têm uma consciência católica e sentem um dever moral da sua pró- distância litúrgica em relação à comunidade. Aqui, a elite caracteri-
pria religião (e há muita gente assim, é justo que se diga, que age za-se por dizer: «Eu sou melhor do que tu.»
por um imperativo religioso ou familiar), tirando isso estão muito Uma das coisas interessantes neste livro é que a protagonista é
pouco preocupados com a vida das pessoas. Não fazem ideia de uma fotógrafa, alguém que trabalha com imagens em vez de pa-
como vive uma pessoa que tem a mãe paralisada, ou o filho que não lavras e que levanta aquela questão, também tratada por Susan
é bom aluno, que moram na periferia, que têm de vir para a cida- Sontag em Olhando o Sofrimento dos Outros: se ver imagens do
de, que têm muito pouco dinheiro. Acha que essas elites têm algu- sofrimento dos outros – como a decapitação de Daniel Pearl –
ma ideia do que é ir para a bicha com o cartão da segurança social nos torna mais empáticos ou se nos torna mais insensíveis,
às seis da manhã, esperar que aquilo abra, tirar uma senha e espe- se essas imagens acabam por nos anestesiar.
rar até às duas da tarde para ser atendido? Uma vez escrevi uma Para uma pessoa não se matar tem de se anestesiar. Os grandes re-
crónica sobre isso. Nunca as elites portuguesas foram tratar pes- pórteres, quando sobrevivem, ou vão fotografar outras coisas ou
soalmente do cartão do cidadão. O cartão foi ter com eles. Acha que anestesiam-se no álcool. Ou então endurecem de uma forma ex-
Mesmo entre escritores amigos há por vezes uma maldade e uma verrina extra-
ordinárias. Nas costas, é terrível. Não é um ambiente muito saudável. Um escritor
tem de sair disso, não pode andar sempre nas palestras e nos colóquios, se andar
sempre aí acaba por ser um adereço de salão. Eu conheci escritores portugueses
que se tornaram adereços de salão. Houve um que se perdeu completamente, não
vou dizer quem, foi uma grande esperança e tornou-se um adereço de salão.
Não é possível andar no mundo e escrever grandes livros.
traordinária. Ficam duros. Vi muitos vídeos de decapitações e aca- Auschwitz, o problema de se escrever sobre o raio dos campos
bei por anestesiar. Agora não volto a ver mais nenhum vídeo. Per- de concentração.
cebi que olhava para aquilo já em piloto automático. Esta última do A verdade é que também não se pode ignorar.
Jim Foley, o primeiro a ser decapitado pelo Estado Islâmico, inco- Foi a minha atitude, mas a verdade é que me custou muito. Acho
modou-me muito, foi um flashback. É muito violento escrever so- que me tirou qualquer coisa que ainda não recuperei. Fiquei sem
bre estas coisas e ver estas imagens. Às vezes penso se valeu a pena uma certa inocência. Isto não tem a ver com literatura. Nos pró-
ou se não feri uma parte de mim mesma. Penso se valeu a pena ter ximos tempos não quero escrever nada assim porque ainda não
feito essa investigação, essa pesquisa. Ao nível da descrição não há percebi exatamente o que isto me fez.
muito a dizer sobre aquilo. É demasiado clínico e brutal. Não se pode Há outro personagem do livro, também um fotógrafo, que está
fazer uma frase poética, predispõe à secura, não se pode ironizar, na guerra à procura de uma imagem fantástica, de uma Pietà.
não se podem aplicar comparações, é um ato único de uma tal in- Isso também é pornográfico.
tensidade maligna. É completamente seco. Eu pensei que se visse Eu conheci gente assim. À procura do quadro clássico na miséria.
tudo, aprenderia qualquer coisa e conseguiria extrair dali qualquer Escolhi uma jornalista por causa do problema da intervenção.
coisa que ajudasse a compreender e isso não é verdade. Como dizia O jornalista da escrita acaba por participar naquele espetáculo,
a Arendt, aquilo é de uma banalidade extraordinária. Não há ali é um ator daquele espetáculo que é o grande espetáculo do mun-
nada de salvífico, nem de redentor. do, a guerra, eu chamo a isso entrar no quadro. Há fotógrafos que
Há aquela ideia de que vale a pena mostrar as imagens para cap- decidem passar por aquilo sem intervir, como acham que nunca
tar a atenção das pessoas. devem intervir. É o problema daquela fotografia da criança com
É a crueldade. Seja a pequena crueldade de atacar o outro verbal- o abutre.
mente, seja a grande crueldade de lhe cortar a cabeça. A cruelda- Do Kevin Carter.
de é muito pouco generosa. Não dá nada a ninguém. Só retira. Di- Ele acabou por se matar. E diz que conduziu a criança para o cam-
minui. Não acrescenta. Aquela crueldade acaba por diminuir po. A questão é: fotografo o tipo que tem o pneu ao pescoço, na Áfri-
quem a pratica como quem a vê. Aquilo hoje aparece confundido, ca do Sul, tento impedi-los de fazer isso ou fujo? Este é um proble-
eu digo isso no livro, com a pornografia. Os sites onde estão as de- ma moral e achei que apesar de tudo nunca seria capaz de ser
capitações são os mesmos que têm pornografia ou vítimas de de- fotógrafa, daí ter escolhido esta personagem, que tem umas vagas
sastres de automóveis. Eu não sabia que este mundo existia. Não ambições literárias, que é um bocado snobe, que está completa-
fui muito para aí porque é um território que me horroriza e que mente fora do mundo até as coisas lhe caírem dentro de casa. Está
percebi que diminui a pessoa. A grande crueldade é o problema de sempre de fora, é uma assistente. Esse é um papel que nunca tive.
As elites estão preocupadas com os seus próprios bens. Tirando os que têm uma
consciência católica, e há muita gente assim, que age por um imperativo religioso
ou familiar, tirando isso estão muito pouco preocupados com a vida das pessoas.
Não fazem ideia de como vive uma pessoa que tem a mãe paralisada, ou o filho que
não é bom aluno, que moram na periferia, que têm de vir para a cidade, que têm
muito pouco dinheiro. Nunca as elites foram tratar do cartão do cidadão.
ra Ferreira Alves, o Expresso, «O Eixo do Mal» e o que é que eu pen- meira vez que tomei a mistura perdi logo o passaporte no aeropor-
so sobre a esquerda e a direita. to. Bom, então vi o Tejo, vi a cidade, e tive um sentimento de confor-
No seu caso, havia sempre esse risco de a personalidade de quem to enorme, não sei, uma sensação de casa e de repente reconciliei-
escreve o livro se sobrepor ao livro... -me um bocado com o País e pensei: «Isto é um sítio bom, é um sítio
O que acho absolutamente inadmissível é que se brinque com isto, sem grande maldade.» Tive um sentimento de um enorme confor-
que se torne isto numa sátira, acho terrível que se aproveite o livro to existencial e justamente nesse instante comecei a escrever, co-
para me satirizar. Isso surpreendeu-me porque achei que esse tipo meçaram a vir-me à cabeça uma série de ideias. Cheguei a casa e co-
de maldade não seria possível dado que falo de coisas que têm uma mecei a escrever, a escrever e quando acabei senti que estava no sítio
gravidade e um peso grandes. Julguei que o livro não seria usado onde quero, que é o do próximo livro. Não tive uma epifania porque
como arma de arremesso para me ridicularizar. não tenho epifanias, mas tive ali uma espécie de revelação e passei
E isso aconteceu? para outra. E agora já estou noutra. Mas foi complicado porque este
Sim. livro foi publicado em novembro e estamos no final de janeiro, por-
Quem é que o fez? tanto demorou dois meses para cortar com o livro e sair dele. Agora
Não vou dizer. Não li o texto, mas percebi que era essa a interpreta- estou confortável, já não estou ansiosa. Porque toda a gente fica
ção. Achei estranho. Não tenho um grande adjetivo para isso. Achei ansiosa, eu estava, não vou mentir. Agora já não tenho ansiedade,
estranho. Afinal a minha personalidade é mais importante do que nem angústia.
aquilo que eu escrevo. Por isso é que achei que teria sido interessante Não teve a tentação de responder ao que se foi publicando sobre
publicar isto com outro nome para ver o que acontecia. o livro?
E perdeu a vontade de escrever mais romances? Não, isso não. Eu não gosto de mixed martial arts. E tenho uma pena
Não, não. Pelo contrário. Isso não. poderosa. Se quisesse responder seria muito violenta porque sei que
Agora, libertada do primeiro romance, vêm mais? sou capaz de atos de extrema violência com a pena e até tenho al-
Até já comecei a escrever. Já tinha umas coisas escritas, que estavam gum talento para isso. Às vezes provoco efeitos mais devastadores
também em pousio, à espera. Quando estou muito feliz e bem-dis- do que imaginava.
posta, só escrevo banalidades. Quanto mais mal estou, melhor es- Optou por não responder?
crevo. Isso é uma vantagem do ponto de vista da escrita, mas é uma Nem acho que se deva fazer. Nem tenho nenhum propósito vin-
desvantagem do ponto de vista da vida. Houve um em dia que esta- gativo. Os advogados é que fazem as alegações finais – e eu acho
va zangada, porque ninguém gosta de ser mal interpretado, nin- até que teria sido uma ótima advogada – mas em relação a tercei-
guém gosta de ser mal lido, e vinha de Londres... Detesto andar de ros. Como se costuma dizer, nunca há um bom advogado em cau-
avião. Como diz o Orson Welles, só há dois sentimentos possíveis: sa própria. A causa própria não me mobiliza. Não ia escrever um
ou tédio ou terror. Eu estou sempre no terror. O Martin Amis tinha texto a defender-me, nem que fosse o Coetzee a escrever um texto
uma boa receita para isso que era Valium com whisky mas da pri- a dizer mal de mim. Não o faria. Uma polémica política, doutriná-
Quem nasceu com as liberdades dos Beatles e do então pelo apartamento, a posse de uma Lambretta, a jovial cama-
Rock’n’Roll, só com excepcional esforço da fantasia conseguirá radagem, as raparigas que atraía, o entusiasmo com que falava
compreender um pouco do pasmo, da exaltação, febre e fome se- da arte do cinema.
xual de um rapaz que, mal feitos 20 anos, a década de 50 no come- Particular era a amizade que o ligava a Gabo, um colombiano
ço, descobre Paris e, por bagagem erótica, tem apenas o onanismo, de maus fígados, sobremaneira insolente para com quem se atre-
o dedilhar nas cuecas de uma Luísa na escadaria da Igreja da Se- vesse a contradizê-lo ou contrariar a sua certeza de que no marxis-
nhora da Agonia, em Viana; apalpões nas mamas e outras partes mo estava a salvação. Com o Ruy simpatizei, mas pus boa distân-
de várias Emílias e Teresinhas; cópulas peçonhentas em casas de cia entre mim e o colombiano, também íntimo de Novais, e de
tia da Rua Escura, no Porto; raras visitas ao bordel de Madame quem viria a apreciar Cem Anos de Solidão e, sobretudo, O Amor
Blanche na Rua da Glória, em Lisboa, raras porque duma assen- nos Tempos de Cólera.
tada me depenavam do pré de miliciano e do escasso mealheiro. Retirou essa antipatia a oportunidade de mais tarde me poder
A imaginação e overdoses de leitura só serviam para aumentar dizer compincha de um Nobel, mas poupei-me o trato com um
o desejo, acelerar as pulsões, e foi nesse estado que quase de súbito, personagem que, de tão cheio de si próprio e da ortodoxia das suas
dois ou três dias depois da chegada, me vi pela mão de Joaquim No- convicções, desafiava a paciência.
vais Teixeira (1899-1972), amigo de raras qualidades e precioso men- De melhor têmpera e mais siso, eram o François, o Jean-Luc,
tor, a entrar num diminuto apartamento na vizinhança da Rue du o sorridente e em permanente boa disposição Claude, rapazes de
Bac, cheio de gente, fumo, barulheira, comunicando aos berros com quem recordo o entusiasmo que partilhávamos pelo cinema ita-
o locatário que, achava Novais, seria para mim um útil contacto. liano e a admiração que tínhamos por Rossellini, Vittorio De Sica,
Ruy Guerra (1931), moçambicano, filho de pai rico, estudava no Anna Magnani, Lucia Bosè – paixão minha – mas nada que me
Institut des Hautes Études Cinématographiques e distinguia-se permita fazer valer intimidades com Truffaut, Godard ou Chabrol,
texto SeGUNDo o ANteRIoR ACoRDo oRtoGRÁFICo
embora mais tarde, esporadicamente, os viesse a encontrar na ginação: redonda e espessa, inteiriça, saía das profundas uma
redacção dos Cahiers du Cinéma. coluna de aço que, tal um falo gigante, empurrava a geringonça até
Mencionei que o apartamento era diminuto, adjectivo que deixa às alturas.
margem para interpretação, e mais de acordo com a realidade se- A entrada era elegante, espaçosa, havia um pátio florido, do lado di-
ria classificá-lo minúsculo: uma salinha onde cabia um sofá e pou- reito ficava a loge de Madame Marie Louise, la concierge, rechon-
co mais, um quarto com uma cama estreita, um banheiro que chuda trintona de pele muito branca, cabelo muito loiro e permanente
ao mesmo tempo fazia de cozinha. boa disposição, casada com Monsieur Eugène, ele todo o avesso: seco
Minúsculo sim, mas paraíso de porta aberta onde havia sempre de carnes, amargo, queixava-se de ir nos cinquenta, queixava-se do
gente, às vezes tanta que o patamar servia de anexo. E quando digo seu trabalho na EDF (para meu benefício soletrava Eléctricité de
paraíso e gente, digo sobretudo mulheres, que em número excediam France), queixava-se dum ou doutro locatário e, sobretudo, do peso
os existencialistas que por ali rondavam, sombrios, pose de enfas- que era, por volta das seis da manhã, abastecer de carvão nos quar-
tiados, Gauloise nos dedos, citando passagens de L’Être et le Néant, tos de banho as enormes caldeiras do aquecimento central.
querendo ouvir opiniões sobre Heidegger, a importância dos planos – Sabe quanto pesa cada saco? E às vezes levo dois!
quinquenais, a ascensão das massas campesinas na América do Sul. Eu acenava que sim, fingindo compadecido, recordando a doçu-
Visita quase diária, arregalavam-se-me os olhos para o espectá- ra das manhãs em que Madame Marie Louise o substituía e, tendo
culo, e nesses mesmos olhos, na pele, no cérebro, nos dedos, nas enchido a caldeira, se esgueirava para o meu quarto, despia o rou-
mãos, sabe Deus em que partes mais, descobria eu, perplexo, qua- pão e caía nos meus braços, dando-me o consolo das friandises
lidades de esponja, uma propensão para, com urgência de obceca- de Lille, que assim chamava ela às suas, também várias, artes de
do, absorver o que se me deparava, me propunham ou ofereciam. copular e satisfazer, homenageando de passagem a cidade natal.
Das primeiras e inesperadas ofertas há muito esqueci os nomes,
as feições, e provavelmente confundo os locais, julgando que acon- ***
teceu por baixo do Pont des Arts o que fizemos no Pont Neuf,
ou mais certo é ter sido no Quai Voltaire. É verdade inegável que o Diabo as tece, e com tão subtil engenho
Guardo sim, inapagável, a lembrança de Felipa, madrilena, en- que nos aponta a ratoeira, mas no momento em que ao descobri-
tão futura arquitecta, dez réis de gente que de aparência pouco -la a queremos evitar, já ela nos apanhou, nada adiantam protestos
atraía, mas, garantiu o que ma passou, era senhora de dotes e ar- ou remorso. Quiseste? Pagas.
tes que me deixariam estonteado e de boca aberta. Sonhava eu com o ensaio de uma ou outra cena dos romances de
Ingénuo principiante, sorri da prognose, mas pronto se me foi Pierre Louÿs, ou de um episódio de Juliette, de Sade, e querendo
a arrogância e mais de uma vez sentiria descair os queixos, porque realizar o sonho esperei a boa conjunção, não dos astros, mas de
na cama ou nas esquinas, plateias de cinema, em vãos de porta, cais uma ausência prolongada da minha senhoria, a disponibilidade
do Sena, bancos de jardim, indiferente à hora, ao lugar ou teste- de Marie Louise, e que o horário mantivesse Monsieur Eugène nas
munhas, Felipa era bomba ninfomaníaca a explodir das mais va- oficinas da EDF. À Felipa bastaria acenar, porque mesmo ocupada
riadas, mas todas deliciosas maneiras, usando o corpo com a pai- noutra cama, sabia-o eu por desagradável experiência, cheirando-
xão, a febre e a arte de um Paganini agarrado ao violino. -lhe a novidade largava tudo.
Num único detalhe era severa e inflexível: o rasgão do hímen es- Assim aconteceu, durou o festim a tarde inteira de um sábado
tava reservado para aquele que, virgen purísima, a levasse ao altar. de Junho, e se alguma coisa se copiou dos clássicos franceses do
No mais valia tudo: o que custa imaginar, o acrobaticamente peno- deboche, o nosso entusiasmo tinha-lhe emprestado aparências
so, refinamentos que Vénus lhe tinha ensinado, outros que ela de originalidade.
aperfeiçoara ou inventara. Tudo, sim, mas la penetración? Jamás! Foi melancólica a despedida, eu babado em demasia com os cari-
nhosos adeuses que ambas se faziam, para me aperceber das care-
*** tas do Demo, a zombar da minha ignorância das mulheres e das
coisas do mundo. Porque a partir desse dia Marie Louise foi espa-
Em razão de uma velha amizade, nesse maravilhoso tempo era çando as matinas, até que para desconsolo meu e sem adeuses
eu hóspede de Madame Gournay num esplêndido apartamento da as terminou; e Felipa sumiu, embora numa ou noutra ocasião
Rue de Naples, edifício de opulência burguesa, dotado de um me parecesse reconhecê-la na vizinhança, o que era de estranhar,
venerável ascensor hidráulico que excitava a minha doentia ima- pois o seu habitat era a longínqua Rive Gauche.
Sofri um período de luto e quase abstinência, encontrando algu- aberto o que parecia um incunábulo, com iluminuras que a distân-
ma, mas fraca compensação, nas raparigas que, vestidas de túni- cia não permitia distinguir.
cas, formavam um coro da Grécia antiga num documentário de
Ado Kyrou (1923-1985), no qual eu figurava de hoplita, com elmo, ***
couraça, escudo e lança na mão, envergonhado com o saiote, so-
frendo as grevas que me apertavam as pernas, tendo ainda, entre Respirei fundo, três vezes premi a campainha, mas demoravam tan-
as filmagens, de sofrer longos discursos do realizador e amigo sobre to a atender que, mal-humorado, me ia retirar, quando a porta se
temas que o fascinavam, e de que viria a tratar num livro intitula- abriu e de surpresa involuntariamente espequei, custando-me a re-
do Amour – Érotisme et cinéma. cuperar a fala para reagir ao seco «Vous desirez?» pronunciado por
uma mulher de meia-idade, sobriamente elegante, vestida de preto,
*** que pela postura e a diferença dos degraus parecia olhar-me de mui-
to alto e a modos de intimidar.
Porque se apiedasse de me ver macambúzio, talvez com remorso de Tartamudeei que vinha da parte de Marie Louise, e o que me pa-
tão impiedosamente ter deixado de me aquecer a cama, ou ainda pelo recera altivez mudou para um quase sorriso, ela dizendo que sim,
agrado de que a minha inexperiência lhe proporcionasse uma forma sabia, o aceno da mão convidando-me a entrar.
de estrelato, Marie Louise retomou as visitas, parecendo que agora o Fechou-se a porta automaticamente, acenderam-se luzes, a se-
fazia menos pelo gozo que delas tirava e me dava, do que para satis- nhora apontou uma cadeira, sentou-se ela numa poltrona, eu a olhar
fazer uma inata veia pedagógica, ou por razões que me escapavam. em volta, reparando que me encontrava no que parecia uma loja de
Foi assim que numa manhã de fraco recreio, já em pé ao lado da alfarrabista, quiçá arrumada demais para esse género de comércio.
cama, embrulhando-se no roupão com vagares de odalisca, anunciou Iniciou a madame um interrogatório sem preliminares, pedindo
sem muitos detalhes que do que eu precisava era ir de visita à Rue les papiers, assegurando-se que a minha cara era a do passaporte,
d’Anvers. querendo saber como se pronunciava o nome, onde morava, o que
Pouco mais disse, mas malgrado a curiosidade eu tinha de fazer fazia na vida, se tirante Marie Louise poderia nomear alguém como
pela vida, suando dias e às vezes noites numa cabine a legendar referência.
filmes. Achei melhor fazer de desprotegido, respondi que não, chegara ha-
Demorou a que me aventurasse, até que uma tarde de sábado me via pouco, mas Marie Louise confirmaria a morada e as minhas boas
pus a caminho, rememorando o que Marie Louise explicara: não era intenções.
bem uma livraria, como estava na tabuleta, antes uma espécie de loja Pareceu-me que se divertia com ver-me gaguejar, e terminou
de livros antigos, e de um lado havia um retroseiro, no outro vendiam dizendo que voltasse, marcou-me o dia e a hora, falaríamos mais
pássaros e gaiolas. de espaço, e então explicaria o que necessitasse de ser explicado.
Lá chegado demorei a descobrir a Rue d’Anvers1, andei às voltas
pelo Square d’Anvers, sem contudo estranhar, mais vezes tinha no- ***
tado que Marie Louise mostrava pouco interesse por detalhes e era
avessa a explicações, certa de que as coisas sempre se arranjavam, Às gargalhadas, mas sem detalhes nem explicação, Marie Louise ti-
a bonomia do seu sorriso bastando para desculpa. nha afirmado «Ça va te faire un trou!», sugerindo que uma visita à Rue
Espreitei a loja dos pássaros e das gaiolas, confirmou-se a retrosa- d’Anvers abriria um rombo na minha mais que modesta carteira.
ria, e de facto assim era, flanqueavam a curiosa montra que tinha algo Valeria a pena? Fingia pôr-me seriamente a pergunta, dar-me ares
de um proscénio: orlada de veludo escuro, deixava apenas o espaço de sensatez, mas por dentro tudo eram tremuras de febre, desejo, ur-
onde, sobre uma peanha, ladeado por um grosso círio de igreja, se via gência de descobrir, o frenesim aumentando à medida que recon-
tava as notas, sem auspício de que se repetisse nos meus poucos ***
francos o milagre da multiplicação dos pães.
A saleta devia ser insonorizada, porque embora a mulher pareces-
*** se gritar e agitar-se nada se ouvia, do mesmo modo que uma ou ou-
tra palavra do homem se adivinhava apenas pelo mexer dos lábios.
Estou de novo sentado na mesma cadeira, e Madame Françoise, Nua, estendida no que parecia uma maca excepcionalmente lar-
o nome que disse ao apertar-me a mão, ainda veste de preto, mas ga, era mulher de forte postura, pernas musculadas como de bai-
la petite robe noire foi trocada pelo que tem alguma semelhança com larina, seios firmes. Por estar de pés voltados para mim via-lhe mal
um uniforme militar, preto também, perfeito no corte, de um cabe- o rosto, mas distinguia os pulsos e os tornozelos presos à maca por
dal que mesmo sem tocar se lhe adivinha a macieza e a qualidade. correias de cabedal.
Faço o que posso para esconder o que me vai na cabeça, quero De pernas abertas ao que me pareceu o limite possível, tinha
fingir de atilado, porém, mesmo espaçadamente servidas, as suas espetadas na vulva, nas coxas e no ventre umas quantas agulhas
palavras desatinam-me. Baixo involuntariamente os olhos, sofro longas e finíssimas, em que o homem, um sexagenário de barba
com a minha parolice, tenho o sentimento de que, com gentileza e grisalha, bata branca e estetoscópio ao pescoço, por vezes mexia
suave ironia, recostada na poltrona como para aumentar a distân- com uma mão, enquanto com o polegar da outra pressionava aqui
cia que nos separa, Madame Françoise me vê mais nu do que quan- e ali, ora nas virilhas, ora na sola dos pés, numa carótida, na outra,
do vim ao mundo. às vezes parecendo desenhar com a unha.
A primeira paulada foi a da franqueza: desculpasse, mas com- O corpo contorcia-se em espasmos, o homem voltou-se, sorrin-
preendesse, eu nada tinha a procurar ali, nem era lugar que me do a alguém cuja sombra começava a desenhar-se no soalho, nes-
conviesse. Aceitara receber-me por favor a Marie Louise, que co- se mesmo momento a imagem desapareceu no «periscópio», a por-
nhecia há muito e lhe merecia enorme considération por razões ta do cubículo abriu-se, e Madame Françoise, acenando que me
com que eu não tinha a ver. Fez ainda uma ou outra observação despachasse, levou-me por um corredor muito estreito, descemos
sobre a juventude, o risco que corria aquele que, apressado, falto outra escadaria e, juntando um irónico «Au revoir!» ao aperto
de preparo, sem os meios nem as qualidades precisas, queria de mão, saiu da minha vida.
frequentar certos ambientes.
Atordoado, engolindo em seco, pois longe estava de esperar o ***
sermão, tive bom senso, travei os comentários patetas. E como ela se
erguia, dizendo que teríamos de nos despachar porque aguardava Desnorteado, sonâmbulo, mal dando pelo burburinho do boule-
visitas, levantei-me também, fiz de conta estar habituado a ver uma vard ou em que direcção caminhava, tomou-me o sentimento me-
enorme estante girar silenciosamente, dando acesso a uma escada. lancólico de que deveria aceitar a minha ignorância e, com remor-
so, envergonhar-me de por ter lido muito, julgar que muito
*** compreendia, que seriam escassas as ocasiões de novidade.
Magoava-me, sobretudo, a consciência do engano parvo de, por
Subiu ela ligeira, eu inseguro, fitando os degraus, desconhecendo estar em Paris e inesperadamente viver o que para outros seriam
se me impedia de olhar por receio, ou supunha esconder assim aventuras banais, supor que tinha chegado aonde queria, julgar-
o meu embaraço. Um patamar deu-me ideia de que entrávamos me arrivé.
noutro prédio, e Madame Françoise, sem uma palavra, ia abrindo
e fechando portas, mal me dando tempo a reter o que havia por ali: ***
azorragues, cavaletes, uma mesa de cirurgia, cordas e peças de fer-
ro de estranha forma, máscaras de veludo, de madeira, de metal, Esperei, desesperei, as mais das vezes ao entrar ou sair do prédio
uma parede toda de espelho como nas escolas de dança, grilhetas, dava com o «Je reviens!» na porta da loge, ou uma Marie Louise
uma forca, algemas, uma cruz de madeira negra, um inesperado apressada, a piscadela de olho a dizer que me tinha no pensa-
e luxuoso quarto de banho. mento.
Pondo os dedos nos lábios, fez-me sinal que entrasse num cubí- E de facto uma manhã surpreendeu-me com a visita, curiosa
culo que pouco mais era que um armário, indicou o que se asseme- de ouvir, mas sentada na borda da cama, dando a entender que
lhava a um periscópio, e saiu encostando silenciosamente a porta. não haveria friandises.
primeira vez que li Mansfield, foi Prelude, com aquele seu iní- raro nela – ela que sempre trabalhou, e cada vez mais, contra as do-
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res que secretamente se sacrificam por alguém, são sempre perde-
dores. Mas também o são as jovem raparigas que descem de um mentos e das sensações, que gozam da sua simples existência, e que
yacht, e que não foram contidas pelo amor dos pais, e que inevitavel- nesse prazer secreto da sua realidade saciam todas as suas ambi-
mente não encontrarão nunca prazer algum durante a vida inteira, ções de luxo, de magnificência, e de abundância, são a grande con-
apesar da beleza, do à vontade e da riqueza. A capacidade de sonhar, quista humana e literária desta imensa escritora «sentimental». Nis-
e o sonho como espaço legítimo, e fértil, nestes tempos modernos em to, ela lembra Proust, mas o caminho para chegar às sensações não
que vive Mansfiled, é insensivelmente tirado desse pedestal onde fora podia ser mais distinto. Em Mansfield, uma escrita que se limita ao
posto por séculos de teatro e poesia ocidental, destronada em nome essencial, sem desvios, apartes, floreados, quedas de ritmo – uma
de uma nova sociedade, produtora de realidades. lança que se espeta, como num quadro de Uccello, na boca em fogo
Virginia Woolf, que tanto invejara a sua amiga Mansfield (a úni- de um dragão. Proust, claro, é todo o contrário: o tempo, os divaga-
ca escritora viva que ela invejara), dizia que os seus contos cheira- res, os vagueares, as frases infinitamente densas e infinitas, uma
vam a perfume barato. E cheiravam, por vezes cheiravam; mas perda de si mesmo nos recantos envolventes das recordações. Mans-
Mansfield, contrariamente a Woolf, apanhou muitos comboios de field escreve um presente, era o que ela sentia que a vida lhe dava,
terceira classe, e aguardou em muitas salas de espera, e frequentou esse dia a dia, enfeitiçada às vezes por essas impressões de sereni-
muitas pensões, muitos pequenos restaurantes, onde certamente dade, essa dissociação entre o mundo vivido e o mundo criado pela
cheirava, por entre outros cheiros desagradáveis, a perfume bara- mente do artista, e que lhe permite simplesmente viver, levar a vida
to. É um dos seus maiores talentos, essa capacidade de dar o cheiro adiante, como se diz (é arte apenas isto: o que dá vida). Em «At The
do perfume barato. Mas no meio de Virginia e Katherine (que se Bay», o infeliz Jonathan Trout, que tanto lamenta a sua fraqueza,
cruzavam nessa Inglaterra erudita), não se podia falar seriamente, faz-nos o presente inestimável de um desses momentos : «Que be-
até gravemente, e com respeito, do cheiro do perfume barato. O per- leza! Aqui vem outra onda! Assim é que se devia viver – descuida-
fume barato era o apanágio dos romances baratos. Aí residia a lei- damente, imprudentemente, gastando-nos. Pôs-se de pé e começou
tura tendenciosa de Woolf. Há muito de barato no mundo de Mans- a caminhar através das ondas até à costa, apoiando firmemente os
field. Ela que vinha de um meio ultraprivilegiado neozelandês, e que seus pés na areia fina e enrugada. Levar as coisas com leveza, não
o abandonara para viver em Inglaterra, contra a vontade da sua fa- lutar contra os fluxos e refluxos da vida, mas ceder-lhes – isso é que
mília, aprendera brutalmente o que era o luxo, o necessário, o mí- se devia fazer. Era esta tensão que estava errada. Viver – viver! E a
nimo necessário, e a sua aflitiva privação. A descrição dos grandes manhã perfeita, tão fresca e luminosa, apanhando sol, como que
contrastes da existência, e dessa vida secreta e luxuriante dos senti- rindo da sua própria beleza, parecia sussurrar “porque não?”.»
Jorge Listopad é um mistério. Aliás, Jiří Synek diversas, da encenação à realização, passando pelo ensino na área
(nome com que foi registado depois do nascimento) é um misté- do teatro e pela crítica – são dados que podem ser confirmados
rio. Um enigma como autor e como pessoa. Podia ser uma per- numa pesquisa virtual, na qual se podem também confirmar os
sonagem sua. A sua biografia é tão intrigante e traz consigo tantos múltiplos reconhecimentos públicos. Vamos aos livros. Alguns,
espaços vazios, ainda não contados, que é um atrevimento dese- pelo menos.
nhá-la por completo. Nascido em Praga em 26 de novembro de «Gosto de trabalhar no efémero.» A frase é sua e poderá justificar
1921, Listopad («novembro» em checo) passou pela resistência aos que as suas obras sejam territórios conhecidos por poucos – ao con-
nazis, pelo exílio em França, pelo conhecimento travado com per- trário dos espetáculos que encenou, cheios e vibrantes. O relativo des-
sonalidades como Jean-Paul Sartre, Albert Camus. Edgar Morin, conhecimento é imerecido. Contêm uma escrita rara que não tem
Marcel Marceau, Tristan Tzara e Samuel Beckett. E pela vinda para equiparação com a de nenhum autor que escreva em português.
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Portugal motivado pelo amor por uma mulher. O resto – vocações Agustina Bessa- Luís, com quem conviveu no Porto (primeira cidade
lusa onde viveu), sublinhou que Listopad, não sendo um latino, é «es- Aqui e ali, textos sobre o gesto da escrita. Não com intenção de
sencialmente um eslavo com qualquer coisa de nebuloso». Uma de- chegar a conclusões. Especulando com aparente segurança. Como
finição que combina bem com a sua prosa, dispersa por livros vários, acontece num texto pequeno de Contos Carcomidos: «Só a escrever
de diferentes editoras, e que um dia poderá ser reunida como mere- acontecem coisas. Escrevo. Entra nesta linha o cão, mas foge, já fu-
ce. Diogo Madredeus, seu editor na Cavalo de Ferro, assume que seria giu, alguém o chamou. Escrevo. [...] É difícil explicar a uma árvore
benéfico olhar para a totalidade dos seus escritos e organizá-los – des- que apenas escrevo e não viajo [...].» Ou no conto-título de Reming-
de a crítica de teatro do século XX português até às crónicas do «Coe- ton: «Escrever. Escrever sem sentido. Fazer bolas de sabão. Deixar
lhinho» (do Jornal de Letras, publicação na qual escreveu desde a sua andar os dedos sobre as teclas do piano que não toca, mergulhado
fundação), artigos ligeiros feitos de um estilo subtil e inimitável. um dia no Atlântico [...].»
Tristão ou A Traição de Um Intelectual, livro de 1960, reeditado em Noutras vezes há como que uma relação mística com o gesto de
Fruta Tocada por Falta de Jardineiro (Quasi, 2003), começa deste escrever. Como nestas frases que inauguram «Bolinhos de Ronda»,
modo: «Não tenhamos receio das velhas lendas, pois a vida é mais ve- sexto conto de Remington: «Uma folha de papel branco é hipócrita.
lha que todas elas.» Oscila entre o ensaio, a narrativa e a poesia em pro- Finge. Nela nunca se inscreve o que se quer dizer. Tudo está pré-es-
sa. Nota-se um gosto pelo aforismo, pela frase inspirada. E pela refle- crito como sempre foi e será.» Em «Pedágio» quase que utiliza uma
xão à medida que se vai desenrolando um ponto de vista sobre uma linguagem que se poderia dizer cabalística, ligada ao oculto: «Es-
história antiga: «Quantos significados a morte não pode ter! O nome crevo respeitosamente o que sei de novo e, quando acabar, mandá-
de Tristão acorda em nós um sentimento de angústia transparente.» lo-ei pelo Mensageiro a todos os filhos do coração.» Redige «com ou-
Perante a morte de Tristão e Isolda, «experimentamos uma sensação tra escrita, mais leve, menos fria». E remata fazendo referência
de pureza cristalina». E faz-se um aviso importante sobre a motivação a um destinatário com privilégios: «Só o iniciado a decifra.»
da arte: «E não acrediteis que as amoreiras uma noite tenham florido Essa convivência entre ironia e transcendência faz parte destes
na campa de Tristão e Isolda. Não passa tudo de literatura.» labirintos. Como se a própria vida fosse isso: contingência e abso-
Não passa tudo de literatura. Eis uma máxima que cabe bem no luto e competisse ao escritor tentar decifrá-la. Em viagem constan-
modo como o checo naturalizado português em 1962, pai de seis fi- te. Na literatura de Jorge Listopad os desvios geográficos são per-
lhos, todos de olhos azuis, e casado com Helena Simões (há muito manentes. Num momento estamos em Linda-a-Velha (Biografia
ligada ao teatro – diretora de cena da Gulbenkian, é crítica teatral há de Cristal, Relógio d´Água, 1992) e noutro, logo a seguir, estamos
vários anos) lida com as histórias que escreve – e que protagonizou. em Zurique. «Toda a literatura é viagem.»
Há sempre um género de vivência e literatura como incógnita, entre Tendo percorrido o País acompanhado pelo etnólogo Jorge Dias,
o verdadeiro e o inventado, entre a biografia dos factos e «as amorei- fez anotações mentais quase antropólógicas e comportamentais,
ras». Entre episódios vivenciados e criados. Assumiu no seu último nas quais refere uma «arquitetura de bruma» e o «Mercedes do emi-
livro de contos (Cavalo de Ferro, 2013) que o seu interesse vai para grante» que passou «velozmente». «Mais uma hora de caminho do
essa «proposta entre o real e a ficção». É esta síntese que o atrai «tre- descer abrupto, limpo pedra a pedra, continuo entre rochas, amo-
mendamente» e que de certo modo o frustra quando não é praticada. ras imemoriais e fetos; e por fim entro na tenda onde leio o Jornal
Uma das especialidades listopadianas está numa espécie de «ilu- de Notícias da semana passada enquanto espero o transporte.»
minações» ou «flashes», textos curtos, condizentes com uma escri- A calmaria engana. «Nada estremece mas algo vai doer.»
ta checa que consegue dizer em poucas palavras aquilo que é im- Há viagens comprovadamente reais como aquela que foi consa-
possível exprimir numa língua como o português. Deixou pistas grada em Outubro-Oriente (ASA, 1992), livro que assina com Lagoa
sobre os problemas do relacionamento entre o checo e o português: Henriques. Mas também há lugares que se confundem como num
«O melhor é ir traduzindo o poema do Eugénio. Que Rosa abria? sonho. Em «Estrangeiro Procura Estrangeiro» uma primeira pes-
Rosa ou ardor? Etc... Porém, em checo “rosa” é delgada, pálida, soa (que se pode confundir com o autor) afirma ter vivido em Paris,
raramente quente, talvez tépida.» em Temesvár, na ilha da Jutlândia e por fim em Boston. Verda-
Em Contos Carcomidos reflete justamente na questão das pala- de, ilusão? «La Vida es Sueño», diz o texto que encenou na Torre de
vras: «As palavras compridas (exceto a palavra “palavra” e a palavra Belém em 1988 com o Teatro da Universidade Técnica de Lisboa.
“comprida”) são menos utilizadas do que as palavras curtas. As pa- Deixa-se levar por geografias que nunca pisou: «Mas onde estou
lavras compridas são, em geral, abstratas, e as palavras curtas são eu? Afinal onde estou, para me ver assim, com um pulôver azul, tão
concretas exceto a palavra “concreta” que é de resto abstrata.» Tudo azul que ilumina o declínio do dia?» Será tudo uma memória?
é jogo. Não passa tudo de literatura. – pergunta-se. «De facto, esse pulôver ainda o tenho, mas não re-
E uma lembrança de Boris Vian, que afirma ter conhecido no final M. Tavares alude a um aspeto decisivo: ele «olha para o mundo
dos anos 40 na «aldeia» chamada St. Germain-des-Près. Recorda- e não grita nem elabora um discurso; apenas sorri».
ção a propósito de que circunstância? Do facto de o Grupo 4 ter en- Em «Tédio Português» escreve um diálogo revelador deste hu-
cenado O Chá dos Generais. Há mais: o Tchékhov contista, Mário- mor tranquilo, sem acinte. Um excerto:
-Henrique Leiria, A Fome de Knut Hamsun (a quem perdoa o «O Sr. Dr. Juiz perguntou-me: – Que fez no dia 25 de novembro?
colaboracionismo, já em fase caquética, com os hitlerianos). Gran- – Trabalhei.
de parte dos «assuntos» são amavelmente abordados, sem deixarem – Em quê?
de ser, aqui e ali, objeto de observações críticas tão diretas como – Na montagem dum filme.
serenas, feitas sem alarde. – Dum filme? Qual era o assunto?
Já se falou do humor. É um humor distante da sátira, género pre- – Não tinha propriamente assunto. [...]»
dominante em Portugal – um escárnio que nos chega de Gil Vicen- Jorge Listopad é um dos estrangeiros mais portugueses da nossa
te, sempre disponível para atacar «os poderes». O seu humor não se cultura. Mas a sua nacionalidade não se restringe, é difusa. Regres-
apresenta como se constituído contra nada nem ninguém. Madre- semos a Tristão ou A Traição de Um Intelectual, para arriscar uma
deus classifica-o como sendo de «desapego e de leveza». Gonçalo retrato possível seu nestas palavras: «“Sou um estrangeiro” – disse
MEETING POINT num espaço, à entrada de uma espécie de lojeca que não vendia nada.
Não se tratava de dissidentes, por assim dizer, mas de uma seita pro-
[…] testante. Assistiu a duas conferências, sempre às sextas-feiras, e pare-
Quando Ramón voltou a Cuba, ainda a coxear da perna esquerda e ceu-lhe que queriam um mundo diferente, e não só para Cuba; mais
desequilibrando, portanto, o seu andar, jurou a si próprio que nunca rigoroso, mais exato, talvez mais triste, porém justo. Também se can-
mais se interessaria por essa ação humana inspirada por uma coisa tava, mas não muito alto para não serem ouvidos. Nem sequer fazia
chamada política. Mas como seria possível ele não se interessar por po- ideia de que, a milhares de quilómetros, o avô Francisco cantava a mes-
lítica? Não tinha trabalho, e a sua velha mãe já não podia ajudá-lo. Mui- ma melodia mas com palavras de uma outra língua: a canção de Lu-
to já tinha feito. Sentou-se no chão de uma rua de um bairro frequen- tero, Ein feste Burg ist unser Gott…
tado por pedintes, e todo o dia lá ficou com o chapéu no colo, um antigo
chapéu de palha, para recolher pequenas moedas que nessa época cir- (Esta é a partitura da melodia.)
culavam. Às vezes, as horas passavam sem haver movimento, quer O meu avô cantava esta canção em língua checa, com muito entu-
dele, quer financeiro, e o chapéu continuava vazio. Semanas mais tar- siasmo, e acreditava que era um canto destinado a eleitos.
de começou a engraxar sapatos, e para isso arranjou utensílios mais
ou menos apropriados, duas graxas de cores diferentes, uma para os
sapatos castanhos e outra para o calçado mais escuro, eventualmente
para as sandálias então tão populares, chamadas fidelinas, mas que
eram de verdadeiro couro, e andava pelos cafés a oferecer os seus ser-
viços. Nem todos os cafés o deixavam entrar. Um dia, um homem re-
quereu os seus serviços. Era um homem estranho, que ao ouvir a his-
tória do engraxador, a história da sua vida, propôs-lhe que fosse com
ele até uma cidade chamada Trinidad, uma velha cidade um tanto can-
sada, que distava de Havana quase tanto como Cuba dista da Florida.
O homem explicou-lhe que frequentaria aí uma organização onde o
seu triste fado seria compreendido. Esse homem chamava-se Synod.
Diziam os habitantes dessa cidade que chegava a todas as reuniões a
cavalo, com um charuto na boca, um chapéu de abas largas usado pelo
tempo, pelo sol, pela chuva, sempre o mesmo chapéu... Ramón hesi-
tou, mas um dia tomou uma decisão e foi-se embora. Encontravam-se
uma terça-feira de manhã do ano apropriado. Um prédio cinzento de vários an- lha, paquetes russos e navios de guerra ame-
toph Hein. Uma das maneiras de divulgar num caminho em linha reta. Resumindo aprendido na RDA a abordar as pessoas
e traduzir literatura estrangeira. e concluindo, foi sobretudo a literatura que e em Portugal continuei a fazê-lo.
Entretanto, fui-me apropriando da língua, me ajudou a entender a «minha nova pátria». Assim, telefonei um dia ao Lobo Antunes
ia lendo o que podia e estabelecendo contac- É claro que as minhas idas à padaria da es- dizendo-lhe que estava a ler os Cus de Judas
tos. Umas vezes por acaso, outras inspirado quina para comprar pão, a repetida confron- e o Fado Alexandrino e que gostaria de co-
nas minhas experiências passadas. Foi o que tação com funcionários públicos desconfia- nhecê-lo e ele aceitou encontrar-se comigo.
aconteceu com o dramaturgo, ator e encena- dos como manda a sua profissão, as notícias Combinámos o encontro nos magníficos jar-
dor José Peixoto, que estava a preparar nesse do mundo publicadas em jornais portugue- dins do Museu de Arte Antiga envoltos nesse
momento com a sua companhia das Caldas ses e a dependência televisiva em forma de te- dia de primavera na luz transparente e tão es-
da Rainha a encenação de Philoctete, da auto- lenovela (em que me habituei ao português pecial de Lisboa, da sua Lisboa: ninguém
ria do alemão-oriental Heiner Müller. A mi- falado no sertão nordestino pela voz do coro- como ele, nem sequer Pessoa, conseguiu até
nha admiração pelo teatro tinha começado nel Sinhozinho Malta do Roque Santeiro...). hoje retratar e descrever tão bem a cidade nos
justamente em Berlim Oriental, e por gestos e Foi como esbracejar num mar agitado em seus romances e crónicas. Estávamos em
misturando três línguas lá nos fomos enten- que a literatura serve de boia de salvação. 1986. E ainda não houvera qualquer contac-
dendo nas nossas longas conversas sobre lite- Logo de início me apercebi da importância to com editoras holandesas. Muitas mais con-
ratura e teatro. Por exemplo, sobre a peça Ah de conhecer pessoalmente os escritores que versas se seguiriam nos 30 anos entretanto
Q de Christoph Hein, traduzida pela Ana, que traduzo – se possível, é claro – porque acho decorridos.
subiu à cena um ano mais tarde. Entretanto, que o homem ou a mulher que escreve está, Saramago morava, nesse mesmo ano, ain-
já me ia bastando uma única língua para dia- quer se queira quer não, sempre presente na da por detrás da Assembleia da República.
logar: o desvio pelo alemão transformou-se sua obra, na sua escrita. Além disso, tinha E também ele teve a simpatia de me receber
para uma conversa. Não, o Memorial do Convento, nessa altura já mui- mediou o meu contato com a editora Arbeiderspers que acabara de
to falado por toda a parte, ainda não tinha sido comprado por nenhu- publicar uma antologia da poesia de Pessoa e tinha também Rentes
ma editora holandesa. Esta seria igualmente a primeira de muitas de Carvalho entre os seus autores. E que, por acaso, procurava mais
outras conversas. um tradutor do português. A minha paciência e persistência foram
As minhas diligências junto das editoras holandesas não deram assim recompensadas.
logo frutos. Mas a paciência também é uma das virtudes do tradutor. A primeira tradução que fiz para a editora Arbeiderspers foi um
Pelo menos, se a sua profissão for encarada num sentido mais lato conto de Rentes de Carvalho, sobre os seus primeiros tempos em
e se o tradutor agir como um arauto ou caixeiro-viajante da língua Amesterdão. Depois, ainda em Lisboa, comecei a traduzir a minha
de que traduz. Para mim, estes dois aspetos encontram-se indisso- seleção de textos do Livro do Desassossego. Para um tradutor um jan-
ciavelmente ligados. Tradutores são embaixadores, dão a conhecer tar de três estrelas Michelin. Em preparação de uma tal empresa, falei
uma língua permitindo aos leitores o acesso ao que essa língua com várias pessoas, entre as quais Georg Lind, tradutor alemão
de mais belo tem para oferecer. de Pessoa, e, em 1988, escrevi para um jornal um artigo sobre as
Mas como é que as editoras holandesas e flamengas sabem da exis- comemorações do centenário do nascimento de Fernando Pessoa, com
tência e da qualidade dos escritores de língua várias referências ao Livro do Desassossego.
portuguesa? Através das universidades, é a pri- O objetivo deste ensaio era abrir o apetite para
meira reação, mas o português deixou de ser es- «Traduzir é inventar a tradução holandesa que seria publicada dois
tudado na Alma Mater holandesa. Através das o que lá está» é a minha anos mais tarde. Para mim um mergulho algo
grandes feiras internacionais, sobretudo a de definição de tradução temerário num mar encapelado de inventividade
Frankfurt, onde as editoras procuram vender os literária, que me causou muitas dores de cabeça
seus autores, e Ana de Castro e Assunção de
de uns anos a esta mas também uma enorme satisfação. O des-
Mendonça da DGLAB, que gastam as solas dos parte. O livro já existe, construir e o construir do puzzle das palavras
sapatos para entusiasmar as editoras e explicar- mas para renascer numa e do seu sentido deu lugar a outro puzzle na se-
-lhes como aceder a subsídios à tradução e a ou- outra língua, é preciso quência dos fragmentos. No verão de 1989 o chão
tras formas de apoio. Através dos agentes lite- da sala lá de casa estava semeado de folhas soltas
rários, como é o caso da Nicole Witt da agência
inventar palavras que com fragmentos que eu ia deslocando, retiran-
Mertin-litag, que na Feira do Livro de Frankfurt correspondem ao original. do, repondo, encaixando, como se faz com as pe-
joga em casa, mas que, tal como os seus colegas, ças de um puzzle. Como compor um livro a par-
se farta de bombardear as editoras com notícias tir de um livro não existente, de um conjunto
e informação sobre os seus autores. Mas, acima de tudo, através dos avulso de fragmentos perfeitos, magistrais?
tradutores que reúnem todas estas funções. A base de tudo é tradu- Um ano antes deste quebra-cabeças trocáramos Lisboa por Nij-
zir bem e bonito, mas não menos importante é detetar novos auto- megen, onde eu tinha vivido nos meus tempos de estudante. Com
res, acompanhar escritores, escrever posfácios, fazer entrevistas, etc., grande pena minha (adeus bela luz de Lisboa!). Mas essa mudança
etc. Em suma, insistir e persistir o tempo necessário até todos sabe- facilitou em muito a colaboração com Rentes de Carvalho. Para tra-
rem que há uma língua de enorme beleza que produziu e continua duzir o seu Portugal – Um Guia para Amigos, tive que deixar Pessoa
a produzir uma literatura fora de série. Um tradutor não é um mon- algum tempo de lado. Essa tradução foi, todavia, essencial porque
ge que fica eternamente na sua cela a resolver quebra-cabeças. Este criou a base para uma colaboração de vários anos: contos, artigos e
monge tem de sair de vez em quando do mosteiro. crónicas para o jornal, mais tarde compilados e publicados em forma
Ou ter a sorte de alguém lhe bater à porta. No outono de 1986, de livro (por exemplo, O Milhão), e romances como O Rebate. Apren-
Almeida Faria perguntou-me se eu queria participar num novo pro- di muito e descobri, sobretudo, que o tradutor não só tem a liberdade,
grama de intercâmbio literário entre Portugal e os Países Baixos. mas também a obrigação de, sempre que necessário, se afastar do ori-
O projeto era traduzir prosa e poesia nos dois sentidos. Estava a cola- ginal. (Em 2015 fiz a experiência inversa, quando o meu livro Deus É
borar na Holanda com August Willemsen, tradutor de Fernando Pes- Brasileiro foi traduzido no Brasil). No total, traduzi nove livros de Ren-
soa e de outros escritores. Alguns meses depois fui visitar com os dois tes de Carvalho, dos quais a maioria já saiu, felizmente, em português.
o último domicílio de Pessoa onde agora, como se sabe, funciona Estávamos ainda na era pré-internet, e isso queria dizer passar a vida
a Casa-Museu Fernando Pessoa. Nessa época um espaço vazio por a correr para os Correios para cumprir prazos, faxes aos soluços e pra-
cima de uma pequena fábrica de tintas. Foi August Willemsen quem guejar com os malditos carteiros. E incursões pelo mundo dos alfarra-
ras africanas de Cadornega e no relatório da viagem de Capelo e Ivens a tremer de medo me perguntei: «Era mesmo isso o que tinha em
De Angola à Contracosta. Quatro séculos de relações entre Portugal mente? A tradutora entenderá o que quero dizer? Porque é que ela
e África que liguei com textos da minha autoria e a que dei a forma não traduz a palavra especial que escolhi também de uma forma es-
de um único relato. pecial, fora da norma? E no meio disto tudo onde fica o original?»
Para além do Bozar, há em Bruxelas a livraria-centro cultural Pas- O resultado foram dentes cerrados e suores frios. Acordar aos gritos
sa Porta que transformou a cidade num palco literário. Foi lá que apre- de um pesadelo em que o meu livro foi parar à fogueira dos inquisi-
sentámos em 2005 a nova tradução integral, a partir da versão de Ri- dores da tradução. E não poder exprimir o meu desespero, porque
chard Zenith, do Livro do Desassossego. Foi também a Passa Porta que a maldita tradução tinha de ficar pronta para o livro sair na data mar-
convidou Mia Couto, Lobo Antunes, Pedro Rosa Mendes e José Luís cada. Felizmente, tinha uma tradução em mãos e precisava de me
Peixoto. Todos encontros memoráveis. Nesses momentos é que a concentrar. E, de repente, notei que ela fizera um trabalho excelen-
literatura salta para fora da capa do livro e começa realmente a viver. te. Que para surtir o mesmo efeito no português do Brasil, o livro ti-
E eis que chega esse dia triunfal de outubro de 1998. A minha tra- nha de ser traduzido como ela traduziu. Ao afastar-se do original,
dução do Ensaio sobre a Cegueira tinha saído umas semanas antes uma tradução não tem forçosamente de atentar contra ele, é-lhe por
e eu acabara de entrevistar Saramago perante vezes até mais fiel. E se eu ainda não tivesse che-
um público interessado, primeiro em Amester- gado a essa conclusão, o poeta brasileiro Zuca
dão e depois em Antuérpia. Na altura tratava-se Queremos chamar a Sardan, ex-diplomata e anarquista metafísico de
apenas de mais uma visita de um escritor portu- atenção para a literatura Hamburgo, me teria aberto os olhos com o seu
guês, mas a partir desse dia histórico já se dizia: de língua portuguesa. prefácio: «O livro de Harrie Lemmens, ora edi-
acabámos de receber a visita de um laureado tado pela Zouk, de Porto Alegre, foi excelente-
pelo Prémio Nobel. Mais uma vez tive de desem-
Mas a atenção de quem? mente traduzido por Mariângela Guimarães,
penhar o papel de embaixador, respondendo a É tudo uma questão que lhe conseguiu transpor inclusive o gingado
uma chuva de perguntas diante das câmaras da de insistir, persistir pessoal de se expressar. Eu sei porque converso
televisão belga, em programas de rádio da Flan- e não desistir. E ter, muito com Harrie, e senti, na tradução, tal qual
dres e a vários jornalistas da imprensa flamenga. o estivesse ouvindo.»
Pelos vistos, não é fácil assentar: em 2009 re-
de vez em quando, Estas palavras só vieram reforçar a minha con-
gressámos à Holanda, agora para os arredores de um pouco de sorte. vicção de que a tradução é um processo inventi-
Amesterdão, o que facilitou os contatos com as edi- vo. Mas apenas inventar o que lá está, ou melhor,
toras. Dulce Maria Cardoso, Mário Sabino, Gon- o que já lá está. Agora também entendo melhor
çalo M. Tavares, Edney Silvestre, Padre Manuel da Costa (A Arte de Fur- porque é que o António Lobo Antunes costuma dizer que os seus li-
tar), Luis Fernando Verissimo, Michel Laub e Daniel Galera estavam à vros noutras línguas já não lhe pertencem a ele, mas ao tradutor. Isso
espera de ser lidos em holandês. E de novo procurámos trazê-los à Ho- claro que vai longe de mais, mas indica que tradução e original são
landa para participarem em festivais literários. Por exemplo, em 2013, uma espécie de irmãos siameses. Estão ligados um ao outro, são
no City2Cities em Utreque, onde as cidades convidadas eram Lisboa parecidos, mas não deixam por isso de ser dois seres autónomos.
e Berlim, as «minhas» duas cidades. E assim se fechou o círculo. Onde se fechará o novo círculo de escrita? Francamente não sei. Te-
E novo círculo se abriu. Em 2007, Ana e eu tínhamos ido visitar o nho já uma resma de projetos à minha espera, por exemplo, um livro
João Ubaldo Ribeiro a Itaparica, a sua ilha mágica. E aproveitámos sobre Lisboa, outra vez com base na literatura.Mas a tradução tam-
para ir até Salvador e Ilhéus. Três anos mais tarde resolvemos fazer bém continua. Mulheres de Cinza de Mia Couto sai em maio, simul-
mais duas viagens a seis cidades brasileiras. Tudo junto resultou num taneamente com as crónicas de Clarice Lispector, A Descoberta do
livro com o título Deus É Brasileiro, que saiu na Holanda na prima- Mundo. E, muito em breve, vou começar a traduzir Conhecimento do
vera de 2014 e, no ano passado, no Brasil, na Editora Zouk de Porto Inferno de António Lobo Antunes. E espero que haja mais, muito mais
Alegre. Um (auto)retrato do Brasil entre ficção e realidade, com a aju- para traduzir… Além disso, criámos uma revista digital, Zuca-Maga-
da de escritores e literatura. zine, em que queremos chamar a atenção para a literatura de língua
Em vez de traduzir fui traduzido e passar por este processo inver- portuguesa. Mas a atenção de quem? É tudo uma questão de insistir,
so de ver o meu holandês vertido em português foi uma experiência persistir e não desistir. E ter, de vez em quando, um pouco de sorte.
que não gostaria de perder por nada deste mundo. Por mais dura
e difícil que ela tenha sido, por vezes. Sobretudo no início, quando Tradução de Ana Carvalho
Bestiário
É
sabido que os críticos têm mau nome: podem erguer-se taire: «Se o nosso século é inferior ao de Luís XIV, não procure-
bibliotecas que recolham os ditos malévolos que os ar- mos para isso outra causa que não seja a religião. Já mostrámos
tistas criadores proferiram contra os seus críticos – des- como Voltaire teria ganhado em ser cristão; disputaria hoje
de Sibelius, o grande compositor finlandês, que lembrou nunca a palma às musas de Racine.» Goldsmith, o da prosa de ouro
ter sido erigida uma estátua a um crítico, até Groucho Marx inglesa, o autor de The Vicar of Wakefield, executa sumaria-
que dizia levar tanto tempo a escrever uma recensão crítica, mente a peça mais famosa de Shakespeare: «O monólogo de
que nunca lhe chegava o tempo para ler a obra criticada, os tes- Hamlet, que tantas vezes ouvimos louvar em termos enco-
temunhos arrasadores abundam. Mas não são só os críticos miásticos, é, na nossa opinião, um amontoado de absurdos,
que se revelam, com alguma frequência, míopes: os próprios quer consideremos a situação, os sentimentos, a argumentação
criadores, com toda a sua farronca, não têm deixado de profe- ou a poesia.» Balzac, por sua vez, é impiedoso para com o Hugo
rir os seus magníficos dislates acerca dos seus pares. Wilde ob- dramaturgo, como se todo o teatro tivesse que seguir o «traço
servava com finura, a este respeito: «A própria concentração de natural»: «O Senhor Victor Hugo não encontrará nunca um
visão, que faz de um homem um artista, limita, pela sua vera traço natural, a não ser por acaso, e, a menos de se render a tra-
intensidade, a faculdade de fina apreciação. A energia da cria- balhos conscienciosos, de uma grande docilidade aos conselhos
ção precipita-o cegamente no seu próprio objetivo. As rodas do de amigos severos, a cena é-lhe interdita.» O professor da Uni-
seu carro levantam poeira que faz uma nuvem à sua volta. Os versidade de Rennes, J. Le Roux, avalia Einstein em termos
deuses ficam escondidos uns dos outros.» E ficam: incapazes vigorosamente sem apelo: «Não é uma doutrina científica, é,
de se verem mutuamente. Os exemplos, repito, são mais do que antes, uma espécie de misticismo bizarro, quase uma religião
muitos e atingem em doses iguais a cegueira de críticos e de nova de que Einstein é o profeta…» Tolstói é reduzido a quase
criadores. O grande poeta e dramaturgo John Dryden não se nada, às mãos do emérito professor da Universidade de Zuri-
fica por menos, ao avaliar o autor de Hamlet: «Shakespeare é que, Ernest Bove: «Muito significativo para a Rússia [Tolstói]
ininteligível.» Voltaire, também, mesmo com toda a sua ad- não passa, para nós, de uma moda.»
miração pela Inglaterra, farpeia impiedosamente o bardo de Para terminar, por hoje, aqui fica esta pérola do homo criticus
Stratford: «Um saltimbanco com algumas saídas felizes.» Flau- por excelência, o grande Sainte-Beuve, sobre Balzac: «Tem todo o
bert, fabro exigente e em geral sanguíneo e generoso, fere de ar de estar ocupado a acabar como começou… por cem volumes
morte o grande Balzac: «Que homem seria Balzac, se soubesse que ninguém lerá.» Se quiserem mais, exemplos não faltam. O dis-
escrever!» Chateaubriand, mestre de futuros grandes escrito- late, não o bom senso, é a mercadoria mais bem distribuída
res como Barrès e Montherlant, diz dislates infantis sobre Vol- do mundo.
om algumas traduções em portu- Tendo vivido em épocas algo diferentes esta luta; na sua estreia literária, Undset
era praticado por uma ínfima maioria dos Lillehammer – que fora, durante o tempo da mesmas preocupações, homens presos en-
noruegueses). O tema da emancipação das ocupação alemã, requisitada pela Wehr- tre as velhas crenças pagãs e os novos ideais
mulheres na Europa fez sempre parte macht para alojar oficiais do exército. Não tor- do cristianismo, a luta para conciliar ambas
dos seus livros. nou a escrever uma linha; morreu em 1949. as visões. Este seu novo estilo, que funde a
Sigrid Undset nasceu na Dinamarca mas Curiosamente, e algumas décadas antes, saga com o relato oral dos contos populares,
a família mudou-se para a Noruega tinha ela foi também um lugar perto de Lillehammer influenciou, à época, muitos aspirantes a es-
dois anos de idade. Devido à morte precoce do que Bjørnstjerne Bjørnson escolheu para vi- critores. Um deles foi o jovem Knut Hamsun,
pai (um eminente historiador e arqueólogo) ver. (As casas de ambos os escritores, adqui- que escreveu um romance (nunca foi publi-
foi obrigada a interromper os estudos e a ar- ridas pelo Estado, são hoje casas-museus bas- cado) ao estilo de Bjørnson e que lho enviou;
Bjørnson foi-se tornando numa espécie de agi tador radical, criticando a Igreja
Luterana, a hipocrisia sobre os assuntos sexuais (e os exageros da libertinagem),
pregando a tolerância religiosa, a educação cívica e a emancipação feminina.
ranjar trabalho como dactilógrafa aos 16 anos, tante visitadas; os anexos da de Sigrid Undset tempo depois passou por casa do escritor
em Oslo. O seu interesse pela História mos- foram ainda transformados num centro cul- para lhe ouvir a opinião, e o que ouviu não
trou-se desde cedo, e aproveitou os ensina- tural). Aquele que é considerado um dos lhe agradou de todo mas, felizmente, não o
mentos do pai para a sua formação. Em 1920 «Quatro Grandes» autores noruegueses (em fez desistir: «Meu jovem, depois de ler o que
iniciou a publicação dos três volumes (termi- conjunto com Ibsen, Lie e Kielland) começou escreveu tenho um conselho a dar-lhe: talvez
nada em 1922) da sua obra-prima (ainda hoje a sua vida profissional como jornalista que es- deva tentar uma carreira de ator.»
assim considerada), Kristin Lavransdatter, crevia crítica teatral; aos 22 anos tornara-se Por volta de 1873 Bjørnstjerne Bjørnson
uma trilogia modernista ambientada na Ida- já conhecido e respeitado. Foi também por viajou longamente pela Europa (Itália e Ti-
de Média na Escandinávia – recorrendo aos essa altura que ele desencadeou, em Oslo, rol). Os seus interesses mudaram um pou-
seus profundos conhecimentos de História e uma campanha para que no palco se substi- co com essa «experiência emocional», e em
de arqueologia, retrata a vida, do nascimento tuísse a língua dansk-norks (falada pelas clas- 1875 publicou duas peças teatrais, as pri-
à morte, de Kristin, uma mulher com um ca- ses elevadas) pelo norueguês comum. Ele é meiras a lidar com os problemas sociais da
rácter extraordinário. Apesar de muito ter es- hoje considerado o «poeta nacional» (é o au- Escandinávia, abrindo assim caminho para
crito sobre a Idade Média, os seus romances tor do hino norueguês), apesar de a sua obra a crítica social. Os seus personagens têm
têm um traço de atemporalidade, pois são as se ter tornado conhecida sobretudo pelos sempre (à sua semelhança) personalidades
emoções humanas o que sobressai do cená- romances e peças dramáticas. fortes e rebeldes, em continua luta consigo
rio em que se movem os seus personagens Em 1857, aos 25 anos de idade, publicou próprias para conseguirem controlar a sua
complexos e multifacetados. o primeiro romance, uma história onde exal- mal contida truculência. Aos poucos Bjørn-
Anos depois de lhe ter sido atribuído o Pré- tava a vida campestre, e este livro tornou-se son foi-se tornando numa espécie de agi-
mio Nobel (1928), Sigrid Undset, já divorcia- um ponto de viragem na literatura norue- tador radical, não deixando de fora a Igreja
da e com três filhos, manifesta-se por várias guesa, que até então tinha preferido histórias Luterana, atacando a hipocrisia sobre os as-
vezes contra o regime nazi que tomara o po- passadas num meio urbano e com persona- suntos sexuais (ao mesmo tempo que tam-
der na Alemanha, país onde de imediato os gens da classe letrada. A sua obra foi alter- bém criticava os exageros da libertinagem
seus livros são proibidos. Com a invasão da nando, pelo menos durante cerca de 20 anos, de alguns artistas), pregando a tolerância
Noruega por Hitler, Sigrid Undset vê-se obri- entre as histórias da vida rural contemporâ- religiosa, a educação cívica e a emancipação
gada a exilar-se, em 1940, na neutra Suécia, e nea e a escrita de peças teatrais que têm lu- feminina. Teve também um importante pa-
mais tarde nos EUA. Um dos seus filhos, mi- gar em tempos idos, muito perto do tempos pel na fixação do norueguês como língua
litar, acaba por morrer anos depois num com- das antigas sagas; os heróis míticos e os cam- literária. Em 1903 foi-lhe atribuído o Prémio
bate contra os alemães. Ela regressa à Norue- poneses modernos têm, na escrita de Bjørn- Nobel. Morreu em Paris, em 1910, e o seu
ga em 1945, à sua casa nos arredores de stjerne Bjørnson, os mesmos problemas e as funeral teve honras de Estado.
eis fotografias a preto e branco reluzem numa parede maior rede mundial de livros sobre o Irão, em persa e noutras
S
do Mehr Cafe, numa viela harmoniosa da cidade de línguas.
Yazd. Uma funcionária, alegre e afável, confirma a Entre os cerca de cem mil títulos do catálogo da Ketab, os que pro-
identidade dos geniais Nima Yooshij, Ahmad Sham- curam Saramago encontram Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio so-
lou, Forugh Farrukhzad, Ali Shariati, Mehdi Akhavan bre a Lucidez, A Viagem do Elefante e Jangada de Pedra; O Caderno
Saless e Sadegh Hedayat. São autores de livros proi- e A Caverna; As Intermitências da Morte e O Ano da Morte de Ricar-
bidos e/ou censurados. Quem os conhece – e saber quem são ajuda do Reis; Memorial do Convento e Manual de Pintura e Caligrafia;
a compreender o Irão – talvez se interrogue: estará a liberdade a pas- O Homem Duplicado e Todos os Nomes; História do Cerco de Lis-
sar por aqui? boa e O Evangelho segundo Jesus Cristo. Menos sorte teve A Última
Nem por isso, mas há alguns sinais de abertura num país onde Tentação de Cristo, de Nikos Kazantakis, ainda ilegalizada.
escritores nacionais de palavras e ideias interditas, sobretudo críti- Outro português famoso é Fernando Pessoa, com seis obras em
cos do regime, ainda se arriscam a prisão e morte, ou buscam o exí- pársi, sendo a mais popular, segundo Khalili, Livro do Desassosse-
lio. Um país onde Salman Rushdie e os seus Versículos permane- go. Há várias edições de tradutores diferentes, como no caso de Sa-
cem satânicos, mas Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, foi ramago, o que dificulta o controlo de qualidade e de tiragem. No Irão
retirado de uma lista de obras malditas, na qual permanece Ulisses, não existe lei que proteja direitos de autor.
de James Joyce. Um país onde Memórias das Minhas Putas Tristes, Judeu curdo, o antigo engenheiro civil Bijan Khalili, agora com
de Gabriel García Márquez, foi publicado como Os Meus Amores 65 anos, fugiu do Irão no final de 1980, após 11 dias na cadeia, por se
Tristes, para ser logo proibido como «erro burocrático» do censor. opor à Revolução Islâmica e «pertencer a uma minoria étnica». Temia
Um país onde O Banquete (O Simpósio ou Do Amor), de Platão, fi- ser «executado sem julgamento», e exilou-se no bairro conhecido
lósofo d’A República que inspirou Khomeini, teve finalmente licen- como «Tehrangeles», na Califórnia. Neste estado americano vivem,
ça para ser lido. segundo várias estimativas, mais de meio milhão de iranianos, que
Pelo menos 25 obras do português Nobel da Literatura de 1998 começaram a chegar como estudantes, nos anos 60.
estão disponíveis em pársi, diz-nos, por e-mail a partir de Los An- Em 1981, com os «10 livros favoritos» que levou na bagagem, Kha-
geles, Bijan Khalili, fundador e presidente da Ketab Corporation, lili abriu uma pequena livraria, e esta transformou-se, rapidamente,
num quase império. Inclui um muito pro- de iranianos, jovens que só conhecem a teo- táculos que enfrentam os escritores. «Zohreh
curado serviço online, que também distribui cracia. Na sua banca improvisada, num pas- demorou dois anos e meio a acabar um ro-
discos e filmes. Anualmente, a Ketab edita seio onde se cruzam mulás e mulheres com mance de 350 páginas. Contacta um primei-
uma média de 15 livros em pársi. Um dos coloridos roosaris (lenços) deslizando sobre ro editor. Não está interessado. O livro corre
mais recentes é Camarada Khomeini – O Pa- justas roopoosh (túnicas), os Pahlavi estão o risco de ser chumbado pelo MCOI. Ela pro-
pel do KGB Soviético na Ascensão de Kha- em destaque. Mas não só. cura outro editor, um pouco mais corajoso,
menei (o Supremo Líder). Quem imaginaria descortinar um vídeo disposto a investir algum dinheiro na edição,
Política, ficção, dicionários e história são de Googoosh, cantora que recuperou voz na revisão, na impressão, no design e na pu-
as áreas mais procuradas pelos clientes da e celebridade no exílio, depois de silenciada blicação. Antes de enviar aos censores o ma-
Ketab. A companhia vende pouco para o Irão pela Revolução Islâmica? E um velho filme nuscrito em PDF, tem de preencher formu-
devido às muitas restrições da censura, mas de Mohammad Al Fardin, pugilista e ator, lários, para saber se os que têm a última
Khalili admite que deixou de ter dificuldades afastado dos ecrãs por um sistema hostil às palavra o vão aprovar ou rejeitar. Passam oito
em importar. cenas românticas deste «rei dos corações» meses e o ministério sugere “algumas emen-
onde o álcool abundava e as garotas encur- das”. Ela elimina 50 páginas, troca a palavra
O xá na Praça Ferdowsi tavam as saias? “vinho” por “água” e muda o carácter do pro-
Vamos até Teerão, onde vão caindo tabus A censura oficial no Irão remonta à con- tagonista, de bêbado para marido dedicado.
como a evocação da monarquia. Autobio- quista árabe em meados dos anos 600. Mui- Mais uma espera longa, até que, finalmente,
grafias do último xá vendem-se na avenida tos textos zoroastras, a primeira religião vários milhares de exemplares recebem au-
que em tempos homenageou a sua dinastia, do país, foram queimados para solidificar o torização para ser distribuídos. Um exem-
Pahlavi, e hoje é dedicada a Vali Asr, o último poder das novas autoridades muçulmanas. plar é entregue na Biblioteca Nacional. Só en-
de 12 imãs xiitas. Uma delas éResposta à His- A língua persa escrita só renasceu, a partir do tão o título fica registado na base de dados
tória, publicada pouco depois de ser forçado século X, com os poetas Ferdowsi, Rudaki e estatal, ketab.ir.»
a deixar o Trono do Pavão em 1979. Outra é Daqiqi. Nos anos 1500, quando o xá safávida
Missão para o Meu País. Foi impressa quan- Ismail I oficializou a conversão ao xiismo, Ahmadinejad e Rouhani
do ainda era «Sua Majestade Imperial, Sha- muitos estudiosos sunitas foram executados O período pós-revolucionário mais toleran-
hanshah’ (Rei dos Reis)». Também se pode ou desterrados. Em 1923, com o fim da di- te, para escritores, jornalistas e bloggers, foi
comprar as Memórias de Farah Diba, viúva nastia Qajar, o autocrata Reza (Khan) Pah- o da presidência de Mohamad Khatami, en-
do autoproclamado Aryameh (Luz dos Aria- lavi encerrou as escolas privadas, impôs tre 1997 e 2005. Como ministro da Cultura
nos). Uma das edições está autografada manuais centrados na história e geografia (1982-1992), já defendia uma «conceção pro-
na capa. Ela escreveu até a data: 27.08.05. pré-islâmicas e transferiu a «competência de gressista dos valores culturais: liberdade
O passado mais recente deixou, suposta- censura» do Ministério da Educação para de pensamento e respeito pela honra inte-
mente, de constituir uma ameaça, numa a Polícia Nacional. lectual».
altura em que o país, que aceitou um acor- No seu reinado, o filho-herdeiro Moham- Uma era de trevas foi inaugurada por
do nuclear histórico, pretende reafirmar-se mad Reza Pahlavi criou um gabinete para Mahmoud Ahmadinejad em dois mandatos
como potência regional. Na capital, não é pre- censurar previamente todos os livros. Os es- presidenciais, de 2005 a 2013. A sede dos
ciso ir a mercados obscuros, à procura dos critores enfrentavam ainda perseguição por censores passou a ser o Ministério dos Servi-
homens que, em Persépolis, quadradinhos parte de outra entidade: a Savak. A temível ços Secretos. Chegou-se ao absurdo de o res-
de Marjane Satrapi, transacionavam discos polícia política foi dissolvida após a revolu- ponsável por «avaliar» os filmes ser um cego.
de «Estevie Vonder» e «Jikael Mackson», ção de 1979, mas dois anos depois, formou- O ministro da Cultura, Hossein Saffar-Ha-
escondidos nas gabardinas. -se uma instituição igualmente repressiva: randi, revogou as licenças de Khatami e or-
Na rua que tem o nome Ferdowsi, autor o Ministério da Cultura e Orientação Islâ- denou a proibição de numerosas obras (al-
do épico Shahnameh (Livro dos Reis), um jo- mica (MCOI). gumas já editadas e reeditadas), apenas por
vem alfarrabista afasta momentaneamente Um relatório de 2015, intitulado «Writer’s considerar os autores personae non gratae.
os olhos do smartphone e, sorridente, anun- Block – The Story of Censorship in Iran» e re- A eleição de Hassan Rouhani – um «prag-
cia: «Viva o xá!» Terá menos de 30 anos, sultante de uma investigação dirigida por Ja- mático» e não «reformista» como Khatami –
como mais de metade dos quase 78 milhões mes Marchant, explicou deste modo os obs- fez reviver a esperança. O legado do ultra-
e taqlid («fonte de emulação»), porque conti- destruir os seus livros, por ele ser militante meiro-ministro nacionalista derrubado pela
nua a cativar muitos iranianos. do Tudeh. CIA em 1953, atraíam os estudantes univer-
A vida desta grande feminista não foi Em 1977, o intelectual marxista que nun- sitários. As suas aulas eram gravadas em
banal. E foi breve. Acabou num acidente de ca concluiu o liceu emigrou primeiro para a cassetes e transcritas para panfletos, distri-
viação aos 32 anos. Aos dezasseis, começou América e depois para o Reino Unido, em buídos clandestinamente. Ele não incomo-
a escrever os seus ghazals, poemas líricos protesto contra o despotismo. Em 1979, vol- dava apenas o palácio mas também a mes-
carregados de erotismo e, aos dezasseis, tou a Teerão, mas rapidamente o velayat-e quita. Os teólogos (ulamas) preocupavam-se
casou-se com o cartunista Parviz Shapour. faqih (governo do jurista) o desiludiu. Mui- com as afirmações de que não seriam eles a
Desta união que a família reprovou, nas- tos dos seus poemas, incluídos em 20 cole- liderar «o regresso a um islão genuíno», mas
ceu um filho, em 1956. Forugh e Parviz mu- tâneas, foram proibidos. Um deles mobili- sim os intelectuais (rushanfekran), únicos
daram-se de Teerão para Ahwaz, no Sul. zaria a oposição contra Ahmadinejad, em capazes de oferecer ao Irão «a Renascença
A cidade era conservadora e escandalizou- 2009. Está traduzido, em inglês, como «In e a Reforma», anotou Ervand Abrahamian.
-se com a beleza magnética de uma das This Dead-End» («Neste beco sem saída»): De 1972 a 1975, Shariati esteve preso sob
primeiras mulheres a aderir à moda das «In this dead end / They smell your a acusação de propagar um «marxismo is-
roupas coleantes e curtas. O divórcio consu- mouth / To find out if you have told someo- lâmico». Ficou em detenção domiciliária até
mou-se após o parto. O pai ficou com a cus- ne: I love you! / They smell your heart! / 1977, ano em que foi autorizado a partir para
tódia da criança. / Such a strange time it is, my dear; / And Londres. Pouco tempo após a chegada, mor-
Por ser divorciada, Forugh atraiu ainda they punish Love / At thoroughfares / By reu de «ataque cardíaco». Tinha 43 anos.
mais atenção e recriminação. Indiferente e flogging. / We must hide our Love in dark Sobrevive a suspeita de que foi assassinado
independente, ela transpôs para a sua poesia closets. [… ]» por agentes da Savak.
todas as dores e paixões. Um dos poemas Se a poesia era a arma política de Ahmad Contemporâneo de Shariati e também ati-
mais marcantes é «The Sin» («O Pecado»), Shamlou, a de Ali Shariati (1933-1977) foi vista político, Mehdi Akhavan Saless (1929-
em que descreve um de vários relaciona- a história das religiões. Sociólogo doutora- -1990) é, tal como Nima Yooshij, um dos pio-
mentos amorosos de curta duração: do na Sorbonne, em França, pertenceu a neiros da nova poesia persa, obcecado pela
«I have sinned a rapturous sin / in a warm um movimento que tentou fundir o xiismo «luta eterna entre luz e escuridão». Em 1951,
enflamed embrace, /sinned in a pair of vin- com o socialismo europeu. Ganhou o epíte- publicou a primeira antologia: A Todos
dictive arms, / arms violent and ablaze. / In to de «ideólogo da Revolução Islâmica». No os Combatentes da Liberdade.
that quiet vacant dark/ I looked into his mys- entanto, entre os seus seguidores estão tam- Após o golpe que afastou Mossadegh,
tic eyes, / found such longing that my heart / bém opositores do regime atual, e algumas esteve várias vezes preso, por pertencer ao
/ fluttered impatient in my breast. / In that das suas obras críticas dos zelotas xiitas con- Tudeh. Só em 1957 foi autorizado a retomar
quiet vacant dark / I sat beside him punch- tinuam censuradas. uma existência normal, como professor
drunk, / his lips released desire on mine, / Tradutor para persa do psiquiatra, filóso- e jornalista. Entre 1969 e 1974, para poder
/ grief unclenched my crazy heart […].» fo e ativista anticolonial Frantz Fanon (1925- sustentar-se financeiramente, trabalhou na
Sexualmente explícitos, vários livros de Fo- -1961), autor de Peles Negras, Máscaras Bran- televisão oficial, em programas de história
rugh foram proibidos durante mais de uma cas, Ali Shariati admirava muito esse antigo e literários. Em 1981, após vários anos ao
década depois da Revolução Islâmica. Hoje, escravo da Martinica, mas ambos divergiam serviço do Estado, foi afastado sem motivo
ainda que censurada, é reconhecida como num ponto essencial, segundo o historiador e sem direito a reforma. Em 1990, morreu
a maior poetisa nacional do século XX. Ervand Abrahamian. Fanon aconselhava os num hospital em Teerão. Sepultaram-no
No panteão dos gigantes está também Ah- «povos do Terceiro Mundo» a abdicar das em Tus, na província de Khorasan, junto ao
mad Shamlou (1925-2000): poeta, drama- suas religiões tradicionais «na luta contra o mausoléu de Ferdowsi – a quem muitos
turgo, tradutor, jornalista. Conheceu várias imperialismo ocidental». Shariati defendia o comparavam.
prisões: a dos aliados que ocuparam a sua que os países em desenvolvimento precisa- De Teerão a Yazd, uma reabilitação pós-
pátria quando a Segunda Guerra Mundial vam de «redescobrir as suas raízes religio- tuma de prosas e versos parece dar razão
chegava ao fim; a de separatistas na provín- sas para poderem desafiar o Ocidente». ao romancista Esmail Fasih (1935-2009):
cia do Azerbaijão que quase o fuzilaram; a As ideias do antigo militante da Frente Na- «Nas terras esplendorosas do Irão, um bom
de Mohammad Reza Pahlavi, que mandou cional, de Mohammad Mossadegh, o pri- escritor é um escritor morto.»
O alegado binómio
ara já estarem ali em cima, ima- – Esquece o teu tio, caramba. Que papéis tarde, se só houver uma colecção, o que nun-
–P – Quem?
gina a que horas saíram de casa... eram?
– Agora o cão já não te interessa? Que cão
era, essa é que é a pergunta a fazer.
ca se poderá provar.
– E o cão? Afinal de quem era o cão?
– Não podia ser do José António.
– Os homens no tabuleiro da ponte. Manu- – Explica lá então. – Qual José António?
tenção, será? – Os papéis, descobriu-se logo. Uma colec- – Comecei por dizer que um dos homens
– Ocorre-me que uma vez estavam três ho- ção de artigos do jornal Público, todos dum tal da ponte se chamava José António.
mens no tabuleiro da ponte, não desta, outra Tavares. – Sim, é verdade, e o outro...
qualquer. Um tinha sido assessor de im- – Qual deles? Olha que há mais do que – O ex-assessor do ministro, também não,
prensa de certo ministro, o segundo atirou-se um... os assessores não têm disposição para cães.
ao rio, e o terceiro chamava-se José António. – Não vem ao caso. Quando o corpo do ale- – Que coisa, achas que se vai descobrir
– Caneco! As coisas que te ocorrem... gado suicida apareceu, já um tanto comido alguma vez o que aconteceu?
– Com efeito! É vezo meu. Parece que um pelos peixes do rio, abraçava um maço de pa- – Não só vai como foi, quero dizer, já se des-
irmão da minha mãe também o tinha. Nin- péis que eram exactamente os mesmos que cobriu. Foi o polícia.
guém o suportava, segundo consta. o cão trazia na boca. Percebes agora que – O do Amor de Perdição?
– Como assim? Não o conheceste? a identidade do cão é todo o problema? – Não, esse inventei-o eu agora, desculpa, é o
– Não, foi para a Austrália antes de eu nas- – Essa agora? Os mesmos? Não pode ser. tal vezo do meu tio. Não, refiro-me ao polícia que
cer, e morreu lá há meia dúzia de anos. – Pois não, e no entanto eram. Um polícia tirou o alegado suicida do rio. Esse é que disse
– Então não foi com ele que aprendeste... chegou a sugerir-me que o alegado suicida se que o desgraçado vinha abraçado a um maço
– Não, não, é sestro, vício, sei lá. Aparece tivesse atirado ao rio abraçado aos papéis, de papéis igualzinho ao que o cão trazia na boca.
quando menos se espera, e depois são asso- como a Mariana do Amor de Perdição... – Ah percebo, e ninguém viu esses segun-
ciações, divagações, desconversas... – Tinha graça, um dos Tavares havia de dos papéis.
– Pois, já nem sei bem de que é que estáva- gostar... – Viram, sim, e os dois maços foram cote-
mos a falar... –Talvez, mas a sugestão é absurda. O cão jados. O polícia é que não viu nem cão nem
– Da ponte, dos três homens na ponte. Sem apareceu com os papéis antes de o corpo papéis do cão.
contar com o cão. do alegado suicida ter sido encontrado. – E que tem isso?
– Havia um cão?! – Então como se explica a coincidência? – Ó homem, ele não podia saber que os
– Não. Falávamos dos três homens, não – A única explicação viável exige este pres- dois maços eram iguais.
do cão, com o cão seriam quatro. suposto: há pelo menos duas colecções – Mas eram ou não?
texto SeGUNDo o ANteRIoR ACoRDo oRtoGRÁFICo
– Então sempre havia um cão, gaita! de artigos do tal Tavares. Possível mas es- – Eram, já te disse. Eis todo o enigma. O po-
– Haver propriamente não havia. Depois quisito. E daí se depreende também que é lícia nem sequer podia saber que havia dois
de o alegado suicida se ter atirado ao rio, en- possível haver n+2 colecções de artigos do tal maços!
tão é que apareceu o cão. Com um molho Tavares. – Se não tivesses inventado o primeiro po-
de papéis na boca, encharcados como se os – Possível mas sinistro, nem imagino um lícia, impunha-se concluir ter sido ele a in-
tivesse pescado do rio. Artigos de jornal, cor- mundo em que isso acontecesse. ventar o cão.
tados e colados em folhas de papel A4. Como – Acontece. Chama-se reprodutibilidade. – Não, ninguém consegue inventar um cão.
aquelas colecções de recortes que antes se fa- Imagina um admirador a produzir artesa- Aliás, ocorre-me agora... Claro, é isso! Tudo
ziam. Aquele meu tio, ao que parece tinha nalmente uma antologia do colunista e dedi- se explica. Era um cão polícia! O binómio
várias. cando-se a isso anos a fio. Ou dias, ou uma homem-cão, percebes?
A
cou na História apenas por ter sido o primeiro afro- Timuel Black nasceu há 97 anos no racista Alabama, neto de es-
-americano a chegar à Casa Branca ou mesmo pela cravos, filho da primeira grande migração sulista para Chicago,
natureza revolucionária da sua campanha eleito- combatente na Normandia e um dos primeiros a ver o horror de Bu-
ral, muito assente nas redes sociais e na mobiliza- chenwald. Numa manhã de verão na zona sul de Chicago, contou-
ção entusiástica de nove milhões de novos eleitores -me detalhadamente como se tinha tornado no homem forte de
registados com idade de votar. Ela foi o espelho da ascensão política Martin Luther King na capital do Illinois e como tinha liderado duas
do liberalismo cultural americano, manifestada na coligação que o mil pessoas até Washington para abraçar o seu eterno discurso.
elegeu: minorias latina e afro, jovens, mulheres e a chamada creati- O discurso de King foi o ponto de inversão na segregação legalizada.
ve class, gente com educação superior, rendimentos anuais acima O «sonho» evocava os pais fundadores, as escrituras criadoras da
dos 75 mil dólares, que compunham um quarto do total de eleito- América, o centenário da proclamação de emancipação e as imor-
res e onde Obama garantiu 60% de apoio. Depois de ter substituído tais palavras de Lincoln em Gettysburg. O discurso de King não par-
Hillary Clinton como candidato apoiado pelo establishment do par- tia do zero, recuperava momentos zero. Por isso foi tão forte. Mas se
tido nas primárias democratas, Obama concentrou em si o resulta- a legalização da segregação seria abolida, esse vício ainda permane-
do das eleições gerais: uma incontrolada expectativa planetária e a ce vivo nos EUA e em muitas outras democracias liberais. Práticas
alvorada de um messias na América. Oito anos depois o saldo é con- de marginalização forçada contra mulheres e homossexuais, tal
frangedor para os primeiros e angustiante para os últimos. Só que, como o desprezo racial e religioso, continuam a manchar as socie-
convenhamos, isso diz muito mais sobre eles do que sobre Obama. dades mais desenvolvidas. A americana não é exceção.
A máxima de Ortega y Gasset aplica-se à história política america- Barack Obama fez-se político em Chicago e foi pelo Illinois que
na como uma luva. Ao contrário do que nós, iluminados europeus, chegou ao Senado. No início dessa travessia, um dos que mais ou-
habitualmente concluímos, o inquilino da Casa Branca não é o todo- via era precisamente Tim Black, ativista sénior pela conscienciali-
-poderoso que resolve os problemas que afligem os quatro cantos do zação da raça como bloqueador da convivência social na América
mundo carregando num botão. Além de o sistema político america- moderna. A sua expectativa era por isso imensa, assim como o de-
no estar desenhado para evitar precisamente essa arbitrariedade salento: Obama nunca levou esse discurso para Washington, no
– com Congresso, tribunais, imprensa, universidades e iniciativa pri- sentido de corporizar uma presidência de fação racial, apesar do
vada fortes –, a ação presidencial acaba por ter maior ou menor am- clima tenso exposto pelos tumultos em Baltimore, pela criminali-
plitude consoante a dinâmica que o tempo e o espaço permitem. Por dade violenta entre os gangues de Chicago ou pela infame atuação
outras palavras, sabendo previamente que iria encontrar o Tesouro policial contra jovens negros. A verdade é que Obama nunca foi um
com o maior défice da sua história, a maior taxa de desemprego des- Presidente de fação, nem a campanha hope and change de 2008 o
de a Segunda Guerra Mundial, duas guerras em simultâneo bem sugeria: a coligação que o elegeu e que ele motivou como poucos na
longe do sucesso desejado, uma banca em falência, um declínio re- História americana era suficientemente heterogénea para mere-
lativo face a outras regiões do mundo ou um crescimento económi- cer essa resposta. Mas desde que a crise rebentou, os afro-ameri-
co quase 10 vezes inferior à China, Barack Obama dificilmente po- canos foram quem mais perdeu em rendimento individual e pa-
deria vir a ser um Presidente desamarrado do cenário que encontrou. trimónio familiar. A sua taxa de desemprego é quase o dobro da
Vale a pena insistir nisto: a alvorada dos messias é incontrolável média nacional, a escolaridade universitária completada é metade
no que diz respeito às populações angustiadas, mas a razão deve pre- da percentagem dos alunos brancos. Além disso, representam uma
valecer quando falamos de políticos. Sobretudo de políticos. Mais fatia desproporcionada da população prisional, mesmo que nos
ainda quando falamos de políticos eleitos para liderar a maior po- últimos anos tenha diminuído.
tência da História. A razão devia ter-nos levado a baixar expectati- Permaneçamos ainda no tempo do Dr. King, fazendo um para-
vas, a fazer um esforço por compreendermos a gigante tarefa que ti- lelismo com J.F. Kennedy no campo da suposta fação identitária e
nha de ser enfrentada, a lermos melhor a realidade complexa e mesmo sob outros ângulos. JFK esteve para a televisão como Oba-
heterogénea dos EUA – e, já agora, deste nosso mundo –, a aceitar- ma para as redes sociais: foram os primeiros a usá-las como tram-
mos que a natureza humana, gostemos ou não, tem lados profun- polim de poder. Ambos despertaram o sonho americano de forma
damente erráticos, cinzentos, cruéis, impotentes, trágicos até. Ba- extrema: Kennedy, jovem e moderno, era o contraste com o velho
rack Obama nunca foi um super-homem: só um político normal se Eisenhower, marcado pelos destroços da guerra; Obama, pioneiro
engasgaria ao jurar fidelidade à Constituição na tomada de posse. das minorias e sofisticado na palavra, era o contraponto evidente à
Se partirmos de um pressuposto mais humilde talvez consigamos pertença de Bush a uma certa aristocracia política e ao desgaste dos
perceber melhor o mundo em que vivemos. seus anos. A veterania de John McCain fez o resto. O tempo de Ken-
internacional jogavam a favor desse mítico desígnio. No fundo, Estados passou a ser a pedra de toque da política externa. Mas se o
ele foi simplesmente um Presidente normal e, na política atual, Irão, a China, Cuba e a Birmânia encaixam nessa dinâmica, de fora
isso é muito. ficaram a Rússia, a Arábia Saudita, a Turquia e até Israel, os quais,
com as devidas nuances, foram progressivamente invertendo alguns
A herança bons ofícios de Washington ou entrando em clivagem com os seus
Vamos a números. De acordo com o Pew Research Center, Obama comportamentos. Não se pode dizer que a política externa de Oba-
tem, entre todos os Presidentes desde Kennedy (56%), o índice mais ma tenha sido um sucesso, mas é preciso responder a uma questão:
elevado da taxa de aprovação mais baixa (41%) e, desde que se ini- se qualquer Presidente herda os fracassos e os sucessos dos seus an-
ciou a Guerra Fria, o índice mais baixo da taxa de aprovação mais tecessores, que poderia Obama ter feito melhor? Vali Nasr coloca o
alta (64%) entre todos os Presidentes. Neste grupo, Bush pai conse- dedo na ferida em The Dispensable Nation: Obama tem sido incapaz
guiu o máximo em março de 1991 (89%), seguido de Bush filho em de definir os termos de uma grande estratégia americana neste mo-
setembro de 2001 (86%). Também por aqui se retira que Obama foi mento de transição da ordem internacional. Não que o declínio dos
muito mais um Presidente avaliado dentro de um arco de aprova- EUA seja uma evidência ou fatalidade (Nasr contesta-o), mas porque
ção moderado, sem que os extremos de popularidade positiva e ne- a influência de Washington nos assuntos internacionais, em parti-
gativa refletissem a polarização em que a política americana tem vi- cular no Médio Oriente, esbarra na impreparação da Administração
vido nos seus mandatos. Ele nunca foi um excêntrico, a Casa Branca Obama em definir os termos do exercício do seu poder. É por isto que,
nunca protagonizou um escândalo na esteira de Kennedy, Nixon ou para Vali Nasr, a retração estratégica em curso pode levar a que os
Bill Clinton, e a sua Administração pode ser acusada de muita coisa EUA não mais venham a ser a «nação indispensável» e, por via disso,
mas não de estar envolvida em processos menos claros que puses- o mundo passe a ser um sítio mais instável e perigoso.
sem em xeque a credibilidade do Presidente. A haver novidade é Numa linha mais ou menos coincidente, Robert Singh defende em
mesmo esta: serenidade no exercício dos mandatos. Ora, nem isto Barack Obama’s Post-American Foreign Policy que Obama tem pro-
seria previsível no início, tendo em conta a herança de George curado gerir o declínio americano ao mesmo tempo que deseja
W. Bush, a inexperiência executiva de Obama e o clima político aci- preservar a supremacia entre as grandes potências. Como é que o
catado pelo radicalismo republicano. Hoje, mesmo quando discor- tem feito? Através da crença excessiva no soft power e na diplo-
damos das opções de Obama poucos se atrevem a atacar o seu ca- macia direta, sem com isso conseguir grandes resultados. Singh
rácter ou a pegar nalgum dispositivo pessoal para atacá-lo. Mas se critica a validade da ligação feita por Obama entre interesses parti-
esse ângulo pode definir a lente externa, já o mesmo não se pode di- lhados e alinhamentos sustentados com as grandes potências, de for-
zer internamente, o que diz mais do nível da oposição republicana ma a lidar com ameaças e desafios globais, à qual chama «política ex-
do que propriamente de Obama. terna pós-americana». Dá os exemplos das tentativas para
Convém por isso perceber a herança para chegar a um legado. restabelecer melhorias na relação com Rússia, Irão, Afeganistão, Pa-
Quando Obama tomou posse, em janeiro de 2009, a sangria labo- quistão, China e países árabes do Médio Oriente, para concluir que
ral chegou ao milhão e meio de desempregados só no ano anterior, apenas essa estratégia benigna e ingénua não chega para garantir
com a respetiva taxa nos 10% e o défice federal nos 9,8% do PIB. Não um papel decisivo nem de líder aos EUA. A calibragem necessária
vale a pena lembrar o pânico bancário ou sequer a fadiga das duas após os anos de Bush tem também os seus limites, tal como é limita-
longas guerras, a do Iraque e a do Afeganistão, sendo esta mesmo a do o alcance da linha diplomática traçada por Obama. Robert Singh
mais prolongada da História dos EUA. A credibilidade da Casa Bran- defende que o hard power militar deve permanecer no centro da po-
ca em casa e no exterior estava muito delapidada e foi este o racio- lítica externa, precisamente porque a natureza das potências emer-
nal de Obama: restaurar para transformar. Para tal foi fundamen- gentes e de outros players regionais com crescente influência nem
tal ter feito de Foreign Policy Begins at Home, de Richard Haass, sempre olha para Washington com admiração e respeito pela sua
o seu livro de cabeceira. posição sistémica ou pelos meios usados.
À entrada para 2016, o défice federal estava já nos 2,8% do PIB, Já David Sanger, em Confront and Conceal, é mais condescen-
a atividade económica tinha estabelecido um recorde no crescimen- dente com Obama, ao assumir uma análise sobre a ação externa de
to sustentado do emprego pelo 63º mês consecutivo, muito alavan- Obama mais próxima de Bush do que de afastamento. Ao olhar, por
cado no sector privado, como vimos anteriormente. A promessa de exemplo, para a sua política antiterrorista, descreve-a como «uma
fazer regressar a quase totalidade das tropas do Iraque e do Afega- mudança de enfâse mais do que uma mudança de direção». E com
nistão tinha sido cumprida, e o desanuviamento bilateral com alguns razão. O erro de Bush foi combater o terrorismo apocalíptico islâ-
«Quem, em Portugal, se interessa pelas coisas li- páginas de Cidade em Chamas estavam em português a ser pre-
terárias foi levado a circunscrever a literatura norte-america- maturamente julgadas pelos nossos resenhistas uma obra-prima.
na à obra de cinco ou seis escritores quase sempre tardiamente Curámo-nos da desatenção de antanho?
revelados e traduzidos», escreveu João Palma-Ferreira no seu Diá- Claro que não. Perdemos a melhor literatura americana das dé-
rio, em 1962. Faulkner, Fitzgerald, Capote, nomes já então ungi- cadas de 60 e 70. Palma-Ferreira de novo: «O neo-realismo lis-
dos, contavam-se entre os párias. Agora, a situação parece bem boeta e coimbrão foi pai do mundo. E pau para toda a obra. Dis-
melhor; livros novos de Paul Auster e Jonathan Franzen têm edi- tribuiu cacetada a eito. Levou o Pessoa, levou a Presença, levaram
ções quase simultâneas por cá. Garth Risk Hallberg ainda mal o Kafka e o Freud, não escapou o Beckett nem o Joyce, levaram o
começara a receber as primeiras resenhas negativas e já as mil Zola, o Eça e o Miller; foi um dar sem dó nem piedade de que hoje
alguns encabulados refratários se envergonham.» É claro que, por Os primeiros romances de Barth, embora existencialistas à ma-
exemplo, John Barth, um escritor com uma obra altamente ce- neira do seu tempo, já mostravam enfado com o esgotamento da
rebral, inventor de labirintos formalistas e reflexões sobre a arte fórmula e buscavam novos modos de expressão. É já existencia-
de narrar, teve de esperar por uma era mais propensa à literatura lismo decadente: um parodia a famosa questão de suicídio de Ca-
como jogo, uma vez que não escreve dentro da estrita gama mus; o outro, The End of the Road, levando as ideias de Sartre ao
de razões por que os émulos de Alves Redol o faziam. absurdo, desemboca em desumanidade. Ambos como que lhe
Oxalá que à tradução do seu primeiro romance, Ópera Flu- limparam a bancada de trabalho para ele montar a sua verdadei-
tuante (Sextante, 2013), se sigam The Sot-Weed Factor e Lost in ra obra. O aprendiz Barth não sabia como prosseguir, mas sabia
the Funhouse que mudaram a ficção americana há meio século. para onde não queria ir.
Quando o realismo social anunciava a morte do enredo, as tra- casa. Hum, pois. Ah, mas o fascínio vem da voz de Frederick Koh-
mas e reviravoltas do pícaro The Sot-Weed Factor trouxeram nova ler, um misantropo que lança uma estrondosa verrina contra a His-
dignidade à arte de contar histórias. Os contos interligados de Lost tória, a Humanidade, a família, o amor; um exuberante odiador que
In the Funhouse levaram mais longe o jogo de ficção sobre ficção, faz Céline soar como uma monja a orar. Só esta voz, de um humor
com o narrador a discutir técnicas narratológicas, narrativas den- negro saturado de sensações levadas ao extremo, faz a leitura valer
tro de narrativas e brincadeiras com as expectativas do leitor, como a pena. Mas o verdadeiro feito de Gass está na escrita; ele é um se-
em Saramago. E sempre o humor inesperado: o protagonista guidor de James Joyce e acredita que o como escrever é mais im-
de um conto é nada mais, nada menos que um espermatozoide. portante do que o tema. «Eu tenho muito pouco para comunicar»,
Barth é divertido, acessível, muito generoso para com o leitor; a disse ele uma vez. «Não tenho a certeza de compreender esse pou-
musa dele é Xerazade, por isso o contar bem e deleitar são-lhe ful- co que tenho.» Além disso, Gass ainda acredita na Beleza, talvez o
crais. Ele vai ao encontro do estereótipo português dos escribas único, principal tema da sua obra. Nada é demasiado grotesco para
americanos, que os vê como meros entertainers de prosa simples. Gass – e ele adora o grotesco – que não possa ser redimido pela pa-
Fica-se com a impressão de que antes de os ingleses começarem lavra virtuosa. The Tunnel é um romance de 650 páginas aliteran-
a escrevinhar penny dreadfuls ninguém sabia contar histórias tes. Eu repito: 650 páginas aliterantes. As frases, escritas para o ou-
empolgantes; nunca a França teve Dumas, Féval, Verne; nunca vido, sucedem-se sob a lei da eufonia, como se formassem um vasto
Emilio Salgari deleitou meninos italianos com aventuras de pira- poema. Cada livro que publica é um evento para deixar marcas,
tas; nunca Edogawa Rampo cativou o Japão com os seus perfeitos como um terramoto, não para se sobrevalorizar, consumir e esque-
contos policiais. cer semanas após a rentrée. Aí está ele, à espera de poder encantar
Se eu baseasse juízos só no que leio por cá, também pensaria que leitores que leem, não pelo enredo e para saber o que acontecerá a
a única ambição dos ianques é escrever livros facilmente adaptáveis seguir, mas pela beleza da prosa, o mapeamento da deriva huma-
a filmes. As loas usadas nas nossas resenhas desanimam; serei eu na, a sedutora misantropia, a riqueza de metáforas e símiles que
o único a reparar na tendência para se elogiar os americanos ape- apenas tem igual em António Lobo Antunes.
nas por enredos lineares, prosa escorreita, vocabulários minúsculos, Igualmente lento a escrever, Alexander Theroux publicou quatro
temas mediáticos e morais banais? Discutir literatura romances desde 1972, não menos elaborados que
americana é também discutir preconceitos os de Gass, aplicando a minúcia de Proust
portugueses contra ela e como eles condi- à frase bela e original. Mas se Gass pre-
cionam a escolha de obras a traduzir. za o som, Theroux é louco por lé-
Mas hoje em dia não temos de xico. Numa entrevista gabou-se
esperar pelas editoras e o des- de usar «palavras que não
conhecimento sana-se facil- são ditas há cinco séculos».
mente. Posso apresentar- Theroux não vai à bola
-vos William H. Gass, Ale- com catacreses e «coisa»
xander Theroux, Carole rareia nos seus livros;
Maso, Joseph McElroy, ele sabe que há um
Mary Caponegro? nome para tudo e in-
Gass, que aliás cu- siste em prová-lo em
nhou o termo «metafic- cada página. Em ter-
ção» a pensar em Barth, mos de riqueza e pre-
passou 25 anos a escrever cisão vocabular, não
um romance, The Tunnel conheço igual na atuali-
(1995): o enredo, como em dade. Em Darconville’s
todos os livros dele, importa Cat, a sua obra-prima, um
pouco: um professor universitá- professor e uma aluna num
rio, após anos a compor um estu- colégio feminino apaixonam-
do sobre o Terceiro Reich, farta-se de -se; planeiam o casamento; mas à
escrever o prefácio e passa a divagar sobre última da hora ela rompe o noivado.
a vida enquanto cava um túnel por baixo de Entra em cena uma figura sinistra que as-
sombra os corredores do colégio, um antigo professor chamado Cru- hilariante The Public Burning, uma autópsia da paranoia antico-
cifer, um eunuco cristão hipermisógino; pressentindo uma alma gé- munista dos anos 50, tem um inseguro Richard Nixon como nar-
mea em Darconville, tenta persuadi-lo a matar Isabella. Um dos ca- rador; William Gaddis, o crítico da América das grandes corpora-
pítulos mais delirantes do livro não é mais que uma barroca lista de ções, do capitalismo e dos litígios. Leiam isto como um alerta: eles
métodos bizarríssimos de matar mulheres: existem, eles são ótimos, eles merecem traduções. A maioria sur-
«Vapulate her! Wherret her! Sneg her! Bash her on the pan- giu nos anos 60 e 70 para renovar as letras americanas; coincidi-
bone! Thwitch out her innards! Strip off portions of her skin, ram com um período em que só fazíamos olhinhos a franceses.
paint them, and then use them for tiny kites! Abacinate her by Muitos nunca foram traduzidos, ou foram--no há décadas (e só
placing a red-hot basin near her eyes! Take her first-born infant obras menores) e estão esgotados. Voltámos a interessar-nos pela
by the ankle and flog her with it until both are dead! Carve an Es- América nos anos 80, e não admira que conheçamos melhor Paul
kimo tupelak with her face on it and blaspheme it, scomfitting Auster, Raymond Carver e Bret Easton Ellis, ou então nomes que
it with whispers, obscenities, and dark curses! Throw her into se tornaram conhecidos por motivos paraliterários: Lydia Davis
a huge thirlpool! Break a needle in her finger and watch her die com o Man Booker internacional, Cormac McCarthy após a adap-
of lockjaw!» tação cinematográfica d’Este País Não É para Velhos. Geralmente
Darconville’s Cat é um livro fecundo que explora estilos e for- chegam-nos por pequenas editoras: Gaddis teve a primeira tra-
mas diferentes em cada capítulo. Um, intitulado «Quanto vale dução em português em 20 anos graças às Edições Ahab, que nau-
uma imagem?», tem exatamente mil palavras; outro tem uma só. fragou pouco depois; a 7 Nós começou a editar William T. Voll-
Citações latinas e alusões intertextuais abundam. Theroux espe- mann em 2014 e corre o risco de pagar por tanto bom gosto porque
ra que o leitor ponha empenho na leitura. Three Wogs, o primei- a crítica anda ocupada a celebrar autores menos exigentes. Mui-
ro romance, bastante atual, é um tríptico sobre xenofobia, nacio- tos destes nomes têm de ser «tardiamente revelados e traduzidos»,
nalismo e multiculturalismo; Darconville’s Cat é uma meditação mas têm de sê-lo de qualquer modo dada a singularidade das suas
profunda sobre amor, traição, vingança e arte; Laura Warholic visões. Não é de estranhar que muitos deles, vanguardistas na sua
demole todas as correções políticas da atualidade. Em termos altura, nunca foram bem aceites pelo mainstream americano.
de estilo, Theroux irmana-se de Aquilino Ribeiro, o que na minha A visão deles sobre a América, a sua sociedade e história, não é
dúbia escala de valores estéticos é o maior elogio que posso prestar agradável, e por isso mesmo são cruciais. Foram radicais no pen-
a um autor. Lê-lo, como ler Aquilino, é como brincarmos ao sar, por isso radicais na forma como encaravam a ficção, o que os
Indiana Jones, só que em vez de irmos à procura de relíquias afasta do consenso que torna tanta literatura internacional indis-
andamos à procuramos de palavras, e as recompensas são bem tinguível de país para país.
melhores do que espreitar o conteúdo da Arca Perdida: ele é Há 500 anos atrás, Pedro Álvares Cabral, ao deparar com o Bra-
divertido, erudito, sensível, irado, opinado, perspicaz e um exímio sil, teve um papel na descoberta das Américas. Hoje em dia há ou-
observador da desventura humana. tra América por nós desconhecida que vale a pena descobrir; é
Falta de espaço impede-me de aprofundar estes três autores, uma de livros e cultura; as suas riquezas são muitas: divertem-
merecedores cada um de artigos individuais. Foco-me neles por -nos, comovem-nos, ensinam-nos sobre o mundo, desafiam-nos
predileção, mas podia rescrever este artigo de mil maneiras e men- intelectualmente. Gostaria que os livros dela viessem para cá, não
cionar outros tantos: Stanley Elkin e Rosellen Brown, autores de como escravos num porão para trabalharem por nós, mas como
sóbrios, íntimos romances realistas; Ishmael Reed, que pegou na o humanista Cataldo Sículo que D. João II chamou ao reino para
tradição oral dos contadores afro-americanos para questionar a educar o filho – para nos abrir a mente a novas mundividências e
civilização ocidental; o absurdista cómico Richard Brautigan; o ero- inspirar possibilidades. Descobrir esta ignorada, marginal litera-
tismo de Carole Maso; estilistas líricos como Paul West, John Haw- tura americana seria uma aventura bastante benigna, deleitável
kes e Caponegro; Robert Coover, cuja obra-prima, o extravagante, e até proveitosa. Estão todos convidados a embarcar nela.
Onde estará o travesti velho bungalow que comprou ali no verão wood, Atlantic City, Ocean City – mais ani-
de 2012, antes da tempestade Sandy des- mados talvez mas não tão bonitos. Parecia
que saiu em Herald Square? truir quase tudo? Reconstruiu-o. Chamou um sítio perfeito, sem placares e poucos
Quem o viu no metro não à casa e ao quintal à volta o «Álamo» e é o sinais de um comércio enraizado. E o bun-
o esquecerá e no entanto ele seu refúgio. «Um lugar para pensar, cozi- galow escondido! A rapidez com que me
nhar spaghetti, mexer um café, um lugar encantou.»
permanece anónimo. Tinha para escrever», diz em M Train, o segundo Seguir a pista de Patti Smith obedece ao
umas calças de licra coladas volume das suas memórias, publicado em mesmo impulso que a levou atrás da geo-
às pernas magras e com 2015 e que está prestes a sair em Portugal grafia e das marcas físicas de Sylvia Plath,
pela Quetzal. É o livro que se segue a Ape- Frida Khalo, Roberto Bolaño. Será que ao
músculos, sapatilhas cor nas Miúdos (2010) e, ao contrário desse pri- sentar-me por breves momentos na cadeira
de rosa e um casaco de pele meiro, uma divagação menos cronológica, onde Bolaño escreveu pensei que poderia re-
a imitar raposa. guiada por memórias, impulsos de viagem ceber alguma coisa do seu talento? Foi mais
e por uma nostalgia que lhe vem do senti- ou menos este o pensamento de Patti no dia
mento de perda, de se saber uma sobrevi- em que não resistiu e se sentou nessa cadei-
Tinha auscultadores e cantava uma canção vente cada vez mais solitária. Os amigos da ra, para no mesmo instante sentir que tinha
de Amy Winehouse quando se esquecia de geração Beat já não estão. Não está Todd, o profanado ou usurpado um lugar que não
que estava a discutir com o homem do lado. irmão que a acompanhava na produção dos era o dela. «Há dois tipos de obras de arte. Há
O homem fingia não o conhecer e ninguém seus espetáculos. Morreu um mês depois os clássicos monstruosamente divinos como
teve certeza de que se conheciam mesmo. de Fred «Sonic» Smith, o marido de Patti Moby-Dick ou O Monte dos Vendavais ou
Cantava, dizia palavrões e mascava pastilha durante 14 anos, que não sobreviveu a um Frankenstein: o Moderno Prometeu. E de-
elástica na carruagem de metro quase vazia. ataque cardíaco em 1994, pai dos seus dois pois há o tipo em que o escritor parece in-
Entrou em 4th West e foi sempre assim, uns filhos, Jackson e Jesse. Ele é central em fundir energia de vida às palavras ao mesmo
10 minutos, até correr para a porta em He- M Train, quase tanto como Robert Map- tempo que o leitor rodopia nelas, se retorce e
rald Square e, na corrida, deixar cair uma plethorpe foi em Apenas Miúdos. M Train é pendurado na rua a secar. Livros devasta-
pestana postiça. Voltou atrás e conseguiu é sobre tudo isto num estilo digressivo. Pat- dores. Como 2666 ou O Mestre e Margarita.
apanhá-la a tempo de seguir caminho. Pen- ti Smith é aqui alguém que se movimenta Crónica do Pássaro de Corda [de Haruki
so nele já bem longe, em frente ao mar de numa paisagem de memórias e alguns pro- Murakami] é um livro desses. Quando o ter-
Rockaway Beach que só conhecia, e muito jetos e que no caso de lhe faltar um livro por minei fui imediatamente obrigada a relê-lo.»
vagamente, de uma canção dos Ramo- perto escreve para ter alguma coisa para ler. Levou-o na viagem de que regressara recen-
nes. Era do album Rocket to Russia, de 1977, Em Rockaway Beach construiu um lugar temente a Tóquio e voltava a ele. M Train
e tinha o mesmo nome daquela praia de para pensar e para a escrita, a única coisa tem muita da energia vital de que fala e a as-
Queens. «Chewing out a rhythm on my bub- que, confessa, não lhe aconteceu por acaso. sociação é imediata. Como quando lhe ocor-
ble gum / The sun is out and I want some / Num dia de maio de 2012, sentada num reu que talvez pudesse encontrar Murakami
/ It’s not hard, not far to reach, we can hitch dos muitos bancos ao longo do passeio ma- nas ruas de Tóquio quando lia um dos livros
a ride to Rockaway Beach.» rítimo, Patti Smith elaborava sobre o que po- do escritor japonês, penso que Patti Smith
Há poucos surfistas no mar. Poucas on- deria ser essa existência, ali, pela primeira terá mais a fazer do que aparecer por ali oca-
das, um vento que vem de oeste, não muito vez numa casa só para si e pensada para sionalmente para minha conveniência.
frio. Nenhum cheiro a iodo e uma gritaria isso, para ser vivida a sós. Um espaço aber- O que nos faz ir atrás de um livro? Poder es-
de gaivotas no areal quase sem ninguém. to, com janelas e uma mesa para escrever. tar mais intimamente com ele, sem pisar o
Só um ponto ou outro ao longe e corredores Há uma solidão tranquila a atravessar toda risco do pudor, sem profanar o espaço que é
solitários no longo passeio junto mar. É in- esta escrita, melancólica mas viva. «O pas- do autor. Qual daquelas casas será o Álamo?
verno. O que fez com que Patti Smith se sadiço ecoava uma juventude passada em Pequena, de madeira, com cortinas de linho
sentisse atraída por Rockaway Beach e pelo Nova Jérsia com os seus boardwalks – Will- branco nas janelas, entre a linha de comboio
contrasse pretendente por não ser bonita. tica e escritora que completou 69 anos a 30 Smith a partir do Ino. Mas o Ino já não exis-
Depois de Fred morrer foi lá que encontrou de dezembro. Diz que ter sido artista, se- te e há nada no seu lugar. Sei disso quando
o refúgio e fez o luto junto dos amigos, foi lá nhora do punk rock americano que em 1975 cai uma chuva miúda que não chega para
que anos depois voltou aos palcos. E foi ficou na história da música com o álbum arrefecer o fim de tarde em Bedford Street.
lá também que durante 10 anos se sentou Horses, foi um acaso. A escrita é outra coisa. Em Greenwich Village, o café só existe na
a uma mesa de café a escrever como em Não pode viver sem escrever, e durante anos memória dos que o frequentaram ou leram
casa. Até que um dia… escreveu, mantendo a escrita uma das con- sobre quem por lá andou. Nos guias on-line
Um dia constatou: «Não é fácil escrever dições mais privadas da sua vida pública em da cidade ainda aparece assinalado, está nos
sobre nada.» É a primeira frase do livro. palco, tentando passar anónima, quase mapas, há críticas, fotografias, e um aviso
Mas que «nada» é este? É um nada que invisível, preenchendo blocos de notas nos a vermelho: «Fechado permanentemente.»
se vai repetindo, um dos tais refrões desta cafés de Berlim, Londres, Tóquio, Detroit, No lugar onde esteve, há uma porta fechada,
canção melancólica mas não depressiva Madrid, Cidade do México, Nova Iorque. duas janelas gémeas com madeira por den-
que é M Train. Passaram três anos desde aquela manhã tro, rés do chão de um prédio modesto igual a
Pode ser o nada que sucedeu ao Café Ino. ventosa de março de 2013 em Manhattan. Ti- tantos. A mesa onde Patti escrevia e a cadei-
É verdade. O Café Ino já não existe. Fechou vesse Patti Smith sabido interpretar a exis- ra onde se sentava estão com ela. No último
para sempre. Não há música de fundo nem tência de pelo menos duas vezes mais pom- dia, depois de lhe ter preparado um café
uma pergunta para tentar saber a causa. bos na rua do que era costume e talvez o quando ela bateu na vidraça, o dono ofere-
Para quê? Uma ária de Tosca, de Puccini, es- embate com a ausência das letras «INO» na ceu-lhe esses móveis cativos onde ela pediu
tava a tocar na manhã em que Patti soube da fachada vermelha do nº 21 da Bedford Street para ser fotografada uma derradeira vez.
morte de Robert Mapplethorpe, o seu ami- tivesse sido menos violento. O seu corpo, que Uma fotografia nesse sítio exato está na capa
go, o seu ex-amor. Ela esperava a notícia e, lhe dava sinais de aproximação de tempesta- da edição americana de M Train, o livro que
de algum modo, preparou-se. Mas não ha- de, apenas lhe indicara sintomas de jetlag a revista Pichfork chamou a mais feliz re-
via indício de fim na manhã em que, ao re- e o único remédio para isso era a chávena presentação da melancolia e que começa
gressar à cidade após uma ausência de se- de café bem forte. O que sentiu? Faça-se com a tal frase: «Não é assim tão fácil escre-
manas, se preparava para cumprir a sua a pergunta assim: o que acontece quando nos ver sobre nada.» São palavras que marcam
rotina diária de uma chávena de café forte, tiram uma «casa»? E casa «é uma secretária», o tom e estabelecem o desafio. Temos um
uma torrada de pão escuro, azeite. Foram escreveu também Patti em M Train; ou uma grande nada que é preciso preencher e esta-
10 anos assim, uma caminhada quase me- mesa de canto do café de todos os dias onde mos perante um exercício íntimo de movi-
cânica, atravessar a Sexta Avenida desde se pode escrever, pensar, desenhar, ler e mento e perda, de solidão quando se perce-
casa, até à Bedford Street, umas poucas cen- molhar o pão no azeite. Fazer uma pausa. be, sob várias perspetivas, a tirania do tempo.
tenas de metros a oeste. Chegava, sentava-se Pausa. Quando seguia no avião e sobre- Desta vez, à porta do Ino e ao contrário
na «sua» mesa de canto, tirava o bloco, às ve- voava Nova Iorque tentava situar esse lugar do que aconteceu no dia da morte de Robert,
zes um livro, e era o de sempre sem precisar e também o papel do acaso a partir dali. o luto seria em silêncio e depois disso, se em
de o dizer. Só que agora a porta estava fe- Com as luzes acesas, o chão parece um ce- vez de escrita houvesse uma imagem, via-se
chada e isso é como um separador. Tempo- nário para imensas possibilidades. Patti uma mulher a atravessar uma paisagem no
ral, físico, de vida. Uma linha fina onde é pre- Smith refere-se à cidade à noite como um tal movimento quase sempre guiado pela in-
ciso encontrar um equilíbrio. E o café quente grande palco iluminado. Eu ainda não sabia tuição, pelo impulso. Uma mulher esquiva
forte, agora? A partir de agora? do travesti, de Rockaway, do Ino fechado, ou lenta. Sentada num banco em frente ao
Percebe-se que os dois volumes que com- que duas mulheres sem se conhecerem – eu mar ou a beber um Nescafé na varanda de
põem a autobiografia de Patti Smith são dois e outra — estariam lado a lado a ler o mes- casa em noite de fim de ano. Nessa noite,
réquiens. Apenas Miúdos, vencedor do Na- mo livro numa linha de metro cujo nome quando um grupo de rapazes e raparigas a
tional Book Award, e M Train assinalam era o título desse livro. Quando, no avião viu e lhe perguntou que horas eram, ela res-
despedidas estruturantes em dois períodos fecho o livro, estou decidida a começar a pondeu «São horas de vomitar» e prontifi-
da existência da cantora, poetisa, artista plás- minha viagem com as memórias de Patti cou-se a oferecer um casaco à rapariga que
A
de politicamente correcto são exemplos do que de melhor fizeram as nho diferente»).
em Itália, num museu de grandes «escritoras sulistas», como Carson
Amesterdão, em univer- McCullers, Eudora Welty e Katherine Anne O pudor forçado das estátuas
sidades norte-americanas Porter. E todos eles poderiam ter a epígrafe Um exemplo da incúria pelo seu passado
e em jornais portugueses. que escolheu para O Céu É dos Violentos: cultural foi recentemente dado por um dos
Num período em que as redes sociais dão «Desde os dias de João Baptista até agora, países que mais razões tem para se orgu-
a sensação de um presente sem História, as o reino dos céus tem sido objecto de violên- lhar dele.
obras literárias são arrancadas ao seu con- cia e os violentos apoderam-se dele à força» Para não incomodar o Presidente do Irão,
texto ou soterradas pelas opiniões dos auto- (Mateus, 11:12). Hassan Rouhani, em visita oficial a Roma,
res mesmo quando estas não têm qualquer Flannery O’Connor viveu na cruel e racis- o Governo de Matteo Renzi mandou cobrir
reflexo naquilo que criaram. ta sociedade do Sul dos Estados Unidos nas as estátuas gregas e romanas nos Museus
O caso mais recente, tão risível que vale décadas de 30 a 50 do século passado, onde Capitolinos, entre elas uma cópia de Praxí-
apenas como sintoma, é uma crítica que Jor- os negros não tinham nome para os patrões. teles. A chefe de protocolo italiano deslocou
ge Lopes fez na Time Out de 17 de Fevereiro E com a sua imaginação deu-lhe cores ain- mesmo as cadeiras e mesas de modo a que
a Tudo o Que Sobe Deve Convergir de Flan- da mais sombrias do que as que na realida- Rouhani, ao sentar-se, não visse na estátua
nery O’Connor. Num tom desenvolto, J. Lo- de possuía. equestre da sala Esedra os testículos do
pes informa que «O’Connor nasceu, viveu Um crítico como Harold Bloom conside- cavalo montado por Marco Aurélio.
um bom bocado e faleceu na Geórgia» (tra- rou-a um dos «Cem Autores mais Criativos É sabido que estátuas nuas ofendem as al-
ta-se certamente de uma elegante alusão à da História da Literatura», o que não deve mas sensíveis como a do Presidente irania-
frágil saúde e à prematura morte de O’Con- abalar as certezas de J. Lopes, que conside- no, habituado a condenar homossexuais
nor). Sublinha o crítico que «o esforço de em- ra certamente Bloom um crítico elitista que à forca e mulheres à prisão por assistirem
patia de quem escreveu estes contos está no- teria muito a aprender com uma literatura a uma prova masculina de basquetebol.
toriamente do lado da geração mais velha, cheia de esperança e bons sentimentos. Como as negociações e os acordos comer-
branca e abastada q.b., quase invariavel- «O génio do grotesco é relativamente raro ciais poderiam naturalmente ter ocorrido
mente racista» e que, de «99 % dos persona- e O’Connor e Carson McCullers juntaram- em vários palácios sem estátuas nuas, nem
gens negros, os “pretos”, nem os nomes se -se a Faulkner e a Nathanael West nesta arte cavalos tão expressivos como o do estóico
conhece». O texto «Os Coxos Hão-de Entrar tão difícil. O “grotesco” geralmente define- Marco Aurélio, o Governo italiano mostrou
Primeiro» estaria «cheio de maldade mani- -se como uma espécie de distorção: bizarro, que quis oferecer a Rouhani uma prova de
puladora, cruel e sem ponta de esperança». ridículo, fantástico», escreveu Bloom. submissão cultural. É que essas esculturas
Condescendente, J. Lopes admite que o que «[Flannery O’Connor] pretende, através fazem, há cerca de 2500 anos, parte das tra-
vale a Flannery O’Connor é «a sua escrita do terror, que alcancemos um estado de dições europeias influenciadas pela cultura
seca e cénica». Mas claro que o prefácio graça e talvez se regozijasse sombriamente greco-latina.
de Rogério Casanova, «tradutor da obra, com a nossa insegurança perante a nova
é um espelho do elitismo da traduzida». Era do Terror fundamentalista islâmico», O perigo dos clássicos
Flannery O’Connor foi um dos escritores acrescenta. Isabel Lucas referiu no Público, de 7 de Fe-
que melhor reflectiu sobre a sua obra, des- Se não dizemos que a crítica de Jorge Lo- vereiro, o movimento surgido entre os es-
de o precoce Um Diário de Preces, onde é pes é completamente tola, é porque a al- tudantes universitários dos Estados Unidos
visível a sua relação ansiosa com o divino, guém que cultiva o politicamente correcto para excluir alguns clássicos da literatu-
até aos ensaios de The Habit of Being, à sua devemos dizer neste caso que tem ideias di- ra grega e romana dos currículos. Os es-
correspondência e a conferências como o ferentes (na Alemanha, os gordos preten- tudantes alegam que tais livros põem em
texto SeGUNDo o ANteRIoR ACoRDo oRtoGRÁFICo
perigo o seu bem-estar mental. Entre essas em muitos casos facilitam a identificação.
temíveis ameaças estão as Metamorfoses Excluí-los é julgar a História à luz dos pre-
de Ovídio (cujo desconhecimento faz per- conceitos actuais.
der a possibilidade de dilatar a imaginação Como diz Javier Marías, em artigo publi-
e de certo modo a vida até aos 2000 anos cado no El País:
que o autor tem). «Se digo “esse negro” para me referir a al-
O pedido surgiu no Verão passado na Uni- guém, a minha intenção não é pior do que
versidade de Colúmbia, em Nova Iorque, quando digo “aquele loiro” ou “o de sardas”.
e foi rejeitado pela direcção. Não se trata, É um modo de identificar, mais nada. E se
porém, de um caso isolado. Já em Setembro me falarem do quadro Cabeça de Homem
de 2015, a revista Atlantic referia que os vai ser mais ser mais difícil para mim reco-
estudantes de Direito de Harvard pediram nhecer essa pintura do que se continuasse
que não os traumatizassem com o ensino a ser intitulada Cabeça de Negro, como até
da legislação sobre violação. há pouco.»
Se o movimento chegar a Portugal, a pri-
meira ameaça deverá recair sobre Os Lusía- A crítica em Portugal
das (para J.L. Borges, «a Eneida lusitana»). Em artigos recentes, a propósito da publica-
Como é sabido, no seu Canto IX, os mari- ção de Carol de Patricia Highsmith, surgi-
nheiros portugueses desembarcam numa ram críticas ao carácter e opiniões da auto-
ilha onde o seu desejo «se ceva nas alvas car- ra, que se sobrepuseram às feitas ao livro. Ao
nes» das «belas ninfas», que perseguem em mesmo tempo, e como já fizera J. Lopes so-
«caça estranha» pelo meio dos bosques. Isto bre Flannery O’Connor, responsabiliza-se
para não referir já que Camões chama o autor pelo carácter do narrador ou dos per-
«mouros» aos mouros e os negros são refe- sonagens, o que é sempre abusivo e desres-
ridos com metáforas tão pouco amáveis peita os poderes da imaginação (nunca me
como «os povos a quem é negada a cor do pareceu boa ideia incriminar Dostoiévski
dia» ou que são «da cor da escura treva». pelo crime de Raskólnikov). Misoginia (1957), livro há muito desapareci-
A segunda ameaça irá naturalmente para No Público de 19 de Janeiro, Helena Vas- do das livrarias portuguesas.
a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, concelos abandona a sua habitual subtileza O texto de PM surge quando é publicado
pois nos fala de um tempo em que cristãos e termina um artigo sobre Carol, dizendo em Portugal o romance Carol e quando nas
e muçulmanos em conflito tinham orgulho que Patricia Highsmith tinha «fama de me- salas é exibido o filme com o mesmo nome
em passar à espada os infiéis. gera», que era «racista e anti-semita» e que de Todd Haynes, e não pode deixar de lhe
«parecia estar de acordo com os seus perso- ser referenciado. Mexia menciona aliás Pa-
Saneamentos museológicos nagens, psicopatas e violentos». tricia Highsmith como a «autora de Carol».
Uma outra notícia refere-se à iniciativa do Por um caminho semelhante vai um dos Ora, este romance, o segundo que Patricia
Departamento de História do Rijksmu- nossos melhores críticos, Pedro Mexia, na Highsmith escreveu, é uma história do
seum em Amesterdão. A equipa dirigente sua crónica no Expresso de 13 de Fevereiro. amor entre duas mulheres na América con-
do museu decidiu retirar dos títulos dos Afirma que, «como todas as criaturas misó- servadora dos anos 50 e o seu fim quase fe-
quadros 23 termos que poderiam ofender ginas, Highsmith também sofria de misan- liz fez dele uma referência das feministas
os visitantes. A decisão não abrangeu ape- tropia», e que «inúmeros documentos e tes- norte-americanas. Durante anos a autora
nas nomes ofensivos, cuja exclusão seria temunhos confirmam que ela detestava recebeu milhares de cartas de mulheres
compreensível, mas outros como «negro», católicos, judeus, americanos, negros, ho- apoiando a sua obra. Ou seja, o livro é o con-
«índio», «anão», «esquimó», «mouro» ou mossexuais, até crianças», tendo declarado trário da misoginia que só mais tarde se tor-
«maometano», que nada têm em si de pejo- certa vez que não gostava de ninguém. nará um traço da personalidade de Patricia
rativo. Trata-se, pelo contrário, de termos E, para ilustrar essas afirmações, PM des- Highsmith, o que a não impediu de ter
que para os europeus são descritivos e que fia as personagens de Pequenos Contos da diversas relações amorosas com mulheres.
o jornal fictício O Palrador, de cuja existência se sabe desde que facto, para regozijo dos paleógrafos, duas assinaturas (idem, 47).
Hubert D. Jennings descobriu «um velho caderno de exercícios es- Encontrada a forma dos heterónimos como explicação retrospe-
colares», de Durban («Alguns aspectos da vida de Fernando Pes- tiva da obra, nada exclui que vinhetas autobiográficas dentro des-
soa na África do Sul», Colóquio/Letras nº 52, Fev. 1969, pp. 64-69; te género (mais ou menos comuns em escritos tardios) não pas-
v. figs. 1-5). Sobressai de O Palrador menos a qualidade dos artigos sem de fantasias retrospetivas, acomodando a existência, entre os
que uma semelhança interessante com aquilo a que a partir de papéis guardados, de assinaturas assim e de artefactos como O Pal-
1928 Pessoa viria a tratar por «heterónimos» (e com aquilo a que, rador, no prisma geral das «obras heterónimas». (Gesto que vale
por precaução, passámos a chamar entretanto «autores fictícios»). o que vale, mas que alguma coisa vale.) Seja como for, a profusão
A saber, todos os colaboradores deste falso jornal eram já perso- de personagens a que O Palrador nos apresenta parece ser, de lon-
nagens inexistentes com nomes inventados. Este ensaio procura ge, a principal corroboração da imagem da infância dada por al-
doras. São, todos eles, porque não existem, fictícios – e são, porque
escrevem coisas, autores. Daí a expressão «autores fictícios». Por
outras palavras, julga-se em geral que nem todos os autores fic-
tícios de Fernando Pessoa são heterónimos, mas que todos os
heterónimos são autores fictícios. Por maioria de razão, o grupo
de nomes associado a O Palrador pertence a esta grande classe
de figuras.
«Na lista que se segue,» observam Fernando Cabral Martins
e Richard Zenith, a respeito da sua Tábua de Heterónimos e Outros
Autores Fictícios, «incluímos todas as personagens que Pessoa criou
para lhes delegar tarefas de escrita» ou que assumem «o papel de
supostos colaboradores na produção de obras do autor» (ibid., 42).
Essa lista «visa reportar todos os colaboradores fictícios de Fernan-
do Pessoa com pelo menos uma obra original ou uma tradução
– por pequena que seja – original ou prevista» (ibid. 45), critério
de que resulta um levantamento de 106 nomes de autores, 28 deles
associados a O Palrador. Adotando o mesmo critério («apenas in-
cluímos […] quem “autora” um escrito ou detém uma tarefa», i.e.,
«subautores e tarefeiros criados por Fernando Pessoa», Eu Sou Uma
Antologia [ESUA], ed. Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari, Lisboa:
Tinta-da-china, 2013, p. 17), Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari che-
gam por sua vez a 136 autores fictícios, 51 dos quais (portanto, mais
de um terço) associados ao mesmo jornal. Discrepância que nos traz
de volta ao princípio. Se, graças a uma (nem sempre saudável) com-
petição paleográfica em curso, existe hoje uma perceção muito mais
nítida do espólio no seu conjunto, a nitidez dessa perceção está as-
sociada, em parte, a estas populosas fotografias de grupo, tomadas
guns relatos pessoais (o que leva muitos leitores a tomá-los como pelos especialistas como um significativo progresso. Semelhante va-
autobiograficamente fidedignos, logo, interessantes e úteis). Ima- riação de resultados levanta, porém, uma questão. Apesar de terem
gina-se então que tais personagens e os indivíduos chamados «Al- acesso aos mesmíssimos documentos e apesar de adotarem os mes-
berto Caeiro», «Ricardo Reis» e «Álvaro de Campos» são todos eles, míssimos critérios de seleção, não parece existir acordo entre os es-
por assim dizer, membros de uma mesma família, criaturas de pecialistas a respeito de o que se classifica como um «autor». Ora,
uma mesma espécie, manifestações de um mesmo fenómeno. não existindo acordo a respeito de o que é um «autor» (ou pelo me-
Este salto gera, porém, certas dúvidas. nos de o que é um «autor» para Pessoa), poderemos fiar-nos na ima-
Por um lado, Fernando Pessoa determinou que apenas aqueles gem que nos dão dos heterónimos? E se essa imagem permanece
últimos «três nomes de gente» são autores de «obras heterónimas» relativamente confusa, ou objetivamente contraditória, teremos real-
(«Tábua Bibliográfica», Presença 17, dezembro de 1928: ibid., 227). mente alcançado – muito embora na posse de todos estes novos re-
Por outro lado, na mesma célebre carta de 1935 sobre a origem dos cursos e decifrações – uma perceção realmente mais nítida e pro-
heterónimos, levanta a possibilidade de existir ainda «um ou ou- funda da obra de Fernando Pessoa?
tro» por aparecer, notando que o seu «primeiro heterónimo, ou, O Palrador é, a este respeito, um interessante caso de estudo.
antes, o meu primeiro conhecido inexistente» (ibid., 276), tinha Ajuda a ver de perto a maneira como os especialistas interpreta-
sido Chevalier de Pas. Esta retificação («ou, antes») aconselha-nos ram o conceito de «autor» (claro está, de «autor fictício»). Dado que
a pensar que nomes como os associados a O Palrador sejam, não revê e acomoda as lições de todas as anteriores, tomaremos de se-
exatamente «heterónimos», mas pelo menos nomes de «conheci- guida a antologia de Pizarro e Ferrari, em particular o seu levan-
dos inexistentes». Conhecidos que, a avaliar pelos estudos mais fiá- tamento de figuras de O Palrador, como o mais exaustivo entre
veis, partilham com os heterónimos duas características defini- as edições disponíveis.
“
da Costa», autor nº 29 – autores, convém no- «não se encontam no espólio pessoano»
tar, das ilustrações; ilustrações que, tanto (ibid., 107).
quanto podemos determinar, não se sabe se E saindo por instantes da ficha técnica de
alguma vez existiram), o romance Em Dias
É bem possível que a distinção O Palrador, estamos longe de dar as contas
de Perigo, atribuído a Gabriel Keene «não entre «heterónimo» e «pseudóni- por encerradas. Para dar alguns exemplos,
consta no caderno em que Pessoa redigiu a as obras atribuídas ao autor nº 57, «David
nova série d’O Palrador e também não se en-
mo» seja de interesse duvidoso. Merrick», nunca chegaram a ser escritas,
contra no espólio pessoano» (ibid., 100). Do Mesmo Herberto Helder decidiu pelo menos não pelo mesmo, sendo o seu
mesmo modo, de Lucta Aerea, obra atribuí- nome associado a uma (curta) peça de crí-
da a Sableton Ray, «não há», segundo Pizar-
deflacionar esta distinção, re- tica literária. O autor nº 58, «Lucas Mer-
ro e Ferrari, «testemunhos no espólio pes- ferindo-se a Álvaro de Campos rick», muda simplesmente de nome, para
soano» (ibid., 101). Os nomes «Moscow», «Sidney Parkinson Stool», autor fictício
«Kisch», «Keene» e «Kay» «não parecem ter
como um mero «pseudónimo» nº 59, cujos contos policiais em língua in-
perdurado no espírito de Pessoa; existiram de Fernando Pessoa, que, glesa também parecem nunca ter sido
fugazmente», comentam, a propósito, Ca- escritos – mas aí vão dois autores, na cate-
bral Martins e Zenith, «apenas em função da
acreditava nesta distinção. goria de candidato-a-autor (categoria já des-
única obra de que são autores nominais. crita por Cabral Martins e Zenith como a de
É como se o nome de cada um fosse parte in-
tegrante do título do romance a que está as-
sociado e nada mais» (TH 54), intuição-cha-
ve a que voltaremos no final.
Seja como for, todos os últimos são, ao
menos, personagens de autores (ainda que
”
do considerado por Pizarro e Ferrari como
um autor separado, muito embora «Não
[existam] […] textos atribuídos a esta per-
sonagem» (ESUA 94). O mesmo parece su-
«autores previstos». «Os nomes de autores
previstos de obras ou traduções que não
chegaram a ser feitas também são aceites
como pseudoautores», TH 44). De facto,
num grau bastante maior que os últimos,
Pizarro e Ferrari aplicam «o critério de
não nos tenham chegado as suas obras). Já ceder com o administrador «Benjamin pseudoautoria alargadamente» (idem, 44).
o mesmo não se passa com uma boa parte Vizetelly Cymbra» (autor nº 36), «Não O autor fictício nº 62, «Professor Trochee»,
da ficha técnica de O Palrador. A «Francis- [existindo] projetos ou textos que lhe sejam embora uma reencarnação do Dr. Pan-
co Páu», também conhecido por Dr. Pan- atribuídos» (idem, 89); e com o administra- cracio, é «um dos candidatos a autor»
cracio, também conhecido por Pip, tam- dor «Antonio Augusto Rey da Silva» (autor (ESUA 170) de um certo ensaio inacabado.
bém conhecido por Scicio, também nº 8), do qual «Não são conhecidas colabo- De «António Cebola» (autor fictício nº 66),
conhecido por Rodrigues do Valle, também rações literárias» (ibid., 42). «Não há textos assinados sob o seu nome»
conhecido por Pessoa, dá-se talvez o des- O que há de comum a Roberto Kóla, (idem,199). O mesmo se passa com o can-
conto de ter publicado uma data de coisas Francisco Páu, Nat Gould, Oswald Kent, didato a autor nº 93, «Gervasio Guedes» e
sob outras assinaturas, embora nenhuma Marino Zeca, Sileno Ladino, Benjamin Vi- com o candidato a autor nº 94, «L. Guerrei-
obra literária, salvo a tarefa de diretor da zetelly Cymbra, António Augusto Rey ro». Já o autor nº 92, um tal «Navas», «Mis-
secção humorística, que não se qualifica da Silva é, claro está, serem personagens de teriosa personagem da qual não se sabe
praticamente nada» salvo que «só existe as funções habituais de qualquer jornal por desse mesmo rapaz. E sendo textos pseudó-
um registo da palavra e nenhuma outra re- recurso a nomes inventados. Deste modo, nimos, não se justifica falarmos de «autores
ferência a ele» (ibid., 344), é-lhe atribuída, existem n’O Palrador nomes associados a ta- fictícios» distintos, mas apenas de vários
não sem reservas, a função de, repare-se, refas (secretário disto, diretor daquilo, etc.) pseudónimos; e nesse caso os resultados
traduzir obras nunca escritas. e nomes associados a textos (assinaturas). dos levantamentos dos antologistas são, na
De facto, a fasquia dos especialistas des- Uma óbvia semelhança destes últimos com melhor das hipóteses, no que diz respeito
ceu a tal ponto que as distinções práticas os heterónimos é a de serem ao mesmo aos nomes associados a textos, amplamen-
entre ser um autor e ser um tradutor, ou tempo nomes inventados e, aparentemente, te inflacionados.
entre ser um autor ou um prefaciador, e pelo menos, nomes que denotam persona- No que respeita a nomes associados a ta-
por aí em diante, deixaram já de importar. gens (os inventados autores desses textos). refas, derivar da existência de personagens
Seja como for, podemos, ao menos, nesses e de alcunhas de personagens a suposição
“
casos, falar do autor da tradução ou do au- (também ela, como vimos, amplamente
tor do prefácio (ou aliás, de pseudoautores exagerada) de todas elas, por terem tarefa
fictícios de todas essas coisas). Que dizer, atribuída, merecerem ser tomadas por «au-
porém, de «Giovanni B. Angioletti» (autor
O que promete um certo ar de tores», sugere, talvez injustamente para os
nº 132), objeto de uma falsa entrevista pu- existência a estas figuras não especialistas do presente, uma queda irre-
blicada n’O Sol, 20 de novembro de 1926? freável por contar cabeças e comparar lis-
Generosamente, sempre podemos aventu-
é a simples quantidade em que tas. Tal é o que menos importa perante um
rar que se trata, enfim, do autor das res- ocorrem , mas o aspeto decisi- artefacto tão precioso e excecional como
postas. Nada impede, nesse caso, admitir- O Palrador.
mos que espíritos astrais como «Henry
vo de se relacionarem umas Pelo contrário, importa notar, por um
More», «Wardour», «Voodoist», «Joseph com as outras, de escreverem lado, a intuição, ou a mesmo a descoberta,
Balsamo», «Henry Lovell», «James Joseph, precoce e invulgar, da parte de Fernando
«J.H. Hyslop» e «George Henry Morse» (au-
e resolverem charadas umas Pessoa, de a existência literária das suas fi-
tores fictícios nºs 114-121) sejam «autores» das outras, a circunstância guras de sonho ser uma questão relacional.
de comunicações mediúnicas. O que promete um certo ar de existência a
Tudo somado, assim se chega sem es-
de se corresponderem. estas figuras não é a simples quantidade
torvo de monta à impressionante marca de em que ocorrem, nem a simples incum-
136 autores. Não, claro, sem um aponta-
mento iconoclasta. Pizarro e Ferrari não
terminam a antologia sem clarificar que
deixam de fora Chevalier de Pas, pela razão
de – pasme-se! – «não existirem testemu-
nhos da sua produção escrita» (ibid., 707).
”
São personagens não de uma narrativa mas
de uma publicação fictícia. Há assim que
conceder a plausibilidade do princípio se-
guido pelos antologistas. Segundo o critério
bência de uma dada tarefa, mas o aspeto
decisivo de se relacionarem umas com as
outras, de escreverem e resolverem chara-
das umas das outras, a circunstância de se
corresponderem. Essa, sim, é a primeira
grande lição a retirar de O Palrador e o seu
adotado, a existência de diferentes persona- mais interessante traço em comum com o
gens é derivada de uma discriminação de que viemos a conhecer por heterónimos.
3
oltando um pouco atrás, as dificuldades
funções. Por outro lado, no que respeita aos
nomes associados a textos, não se verifica,
Regressando à intuição de «o nome de cada
um» ser como se «parte integrante do títu-
V descritas têm origem numa particulari-
dade de composição de um projeto como
nesses textos, porém, a mais remota marca
de quaisquer estilos ou individualidades dis-
lo [da obra] a que está associado e nada
mais» (TH 54-55), a segunda grande lição
O Palrador. Visto que um jornal (seja ele fic- tintas das do rapaz de 13 anos que as inven- tem que ver com o mais antigo vislumbre
tício ou não, e portanto a ficcionalidade é tou. (Estranho seria que assim não fosse.) da originalidade de Pessoa como poeta: a de
aqui um aspeto ancilar) presume uma dis- Não obstante a verificada distribuição de pa- a forma da pessoa –e não, por exemplo,
tribuição de tarefas e visto que tarefas de- péis, que nos faria pensar em muitos indiví- a forma do livro, ou a forma do conto, ou
sencarnadas é coisa que jamais existiu, o jo- duos separados, os nomes associados a tex- a forma do jornal – ser o seu princípio bási-
vem Pessoa vê-se conduzido a personificar tos não parecem passar de pseudónimos co de composição.
Quanto àquela estratégia narrativa – a de posicionar o protago- de O Existencialismo É Um Humanismo, de Sartre (1962)
nista em situação de grande provação –, ela foi, claramente, um («Da Fenomenologia a Sartre»), «não passa apenas pelos dados
elemento frisante da ficção de Vergílio Ferreira. Serviu ela, afinal, imediatos de um problema imediato: passa pelo homem todo,
o propósito de fazer convergir no sujeito – da narrativa, mas o que sofre no estômago e na inteligência». A integralidade
também da própria realidade histórica – os fluxos da narrativa, complexa e imponderável do humano conheceu na obra
as tensões do pensamento do autor e os seus objetivos artísticos. romanesca e ensaística de Vergílio um dos terrenos mais férteis
Diante de si, o indivíduo desafia-se, define e redifine o seu destino de toda a literatura portuguesa.
como agente histórico. Segundo um exegeta como João Palma-
-Ferreira, Alegria Breve (1965) e Nítido Nulo (1971) constituíam UM CLÁSSICO MODERNO
«o pináculo da ascensão do indivíduo no sentido das descobertas Vergílio Ferreira falava algures do prazer que há em passar a
privadas». Esteja esse indivíduo perante forças como as da neces- mão sobre madeira aplainada, arrancar películas, retirar crostas.
sidade familiar e social, em Aparição (1959), ou encare ele a mor- São gestos aparentemente menores, mas que materializam apre-
te, em Cântico Final (1960), ou Em Nome da Terra (1990), a no- ço pelo que é simples na sua eficácia, certeiro na sua ação. Se pen-
velística de Vergílio é a de um humanismo crítico e atento às sarmos no rigor clássico do romance derradeiro do autor (com
dinâmicas de um mundo mutável e vário. O próprio autor refle- exclusão do inacabado Cartas a Sandra, 1996), Na Tua Face, per-
tiu diversas vezes sobre essa condição da sua obra romanesca, ceberemos até que ponto esta simples reflexão marginal pode
pondo em evidência, em retrospetiva, o facto de o autor Vergílio ajudar a entender a depuração a que Vergílio levou a sua escrita.
Ferreira matar com marcante frequência progenitores – o pai e a
mãe em Mudança (1949), ou em Rápida, a Sombra (1974); o pai
em Aparição –, a mulher – Alegria Breve, Para Sempre, Na Tua
Face – e até um filho – Na Tua Face, de novo. Nesse aspeto, são É do que permanece, naquilo que é mutável,
particularmente reveladoras as palavras iniciais de Alegria Bre- que aqui se fala. A escrita de Vergílio Ferrei-
ve: «Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha
mulher? Enterreia-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da ra, informada pelo saber e pelos lastros do
velha figueira.» O homem assume, assim, o seu lugar de entida-
de a sós com o seu destino finito e terrestre. Refratário à moral
universo do classicismo é profundamente
religiosa, à ideia de salvação e de transcendência, opaco mesmo
perante o oásis fugaz da conjugalidade. Condenados todos ao
óbito, eles confirmam-no nesse poder dúbio – porque ameaçado Talvez se pudesse encontrar na formação clássica do autor, a ori-
também pela sua própria finitude – enquanto decisor do seu gem desse impulso da brevidade do estilo. («Fui para letras», dis-
próprio porvir. se o autor na já citada entrevista a Pedro Rolo Duarte, «porque ti-
Mas talvez poucos livros de Vergílio Ferreira tenham revelado nha aprendido latim no seminário e resolvi capitalizá-lo, pô-lo a
de forma tão impressionante como Nítido Nulo (1971) a concen- render, tirando um curso que por outro lado eu presumia dar-me
tração do destino do homem nos seus próprios meios. O homem rapidamente uma colocação».) O simples percorrer das epígrafes
na prisão, um revolucionário que aguarda o desfecho da sua ati- de vários dos seus romances indicia esse classicismo. O trecho da
tude de desobediência, uma pena de morte, fornece ao autor um Antígona de Sófocles escolhido em Alegria Breve revela o prodí-
esquema ideal para desenvolver essa noção do ser humano posi- gio do ser humano. É o homem o «mais espantoso» entre todos os
cionado no centro das suas encruzilhadas. Não por acaso, este motivos de maravilha, nestas palavras do tragediógrafo que Ver-
romance questiona as regras do jogo, desobedece-lhes, subverte gílio cita em texto bilingue, como a frisar a distância e a proximi-
as suas implicações. Há o escritor Vergílio Ferreira, a compare- dade entre dois idiomas, em dois extremos das eras. Uma ode de
cer na diegese, como há a interpelação que consiste nessa quebra Píndaro abre Rápida, a Sombra. É a famosa VIII Pítica, que des-
dos pactos ficcionais – e que obras como Signo Sinal só viriam a creve o homem como «o sonho de uma sombra», e não serve o
fortalecer – que, no fim de contas, é uma outra forma de elevar simples propósito de estabelecer uma similitude semântica com
a Humanidade à condição de leme e tema das suas demandas. o título e o desenvolvimento do romance. Antes cumpre a função
«A força que abala o mundo e o sonho reconstruído», escrevia de fazer cair sobre o próprio homem a sua condição, que é, si-
Vergílio Ferreira no prefácio que elaborou para a sua tradução multaneamente, uma condenação e um fascínio: a fugacidade da
Cédric Villani
Cédric Villani é professor de Matemática na Universidade de Lyon, mas passa uma boa parte do
tempo em Paris a dirigir o Instituto Henri Poincaré, uma organização conjunta do Centro Nacional
para a Investigação Científica (CNRS) e da Universidade Pierre e Marie Curie (Paris VI). É conside-
rado uma estrela da ciência mundial após ter ganhado a Medalha Fields, o prémio mais importan-
te na sua área, equivalente a um Nobel, com a diferença de que o laureado não pode ter uma idade su-
perior a 40 anos. Ele tem pouco mais do que quarenta, embora aparente menos. É novo mas veste
à antiga: o vestuário vintage que usa lembra um personagem de Oscar Wilde, onde o elemento mais
estranho é uma aranha negra na lapela sobre cujo significado ele mantém o mistério.
J
á o conhecia de uma troca de e-mails, mas só o vi ao vivo a 10 Mesmo sabendo que estava cansado pela sua intensa agenda e pe-
de novembro passado, no dia em que o seu nome foi anun- las numerosas solicitações feitas pela comunicação social, pedi-lhe
ciado como membro de um conselho de sábios da União Eu- uma entrevista pessoal e especial para a LER que ele não hesitou
ropeia, quando ele entrou no Teatro Nacional de D. Maria II em dar, quando lhe expliquei que era a melhor revista literária por-
para apresentar o seu primeiro livro em português. Foi no tuguesa e que os leitores da LER estariam decerto interessados em
Salão Nobre desse teatro, com as paredes esculpidas por Vhils, que saber mais sobre o seu livro acabado de sair em português e em
tive o prazer de apresentar, a meias com o matemático Jorge Buescu, conhecer a sua visão da criação matemática e da criação artística,
o seu livro Teorema Vivo, acabado de sair do prelo da Gradiva. Um li- em particular a criação literária. Está aqui o essencial da nossa
vro sem paralelo, que conta na primeira pessoa a descoberta de um conversa.
novo resultado matemático. No dia seguinte, sob a égide da Funda- O teu livro é tão original que não coube em nenhuma coleção.
ção Francisco Manuel dos Santos, proferiu uma conferência sobre a Não corresponde ao tradicional livro de divulgação científica.
criação matemática que encheu a plateia do Teatro Académico de Gil No entanto, pode servir esse propósito, mostrando, ao contrá-
Vicente em Coimbra (o vídeo está online no sítio da fundação). Antes rio do que é costume, o processo de fazer matemática, em vez
da conferência visitou a Biblioteca Joanina, que o encantou (não foi de desvendar alguns dos seus conteúdos. Como chegaste à ideia
tratado como um turista normal, mas sim como um convidado do ex- de escrever Teorema Vivo? Conheces algo de semelhante sobre
-diretor da biblioteca, com direito a subir a uma estante alta por uma a criação na matemática ou noutra área científica?
das espantosas escadas setecentistas) e tinha feito um breve tour de Na verdade, a forma deste livro foi realmente fora do comum.
Coimbra, que incluiu além da universidade, o Museu Nacional Ma- Olhando em retrospetiva, para o que eu tenho feito após a Meda-
chado de Castro, a Sé Velha, o Arco de Almedina e a Igreja de Santa lha Fields, acho que este foi o meu projeto mais ousado, porque
Cruz. O matemático, embora inseparável do seu portátil e do seu te- quebra algumas regras fundamentais de comunicação social para
lemóvel, mostrou curiosidade em conhecer Portugal, tanto a longa os cientistas. A ideia deste livro veio de um encontro com alguém
História como as pessoas de hoje. De vez em quando cotejava na in- que não era nem um cientista nem sequer alguém familiarizado
ternet alguma informação e tomava notas. Não era a primeira vez que com a comunicação científica. Foi Olivier Nora, o diretor da edito-
aqui vinha, pois no ano passado já tinha estado entre nós para fazer ra Grasset. Conheci-o num jantar alguns meses antes da Medalha
parte do júri do Festival de Cinema de Lisboa e Estoril. O facto de um Fields. Ele estava interessado em obter a colaboração de um mate-
dos grandes matemáticos mundiais (a New Yorker chamou-lhe mático que escrevesse um livro para a sua editora. Mas, quando lhe
«a Lady Gaga da matemática», título que ele não enjeitou) voltar a Por- dei vários temas possíveis – como, por exemplo: «Porque não um
tugal em menos de um ano mostra que gosta do País. livro popular sobre entropia?» –, recusou, dizendo que para ele
des esculturas de Miguel Ângelo – poderosa, não tão polida como (que a matemática era demasiado difícil para ser deixada apenas
a Vénus, mas de tirar o fôlego. aos matemáticos!). Os dois estavam a investigar a teoria da relati-
Na palestra em Coimbra tentaste mostrar a beleza intrínseca vidade geral, que realmente está na fronteira entre a física e a ma-
da matemática. Todavia a arte lida com emoções enquanto a temática. Na verdade, a relação entre essas duas disciplinas é mui-
matemática lida com a lógica. Como podem os dois ser reuni- to próxima e muito enriquecedora. A física fornece problemas
dos? Por outras palavras, como pode a questão das duas cultu- surpreendentes para os matemáticos considerarem e, muitas ve-
ras ser superada? zes, suscita novos conceitos matemáticos. Para dar apenas um
Claro que a matemática lida com lógica, respira lógica, faz-se com exemplo, a noção matemática de matriz foi desenvolvida para es-
tijolos lógicos. Mas também se enche de emoções quando se pre- tudar a estabilidade do sistema solar... Por outro lado, a matemáti-
tende descobrir o esquema geral de uma demonstração, quando ca fornece novas ferramentas, novas ideias, novas demonstrações;
se procura, se pesquisa, se questionam os colegas e o Universo. Tal- no caso da teoria da relatividade geral, a teoria não poderia ter sido
vez uma analogia ajude: se um arquiteto construir um grande edi- elaborado sem conceitos matemáticos muito delicados. No meu
fício, estará limitado pelas leis da física e o grande edifício poderá próprio trabalho tive de usar conceitos matemáticos que tinham
ruir se os pormenores não tiverem sido adequadamente cuidados. sido desenvolvidos para o estudo de outros problemas físicos. Tam-
No entanto, o arquiteto poderá ficar não só animado mas também bém tive de desenvolver alguns novos conceitos matemáticos.
emocionado no processo de construção, cujo resultado final pode E consegui fazer algumas previsões e compreensões físicas que não
ser uma obra de arte. Uma outra analogia: recentemente vi uma tinham sido alcançadas por raciocínios físicos diretos. Este foi cer-
exposição surpreendente de um artista que só constrói com peças tamente o caso do estudo que fiz com Laurent Desvillettes de osci-
de Lego («A arte do Tijolo» era o título). Bem, os blocos eram ape- lações da produção de entropia ou do estudo que realizei com Clé-
nas peças de Lego, muito geométricas, algo que não deixa nenhum ment Mouhot das origens do amortecimento de Landau não-linear.
espaço à imaginação. Mesmo assim, os pedaços juntos pelo artista Assim, considero-me realmente um matemático inspirado pela
transmitiam emoções fantásticas! Portanto, não há nenhuma con- física, ou um físico matemático; mas o importante é que a minha
tradição entre a lógica e as emoções: os dois entram no mesmo qua- visão e o meu estilo são os de matemático.
dro global embora em níveis diferentes. Estamos a celebrar os cem anos da teoria da relatividade geral
Queres comentar esta frase do físico inglês Paul Dirac: «É mais de Einstein e Hilbert esteve muito perto das equações finais.
importante ter beleza nas equações do que tê-las de acordo com E o mesmo tinha acontecido 10 anos antes, com Henri Poinca-
a experiência.» A beleza pode ser um critério para alcançar ré, no contexto da teoria da relatividade restrita. Porque es-
a verdade, no sentido de uma boa descrição da natureza? tiveram dois dos maiores matemáticos de sempre tão perto
A beleza é sem qualquer dúvida um critério para encontrar a ver- da meta e nenhum deles conseguiu bater Einstein? Será a in-
dade, ela pode guiar e ajudar. Esse facto tem sido verificado em mui- tuição de um físico realmente assim tão diferente da de um ma-
tos casos e tenho-o observado também nas minhas pesquisas, já temático?
desde a época em que andava a investigar problemas relacionados Acho que Poincaré alcançou a meta mais ou menos ao mesmo tem-
com o crescimento da entropia na equação de Boltzmann: o cami- po que Einstein, no caso da teoria da relatividade restrita, no senti-
nho mais belo é muitas vezes o caminho certo. No caso de Dirac, o do em que ele obteve as fórmulas corretas assim como tudo à vol-
seu dito tem um swing especial uma vez que a busca de uma bela ta delas. A principal diferença residiu na interpretação: Poincaré
equação o levou à descoberta de uma equação muito relevante e pensou que as fórmulas eram uma espécie de truque, ao passo que
da antimatéria! Einstein considerou que elas eram a verdade. Einstein era extre-
O pai da física Galileu escreveu que «o Livro da Natureza está mamente talentoso na matemática e confiava na matemática; um
escrito em caracteres matemáticos». Tu trabalhas na fronteira de seus pontos fortes foi precisamente a capacidade de acreditar
entre a física e a matemática, procurando ler esses caracteres. nos resultados matemáticos como sendo a verdade. A história de
Sobre a relação entre a física e a matemática, o grande mate- Hilbert é, penso eu, um pouco diferente: tinha havido uma forte in-
mático alemão David Hilbert afirmou que «a física é demasia- fluência recíproca, mas toda a motivação para o problema vinha de
do difícil para ser deixada apenas entregue aos físicos». Estás Einstein. E não se deve esquecer que Einstein publicou parte
de acordo? da sua teoria com o seu colega Marcel Grossman, que era um ma-
A frase de Hilbert tem uma aura especial, que tem a ver com a sua temático. Será difícil chegar a conclusões com base em apenas dois
concorrência com Einstein, o qual bem poderia ter dito o contrário casos. Ainda assim, decerto que existem algumas diferenças entre
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o Chinhas está na linha, a ladrar para o com-
boio, a pedir lá na linguagem dele que espe- confirma ao olhar em redor que há um uma dúzia de telhados que se sobrepõem na
rem, que pode até demorar algum tempo, quinto andar com duas janelas iluminadas linha do horizonte. De igual modo falam de
mas dali não passam; o seu faro, ou o horário e um terceiro com uma meia janela de luz. boa exposição solar quando apenas um único
dos comboios que ele também conhece, dão- Depois quando sai vê que mais duas janelas raio de sol atravessa a sala ao fim da tarde para
-lhe conta de que o dono ainda não saiu. na esquina do prédio em frente se ilumina- logo ceder ao império do crepúsculo. Nunca se
– Pronto Chinhas, pronto. Lindo Chinhas, ram como é hábito. A cidade é bifronte e tem acusará de impropriedade esta forma de dizer.
lindo. – E o casal não cumpre o planeado. um rosto exterior com fachadas pardacen- Por certo que é mais uma boa intenção tão
Anos mais tarde, quando Messias Pereira tas que se pontilham de luz ao começar dos confiante como fazer florir as jarras e acredi-
for levado para a sua última morada, logo dias úteis e um outro rosto interior e sono- tar na transfiguração do espaço circundante.
à entrada de Pailobo, o Chinhas há-de lá ir lento que olha de dentro através das janelas Quem procura as casas e julga supor os
todos os dias, passando o seu corpo delgado para a rua. Conhecer a cidade é encontrar as ritmos da sua vida interior para depois os fi-
de rafeiro por entre os intervalos do portão. duas faces desse rosto dúplice. Mas quem gurar num texto sabe que essa demanda
poderá ver o seu rosto de dentro e as suas pode tomar a forma de uma obsessão mas
manhãs domésticas? O interior das casas é não crê que daí possa vir mal ao mundo.
R um mistério nunca desvendado e trazê-lo ao Chega até a pensar que a inspiração mais
Carta de Torres Novas texto só por artes da imaginação que como não é do que uma obsessão bem tratada.
Ivone Mendes da Silva se sabe é um fraco consolo. Quem conhece o lugar das casas sabe que
Quem percorre as ruas sem se cansar do iti- há casas que permanecem inacabadas. São
O problema da habitação nerário repetido fá-lo pela evidência do tempo urbanas capelas imperfeitas que ficaram pre-
que em camadas sobrepostas conta a história sas no tempo como um insecto preso no âm-
das casas e dos seus muitos anos ou mostra as bar e expõem aos olhos da rua os vãos sem
Quem conhece o lugar das casas sabe que há ca- cores ainda não desbotadas de uma constru- portas nem portadas que os vedem. Onde se-
sas que permanecem inacabadas. São urbanas ção recente. Belas são as casas que são concha ria a sala ficaram abandonadas umas tuba-
capelas imperfeitas que ficaram presas no tem- e asa e são filhas do tempo que as devora.Re- gens do aquecimento e os tectos sem estuque
po como um insecto preso no âmbar. conhece-as depois nos sites das agências imo- desistiram de esperar. Cá fora pelo jardim
biliárias descritas numa língua em que é pre- que nunca foi amontoa-se o entulho que nin-
uem acorda cedo e sai para a rua ainda ciso ser fluente para se entender o pleno guém tirou. São sofredoras essas casas e há
Q escura sabe de antemão quais as jane- sentido de algumas expressões. Dizem de quem desvie os olhos para não ver os braços
las onde haverá luz porque também têm uma vista que é deslumbrante e quem por lá que estendem sobre o passeio empedrado.
uma rotina diária as janelas das casas. Antes acorda todos os dias com o realçado deslum- E há casas desabitadas que vivem num
de entrar no café que acaba de abrir a porta bramento diante dos olhos apenas descortina abandono controlado à distância. São heran-
texto SeGUNDo o ANteRIoR ACoRDo oRtoGRÁFICo
ças incómodas e adiamentos diversos. Es- Quem olha para as casas levanta muitas Quem procura as casas tem a grande in-
preitam de algumas os cortinados puídos e vezes os olhos para as persianas descidas no genuidade de pensar que nessas casas é que
ouve-se bater com o vento uma gelosia mal fe- alto de um prédio novo e tenta perceber se a vida é como deve ser. Mas quem procura as
chada. São impacientes essas casas cheias de há por detrás alguma luz ou movimento ou casas sabe bem que em algum canto uma
memórias com as quais desafiam quem pas- se continuam no ar os cheiros de tinta que casa deve ter duas janelas altas sobre a rua e
sa pela rua. habitam as casas nunca habitadas. E não que de lá seja visível a mudança das estações
As casas são as rugas da cidade. Linhas tendo como sabê-lo desenha em pensa- e a dança das árvores quando houver vento.
de riso ou marcas de dor e por elas se conta mento o interior das casas no alto dos pré- E sabe que vistas da rua em frente as duas
como correu o tempo e o caprichoso suce- dios novos e abranda o passo porque imagi- janelas altas hão-de estar iluminadas nas
der dos acasos. nar requer caminhos lentos. manhãs dos dias úteis a uma hora certa.
R
Carta de Londres
Clara Macedo Cabral
Euphorium
A partir de um café de bairro em Londres.
Interrogações sobre o capitalismo global.
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geiras de saladas, quiches e sopas. Refinou a
decoração. «Manners maketh man» está es- mente. O Euphorium tem agora uma deze- A cadeia Euphorium acabou vendida em
crito a giz num quadro de ardósia frente a na de réplicas disseminadas por Hampstead, 2015 a uma cadeia de supermercados (Tes-
um sofá de cabedal ao estilo Chesterton. Os Kensington, Camden ou Angel, bairros resi- co) por 37 milhões de libras. O que significa
clientes que ali se sentam pagam para senti- denciais de uma afluente classe londrina. que, mesmo amortizando o investimento
rem esta fusão entre o contemporâneo hip e Talvez o sucesso se explique por ter sido total, os donos fizeram uma fortuna e se qui-
o tradicional british. Entre as regras de refi- uma cadeia pioneira em acondicionar mães serem podem reformar-se aos quarenta,
namento britânico o quadro de ardósia debi- e crianças. Das primeiras, onde avistei mães jovens sob a aura do sucesso. Quantos em-
ta: «Encete um diálogo acerca do tempo a fim a amamentar em público, fraldários, carri- preendedores se podem gabar do mesmo?
de espaventar o silêncio:» Bom, não foi bem nhos que entram e saem, crianças que gati- Mérito deles, sem dúvida, mas só numa ca-
sobre o tempo mas sobre os negócios do Eu- nham enquanto as progenitoras esticam e pital com a dimensão de Londres, e uma
phorium que um dia me apanhei à conversa esgarçam o tempo até o volume de som não escala de vários milhões de consumidores,
com Danny, um dos sócios fundadores. Já lá mais poder ser ignorado. Abandonado se atinge um resultado tão estrondoso:
vão uns bons 15 anos. E há que reconhecer à pressa, o café retoma a normalidade acús- 37 milhões de libras esquadrinhados do bal-
que, de então para cá, o plano de expansão tica, mas o espaço acusa as marcas do fura- cão de uma padaria.
que ele me desvendou e ao qual sempre vo- cão com charcos, pedaços de bolo e pacotes Isto parece bom, à primeira vista. Os ne-
tei alguma dúvida, foi executado magistral- de açúcar disseminados pelo chão. gócios são feitos para serem bem-sucedidos.
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dos literários e culturais. Alguns conceitos aí
apresentados foram absorvidos pelo discur- mances refletiam também as suas preocupa-
so corrente, uma medida fiável para avaliação
Umberto Eco ções com a linguagem e a comunicação e as
(1932-2017)
do impacto de um trabalho académico. Após consequências funestas que podiam advir da
a publicação de O Nome da Rosa (adaptado falta de preparação dos cidadãos para lidarem
ao cinema por Jean-Jacques Annaud em cussões políticas e sociais mais relevantes do com tentativas de manipulação, como é notó-
1986), Eco foi alternando os romances com nosso tempo. Nesse aspeto, foi o exemplo do rio em O Pêndulo de Foucault, O Cemitério
ensaios e a coordenação de obras de referên- cada vez mais raro intelectual público empe- de Praga ou Número Zero, o seu último ro-
cia (sobre a Idade Média – o seu tema predi- nhado em causas como a condenação da mance no qual faz um diagnóstico sombrio
leto –, a beleza e a fealdade), participando Guerra do Iraque ou as críticas à berlusconi- sobre o jornalismo contemporâneo. Umber-
sempre de forma bastante intensa nas dis- zação da política. De certa forma, os seus ro- to Eco morreu a 19 de fevereiro.
«A poesia tem uma sensualidade infernal.» «A guerra está à nossa porta mas as músicas «Em Portugal, andamos todos a ver quem é
Maria Bethânia, cantora. O Globo. de hoje são lamechas.» que arranca os olhos a quem.»
Zé Pedro, músico. Diário de Notícias. Mariza, fadista. Diário de Notícias.
«No nosso tempo há uma sacralização
das vítimas. São convertidas em heróis.» «O maior orgulho da minha vida não são «Não me apetecia nada morrer amargurado.»
Javier Cercas, escritor. i. os livros, é ter o amor dos meus soldados.» Jorge Silva Melo, autor e encenador. Diário de Notícias.
António Lobo Antunes, escritor. Jornal de Negócios.
«A edição não é uma ciência, é antes uma «Só para explicar de que trata o romance
questão de gosto.» «A cultura da nota é nociva.» são precisos 45 minutos. E, no entanto,
Sonny Mehta, editor. El País. Tiago Brandão Rodrigues, ministro da Educação. toda a gente fica surpreendida com
Diário de Notícias. a velocidade a que avança o livro.»
«O assédio sexual na ciência começa Robert Falls, encenador do Goodman Theatre, de
geralmente assim: uma mulher (uma «Um dos meus sonhos de sociólogo era Chicago, que adaptou 2666, de Roberto Bolaño (1100
estudante, uma técnica de laboratório, uma assistir a um concerto de Tony Carreira.» páginas), para a nova temporada. The New York Times.
professora) recebe um e-mail e percebe que Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios
a linha onde vem o “assunto” é um pouco Estrangeiros. Diário de Notícias. «Eu tenho uma ideia que não sei se está
estranha: “Preciso de falar contigo” ou confirmada, mas creio que toda a situação
“Os meus sentimentos”. As primeiras linhas «O conflito do século XXI é entre os fanáticos de tensão, medo e claustrofobia
referem-se ao estado físico e mental alterado e nós.» desencadeada em Lima naqueles tempos
do seu autor: “É tarde e eu não consigo dormir” Amos Oz, escritor israelita. O Globo. [os de Alberto Fujimori na presidência]
é um clássico, embora “Talvez seja das três mostrou o sexo como uma tábua de salvação
doses do conhaque” também seja popular «A crítica? Ela é sobretudo mal no meio do caos, uma forma de fugir
nas universidades.» fundamentada e mal escrita. É pegar da realidade. Uma busca do prazer para
Hope Jahren, professora de geobiologia e autora do livro ou largar. Louvores, grandes frases escapar de todo aquele horror político.»
de memórias Lab Girl (Random House). The New York na capa do livro?'Irrelevante. Na verdade Mario Vargas Llosa, sobre Cinco Esquinas,
Times. eu não entendo muitos dos comentários o seu novo romance. El País.
sobre os meus livros. Os meus amigos
«A chance de um romancista em auto- não costumam lê-los. Devem achá-los «Exprimir preocupação sobre o racismo
publicação ter uma recensão ao seu livro deprimentes. Não me importo. Eu acho que é uma nova religião, e concentrar-se em
«Há de haver sempre um caminho «Os políticos, que me fazem concorrência «O Brasil é também um grande mercado
armadilhado entre o autor e o seu leitor, desleal, fazem rir mais do que eu.» de livros para colorir. O país passou por
graças aos agentes, editores à percentagem, Francisco Ibañez, cartunista, criador dos uma escassez de lápis de cor.»
técnicos de marketing, números de vendas personagens Mortadelo e Filémon. ABC. Susanah Calahan, analista. The New York Post.
© Pedro Vieira
«Como o Estado tem agora uma base de dados completa com os consumos nas farmácias, pode projetar
de forma bem precisa as pensões que vai pagar nos tempos que se seguem ao período de declaração do
IRS porque pode prever, com um algoritmo relativamente básico, quem é que está prestes a bater a bota.
Mais, como tem as faturas do resto, pode correlacionar facilmente com o consumo de carne, batatas fritas,
fast food, vinho, etc. A gestão da coisa pública pode tornar-se perfeitamente eficaz.»
João Pires da Cruz, físico. Observador.
na Amazon, por aí fora. A vida era «Não se devem transpor conclusões de «Frankenstein faz-nos tremer um pouco,
mais fácil quando os editores não pediam artigos científicos para a legislação nacional, mas logo a seguir sentimos uma simpatia
uma sinopse, mas simplesmente liam porque se se tentar fazer isso é um passo irresistível e até ternura por ele.»
o romance (sobretudo isso: tinham tempo para o desastre.» Fernando Savater, filósofo. El País.
para lê-lo) e tomavam uma decisão.» Mário Centeno, ministro da Economia. Diário
Fay Weldon, escritora. The Independent. de Notícias. «Sem medo não há criação.»
Rosa Montero, escritora. Le Monde.
«O homem sem memória, sem filosofia e «Há dias Kafka e há dias Agatha Christie.
sem escrita não é nada. Também não é nada Há dias em que se vai passear acompanhado A um tonto não há forma de convencê-lo a
sem tristeza, sem fatalismo, sem violência e por D’Artagnan e Athos, e outros dias pelo que deixe de ser tonto. É preciso descer ao seu
paixões. Como um sequestro da política pela Rei Lear.» nível. E,nesse nível, os tontos são imbatíveis.»
economia e um sequestro da liberdade Javier Marías, escritor. El País. Arturo Pérez-Reverte, escritor. ABC.
© vitorinio Coragem
recomeçar todos os dias. O primeiro beijo.
Um exemplo de elegância.
O sistema de 128 trigramas, 64 hexagramas
e 384 máximas que compõe o I Ching e que
faz dele o mais fascinante e elegante livro uma linha invisível no chão. Ou seja, em qual- O palavrão que usa mais vezes.
da história dos livros. quer lado. Neoliberalismo.
Um exemplo de fealdade. A que político daria sempre o seu voto? O fim de semana ideal.
Deixarmo-nos convencer de que não há alter- Àquele que soubesse restituir um lugar à Natureza, livros, amigos, criançada, boa mú-
nativas para o atual sistema económico. imaginação, à utopia, e a um projeto coletivo. sica e telemóveis desligados.
A resposta internacional à crise dos refugia- Terrenos que a História encheu de minas; O lugar ideal para passar férias.
dos. Salvar bancos e corporações e deixar pes- ainda assim, lugares necessários. Fé... férias? Interessante. Como assim?
soas no desamparo. As tentativas de patentear Que proibição alimentar lhe seria mais cus- A sua finest hour.
sementes. Esquecermos que o nosso corpo tosa? Está mesmo a chegar!
e o corpo da terra são o mesmo corpo. O esta- Viveria bem do ar se o ar fosse docinho. Um jogador de futebol.
do geral de passividade indignada – implodir- Quem lhe suscita inveja? Zidane no filme de Douglas Gordon...? Não
mos porque já não sabemos como explodir. Todos os que ultrapassaram o medo da rejei- presto nenhuma atenção ao futebol.
Um livro para oferecer ao pai. ção e conseguem aparecer tal qual como são. O que escolheria para última ceia?
Este Natal ofereci ao meu pai As Primeiras Um passeio no parque ou uma noite na Estar rodeada por amigos, família, e por todos
Coisas (Bruno Vieira Amaral) e os Cadernos ópera? a quem algum dia bem-quis.
de Memórias Coloniais (Isabela Figueire- Uma ópera no parque e um passeio na noite. Que livro a impressionou mais recentemente?
do) e à minha mãe o Azul-Corvo (Adriana Cerveja, vinho tinto, vinho branco ou whisky? A Noite e o Riso de Nuno Bragança e As Teo-
Lisboa). Vinho most definitely tinto. rias Selvagens de Pola Oloixarac.
Em que país gostaria de ter nascido? A música que nunca lhe sai da cabeça. Um disco eterno.
Na Lapa lisboeta, a 21 de junho de 1982, O tirititan-tan-tan-tah típico da abertura de Dummy, Portishead. Há lugares da minha
aí pelas três da tarde, se pudesse ser... uma Alegría, um dos muitos palos do baile adolescência que ainda me retêm.
Em que país gostaria de morrer? flamenco. Um epitáfio.
Num momento em que esta intoxicação com Um insulto. «Quem não amou / assim? Quem não amou?
a ideia de nação tivesse perdido o sentido, «Pagar não pagamos; mas damos-te visibi- / Quem? / Quem não amou está morto»
e que tivéssemos parado de nos guerrear por lidade.» (de um poema de Eugénio de Andrade).