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apresenta:

Florencia Bonelli

G
GRRH
H –– G
Grruuppoo ddee R
Room
maanncceess H
Hiissttóórriiccooss

Disponibilização/Tradução/Pesquisa: Dri Kellen


Revisão Inicial: Lizzy
Revisão Final: Joana Rafaela
Formatação: Ana Paula G.

1
Resumo
Buenos Aires 1810.
Artemio Fúria não é
um homem comum. É
um gaúcho cujo nome
se pronuncia com
respeito e temor em
todas as esferas da
sociedade. Entre 1806
e 1807, seus
centauros e ele
serviram nos exércitos
do Juan José de
Pueyrredón para
expulsar os ingleses.
Sua influência entre os
patrícios é decisiva.
Diz-se que, com um
estalo de seus dedos,
pode revoltar a toda a
campanha. Quando
começa a gerar a
Revolução de maio de
1810, a facção
patriótica, a que
deseja a
independência do Rio
da Prata, convoca-o
para lutar pela
liberdade. Contar com
as hostes do gaúcho
Fúria pode significar a
vitória.

2
Maravilhoso!!!
A estória começa no ano de 1790, na região do Rio da Prata, Argentina, quando o menino de dez
anos Sebastian de Lacy assiste impotente a morte de seus pais e o sequestro de sua irmã mais
velha. Ele é salvo e acolhido pelo padre Ciríaco, seu mentor e protetor ao mesmo tempo em que
passa a viver entre os índios ranqueles, deles extraindo sua postura selvagem e habilidosa nos
arreios de um cavalo e o manejo das coisas do campo, ao lado de seu irmão índio, Calvú. Logo se
torna um gaúcho respeitado e temido, virando uma figura de liderança muito importante na
Revolução de Maio de 1810, que conduziu a região à liberdade da coroa espanhola.
Sebastian torna-se Artemio Fúria, mas nunca esqueceu o lema de sua família irlandesa: "Não
esqueça quem você é". A vingança se torna o objetivo de sua vida.
Rafaela Palafox, é uma jovem da alta sociedade que passa restrições financeiras quando o seu
pai é exilado por causa de seus posicionamentos políticos. É conhecida como Rafaela das flores,
porque se torna habilidosa na produção de perfumes, remédios e produtos cosméticos, cujo
dinheiro servia para sustentar a si e a sua família, diga-se, uma ingrata é hipócrita família.
Quando a fazenda La Larga fica abandonada, Rafaela precisa reerguer os negócios, e por ações
do destino, Artemio Fúria surge em sua vida. Ele a ajuda a recuperar La Larga, mas acima de tudo
lhe desperta uma atração intensa. Rafaela fica fascinada pela beleza nórdica do gaúcho, que
exala imponência e virilidade, e eles vivem uma tórrida paixão. A autora corta a respiração do
leitor com cenas sensuais quentíssimas. Um amor intenso, vibrante, possessivo, que não conhece
limites.
A narrativa é dividida em três partes. A infância de Artemio, o encontro com Rafaela, e sua vida
como herdeiro na Irlanda. Passado e presente se mesclam, contanto micro estórias e flashbacks
imprescindíveis à compreensão do enredo. Nenhum detalhe é banal. Também somos premiados
com a aparição do casal Roger Blackraven e Melody, vários anos depois de sua união, coisa que
adorei.
Devo dizer que me emocionei e sofri ao mesmo tempo com esse livro surpreendente. E faço logo
uma advertência: Não é para os corações frágeis, pois alegrias e tristezas se mesclam, causando
um rebuliço no interior do leitor mais aficionado, o que é o meu caso.
Quem já conhece o estilo da escritora argentina Florencia Bonelli sabe que ela aprecia um bom
drama, onde nada é o que parece ser.
“Me Llaman Artemio Furia’’ está à altura da qualidade narrativa de O Quarto Arcano - que amo,
mas o supera sob o ângulo da carga dramática e intensidade.
É um livro de superlativos, onde o sofrimento dos protagonistas só é suplantado por um único
elemento: O amor. Lindo. Amei.

Adorei o livro.Uma história linda e densa! Tem trechos tão tristes que dá vontade de abraçar o
herói!
Sem palavras! Lindo!!!!

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D E D IC A T Ó R IA D A A U T O R A :

A meus Quatro Fantásticos: a Virgem Maria, Santa Terezinha de Lisieux, São Judas
Tadeu e Santo Expedito. Obrigado por estar, sempre comigo.
À memória de Sebastián Eder, em cuja honra nomeei o protagonista desta história.
Sebastián, dizem-me que abandonou este mundo deixando uma esteira de luz em
seu caminho. Aqui ninguém o esqueceu, pelo contrário, não passa um dia sem que
seus pais e seus irmãos não o recordem. Dou fé disso.
A meu doce Tomás, é obvio.

‘’Quando voltar a passar a seu lado


quererei que seja tão perto
que quase te roce,
que seja tão perto
que sinta o perfume de sua pele dourada,
não o de fragrâncias enfrascadas,
o perfume de sua pele,
que ficasse impregnado
se eu desse em suas costas
centenas de beijos de amor.
Quando voltar a passar a seu lado,
quererei que esse instante
detenha-se no tempo,
que esse instante
perdure em meu ser,
sei que estou coberto de glórias eternas:
o sussurro de sua voz, o toque de suas mãos,
os seus beijos embebidos da brisa da manhã,
o seu ardente sexo cândido entre meus lábios,
ah..., se eu pudesse eternizar o momento!,
faria-o com um encanto suave...
como as pétalas frágeis do jasmim,
como o vôo rasante da gaivota sobre o mar,
como a suavidade de sua pele,
deslizando-se em minhas mãos.’’

Marcelo Dava Masi

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Prólogo

Memórias de uma infância roubada

A dezessete léguas ao sudeste da cidade de Córdoba, nas cercanias do rio


Ctalamochita, 6 de junho de 1790.
O padre Ciríaco Aparicio se agachou junto aos três corpos. Um homem, uma
mulher e um menino. Os três mortos a julgar pelos semblantes de lábios azulados
e a expressão inerte de suas feições. Girou apenas a cabeça para a propriedade em
ruínas, cujas paredes despediam fumaça. Calculou que os corpos se achavam a
umas dez varas, e se perguntou como teriam terminado ali.
De novo centrou o olhar nos cadáveres. Não eram nativos; deduziu-o pela cor de
seus cabelos, de um vermelho muito peculiar o da mulher e de um loiro quase
esbranquiçado o do homem e o do menino. "Com certeza", refletiu, "são saxões".
Superada a primeira impressão, notou que, em realidade, ao menino quase não
lhe via o rosto dado sua posição, abraçado ao peito do homem, a cabeça meio-fio
sob seu queixo e as pernas recolhidas. Moveu-o com delicadeza. Tinha a face
esquerda manchada com sangue seco, e lhe bastaram poucos segundos para
descobrir que o sangue não pertencia à criatura, mas sim provinha do pescoço do
homem, de um corte profundo na garganta.
—Degolaram-no-murmurou ainda incrédulo.
O menino não apresentava feridas visíveis. A mulher, sim. Tinham-na
esfaqueado no ventre. "Deve ter sido uma formosa mulher", pensou, e estirou a
mão para acariciar a exuberância de seu cabelo, de uma tonalidade que ele nunca
tinha visto, acobreada com brilhos de ouro.
—Foram os índios-decidiu, e agitou a cabeça em sinal de desalento.
Ele os conhecia bem, sabia de seus atentados e ataques. De vez enquanto
roubavam o gado e incendiavam as estadias. Embora um pensamento o levasse a
duvidar: jamais teriam assassinado a uma mulher tão formosa; a teriam levado
para concubinato. Os pampas, os ranculches em particular, enlouqueciam a vista
da carne branca das huincas, como chamavam as cristãs. Essa mulher teria
despertado a concupiscência do cacique ao mando do ataque.
Submerso em dúvidas e em pesar, o padre Ciríaco se incorporou com as pernas
doloridas e voltou a estudar a paragem, de árvores baixas e pastos ressecados
devido à estação do ano. A cinqüenta ou sessenta jardas da casa em ruínas, em
direção ao rio, havia um curral de madeira vazio, com a porteira aberta. Roubaram
os animais; vacas, possivelmente, ou cavalos; mulas, talvez; essa região da
intendência de Córdoba do Tucumán, cujas adjacências ao rio ofereciam pastos
ideais para a invernada destes animais, provia às minas de ouro e prata do Peru e
de Potosí de sua principal besta de carga. Uma mula mansa custava mais que um
cavalo.
O sacerdote disse: "Devo dar uma sepultura cristã a estes desventurados", e,
enquanto analisava como cavar três covas quando não contava sequer com uma
pá, teve a impressão de escutar um gemido. Voltou-se de modo brusco,

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convencido de que o vento, que lhe enredava nas orelhas, tinha-o enganado. O
menino se movia sobre o peito do homem e emitia curtos gemidos, quase sem
fôlego.
— Criatura do céu! — jogou-se junto a ele para tomá-lo entre seus braços,
perturbado ante a idéia de que o teria enterrado vivo — Acorda, criatura! Acorda!
Abre os olhos!
Tirou-se o poncho1 (tipo de roupa gaúcha) de lã e o envolveu; estava gelado.
Manteve-o apertado para lhe transmitir calor e o sacudiu com movimentos
bruscos, como se embalasse a um bebê com impaciência. O menino não havia
tornado a queixar-se nem a mover-se. Ciríaco aguardava com ansiedade uma
reação. Correu até onde pastava seu burro e, a tapas, tirou a bolsa de couro com
vinho mistela. Tirou a tampa com os dentes e verteu umas gotas entre os lábios do
menino, que se agitou apenas e abriu os olhos.
—Bendito seja o Senhor! — e, apesar do trágico da circunstância, não pôde evitar
admirar o celeste desses olhos. "Não, celestes não", pensou. "São como da cor do
céu, como o céu azul celeste de Buenos Aires”. Ciríaco lhe deu mais sorvos de
mistela, que o pequeno aceitou por seu sabor doce. Precisava entrar em calor.
Tinha começado a bater os dentes, e o corpo convulsionava.
— Sulpicio, deite-se! — ordenou ao burro — Vamos, deite-se como digo.
Sulpicio se voltou, e, ao dar contra o chão, os alforjes2 emitiu um som com os
utensílios de lata que se entrechocaram. Acomodou ao menino perto do ventre do
burro e voltou a cobri-lo com o poncho.
— Retornarei em um momento. Não te mova daqui.
Decidiu fazer uma fogueira, certo de que se o pequeno não se aproximasse de
uma fonte de calor morreria de frio. Ao retornar, soltou a lenha e um impropério: o
menino não se achava junto ao burro. Olhou em direção aos cadáveres e ali o viu;
arrastou-se, abandonando o poncho na metade caminhou sobre a grama.
— Màthair! Athair! — escutou-o soluçar, e lhe deu um nó na garganta ao
perceber a amargura dessa voz doce.
Não compreendia em que língua se expressava. Balbuciava em sua debilidade, e
Ciríaco logo distinguiu Màthair e Athair que o pequeno insistia com particular
aflição. Ajoelhou-se junto a ele, com lágrimas nos olhos, e o separou dos
cadáveres.
—Basta pequeno, basta — tentou acalmá-lo com voz quebrada, enquanto lhe
sujeitava a cabeça e o escutava chorar. "Estes devem ter sido seus pais", deduziu
— Pare, pequeno, não chore. Seus pais se foram, mas agora você tem a mim. Eu
cuidarei de ti.

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Espécie de bolsa grande dividida em dois compartimentos.

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Horas mais tarde, Ciríaco enxugava o suor e contemplava os montículos que
formavam as duas tumbas. Tinha sussurrado uma curta oração e coberto os
corpos com apuro, antes que o menino despertasse. Não tinha resultado fácil
cavar com uma enxada de mão virtualmente consumida pelo fogo; não obstante,
agradecia ao céu o achado entre as ruínas da casa. Deve ter sido uma grande
propriedade, incomum nessas paragens deixadas da mão de Deus. Nesse
momento, no que suas paredes começavam a esfriar-se, apresentava um
espetáculo sórdido, que afundava a solidão do entorno.
O menino seguia dormindo na mesma posição, contra o vento, protegido pelo
calor de Sulpicio e do fogo. Tomou o jarro e bebeu um sorvo de ervas sem apartar
o olhar da criatura.
—Como te chama? — sussurrou.
Não tinha conseguido lhe arrancar uma palavra. Depois de acalmá-lo, tratou de
lhe surrupiar os detalhes da tragédia até cair na conta de que mal entendia o
castelhano. Perguntou-se que idade teria, se contaria com familiares, se teria
presenciado a massacre. Este pensamento o inquietava. Ele conhecia uma menina
que, depois de ver morrer seu pai nas mãos de uns malfeitores, não recuperou a
fala nem o sorriso. "O que devo fazer? Senhor, me ilumine com seu Espírito",
suplicou, apertando a cruz do rosário. Devia dar parte às autoridades. Como o
forte mais próximo se encontrava há vários dias de viagem e em uma direção
distinta da que ele seguia, denunciaria o crime em seu caminho de volta a Buenos
Aires, uma vez que tivesse visitado as tolderías do cacique ranquel calelian, onde
se dedicaria a averiguar se os índios tinham que ver com o assalto.
Levantou o olhar. O menino o observava desde seu improvisado leito junto a
Sulpicio. Sorriu-lhe, sem arrancar nenhuma emoção a esse rosto de traços
angélicos. Contemplava-o com receio, como se o estivesse avaliando.
— Eu me chamo Ciríaco. E você, não me dirá seu nome? —ante o silêncio,
repetiu a pergunta, soletrando. A mudez continuou — Vem — disse — quero te
mostrar algo. Tem força para caminhar? Sim? Bem.
Caminharam até os estaleiros que os separavam dos montes.
— Aqui jazem seus pais.
— Màthair. Athair — o escutou sussurrar.
— Quero que te despeça deles já que à alvorada deixaremos este lugar. Deve lhes
desejar que estejam na glória do Senhor, rezará por isso, e lhes prometerá que
será muito bom Cristão. Quer que te deixe a sós?
Como resposta, o menino lhe apertou a mão. Teimava em manter a vista no chão.
Seu corpo, rígido, estremecia-se ao tentar sufocar o pranto; as lágrimas caíam e
regavam a tumba de seus pais.
— Pater Noster, qui é in caelis — começou a rezar Ciríaco — sanctificétur nomen
Tuum. Adveniat Regnum Tuum...
— Fiat sua voluntas — lhe uniu o menino—, sicut in cai-o et in térra...
Deixou-o acabar o pai nosso em latim, admirado de sua pronúncia e da
segurança com que o recitava. Assim tinha recebido educação e era Cristão,
pensou. Tratar-se-ia de um herege, como a maioria dos saxões, ou de um católico?
Rezou a ave Maria, e o menino o seguiu; o mesmo ocorreu com o Glória ao Pai.
Terminadas as orações, permaneceram calados, comovidos e tristes. Golpeou-o a

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intensidade da pena dessa criatura; resultava tão evidente e tangível que o
alcançava, envolvia-o e o sumia em uma profunda depressão. "Não é justo que
padeça horror semelhante", queixou-se, afligido por outros pensamentos nos quais
Deus e sua misericórdia soavam conceitos vazios.
Ciríaco se agachou frente ao pequeno e o tomou pelos ombros para obrigá-lo a
girar-se e enfrentá-lo. Contemplaram-se, enquanto as lágrima banhavam a face
lisa e rosada do menino e a bronzeada e barbuda do sacerdote. Ciríaco o abraçou,
esmagando-o contra seu peito, sentindo como seu pequeno corpo se sacudia por
causa do pranto. Separou-o de repente arrancou de si o lenço de seda para lhe
secar os olhos e lhe soar o nariz.
— Toma — disse, enquanto mexia no bolso da batina.
Abriu o punho e lhe entregou as pertences de seus pais, dois anéis e um relógio
de corrente.
— Olhe, pus os anéis em um cordão para que possa levá-los a pescoço, assim
não os perde — e lhe passou o cordão pela cabeça — Quanto ao relógio, quer levá-
lo contigo ou prefere que eu lhe guarde isso?
O menino estudou por um bom momento o relógio que ocupava a palma da mão;
não precisava levantar a tampa de ouro para recordar a frase em seu interior. To
my beloved son Horatio. Aferrou-o pela corrente e o devolveu ao sacerdote.
Retornaram onde Sulpicio estava, e em tanto Ciriaco alimentava o fogo, inquiriu
como ao passar:
— Você arrastou a seus pais fora da casa?
Com um cenho, deu-lhe a entender que não compreendia. Reiterou a pergunta,
usando outras palavras, soletrando.
— Sim — respondeu o menino.
Apesar da surpresa-se tratava da primeira palavra em castelhano que
pronunciava — Ciriaco continuou com naturalidade:
— É muito forte — O pequeno não mostrou interesse na lisonja ou não a
compreendeu — Qual é sua língua? Em que idioma fala?
— Em Màthair.
— Màtbair, sua mãe? — o menino assentiu — E seu pai? Ele falava no idioma de
Màtbair? — negou com a cabeça — Ele falava em castelhano — deduziu, e obteve
uma nova negativa.
— Athair ensina para mim espanhol. Com o Athair falo como Athair.
Ciriaco improvisou uma comida que sabia muito bem. O menino, entretanto,
apenas a provou.
— Olhe o que tenho — disse o sacerdote, e lhe entregou um pedaço de torta feita
com farinha de patay3 — É para um amigo, mas com certeza não se incomodará se
te dou um pouco. Vamos, dê uma mordida. É doce como o mel.
Gostou e, pouco a pouco, com mordidas pequenas, foi comendo a massa.
— Quem queimou sua casa? Sabe?
O gesto que transformou as delicadas feições serviu para que Ciriaco se
convencesse de que tinha testemunhado o ocorrido. "Que horrores teriam
gravados em sua mente e em seu coração?" Não insistiria.
— Improvisar-te-ei um leito e dormirá junto a Sulpicio.
O menino não desejava dormir porque sabia que, se baixava as pálpebras, as

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Prato típico da Argentina.

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cenas apareceriam.

A favor da luz âmbar que despedia o fogo, o pequeno estudava o anel que tinha
pertencido a sua mãe. Senhor bom — assim o chamava porque não se lembrava
do seu nome — descansava perto dele. Ronca. "Como Athair." Um sorriso
despontou em suas comissuras ao recordar quanto se queixava Màthair. Athair
não voltaria a roncar. O anel que brincava entre seus dedos se apagou até que as
lágrimas lhe escorreram pelas têmporas.

—Màthair, quem te deu esse anel?


—Seu avô, faz muitos anos. Deu de presente a cada um de seus filhos. Um a seu
tio Fidelis, outro a seu tio Jimmy e outro a mim. Só o meu era de ouro; os de seus
tios eram de prata.
—É estranho.
—É o anel do Claddagh, famoso na Irlanda, o país onde nascemos, Sr. Athair, sua
irmã Edwma e eu. São duas mãos sustentando um coração com coroa. Vê? — o
menino assentiu — É um anel que se entrega em sinal de amor e amizade. Eu o uso
deste modo, na mão direita e com o coração para dentro porque meu coração já não
me pertence.
— Não te pertence, Màthair?
— Não. Pertence a Athair. Olhe, querido, note aqui dentro. Pode ver o que está
gravado na parte interna do anel? Seu avô fez gravar meu nome aí, o mesmo com os
nomes de seus tios.
O menino leu pausadamente:
—E-me-rald.
—Sim, Emerald.
—Está no idioma de Athair — sentiu saudades o menino.
—É verdade. Estava proibido o gaélico quando eu nasci, ainda o está. Do contrário,
me teriam chamado Smarag, que é esmeralda em gaélico.
— Por que estava proibido, Màthair? — Emerald sacudiu os ombros em um gesto
de desconhecimento — Mas você fala assim, em gaélico, Màthair.
—Meus pais falavam em gaélico, e seus tios e a mim, para que nossa língua não
morresse. Era muito arriscado, deve sabê-lo. Os ingleses poderiam nos haver
pendurado por isso - riu, com cumplicidade — Às vezes o arriscado resulta divertido.
O claddagh se deslizou pelo tato e se chocou com o anel de seu pai. Brincou um
momento, esticando o cordão e fazendo girar ambas as peças, até que tomou o anel
de seu pai e em que pese a conhecê-lo de cor, analisou o desenho.
— Em heráldica, a cor vermelha se conhece como gules. Vê, filho? O vermelho e o
dourado são as cores do brasão de minha família.
— O que é isto, Athair? — perguntou, assinalando a silhueta que dominava o anel.
— Um dragão. Nota-o? Está lançando uma labareda pela boca.
— Sim, noto-o. E que sujeita com suas garras?
— O dragão é o porta-bandeira que leva o pendão com o que se distingue o exército
de minha família, que formou parte nas tropas de Guilherme, o Conquistador, que
invadiu a Inglaterra no ano 1066. Guilherme vinha da Normandia, uma região da
França. Por isso, nosso sobrenome é francês. Aqui não poderá distingui-lo, está

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muito pequeno, mas no pendão está escrito o mote4 de nossa família.
— O que diz, Athair?
— Quis seu ipse sis memento.
O menino o contemplou com seriedade, o olhar fixo no do homem.
— Lembre-se de quem você é — traduziu em inglês segundos mais tarde.
— Bravo! É muito hábil para aprender outras línguas.
Ainda sorrindo, orgulhoso do completo de seu pai, quis saber:
— Para que serve o mote, Athair por que devo recordar quem é?
— O mote, como o indica seu nome, é o que nos mantém em movimento, o que nos
assinala para onde vamos, o que nos guia pelo caminho da vida. Nosso mote te
ensina que deve recordar que é um ser único e extraordinário, por cujas veias corre
um sangue milenar, ao longo de sua vida, Sebastian, deverá recordar quem é para
nunca sentir temor. Você, meu filho, por ser quem é, realizará coisas muito grandes
e nobres.
Contra seu desejo, o menino adormeceu.
***
Gritos o despertaram. Incorporou-se na cama e permaneceu quieto; ainda reinava
a noite. Conteve o fôlego para distinguir do que se tratava. Não estava acostumado
aos gritos. Partiu descalço e, à medida que abandonava o setor das habitações e se
aproximava da sala principal, as vozes altas e o pranto de sua irmã Edwina
cobravam nitidez. Escutava com precisão a voz de seu pai, a de sua mãe e a de
outras pessoas. Apareceu sem dar-se a conhecer e ficou perplexo ante a cena. Sua
irmã lutava por escapar das mãos de um homem alto, com uniforme militar, que seu
pai, em ocasiões anteriores, tinha chamado dom Martín; este a mantinha, sujeita
pela cintura e pego a seu corpo. Outro homem, menor e magro, com traje de citadino,
ocupava-se de submeter a sua mãe, Por último, Antenor Ávila, o mordomo do campo,
a cargo do cuidado das mulas, apontava para seu pai na têmpora, que não parecia
atemorizado, pelo contrário, vociferava e agitava os braços para remarcar sua
arenga em uma atitude desmamada que desconcertou ao menino. A careta
distorcida e feia de seu rosto, ele nunca a tinha visto.
O pânico como o frio, que subia por seus pés nus e lhe alcançava o estômago,
mantinham-no petrificado depois da porta. Esforçou-se por entender do que
falavam, sem êxito, por culpa de seu pobre castelhano. Quando Antenor falava
devagar, ele compreendia; nesse momento, todos o faziam ao uníssono, aos gritos e
às pressas.
Reconhecia esses senhores, a dom Martín e ao outro; tinha-os visto em duas
ocasiões em que visitaram seu pai com muitos papéis que desdobravam na mesa da
sala. Depois dessas reuniões, Màthair e Athair terminavam com má cara, cara de
preocupação. Quanto ao jovem Antenor, tornou-se mau; seguia lhe apontando a seu
pai e lhe lançava olhadas com ódio.
Perguntou-se o que devia fazer. Queria ajudar e não sabia como. Limitava-se a
observar a cena, sentindo-se tolo e covarde, quando, em realidade, desejava ser o
herói. O desespero lhe pareceu pior que o medo. Tampou a boca para sufocar um
alarido quando seu pai meteu uma cotovelada no estômago de Antenor e saltou
sobre dom Martín para lhe arrebatar Edwina. Começaram a lutar de um modo feroz,
a tudo ou nada, valia qualquer ardil, um chute, uma dentada, um arranhão, um

4
A autora menciona el mote, não soube como traduzir adequadamente essa expressão.

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puxão de cabelo; aborreciam-se e tinham decidido se destruir, pessoas morreriam;
inclusive o menino, que contemplava quase com fascinação, tinha consciência do
definitivo dessa luta.
Edwina se jogou sobre as costas de dom Martín e lhe cravou as unhas no rosto. O
homem uivou e se arqueou para tirar-lhe de cima. A moça caiu, e se escutou um som
seco e letal quando sua cabeça bateu contra os tijolos do piso. A mãe vociferou em
gaélico: "Está morta! Está morta!", impossibilitada de socorrê-la dado que o homem
magro ainda a sujeitava. O pai se lançou sobre a jovem, gritando seu nome,
chorando. Dom Martín insultava ao tempo que passava um lenço pelas feridas do
rosto.
—Athair! —alertou-o o menino, muito tarde, pois não pôde deter o golpe que
desferiu em Antenor na nuca e que o atirou de barriga para baixo.
—Acabarei com este inglês de merda! —advertiu dom Martín, e se posicionou de pé
sobre o homem, com as pernas separadas. Levantou-lhe a cabeça pelos cabelos do
alto da cabeça, lhe arqueando a nuca até que seus olhos escuros deram com uns de
intenso azul. O militar sorria, embora que aquele sorriso fosse um mostrar de
dentes. O menino advertiu que não havia medo no olhar de seu pai, só ódio e
orgulho. Dom Martín desembalou sua faca e lhe falou com ouçam.
—Sua filha, suas terras, seus animais, tudo me pertencerá! —passou o fio da arma
pelo pescoço de sua vítima, lhe abrindo uma incisão de orelha a orelha.
A partir do gole de sangue que saltou do pescoço de seu pai, o menino não viu nem
escutou nada, e ficou sumido em um espaço escuro e denso, com sons amortecidos,
como os que se produzem sob a água. Separou os joelhos e contemplou por vários
segundos a urina que se encharcava entre seus pés e os calções que pegavam às
pernas. "Fiz nas roupas", pensou, e se pôs a chorar. "Tenho quase dez anos e fiz
nas roupas." Pouco a pouco, cobrou consciência de que sua mãe lançava alaridos e
se sacudia entre os braços de seu captor. Ficou olhando-a, surpreso ante a
metamorfose que tinha convertido a essa mulher doce, de tom moderado, em um ser
desconhecido e aberrante. Desejou que calasse, que permanecesse quieta. Dom
Martín parecia desejar o mesmo, já que o viu dirigir-se para sua mãe para desferir-
lhe uma tapa e tomá-la pelo pescoço. Soltou-a quando um chute da mulher o
alcançou entre as pernas. Uivou e insultou, dobrado sobre seu ventre. Levantou-se
por fim, lentamente, com a face vermelha e a testa coberta de suor.
— Maldito filho de uma cadela — disse sua mãe em gaélico, e a voz que empregou
provocou um tremor ao menino.
Dom Martín se deteve como enfeitiçado ante o fogo desse olhar. Essa língua
estranha devia lhe parecer dura, primitiva, a de uma bruxa. Até ao menino
atemorizou a imagem dessa mulher magnífica, com a cabeleira avermelhada, os
braços estendidos sobre a cabeça, enquanto jogava uma maldição ao militar que o
conduziria a um final sinistro.
— Maldito seja — continuou a mulher, sempre em gaélico — e maldita seja sua
descendência, e a descendência de sua descendência, pelos séculos...
Sua mãe não pôde concluir. Dom Martín lhe afundou a faca no ventre até que sua
mão ficou perdida nas dobras de sua roupa, branca um segundo atrás, que se
cobriam velozmente de uma tonalidade similar a do vinho. O menino observou como
sua mãe se enfraquecia nos braços do outro homem e o rubor de suas maçãs do
rosto se esfumava para tornar da cor do leite. Tinha morrido, soube com a
contundência de um golpe. Ficou pensativo, afligido pela idéia do futuro, tão
absorvido que tomou vários segundos dar-se conta de que o chateava um som

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persistente e agudo, uns gritos dilaceradores, compreendeu por fim. Captou um
movimento veloz pela extremidade do olho e viu sua irmã Edwina ficar de pé com a
agilidade de um felino e jogar-se sobre dom Martín, gritando de um modo
antinatural, como se nunca pausasse para tomar o fôlego, tanto que por momentos
perdia a voz.
— Edwina! — exclamou o menino várias vezes, movido pela esperança ao ver sua
irmã com vida. Essa esperança, entretanto, provocou-lhe pânico; na nova aposta,
podia perder o único que ficava e como ele se julgava débil e pequeno para encarar
tanta fatalidade, começou a dar-se por vencido.
Dom Martín, enquanto lutava para controlar a moça, vociferou:
— Tragam esse menino! Que não escape! Ele sabe quem somos e poderia nos
conduzir à forca.
Viu-os voltear em sua direção, Antenor e o outro homem.
— Corre, Sebastian! Corre por sua vida! — ordenou-lhe Edwina em inglês.
Deu uns passos para trás, indeciso, seus olhos cravados nos de sua irmã,
contrário a abandoná-la, arrasado pelo terror e os maus pressentimentos, até que
uma nova ordem de Edwina o impulsionou a correr. Seus perseguidores o imitaram.
Antenor pisou no atoleiro de urina e terminou no chão. O outro se internou na casa.
Sebastian a conhecia de cor e teria podido percorrê-la com uma atadura nos olhos.
Alcançavam-no os lamentos do outro homem cada vez que se golpeava com um
móvel ou uma parede. Reconheceu o estalo do elo contra o piso e distinguiu a pouca
distância a silhueta de seu perseguidor ao resplendor do fogo do isqueiro. "Devo me
esconder", decidiu, e lhe veio à mente a história do tero que Antenor lhe tinha
contado. "O tero (pássaro dos pampas) é uma ave muito inteligente. Põe o ovo em um
local e grita em outro, bem afastado, para despistar seus inimigos, que querem
arrebatar-lhe. Entrou no quarto de seus pais, encaminhou-se para a veneziana e a
abriu. Retornou nas pontas dos pés para a porta junto à qual se achava um
pequeno baú de couro onde gostava de esconder-se; sabia como colocar as pernas e
o torso para caber. Levantou a tampa e se cobriu dentro.
— Menino Sebastián! — ao chamado de Antenor, apertou os olhos e os punhos,
juntou o peito e os joelhos, e conteve o fôlego — Menino Sebastián! — o capataz
pronunciava seu nome ao uso destas terras; não o tinha convencido de fazê-lo como
devia, acentuando a segunda sílaba e não a última. Sebastian.
— Por aqui! — exclamou Antenor, já dentro do dormitório — Olhem, a veneziana
está aberta. Fugiu ao campo.
— É imperioso encontrá-lo — declarou dom Martín — Antenor, vá você atrás desse
malfadado menino e traga-o
— Não podemos deixá-lo solto — escutou a voz do outro, do citadino — Conhece-te,
conhece seu nome e viu tudo.
"Não devo chorar", insistiu Sebastian, meio afogado pelo esforço de controlar a
respiração de modo que não saísse como um ronco choroso. Através de um orifício
no couro, Sebastian observava aos homens, de quem só podia ver parte do torso e
das pernas, dado que se achavam a escassa distância. Discutiam, e o motivo da
briga era Edwina. O mais magro e baixo, de uma textura que não competia com a de
dom Martín, demonstrava valor ao enfrentá-lo com aquele gesto de irritação.
Aproximou-se do baú, tanto que Sebastian viu os detalhes do anel que ocupava uma
falange no índice da mão direita. Sobre uma base negra, destacavam-se duas letras
em ouro, uma P e uma R, justapostas. Não lhe pareceu um desenho agradável, as
letras resultavam muito simples, como riscadas com regra, e não possuíam a graça

12
de um anel com rabiscos e floretes. Então, notou que lhe faltava o polegar, e a
impressão quase o delatam. Uma exclamação de dom Martín, que pôs fim à briga,
amorteceu seu gemido.
— Basta! Voltemos para a sala. — Decidi atear fogo à propriedade. Dirão que
foram os índios, e isso me proverá da desculpa para cair sobre algumas tribos.
— Se esse menino não aparecer, estaremos com problemas.
— Aparecerá — assinalou dom Martín, e Sebastian mordeu a mão para evitar os
tremores de seus dentes — O pequeno Sebastián de Lacy aparecerá.
Permaneceu naquela posição, as pernas ao peito e os olhos apertados, ouvindo as
vozes longínquas na sala, os gritos e insultos de Edwina, a gargalhada de dom
Martín, queixa-as do outro, até que um silêncio detestável o fez saltar do baú para
inspirar ar fresco com a avidez de quem permaneceu muito tempo sob a água.
Correu para o exterior, alheio ao vento frio do orvalho, e se deteve o distinguir a
figura de Antenor, escura e conhecida no resplendor da lua cheia; movia-se dentro
do curral e, montado em seu malhado (espécie de cavalo), tocava as mulas, as que
seu pai planejava vender no mercado de Sumalao o ano próximo.
Dom Martín vociferava ordens de sua montaria, exigindo a Antenor que se
apressasse, ao mesmo tempo em que lutava por subjugar os intentos de Edwina de
se jogar. O outro, também sobre um cavalo, aproximava uma tocha das palhas e
juncos da galeria que circundava a casa. Sebastian contemplava a cena com
desapego e percebia os sons e os movimentos com aquela estranha qualidade com a
qual tinha contemplado e escutado tudo essa noite, com pesadez nas extremidades,
com névoa nos olhos, com cansaço e desesperança.
O tangido do guizo da mula madrinha, que por fim cruzou a porteira com a tropa
atrás, desvaneceu-se no rugido da correria. Sebastian se sobressaltou, os músculos
lhe tremeram, a pele das pernas se arrepiou, de repente se deu conta de que tinha
frio, de que roubavam a sua irmã e às mulas e de que grossas chamas lambiam o
teto de sua casa. As lágrimas lhe rabiscavam a visão dos três cavaleiros, e ficou
olhando até que o negrume do horizonte devorou o último vestígio da camisola
branca de Edwina.
Correu para a casa e entrou pela veneziana do quarto de seus pais. A fumaça
invadia os cômodos, tirava-lhe o fôlego, machucava-lhe os olhos e a garganta, e,
entretanto, uma força desconhecida o impulsionava a salvar a seus pais do fogo. O
engenho lhe ditou que atuasse como os bois, que criasse um arnês, atou-o aos
corpos e os arrastou, um a um, fora da casa. Colocou sobre seu torso a corda com
que recolhiam as cortinas cada manhã e a passou sob as axilas primeiro da sua
mãe, depois de seu pai, e os tirou para a galeria. Repetiu a operação para afastar os
da propriedade em chamas. Ao terminar, arrasado, enjoado, decomposto, desmaiou
sobre os cadáveres. O tempo que tomou para recuperar a consciência bastou para
que sua casa se convertesse em uma fogueira gigante. O bramido das chamas e o
rangido das paredes e do teto ao desmoronar assustavam, e lhe ocorreu que do fogo
nasceria um monstro que caminharia até ele para destroçá-lo. Acomodou-se sobre
seu pai, fechando-se sobre si mesmo, apertando os olhos e cobrindo-as orelhas.
—Athair! Athair! —gemia em um sussurro apenas audível.

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—Athair! Athair!
—Acorda! Acorda!
O menino levantou as pálpebras subitamente, e Ciríaco distinguiu a íris injetada
e o matiz frágil das pupilas. Pôr-lhe a mão sobre a fronte e se deu conta de que
ardia.
— Sonhava com o ocorrido a seus pais, verdade? — esperou uma resposta em
vão, e não soube se calava devido a seu estado de delírio ou porque teimava em
não falar. "Tem medo", pensou, enquanto o incorporava para ajudá-lo a beber
água.
Amanhecia, de modo que Ciríaco levantou para preparar a marcha para o sul,
para as tolderías (aldeia indígena) do cacique Calelián. Durante a viagem acreditou
que o menino seguiria a sorte de seus pais. A febre, que se apoderava da sua
mente e de seu corpo, estragava-o e consumia. Passava a maior parte da jornada
inconsciente sobre o lombo de Sulpicio; geralmente pela tarde, ao pôr do sol,
atacavam-no acessos de fúria e se sacudia e gritava em outros idiomas. O
sacerdote contava com escassos conhecimentos e recursos para baixar a
temperatura e rezava ao Arcanjo São Rafael, protetor dos doentes, para que o
ajudasse a alcançar as tolderías e pôr o menino nas mãos da jovem machi (nome
dado a quem tem autoridade religiosa) Anuillán.
Chegados aos aduares do cacique Calelián, não resultou fácil que admitissem ao
pequeno de cabelos como barbas de milho e olhos da cor do céu, que se enfurecia
em seu delírio e amaldiçoava em línguas estranhas. Em seguida foi convocada
uma reunião onde o cacique, junto com seus capitanejos e lançadores,
aguardaram o veredicto das pucalcúes ou bruxas. Ciríaco experimentou um
grande alívio a manhã do quarto dia quando Calelián lhe comunicou o oráculo. As
pitonisas asseguravam que Pichín-Antü, ou Pequeno-Sol - assim o chamavam
dado a cor de seus cabelos — converter-se-ia em um anay (amigo) dos ranqueles e
que chegaria o tempo em que o chamariam peñi (irmão). Ciríaco encaminhou para
o toldo de Anuillán para lhe dar a boa notícia; a machi arriscava sua pele ao
cuidar de menino sem conhecer o veredicto das pucalcúes.
Encontrou-a no primeiro compartimento, assistida por suas duas filhas. Lavava
o corpo do doente e lhe cantava em voz baixa; o pequeno a seguia com olhos
mansos e respiração estável. O filho menor de Anuillán, Calvú Manque (Condor
Azul), perguntou-lhe em ranquel a sua mãe, quando esta terminou de cantar:
— Minha mãe, viverá Pichín-Antü ou se irá ao Mapú-Cahuelol — falava do País
dos Cavalos, o paraíso dos ranqueles.
— Viverá, Calvú. Asseguro-te que viverá.
— Permite que seja meu peñi?
— Se ele o desejar, assim será.
O sorriso de Calvú Manque iluminou seu rosto quando uns dentes brancos e
desiguais contrastaram com a pele escura. Ciriaco também sorriu e agitou a
cabeça.

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— Mari-mari 5 — saudou em voz baixa.
— Entre, padre Ciriaco — o convidou Anuillán.
— Obrigado, filha. Só quero que saiba que as pucalcúes disseram que o menino
pode ficar.
Embora a mulher logo que assentiu, como subtraindo importância ao anúncio,
Ciriaco percebeu seu alívio. Dirigiu sua atenção ao doente. Como todos os dias,
fincou-se de joelhos junto à cama de armar e lhe sorriu em tanto procurava sinais
de melhoria em seu semblante.
— Como te chama? — perguntou-lhe pela enésima vez e de acordo com o que
esperava, não obteve resposta; fazia dias que suspeitava que o menino ocultava
sua identidade de propósito, por medo — Pois bem, eu te porei um nome —
embora o tivesse decidido essa manhã, arranhou-se o queixo e elevou o rosto,
fingindo meditar — Já sei. Chamar-te-ei Artemio.
Entreviu o primeiro sinal de interesse quando as sobrancelhas loiras do menino
se elevaram.
— E sabe por que te chamarei Artemio? — o menino sacudiu apenas a cabeça —
Porque o dia em que te achei era 6 de junho, dia do mártir São Artemio. E como
Artemio significa íntegro, intacto, parece-me muito a propósito posto que eu achei
a ti íntegro e intacto — se inclinou e o beijou na frente, embargado por uma
ternura e uma emoção que nunca tinha experientado por ninguém.
Meio turbado, despediu-se de Anuillán e deixou cair o couro da entrada.
Caminhou para o único rancho da toldería. Viu de longe a seu ocupante, um
homem que não chegava aos trinta anos, de cabelos escuros e abundantes, e cujos
traços, embora endurecidos pelo sol e a aspereza do deserto, assemelhavam aos do
sacerdote. Dias atrás, logo que chegado às tolderías e logo depois de pôr Artemio
nas mãos da curandeira, tinha ido ao encontro desse homem, seu adorado irmão,
Belisario Aparicio.
— Ave Maria Puríssima — havia dito, ao uso dos habitantes dessas regiões.
— Sem pecado concebido — o homem jogou o cigarro pela metade, soltou as
mãos ocupadas e ficou de pé. Abraçaram-se e se aplaudiram as costas.
Iniciaram uma conversação tranqüila, com silêncios que Ciríaco aproveitava para
admirar a destreza de seu irmão na escultura do osso. Às vezes o tingia com aqua
regis, o que lhe conferia uma cor púrpura muito atrativa.
— Disseram-me que chegou com um menino.
— Encontrei-o em cima dos cadáveres de seus pais. Tinham-nos assassinado e
incendiado sua propriedade.
Belisario deteve o movimento do raspador sobre o osso e o reiniciou depois.
— Aqui te traga sua única debilidade — Ciríaco sorriu e lhe estendeu o pacote
que continha a torta de patay.
— Obrigada. Ponha aí — lhe indicou com a cabeça um toco que servia de mesa.
Dez dias mais tarde, Artemio saiu pela primeira vez do toldo de Anuillán. Calvú
Manque o levava do braço para evitar que caísse a causa do enjôo. Alcançaram o
rancho do Belisario a passos curtos.
— Mari-mari, dom Beli!
Belisario inclinou a cabeça em sinal de saudação e, quando a girou em direção
ao menino de Ciríaco — assim o chamava em seus pensamentos — o gesto lhe

5
Saudação indígena.

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congelou e ele, que principalmente não reparava em nada nem em ninguém, ficou
subjugado pela beleza incomum e feroz desse menino, em especial, pela
determinação com que o estudavam seus olhos turquesa.
—Qual é seu nome? —perguntou-lhe, em modo pausado, para que o entendesse.
—Chamam-me Artemio.
Essa noite, enquanto a família de Anuillán dormia, Artemio permanecia acordado
em sua cama de armar. Gostava de seu nome novo, sobretudo gostava do
significado e que o tivesse dado o senhor bom, ao que Calvú Manque chamava
padre Ciríaco ou padrezinho. "Artemio", repetiu em sua mente até que uma frase
em latim o interrompeu. Quis seu ipse sis memento. E a seguir evocou as palavras
de seu pai: Nosso mote te ensina que deve recordar que é um ser único e
extraordinário, por cujas veias corre um sangue milenar. Ao longo de sua vida,
Sebastian, deverá recordar quem é para nunca sentir temor.
— Eu sei quem sou, Athair — sussurrou, para não despertar a seu amigo Calvú
Manque — Nunca o esquecerei. Agora devo me chamar Artemio.

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PRIMEIRA PARTE

O PRESENTE

Perto da cidade de Trim, no condado de Meath, Irlanda, no vale do Boyne. Janeiro


de 1820

Capítulo I

Carta da América do Sul

Silêncio, pronunciado pelo rasgo de uma pluma. Que bem há em viver sem ti?
Escreveu a mão grande e tosca, com cicatrizes esbranquiçadas, embora de unhas
bem cuidadas.
Um lenho se desmoronou na estufa. O homem levantou o rosto e observou o
chiado até que o olhar de seu único olho se tornou ausente, sem pestanejar,
imóvel no fogo. Leu o escrito. Que bem há em viver sem ti? Essa manhã despertou
à alvorada, como acostumava, e possivelmente pelo estado rude do clima, seu
ânimo decaiu com o passar das horas e o conduziu por um atalho de memórias
das que se empenhava em fugir e que sempre o espreitavam, golpeando-o quando
sua vida começava a luzir encaminhada.
Calvú Manque abriu a porta do escritório sem anunciar-se.
— Artemio, aqui está.
Resultava infrutífero lhe pedir a um homem criado em tolderías e ranchos, onde
o limite entre o interior e o exterior o fixava um couro ou um pedaço de sarja, que
chamasse antes de irromper nas habitações. Também resultava infrutífero lhe
pedir que usasse seu nome, Sebastian, e não Artemio, como o tinha feito por trinta
anos. Um gesto comunicou a pergunta: "O que quer?".
— Elisabetta e eu iremos ao lago. Dugan — se referia ao chefe de jardineiros —
disse que está congelado. Acompanha-nos?
— Vão vocês. Tenho algumas diligências que atender.
— Essas duas cartas que recebeu enquanto tomávamos o café da manhã lhe
manteve aqui toda a manhã — comentou Calvú Manque, com a insolência que
ninguém teria empregado para dirigir-se ao neto do conde de Grossvenor.
— Por que não pergunta o que desejas saber e me deixa em paz Calvú?
— Está bem, perguntarei. Quem lhe tem escrito?
— O conde de Stoneville e dom Juan Martín.
Calvú Manque arqueou as sobrancelhas ante a novidade.
— Dom Juan Martín de Pueyrredón? — Artemio assentiu — O que diz?
— Assegura-me que não conseguirá manter-se por muito tempo como diretor

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supremo das Províncias Unidas do Rio da Prata. Em sua opinião, o impulso dos
caudilhos provinciais terminará com sua gestão. Pede-me que viaje a Buenos
Aires.
Calvú Manque o olhou com fixidez, conhecendo o impacto de um pedido dessa
índole. Meditou antes de expressar:
— Com certeza anda querendo que lhe organize a campanha em Buenos Aires,
para que não caia em mãos inimigas.
— Passou muito tempo, Calvú. Já não conto com esse poder.
— Sempre conta com ele, Artemio — objetou o índio — Mas — admitiu — não
seria seguro que vá ao Rio da Prata. Poderiam te colocar na prisão.
—Dom Juan Martín assegura que já se encarregou disso. Minha causa está
fechada.
— Ah, que grande notícia!
— Diz que as declarações do padre Ciríaco e de Cristiana Romano resultaram
concludentes. Tudo terminou.
— E o conde de Stoneville? — interessou-se Manque — O que há com ele?
— Informa-me que contratou a tripulação para meu navio. Tudo está pronto para
o lançamento em Liverpool.
— Já decidiu que nome vai pôr a seu navio?
— Smarag — disse, e lhe explicou que significava Esmeralda em gaélico, e Calvú
Manque não precisou que lhe esclarecesse que Esmeralda tinha sido o nome de
sua mãe.
— Elisabetta ficará triste. Acredito que pensava que batizaria seu navio com seu
nome — lhe explicou, sem olhá-lo, com a vista no animal que dormia junto ao
fogo, sobre um tapete de Aubusson. — Quinto! — chamou-o.
O felino despertou e, sem levantar a cabeça, olhou com lânguido desinteresse.
— Vamos, Quinto, Vem comigo. Iremos ao lago. Você gostará-o animal fechou os
olhos e ronronou — Converteu-se em um puma anti-social e antipático! Como seu
dono! — queixou-se Calvú Manque antes de desaparecer depois da porta.
A sala ficou novamente no silêncio, apenas alterado pelo crepitar da lenha, que
pronunciava o caráter letárgico do ambiente.
Artemio se agachou junto ao animal e lhe massageou o pescoço com ambas as
mãos. Seu adorado Quinto, seu íntimo e velho amigo. Não gostava de pensar que
tinha vivido suficientemente e que, para um puma, era ancião. Sem deter as
carícias, rememorou a manhã de princípios de 1806, quando o encontrou à beira
do Quinto rio, nos pampas, junto ao corpo destroçado de sua mãe, provavelmente
vítima de um jaguar. Igual a ele, Quinto tinha sobrevivido a seus pais por um
milagre. "Não conseguirá domesticá-lo", advertiu-lhe Calvú Manque naquela
ocasião. "Não é minha intenção", assegurou Artemio. Protegê-lo-ia até que o
animal se valesse por si só, como o pai Ciriaco fazia com ele.
Alcançada a juventude, Quinto aparecia e desaparecia a seu desejo, e em
ocasiões chegava com uma orelha pendurando ou o lombo em farrapos. Artemio o
curava com as artes que empregava para atender as feridas do gado, enquanto
ironizava: "Há estão disputando uma fêmea? A fé que não valem à pena, amigo!".
As mãos de Artemio se detiveram de modo súbito, e Quinto levantou a cabeça.
Grunhiu até que seu amo lhe emprestou atenção. Olharam-se com fixidez, e
Artemio advertiu que os olhos escuros e sonolentos do felino mudavam até adotar
um brilho amarelado e vivaz, e lhe deu de pensar que o animal sabia em quem
pensava, possivelmente até compartilhasse a lembrança da mesma cena, a que

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tinha tido lugar em um rancho de La Larga, tanto tempo atrás. Ficou de pé e
sacudiu a cabeça. Não recordaria, fecharia a mente ao passado, ele contava com a
moderação para obtê-lo.
Que bem há em viver sem ti? A frase o atravessou como um raio. Cruzou a
estadia e se deteve frente ao enorme vendaval que dominava o parque de
Grossvenor Manor. Elisabetta, de braço com Calvú Manque, dirigia-se ao lago.
Olhou o céu, de um cinza plúmbeo, e ratificou que o dia estava lhe afetando o
humor. E também a carta de dom Juán Martín. "Voltar para Rio da Prata."
Analisou sua própria imagem refletida no cristal da janela, e se disse que estava
velho, em setembro cumpriria os quarenta. Passou os dedos pelo emplastro negro
que lhe ocultava a concha vazia do olho esquerdo e acariciou a pequena cicatriz na
têmpora que marcava a saída da bala que o tinha deixado torto. Tinha fios
grisalhos, embora se dissimulassem entre seus cabelos loiros. Ligeiras rugas lhe
circundavam os olhos, e sua pálpebra direita, ainda mais pesada, zelava-lhe o
olhar. Descobriu que se acentuaram as linhas que nasciam junto ao nariz e
morriam nas comissuras. Eu gosto de suas comissuras6, senhor Fúria, são
marcadas, muito varonis. Eu gosto das beijar justo na dobra.
Apertou o punho contra os lábios e conteve a pausa, esperando a que essa voz se
desvanecesse, como quem espera que uma dor diminua. No profundo de sua
garganta, começava a perceber o perfume de um pescoço, de uma orelha, esse
aroma de rosas, laranjas e bergamotas, sutil, feminino, que acariciava as fossas
nasais para diluir um segundo depois. "O aroma de uma pessoa está ligado a sua
ausência", tinha expressado Elisabetta em uma ocasião.
Acabaria com essa tortura, sabia aonde conduzia, à desesperança, ao desgosto, à
loucura. Voltou com um giro brusco, e seu olhar se congelou no quadro que tinha
mandado pendurar a um lado do ingresso com o fim de contemplá-lo desde seu
escritório, e pelo qual tinha desembolsado uma fortuna-mais de trinta mil libras —
quatro anos atrás quando o disputou ao duque de Buckingham e Normandía no
salão do Sotheby's, em Londres, causando estupor à sociedade inglesa.
Bathsheba7 in her bath (Betsabé em seu banho), assim se titulava, uma obra do
pintor holandês Cornelisz Van Haarlem8, que o cativou logo que posou seus olhos
nele. Como se conjeturou que Sebastian de Lacy, esse personagem excêntrico,
coberto de mistério, que o velho Horatio de Lacy, décimo conde de Grossvenor,
insistia em apresentar como seu neto, era perito em arte, muitos teriam desiludido
ao saber que, em realidade, tinha-o comprado por impulso e que não tinha idéia
de quem era o tal Van Haarlem.
Deteve-se um passo da pintura. Seu olho direito se movia de um extremo ao
outro, enquanto estudava pela enésima vez os detalhes e recreava em sua mente a
cena que tinha motivado a compra. "Creóla, me passe a pedra-pome." "Menina,
quer que lhe ensaboe as costas?" "Sim, por favor. Utiliza o sabão de benjuí que
preparamos ontem. Cheira tão bem. Que bom é estar aqui, Creóla! Nademos até a
metade do lago. Você sempre gostou de nadar." "Parece muito contente hoje, minha
6
Marcas de expressão.
7
Betsabá em português. Personagem bíblico, foi uma das esposas de Davi, mãe de Salomão. Mencionada no livro de
Samuel.
8
Foi um pintor holandês.

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menina." "Estou-o, Creóla." "Fúria tem algo que ver com esta sorte?" Nuas, ambas as
moças, a branca e a negra, ficaram de pé e caminharam, a larga cabeleira da
branca lhe cobrindo as costas, até que a água ocultou suas silhuetas.
No exterior, a voz de Winthorp, o mordomo, que se dirigia à senhora Bayle, a
governanta, sacudiu-o de sua abstração. Acabava de sonhar acordado e, sem cair
na conta, tinha terminado por posar a ponta dos dedos sobre o tecido, sobre o
Betsabé; agora percebia a rugosidade que formavam as pinceladas de óleo. "Farei
tirar este quadro", decidiu.
Alcançou o escritório a passo precipitado e ocupou a poltrona disposto a
responder as cartas. Um frio, que nascia em seu interior, no centro de seu corpo, e
que se expandia por suas extremidades, superou a calidez do quarto. Sofreu um
estremecimento. Sua mão tremeu e soltou a pluma com impaciência, pulverizando
gotas de tinta sobre o papel. Apoiou os cotovelos sobre a mesa tomou a cabeça.
— Deus — sussurrou, mais colérico que triste.
Sua mente e seu coração se achavam em um solitário confinamento que o
amparava dos interrogantes, de outros e dele, que o protegia da sinceridade, que o
protegia de admitir que tinha morrido nove anos atrás no Rio da Prata, porque
embora conversava com amigos e familiares, atendia seus negócios, comia e bebia,
tinha sexo, até ria, tudo o desempenhava com uma alma morta, fria e inerte. Essa
capacidade, a de viver sem vida, tinha-a desenvolvido desde pequeno para
consolidá-la em sua época de gaúcho errante. Ela se apresentou um dia e
desbaratou a fortaleza com a que ele contava, a de viver sem sentir. Inclusive
varreu com seus ódios e rancores, ou o que é o mesmo, despojou-o da energia e da
fúria que habitavam nele. Ela tinha sido seu sol, seu farol, sua vida, e lhe tirou
tudo para esfumar-se da maneira súbita em que tinha aparecido frente a ele. Seu
espírito procurava liberação, seu coração procurava saciar a fome. Desejava
romper a fria couraça e vencer o confinamento. Queria viver, em que pese a tudo,
queria viver, como lhe tinha ensinado, embora para isso devesse desfazer-se dela.
Dela. Fazia anos que não pronunciava seu nome, nem sequer com o pensamento.
Não podia.
Que bem há em viver sem ti? Voltou a ler, e se perguntou por que o teria
escrito. Produziu um ruído estranho com a garganta, de desgosto, se condenado
por esse sinal de debilidade que sua natureza não admitia. Ficou de pé, e o
assento caiu atrás dele. Quinto levantou a cabeça de orelhas bicudas e o seguiu
com o olhar enquanto Artemio fazia uma bola com o papel e o jogava no cesto.
Levantou a poltrona e se acomodou nela. Molhou a pena no tinteiro e iniciou a
carta.
Grossven OT Manor, Irlanda. 5 de janeiro de 1820. Estimado dom Juán Martín,
escreveu.
***
Calvú Manque estudou de soslaio a sua companheira. "Simplesmente perfeita",
concluiu, enquanto apreciava a pele de sua face, que brilhavam com o brilho
suave e untuoso de uma pérola, o que destacava a cor de seus lábios magros.
Poucas vezes tinha apreciado feições tão delicadas e regulares, e uma figura tão
esbelta. A pequena mão enluvada, que descansava sobre seu antebraço,
transmitia-lhe calidez, enquanto a outra carregava à pequena Berna, a cadela sem
raça que tinha encontrado numa cidade na Suíça. Caminhava a curta distância
acompanhando Elisabetta, Mina, quem, em seu rol de acompanhantes se ocupava
de protegê-la da maledicência das pessoas, em especial do anúncio de seu

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matrimônio com o senhor Sebastian.
Calvú Manque assentia aos comentários de sua companheira, que lhe falava em
um inglês fluido e bem pronunciado, e até o tom de sua voz o subjugava, meio
grave, suave, quase um sussurro. "Aristocrático", resolveu, de acordo com o que
Artemio lhe tinha informado a respeito de Elisabetta Maria d'Adda, neta de
Amadeo di Savoia, duque d'Aosta, e de régia linhagem. De uns trinta anos,
Elisabetta desdobrava uma frescura em seu trato, desprovido das poses e os
artifícios da sua classe, que lhe tinha granjeado o carinho da família de Lacy, até
dos serventes, a quem se dirigia com consideração, chamando-os por seu nome e
utilizando muito seguido o discurso breve perpiacere ("por favor", em sua língua
mãe) e grazie, ao que os serventes tinham aprendido a responder prego.
Casou jovem com Andrew de Lacy, sobrinho favorito de Horatio de Lacy, atual
conde de Grossvenor e avô de Artemio, tinha enviuvado dez anos atrás quando
Andrew caiu morto na reserva de caça de Saint Aihsb, a propriedade dos de Lacy
no vale de Glendalough, golpeado na cabeça por uma bala perdida. O delegado do
condado de Wicklow, dada a importância da família envolta, iniciou investigações
que desembocaram na detenção de dois camponeses da aldeia de Laragh, a quem
se culpou de caçadores furtivos e se justiçou na localidade do Wicklow. Houve
descontentamento entre os aldeãos, que falavam de "cabras expiatórias" e
"imperdoável injustiça", e, embora se produzissem manifestações frente à
Prefeitura, a polícia montada as dispersou a pauladas.
Apesar de que a união com o Andrew de Lacy não deu frutos, Elisabetta se
manteve apegada à família de seu marido e passava largas temporadas em
Grossvenor Manor ou em Saint Aúish, que alternava com visitas ao palácio de seu
avô, o duque d'Aosta, no Turín, ou a sua cidade natal, Melam. Ultimamente, desde
que ela e Artemio tinham manifestado o desejo de contrair núpcias, Elisabetta não
se separava dele e só visitava sua família na Itália se Artemio, ou Sebastiano,
como ela o chamava, consentia em acompanhá-la.
— Senhor Manque — disse Elisabetta — faz quanto tempo que chegou à
Irlanda?
— Amanhã se cumprirá um mês, senhora — respondeu em um inglês de péssima
pronúncia.
— Parece que você e eu nos conhecêssemos toda a vida! Não crê assim?
— É certo. Sua amizade me honra.
— Já é tempo de que me chame Elisabetta. E eu poderia chamá-lo Calvú, como o
faz Sebastiano — Calvú Manque assentiu, com um curto sorriso — Prefere que
dirija a você em castelhano?
— Não, o agradeço. Fale-me em inglês. Obriga-me a praticá-lo.
— De acordo. Gosta da Irlanda?
— Muito, Elisabetta. Por isso volto cada vez que os assuntos em Buenos Aires me
permitem isso.
— Sempre esqueço que visitou a Irlanda várias vezes, como você e eu nunca
coincidimos... Espero que não tenha pensado em retornar muito rápido àquelas
terras longínquas do sul.
—Isso depende de Artemio.
—Artemio — repetiu Elisabetta — É um formoso nome, e acredito que lhe
assenta melhor que Sebastian — Calvú Manque guardou um silêncio deliberado —
Ele nunca fala de seu passado. Pouco sei de sua vida nos pampas. Pergunto-me se
existir algo que se empenha em esquecer ou se, simplesmente, não é afeto a falar.

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— A segunda — expressou Calvú Manque.
Detiveram-se frente ao lago congelado. Sem tirar o olhar da paisagem, Elisabetta
perguntou:
— Vocês são amigos há muito tempo, verdade?
— Em torno de trinta anos. Éramos pequenos quando nos conhecemos.
A italiana fixou a vista na do índio, e seus olhos celestes refletindo um brilho de
cobiça que, em certa forma, encheu-o de compaixão. Desde sua chegada em
Grossvenor Manor trinta dias atrás, Elisabetta tinha procurado sua companhia
para averiguar sobre o homem ao que essa noite em um jantar íntimo, prometeria
unir-se para sempre.
— Calvú Manque. É seu nome em sua língua mãe, verdade? Essa que, de tanto
em tanto, escuto-o falar com o Sebastiano, não é assim?
— Significa condor azul.
— Condor?
— Uma ave de minha terra, enorme. Com suas asas estendidas, pode alcançar
uma longitude de trinta e dois pés.
— OH! Que magnífica deve ser! — Calvú Manque assentiu — Quando penso
nessa terra tão longínqua onde Sebastiano se criou, imagino como uma espécie de
Paraíso. Embora ele nunca se refira a sua vida naquele lugar, eu intuo que o sente
falta, de que foi feliz lá. Sabe, Calvú? Invejo-o — admitiu, com essa sinceridade
que a caracterizava — Invejo o quanto conhece o Sebastiano. Ninguém o conhece
como você.
— É verdade, conheço-o bem, embora deva admitir que até eu me encontro
alheio às profundidades de sua alma. Artemio é um homem que prefere lamber as
feridas em solidão e é parte de sua índole erigir uma parede entre ele e as pessoas,
por muito que esta deseje ajudá-lo. Seu orgulho lhe impede de demonstrar
debilidade.
— Deve ter existido alguém a quem lhe entregasse seu coração, confiasse-lhe
seus pensamentos mais ocultos, suas dúvidas e insônias-o disse levantando a voz,
comunicando certa exasperação — Esse sacerdote, por exemplo, do que nos falou
tio Horácio.
— Ciríaco Aparicio? — Elisabetta assentiu — É como um pai para o Artemio e a
ninguém respeita tanto como a ele. Entretanto, o padre Ciríaco sempre se queixou
de quão mesmo você.
— Insisto em que deve existir alguém em quem Sebastiano confiasse.
"Existiu", pensou Calvú Manque.
Berna se moveu no braço de sua proprietária e começou a ganir e a ladrar. Em
seguida se ouviram ruído de cascos e a ordem de um cavaleiro que incitava a seu
cavalo.
— Sebastiano! — saudou-o Elisabetta, ao tempo que agitava o braço, mas
Artemio não a ouviu e continuou com sua carreira para os limites da propriedade.
Calvú Manque observou o perfil da Elisabetta, que seguia com muda reverência o
rodeio de seu prometido. Embora tenha suspeitado que essa mulher amava
Artemio, nesse instante soube que seu amor era infinito, sua devoção, eterna, e se
comoveu. Amar a Artemio Fúria não causava mais que pena.
Elisabetta, entretida em pensamentos mais gratos, admirava a mestria de
Artemio ao montar, um estradiota (referência à arte de montar), como tinha dito
em uma oportunidade seu cunhado William ao advertir o pouco apego a cadeira e
esse estribar imperceptível, apenas com a ponta da bota, as rédeas soltas, como se

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não soubesse o que fazer com elas. Assim o tinha visto pela primeira vez anos
atrás, quando sobressaía entre outros cavaleiros, soberbo em seus arreios, com o
emplastro negro sobre o olho esquerdo, o cabelo loiro e comprido que lhe varria os
ombros, e o casaco que, por ser justo, marcava-lhe os fortes ombros e a cintura
magra. Agora que o rememorava, voltava a experimentar o turbador impacto que
lhe causou sua presença, e a voz rouca, de dura pronúncia, com que a saudou e
lhe cortou o fôlego. Não se esquecia da pouca atenção que Sebastiano lhe tinha
dispensado ao descer da sela, limitando-se a uma saudação formal e impaciente,
para montar de novo e seguir seu caminho, e inclusive nesse ato, no de montar,
tinha-a cativado, pelo modo empregado, novidade tanto para ela como para
outros, que o contemplaram com caretas de assombro ao vê-lo sujeitar uma
mecha da crina do cavalo e, sem apoiar o pé no estribo, sem assistência, sem
subir ao banco de montar, em um só movimento, em um salto sem empurrão,
como se deslizasse para cima, terminando firme sobre a sela. Desde aquele dia,
tinha-o visto fazê-lo centenas de vezes, e ainda esperava a ocasião para entreter-se
quando ele saltava sobre o cavalo.
Já quase não o distinguia na paisagem, converteu-se em um ponto no horizonte.
Tentou recordar que traje de montar levava. O verde de caxemira, com lapelas e
punhos em pele de ante que lhe gostava de acariciar, e botões de ouro com o
escudo impresso dos de Lacy, de corte impecável, feito a medida em uma casa de
renome do Savile Row, em Londres. Gostava que Sebastiano tivesse aceito com
simplicidade e um pouco de ironia as imposições de seu avô, por exemplo, ser
membro no White's Clube, as festas no palácio do St. James, bailes no Covent
Garden e no Drury Lañe, as corridas de cavalos do Epsom Derby e da Ascot, em
troca de ao retornar à Irlanda, ele administrasse as propriedades de Me'ath e de
Glendalough a seu desejo. Nenhuma opulência alterava o conde de Grossvenor, e
prevalecia nele um ar de auto-suficiência e soberba natural que, com o tempo, a
sociedade inglesa tinha terminado por respeitar.
— Você não avisou, Calvú, que caminharíamos até o lago? — perguntou
Elisabetta por fim.
— Sim — admitiu o índio.
— Ah — se decepcionou a italiana — Sebastiano não terá encontrado prazer na
idéia deste passeio. Como sempre, preferiu montar Diomed. Berna, fica quieta! —
zangou-se de repente — Farejou Sebastiano — explicou a Calvú Manque, um
pouco consternada por sua explosão — não ficará nos braços se não ficar
tranqüila. Mina, per carità, cuide de Berna!
A mulher se aproximou com diligência e se ocupou da cadela.
— Surpreendeu-me a amizade entre a Berna e Quinto.
— OH, sim — sorriu Elisabetta — são grandes amigos, embora nem sempre
tenha sido assim. No princípio, Berna lhe temia. A indiferença de Quinto ajudou
que tomasse confiança. Nisso se parece com seu amo, em sua marcada
indiferença por outros. Agora, o Quinto velho — acrescentou depressa,
envergonhada pela acidez de seu comentário — tolera-a como um avô o faria com
um molesto neto. Posto que Quinto é muito ancião, verdade?
— Sim. Calculamos que tem entre quatorze e quinze anos, bastante para um
puma.
— É um animal doméstico naquelas terras?
—Não — admitiu Calvú Manque, e tomou pelo cotovelo para lhe sugerir —
Caminhamos para a outra borda? — Elisabetta assentiu — Não é doméstico

23
absolutamente, mas Artemio o cobriu sob sua asa quando pequeno e o converteu
em um gato gigante e bonachão.
Elisabetta riu, e demarcou que, mais à frente do bom aspecto de Quinto, em um
princípio tinha causado cenas de pânico entre a servidão e os convidados de tio
Horatio. Mina tinha ameaçado abandonar Grossvenor Manor.
— Como foi que Sebastiano cobriu sob sua asa a um animal selvagem? —
interessou-se.
A Calvú Manque o incomodou que se valesse de qualquer tema para lhe
mendigar informação, e voltou a compadecer-se dela quando, em realidade,
pensou, Elisabetta d'Adda não era mulher para ser compadecida a não ser
venerada.
***
Depois do almoço, Elisabetta entrou no escritório de tio Horatio, que fazia alguns
anos que converteu no refúgio e lugar de trabalho de Artemio. A estadia, de
dimensões similares às do salão de baile, albergava uma biblioteca que ocupava
três das quatro paredes; inclusive o entre piso, ao que se acessava por uma escada
de caracol, tinha prateleiras com livros do chão ao teto. Para ali se dirigiu
Elisabetta em busca de uma novela para matar o tédio; a pequena Berna preferiu
tender-se junto a Quinto, que dormia perto do fogo.
Em tanto acariciava com o dedo os lombos dos livros, Elisabetta repassava os
detalhes do jantar dessa noite, "nosso jantar de compromisso", disse-se, com um
sorriso que em seguida se desvaneceu, pois, embora a senhora Bayle lhe tivesse
assegurado que todo se encontrava preparado, ela tinha um peso na alma, uma
sensação premonitória que não lhe permitia gozar, talvez porque lhe resultava
mentira que, por fim, ela e Sebastiano confessassem seu amor ao mundo.
Debatia-se entre uma novela de Samuel Richardson, Chapéu de palha, ou uma
das peças teatrais de Moer, quando reconheceu o som pesado das botas de
Artemio sobre o assoalho, que se perderam por causa dos latidos da Berna.
Apareceu ao balcão que dava à sala e se apoiou na mureta de madeira e, embora
em um primeiro momento ia delatar sua presença, escolheu calar para observá-lo
brincar com a cadela. Vê-lo passear-se nu pelo quarto depois de que faziam o
amor lhe resultava tão prazenteiro como contemplá-lo brincar com os animais e os
meninos, pois em sua companhia, Artemio baixava o guarda. Mina lhe havia dito
uma vez: "Ninguém melhor que os meninos e os animais para pressentir se o
carinho é sincero", e devia ser certo já que pareciam intuir a sinceridade com que
ele se brindava, e procuravam sua amizade. Pensou nos filhos de sua cunhada
Prudence — Stephen, Albert e a pequena Sophia — que dormiam no quarto de
Artemio quando visitavam Grossvenor Manor, todos sobre colchões no chão, até o
próprio Artemio, que, ao fogo do lar, contava-lhes histórias dos pampas, enquanto
se empachavam de doces e malvaviscos. Os meninos dos arrendatários lhe
professavam igual devoção, e gostava de acompanhá-lo em sua corrida semanal,
apesar de que a contrariavam os aromas agudos de suas cabanas, o carvão e o
óleo de bolota9, e os modos servis dos camponeses, com tal de vê-lo sorrir quando
os pequenos corriam a seu encontro com uma confiança que poucos teriam
empregado com o neto do conde de Grossvenor.
O sorriso de Sebastiano, retaliado, pequeno, fugaz, bonito, como a que dirigia a

9
Óleo vegetal.

24
Berna nesse instante, roubou-lhe o fôlego, e experimentou ciúmes da cadela,
ciúmes das carícias que lhe oferecia, das palavras que pronunciava com ternura,
em que pese a sua voz áspera e grave a um ponto rude e pouco gentil.
Quinto abandonou seu lugar junto ao fogo e caminhou com passo indolente.
Deteve-se nas costas de Artemio, que seguia agachado brincando com Berna, e,
em um impulso pesado, apoiou as patas dianteiras sobre os ombros de seu amo
para lhe mordiscar a nuca e a orelha. Elisabetta ficou branda de emoção quando
Artemio corrompeu em uma gargalhada. "OH, Meu Deus, nunca me tire isso!",
desesperou-se, e em seguida sorriu e se limpou as lágrimas e se cobriu a boca
para reprimir a risada que lhe provocava o quadro de Artemio no chão, com
Quinto e Berna sobre ele, lhe fazendo cócegas.
— Pergunto-me se Quinto e Berna deixarão algo para mim - expressou.
Artemio abriu grande o olho direito ao descobri-la no entre piso.
— Quer te unir ao grupo? — convidou-a.
— Encantada.
Ao chegar ao andar de baixo, Artemio ficou de pé e acomodou o cabelo e a
jaqueta de caxemira verde. Berna saltava e ladrava em torno, enquanto Quinto
esfregava a cabeça no joelho de seu dono. Elisabetta estendeu as mãos e Artemio
tomou.
— O que te ocorre? — preocupou-se — Qual é o motivo destas lágrimas?
— Ao verte brincar com eles, deu-me de pensar em que possivelmente deseje ter
filhos.
Artemio quadrou os ombros, e Elisabetta notou que se esticava. Não a olhou
quando falou.
— Meninos? Sim, por que não? Se chegarem, serão bem-vindos.
Como todo o relacionado com o Artemio, meditou Elisabetta, o tema dos filhos
encerrava um mistério. Não estava segura de prosseguir, temia quebrar a magia
desse momento ao lhe perguntar por que nunca acabava dentro dela. Supunha
que se relacionava com um escrúpulo por preservar sua honra; chegar grávida ao
altar teria desatado um escândalo maiúsculo, e ao duque d'Aosta lhe teria dado
uma síncope.
— Não sei se poderei dar-lhe — admitiu isso.
— Vem. Vamos sentar junto ao fogo — tomou pelos ombros e a conduziu ao sofá
— Por que pensa que não me poderá dar isso.
—Estive casada três anos com o Andrew e nunca engravidei.
Artemio baixou as comissuras dos lábios em um gesto de indiferença.
—Elisabetta, não me caso contigo pelos filhos. Não importa se não me dá isso.
—Seu avô quer que desta união surja o décimo segundo conde de Grossvenor.
—Sabe que o título de minha família não significa nada para mim. Por outra
parte, se você não concebesse, o título passaria a Stephen, e isso me agradaria.
— Isso não agradaria a tio Horatio.
— Não mencione o meu avô — sussurrou perto do ouvido — mas duvido de que
ele esteja aqui quando Stephen se faça com o título.
Elisabetta sorriu e Artemio a rodeou com um braço e a aproximou de seu peito.
—Esperávamos-lhe à hora do almoço — reprovou ela.
—Certos assuntos com os arrendatários do norte tomaram mais tempo do usual.
— Vimos-lhe com o Calvú do lago. Chamei-te, mas não me ouviu.
— Amanhã caminharemos até o lago, se o desejar. Poderão nos acompanhar os
meninos. Adorarão patinar, embora não sei se o gelo estará grosso para suportar o

25
peso.
— O velho Dugan saberá nos dizer.
— Dispuseste os quartos para nossos convidados? —interessou-se Artemio —
Não esqueça que os meninos ficarão na minha.
Elisabetta lhe acariciou a face antes de lhe beijar o queixo.
— Sei e enquanto você e seus soldados ficarem, não poderei te visitar pelas
noites.
— Não poderá, é certo. Serei eu quem vai ver-te.
— Sim, faça-o, por favor.
Elisabetta deixou cair as pálpebras e aproximou os lábios aos de Artemio, que os
contemplou antes de acariciá-los com os seus. Tinham sabor de hortelã, e essa
peculiaridade o afetou. Inspirou de modo profundo e áspero antes que se
desatasse nele uma paixão que o transportou no tempo e no espaço, e pensou em
outros lábios, mais carnudos e grossos e se imaginou beijando-os, devorando-os, e
afundou sua língua para degustar o interior da mulher que permanecia apanhada
em sua mente.
— Sebastiano — choramingou Elisabetta — Faça-me amor. Por favor, aqui,
agora!
Seu nome em italiano o devolveu ao escritório de Grossvenor Manor, e precisou
de uns segundos para recuperar o controle. Mantiveram as testas apoiadas sobre
a do outro, golpeando a face com suas respirações descompassadas.
— Sua boca tem sabor de hortelã — articulou ao fim — Por quê?
— Tomei um chá de hortelã faz um momento. Por favor — a suplicou de novo —
ardo de desejo por ti.
— Não, não. Esta noite. Agora não. Alguém poderia entrar.
— Está bem.
Elisabetta jamais se contrariava nem discutia suas decisões; sorria e assentia,
em absoluta submissão, sem jogar mão de golpes baixos nem utilizar essas
concessões para tirar proveito. Sua beleza aprazível e delicada refletia o
temperamento pelo que a conhecia, essa doçura e boa disposição que tinham
terminado por seduzi-lo. "A mulher perfeita", disse-se, com amargo matiz, tão
distinta da que o atormentava em suas lembranças.
— Sebastiano, a felicidade para mim é saber que compartilharei o resto de minha
vida com o ser que amo. Está de acordo com este conceito?
— Sim.
— É feliz, então?
Para Artemio, a pergunta soou uma súplica. Assentiu, sorrindo, e depositou um
beijo na têmpora da Elisabetta.
— Pediu-lhe à senhora Bayle que acondicionasse o dormitório para Tessie?
Chegará breve.
—Sim — Elisabetta começava a aprender que a seu prometido o irritava a falta
de organização, não suportava as situações improvisadas e fazia um culto do
planejamento; tinha-o visto enfurecer-se quando suas disposições se alteravam —
Tudo está pronto para esta noite. Alegro-me de que Tessie tenha aceitado nosso
convite.
— Não foi fácil convencê-la. Meu avô lhe inspira pânico.
De acordo com seu costume, Calvú Manque entrou sem chamar. Elisabetta deu
um coice e Artemio lhe tirou o braço dos ombros.
— Desculpem — balbuciou o índio, a ponto de retirar-se.

26
— Entre, Calvú! Adiante.
Calvú Manque se localizou em uma poltrona, e iniciaram uma conversação sem
transcendência até que Winthorp, o mordomo, requereu a presença de Elisabetta
na cozinha. Perto da porta, a mulher notou a ausência do óleo de Van Haarlem.
— E o quadro de Betsabé em seu banho?
— Mandei-o tirar esta manhã — comunicou Artemio.
Elisabetta se debatia entre perguntar ou sufocar sua curiosidade; tinha
aprendido também que ao Sebastiano o chateavam os interrogatórios e as pessoas
intrometidas; zelava sua intimidade como um Leão mal-humorado e ao igual aos
animais, demarcava um território ao qual ninguém acessava. Não obstante, sua
curiosidade a impulsionou a arriscar a pergunta:
— Por quê?
— Fá-lo-ei rematar no Christie's — falava de uma das casas de arte mais
tradicionais de Londres.
Teria tornado a perguntar e escolheu calar, nem tanto para salvar da irritação de
Artemio, mas sim porque não queria conhecer a origem dessa determinação. Sabia
que o quadro do pintor holandês o afetava de uma maneira especial; em várias
ocasiões o tinha visto observando-o com uma intensidade que, em sua opinião, ia
além da simples apreciação de uma boa obra de arte. Perturbava-a que tivesse
decidido desfazer-se dele. "Outro mistério", disse-se, e fechou a porta do escritório.
Poucos conheciam o Artemio Fúria como Calvú Manque. O índio tinha a exata
percepção de sua índole e em cada gesto, movimento ou palavra de seu amigo,
sabia ler entre linhas e apreciar o que escondiam.
—Por que se surpreendeu sua mulher com o do quadro?
Artemio abandonou seu local no sofá e se dirigiu ao lar; tomou o atiçador e
acomodou os lenhos.
—Não sei. Possivelmente porque lhe agrada muito Van Haarlem.
—Então dê para ela.
—Não.
—Por quê?
Artemio partiu em dois um tronco e provocou uma chuva de faíscas que
morreram no chsipero de bronze.
— Porque hoje decidi que não me agrada. Na próxima semana — falou sem
pausar, e se deu volta, com o atiçador na mão — quando levar Tessie de volta a
sua casa, quero que acompanhe a Saint Ailish.
— Sua propriedade em Glendalough — comentou Manque — É um dos lugares
mais bonitos que conheço.
— Minha mãe nasceu nesse condado — apontou Fúria.
— Acompanhar-nos-á sua mulher?
O único olho de Artemio bastaria para colocar medo, refletiu o índio. A ele,
entretanto, não o intimidava essa olhada mal intencionado e o contemplou com a
passividade própria de sua raça.
—Mostra-te muito interessado em minha prometida...
—Far-me-ei de tolo. Como se não tivesse dito nada para mim — assegurou, sem
alterar seu comportamento tranqüilo — Desde que cheguei a esta casa, sua
mulher busca minha amizade para saber de ti. Anda-me parecendo que nem
sequer lhe há contado onde nasceu, menos ainda da Ra...
— Cala-te! — rugiu Artemio, e Calvú Manque se retraiu na poltrona, surpreso
pela saída de tom de Fúria — Não te atreva a pronunciar seu nome — o ameaçou

27
em um sussurro.
— Por quê? Posso recordá-la, ela também foi minha amiga, sabe quanto a quis.
— Fecha a boca, Calvú.
— Agora estou de acordo porque meu povo te chamava Fúria — notou que
Artemio apertava o punho em torno da ponta do atiçador e que seus nódulos
ficavam brancos — Tem que falar dela-se arriscou a insistir — Sabe o que diz meu
ñuqué, que à dor terá que tirá-la fora para que não se apodreça dentro e nos
arranque a alma. Artemio, me fale de...
— Não! — caminhou até ele lentamente — Cale-te! Não diga seu nome! Não o
suporto, não suporto escutá-lo. Você não entende nada — sentou no sofá, com a
cabeça, abatida entre os braços — Quero arrancá-la de meus pensamentos. Quero
que seu nome não se repita em minha mente. Quero que desapareça. Quero
esquecê-la. Está-me deixando — sua voz rouca perdeu firmeza — Depois de tantos
anos, ainda me enlouquece.
A confissão tomou Calvú Manque despreparado, jamais pensou que Artemio lhe
revelaria seu lado mais fraco. Passado um momento, ficou de pé frente a seu
amigo.
— Está mau, peñi (irmão). É impossível. Ela era tudo para ti. É burrice tentar
esquecê-la porque não somos patrões de nossas memórias. Recordará dela para
sempre. Conforme-se a viver com sua graça em sua cabeça.
— Sabe que resignei com coisas muito duras, Calvú. Sabe que o obtive.
Entretanto, com ela... Com ela não posso.
— Sua vontade é de aço. Bem sei eu. Poderia viver em paz com sua recordação.
Acontece que não quer. Tempestuosa era sua vida com ela, tempestuosa o tem que
ser também com sua recordação.
Calvú Manque decidiu abandonar a estadia ao advertir que os ombros de Artemio
Fúria se sacudiam em um pranto que tentava dominar.

28
Capítulo II

O jantar de compromisso

Winthorp e duas faxineiras se ocupavam de fechar as cortinas das janelas do


escritório, outra alimentava o fogo no lar, e o faziam em silencio para não
perturbar ao senhor Sebastian, empenhado em terminar a carta que no dia
seguinte, despacharia ao Rio da Prata.
Artemio levantou a vista e alcançou a ver, antes que Cindy corresse o último
pano de veludo, que os vestígios de cor tinham desaparecido do céu e que a
escuridão se abatia sobre sua propriedade. Chamar-nos-iam para jantar em breve,
e ali, na presença de amigos e familiares, seu avô anunciaria o compromisso.
Depois da briga com Calvú Manque essa tarde, estava mais tranqüilo. Havia-se
imerso em uma tina de água quente para combater o frio que se apoderava de
suas mãos, de seus pés e de seus membros cada vez que pensava nela e
imaginava. Assinou a carta com brio, como se com esse gesto renovado lhe
imprimisse vigor à decisão que acabava de comunicar por escrito e tirasse de cima
a melancolia que o tinha deprimido o dia inteiro. Orvalhou areia fina com a
salvadera sobre a folha de Manila para secar a tinta, dobrou-a e a fechou.
Estampou seu anel em lacre.
Ficou de pé, atraindo a atenção dos serventes, em que pese a que estavam
habituados a seus modos bruscos. Com a cabeça baixa e as mãos tomadas às
costas, caminhou pela sala, esforçando-se por ocupar sua mente com cenas
gratas, como a vivida horas atrás, quando a família de sua prima Prudence
Wallington chegou a Grossvenor Manor. "Sua vontade é de aço." As palavras de
Calvú Manque lhe infundiram confiança.
Tomou a taça com xerez que Winthorp lhe alcançou e bebeu um curto sorvo.
Brincou com a bebida em sua boca enquanto se dirigia para o sofá de couro
Chippendale, onde tomou assento, com as pernas cruzadas. Fixou seu único olho
nas chamas e seguiu bebendo a ritmo lento. Winthorp se aproximou pela
esquerda.
— Deseja algo mais, milord?
— Deram comida a Quinto?
— Estão fazendo-o neste momento, milord.
— Traga-o logo que termine. Winthorp, toma a carta que deixei sobre meu
escritório e despacha-a manhã pela manhã. Pode te retirar. Obrigado.
O mordomo e as faxineiras se fizeram a um lado, com uma inclinação, para
permitir a entrada de Elisabetta, antes de abandonar o escritório e fechar a porta.
— Sebastiano, caro — o chamou.
Artemio ficou de pé e ficou olhando-a, permitindo que a beleza e a delicadeza que
emanavam de sua prometida o gratificassem depois de uma jornada tormentosa.
Seu sorriso o comoveu. Sentava-lhe essa tonalidade azul cobalto do organdi, ia de
acordo com seu cabelo loiro e seus olhos celestes. Vestia à última moda, que
começava a afastar do estilo Regência, baixando a cintura, engravatando-a,

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subindo o decote e ampliando as saias.
— Sei molto bella — expressou em seu incipiente italiano.
Elisabetta riu e se acertou para que Artemio a abraçasse.
— Grazie, caro. Anche tu sei bello.
— E Tessie?
— Em seguida baixará. Minha donzela está terminando de penteá-la. Mina a
acompanhará até aqui. Segue muito nervosa. Diz que não poderá comer esta
noite. Pediu-me que lhe ensine como usar os talheres e as taças.
Bateram na porta. Elisabetta se apressou a abrir. Eram Tessie e Mina.
— Caro Sebastiano, observa que formosa está nossa querida Tessie.
A Artemio o agradava que, apesar da origem humilde da mulher, Elisabetta a
respeitasse como se fosse uma duquesa. Das pessoas que tinha chegado a querer
em sua nova pátria, Tessie contava entre as primeiras, não só por ter sido a
melhor amiga de sua mãe, mas também por lhe haver devolvido em parte sua
história ao lhe relatar a de seus pais. Ainda recordava o primeiro encontro: ele
cavalgava por Saint Ailish, e uma mulher miúda, de cabeleira grisalha e
insuficientemente vestida, saiu-lhe ao passo.
—Desculpe, milord — falou, sem olhá-lo, com pesado acento que evidenciava
seu costume de usar o gaélico — Não me julgue impertinente se lhe fizer uma
pergunta.
Começava a conhecer a submissão e reverência dos camponeses irlandeses, por
isso deduziu que devia lhe resultar difícil a essa mulher enfrentá-lo e lhe formular
uma pergunta. Imediatamente, admirou seu valor.
— Adiante. Pode fazê-la.
— É certo que sua excelência é o filho de Emerald Maguire?
— Sou-o.
— Sua mãe e eu fomos como irmãs — assegurou.
Artemio apeou depressa e lhe estreitou a mão. Assim tinha começado sua
amizade. Por Tessie soube que seus pais se conheceram em 1773, durante as
festividades de 1° de maio, quando os senhores do Glendalough baixavam à aldeia
e consentiam em mesclar-se com os plebeus em danças e jogos. "Foi amor a
primeira vista. Nunca vi amor maior que o de seus pais." Contou-lhe também que
Emerald era considerava a beldade do condado de Wicklow, e que seus irmãos,
Fidelis e Jimmy, zelavam-na ao ponto de viver de briga em briga. "Seu pai era o
homem mais arrumado que eu tenha visto, refinado e culto, e ao mesmo tempo
amável." Vivia principalmente entre Londres e Oxford, onde cursava seus estudos,
e retornava em certas épocas do ano a Irlanda porque amava seu país.
Sem o apoio das famílias, Horatio e Emerald fugiram para casar-se. Os Maguire
detestavam aos de Lacy devido a que, em 1649, Oliver Cromwell lhes tinha
confiscado suas terras para entregar-lhe a esses ingleses com sobrenome
normando. Por sua parte, os de Lacy, que consideravam os Maguire sujos,
analfabetos e supersticiosos papistas, jamais teriam admitido que seu sangue se
mesclasse com a de semelhante estirpe.
"Diziam", confessou-lhe Tessie, "que o conde estava disposto a perdoar a seus
pais e a recebê-los em Grossvenor Manor. Nunca soubemos se era verdade posto
que alguém tentou matar a sua mãe, que se encontrava grávida, e todos
apontaram a ele, a seu avô. Felizmente, a bala que a feriu no braço sanou sem
problemas".
Artemio se achava a par da convicção de seu avô a respeito desse tema. O velho

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conde sustentava que, em realidade, o atentado estava dirigido a seu filho e não a
Emerald. Eles se encontravam juntos no momento do ataque, e, por engano,
Emerald tinha recebido a bala. Nunca saberiam com certeza. Entretanto, Artemio
desconhecia a suspeita do conde, que envolvia aos Maguire. Estes formavam parte
de uma confraria que se propunha acabar com a ocupação inglesa na Irlanda, e
bem poderiam ter planejado assassinar ao futuro conde de Grossvenor que, por
outra parte, roubou-se a sua apreciada irmã. Ou não contava acaso que esse
jovem e amalucado Fidelis Maguire, irmão mais velho de Emerald, tivesse tentado
assassiná-lo tempo mais tarde, irrompendo em sua carruagem no que, supunha-
se, viajava ao Dublín para assistir a uma velada de poesia lírica? Por sorte, um
espião os tinha alertado.
"A causa do ataque", contou-lhe Tessie, "seus pais decidiram fugir com a
pequena Edwina. Como sua avó era espanhola, seu pai a acudiu. Seu tio em
Madrid lhe entregou uma carta de recomendação e uma grande soma de dinheiro
para que provasse sorte nas colônias do outro lado do mar. Assim para Tomás. A
última carta que recebi de sua mãe... Em realidade, escrevia seu pai, já que sua
mãe não sabia fazê-lo, e eu a dava a ler ao pai Ronny, porque não sei ler. Pois
bem, a última carta que recebi de sua mãe, contava-me que se achavam no Cádiz
a ponto de zarpar. Nunca mais voltei saber deles".
"Que distinta está Tessie desde aquela primeira vez em que a viu, no caminho de
Glendalough!", disse-se Artemio. Tinha ganhado em peso, sua pele estava
saudável e o cabelo brilhava. Apesar de seu sorriso lascado-a falta de dentes se
devia ao escorbuto — resultava encantadora. Saiu a recebê-la. Notou-a coibida e
nervosa, enquanto a conduzia perto do lar.
Entraram os meninos, Stephen, Albert e Sophia, seguidos da preceptora, da
prima Prudence e de seu marido, Stephen Wallington, com quem Artemio tinha
estreitado uma grande amizade. Ao momento, lhes uniu Calvú e quase a seguir
apresentou William de Lacy, irmão de Prudence e cunhado da Elisabetta, recém-
chegado de Londres-ainda com a capa e o chapéu na mão — que comunicou, em
um estilo histriônico e jovial, sua determinação de passar uma larga temporada
em Grossvenor Manor, ao que Artemio respondeu com um olhar cúmplice e um
leve movimento na comissura esquerda a maneira de sorriso irônico. "A quanto
ascenderão suas dívidas de jogo que vem a te esconder nesta paragem que
detesta?" Ele se faria cargo, como sempre, já que professava um grande afeto pelo
primo irmão de seu pai e não desejava que terminasse confinado em Newgate por
dívidas. Seu avô, pelo contrário, expressava a viva voz que uma temporada na
prisão curaria seu sobrinho do vício do jogo, ao que este respondia com
gargalhadas e uma conduta despreocupada, mais própria de um adolescente que
de um homem que rondava os cinqüenta. Esses modos de William, em realidade,
ocultavam o sofrimento que lhe provocava a falta de aprovação de seu tio Horatio,
desejada ainda mais que a de seu pai. Dado o tormentoso matrimônio do Andrew
de Lacy e Margaret Cavendon, desde pequenos, Andrew, William e Prudence
tinham estreitado o vínculo com seu tio, quem encarnava a segurança e o sentido
comum dos que careciam seus progenitores.
Andrew e William tinham saudades das largas temporadas em Grossvenor Manor
e Saint Ailish, onde ninguém gritava nem lançavam coisas, as pessoas não
caminhavam dando tombos nem amanheciam perto do meio-dia, embora a
Andrew, William era muito pequeno e não o recordava — lhe tocou viver os dias
em que o tio Horatio e seu único filho se olhavam com dureza, não

31
compartilhavam as comidas e se encerravam a discutir no escritório.
Desconcertou-o que o primo Horatio, vários anos mais velho lhe informasse uma
noite que partia para casar-se com uma moça "de outra condição". "Você nos
contou", recordou-lhe Andrew, ao bordo do pranto, "que tio Horatio casou contra a
vontade do avô, porque sua mãe era espanhola, e que, com o tempo, ele o perdoou
e aceitou seu matrimônio". "É certo", admitiu Horatio, "mas minha mãe possuía
algo que Emerald, não: provinha de uma das famílias mais antigas da Espanha, os
Alvorada de Tormes. Emerald, em troca, é uma camponesa".
A fuga do primo Horatio tingiu de cinza Grossvenor Manor. O conde se encerrava
no escritório e passava as noites na casa de sua amante. Ao saber da notícia de
que Horatio tinha partido para a Espanha para pôr a resguardo a sua esposa
grávida, já que suspeitava que seu pai tivesse mandado assassiná-la, o conde
sofreu um acesso de ira e riscou do livro familiar o nome de seu único filho.
Chamou a seu sobrinho Andrew, de apenas sete anos, e lhe informou que, a sua
morte, converter-se-ia no décimo primeiro conde de Grossvenor.
Disse que sobre a família de Lacy pendia uma maldição no dia em que Andrew de
Lacy faleceu por causa de uma bala perdida na reserva de caça de Saint Ailish.
Especulou-se a respeito de quem se faria com o título. Pensou-se em William,
embora logo ficasse fora de jogo; seu tio o considerava um bom para nada.
"William, não tem ofício nem benefício", resmungava o velho conde, ao que seu
sobrinho respondia com graças e gargalhadas.
Descartado William de Lacy, os olhares se dirigiram para o filho ilegítimo de
Horatio de Lacy, John Joe Fitzgerald, que tinha recebido a educação de um
aristocrata. As dúvidas fofocas acabaram quando se soube que o conde tinha
decidido procurar seu filho Horatio para restabelecê-lo no lugar do herdeiro, para
o qual tragou o orgulho e pediu ajuda a seu cunhado em Madrid, ao qual sempre
tinha detestado. O duque de Alvorada e Tormes lhe informou o que sabia: Horatio
e sua família haviam partido do porto do Cádiz em 1775 com destino a Buenos
Aires, uma cidade na América do Sul. "Não tornei saber deles", expressou. "As
comunicações entre a Espanha e suas colônias foram difíceis nos últimos tempos.
Possivelmente me escreveu e a correspondência se extraviou." A desculpa soou
pobre aos ouvidos do conde de Grossvenor, que temeu o pior. Retornou a Londres
muito abatido, e os serventes se preocuparam, pois quase não provava bocado e o
passava em seu dormitório. Até um dia, em meados de fevereiro de 1811, em que
recebeu a visita de Roger Blackraven, filho de um velho amigo, que renovou as
esperanças. Mandou por comida e, enquanto saciava a fome de dias, lançava
ordens a seu secretário, que reservasse passagens no próximo navio com destino à
América do Sul — e a seu assistente de quarto, que preparasse as malas para uma
longa viagem.
***
Esse rincão no enorme vestíbulo de Grossvenor Manor o tinha agradado desde
menino, desde que começou a visitar a casa do conde e se ocultava para observar.
Recebiam-no em caráter de protegido de Horatio de Lacy, a cargo de sua
alimentação e vestimenta e do custoso colégio em Dublín. Na atualidade o fazia
como amigo, embora todos soubessem que John Joe Fitzgerald era seu filho
ilegítimo. Seu bastardo. Odiava o som dessa palavra e ainda se lembrava do dia
em que escutou pela primeira vez. "Aí vai o bastardo do conde", gritou um aldeão,
ao que seguiu uma chuva de pedras. Apertou o copo de conhaque e se acomodou
no sofá, enfurecido pelo efeito dessa lembrança, aborrecia o sentimento que lhe

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inspirava, não por mau, mas sim porque lhe subtraía concentração e força. Às
vezes, as memórias alagavam sua visão e o afogavam, como a do conde
desembarcando do cavalo e entrando na cabana que ocupavam nos subúrbios da
cidade de Trim e a dele abandonando a cabana, por mandato de Devona, sua mãe,
e aguardando no celeiro onde se dedicava a odiar a esse homem e a Devona por
lhe permitir que o humilhasse. Logo lhe revelaram um grande secreto: esse
homem era seu pai; tinha-lhes comprado a cabana, dava-lhes dinheiro e o enviaria
a estudar em Trinity College no Dublín. Pouco valorava as esmolas do conde, ele
queria ser como seu meio irmão Horatio, ao que os aldeãos e camponeses
saudavam com um sorriso quando, depois de passar o inverno no internato de
Eton, retornava a Grossvenor Manor e passeava a cavalo pela rua principal de
Trim. "Ele perdeu a sua mãe com poucos dias de nascido", tratava de convencê-lo
Devona. "Você tem aos dois, a seu pai e a mim. É muito mais afortunado que
Horatio." O argumento não só lhe resultava fátuo, mas também o punha de más.
Ele não tinha a seu pai, nem sequer o chamava desse modo a não ser "milord", e
ser seu ilegítimo lhe servia bem pouco. Os aldeãos os marginavam; a sua mãe a
chamavam "rameira" e a ele, "bastardo". Aprendeu a entreter-se só e a suportar os
sarcasmos com uma idéia fixa: "Algum dia me vingarei", e, como não aceitava o
dinheiro que lhe entregava sua mãe posto que saia do bolso de Lacy, também
aprendeu a arrumar-lhe só desde muito jovem. Não necessitou muito tempo para
entender que lhe convinha uma aliança com as autoridades inglesas. Ainda
recordava a satisfação que experimentou o dia em que embolsou suas primeiras
libras por informar sobre movimentos estranhos entre os aldeãos, quão mesmos
tantas vezes o tinham desprezado por sua origem, e tampouco esqueceria as
cinqüenta libras — uma pequena fortuna — que ganhou no ajudar a desbaratar o
plano que se propunha assassinar a seu pai e pelo qual caíram três jovens
confrades, entre eles, Fidelis Maguire, cunhado de Horatio.
Com os anos, quando chegou a sabedoria, a que lhe ensinou que o orgulho era
um luxo muito custoso, aceitou o oferecimento de Lacy e ingressou no Trinity
College, onde recebeu uma esmerada educação e obteve seu título de advogado.
Graças às conexões de seu pai, trabalhou em um escritório em Dublín e adquiriu
renome entre os latifundiários devido a que jamais perdia uma causa contra os
arrendatários nem os camponeses. Já ninguém mencionava sua condição de filho
natural, nem o olhava com desprezo, nem lhe arrojava pedras e insultos. O golpe
de sorte chegou quando seu pai lhe ofereceu o banco no Parlamento irlandês pelo
distrito de Trim, nas mãos dos condes de Grossvenor da época dos confiscos
cromwellianos. A Trim o definia como um "distrito podre", quer dizer, um distrito
que ainda contava aos fins eleitorais apesar de que, por ter decrescido o número
de seus habitantes, deveria ter sido absorvido por um maior. Em 1800, quando se
sancionou a Ata de União, John Joe recebeu um suborno suculento e um título
nobiliário por votar a unificação dos parlamentos da Irlanda e da Grã-Bretanha.
Como seu pai se mostrava orgulhoso e satisfeito com seus lucros, John Joe
fantasiou que terminaria por lhe herdar o título de conde de Grossvenor. Até esse
dia de janeiro de 1820, o oferecimento não tinha chegado.
Abriu-se a porta do escritório e saiu um grupo nutrido encabeçado por Sebastian
de Lacy, filho de seu meio irmão, que partia com a Sophia pela mão e com esse
gato gigante pego ao joelho. Estudou-o desde seu rincão. Sauvage de l'Amerique
(selvagem da América) tinha-o apelidado a esposa do cônsul francês em Londres,
ao distingui-lo em uma festa, impactada pela estranha combinação de seu porte

33
saxão, o emplastro negro no olho esquerdo, várias argolas de prata na orelha
direita e a atitude distante, como de cansado desinteresse, com que observava e se
dirigia, sem cair em um comportamento altivo, mas bem a natural disposição de
quem conhece sua própria valia e se sente seguro. Essa reserva e frieza lhe tinham
granjeado a fama de orgulhoso e desagradável; entretanto, quando se tinha a
oportunidade de vê-lo sorrir-não a careta sardônica que empregava em eventos
sociais a não ser o gesto que lhe suavizava as feições e lhe iluminava o olho
direito—, dizia-se que conquistava qualquer coração, como o da esposa do cônsul
francês, que tinha sido sua amante até que o diplomático solicitou o traslado,
temeroso de ver-se obrigado a enfrentar em um duelo ao sauvage de l'Amerique.
John Joe trocou de posição no sofá para melhorar o ângulo de visão. Seu
sobrinho, abaixado ao pé da escada, despedia-me dos filhos de Prudence, que
partiam para dormir. Sophia se pendurou no seu pescoço e lhe pediu que lhe
contasse um conto. Vê-lo sorrir e beijar a cabeça da criatura provocou a John Joe
o mesmo desconforto e curiosidade de quem espião a alguém nu. Olhou-lhe
fixamente o perfil e concluiu que era como estar vendo seu tio, Fidelis Maguire,
com exceção do cabelo loiro, herança dos de Lacy.
Escutaram-se umas pauladas sobre o assoalho, e todos giraram para encontrar-
se com a figura, ainda altiva em que pese a seus quase oitenta e seis anos, do
décimo conde de Grossvenor.
— A senhorita Powell — disse o ancião, e olhou a institutriz — contar-te-á um
conto, Sophia. Seu tio Sebastian está ocupado esta noite. Ah, William, vejo que
chegaste.
— Também é um gosto ver-te, querido tio Horatio.
— Vá trocar-te - ordenou que — Vamos-apressou isso ao resto —. Meus
convidados chegarão de um momento a outro.
Artemio ofereceu o braço a Tessie, e John Joe notou pela primeira vez que a
camponesa formava parte do grupo. Surpreendeu-se, embora sem motivo; bem
conhecia as extravagâncias do filho de seu meio irmão. Sim o surpreendeu que
seu pai admitisse que uma mulher de condição tão baixa empanasse a pompa do
jantar. "Então", meditou, "resultam certas as fofocas que sustentam que o velho
dança ao som de seu neto". Perguntou-se se o teria zangado a novidade de que
Sebastian tivesse mandado editar antigos poemas dos bardos em gaélico e
organizado reuniões com os camponeses de Trim e Navan onde os recitava em
abundância de comida e bebida, e tudo a custa do dinheiro dos de Lacy, dinheiro
que lhe pertencia por direito de nascimento e que o filho de seu meio irmão
esbanjava em sandices, como a de comprar toneladas de laranjas na Sicilia e as
repartir entre suas centenas de arrendatários, os de Grossvenor Manor e os do
Saint Ailish, para acautelar o escorbuto. Tinha gerado mal-estar entre as
autoridades e os políticos de Dublín a notícia de que o neto do conde de
Grossvenor estava completando um plano pelo qual se substituíam as cabanas de
barro e tetos de bálago dos arrendatários por casas de tijolos e argamassa, cada
uma com sua chaminé para evitar as fogueiras no interior que alagavam de
fumaça os ambientes e provocavam oftalmia e inclusive cegueira entre os
camponeses, quem em um princípio objetaram a opulência de contar com
chaminé, dado o imposto de dois xelins —quase uma semana de trabalho— que
pesava sobre cada uma delas, questão que Artemio resolveu ao fazer-se carrego
dele. Tanto a notícia da construção das casas como a do pagamento do imposto às
chaminés por parte de Lacy começavam a propagar-se pelo país e a gerar

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efervescência entre os habitantes de outros condados, que pretendiam obter os
mesmos benefícios.
John Joe tinha escutado que assim como os camponeses veneravam a Sebastian
de Lacy por sua generosidade, também lhe temiam. Era famosa sua severidade
com a ordem e o esmero, quase raiava na obsessão, a qual, entre outras medidas,
tinha-o levado a proibir que se acumulassem montanhas de esterco e carvão,
utilizados para alimentar o fogo, nas portas das cabanas, onde engatinhavam os
bebês e brincavam os meninos. Também proibiu que se bebesse álcool, com
exceção dos domingos. Não perdoava o descuido nem a vacância, a grosseria o
punha de péssimo humor, quão mesmo não se cumprissem suas ordens e planos.
Ao obter do atual conde de Grossvenor o controle absoluto sobre as
propriedades, sua primeira medida consistiu em desfazer-se de Jacob Burke, o
administrador, um homem cuja família tinha servido aos de Lacy desde tempos
imemoriais. "Por que me despede?", tinha-lhe perguntado Burke. "Porque você
rouba a meus arrendatários e a mim. Agora saia de minha terra e não volte a pisá-
la ou lhe abrirei a garganta de lado a lado." Não se tratava de uma intriga; ele
sabia do próprio Burke, que se apressou a abandonar Saint Ailish, dando crédito
ao que se dizia: que cada aro de prata que pendia da orelha direita de Sebastian
de Lacy representava a um Cristão despachado ao outro mundo por suas próprias
mãos naquela região do sul onde se criou como um selvagem. Deveria seu pai lhe
conferir o título de décimo primeiro conde de Grossvenor e erigi-lo em dono e
senhor de suas propriedades, incluídas as da Inglaterra, com esses antecedentes?
A acusação a Burke não era infundada, a maioria dos administradores cobrava
um extra a quão camponeses não contabilizava. Os senhores ingleses com terras
na Irlanda faziam a vista gorda se os salvava de ocupar-se de suas propriedades
nesse país de supersticiosos e imundos papistas no qual não se achavam a gosto
nem seguros. Artemio, em troca, tinha empreendido a administração de suas
terras com o mesmo zelo empregado nos negócios e assuntos no Rio da Prata,
abraçando a causa do povo irlandês como própria.
John Joe devia admitir que, embora seu sobrinho destinasse fortunas em
melhorar as condições de vida dos arrendatários, realizava doações à Igreja
Católica-conduta que lhe granjeava capitalistas inimigos— e fundava asilos e
orfanatos, os lucros de Grossvenor Manor e do Saint Ailish tinham aumentado
sensivelmente graças a sua administração. Alguns sussurravam que era brilhante
para os negócios, outros falavam de que tinha sorte. Por exemplo, quando a
maioria dos proprietários jogou a seus arrendatários de modo tal de obter mais
espaço para criar ganho dado o incremento da demanda de carne por parte dos
ingleses, Sebastian não só não se despediu de nenhum, mas também absorveu os
de seus vizinhos. Com modernas técnicas, intensificou o cultivo de milho, trigo e
cevada. "O negócio neste momento são as vacas", tentou aconselhá-lo um amigo
de seu avô. "Vacas são o que me sobra", tinha sido a enigmática resposta de
Sebastian. Esse ano, a colheita resultou abundante e, como o preço se achava em
eleva devido a uma peste que dizimou os cultivos na França, Sebastian e seus
arrendatários nadavam em dinheiro. Podia ver-se-os nas ruas de Trim e do Navan,
com seus sorrisos satisfeitos e seus trajes e chapéus novos.
— Winthorp - escutou chamar seu pai —, não chegou o barão de Kildare?
"Esse sou eu", pensou John Joe. Apoiou a taça sobre a mesa de canto e ficou de
pé.
— Aqui estou Horatio – disse, e sua figura se evidenciou nas sombras —

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Compunham um quadro tão ameno-explicou aos pressente, que o contemplavam
entre atônitos e molestos— que me permiti ficar em silencio para me entreter.
***
William de Lacy subiu à planta alta e entrou em seu dormitório, o mesmo que
ocupava desde menino. Fazia meses que não visitava Grossvenor Manor, e o
assaltou a emoção da volta, do encontro com o local que amava desde que tinha
uso da razão; ficou contente, mais à frente do recebimento de tio Horatio e do
evento que o convocava. Não teria ido ao convite de seu sobrinho Sebastian se não
tivesse em graves apuros financeiros, e teria economizado a pena de vê-lo
anunciar seu compromisso com Elisabetta d'Adda. Seus credores, que o
perseguiam como galgos, tinham-no arrematado a abandonar Londres e infiltrar
na Irlanda; também sua amante, que lhe exigia a mensalidade para pagar, entre
outros luxos, as habitações que alugava no bairro de Belgravia; a sua volta,
encontrá-la-ia furiosa e com novo protetor. A verdade era que importava um
níquel; essa mulher contava para ele tanto como as outras. A única pela qual teria
mudado sua vida de desocupado e bom para nada se desposaria com o filho de
seu primo.
William atirou um golpe sobre a mesa de noite e chutou uma bota, que deu
contra o chispero da estufa. Levou as mãos à cabeça e lançou um curto grito. Essa
mulher lhe pertencia, sempre lhe tinha pertencido. Decidido a fugir do
matrimônio, incapaz de submeter-se ao calvário de seus pais, trocou de parecer o
dia em que a conheceu no palácio de seu amigo, Girolamo Sforza, em Melam.
Apresentaram-nos, conversaram e até riram sem emprestar atenção às regras que
assinalavam o inconveniente da risada franco e aberta em acontecimentos sociais.
Convenceu a Girolamo, primo e tutor da Elisabetta junto com seu avô, o duque
d'Aosta, de que a escoltasse a Grossvenor Manor, onde pensava lhe pedir que o
desposasse. Pela primeira vez, William abandonava o cinismo e a ironia com os
que tinham encarado a vida, para aferrar-se ao sentido que Elisabetta lhe
outorgava; não pensava na relação de seus pais nem na aversão que
experimentava ante o fracasso, a infidelidade e o desamor. Dava-se conta de que,
ao falar com tanto desprezo do matrimônio, a ignorância e o medo tinham
desempenhado um papel fundamental. Elisabetta se tinha apropriado de sua
mente e sanado seu coração.
O desengano que sofreu a manhã em que encontrou seu irmão Andrew beijando
a sua amada nas cavalariças o conduziu ao bordo do suicídio. Seu valete o
encontrou com uma pistola na boca e chegou a tempo para arrebatar-lhe Só o
conde de Grossvenor se inteirou do incidente e, ao conhecer o motivo, agüentou
um sermão a seu sobrinho William e o enviou longe para que não interferisse com
o que ele julgava um golpe de sorte, já que, pela primeira vez, Andrew, herdeiro do
título e com quase quarenta anos, mostrava sério interesse por uma mulher. A
jovem, embora italiana, podia gabar-se de uma rançosa ascendência, e sua
juventude-logo que chegava aos dezessete anos— assegurava um ventre fértil.
Casaram-se poucos meses mais tarde, na capela de Grossvenor Manor, pelo rito
da Igreja Anglicana. William esteve ausente na cerimônia e na festa e não
souberam dele até o dia do enterro de Andrew, três anos mais tarde.
Naquela oportunidade, enquanto observava chorar através do véu de encaixe
negro a sua cunhada Elisabetta, prometia-se: "Esta vez não me escapará. Esta vez
será minha". Apesar do rancor e do tempo transcorrido, seguia amando-a; ainda
reagia a sua presença, o coração lhe palpitava, desenfreado, e lhe punha densa a

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boca. Respeitaria o período de luto para lhe confessar seus sentimentos.
Conceder-lhe-ia tempo para esquecer sua perda. Doía-lhe o desconsolo de
Elisabetta porque significava que tinha amado ao Andrew. 'Todos tinham amado
Andrew. Temia-lhe à comparação e ao rechaço.
A milagrosa aparição do filho de seu primo Horatio em 1811, a quem o conde de
Grossvenor tinha resgatado das vísceras de uma região Bárbara do sul do mundo,
converteu-se na cura da Elisabetta, que nem sequer simulava sua devoção por
Sebastian de Lacy, o qual a tratava com uma atitude indolente que quase raiava
na descortesia. Ela, entretanto, não disfarçava e desdobrava suas artes de
sedução com um descaramento que só o destinatário não advertia, ou
possivelmente sim. Para Elisabetta não contava sequer que seu primo Girolamo
Sforza condenasse ao indiano blondo dell'Amenca (índio loiro da América) e que
desaprovasse sua intenção de desposá-lo. "Um homem que anda com um
emplastro negro e tantas argolas na orelha", tinha tentado raciocinar com sua
prima, "mais tem de pirata que de nobre irlandês", ao que Elisabetta respondeu
com uma gargalhada. "Eu gosto mais por seu emplastro negro", assegurou-lhe,
"por suas argolas de prata e pelo lenço que ata na cabeça quando sai a cavalgar.
Deveria vê-lo querido primo; nessas ocasiões, com o torso nu, sim que tem traços
de pirata!".
Aproveitando que Sebastian não correspondia a Elisabetta, William decidiu lhe
declarar seu amor. A moça o contemplou com olhos amáveis e lhe acariciou a face.
Humilhou-o que não se mostrasse comovida nem turvada, como se sempre o
tivesse suspeitado, e que lhe dissesse que o queria como a um irmão.
William fugiu para Londres. Mas inclusive ali o alcançavam os contos a respeito
da adoração que Elisabetta demonstrava por Sebastian, a quem secundava em
quanta loucura se embarcava, como a de repartir laranjas ou organizar uma
escola dentro da propriedade de Saint Ailish para os filhos dos arrendatários. Ela
ensinaria italiano e francês, como se essas gente tivessem necessitado aprender
outras línguas.
Bateram na porta. "Já era hora!", exclamou para si, acreditando que se tratava
de seu valete. Abriu, e Girolamo Sforza o olhou, carrancudo, sob a soleira.
—Girolamo! Que surpresa!
—Nem tanta William-o saudou o usando o inglês, apertando a mão direita de seu
amigo—. Aceitei o convite de Sebastian em um ultimo intento por desbaratar seu
compromisso com minha prima Elisabetta. Sei que ainda não te prepara e que o
jantar começa em uns minutos. Eu mesmo acabo de chegar e devo me trocar. Mas
precisava falar contigo e pedi a um servente que me indicasse onde te encontrava.
—É obvio. Passa, passa. Aceita uma taça de brandy?
—Não, obrigado.
—Me diga, de que precisava falar comigo?
—É Sebastian de Lacy o verdadeiro neto de seu tio Furo ou um impostor? —ante
o desconcerto de William, Girolamo esclareceu—: Se diz em Londres e em Dublín,
onde passei minhas últimas semanas, que não. O velho Horatio queria achar a
seu neto perdido e qualquer lhe veio bem.
—Não acredito-admitiu William, em um rapto de sinceridade que lamentou—.
Embora agora que o menciona... Não sei que provas obteve meu tio para admitir
que esse carrasco é o filho de meu primo Horatio. O perguntei em uma
oportunidade e não se adveio a me dar explicações. Resulta suspeito, não o crê?
—Não se parece absolutamente aos de Lacy.

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—Não, embora haja escutado que é o fiel reflexo de um irmão de sua mãe.
—Quem era sua mãe?
—Uma camponesa do condado de Wicklow.
—Uma camponesa! —Girolamo Sforza se levou a mão à frente—. É um impostor-
disse—, sei, pressinto-o. O que sabemos dele? Onde nasceu? Como foi educado?
Pergunto-me se não será bígamo. Poderia ter deixado uma esposa naquele país
das Índias Ocidentais. Até filhos.
—O que pensa fazer para evitar as bodas?
—Ameaçarei a Elisabetta deserdando-a. O duque d'Aosta me concedeu a vênia
para tomar esta medida drástica.
—Não conseguirá nada - afirmou William—. Sebastian será um homem muito
rico à morte de meu tio Horatio, e não necessitará da fortuna da Elisabetta para
viver com os luxos que lhe desejem muito. Por outra parte, é um homem estranho.
Não lhe importa o dinheiro. Seriamente - adicionou, ante a expressão de
sobrancelhas elevadas da Sforza —, não lhe importa. Quanto a sua prima, está tão
apaixonada - admitiu, com um esforço que seu amigo não alcançou a
vislumbrar—, que desprezará sua ameaça.
—Elisabetta não tomará à ligeira o repúdio de família —o contradisse Sforza, e
William sacudiu os ombros e ensaiou um gesto que chamava o desafio.
—Eu acredito que sim - assegurou—, desprezará sua ameaça.
—Não posso permitir que uma d'Adda, neta do duque d'Aosta, se uma em
matrimônio ao filho de uma camponesa irlandesa com aspecto de pirata! Duvida-
se de sua origem, é um homem rude, carente de educação e bons modos, curto de
gênio, o que viu minha prima nele?
William, que se tinha formulado a mesma pergunta várias vezes, calou.
—Meu sobrinho Sebastian - disse, ao cabo de um silêncio—, tem muitos inimigos
em Dublín e em Londres.
Sforza o contemplou com fixidez em tanto as palavras impregnavam em sua
mente. Ficou de pé.
—Continuaremos esta conversação quando o jantar tenha terminado. Agora você
deve te trocar, igualmente eu. Vejo-te no salão - disse, e partiu.
Ao fim de meia hora, William e Girolamo se uniam ao grupo de comensais que
ingressava na sala de jantar de Grossvenor Manor, profusamente iluminada, onde
as cores dos de Lacy, o vermelho, ou gules, e o dourado, destacavam-se nas
líderes da dúzia de serventes, no cenário das paredes e no imenso escudo que
entronizava o salão, detrás da cabeceira da mesa, onde se localizou o conde de
Grossvenor, com a assistência de um lacaio. Seu neto o fez no extremo oposto.
Quis seu ipse sis memento, leu Artemio na parte baixa do escudo de sua família.
"Lembre-se de quem você é” traduziu para si, e estudou os rostos dos convidados
até encontrar o da Elisabetta, a quem um sorriso lhe cruzou o olhar. Respondeu-
lhe contemplando-a com uma fixidez e uma seriedade que só ela sabia interpretar
como a promessa de uma noite de paixão. A italiana simulou acomodá-la
guardanapo na saia para ocultar a face vermelha, atitude que não passou
inadvertida a William de Lacy.
Avançado o jantar, Arthur Ewell, lorde chanceler da Irlanda e grande amigo de
conde de Grossvenor, dirigiu-se a Artemio para lhe perguntar:
— É certo o que se conta, Sebastian, que virtualmente substituíste todas as
cabanas de seus arrendatários por casas de argamassa e telhas?
— Já quase terminamos, senhor.

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— Muito interessante muito interessante-repetiu o ancião—. Soube também que
lhes diminuíste a renda quase a uma terceira parte e que, em troca, participa dos
lucros de suas colheitas.
— Assim é mais justo-interveio Elisabetta, provocando o desgosto dos homens.
— Querida - disse a esposa do lorde chanceler —, nós não entendemos nada
destas questões.
— Elisabetta entende melhor que muitos homens destas questões - a contradisse
Artemio.
— As mulheres são brandas - opinou William —, e se delas dependesse a
administração de nossos bens, terminaríamos em bancarrota. A elas só as movem
argumentos de tipo sentimental.
— São suas motivações, Sebastian - quis saber sir Arthur — de tipo sentimental?
— A verdade é que minhas motivações carecem de importância, senhor seja estas
de origem sentimental ou racional - poucos adivinharam a ironia com que se
expressava — O que sim posso afirmar é que são nascidas do sentido comum. Do
que me vale ter camponeses aos quais lhes caem às ferramentas das mãos por
encontrar-se mal alimentados? Do que me servem camponeses cegos devido à má
condição de suas casas, cheias de fumaça por não contar com uma chaminé? Para
que quero homens e mulheres doentes e ressentidos? Não é inteligente rodear-se
de pessoas com sede de vingança que superam em número a meus homens.
Poderiam nos fatiar as gargantas em nossas próprias camas enquanto dormimos.
A rudeza do comentário provocou um murmúrio pelo baixo e intercâmbios de
olhares. Assombrava a William a indiferença com que seu tio Horatio escutava a
Sebastian e seguia comendo.
— Suas ações, Sebastian - falou o lorde chanceler, com voz endurecida —, geram
mal-estar no país.
— Por quê? — interessou-se, fingindo ignorância.
— Porque os camponeses de outros condados se inteiram dos benefícios que seus
compatriotas obtêm em Grossvenor Manor e em Saint Ailish e exigem a seus
patrões igualdade de condições.
— Seria interessante que as igualassem - comentou Stephen Wallington — Estas
pessoas sofreram muito ao longo dos séculos. Cada vez que me lembro das Leis
Penais que os submeteram, portanto tempo me envergonho de ser inglês.
Artemio estudou com reserva ao marido de sua prima Prudence. Deixar-lhe-ia a
administração das propriedades assim que se ausentasse.
— Stephen - disse o lorde chanceler — o problema de igualar essas condições
radicaria em que as propriedades se tornariam pouco rentáveis ou, pior ainda,
arrojariam perdas.
— Isso se deve — falou Artemio — a que estão mal administradas. Os senhores
ingleses se desentendem de suas terras e as entregam a inescrupulosos
administradores que lhes roubam e a seus trabalhadores.
— Não insinuará-se escandalizou Girolamo Sforza—, que os senhores devem
trabalhar e ocupar-se dos assuntos de suas fazendas, verdade?
— A isso me refiro. Seria uma boa mudança. Deixariam de beber como cossacos
em Londres e de perder até as meias três - quartos nas mesas de jogo para fazer
algo útil-o conde de Grossvenor sorriu ante a careta de seu sobrinho William—. O
ser humano - prosseguiu Artemio — é o único animal que comete duas vezes a
mesma estupidez. Acaso não aprendemos que a Revolução na França que não é de
sábios submeter ao povo até fazê-lo estalar? Uma vez que o povo se rebela, só se

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aplacará com rios de sangue.
— Estou pensando - disse Girolamo — que possivelmente suas motivações não
sejam racionais absolutamente a não ser sentimentais querido Sebastian.
Possivelmente te tem proposto redimir aos camponeses já que sua mãe foi uma
delas.
O conde de Grossvenor levantou a vista com rapidez e fulminou o primo da
Elisabetta com uma olhada que o obrigou a olhar para outro lado. Elisabetta
parecia envergonhada, e uma cor avermelhada lhe subia pelo pescoço e ganhava
as maçãs do rosto, enquanto seu peito se agitava sob o decote. Na tensão, todos
apreciaram o sorriso de desprezo que aflorou aos lábios de Artemio e se
assombraram de sua parcimônia. "Haverá algo que o perturbe ou o provoque?",
perguntou-se Wilham.
—Possivelmente - concedeu Artemio, e se levou uma parte de faisão à boca. Não
recolheria a ofensa. Sua mãe tinha sido camponesa; ofender-se com alguém que
expressava a verdade equivaleria a admitir que lhe pesava sua origem quando, em
realidade, orgulhava-o. Apoiou os talheres no prato e tomou a mão de Tessie, que
quase não tinha provado a comida.
—Tessie - insistiu Artemio—, come. Não está bom o faisão?
Prudence iniciou um bate-papo com sua cunhada Elisabetta; Stephen perguntou
a Calvú Manque sobre o gado dos pampas; o conde de Grossvenor comentou ao
lorde chanceler a respeito de um amigo em comum; e assim se superou o mau
momento. Elisabetta, ainda emocionada, respondia a Prudence com monossílabos,
em tanto lançava olhares de súplica a seu prometido.
Ao final do jantar, o conde de Grossvenor solicitou a atenção dos convidados e
ficou de pé com a assistência do lacaio, o que todos imitaram. O ancião elevou sua
taça de vinho e manifestou:
— Meu neto Sebastian, único filho varão de meu adorado Horatio, concedeu-me
a honra de anunciar esta noite uma feliz noticia: suas próximas bodas com a
querida Elisabetta Maria.
O sorriso da italiana, o rubor de sua face e o modo em que detinha os olhos em
Artemio resultaram eloqüentes. Sua sorte era inefável.
— Convido-os a brindar pela felicidade de Elisabetta Maria e pela de meu neto,
Sebastian de Lacy, futuro conde de Grossvenor.
O anúncio por fim se realizava. O que tinha mantido em velo à aristocracia
inglesa e aos políticos irlandeses se desvelou frente a um pequeno e seleto grupo
que pulverizaria a novidade antes que passasse um dia. O décimo conde de
Grossvenor tinha elegido a seu sucessor. William se disse que não deveria
experimentar essa decepção dado que esperava a notícia; não obstante, afogava-o
um rancor negro. John Joe, que tinha guardado silêncio ao longo do jantar,
congelou o sorriso e apertou a taça até obrigar-se a diminuir a pressão para evitar
quebrá-la. Só Devona, sua mãe, teria advertido sua fúria reprimida. O lorde
chanceler também sorria, ao tempo que baralhava as conseqüências. Os de Lacy
eram homens de imenso poder econômico e político, controlavam vários distritos
eleitorais, a maioria "podres", que os provia de uma influência invejável no
Parlamento. Não cairia bem o anúncio. O nome de Sebastian de Lacy se repetia
com pouca simpatia nos círculos de Dublín dada a fama de seu comportamento
extravagante que rompia com os códigos que por séculos tinham mantido
dominada a Irlanda. A última fofoca que o tinha por amigo do jovem advogado
Daniel O’Connell, conhecido agitador e rebelde, julgava-se perigoso a um ponto

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intolerável.
Consciente do que o anúncio acabava de provocar, Artemio levantou a taça para
sua prometida e lhe sorriu. "Não me esqueça, senhor Fúria. Por favor, não me
esqueça." A voz se filtrou em seus pensamentos, e quase deixou cair a taça.
Apoiou o corpo contra o bordo da mesa, inclinou a cabeça e se apertou a têmpora
esquerda. Elisabetta esteve a seu lado em um instante.
— O que ocorre, Sebastiano? Outra vez essa dor? Winthorp, o tônico do senhor.
— Já está - sussurrou Artemio, agitado—. Já passou. Já passou.
A frase, entretanto, repetia-se com a insistência do tangido de um sino. "Não me
esqueça, senhor Fúria." "Não me esqueça, senhor Fúria."
— Desde que perdeu o olho esquerdo - explicou o conde à esposa do lorde
chanceler — sofre essas horríveis dores de cabeça. Em seguida estará melhor.
Tomaram assento de novo. A emoção do anúncio se dissipou. Winthorp se
apresentou com o tônico e verteu uma medida em uma taça limpa. Prudence
interveio para desviar a atenção.
—Nos diga Elisabetta, quando será as bodas?
—Ainda não fixamos a data.
—O mais breve possível —indicou o conde, com um sorriso que não terminava de
ocultar a preocupação pelo estado de seu neto—. Verdade, Sebastian? Não tem
sentido esperar.
—Será dentro de uns meses-respondeu Artemio—, depois de minha viagem.
—Que viagem? —perguntaram ao uníssono Elisabetta, Prudence e o conde.
—Que empreenderei dentro de pouco ao Rio da Prata.
—Ao Rio da Prata! —espantou-se seu avô.
Iniciou-se uma polêmica em que Artemio não participou. Calvú Manque lhe jogou
uma olhada que expressava sua surpresa e curiosidade, ao que Artemio
respondeu com outro que dizia: "Mais tarde te explico".
—Te case primeiro e logo viaje ao Rio da Prata! —sugeriu o conde.
—Não-se limitou a responder, habituado a não dar explicações.
—Então, irei contigo-resolveu Elisabetta.
—De maneira nenhuma-se escandalizou Girolamo Sforza.
—Mina me acompanhará-aduziu a italiana.
Ao final se decidiu que, além de Mina, Girolamo e William acompanhariam a
Artemio e a Elisabetta para guardar as aparências.
—Se desejas Sebastian - interveio o lorde chanceler—, posso averiguar com o
lorde do Almirantado qual é o próximo navio que segue para as Índias Ocidentais.
—Agradeço-lhe, sir Arthur, mas não será necessário que se incomode. Viajarei
em meu próprio navio.
—Já está preparado? — surpreendeu-se o conde.
—Hoje recebi carta de Roger Blackraven - não precisou explicar de quem falava;
todos o conheciam — Assegurou-me que o Smarag está logo para zarpar.
—Smarag? —disse William.
—Significa esmeralda em gaélico. Esmeralda - explicou—era o nome de minha
mãe, a camponesa.

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Capítulo III

Revelações na madrugada

A poucas milhas de Grossvenor Manor, em um botequim do povo de Trim, Jacob


Burke, antigo administrador das propriedades dos de Lacy, aguardava seu novo
patrão em um quarto no andar de cima. A reunião teria podido levar-se a cabo em
Dublín, mas, como mantinham em segredo que se conheciam, evitavam o risco de
expor-se na cidade. Consultou a hora: duas e quinze da manhã. Perguntou-se
quanto tempo esperaria antes que o sono o vencesse. Tratou-se de uma jornada
ocupada começada muito cedo, na qual se dedicou a averiguar, a partir de um
dado que recebeu, a respeito da relação entre Sebastian de Lacy e o advogado
Daniel O'Connell, que desde fazia alguns anos ganhava a atenção dos nobres e dos
membros do Parlamento dada seu costume de ganhar pleitos a favor dos
arrendatários. O último, muito ressonado, teve como testemunha chave ao próprio
Sebastian, quem declarou que o acusado, filho de um de seus camponeses, tinha
conduzido sua carruagem até o Saint Ailish à noite em que se supunha que tinha
ingressado nas terras do earl do Ormond para caçar furtivamente. suspeitava-se
que o neto do conde de Grossvenor tinha cometido perjúrio para salvar ao moço da
prisão, embora ninguém se animava a mencioná-lo por temor a despertar a ira do
mesmo Sebastian de Lacy, de quem se referiam anedotas que confinavam com o
inverossímil. Dizia-se que era vingativo e dirigia estranhos códigos aprendidos na
terra selvagem onde tinha nascido.
Escutou o som de cascos de cavalo frente ao botequim. Alcançou-o a voz
sonolenta da proprietária no térreo. Seguiram uns passos na escada e o batido na
porta do quarto. Tratava-se de seu novo patrão, John Joe Fitzgerald, que o tinha
contratado poucos dias depois de que de Lacy o despediu. "Necessito um homem
de confiança que me empreste serviços que requererão de absoluta discrição",
tinha-lhe manifestado naquela entrevista. "Suas atividades serão variadas e, em
geral, terão que ver com a busca de informação. Minha posição no Parlamento me
exige saber tudo que acontece na Irlanda." O último encargo, além de investigar a
amizade entre Sebastian de Lacy e O’Connell, se referia às atividades delitivas de
um grupo cujos brancos eram as propriedades dos nobres ingleses.
—Agradeço-lhe que tenha esperado até esta hora, Burke-disse John Joe, com
acento duro, enquanto se tirava o casaco e as luvas e se servia uma medida de
cerveja, que bebeu de um gole; ainda não conseguia desembaraçar do mau humor
causado pela notícia de seu pai—. Que informação me tem?
Burke tirou a caderneta e um lápis de cisco e repassou as notas. Nos bairros
baixos de Dublín e da Drogheda os conhecia como os Dark Boys (Moços Escuros),
devido a que saqueavam as propriedades de suas vítimas vestidos de negro e com
capuzes dessa mesma cor. Atuavam com rapidez, moviam-se com eficácia, sem
deixar rastro, como se o tivessem ensaiado.
—Contam com muito boas montarias-adicionou Burke, e John Joe o olhou pela
primeira vez—, o que índica que alguém os financia. É mais, pelo modo em que

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operam, atrever-me-ia a dizer, senhor, que não só os financiam, mas também os
treinam-tirou de uma carteira um objeto que John Joe desconhecia.
—Que diabo é isto?
—Não foi fácil consegui-lo, senhor. Tive que subornar ao delegado de Luzam para
que me entregasse isso. Foi achado na propriedade do sir Bemley, depois do
ataque que sofreu às mãos dos Dark Boys. Roubaram-lhe vinte puro sangue.
John Joe estudava o que tinha aspecto de arma primitiva, conformada por duas
bolas pesadas, forradas em couro, unidas às extremidades de um tato.
—O que é? Como se usa?
—De acordo com o relato do chefe do guarda de sir Bemley, jogou-no nas ancas
de um cavalo para derrubar a um de seus homens, com êxito, senhor-Burke
duvidou durante uma curta pausa; logo, disse—: Há um dado que não me atrevo a
confirmar, embora eu gostaria de mencionar-lhe Alguém na Drogheda associou o
nome do Daniel O'Connell ao dos Dark Boys.
John Joe deu as costas a Burke e caminhou para a janela para esconder um
sorriso satisfeito. Não resultava desatinado conjeturar que se O'Connell estava
envolto com os vândalos, seu sobrinho Sebastian também; sabia da amizade que
tinham estreitado no último esses tempo dois. Uma acusação de traição por
financiar atividades para desestabilizar a paz do reino o levaria a forca, e, nesse
caso, sua ascendência não o salvaria, mas bem, pesar-lhe-ia como uma bigorna
(ferramenta utilizada pelos ferreiros).
—Como sabemos-falou Burke—, O'Connell é amigo de Sebastian de Lacy.
John Joe girou para olhá-lo, e o brilho em seus olhos convidou Burke a
prosseguir.
—Hoje estive averiguando a respeito de O’Connell e da relação com de Lacy. Se
considerar que não devo seguir indagando, aqui me detenho.
—Me conte o que averiguou.
O que Burke lhe referiu sobre o julgamento onde Sebastian tinha atuado como
testemunha chave, John Joe já sabia. Contudo, à luz da nova peça de informação-
a que relacionava a O’Connell com os Dark Boys—, a amizade entre seu sobrinho
e o jovem advogado tomava outra aparência. "Traição", repetia John Joe, e a
esperança que tinha morrido essa noite na mesa de seu pai cobrou vida de novo.
—Resulta imperioso infiltrar a alguém nos Dark Boys-a careta de Burke lhe
comunicou o medo que lhe provocava a ordem—. O que acontece?
—Senhor, foi muito difícil dar com a pouca informação que consegui. A gente
protege aos Dark Boys, consideram-nos heróis. Além disso, não conto com meios
nem conexões para infiltrar a um espião entre os vândalos.
—Entendo-de seus dias de informante dos ingleses, John Joe conservava
amizades que serviriam para deslizar-se por uma fresta que os aproximaria do
coração do grupo delitivo—. Eu me ocuparei disso. De você, Burke, precisarei
outro serviço-o homem inclinou a cabeça em sinal de assentimento—. Viajará ao
porto de Liverpool e se ocupará de averiguar quando zarpará e com que destino o
navio de propriedade de Sebastian de Lacy. Entendo que o construiu o estaleiro do
conde de Stoneville, Roger Blackraven. Deverá partir amanhã mesmo. Agora preste
atenção. Quando retornar de Liverpool, me contate como de costume. E cuide-se
bem as costas. Não quero que seu nome e o meu se associem.
Mais tarde, já só e rodeado de escuridão, John Joe meditava a respeito de seu
sobrinho. "Sebastian está metido em intrigas até o pescoço." Essa noite, durante o
jantar em Grossvenor Manor, tinha-o percebido enquanto Arthur Ewell o

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interrogava a respeito de suas atividades com os camponeses. Aproveitaria a má
fama de seu sobrinho em benefício próprio.
Embora, desalentou-se, provar que Sebastian conspirava contra o Reino da Grã-
Bretanha não resultaria fácil nem se obteria no curto prazo. E ele não contava
com tempo. Seu pai não duraria para sempre. Essa noite o tinha notado abatido,
com pouca energia. Pensou em William de Lacy, na conversação que tinham
sustentado ao finalizar o jantar, pela qual tinha chegado tarde a seu encontro com
Jacob Burke.
Passado de taças, William tinha expressado:
—Igual a mim, a você, senhor Fitzgerald, deve cair muito mal a novidade de que
Sebastian será o novo conde de Grossvenor —ante o desconcerto do John Joe,
William sorriu com brincadeira—. Vamos, deixemos de hipocrisias. É um segredo
a vozes que você é o ilegítimo de meu tio. A você corresponde o título, não a
Sebastian.
—Em realidade-admitiu John Joe—, se for certo que Sebastian é filho de Horatio
de Lacy, pois lhe corresponde herdar o título e os bens de Horatio.
—O que ocorreria se Sebastian morresse?
John Joe levantou as sobrancelhas e deixou escapar um sopro.
—Deus não o permita!
—Deus o permita! —rebateu William, e sorveu mais uísque.
John Joe tomou pelo braço para conduzi-lo para um setor vazio do salão e o
ajudou a acomodar-se em um sofá. Procurou o garrafão de cristal e serviu com
generosidade no copo de William.
—Por que deseja a morte do neto de seu tio?
—Porque me roubou tudo o que me pertence: o carinho de meu tio Horatio e o da
mulher que amo.
John Joe moveu o rosto para ocultar seu desagrado. Não tolerava as amostras de
sentimentalismo; em um homem, não as admitia.
—William de Lacy-murmurou na escuridão.
***
Recostada sobre o ventre e, enquanto se sustentava o queixo com as mãos,
Elisabetta contemplava Artemio dormir. Fora gelava; no quarto, o ambiente era
quente, úmido e aconchegante. Sorriu, ditosa, e se insistiu a que nada empanasse
a lembrança dessa noite, nem sequer a discussão que tinha mantido com seu
primo Girolamo Sforza poucas horas atrás, logo que terminada o jantar e em tanto
Mina a assistia para ir dormir.
—Preciso falar contigo.
—Fala-lhe disse, sem girar-se no tamborete de sua penteadeira; quando
Girolamo se deteve atrás dela, ficou de pé bruscamente e o assustou—. Teria
querido te fazer tragar suas palavras quando atacou desse modo tão infame a meu
prometido. O que procurava tirando reluzir que sua mãe era uma camponesa?
Comportaste-te com grosseria.
—Perguntas o que procurava? Pois procurava te tirar a atadura que te impede de
ver que unirá a um homem da pior classe, do que não podemos dizer com certeza
que seja o filho de Horatio de Lacy.
—Me escute bem, Girolamo-o afligiu que o chamasse por seu nome; sempre lhe
dizia caro cugino (querido primo)—. Se descobrisse amanhã que Sebastiano não é
um de Lacy, igualmente o desposaria. Assim descobrisse que é o filho bastardo de
uma rameira, igualmente me converteria em sua esposa —Sforza se surpreendeu

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ante a belicosidade de sua prima—. A nobreza de Sebastiano é muito superior à
nossa, e não tem que ver com sua linhagem a não ser com seu espírito. Estou me
referindo à verdadeira nobreza, a que conta para mim, a que enaltece a uma
pessoa.
—Conto com a autorização de nosso avô para te deserdar em caso de que o
despose.
—Me deserde! —soltou-lhe, raivosa, enfurecida—. Fica com meus bens, com
minhas rendas, mas me deixe em paz. E te tire da cabeça a idéia de que viajará
conosco ao Rio da Prata.
—OH, sim que viajarei! Não admitirei que seu nome fique enlodado por viajar
com esse pirata ao outro lado do mundo sem estar desposada.
—Não te necessito. Mina é minha acompanhante.
—Mina um corno!
—Acontece que quer vir-especulou Elisabetta—. Sempre te gostou de viajar.
Agora o fará sem desembolsar um cêntimo, à custa de quem chama impostor e
pirata. Ou se trata de que precisa te afastar de Melam até que sua esposa te
perdoe o assunto com a cantor de ópera? —no semblante de seu primo despontou
um sorriso matreiro—. E tem o descaramento de me falar de nobreza! Fora daqui!
—Ainda não é sua esposa-assinalou Girolamo antes de abandonar o dormitório, e
a Elisabetta soou a presságio.
Queria apagar essa memória. Apartou um pouco a colcha para contemplar o
torso de Artemio. Apesar de conhecê-lo de cor, a beleza de seu corpo nu sempre a
afetava, e, enquanto o estudava-a fortaleza dos músculos, marcando os tendões,
as pequenas e grandes cicatrizes—, seus lábios foram separando-se. Bastava
contemplá-lo para excitar-se. Gostava de enredar os dedos no pêlo de seus
peitorais, muito denso e de uma tonalidade entre loira e avermelhada. Ao
compará-lo com o Andrew, Elisabetta compreendia que Artemio era
excessivamente peludo, e isso a atraía como cada aspecto que revelava a parte
indomável e primitiva que seu prometido mantinha a raia nos salões para
desdobrá-la na cama, onde o tamanho de seu membro, que a tinha assustado a
primeira vez, marcava a grande diferencia com o Andrew.
Elevou o olhar até detê-la em seu rosto. Nem sequer em repouso perdia esse
matiz de periculosidade subjacente. Atrasou-se no emplastro negro. Artemio
jamais o tirava, e ela tratava de imaginar como o faria na intimidade de seu
dormitório; queria saber quais eram os movimentos de suas mãos, qual a reação
ante a cavidade vazia; a estas alturas, provocar-lhe-ia indiferença ou angústia?
Perguntou-se se a encheria com um olho de vidro. Meses atrás, depois de fazer
amor pela primeira vez, lhe pediu que se tirasse o emplastro, ao que ele se negou.
Noites mais tarde, enquanto Artemio dormia, Elisabetta tentou levantar-lhe e não
conseguiu fazê-lo. Artemio a aferrou pelos pulsos quando apenas o roçou. A
ferocidade com que a olhou com seu olho são, nunca a esqueceria; cortou-lhe o
fôlego.
—Respira-lhe ordenou Artemio, e ela soltou o ar junto com um soluço de
vergonha—. Nunca volte a trair minha confiança.
A lembrança dessa cena a sobressaltava, e morria de calor. Distraiu-se ao ver
que o olho direito de Artemio se movia sob a pálpebra fechada. "Está sonhando."
Notou-o inquieto, com a respiração acelerada. Embora o amava, sabia que era um
homem estranho. Ainda a inquietava o anúncio da viagem em meio do jantar de
compromisso. Doeu-lhe que não aceitasse casar-se com ela antes de partir, e a

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explicação que não concedeu durante o jantar e que ofereceu a ela ao apresentar-
se em seu quarto depois, era uma desculpa: a organização das bodas levaria
meses e ele devia partir quanto antes; assuntos urgentes o reclamavam. Elisabetta
propôs organizar uma cerimônia singela, sem vestido especial nem grande festejo,
ao que Artemio se negou. "Merece as bodas que tanto sonhaste", disse-lhe, e outra
vez soou a desculpa.
—O que ocorre, Sebastiano, amore mió? —sussurrou, e se lembrou de que tinha
tirado o quadro de Bathsheba in her bath, e também da descompostura durante o
brinde, e recordou o instante prévio, quando percebeu a contração de suas feições
e a transformação de seu olhar, que a levou a pensar na de um menino apavorado;
não podia esquecê-la pois pela primeira vez seu único olho tinha refletido uma
vulnerabilidade que ela acreditava inexistente.
Viu-o entreabrir os lábios, e se inclinou para ouvi-lo. Balbuciava palavras
ininteligíveis com o sobrecenho enrugado e movia a cabeça sobre o travesseiro,
também os braços até apartar a colcha. De repente, suas frases se voltaram
precisas, embora carentes de sentido. Elisabetta notou uma mudança e, do
aspecto alterado, viu-o passar a um sereno, com um ligeiro sorriso. Então,
escutou-o pronunciar um nome com claridade: Rafaela. Artemio o repetiu várias
vezes; primeiro o sussurrou, depois o articulou com voz rouca, carregada de
desejo, até que Elisabetta despertou com uma sacudida. Levou vários segundos
entender onde se achava. Estava muito perturbado, e movia o olho são de um lado
a outro.
—É hora de que volte para seu quarto - ordenou Elisabetta, e lhe entregou a
bata.
Depois do café da manhã, enquanto Artemio, Tessie e os filhos de Prudence se
preparavam para patinar no lago, Elisabetta segurou o braço de Calvú Manque e
lhe disse:
—Acompanhe-me, Calvú. Quero levá-lo a um local de onde se aprecia uma vista
invejável da propriedade.
O índio assentiu, e partimos com Mina e Berna atrás. Em tanto alcançavam o
mirante, mencionaram o jantar da noite anterior, a viagem ao Rio da Prata e o
navio de Artemio.
—Tem-no feito construir-explicou Calvú Manque—, de tal modo que sua adega
possa albergar grande quantidade de gado em pé.
—Pensa levar vacas ao Rio da Prata?
—Sim. Ele insiste em que terá que melhorar a raça de nossa fazenda. Verá,
Elisabetta, os animais dos pampas, embora numerosos, são mas fracos, de largas
patas, enorme gargalhada e carne fibrosa, ariscos, quase selvagens, muito
distintos dos que Artemio possui nestas terras.
Ao chegar ao alto, contemplaram a paisagem em silêncio. Calvú Manque
percebeu a ansiedade da Elisabetta e viu pela extremidade do olho que se mordia
o lábio inferior. Ao cabo, ouviu-a perguntar:
—Calvú, quem é Rafaela?
O índio manteve a vista à frente, e de seu semblante não teria podido adivinhar o
atordoamento que lhe causou a curiosidade da italiana.
—Por que o pergunta? —atinou a dizer.
—Sebastiano a mencionou ontem à noite em sonhos.
Calvú Manque assentiu, ainda com a vista à frente, sem decidir-se a encontrar os
olhos da Elisabetta, tratando de ganhar uns segundos para acomodar suas idéias.

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—Quem é, Calvú? Diga-me isso tenho direito de saber.
—Era a mulher de Artemio.
Sentiu que o punho da Elisabetta se fechava em torno de seu braço; sentiu-a
tremer.
—Amava-a muito?
—Sim, muito.
—É sua esposa?
Calvú Manque se limitou a negar com a cabeça.
—Sua mulher —insistiu.
—Ela vive em Buenos Aires?
—Não. Rafaela morreu faz vários anos.
—OH!
Calvú Manque girou a cabeça e a enfrentou com semblante lúgubre.
—Levava em seu ventre o filho de Artemio no dia em que morreu.

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SEGUNDA PARTE

O PASSADO

Cidade da Santíssima Trindade e Porto de Santa Maria de Buenos Aires, Vice


Reinado do Rio da Prata. Janeiro de 1810.

Capítulo IV

Rafaela das flores

Rafaela Palafox e Binda tirou a nota de sua bolsa e a leu de novo.


Menina Rafaela, venha-se para La Larga. Está em um estado lamentável e minha
saúde não é boa. Dom Íñigo.
Perguntou-se quem a teria escrito, já que o capataz era analfabeto; talvez, um
comerciante de São Fernando da Boa Vista, o povoado mais próximo de La Larga,
a estadia que tinha formado parte do dote de sua mãe, Rosalba Barquín. A
devolveu a sua bolsa, de onde extraiu uma garrafa de cerâmica; desarrolhou-a,
molhou-se a ponta do dedo com seu conteúdo e o passou nos pulsos e atrás dos
lóbulos. Imediatamente, um aroma floral, com uma nota aguda, como se de um
cítrico se tratasse, alagou o interior da cabine. Sentiu-se melhor, embora não
podia afugentar a frase "estado lamentável" de sua mente.
Essa primeira segunda-feira de janeiro, fazia calor apesar da hora temprana.
Abanou-se com energia enquanto contemplava o exterior. Babila, o velho chofer
dos Palafox, também parte do dote de Rosalba, conduzia as mulas que atiravam o
carro pela rua de São Martín, a poucos metros do Plaza Mayor. No ano oito, depois
da expulsão dos ingleses, tinham-lhe trocado o nome por "da Vitória", mas Rafaela
não se acostumava e seguia chamando-a Mayor. "Que tranqüila luz esta manhã!",
pensou ao compará-la com a de 1o de janeiro do ano anterior, quando a passeata
da partida espanhola, com o basco Martín de Álzaga à cabeça, tentou derrotar ao
vice-rei francês, Santiago de Liniers, e formar Junta como nas cidades da
Espanha. A intentona ficou em um nada devido ao desamparo do militar mais
capitalista do Vice-Reinado, o coronel Cornelio Saavedra. Rómulo Palafox, seu pai
e síndico procurador do Conselho, cúmplice de Álzaga, terminou exilado na
Patagônia, o que transtornou a vida familiar por completo. A notícia da captura de
seu pai a tinha alcançado à tarde daquele 1o de janeiro, tomando-a por surpresa.
Desconhecia os planos do partido espanhol.
—O que diz, Babila?
—Que o coronel dos Patrícios —Rafaela sabia que lhe falava de dom Cornelio
Saavedra—, emprestou seu apoio ao vice-rei e que tudo acabou, minha menina.
Não haverá Junta nem se irá Líniers do Forte.
—O que sabe de meu pai?
—A ele, a dom Martín e a outros os encarceraram, minha menina.
Rafaela inspirou com ruído e se sujeitou à parede. "Enforcá-los-ão", assinalou.
Por fortuna, seu presságio não se cumpriu, e os sarracenos (assim os tinham

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apelidado) viajaram por mar às terras desconhecidas do sul do Vice Reinado.
Disso fazia quase um ano, que a Rafaela pareciam vinte. Quase não havia tornado
a sorrir desde que a sorte os abandonou, porque não contava somente que a seu
pai o tivessem exilado mas sim, dias mais tarde, um grupo de militares aplainou a
casa da rua Larga e lhes expropriou quarenta e cinco mil pesos de moeda forte, de
marca espanhola, e cento e vinte onças de ouro, tudo o que possuíam. Passavam
necessidades. Só tinham tido um momento de felicidade quando retornou seu
primo Aarón, filho mais velho de Clotilde, que faltava do lar desde fazia mais de
um ano. Se o acanhamento não a tivesse coibido, Rafaela teria se jogado em seus
braços e chorado as lágrimas que continha desde em 1o de janeiro. "Já choram
sua tia Clotilde e sua prima Cristiana", tinha-a exortado Ñuque. "É necessário que
você mantenha a calma pelo bem desta família." Assim o tinha feito, um pouco
assombrada de sua própria fortaleza se considerava que ela era conhecida por ser
medrosa.
"Um ano", voltou a suspirar Rafaela, e contemplou a praça vazia. Pensou em seu
pai, refugiado político de Elío em Montevidéu, que vivia da caridade de seus
amigos e do que ela, com muita dificuldade, juntava e lhe enviava evitando as
armadilhas (sabia que lhes abriam a correspondência e que os mantinham
vigiados). Atormentava-a perguntar-se como teriam transcorrido as semanas na
Patagônia, aquele local inóspito, infestado de índios, do qual os tinha resgatado
Elío, o governador da Banda Oriental. Angustiava-a também refletir como seriam
seus dias em Montevidéu, longe da família, sem dinheiro, arrasado pelos
problemas.
A esperança que significou para a Rafaela a chegada do novo vice-rei, Baltasar
Cisneros, desvaneceu-se quando Corina, sua amiga íntima, que por trabalhar no
Jornal Os Meninos Abandonados se encontrava bem informada, explicou-lhe: "O
Surdo —chamava o vice-rei por esse apelido—, não moverá um dedo para ajudar a
seu pai. Faria-o, pois é tão espanhol como ele, mas sabe que sua situação é
precária e que depende dos militares para sustentar o poder. Desde que se
dissolveram os corpos de Catalães, Vizcaínos e Andaluzes, os regimentos estão
formados por crioulos, em especial o de Patrícios, o mais influente, a cargo de
Cornelio Saavedra. Não respire esperanças, Rafi. O Surdo não fará nada que
desgoste a dom Cornelio. E ajudar aos conjurados de 1o de janeiro o desgostaria".
A asseveração de Corina se sustentou até em 22 de setembro de 1809, quando seu
primo Aarón entrou na casa, chamando-a gritos, para lhe ler a proclama que
Cisneros acabava de publicar onde indultava aos sarracenos. De igual modo,
Rómulo Palafox não podia voltar, outras causas abertas por questões que
ocultavam vinganças políticas e que o conduziria a prisão se punha pé no porto de
Buenos Aires o impediam. "Não te aflija", tinha-a consolado Aarón. "Contratarei
um advogado e acabaremos com todos os perigos que espreitam a meu tio
Rómulo", e, embora Rafaela sorria, lhe teria perguntado com que dinheiro. Calou
para evitar a pena de seu primo, que, apesar de trabalhar em excesso para
encontrar trabalho, não o achava; ser sobrinho de seu tio lhe pesava como
antecedente.
Tinham subsistido rematando a maioria dos escravos, as poucas jóias de Rafaela
e de sua tia Justa —Clotilde e Cristiana se negaram a desprender-se das suas se
Rafaela não se desfazia de seus alambiques, redomas, balões de ensaio, morteiros,
retortas e demais cacarecos—, com os trabalhos de costura de Ñuque e com a
venda dos perfumes, cosméticos e sabões que preparava Rafaela com a ajuda de

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suas escravas, Creóla e Peregrina, embora sobre esse ingresso —vários pesos ao
mês— só sabiam Justa e Ñuque, já que se inteiravam Aarón e sua tia Clotilde, o
teriam proibido; julgava-se indecente que uma filha de família trabalhasse.
Rafaela descobriu um mundo que a fascinaria o dia de seu décimo segundo
natalício, quando Pola, a irmã mais nova de sua mãe, deu de presente o livro
Manual de esposas no qual se contêm muitas e diversas receitas muito boas, de
autor anônimo. Dali, extrairia os segredos para criar desde perfumes e ungüentos
até pós para os dentes e maquiagem e depilador de pêlos. Essas receitas, cheias
de nomes estranhos, abririam as portas de outro universo, o das flores e das
plantas, ao que Rafaela terminou por afeiçoar-se até converter-se em perita sem
sabê-lo. Era capaz de identificar à maioria, conhecia seus nomes em latim e em
língua vernácula, suas propriedades e perigos. Aonde fora a acompanhava sua
caderneta, uma pequena caderneta mais comprida que larga, onde as desenhava e
realizava notas. Sustentava largas conversações com o melhor farmacêutico da
cidade, Demetrio Sozinha, o qual se assombrava dos conhecimentos de uma moça
tão jovem.
—Sua educação é extremamente esmerada —lhe disse em uma oportunidade.
—A devo a minha tia Pola —admitiu Rafaela—. Ela foi para mim como Beatriz
Galindo para a Isabel a Católica. Além disso, o cunhado de minha prima Federica,
frei Cayetano Rodríguez, permite-me consultar sua biblioteca com uma
generosidade sem limite.
A diferença da maioria de seus congêneres, Rafaela tinha aprendido a ler e a
escrever da mão de Pola, uma das mulheres mais cultas de Buenos Aires, que
viveu na casa da rua Larga para colaborar na criação de sua sobrinha, até o dia
em que fugiu com Leónidas, um índio escultor dos padres franciscanos. Depois de
quatro anos da fuga, Rafaela não se habituava à falta de sua tia. A condenação
que pesava sobre ela, pela qual Rómulo proibia mencioná-la, tornava mais onerosa
a separação. No ano oito, Rafaela recebeu às escondidas uma carta de sua tia
onde lhe informava que vivia com o Leónidas em Córdoba e que era feliz.
Clotilde atribuía à influência de Pola a inclinação desnaturalizada de Rafaela por
fazer amizades com as classes baixas. Em uma ocasião, comentou a uma senhora
com ares de imperatriz: "Minha sobrinha Rafaela comete a estupidez de evitar a
companhia dos de nossa classe. É repugnante admitir que se sentia cômoda
movendo-se em círculos inferiores. Não compreendo como suporta a vulgaridade".
A declaração, escutada por acaso, tinha-lhe doído, e sabia que Clotilde aludia a
Corina Bonmer, sua única e verdadeira amiga, que incorria no pecado de
trabalhar na Imprensa dos Meninos Abandonados para subsistir. "por que me
sinto a gosto entre pessoas de classe baixa? Terei alma de ingrata, como tia Pola?"
Esse pensamento a angustiava.
Embora soubesse de cor as receitas do Manual de esposas, cada tanto o folheava
e acariciava as tampas forradas em couro como se o fizesse com a face de sua tia.
—Tia Pola —soluçou, afligida pelo medo de enfrentar sozinha a ruína de La
Larga.
A escrava Peregrina, a seu lado, a olhou de esguelha e mordeu o lábio. A menina
de uns três anos que estava nos braços de Creóla passou às pernas de Rafaela.
—O que ocorre, Mimita? —perguntou à menina—. Diga-o com palavras, não com
gestos —Mimita, obstinada em seu silêncio, limpou-lhe uma lágrima com o dedo e
o mostrou—. Estou chorando —admitiu, sem ânimos de obrigá-la a falar—. Sinto
falta da minha tia Pola.

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—Tudo teria sido mais fácil se a senhorita Pola tivesse estado na casa quando
capturaram ao amo Rómulo —opinou Creóla, de mau humor.
O cabriolé, um dos poucos luxos que conservavam, deteve-se. Babila abriu a
portinhola, desdobrou a escada e a ajudou a baixar. Rafaela tinha decidido visitar
o asilo Martín de Forre antes de seguir para a estadia. O edifício era bem cuidado
e pulcro. Anos atrás, frei Cayetano lhe mencionou esse local, uma casa que
recolhia a escravos velhos e abandonados. Rafaela não conhecia sua fundadora, a
condessa de Stoneville, porque formava parte de um círculo ao que ela não
acessava, mas, como ansiava sua amizade —a atraíam os comentários a respeito
de sua vida e seu comportamento—, apresentou-se no asilo com a desculpa de
uma doação. Recebeu-a Pilar Montes, outra grande dama portenha, e lhe explicou
que Melody —assim chamou à condessa de Stoneville— vivia na Inglaterra com
seu marido, Roger Blackraven, e seu pequeno filho. Apareceu Guadalupe Moreno,
a outra fundadora, e a saudou cordialmente. Naquela oportunidade, Rafaela
entregou uma rica doação —gêneros para lençóis e pastilhas de sabão de insípida
que ela fabricava— e prometeu retornar. Fê-lo, pois embora não tinha obtido seu
objetivo —obter a atenção da famosa "condessa boa"—, a comodidade que tinha
experimentado com Pilar e Lupe a surpreendeu pois, sendo duas damas de bom
tom, ela as tinha julgado como desdenhosas no passado. Formar julgamentos
apressados formava parte de sua larga lista de defeitos.
Avançaram pelo caminho de pedra até o portal do asilo, onde Peregrina agitou a
aldaba. Abriu-lhes uma mulata de avançada idade, saudou-as com familiaridade e
as convidou a passar. Rafaela, muito atenta aos aromas, em seguida percebeu que
o lugar, como de costume, encontrava-se limpo e ventilado.
Guadalupe Moreno a viu avançar e recordou a aquela moça alta, de aromas
cativantes, que as tinha visitado pela primeira vez três anos atrás. Agora
caminhava com uma menina na mão; bastou-lhe uma olhada para advertir que
não era normal; demonstravam-no seu rosto, fino e pequeno, e também seu corpo,
de braços largos e pernas curtas e arqueadas. Movia-se com dificuldade, e
Guadalupe se perguntou o que aconteceria se Rafaela a soltasse.
As suspeitas a respeito da maternidade da menina tinham ocupado as fofocas
dos salões por meses. Alguns sustentavam a versão oficial: era filha de uma pobre
mulher de São Fernando da Boa Vista, que a tinha entregue aos Palafox para sua
criação; outros insinuavam que era fruto do namorico de Clotilde, viúva, embora
ainda jovem, com León Pruna, um agiota que a visitava freqüentemente; poucos
apostavam a que o deslize o tivesse cometido a Cristiana com algum de seus
vários festejantes; e a maioria apontava a Rafaela Palafox e Binda, a esquiva
Rafaela, a que se encerrava no quinta de Barracos, entre suas árvores, plantas e
flores, a que, murmurava-se, era meio bruxa e praticava a alquimia, e que preferia
conversar com a Corina Bonmer, a de má reputação, filha de um conspirador
francês, morto na prisão no 95. "Como saber qual das três é a mãe dessa
desventurada criatura?", perguntou-se Lupe, se no ano sete as três mulheres
tinham desaparecido entre galos e meia-noite para passar uma temporada na
estadia La Larga. A abnegação com que Rafaela cuidava da menina a acusava.
Lupe olhou de soslaio a Pilar Montes e entrevio que se debatia com o mesmo
pensamento.
—Por fim conheceremos sua protegida! —exclamou Pilar, com essa soltura cheia
de distinção que Lupe lhe admirava.
—Boa tarde —saudou Rafaela—. Ela é Milagres. Chamamo-la Mimita.

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Compartilharam um momento agradável. Serviram hordiate, chá de hortelã a
Rafaela, porque lhe conheciam o gosto, e comeram biscoitos de mazapán. Da
queda em desgraça dos Palafox, as doações de Rafaela se limitavam a sabões de
sua fabricação, alvejante de cravo, algum ungüento para queimaduras e solução
para desinfetar as habitações dos doentes; já não havia dinheiro nem gêneros nem
conservas. Peregrina entregou o modesto pacote, e ficaram de pé para despedir-se.
Aguardava-lhes uma comprida viagem pelo caminho das Chácaras, que
contornava o Rio.
Creóla subiu ao carro com um bufido e se acomodou em um extremo, longe de
Rafaela, que ocultou um sorriso ante o mau humor da mulata. "Minha doce
Creóla", pensou. Pertencia-lhe desde fazia doze anos, quando a recebeu como
presente em seu quinto natalício. Ela tinha pedido uma boneca; Rómulo, em troca,
comprou-lhe uma escrava tão somente um ano maior. "Somos irmãs do coração",
estavam acostumadas a brincar. As feições da negra chamavam a atenção por seu
risco, delicado, proporcionado, regular, feminino. Tão alta como Rafaela, possuía a
imagem de uma dignataria e caminhava com um ar que sua ama imitava
quadrando os ombros e erguendo a cabeça. Rafaela lhe admirava também a
coragem. A nada temia, nem aos cães, nem aos cavalos, nem aos desconhecidos,
enquanto que, na vida de Rafaela, o medo se erigiu como o amo; atava-a e a
afligia; odiava sua índole suscetível.
—Segue de mau humor, Creóla? —estimulou—. Pois mais vale que te passe.
—Seu pai lhe deixará as nádegas como um ferro no fogo quando se inteirar de
que se veio sozinha para a estadia.
—O que podia eu fazer? Dom Íñigo nos convoca com urgência.
—Isso mesmo digo eu: o que pode você fazer? Nada! O que sabe de dirigir uma
estadia? Poderia haver-se ocupado seu primo, esse janota —resmungou.
—Creóla, não seja insolente —disse Rafaela, com um tom medido e calmo que
suas escravas conheciam e do que não se confiavam—. Aarón viajou a Montevidéu
para visitar meu pai, bem sabe, e não sei quando retornará.
—Poderia ter esperado a que retornasse a senhora Justa, minha menina —
interveio Peregrina—, tal como lhe disse a senhora Clotilde. O que zangada estava
com você, minha menina!
Rafaela evitou pensar em sua tia Clotilde.
—De minha tia Justa não saberemos em um bom tempo. Quando visita minha
prima Vela em São Pedro não retorna até depois da quarta-feira de Cinza, sabem.
O problema aqui é que Creóla sentirá falta de Paolino.
—Já! Isso desejaria ele! —gabou-se a mulata.
"O bom do Paolino", sorriu Rafaela ao pensar no fornecedor que provia à quinta
dos Palafox e que apaixonava a Creóla com seus galanteios. Rafaela só comprava a
ele porque se ocupava de carregar suas pipas longe da costa, onde as lavadeiras
não corrompiam a água com sabão, alvejante e anilina, e longe também das
desembocaduras de duas valas, o do Matorras e o de Amadurecidos, infestados de
lixo e animais mortos. "Pobre Paolino!", compadeceu-o. Na estadia, Creóla o
esqueceria, cativada por um peão ou algum dos marreteiros; era namoradeira e
todos gostava. Ela, em troca, tinha entregue seu coração só uma vez.
Juan de Dios Bonmer a salvou do perigo como os cavalheiros de armadura
salvavam às princesas nas lendas medievais que lhe contava tia Pola. Havia-se
interposto entre ela e a matilha de cães silvestres com seus braços, seu vozeirão e
sua integridade como únicas armas. Os cães se afastaram, e ele a conduziu a sua

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casa, a poucas quadras, nos Altos de Escalada, frente à Praça da Vitória. Tremia,
assim que sua irmã, Corina Bonmer, ajudou-a a sorver chocolate quente e
açucarado, Escoltaram-na até o Conselho, onde Rómulo Palafox se desempenhava
como Defensor de Pobres; ali a despediram. Ao dia seguinte, Rafaela e Creóla
bateram na porta das habitações dos irmãos Bonmer com alguns obséquios. Esse
foi o começo da amizade com a Corina e do idílio com o Juan de Dios. Poucos
meses mais tarde, influenciado pela amante de Corina, o gigante Sorte Arzac, pelo
Agustín Donado, a cargo da Imprensa de Meninos Abandonados, e por outros
amigos do Café de Marcos —Mariano Orma, Antonio Beruti e Domingo French—,
Juan de Dios se alistou em um esquadrão dos Húsares com o grau de sargento
para defender a cidade do ataque das tropas inglesas acantonadas em
Montevidéu. A princípios de julho de 1807, o general Whitelocke foi repelido, a
cidade salva e Juan de Dios morto em batalha. A dor atravessou a Rafaela com a
certeza de um fio, e, com culpa, deu-se conta de que sofria mais que em ocasião
da morte de sua mãe, a que nunca se havia aficionado. Não tinha direito a chorá-
lo abertamente nem a vestir de luto, pois sua família desconhecia o romance; o
teriam proibido. Os Bonmer não eram ninguém; seu pai, um francês acusado de
conspirador, inimigo de Martin de Álzaga, tinha morrido na prisão no 95 depois de
sofrer torturas reiteradas, prática escandalosa que significou uma ofensa na vida
política do basco. À morte do Bonmer, seus filhos, Corina e Juan de Dios,
partimos à Casa de Meninos Abandonados, onde os trataram bem, além de lhes
ensinar o ofício da imprensa. Da morte de Juan de Dios, Rafaela doava roupa e
mantimentos ao orfanato. Colocava-os no torno e, enquanto Creóla o fazia girar,
fixava a vista na inscrição esculpida no canto sobre a porta: Meu pai e minha mãe
me arrojaram. Divina piedade, me ampare aqui.
***
O padre Ciríaco Aparicio saiu ao balcão do convento da Mercê, que dava sobre a
parte traseira, de onde se apreciava a horta ao final do terreno. Artemio Fúria
chegaria de um momento a outro, e ingressaria pelo portão de mulas, que dava
sobre a rua de Santo Cristo, e o faria com sua própria chave, uma das
prerrogativas concedidas pelo principal da ordem da Mercê ao gaúcho Fúria, como
o conhecia nesses tempos.
Ciríaco sorriu com nostalgia ao rememorar os primeiros dias de Artemio nas
tolderías de Calehán, quando os meninos ranqueles deixaram de chamá-lo Pichín-
Antü (pequeno sol) para batizá-lo Pichín-Ülleún (pequena fúria) depois de que
demonstrou com freqüência que, embora de aparência mirrada e ar abatido,
ocultava um temperamento que se elevava como o do leão para defender-se se o
provocavam. Ao final, com vários machucados, olhos negros e narizes sangrantes,
os meninos terminaram por aceitá-lo como a um deles e lhe ensinaram suas
habilidades com a generosidade que caracterizava ao índio pampa. Artemio
aprendeu a loncotear, uma forma de luta para dirimir pequenas diferenças, a
fabricar boleadoras, para chateio dos cães e pequenos animais, a arrojar a lança
de tacuara, uma espécie de cano leve e flexível, e, sobre tudo, a dominar o cavalo
com a assombrosa destreza dos ranqueles. O tempo passou, e Pichín-Úlleún se
converteu em Ülleún ou em Fúria, sua tradução mais aproximada.
Os anos pareciam haver-se escorrido como água entre os dedos, e, cada tanto,
quando ao Ciríaco o assaltava a inquietação pela sorte de seu pequeno Artemio,
insistia-se a recordar que já era um homem, "um bem enérgico", ao dizer de
Belisario, com uma reputação granjeada à força de luta, trabalho e firmeza.

54
Chamavam-no gauderio, um vocábulo do sul do Brasil usado para nomear aos
camponeses andarilhos e aos vagabundos, ou seu equivalente em castelhano,
gaúcho, e que referia aos cavaleiros errantes dos pampas, aos vagos, aos mal
entretidos, que iam de campo em campo em busca de um bico, porque assim vivia
Artemio Fúria, como um vagabundo, sem solo, sem querência, de posto em posto,
de estadia em estadia, embora Ciríaco sabia que seu coração se repartia entre as
paredes desse convento que o tinham protegido de pequeno e os ranchos onde
habitava sua família, os ranqueles.
Às vezes, para não esquecer, ficava a rememorar os anos em que partia rumo ao
sul para visitar seu irmão Belisario, com a desculpa de evangelizar aos infiéis,
levando consigo ao pequeno Artemio, concordou educá-lo no convento de La
Mercê, um pouco por aquilo de que o Senhor os enviava de dois em dois e outro
pouco porque não queria separar-se dele.
Bastaram poucas semanas para que o menino, chegado com ele por volta de
finais do inverno do ano 90, cheio de piolhos, magro e com aspecto de selvagem,
surpreendesse ao principal com sua inteligência aguda, sua moderação e valor.
Nunca mencionou o que tinha testemunhado a noite de 5 de junho de 1790, e
Ciriaco e outros sacerdotes, depois de algumas tentativas, não voltaram a
questioná-lo. O que tinha acontecido estava enterrado em sua mente e em sua
alma, embora às vezes aparecia e o atormentava, em especial de noite, quando
Ciriaco corria a sua sela e despertava de um pesadelo. Sobre algumas presunções
tinha quase certeza, como por exemplo, que o ataque o tinha perpetrado um grupo
militar, posto que Artemio, no caminho de volta a Buenos Aires, negou-se, com
outro de seus acessos de raiva, a entrar no forte para denunciar o assassinato de
seus pais, e Ciriaco não teve problema em seguir de comprimento. Aficionado
como estava ao menino, não queria separar-se dele, sobre tudo depois de que lhe
tinha assegurado que não ficava ninguém. "Só você, padre", tinha expressado.
Ciríaco lhe ensinou a falar corretamente o castelhano, a escrevê-lo e a lê-lo
também, embora o insistiu que seguisse pensando e lendo sua língua mãe, o
inglês, para não esquecê-la. Poliu seu rudimentar latim e grego; deu-lhe lições de
história antiga e moderna, de teologia, de geografia, de aritmética e geometria.
Artemio absorvia os conhecimentos com a mesma avidez que aprendia o que
Calelián, Calvú Manque, Belisario e outros lhe ensinavam durante as temporadas
nas tolderías, e assim como traduzia parágrafos em línguas mortas ou resolvia
equações, sabia dominar a um cavalo com a simples pressão dos joelhos, domá-lo
ao modo índio, pialar, enlaçar, esfolar, fazer botas de potro com os quartos
traseiros de uma égua ou com a pele de um gato Montes e trançar couros para
rédeas e laços de até quatorze tatos. Era perito colocando coleira potros à égua
madrinha para formar tropa, e muito hábil nos arreios de gado silvestre, para o
qual se requeria uma destreza que evitasse a correria, a morte das crias por
achatamento ou a do próprio cavaleiro. Calelián sempre o convocava para a
volteada, isto é, a caça de éguas cimarronas, das que lhe tocavam algumas, que
permaneciam nas tolderías aos cuidados de Calvú Manque. Em uma ocasião,
quando Artemio era um jovem de dezesseis com aspecto de homem, o cacique
convidou ao Ciríaco a presenciar a caça do ñandú10, uma das tarefas mais difíceis,

10

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em que não era impossível perecer. Belisario segurou uma égua mansa e se
manteve junto a seu irmão o que durou a ordalía. O coração lhe saltava ao ver cair
aos cavaleiros em sua carreira precipitada depois da gigantesca ave, que,
ziguezagueando e batendo as asas, evitava as boleadoras. Belisario, com orgulho
de pai, ia lhe explicando por que Artemio, junto com o Calelián e Calvú Manque,
era considerado dos melhores.
—Por que faz isso? —quis saber Ciríaco quando Calelián arrojou a camisa ao
chão.
—Está marcando o lugar onde ficaram as boleadoras, para procurá-la depois.
Ao momento, os caçadores estavam semidesnudos e o campo, regado de objetos.
—Note em Artemio. Note como sobe solto, quase não estriba, logo que apóia a
ponta dos dedos. Deste modo, em caso de cair, não ficaria enganchado ao animal
—ante a careta de Ciríaco, Belisario acrescentou—: Não te espante, irmão. Artemio
sabe manter-se na sela em todo apuro. Estar sobre o cavalo é tão natural para ele
como caminhar. Mas se cair, é um dos melhores albergues que conheço. Nestas
terras, infestadas de vizcacheras11 e tocas de peludo, é fácil que o cavalo se
tropece e o cavaleiro saia disparado. Depende de sua habilidade para não quebrar
o pescoço. Olhe! —gritou Belisario, e Ciríaco girou a cabeça justo para ver rodar
pelo terreno ao alazão de Artemio. Ele caía de pé, com a graça de um gato,
sacudia-se o pó, respondia a um comentário risonho de Calvú Manque e voltava
para sua sela, montando ao animal de grande elevada com um só salto.
Como se a queda lhe tivesse insuflado novos brios, Artemio arrojou as boleadoras
a um ñandú de plumas cinzas e o volteou. Seus companheiros levantaram os
punhos e lançaram gritos que arrepiaram a pele de Ciríaco.
Artemio saltou do cavalo e correu para sua presa, que tentava ficar de pé. Dava
lástima perceber seu desespero.
—Bem, moço —escutou dizer ao Belisario pelo baixo—. Observa, Ciríaco. Artemio
acabará com o ñandú da maneira menos cruel, embora seja a mais difícil.
O moço tirou de sua cintura uma faca de grandes dimensões. "Deve ser pesado",
conjeturou Ciríaco ao ver como lhe inflavam os músculos.
—Mais fácil —explicou Belisario—, teria sido lhe esmagar a cabeça com as
boleadoras ou lhe cravar o guampudo —falava da faca com cabo de "chifre", quer
dizer, de corno ou de haste—, na parte baixa do bucho. Mas assim sofre o pobre
bicho. Artemio o degolará, limpamente. Mas para isso se necessita um braço de
força excepcional, porque enquanto o degola, deve lhe sustentar a cabeça, que o
animal sacode de um modo infernal.
Ciríaco, encantado, não conseguia apartar a vista do espetáculo. "Um braço de
força excepcional", repetiu, e comparou esses braços grossos e fibrosos com os
magros do menino que tinha encontrado meio morto seis anos atrás. A ilusão do
principal do convento de converter a Artemio em um grande mercedário12, desses
que se recordariam nos anais da história da ordem, era um sonho vão. Artemio
Fúria pertencia a esses pampas; ali seu espírito se expandia e o elevava, voltava-o
pleno. Adivinhava-se em seu rosto, nessa meio sorriso, no brilho de seus olhos,
enquanto levantava sobre sua cabeça os asas depenadas do ñandú como troféu de
guerra.
11
Tipo de coruja.
12
Religioso que pertence à Ordem das Mercês.

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À medida que passava o tempo, cada fim de temporada com os ranqueles, a
Artemio se o fazia mais difícil retornar à vida conventual. O confinamento e a
disciplina o inquietavam, e Ciríaco o comparava com um semental apanhado em
um curral muito menino e sem éguas.
—Quero ficar com meu padrinho —assim chamava Belisario, ao qual se
encontrava muito ligado desde menino. "Duas almas atormentadas que se
atraem", refletia Ciríaco ao vê-los juntos. Falavam pouco, entendiam-se por gestos
ou gestos, transcorriam horas em um cômodo silêncio. Ciríaco os contemplava na
ramagem do rancho, Artemio lhe atava o cigarro, enquanto Belisario sovava o
couro para as novas botas de potro. Com um assentimento, permitia-lhe que o
acendesse com o isqueiro e lhe desse uma vaia antes de entregar-lhe. “Contagiar-
lhe-á esse nefasto vício”, protestava Ciríaco, mais ciumento que zangado.
Uma manhã, depois da prece matutina, no caminho para o refeitório para tomar
o café da manhã, Artemio lhe sussurrou:
—Preciso falar com você, padre Ciríaco.
O mercedário baixou as pálpebras, inspirou profundamente e se aferrou a seu
crucifixo. "O dia da despedida chegou", pressagiou. Faltava pouco para que
Artemio cumprisse os dezessete anos, já tinha expressado que não se ordenaria
sacerdote e que desejava partir. Como tinham acreditado o principal, ele e outros
que o reteriam? Pois embora de natureza sossegada, esse moço não conhecia a
obediência, carecia da submissão necessária para a vida em um convento; sua
índole, alheia a aceitar ordens, rebelava-o contra os mandatos. O era seu próprio
chefe e ninguém lhe diria o que fazer.
—Padre Ciríaco, hoje deixo o convento.
—Hoje? Hoje mesmo? —balbuciou, sentindo um parvo.
—Já é tempo, padre.
—Tempo para que, Artemio?
—A conta que se abriu aquela noite de 1790 espera ser fechada.
—O que quer dizer? —assustou-se Ciríaco.
—Vingança, padre.
—Nunca falou do que ocorreu aquela noite. Jamais.
—Que nunca tenha falado não significa que tenha esquecido.
—Fale-me! Conta-me o tudo! Saca fora essa dor, meu filho.
—Não é necessário. Eu sei o que vi. Não preciso falar disso. Os que destruíram a
minha família pagarão.
—Esquece e perdoa, meu filho! —Artemio se limitou a olhá-lo fixamente, e
Ciríaco advertiu o irreparável de sua decisão—. Acaso o que te ensinei nestes anos
a respeito da caridade e o perdão não tem feito trinca em ti, Artemio? Não entrou
em seu coração a frase do Senhor: "Perdoa setenta vezes sete"?
—O Senhor não teve que testemunhar o assassinato de seus pais. Em caso
contrário, não haveria dito que terá que perdoar setenta vezes sete.
—Blasfêmia! —enfureceu-se o padre Ciríaco.
—Sim, pai, sou um blasfemo. Sinto-me mais a gosto com a lei do Talião, olho por
olho e dente por dente. A de Cristo não me serve. Por isso não posso continuar
aqui. Deus e eu não nos encontramos em bons términos. Tenho que seguir meu
caminho.
Horas mais tarde, os mercedários se agruparam para despedi-lo no portão de
mulas, o mesmo pelo que, de um momento a outro, ingressaria uma vez mais,
porque lhes tinha prometido que voltaria e cumpriu. O dia da despedida, deixou

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ao Ciríaco para o final. Aproximou-se dele com expressão contrita, ficou de joelhos
e lhe beijou os cordões. Abraçaram-se, e ao Ciríaco pareceu ficar perdido no torso
enorme do moço. E lhe veio à mente o amanhecer de 6 de junho de 1790, quando
o sustentou em braços para lhe dar de beber mistela, As palavras de despedida
que Artemio lhe disse ao ouvido, Ciríaco as entesourava após.
—Você é meu pai.
Praticou-lhe o sinal da cruz na frente, benzeu-o e lhe aconselhou:
—Acquiesce et pacem habeto —"Tranqüilize-te e vive em paz".
O alvoroço de Serapio o devolveu à presente. O mulato, que sabia da iminente
chegada de Artemio, fazia momento que simulava tirar erva daninha da horta,
perto do portão. Ao vê-lo entrar com seu cavalo por detrás, soltou um grito e
correu para ele. Artemio o abraçou, levantou-o no ar e o acomodou sobre os
arreios. Até a essa distância, Ciríaco vislumbrou o sorriso que Artemio lhe
dedicava, das poucas sinceras que lhe conhecia, as que dirigia ao Serapio, o
mulato que tinham acolhido de recém-nascido ao achá-lo em uma cesta no torno.
Artemio se afeiçoou a ele de um princípio, e o chamou Serapio porque justo nesses
dias estudava a vida de São Serapio, seu mercedário favorito. Ciríaco lhe
perguntou por que o admirava tanto, e Artemio lhe respondeu:
—Porque era de origem irlandesa.
Ninguém objetou o nome, e o órfão passou a chamar-se Serapio, para gosto do
mimado do convento. Logo advertiríamos que o pequeno não era normal. Tinha
uma perna mais curta que a outra e seu rosto assimétrico. À medida que passava
o tempo, suas incapacidades físicas se pronunciavam como também as mentais.
"Será sempre como um menino", explicou Ciríaco a Artemio quando este
perguntou por que Serapio não falava corretamente. A resposta lhe causou funda
impressão e aumentou o sentido de amparo e o carinho que o negro lhe inspirava.
Além de Serapio, saíram a recebê-lo alguns dos sacerdotes que desempenhavam
tarefas no jardim e na horta, entre eles o padre Cosme, quem, por ocupar-se da
tonsura, tinha tido a seu cargo a tarefa do despojo de 90, recém-chegado dos
aduares do Calelián.
—Como diz que o apelidaram esses infiéis? —perguntou a Ciríaco, enquanto
lutava para cortar o cabelo de Artemio, que se defendia com coragem e gritava.
—Pichín-Ülleún. Pequena Fúria.
—Pois que bem posto o apelido! Parece um gato raivoso! Deixe-te cortar as
unhas, Artemio Pequena-fúria!
Ciríaco sorriu com a lembrança. "Artemio Pequena-fúria." Não se decidia a ficar
em movimento, baixar as escadas, cruzar o jardim do convento e unir-se ao grupo
que lhe dava a bem-vinda. Permanecia quieto no terraço, admirando no que se
converteu sua Pequena-fúria, em um homem esplêndido, de textura imponente,
com um ar de valentão que infundia medo e respeito, e inclusive seu rosto, de
uma beleza que imediatamente pasmava, como se resultasse excessiva e
inverossímil, impunha-se pela severidade de suas feições e de seu olhar. Desde
fazia anos vestia as botas dos gauderios, cômodas para as tarefas no campo e para
os arreios.
Ciríaco notou que, por mais que o sorrisse a Serapio, o gesto de Artemio nunca
mudava, jamais deixava de refletir o caráter anti-social de seu temperamento e a
dureza e frieza de sua índole. Como o gaúcho Artemio Fúria se converteu em uma
lenda da campanha, cada tanto lhe chegavam anedotas que o tinham por
protagonista de episódios de sangue. "Não pode pretender, padrezinho", insistia-o

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a raciocinar Calvú Manque, "que nos comportemos como duas meninas. A
campanha é um lugar feroz". Ciríaco se angustiava perguntando-se se essas
anedotas seriam certas e se em alguma dessas brigas, seu moço teria despachado
aos assassinos de seus pais. Vivia pedindo missas pela salvação de sua alma.
Artemio Fúria elevou a vista e descobriu ao padre Ciríaco no balcão. Seus olhares
se cruzaram. Ciríaco lhe sorriu e Artemio levantou o braço para saudá-lo. Ao final,
encontraram-se no pórtico. Abraçaram-se, e Artemio lhe beijou os cordões não por
ardor religioso a não ser em atitude reverencial. Já não lhe pedia a bênção como
quando era menino, mas de igual modo, Ciríaco lhe apoiou a mão na frente e a
murmurou em silêncio. Sentia tanta felicidade do tê-lo a sua frente. Fazia quase
um ano que não o via e o tinha sentido falta.
—Filho, que neste ano que acaba de começar —desejou Ciríaco—, Nosso Senhor
te encha de benções.
—O mesmo para você, padre—lhe respondeu, e ao sacerdote não o surpreendeu
que empregasse os modismos dos patrícios; lhe tinham pego desde fazia anos,
depois de passar mais de uma década entre eles. Não obstante, Artemio lhe tinha
confessado que, quando pensava, seguia fazendo-o em inglês, às vezes em gaélico.
Saudaram o principal em seu escritório, e Fúria entregou um saco com moedas,
uma doação que se repetia desde fazia tempo e que dava conta de que os negócios
partiam bem. Ao momento, tomavam mate na cozinha; Serapio os cevava.
—Soube que há dias te encontra na cidade —lhe reprovou Ciríaco—. Onde te
aloja? No de Albana?
—Não. Na pensão de dona Clara.
—Uf! —queixou-se o mercedário—. Essa mulher era uma delinqüente em seu
país, a Inglaterra, e aqui não pode esconder sua verdadeira natureza. Sempre
anda vociferando grosserias.
—São divertidas — estimulou Artemio, e Serapio soltou uma gargalhada, a que
Ciriaco sossegou de uma olhada.
—E o que me conta de meu irmão?
—Meu padrinho ficou na Garganta de Morón —nessa localidade, a cinco léguas
ao oeste de Buenos Aires, Artemio tinha comprado uma porção de terra, com um
casco ruído e vários postos, quer dizer, vários ranchos para peões onde cobria à
família de Calvú Manque, a outros da tribo de Calelián e a seus homens.
—Possivelmente vá visitá-lo —disse Ciriaco, e Artemio assentiu. Ambos sabiam
que embora Belisario tinha abandonado a reclusão entre os ranqueles para
acompanhar Artemio em sua vida de patrício, jamais poria pé em Buenos Aires,
cenário do crime pelo que o buscava.
—Seus amigos andam muito revoltosos —comentou o mercedário, e Artemio
levantou a vista sobre o chimarrão e o inquiriu sem palavras—. Pancho Planes
arenga todas as tardes no Café de Marcos subindo a uma mesa —Artemio moveu a
comissura esquerda para ensaiar um sorriso—. Seu primo, Vicente López, escreve-
lhe os discursos subversivos e ele os proclama a viva voz. Temo que terminem nas
masmorras do Conselho. O mesmo o Gigante Arzac e Mariano Orma. Faz tempo
que não vejo os Pueyrredón.
—Em uns dias irei para sua estadia, em São Isidro. Juan Andrés quebrou a
perna e me mandou chamar. Anda necessitando que o ajude com o rodeio. Padre
—disse Artemio, e pela inflexão que tomou sua voz, Ciriaco ficou alerta—, você
conhece um tal Rómulo Palafox e Binda?
—Sim, conheço-o. Foi regedor do Conselho em várias oportunidades, sempre ao

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serviço de Alzaga. São bastante amigos. Agora anda mal —aquilo pareceu
interessar a Artemio—. É um dos sarracenos e embora o vice-rei Cisneros os
indultou por essa causa, ao Palafox pesam outras que o mantêm refugiado em
Montevidéu.
—Tem uma filha —ante o comentário, Ciriaco o olhou como aguardando uma
explicação, que Artemio não pensava dar.
—Sim, tem uma filha. Não a conheço nem sei como se chama. Conheço sua
sobrinha, Cristiana Romano, uma moça de grande talento para a música. Sei por
que forma parte do coro da Facunda Rei, esposa de Blas Parera, e cantou aqui
para a missa de véspera de Natal —logo depois de uma pausa, ao Ciriaco o
dominou a curiosidade—: por que quer saber dele? Conhece-o?
—De vista. Então —disse, e sugou o chimarrão, sem olhar ao sacerdote—, sua
filha não está no coro da Facunda Rei.
—Não, não. Como te disse, pouco se sabe dela. Vive reclusa. Parece ser que a
desonraram anos atrás. Ficou grávida e sem marido. Disseram-me que a criatura
nasceu estropiada. Por que perguntas?
Artemio fez caso omisso da pergunta e seguiu indagando.
—Rómulo Palafox é peninsular?
—Sim, acredito que madrileno (pessoa que nasce em Madri), e faz muito alarde
de sua origem. Dá-se ares por ser peninsular. Embora sua mãe fosse portenha,
Engracia Binda, filha de um rico comerciante. A moça viajou a Espanha junto com
sua criada, uma Índia, para desposar Ambrosio Palafox. Aos poucos anos de
matrimônio, Ambrosio, Engracia e seus três filhos (acredito que Rómulo é o mais
velho) foram para Potosí, onde dom Ambrosio se converteu em um próspero
mineiro e azoguero13. Tem negócios com ele? —insistiu Ciríaco.
—Sim —mentiu Artemio, porque não lhe confessaria que o tinha sem cuidado o
tal Palafox e Binda; interessava-lhe a filha, a que tinha visto dias atrás do local
que ocupava na mercearia de Caricaburu, o matadouro se localizava em frente ao
Forte, sobre a rua de Santo Cristo.
Em realidade, o que tinha atraído sua atenção era a menina que caminhava
junto à filha de Palafox; recordou a Serapio, por seus movimentos desajeitados e
por sua carinha magra e desigual. O vestido de renda e cetim caro delatavam sua
origem elevada. Sentou na cadeira, entre confundido e curioso, já que pessoas de
boa aparência escondia aos parentes disformes e aos deficientes. Moveu os olhos
para observar quem a levava da mão e ficou perplexo ante a visão de uma moça,
cuja voz de timbre grave, gentil, culto, flutuou até ele e o alcançou como um roce.
—Vamos, Mimita, repete comigo. Anime-te!
—Vamos, Mimita —a insistiu a negra as escoltava.
—Sou o faroleiro da Porta do Sol —a ouviu cantar—, coxo a escada e acendo o
farol. À meia-noite ponho a contar e sempre me sai a conta cabal —e em tanto o
fazia, dava curtos saltos e movia o braço, obrigando à menina a bambolear-se.
Os transeuntes as contemplavam com um cenho; em seguida, ao reparar na
criatura, passavam de uma careta de estupor a uma de repulsão que Artemio lhes
teria apagado de um sopapo, a mesma careta que por anos lhe tinham arrojado a
Serapio quando saíam a pedir esmola com o padre Ciríaco. "Não são olhadas
compassivas", pensou, "mas sim de desprezo e condenação, como se a menina

13
Chefe que dirige as operações de fusão.

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tivesse culpa de ser imperfeita". A diferença dele —sempre o tinham enfurecido
quão olhadas recebia Serapio—, a moça seguia cantando como se estivesse no
jardim de sua casa ou como se passeasse com uma criatura graciosa e bela.
Admirou-a por isso, e um forte desejo de lhe ver o rosto em detalhe o impulsionou
a ficar de pé.
Entraram em um dos locais da planta baixa dos Altos de Escalada, ao
estabelecimento da senhorita Bernarda de Lezica, que além de prover cosméticos,
sabões, leques, luvas, colônias e perfumes, era uma prestamista de cuidado.
Artemio voltou para seu local na mesa da mercearia e aguardou um quarto de
hora.
Ao sair da loja, a moça, com a menina em braços, e sua escrava caminharam
depressa pela rua de Santo Cristo, dobraram na do Conselho e subiram a um
cabriolé coberto que as aguardava frente à Hospedaria das Nações. Decepcionado,
Artemio voltou sobre seus passos e se meteu no da senhorita de Lezica.
—Fúria —se surpreendeu a mulher—. Boa tarde. Veio pagar a conta da senhorita
Albana?
—Sim —mentiu, e tirou da carteira de seu cinto, chamado atirador, um par de
moedas. Cancelada a dívida, sua voz se tornou intimista ao falar—: Diga-me, miss
Bernarda —e deslizou uma moeda de ouro sobre o mostrador—, Quem é aquela
jovem que acaba de sair?
A mulher deteve o movimento de suas mãos e o olhou aos olhos. A seriedade do
gaúcho Fúria lhe advertiu que sufocasse a curiosidade e que se limitasse a
responder, e, como sabia que com ele não se jogava, disse:
—Chama-se Rafaela Palafox e Binda.
—É cliente de seu boliche?
—Não, é minha fornecedora de perfumes, sabões e cosméticos —pela primeira
vez, Bernarda descobriu um cenho de confusão nesse homem inescrutável——.
Rafaela das flores, assim a chamam porque dizem que é capaz de fazer florescer
algo, por pouco que pertença a estas latitudes. Comentaram-me que seu jardim é
uma selva de flores e plantas aromáticas. Supõe-se que prepara seus produtos e
os vende para doar as rendas ao Convento das Clarisas —se inclinou sobre o
mostrador e baixou a voz ao assegurar—: Isto era assim até faz um ano. Agora os
vende para subsistir. Ninguém deve sabê-lo, muito menos seu pai, Rómulo Palafox
e Binda, porque se julga impróprio que uma dama trabalhe. A única renda que
segue destinando às Clarisas é a que obtém pela venda dos rosários de pétalas de
rosa —Bernarda revolveu em uma gaveta e tirou uma caixa de madeira. Levantou
a tampa, e um penetrante perfume de rosas alagou as fossas nasais de Fúria—.
Este é o meu —esclareceu, enquanto lhe mostrava o rosário—. Os vendem as
Clarisas.
—Comprar-lhe-ei um dos perfumes da senhorita Palafox.
—Acaba de trazer este —e assinalou um frasquinho de cerâmica bem rústico,
com plugue selado com cera de abelha—. É novo —consultou uma lista escrita
com uma caligrafia grande e redonda, muito clara—. Chama-se... Água do Chipre.
Albana Buquê, a amiga e amante de Artemio Fúria, vivia aí mesmo, na planta
alta da propriedade de dom Antonio José de Escalada, chamada os Altos de
Escalada, um enorme casarão que funcionava como inquilinato. Saiu da loja,
transpôs o portão de quatro portas, cruzou o pátio em poucas pernadas e subiu
pela escada tragando-os degraus. Precipitou-se dentro das habitações com a
urgência de um adolescente luxurioso e, fazendo caso omisso dos protestos de

61
Albana —assegurava que chegaria tarde à função no teatro—, conseguiu recostá-
la sobre a cama e despi-la. Desarrolhou o frasco de perfume com os dentes e
molhou a ponta dos dedos com os que acariciou as partes íntimas de Albana, que
sossegou seus protestos e gemeu. Ele, acostumado aos aromas agudos —o dos
gaúchos suados, dos cavalos, do esterco e das vacas—, e que se queixava do
aroma dos xaropes de Albana, viu-se cativado por essa fragrância indecifrável, em
que não se detinha pensar, só lhe permitia que o envolvesse, que se apoderasse de
seu sentido do olfato e o extasiasse.
—Acaba dentro de mim —lhe murmurou Albana ao ouvido.
Artemio seguiu balançando-se, procurando sua satisfação e a dela. Retirou-se a
tempo e ejaculou fora. À medida que recuperava o fôlego, vários pensamentos lhe
cruzavam a mente. Como seria a mulher que tinha inventado uma fragrância tão
sublime? Por que Albana queria violar uma regra que os regia da época em que
ela, cativa nos aduares de Calelián, tinha-lhe ensinado a arte do sexo? "Rafaela
das flores. Rafaela Palafox e Binda, quem é, como é?" Acaso Albana desejava ficar
prenha?
—Não acabou dentro de mim —lhe recriminou.
—Nunca o faço. Você mesma o ensinou anos atrás.
—Faz com outras?
—Não. Por que me pede isso?
—Porque desejo um filho. E só posso pensar em que você seja o pai.
—E o que tem seu novo amante?
Albana ensaiou um gesto irado e se retirou a trocar-se.
—No que pensa? —perguntou-lhe o padre Ciríaco—. Perdeu o olhar.
—Na Albana —respondeu, e recebeu o mate das mãos do Serapio.
Embora o sacerdote censurasse a vida dissoluta da atriz, sentia avaliação por
ela. Trabalhava no teatro, frente ao convento da Mercê, e cada tanto cruzava a rua
de São Martín e se reclinava no confessionário.
Anos atrás, os ranqueles de Calelián atacaram a caravana em que viajavam
Albana Buquê e sua companhia, para Mendoza. Calvú Manque referiu ao Ciríaco
que Artemio, de dezessete anos, desafiou-se a duelo com o índio Arrepán, dos mais
ferozes da tribo, pelos favores da formosa atriz, e que tinha saído vencedor.
Conviveram no toldo que o cacique Calelián lhes atribuiu até que Ciriaco obteve a
liberação da mulher, honrando à congregação a que pertencia, fundada em 1218
por São Pedro Nolasco para redimir Cristãos em mãos de muçulmanos.
—O que ocorre a Albana? —quis saber o mercedário.
—Nada. Tive com ela e a vai bem.
—Quando diz que te parte à estadia dos Pueyrredón?
—Em uns dias mais.

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Capítulo V

O senhor Fúria

Rafaela se sentou no bordo da cama e estudou o quarto desconhecido. Horas


atrás, Babila tinha detido o carro no caminho das Chácaras e comunicado sua
decisão de interromper a viagem para São Fernando da Boa Vista por temor à
tormenta que se abatia sobre o Rio da Prata. "As sudestadas (fenômeno
meteorológico comum na região do Rio da Prata) levam tudo, minha menina, até
as carruagens. É de Deus que estejamos próximos da chácara dos Pueyrredón.
Será melhor pedir alojamento por esta noite." Babila tinha tido razão, nesse
momento a tormenta açoitava as paragens costeiras, às vezes iluminados pelos
raios que caíam cada vez mais perto a julgar pelo estrondo que fazia tremer os
cristais das janelas. Mimita se amparava no regaço de Peregrina.
Embora protestasse, Rafaela admitia a sábia decisão de seu chofer. Não teriam
chegado a tempo a La Larga. De igual modo, não conseguia desfazer do sentimento
de frustração e raiva. "Justo pedir alojamento em Bosque Alegre", destrambelhava,
referindo-se à quinta dos Pueyrredón, onde, desde fazia umas semanas, sua prima
Cristiana Romano, convidada de Isabel de Pueyrredón de Albarellos, transcorria os
meses de estio.
Bateram na porta. Creóla se apressou a abrir. Cristiana entrou seguida de sua
cadela Poupée. Rafaela ficou de pé de um salto.
—Toma a essa cadela em seus braços! —ordenou-lhe.
—Tanto teme a um animal pequeno? —burlou-se Cristiana.
—Esse animal pequeno, tão manhoso e perverso como sua proprietária, possui
uns dentinhos afiados que gosta de cravar nos talões alheios. Já mordeu Mimita
na mão. Sabe que lhe teme. Não a deixe solta. Levanta-a! —como Cristiana
permanecia inativa, com um meio sorriso nos lábios, Rafaela pronunciou—: Faz o
que te digo, Cristiana, ou na primeira oportunidade envenenarei a essa cadela e a
encontrará tão torcida e rígida que a confundirá com uma cerda a ponto de parir.
Sabe que o farei. Sabe que posso fazê-lo.
Cristiana tomou Poupée nos braços e dirigiu uma feroz olhada a sua prima.
Nunca se tinham levado bem. Desde pequenas, sem motivos aparentes, a
rivalidade se erigiu entre elas como um muro. Às vezes, Rafaela se lembrava da
alegria que tinha experimentado quando sua mãe lhe informou que Clotilde,
recentemente viúva, e seus filhos, Aarón e Cristiana, tinham chegado de Lima
para ficar na casa da rua Larga. O entusiasmo durou até que Rafaela decidiu que
Cristiana era mais agraciada e talentosa que ela e que seu pai, Rómulo, um esteta
nato, adorava-a. Como se esses dons não alcançassem, sua prima tinha resultado
uma exímia cantora, e tocava vários instrumentos com notável talento, ao menos
isso expressava, com olhos carinhosos e cara de tolo, o professor de música, o
professor Blas Parera, a mesma cara de parvo com que Rómulo Palafox a
contemplava tocar o piano ou o violão. "Hei aí nossa bela Euterpe", vangloriava-se
com freqüência, em tanto se aproximava para beijá-la no alto da cabeça, gesto que
Rafaela jamais teria julgado carente de paternalismo. Apertou os olhos. Não

63
pensaria nisso. Conviveram em uma tensa trégua para não causar o desagrado de
Clotilde nem de Rómulo, que tentavam as irmanar, embora o abismo entre elas
tivesse se tornado tão profundo que resultava impossível sorteá-lo. Cristiana era a
"bela Cristiana", a talentosa, a graciosa, a ocorrente, a do sorriso perfeito, a das
conexões invejáveis. Embora de escassa cultura, sabia como conversar com gente
decente, e suas amizades tinham os sobrenomes mais rançosos da sociedade.
—Nos deixem a sós —ordenou Cristiana, e Rafaela assentiu com a cabeça em
direção a Peregrina e a Creóla—. Alegro-me que trouxesse minha escrava.
—Peregrina não é sua escrava, mas sim de meu pai. E não a deixarei aqui para
que te frise o cabelo e te lustre as unhas quando a necessito para tirar adiante a
estadia.
—Seriamente passará uma temporada em La Larga"? Tio Rómulo não gostará
quando souber.
—O que quer, Cristiana? Fala de uma vez e vai embora.
—Quero falar contigo a respeito do que te confessei semanas atrás.
—Não escutarei suas mentiras.
Cristiana ficou olhando-a com fixidez, pensando que a odiava e admitindo que a
admirava. Rafaela era uma rocha; assim a via ela, era como se segurar de um
penhasco. Por isso, ao ficar grávida de Mimita, só atinou a correr a sua prima e
lhe contar a verdade. Existia certa qualidade em Rafaela que a voltava confiável e
pela qual resultava fácil lhe entregar os segredos. O fazia acordar a Ñuque, porque
Rafaela tampouco se escandalizava nem seus olhos condenavam enquanto ouvia o
pior pecado com uma mansidão refletida em seu modo de respirar e no de mover
as pestanas; terminava atuando como um calmante, como um feitiço e, de
repente, as verdades aterradoras brotavam e fluíam como um rio que Cristiana
não teria pronunciado no confessionário. Assim tinha acontecido a noite em que
se deslizou no dormitório de Rafaela para jogar-se em seu colo, lhe confessar que
estava grávida e chorar. O pânico a dominava, não lhe permitia raciocinar, e se
confiou ao bom julgamento de sua prima, que, como de costume, daria com a
solução. De igual modo aconteceu a tarde de 1° de janeiro do ano anterior, quando
Babila chegou com a notícia de que tinham apressado a Rómulo. Todas as olhadas
giraram para a Rafaela, à espera da palavra justa e definitiva que salvasse a
situação, e ela tinha estado à altura. Subsistimos graças a sua minuciosa
administração, à venda de suas jóias e de seus perfumes e cosméticos, que via
com freqüência nos penteadeiras de suas amigas. Apesar de tudo, não sentia
carinho por ela, mas bem, detestava-a. Ciúmes, inveja, temperamentos opostos, o
que fora, interpunha-se entre as duas. Mas, sobre tudo, interpunha-se Rómulo
Palafox e Binda.
—Seu pai e eu nos amamos —disse Cristiana, e observou que as maçãs do rosto
de Rafaela se tingiam de vermelho.
—Cale-te!
—Se não nos casamos, foi por ti, porque seu pai sabe que te oporia. E para ele,
você é mais importante —acrescentou, com um desprezo que não ocultou uma
nota de tristeza—. Não fará nada que te faça sofrer.
—É sua sobrinha! O que diz é monstruoso! Pagará caro esta calúnia!
—Sim, sou sua sobrinha! Mas seu pai se apaixonou por mim e me fez sua
mulher.
Rafaela lhe cruzou o rosto de uma bofetada. De algum modo a faria calar.
—Mimita é filha de seu pai —soluçou Cristiana.

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—Assegurou-me que era filha desse viajante francês que se hospedou na casa de
Maricas de Thompson.
—Seu pai me proibiu dizer isso —Por favor! Permite que seu pai e eu nos
casemos.
—Fora daqui! —vociferou, esquecendo que se achava em casa alheia—. Não
escutarei mais calúnias.
—Por favor! Permite que seu pai e eu nos casemos.
—Jamais! É indevido!
—Não, não o é! Minha amiga Marcelina Valdez e Inclán casou com seu tio Diogo
Coutinho. O bispo Lué lhes deu a dispensa para fazê-lo! Se o bispo não se opuser,
quem é você para fazê-lo?
—Sobre meu cadáver, entende-o? —aproximava-se a passo lento em tão
Cristiana retrocedia. — Agora vai antes que te tire a rastros!
Ao ficar sozinha, Rafaela deitou sobre a cama para acalmar a dor de estômago.
Da intoxicação com bagos de glicina à idade de cinco anos, sofria freqüentemente
doenças estomacais pela ingestão de certos alimentos ou por desgostos. Nesse
momento, sua cabeça se semelhava ao vendaval que se desatava fora e que
fustigava as costas e o rio. Como estrelas fugazes, os pensamentos sulcavam sua
mente e a afundavam em uma confusão que a aterrava. Rafaela era uma mulher
de certezas, de terrenos firmes, de brancos e negros, de veementes afirmações;
necessitava da segurança para combater o medo, e, da apreensão de seu pai um
ano atrás, tinha tido muito do que detestava: incerteza. Negava-se a admitir a
veracidade da confissão de Cristiana, por muito que as evidências se
confabulassem em demonstrar o contrário. Seu pai, o grande Rómulo Palafox e
Binda, de sangue nobre, de princípios e valores inamovíveis como as colunas do
Partenón, de robusta fé católica e respeitoso dos preceitos da Igreja, membro da
Irmandade da Santa Caridade, não se ajustava à descrição do homem que tinha
seduzido a uma adolescente e a tinha deixado grávida. Embora, em honra da
verdade, a Rafaela a tinha desconcertado a atitude de sua tia Clotilde e de seu pai
ante a notícia da gravidez de Cristiana: nenhuma reação, nada de gritaria, o
pranto e o descalabro para os quais Rafaela se preparou. O acerto se dispôs em
menos de um dia: partiriam as quatro, Clotilde, Cristiana, Rafaela e Ñuque, a La
Larga, onde aguardariam a iluminação. Quanto à sorte da criatura, Rómulo dispôs
que, logo que nascesse, fosse entregue a uma família de São Fernando da Boa
Vista com uma suculenta contribuição.
"Mimita é minha irmã", pensou, e uma inefável alegria a levou a incorporar-se e a
sorrir entre lágrimas. Uma vez mais agradeceu a Deus que a menina tivesse
sobrevivido a um parto tão penoso e que lhe tivesse conferido a determinação para
conservá-la no seio familiar, por certo, à força das ameaças que proferiu para
evitar que a dessem de presente, embora se arrependia de não ter impedido que
seu pai urdisse aquela estratagema para a qual se escolheu a uma pobre mulher a
quem, por duzentos pesos, lhe arrancou uma assinatura —um X, em realidade,
porque era analfabeta— que ficou plasmada em um infame documento que negava
a verdadeira origem da Mimita. "Digo eu, Nicolasa Ibáñez, que dou e cedo à
senhora Clotilde Teodorina Palafox e Binda, viúva de Juvenal Romano, minha filha
Milagres pelo tempo de vinte anos para que sorte senhora a eduque e a vista como
facilmente possa, não ficando nenhum direito para reclamá-la em nenhum tempo,
por ser minha vontade que se dela sirva até o tempo prefixado." Naquelas
circunstâncias, a declaração de Nicolasa lhe pareceu fútil se com isso obtinha que

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seu pai cedesse e permitisse levá-la a Buenos Aires para criá-la na casa da rua
Larga. Nesse momento, entretanto, julgava-o uma vil patranha. Mimita era uma
Palafox e Binda. Mas Rómulo jamais o admitiria, não porque Mimita fora bastarda
mas sim porque tinha nascido defeituosa. Seu pai, amante da perfeição e da
estética, que considerava à beleza física como a quinta virtude cardeal, e que
estava acostumado a retornar do centro e comentar: "Hoje, da janela da
Hospedaria das Nações, não vi cruzar pelo Plaza Mayor a nenhuma pessoa digna
de chamar-se agraciada", jamais aceitaria ter gerado uma deficiente.
—OH, pai! —lamentou-se, com uma decepção que a assustava.
A imagem que Rómulo Palafox trabalhou em excesso em montar começava a
gretar-se e a descascar-se no coração de sua filha. Rafaela temia lhe perder o
respeito e, sobre tudo, temia odiá-lo porque agora compreendia que tinha sido ele,
com sua paixão pela estética, quem tinha aberto o abismo que a separava de
Cristiana e semeado a insegurança nela.
***
Despertaram uns golpes. Levantou-se e olhou para a janela. O portinha se
sacudia dada a impetuosidade do vento, e o resplendor do refúgio permitia ver as
gotas de chuva que se filtravam pelas frestas e salpicavam o vidro. Demorou uns
segundos em se localizar-se: encontrava-se na chácara dos Pueyrredón e batiam
na porta de seu dormitório. Por fortuna, Mimita seguia dormindo aconchegada ao
seu lado. Tampou-a antes de colocar a bata em cima e abrir. Era Cristiana.
—Isabel começou com o trabalho de parto. Tem que ajudá-la! Um peão foi pela
parteira, mas tememos que, com esta tormenta, não chegue a tempo.
Trocou-se às pressas com a ajuda de sua prima. Antes de entrar no quarto de
Isabel, topou-se com seu irmão, Juan Andrés, e com o marido, Ruperto Albarellos,
que a contemplaram com semblantes gastos e olhos de menino perdido.
—Sua mercê não deveria estar em pé com essa fratura na perna —sugeriu
Rafaela.
—Não importa minha perna agora, senhorita Palafox. Preocupa-me minha irmã.
—Imploro-lhe —falou Albarellos—, ajude a Isabel. A senhorita Cristiana nos
assegurou que vossa mercê saberá o que fazer, que sempre sabe o que fazer.
—Farei tudo o que possa para assisti-la.
Em tanto passavam os meses em La Larga à espera do nascimento da Mimita,
Ñuque lhe tinha confiado seus conhecimentos em matéria de partos, que não eram
poucos. Embora tinham transcorrido três anos da espantosa experiência, Rafaela
a recordava vividamente, por isso as horas que demorou Isabel em expulsar a seu
filho varão resultaram prazerosas em comparação com aquelas nas quais pensou
que Cristiana morreria. A alegria dessas pessoas quase desconhecidas terminou
por contagiá-la, e o agradecimento que lhe professavam a adulou. Até Cristiana
demonstrava um sorriso satisfeito e de orgulho pelo desempenho de sua prima. A
parteira, que chegou perto do meio-dia, decretou que Rafaela não teria podido
desembrulhar-se melhor. O menino e a mãe se encontravam em perfeito estado.
—Fique uns dias conosco —lhe pediu Isabel—. Sentir-me-ia mais tranqüila com
você a meu lado, Rafaela.
—Por favor —se uniu Juan Andrés na súplica—. De igual modo, não poderá
chegar a La Larga com os caminhos completamente alagados pelo rio. Senhorita
Palafox —disse—, poderia me dedicar uns minutos? Acompanha a meu escritório?
Entraram, e Rafaela se localizou em um confidente perto da janela; a umidade e
o calor começavam a irritá-la. Juan Andrés se sentou frente a ela e colocou a

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perna engessada sobre uma banqueta. Uma escrava lhes serviu água de cevada
fresca.
—Sei que deve estar cansada depois de uma noite acordada. Logo a deixarei
voltar para seu quarto e descansar. Mas antes queria falar com vossa mercê —
Rafaela o notou incômodo—. Verá, sua chegada de ontem resultou muito
auspiciosa posto que me dispunha a enviar a meu capataz para que falasse sobre
La Larga. Sem fazer rodeio, senhorita Palafox —o expressou em um tom solene
que indicava a importância de dita tarefa. Rafaela se limitou a assentir como se
soubesse do que lhe falava—. Nossas propriedades, ambas muito extensas,
limitam-se, e minhas vacas, procurando água (o rio se retirou pelo vento),
passaram-se a suas terras para beber da esplêndida lagoa que dá nome à estadia
dos Barquín.
—Agora pertence aos Palafox. La Larga era parte do dote de minha mãe.
—Sim, sim, claro. Como lhe dizia, apressa fazer rodeio.
—Senhor Pueyrredón, serei franco com sua mercê. Não me encontro em posição
de decidir nada sobre o campo de meu pai. Verá, dirijo-me para lá porque dom
Íñigo, nosso capataz, está doente e me diz que a estadia se encontra em estado
lamentável. Do exílio de meu pai, ninguém se preocupou pelo destino das terras
nem o dos animais. Não sei com o que me encontrarei nem sei como solucionarei
os problemas já que ignoro tudo sobre o campo.
Ante a franqueza da jovem, Juan Andrés se acomodou na cadeira e pigarreou.
Não estava habituado a mulheres de caráter direto e sensato. Rafaela Palafox e
Binda constituía um estranho exemplo. Seu olhar, de magníficos olhos verdes,
brilhava com a luz de uma inteligência incomum nas de seu gênero.
—E seu primo Aarón? Soube que retornou o ano passado de sua longa viagem.
—O se ocupa de outras coisas —o justificou Rafaela.
"De apostar nas rixas de galos e deitar-se com rameiras", pensou Juan Andrés.
—Senhorita Palafox, minha família e eu estamos em dívida com vossa mercê pelo
extraordinário serviço que lhe emprestou hoje a minha irmã. Não sei que sorte
teria deslocado Isabel de não achar-se vossa mercê em casa.
—Sua mercê não está em dívida comigo. Ajudei a sua irmã com todo
desinteresse.
—Sei, sei. De todos os modos, os Pueyrredón encontram-se em dívida. E de
algum jeito eu gostaria de saldá-la. Conforme me diz, La Larga se encontra em
estado lamentável e dom Íñigo, mau de saúde. Pois bem, eu enviarei a um homem
de minha inteira confiança para que ele e seus ajudantes ponham ordem nos
assuntos da estadia e a tudo que necessite.
—Senhor Pueyrredón —se comoveu Rafaela—, sua generosidade me aflige, mas
não posso aceitar. Não conto com o dinheiro para pagar as jornadas desses
homens.
Juan Andrés sacudiu a mão e fez um gesto de olhos fechados para desdenhar o
escrúpulo.
—As jornadas correrão por minha conta.
—OH! —Rafaela sorriu, turvada, insegura de aceitar, questionando-se a respeito
do apropriado do oferecimento—. A quem enviaria? Qual é o nome desse senhor de
sua confiança?
—Artemio Fúria.
***
Juan Andrés de Pueyrredón saboreava a água com favo que a negra Olinda tinha

67
mantido fria no balde da cisterna, enquanto contemplava o crepúsculo da galeria.
Já não lhe pulsava a perna quebrada graças à infusão que tinha bebido um par de
horas atrás, preparada com a mescla de ervas prescritas por Rafaela Palafox. Nos
dois dias que permaneceu em Bosque Alegre, a jovem deu amostras de seu
conhecimento em matéria de plantas e flores, das que conseguia emplastros,
cosméticos, sabões, tônicos e um sem-fim de misturas com os que se favoreceram
vários dos habitantes da chácara, em especial Isabel, que, conforme lhe confiou
Albarellos, fez-se de um poção medicinal ou mágica para a ofensa e uma untura
para os seios. E ao pôr-do- sol, Rafaela Palafox saía a percorrer as imediações da
casa em busca de novas espécies e, cada tanto, detinha-se para realizar notas em
uma caderneta, e o fazia com rapidez e habilidade, o qual resultava incomum; pelo
general, as mulheres com muita dificuldade rabiscavam seus nomes.
Juan Andrés levantou-se da cadeira e se fez sombra com a mão para distinguir a
silueta dos cavaleiros contra as nuvens avermelhadas do horizonte. "Fúria",
resmungou para si, pois embora não o via com claridade, teria identificado seu
estilo sobre a arreios entre centenas, o torso erguido com natural disposição, a
cabeça ereta com ar decidido e as pernas soltas, já que estribava ligeiro, como a
maioria dos gaúchos. Devido a que domava aos seus cavalos ao índio, conseguia
cavalgaduras dóceis e submissas que se deixavam guiar com economia de
movimentos; um apertão de joelhos, uma mudança de posição sobre a montaria14
ou um estalo entre dentes lhe revelava ao animal tanto como um puxão de rédeas.
Rodeavam-no seus amigos, que o seguiam a sol e a sombra, já que, perto do
gaúcho Fúria, nunca faltava o alimento nem um local onde apoiar a cabeça
quando os surpreendia a noite; em nenhum rancho lhe teria negado um prato de
guisado ou um colchão. Pertencer a seu círculo mais íntimo trazia benefícios, mas
não resultava fácil, porque Fúria não era um homem fácil. Seus olhos de pesadas
pálpebras ocultavam a essência de um espírito complexo que podia escolher entre
não alterar-se por nada ou desatar sua ira com uma potência que amedrontava ao
mais resolvido. Caracterizava-se por ser calado e circunspeto, mas bem preferia
escutar e observar, porque era desconfiado, e, quando abria a boca, outros
calavam e aguardavam suas sentenças expressas com voz rouca, aguardentosa,
que se um não a esperava, provocava-lhe uma funda impressão. Seu nome se
pronunciava com reverencia nos pampas, também em alguns âmbitos citadinos,
porque suas façanhas, esparramadas pelos payadores (menestrel), alcançavam os
quatro pontos cardeais. Comentava-se que tinha conseguido seus primeiros
dobrões em vacarias ilegais, caçando ganho silvestre, propriedade da Coroa, e
traficando os couros em jangadas para a Colônia de Sacramento e o sul do Brasil.
Tinha comprado várias carruagens para formar caravanas que transportassem
produtos para o interior e desde ele, e contava com um exército de troperos para
as conduzir. Eram famosas suas incursões às Salinas Grandes para procurar sal.
O tinha por rápido com o facão, e as más línguas asseguravam que se ocupou do
índio Carlos, um pampa elevado, de feroz temperamento, um demônio habilíssimo
com o guampudo e admirado cavaleiro, que assolava as estadias e atacava as
diligências. "Fúria nos tirou uma peste de cima", afirmavam os patrícios a modo de
expediente do relato no qual "o gaúcho loiro" tinha posto "as tripas para fora" do
malvado índio.

14
A autora menciona a palavra recado. Significa celas e arreios de um cavalo. Montaria.

68
Embora tranqüilo e moderado, ao Juan Andrés não o confundia: Fúria era
orgulhoso como um pavão e seguro de si como um espartano das Termópilas. Ante
ninguém baixava a vista, a ninguém julgava superior, a nada temia, e, como
atuava de um modo manso, sem fanfarronice, tratava-se da manifestação de sua
verdadeira índole, de um comportamento espontâneo e legítimo, que suscitava
admiração em lugar de infundir rancor. Os Pueyrredón o respeitavam e lhe
brindavam sua amizade como amostra de agradecimento por ter salvado a vida de
Juan Martín na escaramuça com os ingleses, na quinta do Perdriel a fins de julho
do ano seis. Ainda depois de tanto tempo, ao Juan Andrés ainda o afetava reviver
o momento em que acreditou que seu irmão morreria. Tinha-o testemunhado de
longe, impossibilitado de ajudá-lo. O cavalo de Juan Martín caiu ferido por uma
descarga de fuzil. Ele saiu despedido, rodou sobre o terreno e ficou meio
atordoado. Juan Andrés advertiu que um grupo de ingleses se equilibrava para
justiçá-lo com suas baionetas, ao mesmo tempo em que um cavaleiro, inclinado
sobre o lado esquerdo de seu cavalo, galopava até o lugar da queda, recolhia ao
Juan Martín com uma força impensável e o cruzava sobre a garupa salvando o de
uma morte horripilante. Passada a luta, Juan Andrés se inteirou de que a esse
homem se chamava Artemio Fúria e que formava parte das hostes de patrícios e
peões que Juan Martín tinha congregado para expulsar aos invasores.
Os cavaleiros, com Fúria e seu inseparável amigo, o índio Calvú Manque, à
cabeça, seguiam avançando para o portão que marcava o início do casco da
chácara. Juan Andrés admirou o overo que montava Fúria, cuja pelagem dourada
reverberava com os últimos raios de sol. "Que magnífico parelheiro!", pensou, ao
tempo que invejou o modo impecável em que o animal se detinha em seco para
que seu amo desmontasse.
Juan Andrés levantou o braço e os saudou de longe, indicando a perna
engessada Calvú Manque e outros o imitaram como desculpa pela descortesia de
não sair a recebê-los. Depois de umas indicações a sua gente, Fúria, seguido de
Calvú Manque e do pequeno Bamba, o marucho da tropa, aproximou-se da
galeria. A Juan Andrés não surpreendeu notar que nem Fúria nem Manque
levavam esporas. Sua relação com os cavalos não incluía a violência; eram
pacientes e carinhosos com suas montarias se entendiam com elas sem
necessidade de esporas ou varas.
- Saudações, dom Juán Andrés —saudou Artemio.
—Estava-te fazendo desejar, amigo —respondeu, risonho, enquanto lhe indicava
uma cadeira a seu lado.
—O que acontece, dom Juan Andrés —entregou os últimos números do Correio
de Comércio de Buenos Aires, o periódico a cargo do jovem advogado Manuel
Belgrano e de seus amigos, que formavam a Sociedade das Sete—. Os manda
Tranqüilo —explicou Fúria, e se referia ao Francisco Planos, um dos moços
bagunceiros, como os chamava o vice-rei Cisneros, e membro da memorada
sociedade.
—Obrigado, Fúria. E você, Manque, já te parece com uma moço de objetos com
essas botas que leva. Não me alvoroce o galinheiro, né? —acautelou-o com um
sorriso, ao tempo que lhe assinalava outra cadeira.
—Você que é desconfiado, dom Juan Andrés —se defendeu o índio.
—Ouça, Bamba —o chamou Pueyrredón—, vá à cozinha e lhe diga a Olinda que
nos traga mate.
—Eu o sirvo, dom Juán Andrés! —ofereceu-se o menino.

69
—Está bem. E lhe diga também à negra Olinda que atenda a seus amigos como
Deus manda —e fez um movimento com a cabeça para o grupo que se ocupava de
desencilhar.
—Obrigada, dom Juan Andrés —escutou dizer a Fúria.
—E o que me contam da cidade? O que souberam? Eu estou aqui parado culpa
desta má perna.
—Não trago notícias muito importantes —admitiu Fúria, e iniciaram um bate-
papo que pouco a pouco girou para as questões políticas, em especial falaram do
Tribunal de Vigilância, criação do vice-rei Cisneros para reprimir a efervescência
revolucionária que se propagava em cafés e reuniões. Ao produzir um silêncio,
Juan Andrés se dispôs a falar sobre o assunto de La Larga.
—Pedi-te que viesse, Fúria, porque ando precisando parar os rodeios. Faz tempo
que meus animais se dispersaram em busca de água para o campo dos Barquín.
Faria-o eu mesmo, mas...
—'Está bem, dom Juán Andrés. Conte conosco.
—Pagar-te-ei o serviço, é obvio. Mas além disso, ando-te necessitando para outra
coisa. A verdade é que já dava minha palavra de que o faria, sem te consultar, e te
peço desculpas por isso, mas as circunstâncias...
—Do que se trata, dom Juan Andrés? —perguntou Artemio, com calma.
—Trata-se de minha vizinha, a proprietária do campo dos Barquín, que está
sozinha e com problemas, e necessita a um valente como você para resolver as
questões de sua estadia. Pôr em ordem esse transtorno levará umas semanas —
admitiu.
Fúria ficou pensativo, com o torso inclinado sobre as pernas, enquanto chupava
o chimarrão.
—Não conto com tanto tempo, dom Juan Andrés. Tenho uma dica para a salga
da vitória da Cruz do Sul a que estou apascentando. Trouxemos couro e peças
limpas mas estavam chucras. Chegaram em mau estado. Agora se recuperam em
meu campo na Garganta de Morón.
Pueyrredón sabia que ao "campo" o constituía uma respeitável extensão de terra
com excelentes pastagens onde a fazenda restabelecia as carnes perdidas nas
compridos e exaustivas viagens antes de terminar nas mãos dos açougueiros.
—Em umas semanas terei que arriá-la a Barracos, à salga que regentea dom
Diogo Coutinho, e, quando se trata de arriar para impulsionar os ganhos, só
confio em mim mesmo e em Calvú. Você sabe que eu não gosto de lhe negar um
serviço, mas...
—Está bem, amigo, eu me apressei em te comprometer com a Rafaela Palafox...
O que Juan Andrés seguiu dizendo, Artemio Fúria não o escutou, e só Calvú
Manque, que o conhecia em profundidade, advertiu o bater as asas de suas fossas
nasais e a tensão no queixo. De repente, Fúria interrompeu a Juan Andrés e lhe
perguntou:
—Não se tratava de um serviço para o campo dos Barquín? Por que fala de
Rafaela Palafox?

—O campo pertencia aos Barquín, mas agora é dos Palafox e Binda. A filha de
Palafox, Rafaela, pediu alojamento dias atrás em Bosque Alegre e, em meio da
noite, ajudou a minha irmã a trazer para seu filho ao mundo. Que mulher, amigo!
Se não tivesse sido por ela, por sua perícia e domínio da situação, não sei o que
teríamos feito meu cunhado e eu, posto que a tormenta nos impedia de trazer a

70
parteira. A situação era seriamente desesperadora, e ela salvou a vida de minha
irmã e de meu sobrinho.
Calvú Manque soltou um assobio e acrescentou:
—Está você em dívida com essa moça, dom Juán Andrés!
—A senhorita Palafox se encontra em graves apuros. Partiu para sua estadia com
um par de escravas sem saber o que lhe espera lá. E eu prometi que a ajudaria.
Serei generoso com o pagamento, sabe, Fúria.
Artemio ensaiou um gesto de aquiescência e disse:
—Olhe, dom Juan Andrés, para que não se ande falando que você faz promessas
que não cumpre, iremos amanhã a ver o que ocorre em Palafox. Ali, meu irmão e
eu decidiremos o que fazer e o faremos saber.
—Desculpe a curiosidade, dom Juan Andrés —falou Calvú Manque—, É viúva a
tal Rafaela Palafox? Por que anda fazendo-se carrego das obrigações dos homens?
—É solteira, mas sua família sofreu graves reversos e ela teve que tomar as
rédeas —sopesou uns segundos o que expressou a seguir—: Seu pai, Rómulo
Palafox, é um cavalheiro de mohatra, que, desde sua chegada a Buenos Aires anos
atrás, tentou vender a quem quis comprar seu discurso que o tem por
descendente de nobres espanhóis. Agora vive no exílio por ter participado da
passeata do ano passado. Quanto a seu sobrinho, Aarón Romano, que poderia
comandar a nave nesta chuvarada, dedica-se aos naipes e à vida licenciosa. É um
folgado de primeira espécie. Sua irmã Cristiana, que é agora nossa hóspede,
insinuou que esse maltrapilho pretende desposar a sua prima Rafaela. Deus a
livre e a guarde.
***
Aí estava, Rafaela Palafox e Binda. Ao fim a contemplaria de perto e estudaria os
detalhes de um rosto que tinha tentado delinear a partir da pobre olhada obtida
quando a jovem saía da Bernarda de Lezica. Perguntou-se se subiria para a
calçada.
—Por que sorri? —interessou-se Calvú Manque, que montava a seu lado.
—Estou me lembrando de uma piada de dona Clara —mentiu Artemio.
A leve brisa arrastou o som aquoso dos assobios do corno que penduravam os
borrões e chocavam entre si. Rafaela elevou a vista. Um grupo de cavaleiros se
aproximava da casa. Pendurou os últimos ramos de canela para afugentar às
moscas e descendeu à calçada.
—Vá chamar a dom Íñigo —ordenou a Creóla.
—Dom Íñigo está doente —repôs a escrava.
—Sim, doente —se mofou Rafaela—. Doente de tanto beber. Diga-lhe que venha.
Apesar de que lhe causavam pavor os homens aos que seu pai chamava
gauderios ou gaúchos, esses que vestiam de um modo tão peculiar e que, de tanto
em tanto, mesclavam-se entre as pessoas da Recova, Rafaela experimentou certo
alívio ao ver o grupo que ordenaria o transtorno em que se converteu La Larga.
Advertiu que dois deles se adiantavam e desmontavam. Rafaela abandonou o
resguardo da galeria e encaminhou a recebê-los. O coração lhe galopava no peito e
a boca lhe tinha secado. O sol a cegava, assim entrecerrou os olhos e se levou a
mão à frente. Um deles, o mais alto, ao avançar para ela, protegeu-a da luz e lhe
permitiu ver com normalidade. Imediatamente e como amostra de cortesia, o
homem se tirou o lenço negro que lhe cobria a cabeça por completo. Rafaela ficou
atônita ante a visão de sua longa cabeleira loira e de sua barba em uma
tonalidade similar, um pouco mais avermelhada. Em realidade, três aspectos do

71
gaúcho a sacudiram: que fora loiro, que fora jovem e que a expressão de seu
semblante fosse tão severa. "Parecem barbas de milho", pensou das mechas que
lhe caíam sobre a frente.
—Boa tarde —saudou com secura—. Você deve ser o senhor Fúria.
—O mesmo —respondeu Artemio, e inclinou a cabeça—, a seu serviço.
—Eu sou Rafaela Palafox e Binda.
—Sei —repôs o gaúcho—. Dom Juan Andrés de Pueyrredón nos enviou para fazer
o rodeio e para pôr ordem nesta chácara.
—Obrigado —balbuciou, intimidada pela voz do homem, uma voz grossa e um
pouco enrouquecida, como se tivesse passado comprido tempo em silêncio ou logo
despertasse. Arrepiou-lhe a pele dos braços—. Mandei chamar o capataz, dom
Íñigo. Unirá a nós em seguida —adicionou, insegura de suas palavras; temia que
notasse que sabia tanto do campo como dos selenitas e seus hábitos. Rómulo
Palafox assegurava que essas eram pessoas briguentas, perigosas, de pouca
honra, e a voz e o gesto do homem ratificavam as asseverações.
Rafaela Palafox se deixava ler como um livro. Seu medo e desconcerto o
alcançavam como as línguas de vento quente do norte. Tinha-a imaginado mau,
era distinta da Palafox de sua imaginação. "Embora seja branca", refletiu, "sangue
índio corre por suas veias", e o deduziu dado o corte de seus olhos, grandes e há
um tempo enviesados para as têmporas, como ele só tinha visto entre as
ranqueles; e também por sua boca larga, generosa, de lábios grossos e delineados
com uma precisão que, embora não os tivesse coloridos com carmim, podia ver-se
claramente onde terminavam e começava a pele do rosto. Desejou vê-la sorrir.
—Artemio Fúria! —escutou-se a voz faiscante de dom Íñigo, que vinha
acomodando-a camisa como se recém se levantasse. Creóla caminhava a seu lado.
—Dom Íñigo —saudou Fúria, com ar parco—, como anda tudo pelas casas?
—Mais ou menos, Fúria, cheios de penas e pestes. Mas que fogo-de-palha
quando a menina Rafaela me disse que você viria a me dar uma mão. Aqui o que
sobra é o trabalho, verá você. Estou sozinho e doente. Os dois peões que tinha se
mandaram a mudar porque faz como um ano que não recebemos o pagamento.
Artemio advertiu de soslaio a tonalidade avermelhada que cobriu a face de
Rafaela, e conteve o ímpeto de fazer calar a esse tolo. Por seu lado, Rafaela se
debatia entre permanecer com eles ou retornar à casa. "Se meu pai me visse
conversando com este homem", lamentou-se, mas em seguida resolveu ficar e
estudar a Fúria. Acabava de precaver-se de que não tinha tido uma dimensão
justa de seu tamanho até vê-lo ao lado de dom Íñigo. Mas bem magro, era sua
altura a que impressionava. Lembrou-se do talismã de pedra turca de Ñuque ao
descobrir seus olhos meio velados pelas pálpebras quando o gaúcho os levantou
com assombro ante um comentário do capataz. Porque os de Cristiana eram
celestes, mas esses por inverossímil que parecesse, eram turquesa, e penetrantes
no marco de sua pele bronzeada e sobrancelhas loiras. Em um ato de sinceridade
incomum nela, pensou: "Este homem é um espetáculo que me rouba o fôlego".
Contemplá-lo-a aturdia e inibia. Seus contrastes mais que sua beleza a sumiam
nesse encantamento. Nada nele parecia combinar e, entretanto, sua figura
transmitia uma sensação de equilíbrio e de harmonia, e de força em repouso que a
assustava e que, paradoxalmente, infundia-lhe segurança. Não recordava que um
homem a tivesse impressionado desse modo, nem sequer Juan de Dios Bonmer.
Influenciada pelo caráter estético de Rómulo, Rafaela tinha atracado à conclusão
de que, depois da primeira olhada, as pessoas em geral não lhe resultavam

72
fisicamente agradáveis; julgava-as feias ou, no melhor dos casos, medíocres;
encontrava-lhes defeitos, e estava segura de que ela causava a mesma impressão.
Com o tempo e a ajuda do carinho, as pessoas que em um princípio lhe tinham
parecido pouco atrativas, voltavam-se bonitas e agradáveis, como o caso de Corina
ou Lupe Moreno. Com esse homem, com esse gaúcho tosco e parco, ocorria-lhe o
oposto: de uma olhada, o primeiro, estava lhe parecendo o mais formoso que tinha
visto.
Adivinhou que Peregrina se aproximava; podia cheirar seu perfume, Água de
Paraíso, uma de suas fragrâncias mais obtidas, que lhe tinha agradável para seu
aniversário. Fúria desviou a atenção de Íñigo, e Rafaela deduziu que tinha
reparado na escrava, com os quartos muito agraciados. Não obstante, ao descobrir
o objeto de seu interesse, assombrou-se: contemplava Mimita, nos braços de
Peregrina, e o fazia com uma expressão renovada, mansa e bondosa. A menina, a
sua vez, ofereceu-lhe um sorriso de dentes como pedrinhas bicudas. Resultava tão
incomum vê-la sorrir, sobre tudo a um estranho, que Rafaela soltou uma curta
gargalhada. Ao desviar o olhar, topou-se com os olhos de Fúria que a
contemplavam com impertinente intensidade.
***
Esse mesmo dia, à hora do crepúsculo, Rafaela passava um momento no
comilão, simulando ler Visão deleitável da filosofia e das outras ciências quando,
na verdade, meditava sobre o senhor Fúria. Não conseguia apartá-lo de sua
mente. "Sou Rafaela Palafox e Binda", apresentou-se ela. "Sei", tinha respondido
ele. A resposta a enchia de conjeturas.
Felisarda, a filha mais velha de Íñigo, que, junto com Mencia, sua esposa,
ocupava-se da cozinha e da limpeza, apresentou-se na sala.
—Menina Rafaela, Fúria pede vê-la, menina.
—Diga para vir aqui.
—Aqui? —estranhou, e Rafaela assentiu, pensando que deveria mandar chamar
Creóla ou Peregrina para não recebê-lo a sós, desistindo quase imediatamente
incitada por uma rebeldia nascida da desilusão. A confissão de Cristiana lhe tinha
roubado a paz, estava zangada e cheia de rancor. De repente se sentia com direito
de romper as regras.
Ficou de pé ao vê-lo cruzar o pátio e se moveu em sua direção quando o gaúcho
entrou pela veneziana. Caminhava de um modo peculiar, algo desajeitado, com a
cabeça e o torso jogados para diante; apesar das roupagens, advertiu que suas
pernas, muito separadas, guardavam a forma dos arreios. Indicou-lhe com uma
mão que tomasse assento. Ele duvidou um segundo; depois aceitou. Jogou a mão
para trás, à altura da cintura, e extraiu uma faca que depositou sobre uma
pequena mesa circular, cujo diâmetro ficava coberto pela longitude da arma
branca; as boleadoras, em troca, permaneceram em sua cintura.
Fúria se sentou e Rafaela se localizou bastante afastada, frente a ele. Um raio de
sol banhava a cabeça do homem. O cabelo, que parecia áspero por causa do vento
e do pó, e muito loiro, quase branco, pela ação do sol, caía-lhe sobre os ombros em
total rebeldia. A barba de vários dias adquiria tonalidades mais avermelhadas ou
mais loiras segundo como lhe desse a luz. Deteve-se em um detalhe passado por
cima durante a inspeção da manhã: suas pestanas eram negras e tão espessas
que as de tia Pola sofriam em comparação. Não podia deter seu escrutínio.
"Deveria lhe oferecer um bálsamo para os lábios", meditou, ao vê-los cortados.
—Deseja tomar um pouco de refresco, senhor Fúria? Ou possivelmente chá de

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hortelã? —e assinalou outra jarra—. Está fresco. Por que sorri, senhor?
—Porque me chamam de muitas maneiras, mas nunca como "senhor Fúria".
—Pois eu o chamarei desse modo, se você me permitir —Artemio assentiu com
um brilho no olhar—. Qual o tipo de refresco —insistiu, chateada—, ou chá de
hortelã?
Tomou um segundo para constatar que ela tomava chá de hortelã.
—Chá de hortelã —decidiu, para conhecer que sabia o interior de sua boca—.
Obrigado —disse, e bebeu um gole.
Artemio Fúria lhe brindou um relatório a respeito da situação da estadia, nada
adulador. O gado, procurando água e melhores pastos, tinha migrado para o norte
e, supunham, achava-se perto do rio.
—Não estão na lagoa —admitiu Rafaela—. A visitamos ontem e não vimos sequer
uma vaca.
—Não deveria ir sozinha à lagoa, senhorita. Avistamos dois jaguares. Eles estão
espantando os animais, talvez.
—Jaguares? —assustou-se Rafaela.
—Assim é. Jaguares. Não atacam aos Cristãos, salvo que os ameace. E não confie
nas vacas, também são perigosas. Faz muito que estão soltas e devem ter se
tornado chucaras. Bem selvagens —explicou—. A atacariam. Com os cavalos —
prosseguiu—, fizeram muito tumulto, porque eram potros e agora são garanhões e
devem ser castrados.
—Castrado?
—Seus testículos devem ser cortados.
—OH!
Fazia muito que Artemio não via uma mulher ruborizar-se por pudor; as chinas
eram muito livres, e Albana, muito descarada para reação semelhante.
—Verá, senhorita —retomou Fúria—, os garanhões não querem a outros
garanhões na tropa. Lutam entre eles pelas éguas e se dispersam, cada um com
seu grupo de fêmeas. Seus cavalos devem ser castrados primeiro e colocadas a
coleira depois que égua retornar à tropa para se reproduzir, como Deus manda.
Colocar coleira a uma égua prenha seria melhor. Afeiçoam-se mais rápido.
—Senhor Fúria —o deteve Rafaela, incapaz de prosseguir com temas tão
indecentes—, o senhor Pueyrredón assegura que é você muito idôneo e de sua
inteira confiança. Isso é suficiente para mim. Proceda como julgar conveniente.
Artemio moveu a cabeça em sinal de aquiescência, e uma mecha se apartou,
revelando a orelha direita com várias argolas de prata que subiam pela cartilagem.
De repente, Rafaela lhe teve medo, e a conduta temerária e rebelde que a tinha
impulsionado a recebê-lo na sala se desvaneceu. Ficou de pé, urgida por livrar-se
dele. Artemio a imitou. Inclinou-se para tomar a faca da pequena mesa e, depois
de acomodar no braço, disse:
—Se a você não incomoda, senhorita, minha gente e eu ocuparemos os postos,
quer dizer, os ranchos que eram de seus peões.
—Não, não, é obvio que não me incomoda —balbuciou, e baixou a vista ante o
olhar do gaúcho. Imediatamente a elevou ante uma pergunta:
—Com o que pensa alimentar-se e alimentar a sua gente sem vacas para
carnear?
—Pois, eu não... Arrumamo-nos com verduras da horta e ovos e...
—Deixarei a dois de meus homens para que as protejam e lhes cacem peludos e
ñandúes. Têm uma carne excelente.

74
—Nos proteger? Do que ou de quem? —perguntou, de modo altivo.
—De muitos perigos que espreitam na campanha, senhorita —lhe respondeu,
com evidente impaciência—. Partiremos amanhã antes da alvorada. Não sei
quando voltaremos. —Ato seguido, colocou o chapéu de feltro negro, tocou a asa
em um gesto de despedida e partiu.
Rafaela ficou olhando-o até que sua figura desapareceu detrás ao cruzar o pátio
central. Entreabriu as pálpebras e exaltou longamente, procurando aliviar a
tensão do estômago. A bravata de correr a La Larga e fazer-se cargo do problema
podia lhe custar caro. Relacionar-se com um homem dessa espécie, que falava de
castrar, com argolas na orelha e uma faca no braço, demonstrava que seu sentido
comum tinha desaparecido. Tomou assento, desdobrou o leque e o ventilou com
energia diante de seu rosto de olhos apertados. Que aroma teria seu corpo?
Sacudiu o leque com mais vigor. Federia? De longe, teria jurado que sua camisa
branca, de uma singela cambraia, estaria mancha e opaca; ao o ter frente a ela,
tinha comprovado o contrário. Teria se trocado e lavado para reunir-se com ela?
De noite, enquanto ajudava a Creóla a fechar portinhas e pucrias, perguntou-lhe:
—O que averiguou sobre o que te mandei?
- Felisarda—falava da filha mais velha de Íñigo— diz que Artemio Fúria é um
homem cabal, muito enérgico, respeitado por infiéis e patrícios por igual. Muito
querido porque dá com generosidade a tudo o que pede. Diz também que para
carnear, enlaçar, ou correr em um rodeio, ninguém melhor que ele.
—Vá, vá. Felisarda parece apaixonada pelo senhor Fúria.
—Até os tutanos, minha menina. Mas não é a única. Felisarda diz que Fúria,
onde quer que vá, nunca lhe falta uma saia para se coçar. A campanha deve estar
povoada de seus gauchinhos.

75
Capítulo VI

Confissões em uma caderneta

Depois da partida de Fúria e de seus gaúchos e com o transcurso dos dias,


Rafaela foi serenando-se e começou a desfrutar do campo. Não se tratava de que
tivesse deixado de pensar no homem, porque Bamba e Isidoro, chamado "o
rastreador", mencionavam-no diariamente. Ambos proviam à casa de carne fresca
de peludos, vizcachas15, quirquinchos, lebres e piches (pequenos mamíferos dos
pampas); da lagoa traziam patos, perdizes e narcejas. Uma tarde chegaram com
um pequeno veado que resultou delicioso. Como Isidoro sabia de plantas e
conseguia ervas aromáticas para olla podrida (prato típico espanhol) e outros
guisados, Rafaela, falhando em sua determinação de conservar a distância,
passava horas em sua companhia, aceitando conselhos para a horta e para o
jardim, que se achava em completo abandono. Bamba, o marucho, quer dizer, que
dirigia à égua madrinha com guizo, ganhou seu afeto dado o carinho que mostrava
pela Mimita. A Rafaela a animava vê-los aparecer a cavalo com algum "bicho" na
garupa.
—Quem se ocupará de conduzir à égua madrinha se você, Bamba, está aqui? O
senhor Fúria?
—Não! Um patrício não sobe em uma égua! Seria uma desonra. Ademais, não me
necessitam para o rodeio, senhorita. A égua madrinha se usa para querenciar à
tropa de cavalos. As vacas são outra história.
Desse modo, com perguntas inocentes, Rafaela aprendia sobre o homem que
ocupava sua mente, face à determinação de esquecê-lo. Às vezes o obtinha,
quando se ocupava da horta com a Creóla, Peregrina e Mimita. O jardim constituía
sua distração, e a satisfazia comprovar os adiantamentos obtidos com a firmeza de
seu trabalho e o das escravas. Tinham disposto um quarto junto à cozinha para
desdobrar os "cacarecos infernais", como chamava Clotilde ao alambique, as
redomas, os balões de ensaio, o almirez e outros objetos necessários para a
produção dos perfumes, colônias e demais cosméticos, e ali passava grande parte
do tempo, às vezes em companhia da Bamba e Isidoro, que não terminavam de
assombrar-se de suas aptidões para obter ungüentos de uma pomada de banha de
porco ou sabões da graxa de uma carne gorda.
Contemplavam-na com reverência quando se inclinava sobre o vademécum para
anotar novas combinações e receitas.
—É muito difícil aprender a ler e escrever, senhorita? —perguntou Bamba.
—Isso não é para nós! —interpôs Isidoro—. Acaso o necessita para saber que
marca corresponde a quem? —o menino negou com a cabeça—. Então, fique
calado e não incomode à senhorita.
Rafaela gostava de caminhar até a lagoa, inclusive um pouco mais à frente.
Isidoro sempre a escoltava, e sua companhia lhe resultava prazerosa porque,
enquanto o gaúcho identificava plantas, ela as desenhava com excelente risco em

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Tipo de coruja.

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sua caderneta e apontava as qualidades que "o rastreador" lhe indicava.
—Por que o chamam "o rastreador", Isidoro?
—Verá, senhorita —falou, com esse ar digno que a Rafaela agradava—, É que sou
muito bom em seguir o rastro a algo que se mova.
Explicou-lhe que, em um terreno tão aberto como o pampa, resultava
indispensável contar com um bom sentido de localização e aprender a seguir o
rastro dos animais.
—Porque deve saber você, senhorita, que o que se perde no pampa, perece.
Assegurou, carente de soberba, que era capaz de distinguir um rastro entre
milhares e que podia afirmar se o animal se movia depressa ou lentamente, se
levava peso ou ia leve, se padecia do mal do copo ou do formigueiro, enfermidades
que atacam os cascos das bestas. Também sabia rastrear homens.
—Com essa habilidade tão grande, Isidoro, não estará necessitando-o o senhor
Fúria para rastrear os animais de meu pai e de dom Juan Andrés?
—O que vai, senhorita! Artemio e Calvú são tão bons como eu para essas
coisas— mais circunspeto, adicionou—: Artemio quer que eu, além de caçar para
vós diariamente, ficasse para cuidá-la. É que suspeitamos que o gado foi roubado,
senhorita. Uns cuatreros devem andar por estas lareiras, fazendo-se do alheio. Se
não, por que as vacas não estão pastando perto da lagoa? —Ante a expressão
desolada de Rafaela, Isidoro a interpretou mal—: Mas você não se preocupe,
senhorita! Ninguém melhor que Artemio para conseguir de novo essas vacas. Ou
os couros. O que juro, ele o vai trazer.
—Seguirão pelas vizinhanças esses cuatreros?
—Amalaya! Assim Artemio lhes jogar a luva. Já sabem que o gaúcho Fúria e sua
gente os andam procurando e vão se esconder.
—Temem-lhe ao senhor Fúria?
—Seus inimigos lhe temem. Seus amigos o respeitam.
—Tem muitos amigos?
—Uf! Muitos! Porque assim como o vê, com essa cara de chupador de limão —
Rafaela se cobriu a boca para ocultar a risada—, É mais mole que um pão.
Artemio poderia ser rico, porque ele não é como nós, mas vive dando de presente e
dando aos mendigos e a quem o ande necessitando. Além disso, não lhe importam
as riquezas.
Teria desejado perguntar mais sobre Artemio Fúria, sua curiosidade crescia ao
ritmo de suas dúvidas. Não obstante, optou por trocar de tema. Já lia a suspeita
nos pequenos olhos de Isidoro.
—Como saberão distinguir umas vacas de outras?
—Ah, pelas marcas! Para isso levaram a dom Íñigo, porque conhece a marca de
La Larga. E Artemio conhece bem a de dom Juan Andrés, e as de tantas outras
estadias. Ele saberia distinguir cem marcas de distintos donos em um rodeio de
milhares de animais. Mas me faz que darão com muito ganao orejano.
—O que é "ganao orejano", Isidoro?
—Que não tem marca. Os bezerros, por exemplo, ou o gado silvestre.
Pouco a pouco, Bamba se converteu em uma sombra que as seguia a todas as
partes e, como se mostrava ávido por saber, Rafaela lhe explicava como preparava
pastilhas para perfumar baús ou como obtinha a goma-resina do estoraque.
Bamba, que entendia pela metade, sorria. Em um princípio, coibia-o que o
tratassem de bom modo, que o saudassem, que lhe pedissem os encargos
adicionando a locução "por favor" e que dissessem "obrigado" uma vez cumpridos.

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Ele, como zambo, mescla de índio e negro, estava habituado ao mau trato e ao
desprezo, e só depois de conhecer Artemio Fúria, que lhe tinha ensinado um ofício
e que o considerava um igual, começou a caminhar com a cabeça em alto e a não
desviar a vista se o olhavam de frente. "Oxalá nunca tivesse que ir a La Larga",
desejou, enquanto escutava Rafaela cantar Aserrín, aserrán, para que Mimita
aprendesse a falar.
***
Uma manhã de finais de janeiro, antes que Mimita despertasse, Rafaela se
vestiu, sem a ajuda de Creóla, com uma saia cômoda e uma blusa de algodão leve;
colocou-se um chapéu de palha de asas largas e partiu rumo à lagoa com sua
caderneta de notas e seu lápis de cisco. Apesar da recomendação do senhor Fúria
—que não visitasse sozinha as imediações da lagoa dada a presença de jaguares—,
Rafaela caminhou com decisão, sentindo-se estranha e cheia de energia. Desde
sua chegada em La Larga, tinha mudado, algo dentro dela se quebrou, fazendo-a
sentir livre e ousada. Como gostava de achar a razão das coisas, ia refletindo a
respeito dos motivos dessa mudança, enquanto, de cócoras, analisava distintas
espécies novas e tomava nota. Ao mesmo tempo, incluía algumas notas. Acredito
ter achado um tapete de vincapervinca: da espécie minor. Suas flores azuis, meio
violáceas, confirmam meu achado. Tomarei algumas folhas para preparar um
extrato fluido, muito bom para deter hemorragias. A Demetrio interessará este
remédio e me pagará bem por ele e Oxalá o senhor Fúria retornasse logo com uma
boa manada de vacas. Vendê-las-ei e, com esse dinheiro e pagarei as notas
promissórias dos impostos de La Larga e da quinta de Buenos Aires. Pergunto-me
por que demora tanto o senhor Fúria. Já passaram semanas. Isidoro assegura que o
gado deve haver-se movido várias léguas, por isso a demora. Não posso me
enganar: desejo que retorne. As ânsias crescem dentro de mim cada dia que passa;
desassossegam-me, inquietam-me e me voltam espectadora de uma vez. Tenho
medo de mim mesma, pelo que me permita sentir por ele agora que me acho nesta
disposição tão alheia a minha índole. Meu Deus! É um homem tão abaixo de minha
condição e nem sequer me importaria se meu pai e minhas tias condenassem este
sentimento. O que está me acontecendo? Desconheço-me. Por muito que amei a Juan
de Dios, jamais se apoderou de mim este espírito ousado. Nosso amor era um pouco
proibido, e eu o entendia bem. Agora, em troca, tudo parece distinto.
Levantou-se ao escutar um som que se impôs ao dos insetos e pássaros, algo
similar a um tumulto longínquo. Entrecerrou as pálpebras porque o reflexo do sol
sobre a lagoa a deslumbrava. Não advertiu nada incomum, embora dada sua
posição, no terreno baixo do terreno, resultava difícil ver mais à frente. Decidiu
averiguar do que se tratava e se encaminhou para a colina.
***
Artemio Fúria se alegrou quando dom Íñigo, que cavalgava para seu lado,
informou-lhe que as terras que pisavam pertenciam a La Larga. Ansiava chegar e
pôr fim à inquietação que o assolava fazia semanas, que não se relacionava com a
viagem infernal que estavam a ponto de terminar a não ser com Rafaela Palafox e
Binda. Levava sua imagem impressa nas retinas e na cabeça. Desejava
desembaraçar o fedor das bestas de seu corpo sujo para inspirar de novo o aroma
inefável que o tinha enfeitiçado a tarde em que o convidou a tomar chá de hortelã.
Levantou apenas as comissuras com a lembrança: ele, um gaúcho, ela, uma
senhorita de sociedade, conversando no comilão como duas pessoas da mesma
classe. Admitia que se sentiu bem, ela o tinha feito sentir assim, e não existiu um

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instante em que a jovem jogasse mão de sua superioridade para impor-se, nem
sequer quando ele, a propósito, falou-lhe de questões que deveriam ofendê-la.
Queria cheirá-la de novo, esta vez, com seu nariz cravado no oco que se formava
entre a orelha e o pescoço para depois seguir o rastro para baixo, deter-se no
decote e acabar nos seios. Acomodou-se nos arreios para aliviar o ponto entre as
pernas. Seu cavalo se inquietou e ele resmungou para aplacá-lo, consciente do
risco de um cavalo encabritado em meio de um rodeio tão habilidoso.
"Rafaela." Precisava pronunciar seu nome, o mesmo do arcanjo, chamado
"Remédio de Deus", a quem Ciríaco tinha encomendado sua saúde quando caiu
doente depois do assassinato de seus pais. Saberia Rafaela Palafox que fazia
honra ao seu nome fabricando remédios? A noite anterior a partida, Felisarda e
sua mãe lhe tinham assegurado que a senhorita não só possuía talento para a
confecção de perfumes e xaropes a não ser para os remédios, e lhe mostraram um
líquido marrom, presente de Rafaela, que se aplicava para desinfetar cortes e
arranhões.
Inspirou o ar da manhã, que arrastava o fedor das milhares de vacas e touros
que os circundavam. A ansiedade não diminuía, voltava-o exigente, porque, assim
como desejava percorrê-la com seu nariz e lhe cheirar até o último rincão, também
queria penetrar em sua boca com gosto de hortelã. "Sim, a menina Rafaela toma
litros de chá de hortelã! Todo o santo dia!", tinha expressado Felisarda.
Girou a cabeça para a direita e jogou uma olhada feroz a Gabino, um tampe de
mau caráter ao que apelidavam "o domador", quando seu picazo ficou a dar coices.
A golpes de chicote, abriu-se passo entre a maré de vacas e touros e o alcançou.
—Está me parecendo que seu cavalo não é para rodeio.
—Muito arisco para uma ponta hostil como esta —demarcou Calvú Manque.
Artemio lhe indicou com um gesto que não se intrometesse, por isso o índio se
afastou sobre seu ruano. Gabino não era um homem fácil, menos ainda para lhe
falar mal de seus arreios.
—Fica tranqüilo, Fúria —falou o homem—. É meio bravo, o Brincará, não o vou
negar, mas o tenho bem dominado.
Artemio assentiu e se moveu para o fronte da manada, junto com os primeiros
animais. Segundo dom Íñigo, transposto o barranco, logo chegariam ao âmbito
destinado para o rodeio, um espaço aberto, sem ervas, afastado da casa principal,
com um pau de ñandubay no centro para atrair aos animais a arranhar-se. Aí não
acabaria o trabalho. Uma vez no rodeio, empreenderiam as tarefas de separação,
curas, castrações e marcações dos orejanos, além de amansá-los. Recuperar o
gado de dom Juan Andrés e de Palafox não tinha resultado fácil, especialmente
porque tiveram que arrancar-lhe aos ladrões que o tinham roubado. Rastrearam-
nos durante semanas até descobri-los na zona do Delta, de onde se dispunham a
transportar aos animais em jangadas para a Banda Oriental. Artemio conhecia
bem essa prática posto que, por anos, tinha contrabandeado couros e gado do
mesmo modo. Caíram-lhes em cima uma noite como jaguares raivosos, matando a
vários e lhes permitindo fugir em disparada aos mais covardes. Complicou a volta
que muitos animais se encontrassem em mal estado, que tivesse elevado número
de torunos —touros mau castrados—, com um gênio dos mil demônios, e muita
vaga chucara. Tinham-nos miserável légua detrás légua e assumido o coração do
rebanho, tratando de proteger aos bezerros do esmagamento e galopando de um
lado a outro porque formavam ponta por qualquer local que descuidassem.
Artemi fez sombra com a mão ante a visão de algo que emergia da barranco e

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cuja silhueta se ia definindo contra o céu espaçoso. Percebeu como suas vísceras
se voltavam de pedra e a respiração cortava ao reconhecer Rafaela Palafox. "Que
merda faz essa China aqui?", rugiu para si. Achava-se frente a ele, a certa
distância e no meio do caminho de uma manada que a converteria em uma massa
sanguinolenta em caso de uma correria. Levantou os braços e os sacudiu com
atitude frenética, o que ela interpretou como uma saudação e lhe respondeu de
igual modo. Olhou de esguelha e confirmou que seus homens acabavam de avistá-
la e que, ao igual a ele, levantavam os braços e executavam gestos se
desesperadas. Ela os saudava com um sorriso que Artemio alcançava a distinguir
sob a sombra que projetava a asa do chapéu de palha. "Não deveria sorrir desse
modo a qualquer um", resmungou.
Não precisou saber que o relincho nervoso pertencia a Atrevido, o picazo de
Gabino. Girou sobre seus arreios e o viu corcovear e sacudir a cabeça. Percebeu a
inquietação de seus homens e a das vacas, que começaram a mugir e a abrir-se.
Gabino descarregava o chicote sobre as ancas de seu cavalo e levantava as rédeas,
o que enfurecia ainda mais ao animal, que terminou por jogar as patas,
levantando-se de tal modo que acabou com o lombo sobre o chão, esmagando a
seu dono. Artemio vociferou ordens para salvar ao cavaleiro e para atalhar ao
rodeio, que já corria desbocado. Negros pensamentos alagaram sua mente ao
lançar seu cavalo em direção a Rafaela em um intento por ganhar a carreira a
milhares de vacas que em questão de minutos se abateriam sobre ela.
Rafaela demorou para perceber que a vibração da manada se dirigia para ela em
correria. Girou apenas a cabeça e o viu, a Artemio Fúria, inclinado sobre a sela de
seu cavalo, com o rosto transformado e as largas mechas que batiam sobre suas
costas. Proferia gritos que de repente dominaram seus ouvidos e sossegaram o
tumulto. Ele se precipitava a uma velocidade que impedia de distinguir as patas
do overo (espécie de cavalo malhado), o qual cada tanto ziguezagueava, para cortar
o avanço de uma vaca ou de um touro que o ultrapassavam. Seu olhar encontrou
a do gaúcho, e ficou gostada muito da ferocidade de seus olhos. Uma nova ordem
vociferada a obrigou a reagir. Deu meia volta e pôs-se a correr.
Artemio se inclinou nos arreios até ficar paralelo ao terreno e, ao passar junto à
Rafaela e sem diminuir a marcha, recolheu-a como se tratasse de uma menina e a
cruzou sobre a garupa. Rafaela apertou as pálpebras e jamais os abriu. Por
instinto soube que ele não a deixaria cair e permaneceu imóvel e tensa, recebendo
no peito as sacudidas produto do galope. Ao cabo se angustiou ao pensar que se
achava em uma postura humilhante.
Artemio verificou que se encontrassem fora de perigo antes de apertar os flancos
de seu cavalo para diminuir a velocidade. Rafaela notou que mudavam a um trote
até deter-se. Fúria desmontou de um salto, tomou pela cintura e a ajudou a
baixar. Os joelhos não lhe responderam, e teria acabado no chão se ele não a
houvesse sustentado. Rafaela descansou na frente de seu peito. Tinha desejos de
vomitar. Estava sem fôlego. Apartou-se lentamente e elevou o rosto. A expressão
de Fúria lhe deu pânico e se afastou com um impulso.
—Que fazia perto da lagoa? —a voz do homem a emocionou; esqueceu-se de seu
matiz rouco e ameaçador—. Que caralho...? Não lhe disse que não se aproximasse
dessa zona?
—Sinto muito, sinto-o —suplicava, com a cabeça baixa e apertando os punhos—.
Foi minha culpa?
—A correria? Não, claro que não! Mas desobedeceu minha ordem! Adverti-lhe que

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não devia...
—OH! —exclamou Rafaela, ao tempo que se contemplava as mãos abertas.
—O que ocorre? —assustou-se Fúria, e tomou para verificar que não estivessem
machucadas.
—Minha caderneta! Perdi minha caderneta!
—Que caderneta?
—A caderneta onde realizo minhas notas! Minha vida está nessa caderneta!
—Esteve a um cabelo de morrer esmagada e se preocupa com uma caderneta de
me...? —no silêncio que continuou só se escutava o fôlego de Fúria—. Mulher
teimosa!
"É que nasci sob o influxo de Touro", teria se justificado Rafaela, recordando os
ensinos de sua tia Pola, perita no Zodíaco Solar, um segredo compartilhado que as
teria conduzido ante o tribunal da Inquisição se soubessem.
Fúria a estudou com um olhar penetrante. Por fim a soltou e, sem aviso,
levantou-a em braços e a acomodou sobre os arreios. Com a agilidade de um gato,
colocou-se detrás dela e a aferrou pela cintura. Estalou a língua, e o cavalo
empreendeu a marcha a passo ligeiro.
Durante os primeiros minutos, Rafaela permaneceu em estado de comoção.
Custou-lhe apreender a dimensão do que tinha acontecido e do que estava
acontecendo: sua vida acabava de correr perigo e se achava pela primeira vez
sobre um cavalo, com as costas apoiada no peito de um homem ao que seu pai lhe
teria proibido olhar. Não devia esquecer o detalhe da mão direita dele apertando
seu ventre. Quase prorrompeu em gargalhadas histéricas. Mordeu-se o lábio e
baixou o rosto.
Recuperou os sentidos: o do tato, quando, em uma ação pouco judiciosa,
descansou a mão sobre a de Fúria e a notou seca e áspera; o da vista, quando se
permitiu ver a qualidade do tecido de seu chiripá e a cor de suas botas de potro
(tinha os dedos ao ar); o do olfato, ao perceber um aroma acre, mescla do suor do
homem e o da besta; e ela, tão sensível aos aromas, disse-se que não lhe
importava pois, embora se tratava de um aroma desagradável, era o dele.
Artemio conteve a respiração e deixou cair as pálpebras ao sentir a mão de
Rafaela sobre a sua. Recordava suas mãos da tarde em que tinham bebido chá de
hortelã. Não eram pequenas, mas sim elegantes, muito brancas e de dedos largos,
as mãos de uma mulher forte, resolvida, laboriosa. Apesar do esforço de vontade,
imaginou-as em torno de seu pênis, apertando-o, acariciando-o, cada vez mais
energicamente. Mordeu o lábio e exaltou com lentidão.
—É a primeira vez que monto a cavalo —a escutou dizer.
—Por que não o fez antes? —perguntou, quando se sentiu seguro de sua voz.
—Porque tinha medo. Temo aos animais. Aos cães em especial.
—Gostaria de aprender a montar?
—Sim, acredito que sim.
Não voltaram a falar e, ao chegar à casa, ele a ajudou a baixar e, sem despedir-
se, esporeou o cavalo e se afastou a galope.
***
Na escuridão de seu posto, Fúria se estendeu nu na cama de armar e aguardou a
que cada músculo e tendão se relaxasse. Por fortuna, seus homens tinham atuado
com diligência e impedido que a correria passasse a maiores. Antes do entardecer,
tinham reunido o gado disperso, que nesse momento se achava no curral de pau a
rivalidade, próximo ao rodeio. Estava moído, doía-lhe o corpo, nem tanto pelo duro

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trabalho mas sim pela tensão experimentada ao ver a Rafaela Palafox exposta à
morte. Depois de deixá-la a salvo na casa, tinha estado de um humor de cães, com
desejos de retornar e golpeá-la por haver-se arriscado a visitar essa zona em que
pese a suas advertências. Gabino, com acerto, manteve-se afastado e trabalhado
em excesso em congregar aos animais. Arrumaria contas com ele ao dia seguinte.
Inspirou a consciência e soltou o ar pouco a pouco. Sentia-se melhor. Acabava de
tomar um banho na lagoa com uma pastilha de sabão que Felisarda lhe tinha
entregue, produção da menina Rafaela, conforme comentou. Cheirava muito bem,
e o aroma impregnado em sua pele e em seu cabelo ainda úmido, flutuava no ar
da noite cálida do verão. Deitou-se e acendeu uma vela com seu isqueiro. Acendeu
um cigarro e se recostou a fumar. Depois de umas vaias, abriu a caderneta
forrada de couro que tinha achado perto da duna, e se dispôs a folheá-la. A letra,
de um risco grande e arredondado, um pouco inclinado para a direita,
correspondia-se com a da lista de perfumes consultada pela senhorita Bernarda
aquele dia em Buenos Aires. Hoje pendurei ramos de canela na galeria para
afugentar às moscas. Assim me encontrou o recomendado de dom Juán Andrés de
Pueyrredón, Artemio Fúria. Não sei como descrevê-lo. Não era o que esperava. Ao
tirar o lenço que levava ao corsário, revelou uma cabeleira loira e áspera, que lhe
ultrapassa os ombros. A beleza de suas feições é tão pura e indiscutível que me
fiquei olhando-o como o faria ante uma obra de arte, com reverência e pasma, sem
atender a suas roupagens de patrício nem a sua casta. Senti-me feia e intimidada.
Artemio proferiu uma gargalhada. "Feia?", disse em voz alta. "Acaso esta mulher
além de teimosa é cega?", pensou. Também seus olhos chamaram minha atenção,
um pouco velados pelas pálpebras, mas de uma cor turquesa esplendente que se
adivinha de igual modo. Resulta injusto que um homem possua pestanas tão
ridiculamente femininas, espessas e arqueadas, e de um tom quase negro que
contrasta com o das sobrancelhas. O que daria eu pelas pestanas do senhor Fúria!
Outra gargalhada. Seu nariz, pequeno e desafiante, nem sequer se compara com o
de Cristiana. Um nariz de risco tão delicado não desafina nesse rosto de
mandíbulas quadradas, queixo forte, barba de vários dias e pescoço grosso com um
pomo de Adão muito pronunciado. Deve ser muito peludo porque alcancei a ver os
cabelos que apareciam por debaixo da camisa na base do pescoço. Sou alta, e de
igual modo tive que levar a cabeça para trás para olhá-lo. Apesar de sua formosura,
tem um gesto que assusta. Sua seriedade quase raia na antipatia. Não sabe
conduzir-se com uma dama e me falou com a mesma crueldade e desafino que deve
empregar com seus pares. Artemio passou várias páginas, lendo a vôo de pássaro
umas receitas, como a de pó para limpar os dentes e estopins para perfumar, e se
deteve admirar os desenhos de plantas e flores. Riu com os comentários a respeito
de Bamba e Isidoro até que uma frase chamou sua atenção. Oxalá o senhor Fúria
retornasse logo com uma boa manada de vacas. Vendê-las-ei e, com esse dinheiro,
pagarei a nota promissória dos impostos de La Larga e da quinta de Buenos Aires.
Pergunto-me por que demora tanto o senhor Fúria. Já aconteceram semanas. Isidoro
assegura que o gado deve haver-se movido várias léguas, por isso a demora. Não
posso me enganar: desejo que retorne. As ânsias crescem dentro de mim cada dia
que passa; desassossegam-me, inquietam-me e me voltam espectador de uma vez.
Tenho medo de mim mesma, pelo que me permita sentir por ele agora que me acho
nesta disposição tão alheia a minha índole. Meu Deus! É um homem tão por debaixo
de minha condição e nem sequer me importaria se meu pai e minhas tias
condenassem este sentimento. O que está me acontecendo? Desconheço-me. Por

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muito que amei ao Juan de Dios, jamais se apoderou de mim este espírito ousado.
Nosso amor era um pouco proibido, e eu o entendia bem. Agora, em troca, tudo
parece distinto. "Juan de Dios", repetiu Fúria, e apertou a caderneta ao tempo que
suas pupilas engrandecidas se iluminaram com um fogo surto da ira.
***
Como de costume, Artemio e seus homens estiveram em pé ao redor das quatro
da manhã. Beberam uns mates em silencio na cozinha, uma habitação ampla
separada da casa principal, e partiram para a zona dos currais para conduzir aos
animais ao rodeio e empreender as tarefas. Artemio lhes informou que esse dia se
ocupariam também dos cavalos, localizados em um amplo curral em muito mal
estado. Dom íñigo se limitou a manter os bebedouros com água e as manjedouras
forradas. Perto das onze da manhã, quando se dispunham a tomar o café da
manhã carne assada e mate, Artemio não se achava por nenhuma parte. Calvú
Manque se dirigiu a seu posto, onde o encontrou barbeando-se com sua faca
frente a um pedaço de espelho no qual se encontraram seus olhares.
—Não deves comer? A carne está quase preparada.
—Tenho algo que fazer primeiro.
—O que?
—Falar com a senhorita.
O índio guardou silêncio enquanto estudava a seu amigo pelo espelho. Notou que
se trocou a camisa e que levava os calções crivados sustentados por um cinto
cheio de moedas de prata e o chiripá de luxuoso suba azul.
—Fica grande essa China16, peñi.
—Não existe China que não possa ser conquistada, Calvú.
—Você é altivo. Sempre gostou de lutar contra os grilhões.
—Nada é melhor que nada, Calvú —replicou Fúria.
Antes de dirigir-se à casa, partiu à horta, cortou uns ramos de romeiro, amassou
as folhas entre seus dedos e as passou pelo buço recém barbeado movido por um
comentário da caderneta de Rafaela. Não acredito que exista fragrância, mais
varonil que a do romeiro. Fabricarei um perfume com esta planta, e lhe adicionarei
um pouco de essência de sândalo e da Cananga odorata. Será uma fragrância
maravilhosa.
Entrou na cozinha e perguntou a Mencia, a mulher de Íñigo, onde se achava a
senhorita Rafaela.
—Está no quarto do lado.
Deteve-se sob o dintel ao vê-la inclinada sobre uma mesa ensinando a Mimita a
dar forma a um pedaço de massa. Creóla o viu, mas, por alguma razão, não
denunciou sua presença. Foi a menina quem o descobriu. Rafaela levantou o
rosto, ainda sorridente, e permaneceu um instante muda e quieta ante o império
desse olhar.
—Senhor Fúria, é auspiciosa sua chegada —acertou a dizer—. Desde ontem,
quero falar com você —ia aproximando, e seu perfume, essa esteira sutil e
feminina, já familiar para ele, que por momentos dançava sob suas fossas nasais,
desvanecia-se um segundo depois sumindo-o na decepção. Encontrou-se dando
curtas inspirações para apanhá-lo de novo.

16
China refere-se a mulher de cor morena, ou cabocla. Mulher com traços indígenas. Pode também significar
concubina.

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—Bom dia! —saudou, e, ao tirar o chapéu de feltro, agitou o ar em torno dele.
Em sua cercania, a Rafaela a surpreendeu um aroma fresco, a ervas recém
cortadas, distinto do aroma que temia perceber. Apreciou suas mandíbulas
barbeadas e o cabelo preso em um rabo de cavalo. Sem disfarces, Artemio
observou a figura de Rafaela Palafox e se deteve nos detalhes de seu traje, muito
singelo, uma saia de algodão azul sujeita por um lenço branco, e um espartilho de
gênero leve para a calorosa jornada. O cabelo castanho ia recolhido em duas
tranças que chegavam quase à cintura.
—Adiante —o convidou.
Ao cruzar a soleira, Artemio se sentiu envolto em uma intensidade de aromas que
o perturbou.
—A que cheira? —pensou em voz alta.
—A tantas coisas —respondeu Rafaela—. A estoraque principalmente, posto que
ontem o extraímos de sua casca. A melisa também —assinalou o alambique—.
Estamos destilando seu azeite essencial. E também a neroli, a bergamota, a
sementes de cominho.
Artemio seguia o movimento de seus lábios com a boca entreaberta de desejo.
Brilhavam, como se lhes tivesse aplicado azeite. Queria mordê-los, saboreá-los,
chupá-los, colocá-los por completo dentro de sua boca, aplacar a secura dos seus
na generosa umidade dos dela. Seus seios lhe atraíram o olhar; eram grandes e
estavam ajustados sob o espartilho. Imaginou afrouxando as cordas e liberando-os
para que caíssem em suas mãos. A escrava Creóla o flagrou com a vista no decote
de Rafaela, embora seu gesto fosse sério, não parecia condenatório.
—Senhor Fúria —Rafaela falou com acento amistoso—, ontem não tive
oportunidade para me desculpar por minha imprudência nem para lhe agradecer
por me haver salvado da correria.
—Eu também quero me desculpar por minha irritação de ontem. E que tenho um
caráter odioso —admitiu.
—Faz honra a seu sobrenome —demarcou Rafaela, com uma risada, e pensou
que Fúria se ofendeu devido ao olhar que lhe jogou—. Desculpe-me.
—Não há do que se desculpar. Na verdade, faço honra a meu sobrenome —
ficaram apanhados em um silêncio incômodo até que Artemio recordou—: Ontem
voltei para a barranco e encontrei sua caderneta.
Uma exclamação se deslizou entre os lábios de Rafaela, ao tempo que se
ruborizava de sorte, sentimento que se transformou em desassossego ao
compreender que esse homem, carente de honra e educação, poderia havê-la lido.
Simulou estudar a caderneta porque não se atrevia a levantar a vista. "É
analfabeto", raciocinou, e esse pensamento, em lugar de tranqüilizá-la,
entristeceu-a.

84
Capítulo VII

O registro de doações

Apenas de ter se espalhando a notícia da chegada a Buenos Aires de Roger e


Melody Blackraven, conde e condessa de Stoneville, junto com seus filhos, a casa
na rua São José se encheu de visitantes, muitos dos quais interromperam seus
descansos nas quintas de localidades vizinhas, devido à importância do
acontecimento. Ao mesmo tempo, na parte posterior da casa, congregaram-se
escravos e libertos para saudar o Anjo Negro, como apelidavam à senhora
condessa, sua benfeitora.
Nas reuniões, Lupe Moreno e Pilar Montes, as melhores amigas de Melody,
monopolizavam-na a maior parte do tempo, em tanto os comerciantes ingleses
radicados em Buenos Aires monopolizavam a atenção do conde de Stoneville,
futuro duque do Guermeaux. Conheciam sua influência no Rio da Prata e em
Londres e planejavam lhe pedir ajuda.
—Melody —disse Lupe—, faz dias que chegou a Buenos Aires e ainda não foste
ao asilo. Todos desejam ver-te.
—Decidi ir amanhã.
—Meu marido —falou Pilarita— lhe estenderá um convite ao teu para que
passem uns dias em nossa quinta em São Isidro. Nós ficamos na cidade à espera
de sua chegada, mas o ar de Buenos Ayres é insalubre desejamos partir. Queira
Deus que o conde aceite! Lupe, você e sua família estão convidados também.
—Pensávamos passar uma temporada em Capela do Senhor —comentou
Melody—, em Bela Esmeralda, a estadia de meu irmão Tommy. Faz anos que não
nos vemos. Desejo conhecer meu sobrinho, que leva o nome de Jimmy.
—Poderiam passar uns dias em São Isidro —insistiu Pilar Montes— e logo seguir
caminho para Capela do Senhor.
—Soa uma maravilhosa idéia —acordou Melody.
Em outro setor do salão, Roger Blackraven concedia sua atenção ao Alexander
Mackinnon, o representante dos comerciantes britânicos no Rio da Prata.
—Verá, sua excelência, o vice-rei Cisneros, embora tenha prorrogado várias vezes
nossa saída do porto de Buenos Aires, deu-nos como última data o próximo 18 de
abril. Para nós é inaceitável. Necessitamos mais tempo para aperfeiçoar nosso
comércio nesta praça.
—Entendo —expressou Blackraven—. Diga-me, Mackinnon, qual é a situação
política do Cisneros?
—Muito comprometida, sua excelência. As arcas do Vice Reinado estão vazias e o
descontentamento dos nativos é cada vez maior. A calamitosa situação da
Espanha colabora para que o mal-estar adquira cós revolucionários —Blackraven
levantou as sobrancelhas, simulando surpresa—. Sim, sua excelência. Cisneros
nem sequer controla à força militar, virtualmente em mãos de nativos. O coronel
Saavedra, chefe do regimento de Patrícios, é o homem poderoso neste momento.

85
Uma vez despedidos os convidados,Blackraven se encerrou no escritório com seu
braço direito, o turco Somar, e seu espião em Buenos Aires, Gambá, que pintou
um panorama bastante similar ao exposto por Mackinnon. Contou-lhe também
que o secretário do Consulado, Manuel Belgrano, liderava um grupo que publicava
um periódico, Correio de Comércio de Buenos Aires, onde se ocupavam de instilar
as idéias de independência de maneira velada. Seguiam juntando-se na quinta do
Mariano Orma, na do Nicolás Rodríguez Penha ou na fábrica de Vieytes,
localizada-se na esquina das ruas de Rosário e San Miguel, onde confabulavam
contra Cisneros, a quem chamavam o Surdo, porque quase não contava com esse
sentido. Os crioulos sustentavam que, de acordo com o expedido na Real Cédula
do rei Carlos V em 1519, ratificada em anos posteriores, a América constituía um
reino independente da Espanha, e seu vínculo se estabelecia só com o rei.
—Por isso —continuou Gambá—, Belgrano sustenta que as Índias Ocidentais se
incorporaram à Coroa e não ao Reino. Portanto, ao não existir rei da Espanha
neste momento, não há vínculo algum, já que não reconhecem ao irmão de
Bonaparte.
—Falam abertamente de independência, então?
—Não todos —admitiu o espião—. Alguns preferem formar Junta, como em
Sevilha, em nome do Fernando VII. Acontece que o coronel Saavedra, a voz
cantante no exército, não é propenso a cortar laços com a Espanha, e sem ele,
nada se pode fazer.
—Já vejo —disse Blackraven, enquanto recordava que o exército lhe devia várias
das notas promissórias que Liniers tinha assinado no ano seis.
—Os comerciantes ingleses —prosseguiu Gambá—, que se juntam na pensão de
dona Clara, a da rua de Santo Cristo, deram de chamar o grupo que conformam
Committee of British Merchants. Têm lunetas no terraço com os que controlam o
ingresso e a saída dos navios. Estão decididos a ficar em Buenos Aires, e Cisneros
se apresenta como o maior escolho.
—Quem é seu representante legal ?
—O doutor Mariano Moreno. Sua escrivaninha ganhou grande prestígio nestes
anos. É um notário habilíssimo.
A Blackraven agradou a declaração. Conhecia bem a inteligência de Moreno, e
também seu caráter obsessivo e meticuloso e suas idéias rousseaunianas com
tinturas jacobinas. Despediu-se de Gambá logo depois de lhe entregar um
suculento pagamento e, em tanto Somar o acompanhava à porta, serviu brandy
em duas taças. Ao retornar, o turco fechou a porta do escritório e tirou de mãos de
Blackraven a taça com brandy. Acomodaram-se na poltrona e planejaram as
atividades do dia seguinte.
—Eddie me confirmou que virá amanhã, há primeira hora —Somar se referia ao
Edward O’Maley, a cargo da maioria dos assuntos de Blackraven no Rio da Prata—
. Depois iremos à Cruz do Sul. Chegou um convite do vice-rei para que o visite no
Forte manhã pela tarde. Envio a resposta de aceitação?
—E o que outra coisa fica por fazer? Não desprezaremos ao vice-rei, verdade? —
ficou de pé e bebeu o último gole de um golpe.
—O Surdo deve estar intranqüilo, contigo por suas costas.
—Faz bem em está-lo. Amanhã te necessito para que acompanhe às mulheres ao
asilo —somar assentiu—. Boa noite, amigo.
—boa noite, Roger.
Ao dia seguinte, terminado o café da manhã, Melody e suas assistentes, Miora e

86
Trinaghanta, em companhia dos meninos, partiram para os interiores da casa
para preparar-se já que visitariam o asilo Martín de Porres, que Melody, Lupe
Moreno e Pilar Montes tinham baseado no ano seis na zona próxima à Praça de
Marte.
Blackraven, em tanto, encerrou-se no escritório com o Edward O’Maley.
saudaram-se com um abraço e intercambiaram perguntas de rigor. Eddie contava
com a absoluta confiança de Blackraven e era dos poucos que o conheciam em
profundidade. Sabia, por exemplo, que o conde de Stoneville formava parte da
cúpula de uma confraria secreta chamada The Southern Secret League —A Liga
Secreta do Sul—, com planos de independência para a América Espanhola.
—O que sabe de Juan Martín de Pueyrredón? —interessou-se Blackraven.
—Está no exílio. Quando retornou da Espanha, encarceraram-no porque se dizia
que vinha com idéias revolucionárias. Mas conseguiu escapar. Um de seus
homens o ajudou. Agora se encontra em Rio.
—Quem o ajudou a fugir?
—O mesmo que lhe salvou a vida no Perdriel, um patrício, um gaúcho, como o
chamam para cá. Seu nome é Artemio Fúria.
—Conhece-o?
—Sim, e muito bem. É um homem de cuidado, desses que, em silêncio e sem dar
explicações, ficam ao mundo por montera17.
—Segue formando parte da cavalaria de Pueyrredón?
—Não. Lutou para expulsar aos ingleses, mas agora se dedica a seus assuntos,
que têm que ver com o campo. Suponho que, se dom Juan Martín o pedisse,
voltaria a lutar a seu lado. Poucas vezes vi um cavaleiro tão hábil —Blackraven
abriu grandes os olhos, impressionado pela afirmação de O’Maley—. É um homem
peculiar, Roger, uma espécie de paladino da justiça entre os peões e patrícios, que
o veneram dada sua generosidade com o trabalho e o dinheiro. Além disso,
carregou-se a uns quantos de má fama, e isso lhe granjeou o respeito entre a
peonagem. Seguiriam ao mesmo inferno. A campanha se levantaria em armas só
com um estalo de seus dedos.
—Deveria conhecê-lo. Poderia resultar de utilidade para meus planos.
O'Maley sacudiu a cabeça, enquanto franzia os lábios.
—Não é um homem que se possa dirigir. Não reconhece autoridade nem moral. É
mas bem solitário, embora ande rodeado de seus homens. Se ele julgar que uma
associação contigo é de sua conveniência, o terá lutando a seu lado. Do contrário,
não.
—Tem sangue índio?
—Absolutamente. É loiro e de olhos celestes —pela segunda vez, Blackraven
expressou seu assombro com um gesto—. Nada se sabe dele, nem das origens de
sua família. De algo estou seguro: é saxão, possivelmente irlandês ou escocês. Às
vezes comigo fala o inglês, embora com um forte acento, como se, em realidade,
sua língua mãe fora o gaélico.
—Diz que se dedica a questões relacionadas com a campanha.
—Assim é. De fato, é o principal fornecedor de gado de La Cruz do Sul.
—É endinheirado?
—Estimo que sim, embora não o demonstra. Vive a vida errante dos gaúchos,

17
Tipo de chapéu de toureiro.

87
cuja fortuna se limita a montaria e ao cavalo.
***
Melody percorria as estadias do casarão que funcionava como asilo. Respirou
fundo e absorveu o aroma da pintura com que branqueava as paredes de um novo
quarto onde se alojariam mais três anciões. Na cozinha, recebeu-a o aroma a pão
quente e o café recém coado, e lhe fez água a boca. Olhou em torno e fixou a vista
no jardim que tinha crescido de modo notável. Atraiu-a a frescura que se
adivinhava na folhagem de suas árvores e plantas, e se sentou sob um árvore a
abanar-se e a repor do calor. Sentiu-se plena e satisfeita.
No escritório, Pilar e Lupe se empenharam em lhe mostrar quão entradas
realizavam semanalmente nos livros contáveis, e, apesar de que a Melody a tinha
sem cuidado, suas amigas insistiam em que emprestasse atenção ao destino das
somas de dinheiro que entregava a cada seis meses o agente de Blackraven no Rio
da Prata.
—Habilitamos um livro para registrar as doações —comentou Lupe— já que nos
últimos tempos têm recebido muitas e de modo constante.
Mais por curiosidade, Melody analisou os registros que começavam a finais do
ano sete.
—Aqui há um nome —expressou Melody— que se repete de contínuo.
—De quem se trata, querida? —perguntou Pilar Montes.
—Rafaela Palafox e Binda. Quem é ?
Referiram-lhe que a moça levava uma vida retirada em uma quinta para o lado
de Barracos e que não contava com amizades entre as famílias patrícias.
—Rafaela está consagrada aos cuidados de uma pequena menina a que chamam
Mimita. É deficiente. Da mente —explicou Pilarita, com um dedo na têmpora—,
mas a Rafaela parece lhe importar pouco e, as poucas vezes que vai ao centro,
passeia-se com ela pelo Plaza Mayor como se fosse uma pequena princesa. Em 1°
de janeiro a trouxe para o asilo e a conhecemos. Pobre anjinho! Até dificuldade
para caminhar tem.
—As más línguas dizem que é a ilegítima de Rafaela, por muito que suas tias e
seu pai queiram fazê-la passar por um recolhimento.
—Como é Rafaela?
—Encantadora —se apressou a responder Pilar—. Muito generosa, apesar dos
apuros econômicos nos que se encontra agora.
—Te agradaria, Melody —demarcou Lupe.
—Pois quero conhecê-la —resolveu.
—Encontra-se na estadia de seu pai, em São Fernando da Boa Vista. Poderíamos
visitá-la durante sua estadia em nossa casa de São Isidro —sugeriu Pilar—. Não é
um trajeto muito comprido o que separa ambas as localidades.
—Parece-me uma estupenda idéia —acordou Melody.

88
Capítulo VIII

O descobrimento

Dia a dia, Rafaela advertia os progressos da estadia que a princípios de janeiro


parecia desolada e abandonada. Alguns se deviam a seu trabalho; a maioria, ao do
senhor Fúria e seus trabalhadores, aos quais começava a habituar-se além de que
a intimidavam com seus olhares ambíguos e seus facões. Além de Bamba e
Isidoro, "o rastreador", resultava-lhe familiar o nome de Torquil, "o marinheiro",
um Gales com tatuagens nos braços que conduzia a jangada quando
contrabandeavam ganho no Brasil; ou o de Billy, "o rengo", um soldado irlandês,
desertor do exército de Beresford, grande conhecedor das manhas e enfermidades
do gado vacino; ou de Juan, "o peludo", de aspecto detestável, com sobrancelhas
grosas e povoadas; ou o de Modesto, "o entrerriano", ao que às vezes chamavam "o
correeiro" por sua habilidade para trabalhar o couro; ou o de Sorte Buenda um
jovem hábil para tocar o violão junto à fogueira; ou o de Gabino, "o domador", que
andava com gesto severo desde que, por sua culpa, produziu-se a correria.
—Traz cara de velório —explicou Felisarda a Creóla e a Peregrina, e Rafaela
emprestou atenção— porque Fúria o proibiu domar aos cavalos ao modo gaúcho.
—E qual tem que ser esse modo gaúcho? —perguntou Peregrina.
—Montando-os até lhes quebrar a vontade, pobres bestas.
—Artemio diz —apontou Bamba—, que assim se estragam muitas e boas
montarias.
—E como domestica o senhor Fúria a seus cavalos? —perguntou Rafaela, e todos
se deram volta, surpreendidos por seu interesse.
—Ao modo dos índios —explicou Bamba, e ficou olhando-a—. Esta tarde —
reatou—, se quiser levo-a a ver a domesticação de Artemio ao modo índio.
—O senhor Fúria está domando um cavalo da minha tropa?
—Assim é.
Rafaela lutava por esquecer esse nome, Artemio Fúria, que outros pronunciavam
com uma obscenidade que a exasperava. Nela, o efeito dessas duas palavras
resultava assustador. Artemio. Fúria. Levantava-se cedo pela manhã pensando
nele e imaginava seu rosto antes dormir de noite. Movia-se pela casa e os
arredores com a intenção de encontrá-lo, ansiosa, atenta. Seu coração lhe
recordava de modo constante que aí estava, no lado esquerdo de seu peito, porque
não cessava de palpitar, e, quando por fim avistava a silhueta do senhor Fúria, o
pulso lhe desbocava na garganta até lhe fazer doer e deixá-la sem fala. Suava ao
tempo que a boca secava. Jamais tinha sofrido uma alteração semelhante por
ninguém, e cada dia perto desse homem acentuava sua vulnerabilidade, seu
desconhecimento de si mesma. Tinha a impressão de que habitava no corpo e na
mente de uma estranha.
Em geral, Rafaela adquiria uma incomum segurança na confrontação com
pessoas a quem julgava inferiores de um ponto de vista não só social, mas
também intelectual. Que qualidade possuía esse homem, um gaúcho analfabeto,
para intimidá-la ao ponto de convertê-la em uma covarde? Zangava-a que ele

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sempre mantivesse um ar sereno e reservado, e que a voz não lhe tremesse, no
entanto ela assentia e balbuciava monossílabos. "Homem petulante, soberbo,
metido!", destrambelhava de noite contra o travesseiro. Não obstante, e apesar do
desbarate que lhe provocava a cercania de Fúria, ela o buscava. Sabia que, ao cair
o sol, o acharia na cozinha, sorvendo o mate que Mencia lhe cevava, e mastigando
pão de centeio. Apresentava-se com qualquer desculpa. Saudava-o com um
movimento de cabeça antes de simular ocupar-se de algum coisa, à espera que ele
se dignasse a lhe falar, o que nem sempre ocorria.
Mimita se sentia igualmente atraída por Fúria, com a diferença que, em lugar de
assustar-se, desdobrava uma personalidade e uns talentos que Rafaela não
conhecia. Fúria, por sua parte, prodigalizava-lhe palavras afetuosas que
discrepavam com sua voz pouco polida e seu aspecto montês. Rafaela ficava
contemplando-os até que as palpitações se apaziguavam e um sorriso ligeiro lhe
curvava os lábios. Ele não parecia experimentar aversão por essa criatura tão
pouco agraciada e torpe; pelo contrário, dava a impressão de que a encontrava
maravilhosa. Uma tarde, Fúria chamou Mimita e lhe atou ao pescoço um tato que
ele mesmo tinha trancado, com pequenos pinjentes de osso em cor púrpura. A
menina prorrompeu em expressões de alegria e se abraçou às pernas do gaúcho.
Os olhos de Rafaela ficaram quentes até encher-se de lágrimas, que, sem remédio,
transbordaram por seu rosto. Era a primeira vez que via feliz a Milagres, e a
confundia pensar que esse momento de magia se devia a um homem do que só
teria esperado atitudes vulgares e palavras profanas.
Fúria moveu a cabeça até fixar a vista em Rafaela, que depressa, quase com
impaciência, secou as lágrimas com as mãos. O seguiu observando a desse modo
intenso e impertinente que sempre terminava por obrigá-la a levantar o rosto para
lhe permitir que a subjugasse. Nessa ocasião, a expressão de Fúria a afetou de um
modo especial, algo ocorreu nesse instante que a deixou sem fôlego, ela percebeu
que uma mudança tinha alterado por completo a atitude do homem. Seus olhos se
mostravam francos e pareciam dizer: "Não chore, Rafaela", com uma suavidade
que lhe provocou um tremor. Esboçou um sorriso que só Fúria, que a contemplava
com fixidez, teria advertido. Um silêncio mútuo se estabeleceu entre eles, falaram-
se sem necessidade de palavras, compartilhavam um segredo quando apenas se
conheciam. Rafaela não compreendia o que estava ocorrendo, de onde nascia o
impulso de caminhar para ele e aconchegar-se contra seu peito de homem forte e
digno. E de repente entendeu, como se um golpe de luz tivesse iluminado uma
parte escura e tenebrosa a que nunca tinha querido aproximar-se, que Artemio
Fúria era o homem que ela sempre tinha procurado e desejado. Viver um dia com
Fúria lhe dava sentido a sua vida. Era estranho, ele podia lhe oferecer o que tinha
procurado, alegria, apoio, amor, e, ao mesmo tempo, converter-se em sua ruína
social e moral. Essa noite, quando as emoções da tarde minguaram, e, incapaz de
dormir, dava voltas na cama, atormentou-se ao refletir que Artemio Fúria jamais
desejaria a uma mulher como ela. Procuraria uma de voluptuosa sensualidade,
com o espírito dos pampas impresso no caráter, de temperamento livre, sem
remilgos, que soubesse montar e que não temesse às bestas e a quase tudo.
Não voltou a ter paz desde o dia em que descobriu seu amor por esse gaúcho que
falava mau e que não sabia ler nem escrever. Suas jornadas se desvaneciam em
um intento por obter uma espiada de sua figura, um som de sua voz, uma anedota
de sua vida. Aguardava em ânsias mortais o momento em que, com qualquer
desculpa, se apresentaria na cozinha para vê-lo tomar mate com Mencia, às vezes

90
em companhia de seus homens. Atraía-a o índio Calvú Manque, o qual era tão
simpático e aberto como austero e hermético era seu amigo. Por ele soube que
Fúria tinha uma debilidade: a torta de patay. Ao dia seguinte, mandou a Babila à
mercearia de São Fernando da Boa Vista a comprar vários quilogramas de farinha
de algarroba e assou a torta enquanto Mimita dormia a sesta. Creóla lhe contou
que o gaúcho Fúria devorou dois pedaços sem falar. Ao terceiro, confessou a
Mencia que nunca tinha comido uma torta de patay tão saborosa.
—Devia ter vista a cara dele, minha menina —se entusiasmou Creóla—, quando
dona Mencia lhe disse que tinha sido você e não ela a que a tinha preparado!
Rafaela queria que sua escrava lhe detalhasse o gesto do senhor Fúria, sua
reação, o que havia dito e feito a seguir. Lamentava haver-se perdido a
oportunidade de receber sua gratidão e suas adulações. A partir desse dia, não
faltou a torta de patay à hora em que Fúria e seus gaúchos apareciam na cozinha
por mate.
***
Ao cair o sol, Bamba passou para as buscou para ir onde Fúria domava o cavalo
ao modo dos índios. A pouco de andar, Rafaela caiu na conta de que se dirigiam
para a lagoa.
—Sim, vamos à lagoa, senhorita —confirmou o moço—. Vamos nos esconder
depois dos caldenes (tipo de planta) para não espantar ao cavalo. Artemio me
mataria.
Creóla tampou a boca para conter uma gargalhada ao ver o rubor de sua ama
ante a figura seminua de Artemio Fúria, que se tinha tirado a camisa e o chiripá;
levava só os calções e ia descalço. Tinha o cabelo preso em um rabo de cavalo
enquanto com a mão sujeitava as mechas que lhe caíam sobre a frente. Depois da
confusão, Rafaela foi acostumando-se ao torso nu e sorveu sua imagem com a
avidez de um sedento. Ele sabia que estavam ali, depois dos troncos das árvores,
mas não disse nada. O via mais sereno que de costume, movia-se com lentidão, e
sua atitude pouco a pouco contagiou o ânimo de Rafaela.
Bamba, em sussurros, explicava as distintas fases da domesticação. Fúria
esfregou o animal na virilha, nas costas, no pescoço, nas babillas e nas pernas
para desembaraçá-lo do comichão. Passava-lhe um cojinillo, uma espécie de manta
de velo que se colocava sob os arreios, ou a montaria, como a chamavam os
patrícios, para habituá-lo à textura. Se o animal se inquietava, Fúria detinha o
manuseio e lhe falava. A certa distância, abriu e fechou varia vezes umas
tesouras, cujo som perturbou o cavalo ao ponto de encabritá-lo. Fúria sujeitou o
laço e o obrigou a apoiar os quartos dianteiros no chão até pôr o de joelhos. Creóla
advertiu que sua ama entreabria os lábios e cessava de pestanejar ao testemunhar
a força desses braços, cujos músculos e tendões se estiravam e inflamavam sob a
pele bronzeada e suarenta.
—Por que faz ruído com as tesouras? —quis saber Creóla.
—Para o pingo (cavalo) não se espante quando lhe tosarem as crinas e a cauda.
Depois de apaziguá-lo, Fúria conduziu ao cavalo à lagoa. O animal duvidou na
borda, não queria entrar, dava coices e sacudia a cabeça.
Segundo Bamba, temia-lhe à água porque sabia que, nas proximidades, sempre
se achavam seus depredadores. Com paciência, lhe falando e acariciando-o, Fúria
conseguiu que entrasse. Guiou-o até onde a água o cobria quase por completo, só
a cabeça ficava fora, e o montou. A reação foi imediata: o animal corcoveou e
relinchou. Parecia desesperado. Em cada corcoveio, afundava o focinho, e a água

91
lhe ingressava pelos olhos e as orelhas, o que o chateava ainda mais que o peso no
lombo. Bastaram umas imersões para que escolhesse estar-se quieto. Soprava e
batia a cabeça, para os flancos. Fúria, inclinado sobre a sela, aplaudiu-o e lhe
falou em voz baixa. Passaram largos minutos até que por fim cavaleiro e cavalo
abandonaram a lagoa. Dos alforjes que descansavam ao pé de uma árvore, Fúria
tomou um punhado de cubos de açúcar e os deu de comer ao animal como
recompensa pelo bom trabalho. Assim terminava a sessão de domesticação por
esse dia, e Rafaela pensou que se tratou de uns dos espetáculos mais
interessantes e atrativos que tinha visto.
—Bamba —o chamou Fúria—, ata-o a ñandubay próximo ao abrigo. Dê-lhe
pouca rédea, para que não coma a grama.
O moço saiu correndo para cumprir o mandato, e deixou sozinhas a Rafaela e a
Creóla, que observavam a Fúria se secar imperfeitamente e tornar-se em cima a
camisa e calçar as botas de potro.
—Voltemos para a casa —sussurrou a sua escrava.
—Senhorita! —escutou-se a voz do homem—. Queria lhe falar —disse, e se
aproximou.
—Por que não quer que coma a erva? —perguntou-lhe Creóla, quando o teve a
frente.
—Para que dure a domesticação —explicou o homem—, só eu lhe dou de comer e
de beber, para que aprenda a respeitar-me e a confiar em mim —enquanto falou,
todo o tempo olhou a Rafaela—. É um güen pingo.
—Por que está domando-o?
No que ia do dia, era a primeira vez que escutava a voz da jovem Palafox. Afetava-
o seu timbre profundo, mas bem grave, e gentil; o fazia pensar em uma mulher
inteligente e culta. Como de costume, aproximou-se dela com a intenção de
absorver quanto pudesse do perfume que desprendia seu corpo, que o alcançou
como uma carícia apenas perceptível antes de desvanecer-se na brisa do
crepúsculo.
—Estou domando-o para você, senhorita. Para lhe ensinar a montar.
—OH!
Creóla, fora da vista de Rafaela, tampou-se a boca para não gargalhar ante o
rubor e a expressão lastimosa de sua ama, e piscou um olho ao gaúcho, que
continuou sério. Caminharam em direção à casa em tanto Fúria expunha os
avanços do rodeio e da tropa de cavalos.
—Senhor Fúria —o interrompeu Rafaela—, você crê que deveria despedir dom
Íñigo e colocar outro em seu lugar?
"Não é nenhuma parva", refletiu Artemio. Fazia tempo que ele suspeitava que
Íñigo tinha tomado parte no roubo do gado. Entretanto, ao carecer de provas,
preferia calar. Além disso, estava tão longe de converter-se em um mexeriqueiro
como de voltar-se turco.
—Se você me pergunta isso, senhorita, É porque perdeu a confiança em Íñigo. E
sem confiança, não há nada.
—Tem razão. De todos os modos, é uma decisão que não me compete. Será meu
pai quem se ocupará deste assunto, quando retornar —acrescentou, e em seguida
trocou de tema—: Quando estima que as vacas se encontrarão prontas para ser
vendidas?
Artemio a estudou de soslaio e advertiu a ansiedade com que esperava sua
resposta, e de novo se deu conta de que podia lê-la como um livro. "É muito franca

92
e aberta." Não teve coração para lhe dizer que, se as vendia nesse momento,
obteria muito pouco lucro quão enfraquecidas estavam.
—Senhorita, você necessita urgentemente de materiais?
A Rafaela tomou um instante compreender o que lhe perguntava —ainda não se
habituava ao jargão dos patrícios— e outro, intuir que o homem se dispunha a lhe
oferecer um empréstimo.
—OH, não, senhor Fúria! —apressou-se a responder—. Não, não, só queria
saber.
"E também é orgulhosa", completou Artemio, e baixou o rosto para ocultar um
sorriso. "Esta mulher será minha", jurou com uma ansiedade que não lhe era
própria, que o confundia e que ao mesmo tempo o enchia de exultação.
Os gritos de Bamba acabaram com a agradável atmosfera. Fúria correu a seu
encontro, ouviu as explicações atropeladas e partiu com toda carreira para os
currais. Rafaela e Creóla foram atrás. Acharam sozinho a Gabino, que, de seus
arreios, jogava o laço, sem êxito, a uma vaca encerrada dentro de um curral de
dimensões notavelmente pequenas, utilizado para realizar as curas. Rafaela
afogou um alarido ao descobrir Billy, "o rengo", dentro do curral, com as costas
pega aos tatos da paliçada de pau a rivalidade, sob o mugido da vaca, o chicote
como arma. Bamba se uniu a Rafaela e a Creóla e, quase sem fôlego, explicou-
lhes:
—Billy tentava curar as feridas cheias de queresas desse toruno.
—Acaso não é uma vaca?
—Que é um toruno?
—Touros mau castrados, senhorita. Têm o mesmo humor endiabrado do diabo!
—O que ocorreu, afinal? —urgiu-o Creóla.
— Gabino, que o segurava do lado de fora, partiu o laço. O marrajo se soltou e
começou a perseguir Billy, irritadíssimo porque lhe havia posto a salmoura na
ferida. E aí o tem, encurralado. Se não fosse Calvú, já o haveria pisoteado, mas
por instinto se protegeu no alimentador.
—Acaso ninguém pode enlaçá-lo? —interrompeu-o Rafaela.
—Vai ser difícil porque se movimenta muito e Gabino já jogou o laço duas vezes.
Aí vai Artemio! —exclamou Bamba, e o assinalou.
Ia montado sem sela; evidentemente não tinha tido tempo de selar; nem sequer
levava rédeas. "Meu Deus, protege-o", murmurou Rafaela ao vê-lo ingressar no
curral. A prece se deslizou entre seus lábios de modo inconsciente. Ela jamais
tinha visto um animal tão enfurecido como esse toruno, e admirou a coragem
desse homem.
Fúria cruzou ao cavalo diante de Billy, "o rengo", para defendê-lo de uma
investida. Rafaela soltou um alarido ao ver a careta de dor de Fúria quando o
animal arremeteu contra sua perna. Correu para o curral e não raciocinou ao
subir na cerca, onde ficou, resfolegando e chamando o animal, as mãos sujeitas
aos troncos.
—Bamba! —a voz—áspera e potente de Fúria trovejou na tensão da cena—. Tira
ela daí, caralho18!
O desdobramento de Rafaela tinha servido para distrair ao toruno, que se afastou
em sua direção para investi-la. Artemio Fúria se inclinou sobre Billy e o ajudou a

18
A autora usa a palavra carajo, equivalente ao brasileiro caralho.

93
montar atrás dele. Dado que o toruno se colocou frente a cerca atraído pela moça,
não podiam abri-la para permitir que o cavalo de Fúria saísse. Este poderia ter
saltado perto se o diâmetro do curral tivesse devotado espaço para a carreira.
Advertida do dilema, Rafaela correu para o setor oposto e, com gritos e agitação
de braços, atraiu ao animal, que se jogou contra a paliçada e partiu vários
troncos. Seguiu investindo, procurando sua liberdade para destroçar à mulher que
o enfurecia. Um momento depois, Rafaela viu que um laço se fechava na garganta
do toruno e o atirava para trás. Fúria, ainda montado em seu cavalo, apertava o
cenho e franzia os lábios no esforço por submetê-lo, tenso o laço enroscado em seu
braço direito. Na mão esquerda, levava a desjarretadera, uma lança larga com um
fio no extremo inferior em forma crescente. A brandiu e cortou com precisão os
tendões do toruno, que desabou, jogando espuma pela boca e ofegando.
—Carneiem-no! —ordenou, raivoso, e saltou do cavalo.
Gabino se retraiu ao vê-lo avançar, consciente de que merecia a ira de Artemio;
essa manhã, ao ver o ressecamento de seus laços, tinha-lhe ordenado que os
engordurasse para evitar que se cortassem, o que finalmente tinha ocorrido,
pondo em risco ao Billy. Fúria, não obstante, passou a seu lado, sem olhá-lo.
Rafaela o viu cair sobre ela como uma ave de rapina sobre uma lebre. Como já
tinha vivido essa situação e descoberto a fúria em seus olhos turquesa, teve medo.
O gaúcho a aferrou pelos ombros e a sacudiu ao lhe vociferar:
—Em que merda estava pensando quando subiu na cerca! Esse maldito animal
poderia havê-la destroçado com seus chifres!
—Perdão! Sinto muito! —repetiu—. Tive tanto medo! Tanto medo!
Contemplaram-se durante uns segundos onde a intensidade do olhar os abstraiu
do lugar, do tempo e dos acasos. Resultava evidente que já eram incapazes de
olhar-se de outro modo que não revelasse a paixão que se inspiravam.
Ao notar o brilho que voltava de um verde intenso os olhos de Rafaela, como o da
erva daninha no verão, Fúria afrouxou a pressão nos ombros, sem soltá-la.
—Mulher tola, teimosa, orgulhosa —lhe disse, com firmeza, mas sem irritação—.
Corajosa. Corajosa, caramba.
Outros observavam em um silêncio reverente, logo alterado pelo chiado dos
primeiros insetos noturnos e os gorjeios das últimas aves. Creóla se aproximou de
sua ama, tomou pela cintura e a separou de Fúria. Rafaela se mostrou dócil ao
dar meia volta e partir para a casa.
***
De pé frente à janela gradeada de seu dormitório, Rafaela esperava a que o
festejo terminasse. Emprestava atenção às vozes e aos cantos que chegavam de
fora perguntando-se quando acabariam. Buenaventura Buena era incansável na
hora de tocar o violão e entoar canções. Sobre as vozes masculinas, sobressaíam-
se as de Felisarda e suas irmãs, a de Mencia também. Comiam o toruno
sacrificado e festejavam o final feliz da ordalía vivida no curral das curas.
O ciúme mais que a espera a mortificavam. Imaginava Felisarda paquerando com
o senhor Fúria da maneira em que a tinha visto em várias ocasiões enquanto lhe
cevava mate, lhe aproximando o decote quase nu ao rosto e sorrindo todo o tempo.
Apertou os punhos em torno das grades da janela, onde descansou a testa e
fechou os olhos. Sentia-se envergonhada. Custava-lhe acreditar que se apaixonou
pelo senhor Fúria. Que a perdoasse Deus, mas assim era. "O que me acontece?",
perguntou-se, como tantas vezes desde sua chegada a La Larga. Paredes de
orgulho, de moral e de sensatez caíam com estrépito em seu interior, deixando-a

94
inerme e exposta.
Sorriu ante a lembrança da ação temerária dessa tarde, quando saltou a cerca
para captar a atenção do toruno, para apartá-lo dele, de Artemio Fúria, para
salvá-lo. Ela, a medrosa, a insegura, a covarde. Na verdade, não meditou sua
ação. Um impulso desconhecido a levou a atuar, e teria sido capaz de uma proeza
mais ousada para protegê-lo. Não ficavam dúvidas sobre o amor que lhe
professava, um amor como ela não tinha conhecido, que a tentava a apresentar-se
no rancho do senhor Fúria uma vez terminada a festa. Como possuía uma boa
imaginação, tinha inventado várias desculpas para justificar sua aparição na
moradia de um homem solteiro e, para pior, de noite, embora sabia que não
existia pretexto que salvasse uma conduta que seu pai e sua tia Clotilde teriam
julgado de aberrante. Daria um passo definitivo. E não tinha medo.
Envolveu-se em seu xale, tomou a lata com ungüento e saiu nas pontas dos pés
para o corredor que conduzia ao pátio principal. O silêncio delatava o fim da festa.
Os postos, ou ranchos dos peões se achavam nas imediações dos currais, para o
norte da propriedade e a varas da lagoa. Rafaela caminhava sem outra luz que a
da lua, sem lhe importar que Mencia tivesse solto aos cães, sem reparar em que
havia jaguares, sem pensar em outros perigos e animais. Inspirou profundamente
e sorriu. Que maravilhoso era não ter medo! O coração lhe palpitou, desbocado, e
o fazia de alegria, de excitação e de espera.
Entreviu luz no rancho de Fúria. Caminhou decidida até a ramagem. Ali se
deteve de repente. Seus brios começaram a desmoronar-se ao refletir que um
homem como o senhor Fúria não passaria sozinho a noite depois das insinuações
de uma jovem bonita e descarada como Felisarda. Movida por um desejo perverso
mais que pela curiosidade, aproximou-se e tentou ouvir suas vozes. Se estivesse
no interior do rancho, já dormiam ou se conduziam de modo muito silencioso.
Entreabriu a porta de couro e cana. Não havia compartimentos, tratava-se de uma
única estadia discretamente mobiliada e com dois postes de sustento. "Artemio
metia-me o chicote no início, porque eu era muito desorganizado e deixava as
coisas fora do lugar”. As palavras de Bamba vieram à mente comprovar a ordem
lhe reinava. Na mesa, ardia um abajur de azeite que jogava uma luz pálida e
amarelada sobre duas banquetas e uma cama de armar cujo elástico de cintas
largas de couro não tinha colchão nem lençóis. Rafaela se perguntou onde
dormiria. Junto ao abajur, descobriu ferramentas cortantes e pedaços de hastes e
ossos, o que a levou a pensar no colar de couro trançado e de cor púrpura que
Fúria tinha agradado a Mimita. Lembrou-se dos vários anéis que ele levava nas
mãos, tudo de osso. "Ele que os faz", concluiu. Também havia um livro, e o achado
lhe provocou uma feia sensação. Tratava-se da história do Cavalheiro de Zifar,
inclusive havia notas nas margens. "Meu Deus! Acaso este homem sabe ler e
escrever?" Girou de repente a cabeça para o setor mais escuro do rancho atraída
por um ruído. Algo ou alguém se arrastava. Alcançou-a um vaio, ou mas bem um
sopro, o de um gato zangado. Retrocedeu de modo mecânico sem apartar a vista
do local de onde provinha o sussurro. Já distinguia os esboços de um animal que
se aproximava do atoleiro de luz. Mordeu o lábio para não gritar, horrorizada ante
a imagem de um felino gigante, um jaguar, deduziu. O animal quase rastejava com
a cabeça entre as patas, o cabelo do lombo encrespado e as orelhas baixas.
Ameaçava-a lhe expondo os compridos e afiados dentes e lhe cravando seus olhos
amarelos. Sabia que empalidecia, que o sangue lhe abandonava o rosto. Começou
a suar embora sentisse frio, e um mal-estar na boca do estômago subiu até

95
converter-se em náuseas.
Lutou contra o desespero e o pânico para estudar as possibilidades de
escapatória. A porta entreaberta ficava a vários passos, a sua direita, e julgava
pouco sábio mover-se por temor a provocar ao jaguar. Não contava com uma arma
para defender-se, só a lata com ungüento. Poderia arrojar-lhe para ganhar uns
segundos, os que necessitava para pegar a faca que se achava entre os utensílios
para esculpir osso. A ponto de levar a cabo seu plano, advertiu uma presença
detrás dela e, em seguida, viu uma mão de homem que lhe rodeava a cintura e lhe
abrangia o ventre.
—Tranqüila —o fôlego de Fúria brincou em sua orelha.
Rafaela se sujeitou ao braço que a circundava ao perceber que os joelhos lhe
tremiam. O alívio que experimentou se converteu em um soluço.
—Tranqüila —insistiu ele—. Quinto não lhe fará nada. Ele e eu somos velhos
amigos.
Rafaela não caía na conta de que cravava as unhas no braço do homem. Ele,
entretanto, não se queixou. Disse, em troca:
—Vem, amigo, te aproxime. Quero que conheça alguém.
—OH, Por Deus! —assustou-se Rafaela ao vê-lo avançar, incapaz de advertir a
mudança na atitude do felino.
Fúria se agachou, arrastando-a a ela, que ficou no meio de seus joelhos
separados e com seu braço ainda em torno da cintura. Ao ver que o animal se
aproximava, Rafaela não conseguiu controlar o pânico, girou sobre seus pés e
escondeu o rosto no peito de Artemio.
—Por favor, senhor Fúria! Por favor! Que se afaste. Ordene que se afaste.
Escutava-o rir entre dentes e lhe falar com animal. Rafaela sentiu uma umidade
no braço e soube que o felino estava farejando-a. Permaneceu quieta, sujeitando a
respiração, com os dedos afundados nos ombros do gaúcho.
—Vamos, senhorita, não seja ingrata com Quinto, que quer ser seu amigo.
Rafaela levantou as pálpebras lentamente e advertiu que tinha o rosto pego ao
torso nu e peludo do senhor Fúria. Notou-o molhado, como se acabasse de dar um
banho, e o aroma a sabão de insípida confirmou a hipótese. Perguntou-se se teria
coberta a parte de abaixo. Deu-se volta, nem tanto para agradá-lo a não ser para
verificar que levasse os calções.
Fúria tomou a mão e a guiou até a cabeça do puma. Rafaela deu um coice ao
contato dessa pelagem suave e dura. Contra a corrente, cravava. O animal
apreciava as carícias porque entrecerrava os olhos e ronronava.
—É um cínico —o admoestou Artemio—. Toca-lhe uma mulher e se transforma
em um gatinho.
Rafaela riu, estimulada pela segurança que lhe infundia Fúria a suas costas, e se
soltou para acariciar ao animal por sua conta, no lombo e de novo na cabeça.
Fúria também ria, agradado. Tomou a Rafaela pelos cotovelos e a pôs de pé.
Obrigou-a a girar e a enfrentá-lo. Contemplaram-se por um momento no que não
pestanejaram nem respiraram.
—Perdão —disse Rafaela.
—Por quê?
—Por ter entrado em seu posto sem permissão.
—Alegra-me que tenha feito.
—Vim a lhe trazer isto —se apressou a esclarecer—. É um ungüento que preparo
a base de arnica. É muito bom para desinflamar contusões —como ele seguia

96
olhando-a com expressão ambígua, acrescentou—: Para o golpe que o desferiu o
toruno.
—Obrigada —respondeu ele, e tomou—. Sente-se.
Rafaela se localizou em uma banqueta, e em seguida Quinto lhe apoiou a cabeça
no joelho em busca de mais carícias. A situação lhe resultava fascinante. Tinha a
um jaguar sobre a perna e não sentia medo, enquanto Fúria, meio nu, tornava-se
em cima uma camisa, e ela não se envergonhava. A inverossimilhança de sua
própria conduta a aturdia, e se perguntou se aquilo não conformaria parte de um
sonho.
—Obrigada —insistiu Fúria, uma vez sentado frente a ela, e levantou a lata com
ungüento—. Não deveria haver-se preocupado.
—Não foi chateação, senhor Fúria. É o menos que posso fazer depois da ajuda
inestimável que você está me emprestando. Seu cavalo resultou ferido pelo
toruno?
—Levantou-lhe um pouco a pele com os chifres. Logo estará curado.
—Sinto muito.
—Eu também.
Ficou calada, estudando-o com falta de vergonha. Tinha o cabelo molhado.
—Chama-se Quinto o jaguar?
—Não é um jaguar, É um puma. E sim, esse é o seu nome porque o achei à beira
desse rio, anos atrás, do tamanho de um cachorrinho.
—Que maravilhoso deve ser ter a um puma por amigo! Eu temo aos animais,
embora alguns são formosos e me sinto igualmente atraída por eles.
—Pois já tem a um puma por amigo ao que não deverá lhe temer. Ganhou a
devoção de Quinto, digo-o a sério. É muito arisco, e só a Calvú ou eu permite que
o toquemos, às vezes ao pai Ciriaco, meu amigo. E agora a você.
Rafaela experimentou um orgulho que transpareceu no rubor de seu rosto e no
brilho de seus olhos. "Que olhos!", pensou Fúria.
—Não tinha visto Quinto anteriormente. É que o mantém escondido em seu posto
durante o dia?
—Quinto é demasiado livre para mantê-lo escondido. Ele vai e vem como lhe dá a
vontade. Aparece e desaparece. Mantém-se longe dos Cristãos porque sabe que o
caçarão se o verem. Busca-me quando está brincando menos. Não é, amigo?
—Que formoso é! —pensou Rafaela em voz alta, sem deter as carícias.
Caíram em um silêncio. Artemio Fúria não apartava o olhar da moça. Para ele, o
momento também possuía uma essência mágica e onírica. Rafaela Palafox o tinha
surpreendido, e isso não resultava usual. E até na anormalidade da situação, ele
se sentia tão cômodo e a gosto como se frente a ele se encontrasse o padre Ciríaco
ou Calvú Manque. Do mesmo modo, experimentava um comichão no peito que o
levou a perguntar-se se não se tratava de pura sorte.
A Fúria o comoveu admitir que respeitava a essa mulher como a poucos homens.
Ele, às mulheres, não as respeitava; tratava-as com galhardia, embora as
considerasse criaturas manhosas e arteiras, como Albana. Menos ainda respeitava
às senhoras elevadas, que ocultavam detrás dos seus enfeites e discursos de
moralidade as mesmas artes empregadas por suas congêneres da má vida. De
improviso, perguntou-se de que cor seriam seus mamilos.
—Devo ir —disse Rafaela, e ficou de pé, de repente envergonhada pelo olhar do
gaúcho Fúria.
—Quinto e eu a acompanharemos até a casa.

97
—Obrigado.
—Não, a você, senhorita, pelo ungüento. E por me haver ajudado a tirar Billy
desse aperto.
—Você se zangou muito —lhe recordou—. Sempre se zanga comigo.
—Fiquei louco quando a vir na cerca, chamando o toruno.
—É que me assustei tanto quando esse animal raivoso o golpeou! —estalou
Rafaela, com um ardor que alterou a Fúria—. Devo ir —insistiu, e pôs-se a andar,
reprovando a veemência da declaração.
Em seguida, Fúria e Quinto se localizaram a cada lado, e, quando Fúria lhe
buscou a mão, lhe permitiu que tomasse. Caminharam em um silêncio cúmplice,
os três a gosto. Poucas vezes Rafaela se havia sentido tão segura. De fato, embora
se esforçasse, não encontrava entre suas memórias um momento mais pleno e
tranqüilo. Desejou que o senhor Fúria jamais saísse de sua vida.
Detiveram-se o chegar aos confins da casa. Rafaela acariciou a cabeça do puma,
que lhe lambeu a mão e a fez rir. Com acanhamento, levantou o rosto até
encontrar os olhos de Artemio, que mostravam abertamente a ansiedade que o
dominava. Esse olhar a enchia de emoções desconhecidas, resultavam-lhe
confusas e difíceis de definir. Por um lado, adulava-a que ele a contemplasse com
desejo quando ela tinha suposto que não a encontraria atrativa; pelo outro,
enchia-a de remorsos. Com Juan de Dios, de algum modo, havia-se sentido
dominante. Ele tinha sido um jovem tranqüilo, de textura miúda, um pouco mais
alto que ela, de olhar lânguido e modos refinados, o oposto ao senhor Fúria. Juan
de Dios tinha tentado beijá-la várias vezes e ela o tinha permitido em duas
ocasiões, um simples roce de lábios que ela tinha julgado bastante anódino. Ao
olhar a boca do senhor Fúria, soube por intuição que ele não se andaria com
rodeios nem admitiria o rosto.
—Boa noite, senhor Fúria. Que descanse.
O homem inclinou a cabeça e deu um passo ao lado para lhe permitir passar.

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Capítulo IX

A moça dos olhos verdes

O amanhecer encontrou Artemio Fúria subido a uma árvore dos que formavam
um bosque perto da lagoa. Com as costas apoiada no tronco, desfrutava do
espetáculo da saída do sol, advertindo que a noite se voltava mais intensa durante
os minutos prévios a que aparecesse a luz da alvorada. Quinto descansava no
ramo contíguo e se queixava quando ele detinha as carícias.
Tinha dormido pouco e mau, e com a senhorita Palafox cravada na mente.
Desejava que Rafaela Palafox lhe pertencesse como jamais tinha desejado que uma
mulher formasse parte de sua vida. A intimidade compartilhada no rancho o tinha
apaziguado e alvoroçado, tudo ao mesmo tempo. Rafaela Palafox e Binda punha
seu mundo de cabeça e também lhe outorgava um equilíbrio. Tinham estado
muito perto, não só do ponto de vista físico mas também em outro sentido, que
tinha que ver com uma comunhão de espíritos. Ainda o estremecia a lembrança
dela entre seus braços, o perfume de seu cabelo, a delicada curva de sua cintura,
seu pânico e seu alívio, seu sorriso ao fazer carinhos em Quinto, cada detalhe de
Rafaela era importante.
Perguntou-se a que jogo estava jogando, aonde desejava chegar. Não a queria
para uma noite, queria-a para todas, sem refletir que ela desprezaria a vida de um
gaúcho errante. Sacudiu a cabeça, alarmando Quinto. Negava-se a acreditar que a
senhorita Palafox o desprezaria. Quando o contemplava com seus olhos grandes e
rasgados, entregar-se, confiada e feliz. E, entretanto, também lhe temia, tinha-o
lido em seu olhar em várias ocasiões. É obvio que lhe temia, ele era um gaúcho,
um gauderio, um vagabundo, um mal entretido, um homem da pior classe, em
tanto ela era uma dama. Que forças disputariam em seu interior? Possivelmente
estariam despedaçando-a.
Logo a estadia cobraria vida. Seus homens e dom Íñigo iriam embora, muito
entusiasmados, posto que esse dia iniciariam a erra dos nos brinque e os bezerros.
Com tantas questões e responsabilidades, não podia passar a noite acordado
suspirando por uma China. Por exemplo, contava o tema de Gabino, "o domador",
a quem tinha despedido depois do incidente com o toruno. Sabia que o tampe não
ficaria quieto e isso lhe preocupava, com tantas mulheres na casa grande. Pensou
também em que, terminada a erra, conduziria a ponta de gado dos Pueyrredón a
Bosque Alegre, por isso se ausentaria um tempo. Antes liquidaria o assunto da
venda dos animais de Palafox, para o qual se precisava a intervenção do juiz de
paz que certificasse a operação e enchesse a papelada. Pagaria três vezes o que
custava essa ponta danificada e a tocaria até seu campo em Garganta de Morón
para engordá-la. Seria um péssimo negócio, embora valeria a pena se arrancava
um sorriso a Rafaela Palafox ao pôr em suas mãos mais de seiscentos pesos de
moeda forte.
Umas risadas femininas o obrigaram a olhar para baixo. Quinto levantou a
cabeça e parou as orelhas. Fúria lhe ordenou que se mantivera quieto. Rafaela
Palafox e sua escrava, a negra Creóla, dirigiam-se para a lagoa com toalhas e um
cesto nos braços; resultava óbvio que tomariam um banho. Fúria moveu a cabeça

99
em sinal de irritação. "Que China mais teimosa!", chateou-se. Quantas vezes lhe
tinha proibido que não se aproximasse sozinha à lagoa?
Em nenhum momento se debateu entre delatar sua presença ou permanecer
oculto. Ergueu-se no ramo para não perder detalhe e sorriu com malícia ao
comprovar que, a diferença do que se esperava de uma mulher de sua condição,
Rafaela não se banharia com a bata de linho a não ser completamente nua. O
último objeto caiu, e a visão de seu traseiro branco e gordinho, que destacava na
meia luz do amanhecer, apagou-lhe o sorriso. Estudou-a com avidez e concluiu
que seu corpo semelhava a uma pêra. A moça se deu volta para estender um
lençol sobre a restinga, e seus grandes seios se sacudiram e ricochetearam. Fúria
os observou com os lábios entreabertos. Seus mamilos eram de um rosa tão pálido
que resultava difícil distingui-los, embora quase imediatamente se voltaram de
uma coloração mais encarnada quando uma brisa fresca, que inclusive o alcançou
a ele, crispou-os.
Resultava atrativo o contraste entre as figuras da escrava e de sua ama, nem
tanto pela negrume de uma e a brancura cremosa da outra, mas sim por suas
formas. A silhueta de Creóla transmitia a idéia de retas, quando a de Rafaela
Palafox o fazia pensar em curvas. Além de um torneado e fofo traseiro, Creóla era
enxuta, de ombros quadrados, pernas largas e esbeltas e nada de cintura. Rafaela,
pelo contrario, parecia macia onde seus olhos se posassem, nos braços, nas
pernas, no ventre volumoso, em seus seios generosos, com um quadril que era
largo possivelmente pelo estreito da cintura. Moveu-se no ramo para acalmar o
batimento do coração entre as pernas que se acentuou ao imaginar que encerrava
entre suas mãos a pequena circunferência dessa cintura, para baixar até as
nádegas, as apertar e subir logo aos seios. Deteve-se. Não empreenderia esse
caminho ou terminaria por jogar mão ao alívio que não necessitava desde fazia
anos, desde que Albana o tinha iniciado no sexo. Incomodava-o a situação, em
realidade, zangava-o. Não estava habituado a imaginar o objeto de seu desejo. Em
geral, entre o desejo e o alívio não passava muito tempo. Via uma mulher, queria-a
e tomava, se ela se mostrava disposta.
—Creóla, me passe a pedra-pome —a escutou dizer.
—Menina, quer que lhe ensaboe as costas?
—Sim, por favor. Utiliza o sabão de benjuí que preparamos ontem. Cheira tão
bem.
Conhecia-a com o cabelo recolhido pelo que aguardou com ansiedade enquanto a
via desarmar o coque à altura da nuca. Devia tratar-se de uma cabeleira pesada e
abundante a julgar por como caiu sobre suas costas e a cobriu por completo. A
escrava o lavou e, depois de enxugá-lo, passou-lhe um cosmético nas pontas. O
aroma subiu até a árvore e brincou sob o nariz de Fúria.
—Que bom é estar aqui, Creóla! Nademos até a metade da lagoa. Sempre gostei
de nadar.
—Luz muito contente hoje, minha menina.
—Estou-o, Creóla.
—Fúria tem algo que ver com esta sorte?
Artemio se ergueu, dominado pela curiosidade de um jovenzinho apaixonado.
Rafaela Palafox não respondeu e, rindo, entrou na lagoa.
***
Rafaela meditava sobre várias questões enquanto colhia damascos subida em
uma escada com a ajuda de Creóla. Necessitava de Ñuque e planejava enviar

100
Babila a Buenos Aires para que a trouxesse. Embora Clotilde se oporia, a velha
ama terminaria fazendo sua vontade, como de costume. Adorava Ñuque, essa a
Índia calada e enrugada que tinha cuidado de seu pai e de suas tias desde recém-
nascidos, quão mesmo dela e de suas primas. Confiava em Ñuque, em que sempre
lhe diria a verdade, como quando lhe explicou como vinham os meninos ao
mundo. Queria lhe contar sobre o senhor Fúria, o que ele provocava em seu corpo
e em sua mente. Queria lhe dizer que, apesar da origem de Artemio Fúria,
advertia-se nele uma superioridade que se relacionava com sua nobreza, sua
inteligência e sua capacidade de trabalho mais que com sua classe social. Só
Ñuque saberia compreender esse pensamento que teria resultado sacrílego a seu
pai.
Creóla se assustou e deteve o falatório que Rafaela não escutava ao descobrir ao
senhor Fúria junto à cesta. O gaúcho levou o dedo aos lábios para lhe exigir que
se mantivera calada. A escrava, impressionada pelo fato de que um homem dessa
textura se movesse com o sigilo de um gato, olhou-o fixamente, com medo e
respeito. Artemio sacudiu apenas a cabeça para lhe dar a entender que
desaparecesse. Creóla jogou uma olhada a sua ama, subida na escada,
concentrada nos damascos, sorriu ao gaúcho, lhe piscou um olho e partiu nas
pontas dos pés.
—Toma, Creóla —disse Rafaela, e, sem dar-se volta, levou o braço para trás, com
um fruto na mão—. Leve este aqui para ser preparado também. Ah! —queixou-se,
ao sentir que sua escrava a agarrava pelos pulsos com força e a obrigava a soltar o
damasco. Girou o torso e o viu—. Senhor Fúria!
Artemio Fúria o tinha passado de mau humor todo o dia, nem tanto pela falta de
sonho mas sim porque, depois do espetáculo presenciado da árvore, uma
efervescência bulia em suas vísceras. Parecia um animal ferido e raivoso. Seus
homens responsabilizavam a briga da tarde anterior, quando despediu Gabino.
Calvú Manque, que o conhecia como ninguém, não compartilhava essa idéia. Ao
meio dia, em um descanso, exigiu-lhe: "Esta noite se deite com a Felisarda ou te
obrigo a fazê-lo". "Que Felisarda nem oito quartos!", chateou-se Artemio, com o
nome de Rafaela lhe tangendo nas orelhas. Essa destemperança o incomodava; ele
sempre tinha sabido agüentar com dignidade seus períodos de abstinência.
—Algum problema, senhor Fúria? —perguntou Rafaela, vacilante.
—Não.
Em um princípio, acreditou que a contemplava com irritação; um momento
depois entendeu que tratava de lhe dizer algo e que não se atrevia. Resultava uma
mudança inesperada vê-lo vacilar.
—OH! —exclamou, quando o gaúcho estirou o braço e lhe roçou o rosto com a
ponta dos dedos.
Ante a reação, Fúria retirou a mão. O desconcerto e o acanhamento do homem
tocaram uma fibra íntima na Rafaela. Buscou-lhe a mão e a guiou até apoiá-la em
seu rosto. Deixou cair as pálpebras para aumentar a sensação dos dedos dele
sobre sua pele. Desprendiam um aroma agradável, e não demorou para distinguir
que se tratava de romeiro, seus dedos cheiravam a romeiro, como se tivesse estado
arrancando folhas dessa planta segundos antes. Inspirou profundamente na
palma de sua mão e a beijou. Abriu os olhos ao escutar que Fúria soltava o ar
fazendo ruído. Ele já não parecia desconsolado mas sim como um menino
suplicante. Rafaela se sentiu poderosa. Levantou a mão e lhe acariciou o fio da
mandíbula.

101
Fúria lhe rodeou a cintura e passou um braço pelas costas à altura dos ombros.
Rafaela, subida na escada, observava-o direto aos olhos. Em um instante, ele
tinha o controle. Não podia mover-se dada a firmeza com que a sujeitava.
Inconscientemente, cessou de pestanejar e de respirar, e advertiu que a turquesa
da íris quase tinha desaparecido para converter-se em um negrume insondável.
—Que deseja de mim? —inclusive para ela, a pergunta soou estúpida.
Fúria afundou o rosto em seu pescoço e passou o nariz de cima abaixo, de modo
brusco, afundando-a em sua carne, raspando-a com a barba, lhe marcando sulcos
vermelhos que foram do lóbulo da orelha até o nascimento do decote.
—Queria cheirá-la. Faz muito que quero cheirá-la.
A voz do homem, mais rouca do que o habitual, enviou correntes elétricas do
pescoço de Rafaela às extremidades. Arrepiou-lhe a pele até lhe doer; o couro
cabeludo também lhe arrepiou, e lhe atirou o nascimento do coque.
Fúria estava embriagado com Rafaela Palafox, tinham-no embriagado ela e seu
perfume, ao que encontrava fresco e, ao mesmo tempo, doce e penetrante; às vezes
prevaleciam as notas suaves, às vezes as mais agudas. "É como ela", pensou, "às
vezes se mostra cândida e insegura; às vezes, intensa e ousada". Por fim tinha
conseguido apanhar essa fragrância, já não se desvanecia em suas fossas nasais.
Poderia ter permanecido horas com o nariz enterrado na base de seu pescoço,
inspirando o suor delicioso de sua pele. Sentia-se eufórico. Não sabia que classe
de feitiço o mantinha pego a ela, com aquele aspecto tão peculiar. Seria uma
bruxa e esse perfume, um filtro de amor? Levantou a vista. Os olhos verdes e
enormes de Rafaela o contemplaram com pasmo e medo. Olhou-lhe a boca
entreaberta e se aproximou para cheirar seu fôlego. Chá de hortelã. "Acaba de
beber um chá de hortelã." Ao primeiro contato de suas bocas, Rafaela deixou
escapar o fôlego. Fúria a acariciava com seus lábios secos e rachados, enervando-
a, lhe provocando calafrios que confluíam em um ponto de seu corpo, muito
abaixo, que nunca tinha visto. Tratou de apartar-se ao dar-se conta de que Fúria
lhe levantava os lábios com a língua e a passava pelas gengivas e pela parte
interna da boca. Queria entrar, soube guiada pelo instinto. Julgou-o impróprio,
baixo e inadmissível, e tentou sentir-se enojada e ofendida, separou apenas os
dentes, e ele agradeceu o convite com um grunido. Tentou penetrá-la lentamente,
nem tanto para evitar escandalizá-la a não ser para apreciar cada aspecto de seu
interior, a calidez de sua boca, a textura de sua língua, o sabor da hortelã.
Começou a respirar de maneira pesada a modo de prelúdio do instante em que
aconteceu a circunspeção ao desmame. Tomou por assalto a cavidade de sua
boca. Introduziu sua língua como uma estocada para lhe lamber o interior como
se tratasse do suco de uma fruta doce. Não podia deter-se. Imaginou que se movia
dentro de sua vagina a ponto de alcançar o clímax. Alienado, empurrava-a contra
a escada, sem cair na conta do que essa intimidade significava para uma jovem
com uma educação como a dela. Um pouco de mesura operou em seu ânimo ao
escutar o sufoco de Rafaela e ao perceber que tentava apartá-lo.
—Perdão, perdão —suplicou, com a frente apoiada em seu decote nu, muito
envergonhado para olhá-la. Escutava-a respirar com dificuldade e tremer.
Levantou a vista—. Não tenha medo. Nunca tenha medo de mim. Nunca lhe faria
mal.
Viu-a assentir e levantar a alça do corpete em uma atitude que o enterneceu.
Sorriu-lhe para apaziguá-la. Ela, entretanto, seguia contemplando-o com uma
careta entre temerosa e desconfiada e se assustou quando ele levantou a mão para

102
lhe acariciar a boca avermelhada. Ao contato, os lábios de Rafaela lhe pareceram
macios e carnudos, como devia ser seu corpo. E suaves também. A ela, os dele
deviam lhe resultar ásperos.
—Tenho os lábios ressecados —se desculpou.
Ela colocou a mão no bolso do avental e extraiu uma lata que lhe cabia na
palma. Abriu-a, lubrificou seu dedo em uma pomada de cor esbranquiçada e lhe
aplicou uma capa sobre o lábio inferior primeiro e sobre o superior depois.
—O sol do verão e o vento os racham —lhe explicou, e a Fúria gostou que tivesse
cobrado um pouco de serenidade—. Ao igual ao frio no inverno.
—Tem um gosto bom.
—A baunilha —demarcou Rafaela.
Artemio lubrificou o dedo na pomada e o passou a sua vez pelo lábio inferior de
Rafaela. Primeiro o lambeu com suavidade. Depois o introduziu em sua boca e o
sugou até lhe tirar o ungüento. O beijo continuou, mais acalorado a cada
momento.
"Ñuque, Ñuque, isto está bem?", questionava-se Rafaela, incapaz de opor-se a
esse cafajeste sem maneiras nem moral. "OH, Deus santo! Aconteceu. Ele está me
beijando!" ou ao menos estava fazendo algo que semelhava a um beijo. O ar fresco
da tarde revoava em sua perna esquerda e em seu decote, ambos ao nu. Tinha-lhe
levantado a saia e baixado as alças do corpete outra vez, tinha introduzido a mão
direita sob o peitilho do avental e a movia com nervosismo e ansiedade por seu
corpo, massageava-lhe o seio esquerdo logo que protegido pelo fino tecido e em
seguida lhe apertava a cintura para logo lhe tocar o joelho e a coxa até que ela
balbuciava que não, que se detivera.
Embora a sujeitasse prisioneira, a vertigem a levava a aferrar-se à escada com a
mão esquerda, e à nuca de Fúria com a direita. Abriu os dedos com lentidão ao
dar-se conta de que devia estar lhe fazendo doer. Tomou uma inspiração
profunda, aproveitando que ele tinha abandonado sua boca. Consciente da língua
que descendia por seu decote e do comichão da barba em seu pescoço, deu-lhe de
pensar que ela jamais teria imaginado que um homem pudesse tocar a uma
mulher em suas partes pudendas e com aquela intemperança. Agora compreendia
que Ñuque tinha limitado bastante a explicação ou desconhecia detalhes que
possivelmente, refletiu, constituíram hábitos dos homens da categoria de Fúria,
jamais os de um cavalheiro.
Escutou um pigarro e reprimiu um grito ao descobrir a Créola a curta distância.
Apartou o rosto de Fúria de seu decote. Este lhe dirigiu uma olhada confundida.
Não tinha escutado nada.
—Está Creóla —sussurrou, em tanto se cobria as pernas e acomodava o corpete.
Sem soltar o abraço, o gaúcho girou a cabeça e fulminou à negra, que lhe sorriu
e lhe piscou os olhos de novo. Fúria se voltou para a Rafaela e lhe acariciou o
rosto, acomodou-lhe o cabelo e a beijou várias vezes nos lábios, enquanto lhe
sussurrava: "está bem. Tudo bem. Não se preocupe com nada". Ao fim a deixou
livre e iniciou seu caminho para a zona dos peões. Ao passar junto à Creóla, a
escrava se fixou em sua virilha e largou uma gargalhada. Face às dobras do
chiripá, a ereção de Fúria se mostrava sem pudor.
—Deixaram-no tiritando, Fúria.
—Ordenei-te que se fosse —lhe reclamou em voz baixa.
—E o fiz. Mas não ia permitir que manchasse a honra de minha ama em um
escada quando ela é uma princesa que merece uma cama de ouro, verdade?

103
O comentário pareceu afetar ao gaúcho, que soltou um impropério entre dentes e
seguiu seu caminho a passo rápido. Rafaela, ainda agarrada à escada, tinha
testemunhado o diálogo, sem ouvir palavra. Ao encontrar-se com o sorriso de
Creóla, cobrou ânimos. Desceu da escada e se abraçou a sua escrava.
—Esteve bonito? —Creóla soube que Rafaela assentia em seu ombro—. É que
esse Fúria é um macho de verdade! Voto a Deus que sim!
—OH, Creóla! O que vou fazer?
***
Rafaela necessitou meia hora para acalmar-se e empreender a volta à casa. Tinha
a impressão de que todos se dariam conta de seu pecado, incluída Mimita. Por
outra parte, passariam pela zona dos peões, e não desejava encontrar-se com
Fúria nesse momento. Ao momento, calçaram as cestas com damascos nos
quadris e empreenderam a volta. Caminhavam em silêncio. Rafaela cada tanto
fechava os olhos e continha o fôlego ao evocar a intimidade compartilhada na
escada, ao pé da árvore. Ainda sentia as mãos de Fúria em seu corpo, tinham-lhe
ficado estampagens quentes. As imagens a aturdiam, privavam-na do sentido
comum que a teria salvado de experimentar essa sorte. Pensou em seu pai, em
sua tia Clotilde, no asco com que a olhariam se inteirassem de que um gaúcho lhe
tinha metido a língua na boca e apertado os seios. Entretanto, por alguma razão
oculta, não se sentia suja nem manchada. Deveria ser essa condição da que não
se orgulhava e pela qual se achava a gosto entre gente de classes inferiores? "Não
me sinto suja nem manchada porque eu amo a esse homem", concluiu. Amá-lo,
entretanto, também estava mau.
Artemio Fúria a viu aparecer com a cesta apoiada no lado. Notou-a silenciosa e
pesarosa. "Não devia havê-la roçado sequer uma vez porque agora me converti em
seu escravo", recriminou-se, alheio à gritaria de seus homens e das filhas de Íñigo,
que andavam em torno, preparando o festejo para celebrar a primeira jornada de
erra. Alguns se ocupavam de acender o fogão e de estaquear os pedaços de carne;
outros arrastavam carcaças e ossos de vacas para formar uma roda ampla sobre a
que se sentariam a comer; também cantariam e dançariam, jogariam a taba e
possivelmente aos naipes.
—Ei, Artemio! —A voz de Calvú Manque o fez apartar a vista de Rafaela.
O índio lhe assinalou de longe. Gabino, "o domador", aproximava-se de todo
galope. Fúria resmungou um insulto. Haveria problemas. Viu-o desmontar antes
que Atrevido se detivera por completo e aproximar-se dele com passo vacilante.
"Está bêbado", disse-se. E quando Gabino se embebedava, vários demônios se
desatavam dentro dele, e seu manejo da faca, paradoxalmente, melhorava.
—Olhe, menina! Aí está o Gabino. Jogo-me a cabeça a que lhe veio a reclamar a
Fúria, que o despediu ontem depois do toruno.
Rafaela seguiu com atenção ao gaúcho que se arrojava do cavalo antes que este
freasse e que se dirigia a Fúria ao tempo que cruzava sua faca na parte dianteira
do atirador. Apoiou a cesta no chão e correu para interpor-se.
—Menina Rafaela, detenha-se! Não se aproxime, minha menina!
Os gritos de Creóla distraíram a Fúria, que, com um movimento de mão, ordenou
a Calvú Manque que a mantivesse afastada. O índio lhe saiu ao encontro e lhe
plantou em frente.
—Com licença, Calvú. Com licença! Devo deter essa briga.
—O único que a tem que deter é Artemio, senhorita. E me anda parecendo que
não lhe deseja muito.

104
—Por favor! Pode correr sangue.
—Disso, estou seguro.
—Deixe-me passar! Esta é minha estadia! É minha responsabilidade!
—Senhorita, você não sabe como são as coisas na campanha. Aqui não se
arrumam como nos salões do trem. Aqui é bem distinto. Não se meta e tenha
paciência.
Rafaela debateu entre seguir adiante ou admitir a sabedoria do conselho. Deixou
cair os ombros e assentiu.
Resultou significativo o intercâmbio de olhares entre Gabino e Fúria. A gritaria
de minutos antes se esfumou. Todos se concentravam no iminente.
—Che, Fúria. Você e eu temos uma conta pendente.
—Note que coisa! E eu que acreditei que havia soldado.
—Deve-me mais de dez pesos.
—Vinte também! —burlou-se Fúria.
—Sua gente sabe que é mau pagador e que fica com prata alheia. Acaso não
depenou a Ismael Santos e ficou com suas carruagens e com sua China, Dolores
García?
—E você está me cansando com seu falatório —expressou Fúria, e levantou a
comissura esquerda em um sorriso carregado de mordacidade.
O comentário, expresso em tom condescendente, enfureceu Gabino. Tirou o
poncho, que levava de gurupa, quer dizer, recolhido na cintura, e o fez girar até
enroscá-lo em seu antebraço esquerdo. Rematou esse ato aferrando o facão.
—Atreve-se a lutar, Fúria, ou vai suplicar como um garoto? Deus santo vai saber
que você é um malandro!
Calvú Manque se aproximou de seu amigo com a atitude de seu escudeiro
diligente e lhe entregou um poncho. Enquanto o envolvia em seu antebraço, Fúria
lhe ordenou:
—Tira ela daqui, Calvú.
—Senhorita Rafaela, melhor levá-la para dentro. Artemio não quer que fique.
—Estou em minhas terras e fico onde quero.
Calvú Manque jogou uma olhada a Fúria e se sacudiu de ombros, vencido.
—Mulher teimosa e desobediente —resmungou, sem apartar os olhos dela, que
lhe devolveu o olhar com aberto desafio.
Ao entender que o poncho serviria de escudo, Rafaela desejou que o de Fúria
estivesse confeccionado em lã grosa e não nesse tecido leve para a época estival.
As folhas de ambos os facões eram afiadas e ameaçadoras. Uma sensação de
irrealidade a alagava. Ao vê-la pálida, Creóla lhe sussurrou que entrassem na
casa, ao que Rafaela se negou sacudindo a cabeça.
Os rivais se localizaram frente a frente e estenderam a perna direita até pegar as
pontas de seus pés. Brigariam "pé com pé", comentou Calvú Manque, com uma
obscenidade que chateou a Rafaela. Passou o olhar pelo resto do público e notou
em seus semblantes a mesma atitude quase indolente do índio, nada do medo
aterrador dela. Ao comentar-lhe ao Calvú Manque de mau modo, este sorriu e lhe
disse:
—É porque confiamos em Artemio.
Fúria, por sua parte, recordava as vezes em que, por diversão, havia "visteado"
com o Gabino, ou seja, tinham substituído a faca pelo canto da mão cheio de
fuligem e simulado brigar. Essa prática, cuja conseqüência se limitava a ficar com
arranhões negros no rosto e no traje, tinha-lhe bastado para comprovar que não

105
se dirimia com um novato. Levantou o braço e aproximou a ponta da faca.
Ao primeiro choque das folhas afiadas, Rafaela apertou o braço de Creóla. O som
metálico lhe produziu um terror visceral. Respirou fundo e se insistiu a não
deprimir-se. Um momento mais tarde, contemplava a briga com a mesma
fascinação de outros, apreciando a mestria desses gaúchos, os quais, ao manter
as pernas direitas estendidas para o centro e os pés fixos, moviam a cintura com
uma agilidade e flexibilidade admiráveis. Em ocasiões, quando jogavam seus
torsos para trás para escapar a uma finta, ficavam paralelos ao chão.
Rafaela compreendeu que o poncho de Gabino não era mais grosso mas sim este
o tinha enroscado muito solto em torno de seu antebraço, compreendeu também o
motivo de tal proceder ao advertir como se desfazia dele com facilidade para
projetá-lo como um látego perto do rosto de Fúria. Este soltou uma gargalhada, ao
tempo que inclinava o corpo e, com a mão esquerda, aferrava o objeto e a
arrancava ao Gabino, o qual, ao carecer do amparo do poncho, recebeu vários
cortes no antebraço. O sangue se encharcava sobre a terra e, ao ser pisoteada,
convertia-se em um barro que a Rafaela provocou náuseas. Creóla passou um
braço pela sua cintura e a sustentou.
Em um movimento veloz e inesperado, Gabino se agachou, tomou terra no punho
esquerdo e a lançou aos olhos de Fúria. Rafaela conteve o fôlego ao vê-lo tropeçar,
enquanto tentava limpar-se com o poncho do antebraço esquerdo. Pegou um
alarido que pareceu cortar o ar quando Gabino soltou uma finta para seu ventre.
Por instinto, Fúria se moveu para trás, e a ponta apenas lhe abriu um magro
sulco. O sangue lhe tingiu a camisa. Via mau, ardiam-lhe os olhos. Ante uma
advertência de Calvú Manque, abriu-os com esforço. O fio do facão de Gabino
cintilou diante de seu rosto, e, para evitar que o marcasse, girou sobre si e
recebeu a navalhada no ombro. Rafaela mordeu o punho e começou a recitar o pai
nosso como uma autômata, uma e outra vez.
Pelo modo em que desenrolou a briga, a Rafaela deu a impressão de que, até esse
momento, o senhor Fúria tinha estado reprimindo-se. Suas cutiladas se voltaram
tão rápidos que resultava difícil vê-los, Gabino tinha a camisa joga farrapos,
empapada em sangue. Aos dois os atacava a debilidade. Inspiravam rapidamente e
mau. Uma finta confundiu Gabino, que protegeu o rosto, quando, em realidade, o
facão de Fúria se dirigiu a seu ventre. Rafaela tampou a boca com ambas as mãos
para amortecer o grito.
Gabino se congelou em sua posição, como se achasse suspenso ao bordo do
abismo, e apartou o antebraço de seu rosto com lentidão até encontrar os olhos de
Fúria. Este resfolegava fazendo ruído e mantinha a ponta da faca fincada em seu
abdômen. Uma estocada forte e seca teria bastado para terminar trespassado
como uma parte de assado. E Gabino sabia que Fúria, apesar de luzir esgotado,
contava com o vigor para fazê-lo. Soltou seu facão e levantou os braços.
—'Você tem sorte, Gabino. Hoje ando com pouca vontade de me desgraçar. Vai
embora e mais vale que não volte a ouvir seu nome porque se não por esta —fez a
cruz sobre os lábios—, te despacho para o outro mundo!
Quando Gabino insinuou abaixar para recolher a arma, Fúria lhe pôs o pé em
cima e estalou a língua várias vezes.
—Não, esta eu fico.
Fez um gesto com a cabeça que pôs em movimento a seus homens. Bamba se
aproximou de Atrevido. Juan, "o peludo", e Modesto, "o entrerriano", ajudaram ao
Gabino a montar. Fúria desferiu um golpe à anca do cavalo que galopou para o

106
sul. Rafaela seguiu com a vista ao cavaleiro, temendo que caísse por terra. Ao
voltá-la para Fúria, descobriu-o olhando-a com fixidez enquanto limpava o fio do
facão no poncho que ainda tinha enroscado no antebraço. Levantou a saia do
vestido e saiu correndo.
—Merda! —resmungou o homem. Mas não iria atrás dela embora a vida o fora
nisso. Não se rebaixaria ante seus homens.
Rafaela se dirigiu a seu dormitório para pegar sua caixa de madeira. Ao retornar,
topou-se com uma multidão na cozinha que rodeava a mesa. Embora falassem
com insistência, distinguiu a voz de Juan, "o peludo", que lamentava de não ter
visto as tripas de Gabino ao sol. Abriu passo até o senhor Fúria, sentado à mesa.
Felisarda lhe limpava a ferida do ombro com um trapo sarnento sem perder
oportunidade de lisonjeá-lo por sua destreza na luta.
—Afaste-se! —ordenou-lhe, e a jovem soltou o trapo de mau modo—. Fora daqui!
Todos, fora daqui. Creóla, me traga um pouco de água quente.
Apoiou a caixa sobre a mesa e levantou a tampa. Fúria viu garrafas, latas e
esparadrapos. Buscou-a com o olhar e ao momento se deu por vencido. Resultava
evidente que se propôs não lhe emprestar atenção. "Está zangada", disse-se.
Rafaela lhe tirou a camisa com vários rasgões. Por fortuna, a ferida do ombro
tinha estancado.
—Isto doerá —lhe advertiu antes de começar a limpar ambas as feridas com
sabão de insípida e água quente, e, embora Fúria não emitiu som, Rafaela
observou que respirava rapidamente e que uma capa de suor lhe cobria a frente e
o nariz.
Ao liberar as feridas de crostas de barro e de sangue seca, Rafaela avaliou que a
do ventre não traria complicações; a do ombro, em troca, precisava sutura; tinha
os lábios muito separados e se achava em um local de muita mobilidade.
—Creóla, prepara uma valeriana bem doce para o senhor Fúria e um chá de
hortelã para mim —Pela primeira vez, dirigiu-se a Artemio olhando o de frente—:
Esta ferida deverá ser costurada. Embora tenha visto minha enfermeira costurar
incisões em várias ocasiões, jamais o fiz. Mandarei ao barbeiro de São Fernando.
—Faça-o você —lhe pediu Fúria—. Não quero que um médico ruim (charlatão)
me toque. Só você.
O orgulho lhe impediu de lhe confessar que não se atrevia. Não desejava que
descobrisse sua natureza medrosa; desejava que ele pensasse bem dela, que era
uma mulher valente e curtida como Felisarda e suas irmãs. Assentiu. Desentupiu
duas garrafas, e Artemio alcançou a ler Bálsamo da Melisa e Água de Aciano (com
atutía) nas etiquetas escritas com letra formosa e feminina. Rafaela aproximou a
garrafa com a água de aciano ao rosto do gaúcho e lhe explicou:
—Verterei umas gotas deste colírio em seus olhos para limpá-los.
Estudou-os de perto. A turquesa resplandecia no matagal de veias avermelhadas
causadas pela irritação. Ainda tinha terra suspensa nas pestanas, que tornava
opaco o negro natural. Ao sentir as gotas em seus olhos, Fúria exalou um suspiro.
Rafaela secou o excesso com um lenço de linho, quase sem roçar a pele. Ao passá-
lo pelas pestanas, esmagaram-se contra a pálpebra inferior para voltar a arquear-
se tão espessas e negras como antes.
Empapou um retalho de gênero com o bálsamo de melisa. Sem explicações,
lubrificou os ombros, o pescoço e o rosto do gaúcho, com tanta delicadeza que,
pouco a pouco e pese à dor das feridas, as pálpebras lhe pesaram e as pulsações
lhe diminuíram. O aroma da melisa, como a limpo, mesclava-se com o perfume de

107
Rafaela criando uma aura em torno dele. Como as fricções se detiveram, Fúria
abriu os olhos e viu Rafaela enchendo as mãos de bálsamo. Voltou a fechá-los
quando ela começou a lhe massagear os braços, em especial na articulação das
mãos. As comissuras de seus lábios se elevaram sutilmente, ninguém se teria
precavido desse sorriso de satisfação. Jamais teria permitido que o tocassem desse
modo e sem lhe brindar explicações. Com Rafaela Palafox, a entrega se produziu
de maneira natural. Ficou brando quando a jovem acabou.
—Agora beba isto —lhe indicou, enquanto vertia um jorro do ópio de seu pai na
valeriana—. O costurarei uma vez que faça efeito.
Sentou-se diante dele e sorveu o chá de hortelã para cobrar ânimos. Costurou-o
com uma agulha que banhou previamente em álcool e a qual enfiou uma linha
muito fina. Quando a agulha se fincava em sua carne, Fúria mordia a parte de
couro colocado para evitar que se rompesse os dentes. Entre ponto e ponto,
tomava grandes inspirações, e o festim de aromas —o da melisa, o do perfume
dela e o de seu fôlego a hortelã— devolviam o vigor. A tortura acabou antes do que
imaginava. Pesaram-lhe as pálpebras ao abri-los. Rafaela pulverizava um pó
amarelado sobre a ferida em tanto Creóla preparava uma atadura. Ajudaram-no a
incorporar-se e o conduziram aos interiores, fazendo caso omisso de seus
protestos. Sentia-se débil e perdido, sua vontade parecia haver-se dissolvido. Não
apresentou resistência ante a cama que se projetou diante dele. Caiu em um
sonho profundo apenas se deitou e não soube quando Rafaela e Creóla lhe tiraram
as botas de potro, o atirador e o chiripá e estenderam uma manta de algodão
sobre seu torso nu.
—Dormirá até manhã. Dei-lhe uma grande dose de ópio.
Creóla aferrou as mãos de sua ama.
—Que brava esteve você, minha menina! Que brava!
***
Ao dia seguinte, Rafaela se inteirou por Bamba de que Fúria despertou à
alvorada e trabalhou toda a manhã na erra. Zangada, partiu para a zona dos
currais recordando que seu pai o tinha proibido desde pequena. Tinha violado
tantas regras ultimamente que mostrar-se afetada por comparecer nesse setor
teria sido um ato de hipocrisia.
Topou-se com Fúria às portas do abrigo. Ficaram frente a frente, e ela, que tinha
ensaiado um sermão por descuidar sua saúde, viu-se desprovida de palavras. Sem
chapéu e com o lenço lhe rodeando a cabeça, sua orelha com argolas de prata
sobressaía, lhe sublinhando o aspecto desumano. Era tão formoso e ao mesmo
tempo tão selvagem. Perguntou-se que via o senhor Fúria quando a olhava.
Agradaria-lhe a visão ou repararia na mediocridade de suas feições?
—O que me deu a beber ontem me deixou entorpecido - lhe reprovou—. Por que
me deu isso - sua voz soava mais enrouquecida e áspera que de costume.
—Não quis que sofresse enquanto o costurava.
—Aguentei que me costurassem mãos muitos menos delicadas que as suas.
Rafaela compreendeu que tinha ofendido seu orgulho.
—Precisava descansar —interpôs.
—Dormi a noite toda como uma marmota —a declaração causou a hilaridade da
jovem, que Fúria não compartilhou—. E se Gabino voltasse, furioso, o que teria
sido de você comigo dormindo?
—Gabino se foi em muito mal estado. Não teria retornado.
—Você não conhece esta gente, senhorita.

108
A declaração a deixou muda. Apertou o sobrecenho. Falou de "esta gente" como
se ele não pertencesse à mesma casta.
Os homens de Fúria se aproximavam dando gargalhadas e levantando a voz.
Fúria a tomou pelo cotovelo e a guiou dentro do abrigo para evitá-los. Ao fechar a
porta, o lugar ficou em penumbras. Rafaela percebeu o aroma de umidade e a
forragem, um aroma que a transportou a sua infância quando, com a Creóla,
escapuliam-se na hora da sesta para esconder-se nesse local, que ainda albergava
a velha carruagem sem rodas, apoiada sobre quatro tocos, onde tinham bincado
por horas. Observou que embora a madeira estivesse opaca e curvada em algumas
parte e o couro que cobria o teto estivesse roído, a carruagem se conservava
inteira. Olhou para dentro por um dos orifícios do couro e descobriu montões de
palha e plumas. Sobressaltou-se quando Fúria, sem tocá-la, apoiou-lhe o nariz na
nuca e começou a cheirá-la.
—Não posso esquecer o beijo que nos demos ontem —lhe sussurrou.
—Eu tampouco —admitiu ela. Se reclinou sobre a carruagem e apoiou as mãos
no adral, à espera do que desejava.
Fúria lhe admirou a curva do pescoço, onde nascia o ombro, e a beijou. Em
seguida percebeu que a pele de Rafaela se arrepiava. Pôs a mão em seu ventre e a
atraiu para ele, até que as costas dela se amoldaram a seu peito. Lamentou
cheirar a tabaco, a cavalo e a suor quando ela parecia um compêndio de flores.
Seus lábios seguiam rachados e secos; os dela eram como um morango. Obrigou-a
dar-se volta e a estudou com determinação, tentando descobrir o rechaço e o asco
em sua expressão. O sol, que ingressava por um guichê perto do teto, banhou o
rosto de Rafaela, e Fúria conteve o fôlego ante o brilho de seus olhos verdes e a
qualidade untuosa de sua pele. Nem sequer entre as jovens de bom ver ele tinha
visto uma pele tão lisa, sem manchas, sem defeitos, como se tratasse de uma
estátua de porcelana. Pensou em sua mãe, em sua pele branca e diáfana.
Levantou a mão com lentidão, temendo assustá-la, e lhe roçou a maçã do rosto
com a ponta dos dedos. Raspava-a, sabia. Assim como ela era toda branda e
suave, ele era áspero e duro.
Rafaela sujeitou a mão dele e a beijou na palma, apreciando a aspereza dos calos
em seus lábios, observando as unhas estilhaçadas e sujas. Fúria fechou os olhos e
ergueu a cabeça para tomar uma inspiração profunda. Ela seguiu beijando-o, nas
veias das mãos, na palma e na ponta dos dedos até que ele se inclinou e lhe
buscou os lábios para chupá-los e lambê-los com suavidade.
—Eu não sei beijar —a escutou dizer dentro de sua boca, e seu fôlego a hortelã
provocou um gozo no peito. Apertou-lhe a cintura e a obrigou a ficar nas pontas de
pé para fundir-se em um beijo.
—Abra sua boca para mim —lhe pediu, e, quando ela obedeceu e sua língua
brincou timidamente com a dele, Artemio tomou com firmeza pela nuca e as
nádegas e a inclinou para penetrá-la até sentir que enchia sua cavidade, como
teria querido fazê-lo entre suas pernas. Tratou-se de um beijo devastador.
Ao separar-se, agitados e surpreendidos, contemplaram-se sem pestanejar.
Resultou uma experiência fascinante a de olhar-se e falar-se com o coração, nada
de palavras, nem sequer gestos, como a vez em que entregou o pendente a Mimita.
Os dois confessaram com o olhar o que não podiam expressar com palavras: o que
se desatou entre eles, só Deus poderia detê-lo. Admitiu sem falsas hipocrisias, e
Fúria a amou por isso, já que, dos dois, Rafaela era a que mais tinha que perder.
Abraçaram-se porque precisavam dar-se ânimos. Rafaela fechou os braços em

109
torno da cintura de Artemio e afundou o rosto em seu peito, absorvendo seus
aromas, percebendo os restos da melisa junto com os de sua pele transpirada.
Transpirada porque trabalhava duro. Gostava que trabalhasse duro, que
conhecesse tão bem seu ofício e que sua gente o respeitasse. Possivelmente
influenciada pela leitura do Quixote, Rafaela detestava aos homens que
desdenhavam o trabalho e exaltavam a vida de cônego. Amava a esse homem por
trabalhador e por respeitável. Nos dias compartilhados, jamais o tinha visto
embriagar-se nem jogar.
—Perdão —o escutou pronunciar Fúria sobre sua cabeça.
—Por quê?
—Por ontem, pelo Gabino. Não quis que você visse isso. Não quis. Pedi ao Calvú
que a afastasse, mas você é mais teimosa que uma mula e aí ficou, vendo me
desgraçar ante seus olhos.
A angústia do homem a comoveu. Sua voz se tornou mais áspera e rouca, e
suplicante. Apartou-se lentamente e lhe passou as mãos pelo rosto barbudo.
—Perdôo-o, senhor Fúria. Não lhe teria perdoado que se deixasse matar porque
nesse caso, o que teria sido de mim? Teria querido morrer com você.
—Rafaela! —abraçou-a de novo com uma rudeza que a jovem causou dores nas
costelas—. Não a mereço, não a mereço, mas sou muito ruim para deixá-la partir.
Deveria fazê-lo, mas não, não o farei. Não saberia como.
Rafaela tinha cansado em um estupor silencioso. À emoção de ouvi-lo pronunciar
seu nome seguiu a perplexidade de escutá-lo expressar-se sem acento de patrício e
sem cometer enganos de fonética nem gramaticais. O efeito de uma surpresa
operava mal nela, despojava-a da fala, punha-lhe a mente em branco.
Por fim se apartaram. Fúria, consciente de sua veemência, precisou cair em
temas corriqueiros para aplacar-se.
—Esta noite vai ser divertido, que não aconteceu por causa de Gabino. Eu
gostaria que você e Mimita me acompanhassem. Ninguém a ofenderá de maneira
alguma, prometo.
Rafaela assentiu.
—Tenho que ir —disse, em um fio de voz—. Mimita...
—Sim, sim, está certo —a interrompeu—. Saia primeiro você.
Fúria permaneceu um bom momento sentado sobre um fardo de forragem, com a
cabeça inclinada, os cotovelos sobre os joelhos e as mãos na frente, como se
rezasse. "O que estou fazendo?", recriminou-se. "Ela não tem lugar em minha vida
de vingança e rancor. A destruirei. A arrastarei à indignidade. Destruirei seu bom
nome, sua reputação e tudo por nada, porque não saberei fazê-la feliz. Levei por
muito tempo esta vida errante e já não poderia voltar atrás", e, enquanto por um
lado se convencia de esquecê-la, pelo outro a imaginava aparecer com Mimita na
fogueira dessa noite.
***
Ao refugiar-se em seu laboratório, Rafaela descansou as mãos sobre a mesa de
mármore. Agradou-lhe o contato frio. Tomou assento e apoiou primeiro uma face,
logo a outra para baixar o rubor. Suas pulsações ainda batiam, enlouquecidas, em
sua garganta. Mordeu o lábio. "O que está fazendo, Rafaela?" Qualquer argumento
que esgrimisse para abandonar ao senhor Fúria passaria ao esquecimento assim
que lhe colocasse a língua na boca para incitar esses espasmos de prazer que a
privavam de moral e discernimento. "Só um homem tão baixo me provocaria uma
emoção tão pecaminosa", e o disse para avivar o pouco orgulho que ficava.

110
Procurava com desespero um fio de prudência ao qual aferrar-se. Levou-se as
mãos à cabeça e proferiu um gemido. Ergueu-se de súbito e se insistiu a acalmar-
se, como Ñuque lhe haveria, exigido. Tomou varia inspirações até afrouxar a
tensão em seu estômago. Tentou raciocinar. Por que, contra todas as
probabilidades, apaixonou-se por esse homem quando, depois da morte de Juan
de Dios, tinha optado pelo celibato e por cuidar de seu pai na velhice? De onde
surgia o descaramento com que lhe paquerava, ela, que jamais o tinha feito? Por
que estava tão a gosto com ele? "Porque junto a ele não tinha medo." A resposta,
expressa em términos acesos, deprimiu-a mais ainda. "Não irei à fogueira esta
noite", disse-se, enquanto se calçava o avental e ficava a trabalhar.
Não obstante, às sete da tarde, ela e Mimita, escoltadas por Creóla e Peregrina,
apresentaram-se no festejo. Calvú Manque saiu às receber e as localizou sobre
umas banquetas que, com as cabeças e carcaças bovinas, formavam um
perímetro, mas bem amplo, em torno da fogueira. O grupo se silenciou enquanto
as convidadas se localizavam. Só destacavam o vaio dos sucos do assado ao cair
sobre as brasas e o chiado dos insetos. Buenaventura Buena temperou o violão e
rompeu o silêncio. Pouco a pouco, retornaram as risadas e as conversações.
Rafaela, entretanto, continuou incômoda. Parecia-lhe mentira formar parte dessa
reunião.
Artemio Fúria se achava frente a ela, separados pelo diâmetro do perímetro, com
a fogueira no meio, que jogava sobre seu rosto tonalidades que lhe afiavam os
rasgos, conferindo-lhe uma dureza que a intimidava.
Mimita saltou de seu colo e correu com movimentos grotescos para jogar-se nos
joelhos do gaúcho, que a recebeu em seus braços com um sorriso amplo e franco
como Rafaela jamais lhe tinha conhecido. "OH, Senhor!", exclamou para si, ante a
transformação de seu semblante à luz desse gesto. O lábio superior quase
desapareceu para revelar dentes harmônicos e brancos que sobressaiu contra a
pele bronzeada. Duas linhas profundas, rematadas com covinhas, ocultaram-lhe
as comissuras. O sorriso lhe alagou os olhos.
Mimita também sorria enquanto o gaúcho lhe falava em tom intimista e lhe
tocava o pendente que a menina não tinha admitido que lhe tirassem sequer para
o banho. Rafaela a viu abrir grandes os olhos e juntar as mãozinhas ante o objeto
que estava na palma de Fúria. Abraçou-o e o beijou ao recebê-lo, quase parecia
normal em companhia desse homem. Retornou ao lado de Rafaela para lhe
mostrar um pente de osso com o cabo tingido na conhecida tonalidade púrpura.
—A-tie-mio —disse, assinalando-o, e Rafaela, com um nó na garganta, abraçou-a
e a beijou.
—Sim, meu tesouro, sim. Artemio.
Mencia e suas filhas começaram a servir a comida. Fúria advertiu que, embora
Rafaela desse partes de carne à menina, ela só aceitou um prato guisado de lebre.
Para ele e seus homens, que se alimentavam com carne e nada mais e o faziam
com as mãos e assistidos por seus facões, esse era um festim digno de Lúculo.
Tinha proibido que se bebesse aguardente com a ameaça de estaquear ao que se
embriagasse, e, embora pensou que o festejo adoeceria dada a presença da
senhorita Palafox e a proibição de beber a gosto, seus homens comiam e
conversavam com ânimo inquebrável. Creóla e pareciam cômodas e festejavam as
ocorrências de Calvú Manque e de Bamba.
Rafaela tinha a impressão de participar de um rito profano. Artemio Fúria o era,
com suas argolas de prata, seu cabelo loiro e comprido e sua beleza pagã. Vestia-

111
se por completo de negro, à exceção dos calções brancos com franjas que
apareciam sob o chiripá, e de um rastro muito luxuoso, tachonado com moedas
chapeadas. As botas não eram de potro, mas sim de pele de gato Montes. Comia
com os joelhos separados e o torso jogado para diante para não sujar os objetos, e
o fazia com uma voracidade que falava de que, face às feridas no ombro e no
ventre, nenhum mal o afligia. Rafaela deduziu que tinha terminado quando o
descobriu atando um cigarro. Utilizou a pederneira e a isca para acendê-lo e, ao
dar o primeiro trago, acentuou o cenho e entrecerrou os olhos, e Rafaela se
perguntou por que aquele simples ato, que tinha visto executar tantas vezes
Aarón, em Fúria lhe resultava tão atrativo.
À comida, seguiu o canto e a dança. Bamba dançou com a Mimita. Felisarda e
suas irmãs, localizadas junto a ela, mostravam-lhe os passos e os ensinavam.
Rafaela não podia tirar seus olhos da menina. "Quando foi tão feliz minha
menina?" Embora Mimita fosse atrasada, sua sensibilidade não conhecia limites e
a expor a perceber com incrível consciência tanto a hostilidade em casa de seu pai
como o carinho dessa gente. Depois de duas peças, terminou esgotada e procurou
proteção no colo de Rafaela, onde dormiu.
Os bailarinos precisavam repor forças e aplacar a sede, por isso Buenaventura
Buena trocou o aspecto da música e tocou uns acordes tristes antes de entoar
com voz de sob uma canção composta por ele, conforme comentou Bamba a
Rafaela. Você, a moça dos olhos verdes,/ mais verdes e formosos que o pôr-do-sol./
Verdes, verdes e profundos,/ como poucas coisas neste mundo./ Minha moça dos
olhos cheios de amor,/ às vezes doces e cálidos,/ às vezes frios e sem candor./ por
que me olha desse modo?/ Desse modo receoso./ Se tiver decidido não amar-me,/
não me olhe assim vai a matar-me./ Você, a moça dos olhos verdes...
Buscaram-se até confluir em um olhar que permaneceu suspensa através das
chamas da fogueira e ao longo das estrofes. Rafaela tinha descoberto que Artemio
Fúria era homem de poucas palavras, embora de um olhar tão eloqüente e intenso
como um panegírico. Eles não se uniram aos aplausos ao término da canção.
"Já devem estar cansados", conjeturou Fúria para ouvi-los pedir o pala-pala,
uma dança mau vista por seu erotismo. Pensou em detê-los e em seguida trocou
de parecer. Observou a Rafaela. Ela tinha permanecido em seu banquinho de
colihue, movendo os pés ao som da música e sorrindo.
Rafaela viu que Artemio abandonava seu local e caminhava em direção a ela.
Creóla anunciou que levaria a dormir a Mimita e deixou livre o banquinho junto a
sua ama, onde Fúria tomou assento sem pedir permissão nem pronunciar palavra.
Com os cotovelos nos joelhos, o homem se dedicou a contemplar os preparativos
para a dança. De soslaio, Rafaela lhe estudou o perfil, o pequeno e reto nariz, as
pestanas femininas e negras, e o ângulo reto que formava sua mandíbula. Sentiu-
se a proprietária de tanta beleza. De repente, ele a olhou, e Rafaela voltou a vista
para a pista de baile.
—Pala-pala19 —Fúria se inclinou para lhe falar— quer dizer corvo em quéchua —
Rafaela assentiu, sem olhá-lo-a mulher é a chuña, a pomba, a que o corvo deseja e
quer apanhar.
O baile a seduziu desde o começo. Calvú Manque estendia um poncho negro
imitando as asas do corvo, em tanto Felisarda o fazia com uma mantilha branca.

19
Tipo de dança.

112
Os corpos se roçavam de contínuo, os rostos se enfrentavam a escassa distância.
A chuña, ou pomba, fugia os avanços do pala-pala, ou corvo, este a perseguia e a
tocava, até que, com seu ímpeto, matava-a. Dois lenços vermelhos simulavam o
sangue que emanava das vísceras da pomba. Seguiram-lhe Juan, "o peludo", e
outra das filhas de Mencia e Íñigo, que alardearam de sua destreza.
—Dançamos? —perguntou-lhe Artemio.
—Não sei dançar —se apressou a responder.
—Já sabe como se faz. É fácil —sem lhe permitir uma resposta, tirou-a da mão e
a conduziu ao centro.
Artemio recebeu o poncho negro e Rafaela se colocou a mantilha branca sobre os
ombros. Custou-lhe começar, coibia-a mostrar-se, e, a diferença de sua prima
Cristiana, detestava converter-se no centro de uma reunião. Não obstante, ao
comprovar que Fúria dançava pior que ela, riu e se deixou levar pela música e o
fôlego de outros. Fúria a tocou, roçou-a e a cheirou frente a aquelas pessoas como
se estivessem sozinhos. E ela o permitiu, sorriu e o gozou. Essas pessoas não a
julgariam, pelo contrário, pareciam desfrutar.
Quase ao final, Artemio a envolveu pelas costas com o poncho e, inclinando-se
em seu ouvido, falou-lhe em um sussurro fervoroso:
—Chuña. Minha Chuñita.

113
Capítulo X

A mãe virgem

Horas mais tarde, Rafaela não achava posição na cama. Levantou-se dando um
bufo. O travesseiro e os lençóis se tornaram quentes como a noite. Colocou a
caminhou ao quarto contigüo, onde Mimita dormia com Creóla. Estavam
tranqüilas e para nada afetadas pelo calor. De volta em seu dormitório,
aproximou-se da janela aberta, onde apoiou a frente sobre as grades, fechou os
olhos e soltou uma larga expiração.
Caminhou até a mesa de noite de onde extraiu o azeite de lavanda. Sentou-se em
uma cadeira, apoiou os pés sobre a banqueta e levantou a camisola até os joelhos.
Massageou os pés os tornozelos, com suaves fricções, mas cálida, inspirando o
aroma que a sedava. Queria dormir, seu corpo se queixava de cansaço; sua mente,
entretanto, não achava paz.
Elevou a vista e soube imediatamente que a silhueta que se perfilava em sua
janela pertenciam ao senhor Fúria e a Quinto. Afogou um grito de alegria e correu
até ali. Sujeitou-se às grades, e Artemio lhe cobriu as mãos com as suas.
—Como conseguiu entrar?
—Subi-me no lombo de Cajetilla —se referia a seu cavalo— e saltei o muro.
Quinto subiu como um gato —Rafaela riu—. Não lhe incomoda, então.
—Não, claro que não —depois de uma pausa, confessou-lhe—: Não podia dormir.
—Eu tampouco.
—O calor é insuportável —"E a lembrança de seus beijos e do pala-pala, ainda
mais. "Ele a contemplou através das grades, e o encontro de seus olhares se
converteu em um choque de profundas emoções.
—Rafaela —pronunciou, em um tom denso e grave, e ela teve clara consciência
de que faria tudo que lhe pedisse—. Venha-se para a lagoa. Para nos refrescar.
Tirou toalhas do roupeiro e partiu pelo corredor até a sala que dava ao pátio
principal, onde Artemio e Quinto lhe saíram ao encontro. Abraçaram-se, muito
emocionados para falar. Com o silêncio bastava. Rafaela se apartou e lhe rodeou o
rosto com as mãos.
—Cheire minhas mãos —lhe pediu—. Sei que gosta de meus aromas.
—Quero passar a noite inteira cheirando-a. A que cheiram suas mãos
maravilhosas ?
—A lavanda.
Rafaela se agachou e rodeou o pescoço do puma e apoiou o rosto em sua enorme
cabeça.
—Olá, Quinto.
—Andava doente, está muito fraco —comentou Fúria—. Vamos.
Deixaram atrás a casa e, antes de se dirigir-se à lagoa, procuraram o cavalo de
Artemio que pastava junto ao muro. Rafaela notou as rédeas soltas e lhe
perguntou se não temia que lhe escapasse.
—Não o faria. Está muito apegado a mim.
—É incrível que Cajetilla não se espante ante a presença de Quinto.
—Cajetilla é como um pai para Quinto. Desde filhote levava-o na garupa.

114
À beira da lagoa, Fúria tirou as botas e as colocou sobre a erva junto às toalhas e
aos chinelos de pele de carneiro de Rafaela. A água lhes lambia os pés, enquanto
contemplavam o reflexo da lua sobre a superfície estática.
—Senhor Fúria, está você casado?
—Não —respondeu ele, sem veemência nem surpresa.
—Possivelmente comprometido para casar-se?
—Não. E você? Você está prometia para casar com algum da cidade?
—Não, claro que não. Não teria vindo até aqui se estivesse.
—E seu coração? Já pertenceu a algum Cristão alguma vez?
—Sim, uma vez pertenceu a um moço de Buenos Aires.
Embora formulou a pergunta tentando mostrar-se desapegado, a resposta se
converteu em uma dura prova para seu mau gênio. Nunca uma mulher tinha
despertado esse ciúme nele.
—O que aconteceu ao moço?
—Morreu brigando contra os britânicos no ano sete.
—E a quem pertence agora seu coração?
—A você! —respondeu ela, quase ofendida.
Ele estirou as mãos e empurrou a bata com lentidão deliberada, lhe dando tempo
para que compreendesse o que ocorreria, para que dissesse que não. A seda lhe
lambeu as panturrilhas até formar um montículo a seus pés. Fúria a mantinha
obstinada com o poder de seus olhos, e Rafaela se deu conta de que aguardava a
que o rechaçasse enquanto ela ansiava que prosseguisse. Encontravam-se
apanhados na rede de seu desejo. Rafaela ofegou quando Artemio colocou as mãos
sobre as protuberâncias que tinham formado seus mamilos sob a cambraia da
camisola. A sensação daquele simples roce e a promessa de emoções mais
intensas exerciam sobre ela um poder ao que não apresentaria batalha. Que sua
mente destrambelhasse quando quisesse; seu corpo não tinha intenções de deter-
se.
Fúria a surpreendeu tomando-a entre seus braços e pegando-a a seu corpo.
Suplicou-lhe ao ouvido:
—Rafaela, não quero que manhã se arrependa de ser minha mulher. Detenha-me
agora se amanhã sentirá asco de mim.
O sorriso suave de Rafaela o desarmou. Não recordava havê-la visto tão tranqüila
nem proprietária de si. O que ela expressou a seguir, arrancou-lhe lágrimas, que
desde a morte de seus pais não havia tornado às derramar.
—Amo-o, senhor Fúria, assim como é você, mal falado, briguento, com argolas na
orelha, com um gênio que faz honra a seu sobrenome e até com aroma de cavalo.
Amo-o como nunca amei a ninguém porque nunca conheci ninguém com sua
nobreza, sua paixão pelo trabalho e seu respeito pelo próximo. Admiro-o por sua
coragem, senhor Fúria, e por seu orgulho sem vaidade. Amo-o porquê você é das
poucas pessoas que mostrou carinho a Mimita. Mas sobre tudo o amo porque a
seu lado não tenho medo.
—Rafaela! —exclamou, enlouquecido, e a abraçou com ferocidade, sacudindo-a
como se tratasse de uma boneca cheia de estopa em sua cobiça por conquistar
com a boca e as mãos cada centímetro de seu corpo.
Ela seguiu lhe falando, com o fôlego entrecortado, com a cabeça arremessou para
trás e o pescoço exposto aos beijos, as dentadas e à intemperança do gaúcho.
—Não o conheço. Pouco sei de sua vida e de sua índole. Entretanto, confio, confio
cegamente em você, senhor Fúria.

115
Logo a teve nua frente a ele. Era tão branca que brilhava na escuridão. Apartou-
lhe o cabelo para revelar seus seios grandes e pesados. Deleitou-se com a
expressão que lhe alterava as feições enquanto lhe tocava os mamilos com a ponta
do dedo, e sorriu ao vê-la se cambalear e morder o lábio ante o impacto da carícia.
Desfez-se do rastro e do atirador, do chiripá e dos calções. Rafaela, com o braço
cruzado sobre os seios e uma mão ocultando o monte de Vênus, observava-o em
silêncio enquanto ele se baixava as calças. Mudou o gesto ante a visão do membro
ereto, e Fúria advertiu que desviava a vista e evitava voltar a olhar sua virilha.
A iminência do ato definitivo e irreversível que se encontrava a ponto de
concretizar lhe causava pânico, que não bastava para afogar o desejo e a paixão
que rugiam como uma tormenta em seus ouvidos e lhe enchiam de pulsados e
dores o corpo e de ousadia a conduta. Aproximou-se e deslizou as mãos pelos
braços que tinham subjugado ao toruno. Seu corpo despedia uma aura de força e
poder que a comovia e a fazia sentir a salvo. Por instinto soube que ele jamais
voltaria essa força contra ela. Nas pontas dos pés, sentindo como o torso peludo
de lhe tocava os mamilos, beijou-lhe a atadura no ombro e seguiu subindo pelo
pescoço até alcançar o lóbulo de sua orelha e mordiscá-lo. O fazia tremer,
escutava-o exalar com ruído, e a novidade dessa influencia sobre ele acentuou o
caráter ousado e livre de seu gênio. Nem por um segundo voltou a vista atrás nem
pensou em seus deveres para Deus ou sua família, menos ainda se preocupou
com o futuro. Como pensar nas conseqüências em um momento como esse?
Artemio perdeu todo rastro de submissão quando a aferrou pelas nádegas e
esfregou seu pênis cheio de sangue na virilha dela. Obrigou-a a arquear-se para
apoderar-se de seu pescoço e rendê-lo à voracidade de sua boca. E ela se
abandonou a seus beijos e, embora não adivinhou sua intenção, permitiu-lhe que
lhe sujeitasse os pulsos e lhe guiasse a mão. Roçou algo úmido e duro. Os dois
reagiram ao mesmo tempo: ele proferiu um ronco a causa do contato, e ela, uma
exclamação de pasmo e vergonha. Fúria a obrigou a fechar o punho em torno de
seu pênis antes de retornar e perder-se em seu pescoço. Era inexperiente, pensou,
já que se limitava a conservar a mão fechada. Não obstante, isso bastava para
avivá-lo. Obrigou-a a recostar-se sobre a restinga para cobri-la com seu corpo e
ocultar a luz de sua pele, para fechar-se sobre ela e absorvê-la nele. Beijou-a,
infinidade de vezes, banhou-lhe o rosto e o pescoço com sua saliva e, quando sua
boca sugou seus seios, a fez gritar.
—Quero que seus beijos sejam só para mim! —escutou-a suplicar—. Quero que
você seja só minha!
—Sim, sim, o juro!
Capturada nessa rede de gemidos, gritos e prazer, Rafaela pensou que jamais se
encontrou tão fora de controle e se disse também que sua imaginação não teria
bastado para lhe revelar a profundidade que alcançava a intimidade entre um
homem e uma mulher, ou mas bem, entre um gaúcho e uma mulher. A hipocrisia
não ganharia esta vez: ela era tão impudica, descarada e irreverente como esse
montês. Entretanto, como uma reação autômata que não nascia de sua verdadeira
índole mas sim dos nós atávicos que a sujeitavam da infância, fechou as pernas ao
perceber que lhe pinçava esse local que ela apenas se tocava ao higienizar-se e que
nunca tinha visto.
—Tranqüila —lhe sussurrou Fúria—. Já está preparada —acrescentou.
Separou-lhe as pernas e a penetrou com um impulso surdo. Deu-se conta, muito
tarde, de que, debaixo dele, existia uma virgem. O rasgão que propiciou com seu

116
pênis lhe retumbou nos ouvidos. O estalo do hímen quebrado se reproduziu como
um eco junto com os gritos de dor de Rafaela, e sua garganta se alagou de um
sabor ferroso, como o do sangue. Permaneceu imóvel, suspenso sobre ela,
impotente ante a expressão enferma de suas feições. Resfolegou, assombrado, algo
furioso também.
—Que merda...? Você... Você tem uma filha, caralho! Mimita...
Até na penumbra, Fúria advertiu a palidez que se apoderava do rosto de Rafaela
e da tonalidade violácea de seus lábios. Saiu dela com extrema suavidade e ficou
de pé. Viu-a colocar-se de lado e fechar-se sobre si mesmo. O sangue da jovem
gotejava de sua glande. Temeu havê-la machucado mais que o normal. Correu por
uma toalha, envolveu-a e a carregou até seu posto, com Quinto e Cajetilla por
atrás. Percebeu como a rigidez da moça lhe ocasionava contrações nos músculos.
Abriu a porta de um chute e a depositou sobre a cama de armar onde tinha
estendido as almofadas, cojinillo 20e a sela a modo de colchão. Ela, imediatamente,
pegou os joelhos ao peito e voltou a fechar-se, lhe transmitindo seu medo e
rechaço.
Aproximou da cama uma carapaça de tatu que, a modo de lebrillo, continha água
limpa. Procurou um dos lenços que usava para cobrir a cabeça, recém lavado, de
um algodão suave. Empapou-o na carapaça e o espremeu. Realizou uma delicada
pressão nos joelhos de Rafaela para que abrisse suas pernas.
—Não, por favor. Não.
Artemio se inclinou e lhe beijou a têmpora. Falou-lhe sem apartar os lábios.
—Rafaela, por que não me aldvertiu que era virgem?
—Acreditei que sabia —sua resposta surgiu como uma exalação.
—Mimita, ela não é sua filha, então?
—Mimita é minha irmã —admitiu pela primeira vez.
—Quero limpá-la como você fez comigo. Por favor —lhe suplicou, lhe apoiando os
lábios todo o tempo na face, no olho, na têmpora—. Ficarás mais cômoda depois,
prometo-o.
Moveu-se com cuidado para ficar de costas sobre a montaria, embora manteve os
olhos fechados, os lábios franzidos, os braços sobre os seios e não abriu as
pernas, pelo contrário, apertou-as para afogar o persistente batimento do coração.
Artemio não tentou as apartar. Acariciou seu ventre e lhe umedeceu as coxas com
o lenço. Sentado no piso, sussurrou-lhe perto do ouvido para acalmá-la com uma
cadência áspera na voz.
—Então você foi só minha. Nunca desse moço, que lutou contra os hereges.
A negativa de Rafaela resultou quase imperceptível.
***
Despertou sem sobressaltos. Levantou as pálpebras e percebeu o brilho da
cabeleira de Fúria. Pouco a pouco, seus pensamentos cobraram nitidez. Ele se
achava de lado, na cama de armar e, com a cabeça apoiada na mão, contemplava-
a de um modo que lhe transmitiu paz. Perguntou-se quanto tempo tinha dormido.
Pareciam horas transcorridas placidamente. Dormiu como fazia meses não
dormia.
—Perdão —a voz apenas lhe saiu.
—Por quê?

20
Pano de lã que se coloca sobre a sela do cavalo.

117
Não pôde lhe explicar. Moveu a cabeça para evitá-lo. Nesse momento, a beleza
desse homem lhe incomodava. Sentiu que Fúria depositava pequenos beijos no fio
de sua mandíbula até chegar ao queixo.
—Vivemos nos pedindo perdão —marcou ele, com uma risada—. É você tão
comedida que tem medo de equivocar-se a cada passo.
—Por que pensou que Mimita era minha filha?
—É o que dizem.
—Não me estranha —admitiu com equanimidade, embora a declaração de Fúria
a tinha turbado, ela não se achava a par das falações—. Pensa você mal de mim,
senhor Fúria? —pelo gesto dele, soube que não compreendia a pergunta—: Por ter
me entregado a você —explicou—, como uma mulher da má vida —demarcou, e
Fúria deveu inclinar-se para ouvi-la—. Entreguei-me a você sem estarmos
casados. É que não pude resistir. Não posso resistir a você. Isto que sinto é mais
forte... Não posso contra isto.
—A verdade nos fará livre —citou ele, com um sorriso—. E a liberdade é o bem
mais precioso que temos. Ninguém com a alma na prisão é feliz. Seja livre,
Rafaela. Comigo, nunca finja o que não é. Comigo, seja livre.
Parecia o demônio que a tentava com palavras doces e pecaminosas.
—Na verdade não pensa mal de mim?
—Não! —o disse sobre os lábios, com um ardor que lhe abrandou as
extremidades.
—Faça-me sua mulher, então —o negou com a cabeça—. Por favor.
—Sofrerá e não quero.
—Estou sendo valente para você, senhor Fúria. Não me rechace. Quero ser sua
mulher. É que já não me deseja?
—Nunca desejei a outra como a você.
—Agora me sinto incompleta sem você dentro de mim. Complete-me, por favor!
Rafaela fechou os punhos nas têmporas de Fúria. Ele a estudou com essa fera
intensidade a que não chegava a acostumar-se. O que sentia por ele a
transbordava, resultava incontrolável além de indescritível pois jamais imaginou
que se pudesse experimentar esse cataclisma de emoções.
—Artemio, meu amor —murmurou.
Um gemido escuro brotou da garganta de Fúria. Cobriu-a com seu corpo para lhe
conceder o que ela necessitava nesse momento; para seu deleite, entretanto, teria
que esperar. O corpo virgem de Rafaela teria sido incapaz de recebê-lo por
completo essa noite.
—Minha mãe dizia: "Com beijos tudo se cura".
Rafaela compreendeu o significado de suas palavras quando Fúria lhe esfregou o
monte de Vênus com o queixo antes que seu rosto desaparecesse entre os cachos
de seu púbis. Exclamou e gemeu, escandalizada e excitada, ao dar-se conta de que
com sua língua lhe descrevia a zona proibida. "Seja livre", tinha-a ameaçado.
Ela tinha sabor de glória. Uma réplica dos sabores e os aromas de sua boca e de
seu pescoço se achava escondido entre os lábios de sua vulva, com sotaques de
uma intensa doçura. Que classe de mulher era essa que tinha sabor de fruta
amadurecida, a calda de açúcar? Lambeu-a como um gato lambe o leite da tigela
até deixá-la branda e úmida, pronta para recebê-lo.
Com os antebraços apoiados aos flancos do rosto de Rafaela, cuidando de não
carregar todo seu peso sobre ela, atento a cada detalhe, a cada uma de suas
reações, penetrou-a com uma lentidão e uma paciência que jamais teria

118
empregado com outra. O fazia por ela, porque ela era especial, sua Rafaela, sua
Rafaela das flores e dos aromas como feitiços, Rafaela, a industriosa e a senhorita
bem, a temerosa e a valorosa, recatada-a e a luxuriosa, a etérea e a carnal. "minha
Rafaela." Existiu uma chispada de consciência antes de ejacular dentro dela, antes
que sua semente —a que se cuidou de não pulverizar pela campanha e a cidade—
banhasse as vísceras dessa mulher.

119
Capítulo XI

A liberdade

Nunca duvidou, nunca se arrependeu, nunca sentiu temor porque sabia que esse
ardor que a consumia e lhe tirava a paz, consumia-o a ele também. Tinha-lhe
entregue sua virgindade; o única dote com que contava era dele, um gaúcho, um
ingrato, um ser desprezado. A perda a tinha machucado fisicamente; entretanto,
daquela lacerante dor só conservava a sensação de encantamento e de dita por
haver-se convertido na mulher desse homem. Compreendia que, durante todos
esses anos, não tinha sido o medo seu pior companheiro a não ser a falta de
liberdade. Era livre. E poderosa. E formosa. E amada. E desejada. E, sobre tudo,
era do gaúcho Fúria. E era dele porque tomava onde lhe desejava muito, ao igual a
ela tomava a ele quando queria. Olhavam-se de longe, cobiçando o corpo do outro,
e se buscavam até encontrar-se. Por esses dias, Rafaela escreveu em sua
caderneta: Encontro-me tão feliz que é como se minha alma se expandisse e
transbordasse os limites de meu corpo.
Ela e Creóla tinham limpo o abrigo e disposto a carruagem com mantas e
almofadões e uma caixa de madeira que cobriram com uma toalha e onde
acomodaram frasquinhos com os perfumes e azeites que Artemio queria lhe
cheirar no corpo. Parecia o estrado de tia Clotilde, um local afastado, elevado
sobre o terreno, frívolo e confortável, onde se amavam até a extenuação. Depois,
enquanto seus corpos se secavam e as pulsações baixavam a ritmos normais,
Rafaela lhe dava fruta na boca. Tinha descoberto que as frutas eram sua
debilidade, junto com a torta de patay. Gostava de descobrir os segredos do
gaúcho Fúria, fascinava-a vê-lo rir a mandíbula batendo ou inerme e entregue
quando alcançava, um orgasmo. Adorava brincar com ele, pôr pedaços de pêssego
amarelo em seus mamilos e oferecer-lhe ou esconder uma flor entre suas pernas,
que lhe tiraria com os dentes; ou pulverizar chá de hortelã morno na depressão
que formava seu ventre para que ele o bebesse. Em ocasiões, estudava-se no
espelho e sorria com a face ruborizada pela impudica que se tornou. "Seja livre",
tinha-a convidado Fúria, e ela cumpria o mandato. "Esta é a verdadeira Rafaela",
dizia-se, a que se entregou sem reservas, sem deixar nada atrás, Amava-o com
loucura. Ele sabia, o tinha confessado essa primeira noite, porque ela não teria
sido ela se não o houvesse dito. Sua impulsividade —que o pai Cayetano chamava
"desaforo"— a caracterizava. "Seja livre", e assim o tinha sido. Ele, em troca,
mantinha-se como um homem de poucas palavras, circunspeto e equânime, salvo
no sexo, porque se mostrava distinto na intimidade, e era quando Rafaela mais
perto o sentia, embora ele não tivesse pronunciado o que ela tanto desejava ouvir:
"Amo-te". Depois de tudo, ele seguia sendo o gaúcho Fúria, um homem áspero e
curto de gênio.
Às vezes, enquanto estava na cozinha pela tarde e ela se apresentava com uma
desculpa, estudava-o conversar com seus homens e se dava conta de que, quando
sua voz soava, as demais calavam para ouvir o comentário com atitude solene. A
autoridade que inspirava entre os seus lhe conferia uma dignidade reservada e

120
misteriosa. Teria querido ser como ele, com esse domínio permanente sobre si que
lhe impedia de arrepender-se a cada passo do dito ou feito. Nada o afetava nem o
perturbava. Habitava nele o espírito audaz e despreocupado de quem tinha vivido
tudo e a nada temia, tudo o conhecia, nada o surpreendia. Era a criatura mais
independente que Rafaela conhecia, nem sequer parecia temer a Deus, com quem
assegurava não achar-se em bons términos. Havia momentos em que a angustiava
senti-lo inalcançável; entretanto, quando lhe sorria, não a careta sardônica que
empregava para os amigos a não ser o gesto que lhe iluminava os olhos e lhe
suavizava a severidade do rosto —quase parecia um menino feliz—, Rafaela se
dizia que tinha apanhado uma estrela.
Não só na velha carruagem transformada em estrado, Artemio e Rafaela se
amavam. Como ela dizia, rindo, salvo em sua cama, não ficava local na estadia em
que ele não a houvesse possuído. As lições de equitação duravam pouco e
acabavam pelo geral em uma queda na grama; em ocasiões, não terminavam de
selar porque Artemio tomava contra a paliçada da cavalariça; tratava-se de
cópulas desesperadas e rápidas, urgidas pelo risco de serem vistos. O nem sequer
se tirava o atirador; liberava seu pênis entre as dobras dos calções e do chiripá,
enquanto ela se baixava as calcinhas com rendas e encaixes, que ficavam a um
lado, sobre a alfafa. Os pés de Rafaela logo que roçavam o chão; Fúria, fundo nela,
mantinha-a empalada, fixa contra a parede, com a mão sobre sua boca para evitar
que os chiados atraíram aos trabalhadores. Às vezes, amavam-se com um ânimo
jocoso e brincalhão; em outras, ele a olhava, emocionado, e a Rafaela gostava de
fantasiar que lhe implorava:
"Ama-me, me ame sempre". Havia ocasiões em que a possuía com um ar
reconcentrado e feroz, demandante, quase violento, como desafiando-a a queixar-
se, a opor-se, a contrariá-lo, a lhe negar o que por direito lhe pertencia. Ela não o
fazia, sempre se amoldava a seus humores, e com palavras e carícias conseguia
apaziguá-lo.
—Sou tua, senhor Fúria.
Converteu-se em um jogo entre eles que seguisse chamando-o "senhor Fúria". Só
durante o prazer do orgasmo, brotava de sua garganta um "Artemio" entrecortado
e implorador.
O sentimento que Fúria lhe inspirava tinha um aspecto mundano e terrestre,
quase profano e pagão, como o próprio Artemio Fúria. Comparava-o com o Juan
de Dios, e caía na conta de que com ele jamais se teria produzido a comunhão de
carnes que, de modo natural, tinha nascido entre Fúria e ela. Para lhe demonstrar
seu afeto, Juan de Dios jogava mão de palavras corteses e gestos cavalheirescos
dos que carecia o gaúcho Fúria. Jamais tinha existido a tensão sexual que
explorava quando se achava perto de Artemio. Os instrumentos de sedução de
Fúria eram seu corpo e seu temperamento de olhares ambíguos, de reticências
carregadas de significado; ambos, seu corpo e seu caráter, irradiavam uma
fortaleza e uma perseverança que não só provocavam efeitos físicos nela mas
também a faziam sentir segura. A seu lado, Rafaela se acreditava invencível.
***
A tarde do dia em que Fúria partiu para Bosque Alegre, tocando o gado dos
Pueyrredón, chegou Ñuque a La Larga, e a felicidade de Rafaela se completou.
Apenas a viu, a anciã limpou seus olhos levantando as pálpebras como
pergaminhos e os fixou nos dela com atenção, até que voltou a escondê-los. Bateu-
Bateu em sua mão ao passar junto a ela e lhe disse:

121
—Já me contará. Agora devo descansar.
De noite, Rafaela se apresentou no dormitório da anciã com uma bandeja.
Desejava compartilhar o jantar em intimidade com sua ama e com Mimita. A
pequena subiu ao leito de Ñuque e a abraçou. A mulher lhe beijou a frente.
—Minha menina —sussurrou—. Como estiveste?
Mimita tomou o pendente com o pinjente púrpura e o mostrou.
—Que magnífica jóia! Quem lhe deu de presente isso?
—A-tie-mo.
—Ar-te-mio —a corrigiu Rafaela.
—Quem é Artemio?
A face de Rafaela enrubesceu. Olhou fugazmente a Ñuque e baixou as pestanas,
enquanto servia o caldo de galinha.
—Artemio Fúria, um recomendado de dom Juán Andrés de Pueyrredón, que
deveu pôr ordem na estadia. Ele esculpiu os pinjentes.
Mimita, que tinha abandonado o quarto, retornou com o pente e outros objetos
que Fúria lhe tinha dado. Depositou-os sobre o regaço de Ñuque.
—Atemo —insistiu.
—Vejo que o tal Artemio Fúria é um grande artista.
Não o mencionou novamente. Comeram e conversaram sobre as novidades da
cidade; em realidade, não havia muitas. Aarón se achava em Montevidéu,
ajudando a seu tio Rómulo em certos negócios. Tia Justa permanecia em São
Pedro, de visita em casa de sua filha Vela, enquanto Clotilde destrambelhava
contra Rafaela por ter mandado chamar ñuque. De Cristiana, sabiam que se
encontrava a gosto em Bosque Alegre e que retornaria à cidade depois da quarta-
feira de Cinza.
—O pobre do Paolino perguntou pela ingrata de Creóla todos os dias. Ela, em
troca —se queixou Ñuque—, nem me mencionou isso quando cheguei.
Riram. Quando as risadas adoeceram, seus olhares trocaram. A mão cheia de
veias de Ñuque acariciava o cabelo loiro da Mimita que dormia sobre suas pernas.
—Sempre soube que era filha de meu pai, verdade?
—Sim —admitiu a mulher, imperturbável.
Isso gostava de Ñuque, que, ao acertar com a pergunta, a anciã sempre
respondia com a verdade. Quanto ao resto, calava-o. Rafaela se perguntou o que
outros segredos conheceria a respeito de sua família. Ñuque era um cofre cheio de
tesouros ocultos.
—Meu pai é um farsante —disse, mas bem deprimida.
—Seu pai é somente um homem, com suas debilidades e virtudes, como todos.
—Ñuque! Chama debilidade a abusar de sua sobrinha? Eu o chamo aberração!
Nem sequer aceita Mimita. A teria agradável! A sua própria filha! Despreza-a
porque não é normal nem bonita.
Lamentou-se a explosão. De repente, Ñuque luziu curvada, como se a culpa
recaísse sobre seus ombros.
—Perdoe-me. Quer a meu pai como a um filho e te dói que fale mal dele.
—Cristiana te revelou a verdade, não é assim? —Rafaela assentiu—. Ela ama a
seu pai e quer casar-se com ele. Rómulo não o fará porque sabe que com isso
ganharia sua desaprovação e irritação. E para o Rómulo, minha filha, não existe
nada nem ninguém exceto você. Depois de que sua mãe abortou tantos bebês e de
que seus dois irmãos morreram logo que nascidos, Rómulo perdeu a esperança de
ser pai. Logo chegou você, que sobreviveu a um parto difícil, e ele se apaixonou

122
por ti do primeiro momento em que te viu. Chamava-te "sua jaqueta" porque
lutava a capa e espada contra a morte. Por dias pensamos que não sobreviveria e
que seguiria a sorte de seus irmãos. Rómulo tomava em seus braços e te dava
ânimos, e você seguia lutando. Assim foi ganhando peso e fortaleza, até que nos
convencemos de que não lhe perderíamos como a outros. Para esse então, você te
tinha convertido na proprietária de seu pai, no centro e sentido de sua vida.
—Eu amo a meu pai, Ñuque, mas...
—Não o julgue com dureza, Rafaela. Não guarde esse rancor dentro de ti. Embora
você diga que nunca casará com ninguém, chegará o dia em que o amor de um
homem te afaste de sua casa e de sua família. Então, meu Rómulo estará sozinho.
Em troca, se não te opuser à bodas com Cristiana...
—Ñuque —a interrompeu—, o amor já chegou a minha vida.
Referiu-lhe os detalhes de sua relação com o Artemio Fúria com a prodigalidade
que jamais teria empregado no confessionário. A anciã seguiu o relato com essa
atenção aprazível que sempre conseguia acalmá-la. Rafaela terminou abraçada a
Ñuque, chorando em colo.
—Não chore. Despertará à menina. Além disso, por que chora se está tão feliz?
—Porque sei que meu pai me repudiará e que jamais voltarei a vê-lo, nem a ti,
nem a minha tia Justa, nem a meu primo Aarón.
—Prefere permanecer junto a sua família e renunciar a ele?
—Não! —a negativa surgiu de modo tão aceso que até ela se surpreendeu.
—Vejo que não tem dúvida —comentou Ñuque, com um tom irônico—. O que te
ocorre? —preocupou-se, ao ver que uma sombra cruzava o semblante de Rafaela.
—Ñuque —disse, logo depois de uma pausa—, o senhor Fúria e eu… —"Que
difícil!", admitiu.
—O senhor Fúria e você —a ajudou Ñuque—, conheceste-lhes intimamente,
verdade? —Rafaela assentiu, com o queixo pego ao peito—. Está bem, minha
menina. Não fique desmotivada. É algo natural e belo.
—Mas não estamos casados, Ñuque. Além disso, ele... ele me tem feito coisas
que...
—Forçou-te ou machucou de algum modo? —perguntou-lhe, com delicadeza.
—OH, não! Pelo contrário. Foi muito doce comigo. Só que, por ser gaúcho, joga
mão de práticas muito pecaminosas, meio selvagens. E o pior, Ñuque, o pior é que
eu gosto!
—Melhor assim, Rafaela-a moça levantou a vista—. Não pense nele como o faria
seu pai, com menosprezo. O não é um gaúcho para ti, por muito que o seja, a não
ser um homem, que amas. Quanto a suas práticas, direi algo, minha menina: um
homem e uma mulher podem jogar mão de qualquer prática na intimidade,
sempre e quando ambos as desfrutem e não saiam machucados.
—OH, Ñuque! —exclamou Rafaela, e abraçou o corpo miúdo da anciã—. Graças a
Deus que veio!
***
Artemio Fúria retornava de Bosque Alegre a galope rápido. Seguia-no Billy, "o
rengo", e Juan "o peludo", quem o tinha ajudado a tocar o gado; outros tinham
permanecido na estadia de Palafox. Seus homens suspeitavam que entre a
senhorita Rafaela e ele tivesse nascido uma relação que ultrapassava os limites de
patrão e empregado. Não obstante, cuidavam de mencioná-lo, à exceção de Calvú
Manque, que o importunava com brincadeiras pesadas. "Nenhuma China te pegou
tão forte, peñi", havia-lhe dito antes de despedir-se e depois de que Artemio lhe

123
encomendasse a segurança de Rafaela e de Mimita.
Na verdade, meditou, nenhuma mulher o tinha afetado do modo em que o
afetava Rafaela Palafox. Comportava-se como um mentecapto, como quando lhe
pediu que molhasse um lenço de seda com seu perfume, que levou no atirador
durante esses quatro dias longe dela e no que enterrava o nariz antes de dormir.
Quatro dias longe dela. Uma inquietação desconhecida tinha ganho seu ânimo,
tornando-o pesaroso e irritável. Faltava-lhe algo. Faltava-lhe ela. Seus aromas,
seus sorrisos, seu corpo. Sobre tudo seu corpo. Branco e brando e acolhedor e
generoso e dele, pensou, com uma cobiça e um sentido da propriedade que não lhe
tinha provocado sequer Albana, essa criatura muito bela e perfeita e habilidosa na
cama como não o era Rafaela e, entretanto, a ingenuidade e a imperícia dessa
moça doze anos mais nova que ele o tinham escravizado. Não se apagava de suas
retinas nem desaparecia de seus ouvidos a careta e o grito de dor que
acompanharam a investida que a desvirginou. Apertou as rédeas ao mesmo tempo
de seus dentes imaginando o sofrimento que lhe tinha causado. Embora voltaram
a amar-se muitas vezes-o que para ela constituía uma fonte permanente de
assombro e descobrimento—, ele, que não tinha conseguido eliminar a má
memória daquele primeiro encontro, não se permitiu afundar-se por completo
nela, porque era estreita, e ele, grotesco e grande. Desde pequeno, os meninos da
tribo do Calelián se burlaram de seu apêndice comprido e branco, enchendo o de
vergonha e desconsolo, até que seu padrinho, dom Belisario, explicou-lhe que, em
realidade, uma verga —assim a chamou— grande se considerava motivo de
orgulho e ostentação. "Meu filho, você a tem como a de um touro", havia-lhe dito,
sorrindo e aplaudindo-o na cabeça.
Nada desejava mais que Rafaela o contivera por completo, absorvesse-o tudo,
apertasse-o e o conduzisse até suas vísceras. Da entrega confiada dela não
albergava dúvida, mas sim de sua destreza e seu domínio para guiá-la e lhe
ensinar a tomá-lo até o final sem lhe causar dano. Pressionou os joelhos sobre os
flancos de Cajetilla e resmungou uma ordem para instigá-lo. O overo e Regino, o
parelheiro de remuda21, apertaram o passo, afastando-se de Juan e de Billy.
Ao chegar à estadia, precipitou-se a procurá-la, desatendendo a seus potros, que
ficaram em mãos da Bamba. O marucho o olhou, surpreso.
—Baixa os couros —gritou Fúria à distância—, e lhes passe o caril (instrumento
para limpar cavalos)!
Enquanto percorria os lugares onde podia achá-la, ia tirando o chapéu de feltro e
o lenço da cabeça, com o que se enxugou o suor do rosto. Quatro dias. Quatro
largos dias sem ela. Sabia que se armaria de Deus a Cristo ao sabê-la notícia de
que tinha raptado a uma senhorita decente, de família acomodada. Porque tinha
terminado por admitir que não a deixaria para trás. Embora sua vida não se
achava preparada para receber a uma mulher, teria que aprontar-se e recebê-la
porque ele, sem a Rafaela Palafox, não se iria de La Larga.
A busca infrutífera começou a inquietá-lo. Onde estava Rafaela? A casa, sumida
em uma passividade incomum, desalentou-o. Um momento depois, seu coração se
desbocou ante uma idéia abominável: Rafaela tinha retornado à cidade. A angústia
o conduziu pelo prédio com cara de desenquadrado e um nó entupido na
garganta. Contra toda probabilidade, retornou ao abrigo e abriu a porta.

21
Grupo de cavalos de sela extra.

124
Rafaela se deu volta ante uma exalação rouca e ruidosa. Fúria, de pé sob o
dintel, observava-a como se de uma aparição se tratasse, com olhos exagerados e
fôlego irregular. Soltou a vassoura de biznaga e correu a seus braços. Fúria deu
um passo adiante, chutou a porta para fechá-la e a cobriu em seu peito.
—Onde estava? Onde estava? —demandou-lhe, febrilmente, beijando-a e
acariciando-a—. Trago as tripas feita tranças da angústia! Não podia encontrá-la.
—Estou aqui! Faz momento que estou aqui! Dentro da carruagem, limpando-a
para nós.
"Para nós." Que doces soaram essas palavras! "Nós." Fazia vinte anos que ele não
pensava em um "nós". Com ela, tudo cobrava sentido. Tomou o rosto entre as
mãos, pequeno, de contornos suaves e arredondados e de ossos delicados, e a
estudou. Viu como seus olhos verdes brilhavam, carregados de lágrimas, e
esperou com o fôlego contido a que a primeira transbordasse e lhe molhasse os
dedos.
—Por que chora? —perguntou-lhe, enquanto lhe varria as lágrimas com os
lábios.
—De felicidade. De felicidade pura. Porque você retornou.
De repente, a felicidade e a emoção do reencontro se desvaneceram para dar
lugar a um excesso que Artemio não pensava reprimir. Suas mãos lhe contiveram
o traseiro e o massagearam com movimentos lentos e circulares, imitados pelos de
sua língua dentro da boca de Rafaela. O leve puxão que Fúria realizava ao lhe
separar as nádegas enviava uma corrente que ao final se convertia em uma
espetada de prazer no local proibido. Rafaela gemeu, vencida e relaxada; os
questionamentos que a tinham atormentado durante sua ausência se esfumaram.
Não recordaria que Felisarda tinha comentado a respeito de "a mulher que Fúria
tem na cidade", uma tal Albana, da qual se dizia que era atriz e cuja fama não
chegava aos seus pés mas também a sua beleza.
Sim, esqueceria Albana. O modo em que Fúria a estava beijando a fazia sentir
única. Passou-lhe uma mão pela nuca e apoiou a outra em sua face sem barbear,
perto da boca. Entrelaçou a língua com a dele e o escutou resfolegar. Rafaela teve
consciência de que o último baluarte de prudência tinha cansado quando Fúria
lhe despiu as pernas. A ponta dos seus dedos lhe acariciou em sua ascensão
primeiro as panturrilhas, as curvas e as coxas depois. Ajudou-o a desatar o cordão
que lhe sujeitava a roupa interior, e ele a tirou sem deter-se ante os leves rasgões
do tecido. Rafaela proferiu um curto grito, que ele sufocou com um beijo febril,
quando as mãos ásperas e grandes do gaúcho lhe apertaram de maneira dolorosa
os glúteos nus. Seguiu gemendo e ofegando, arqueando-se e estremecendo-se, em
tanto os dedos de Fúria descendiam pela fenda de seu traseiro e vagavam até o
que parecia haver-se convertido no centro de seu ser. Como atacada por uma
convulsão, jogou a cabeça para trás quando ele a penetrou com um dedo, logo
com dois.
A umidade de Rafaela lhe empapou a mão. Sua resposta o deixou atônito; nunca
uma mulher tinha reagido desse modo a sua provocação. Ela ergueu a cabeça e
levantou as pestanas com lentidão, como se logo despertasse, e ele pensou que
seus olhos eram grandes e inocentes como os de um veado. Existiu uma pausa em
que a sustentou e ficou olhando-a. Achava-se ao limite da excitação, com o pênis
como de ferro que pugnava contra a flanela dos calções. Liberou-o com
dificuldade, resmungando entre dentes. Um tremor quase o jogou no chão quando
a morna mão de Rafaela se fechou em torno dele; com a outra, acariciou-lhe os

125
testículo. Sujeitou-se a ela em busca de equilíbrio e apoiou a frente em seu ombro.
—Ninguém me faz tremer como o faz você, minha Rafaela. Estou duro como uma
pedra. Hoje quero que me receba todo dentro de você. Completo. Até aqui - disse, e
se tomou os testículo.
Calou de repente. O era silencioso no sexo, Albana sempre o recriminava.
Entretanto, esse breve discurso tinha brotado de maneira espontânea e natural, e
teria querido expressar outros pensamentos que o rosto acalorado de Rafaela lhe
inspirava. A emoção terminou por emudecê-lo. Observava-lhe o membro e passava
a língua pelo lábio em uma atitude entre inocente e ambiciosa. Envolveu-a com
seus braços, mais em uma atitude protetora que apaixonada, e lhe buscou os
lábios, e com sua mão retornou para acariciá-la entre as pernas, e as carícias se
voltaram fricções até que lhe provocou um orgasmo. Rafaela separou sua boca da
dele e emitiu um gemido como um soluço e fechou as mãos nos ombros de Fúria
quando suas pernas cederam. Ele a observava com encantamento, sorrindo. Era
tão maravilhosa enquanto o prazer a mudava. Esteve ali, esperando-a, quando ela
levantou as pálpebras e voltou para a realidade do abrigo, ofegando e com o rosto
aceso.
A fez girar e a apoiou contra a parede de tijolo cru. Agarrou o membro e passou a
glande, inchada e escura, pela fenda entre as nádegas, pulverizando as gotas que
o lubrificavam. Ela gemia e se movia em resposta ao estímulo, e em vão tentava
sujeitar-se a algo.
O sangue corria com velocidade pelas veias de Fúria, e um som ensurdecedor
explorava em seus ouvidos. Penetrou-a com um impulso que separou os pés de
Rafaela do chão. Ela se deslizou sobre ele, tragando-o, envolvendo-o, contendo-o.
Artemio respirava com dificuldade, a frente sobre o alto da cabeça de Rafaela e os
braços estendidos sobre a parede para conservar o equilíbrio. Seu pênis palpitava
dentro dela, a ponto de arrebentar. As investidas começaram com cautela e pouco
a pouco tomaram um ritmo que profetizava um final que Artemio, sabia, jamais
tinha experimentado. Seus quadris a empurravam com maior ímpeto a cada
momento, impelindo seu falo mais dentro. Que ela o contivesse em sua totalidade,
por favor, que ela se abrisse a ele, porque o necessitava, necessitava-a, com
loucura, a sua Rafaela, a sua Rafaela das flores, meu amor, te abra a mim. Sua
boca se negava a pronunciar as palavras, falava seu corpo e procurava uma fusão
com essa mulher como não o tinha feito em sua vida. Enquanto levantava a pélvis
para sacudir sua carne dentro de Rafaela, observava-lhe a parte direita do rosto, a
outra tinha ficado esmagada contra a parede. Sua boca entreaberta se sobressaía
como se dispusera a dar um beijo, tentando-o com sua cor, sua umidade, com o
aroma que exalava em cada ofego. Inclinou-se para devorá-la, para chupar o lábio
inferior. Rafaela girou apenas a cabeça e lhe saiu ao encontro. Tomou sua língua e
a sugou.
A contenção já não foi possível. Impulsionado por uma força extraordinária,
Artemio se desprendeu do beijo, levou a cabeça para trás e esticou o corpo. O
orgasmo lhe tirou a respiração. Seu membro arrebentou dentro dela. Tremeu e
gritou sem temperança. O prazer devastador continuava como uma corrente sem
fim, ele seguia ejaculando como se em lugar de quatro dias de abstinência se
tratou de quatro anos. No meio do delírio, escutava a Rafaela, seus delicados
gemidos afogados por seus roucos grunhidos. Êxtase, euforia. Morreria, seu
coração não resistiria. Apoiou a frente na parede e estirou os braços em cruz,
cobrindo a Rafaela por completo. Os batimentos do coração se voltaram pesados e

126
dolorosos, o mesmo sua respiração. Tomava grandes inspirações para encher seus
pulmões e alcançar um ritmo regular.
Deu-se conta de que carregava todo seu peso sobre a Rafaela e se apartou uns
centímetros para lhe permitir respirar com normalidade. Sem sair dela, arrastou-a
com ele ao chão, onde ficou sentado sobre seus calcanhares. Rafaela,
escarranchado nas pernas de Fúria, apoiou os joelhos aos flancos, sobre o chão, e
jogou as mãos para trás, procurando um ponto para sujeitar-se. Artemio a
envolveu com os braços e afundou o nariz em seu pescoço.
—Senhor Fúria —Rafaela lhe falou sobre o rosto barbudo—, o que você acaba de
me fazer foi a coisa mais bonita que senti na minha vida. Obrigada —acrescentou,
em um sussurro.
—Jamais tinha me sentido assim —admitiu ele—. Rafaela! —comoveu-se de
repente—. Pensei que morreria quando não a encontrava. Pareceu-me que havia
ido embora.
—Partir ?Sem você, senhor Fúria? Eu já não poderia viver sem você.
Artemio mordeu o lábio e apertou os olhos. Por sorte, ela não testemunhava esse
momento de fraqueza. A calidez de Rafaela, a significação de suas palavras,
entrega-a e a paixão de seu corpo, a largueza com que o tinha aceito em sua carne
e o prazer que lhe tinha agradável, tudo nela suavizava sua natureza ríspida, seu
gênio mal-humorado, sua alma atormentada e seu coração mortalmente
destroçado. As garras de ódio cravadas em seu interior se afrouxavam. As carícias
de Rafaela cicatrizavam as feridas. Seus beijos apagavam as más memórias.
—Rafaela —pronunciou—, você não tem idéia o que seu amor significa Para mim
—disse, quase sem pensar, mas bem como se meditasse em voz alta.
—Diga-me senhor Fúria. Quero saber. O que significa?
Manteve-se em silêncio, procurando as palavras que descrevessem o alvoroço de
sentimentos que o estava mudando de maneira irreversível.
—Significa vida. Vida e alegria. Você é única para mim. Queria seguir dentro de
você para sempre —e pensou, em inglês, como lhe tinha ensinado o padre Ciríaco
para não esquecer sua língua mãe: "Porque se estiver dentro de você estou a salvo
dos demônios. Porque você me tira o frio da morte. Porque se a alho, aquelas
imagens aberrantes que me atormentaram dia a dia durante vinte anos se
desvanecem. Porque se seus olhos verdes e bondosos me contemplam com amor,
então, minha vida cobra sentido". Possivelmente obedecendo a seu inveterado
hábito de ocultar, de calar e de proteger-se, guardou esses pensamentos para si.
Rafaela se moveu para acomodar-se, e o membro abrandado de Fúria se
endureceu de novo dentro dela. Poucos minutos atrás se esgotou em seu interior,
e, como já não era um rapaz a não ser um homem de trinta, a pronta recuperação
o surpreendeu. Mordeu-lhe o ombro através do tecido do espartilho.
—Abra o corpete —lhe murmurou—, que quero lhe tocar os seios.
Rafaela obedeceu com a diligência e submissão que a caracterizavam e que o
agradavam. Apoiou a nuca sobre o ombro de Fúria e gemeu ante o contato de suas
mãos calosas.
—Estão duros como meu pênis22 —o escutou dizer, enquanto seus mamilos
giravam entre o polegar e índice do gaúcho—. Como se sente? Está muito

22
A Autora utiliza a palavra verga, o equivalente coloquial no Brasil aos termos utilizados para se referir ao órgão sexual
masculino.

127
dolorida? —Rafaela meneou a cabeça em seu ombro—. Eu estou quente de novo —
expressou, com o acento que empregaria para desculpar-se—. E não me queixe,
porque a culpa é sua —acrescentou, e um calafrio lhe arrepiou a pele dos braços
quando Rafaela estalou em uma gargalhada.
—Perdoe-me —expressou, entre os últimos vestígios de risada.
—Perdôo-a se me deixa amá-la outra vez.
—Aqui, senhor Fúria, no chão, comigo sobre suas pernas?
—Sim —ofegou ele, excitado só por ouvi-la pronunciar seu "senhor Fúria"—. Abra
bem as pernas para mim.
—Assim o farei. Abrirei minhas pernas quanto possa —disse, enquanto apartava
os joelhos— porque quero agradá-lo —arrastou os lábios por sua mandíbula e lhe
confiou —: Quero agradá-lo sempre. Sempre, Toda minha vida.
Cortou a fala quando Fúria a levantou para desliz de novo sobre seu membro. A
carne avivada de ambos se estremeceu. Rafaela sentiu uma queimação na vagina e
se queixou. Artemio permaneceu quieto, aguardando a que ela se habituasse à
invasão de seu pênis. Tomou pelos quadris para lhe indicar o vaivém que o
excitava e depois voltou para seus seios para brincar com os mamilos porque
sabia que a voltava louca de desejo. Ela reagiu imediatamente. Os movimentos
circulares de sua pélvis se intensificaram para enterrá-lo cada vez mais
profundamente, como se nunca bastasse, como se o necessitasse em suas
vísceras.
Rafaela cravou as unhas nas pernas de Fúria quando a sensação elétrica se
concentrou e explorou entre suas pernas. Um espasmo de prazer empurrou a
Artemio para diante e arrastou a Rafaela em sua queda. Os braços dele receberam
o impacto e a salvaram do golpe. Ambos terminaram de bruços, ela sobre o chão
de terra calcada, ele, sobre as costas dela. O peso de Fúria lhe resultava
entristecedor e, ao mesmo tempo, estimulante. Gostava de sentir o calor de seu
torso e absorver o aroma de seu suor com uma nota aguda que ela identificava
com suas atividades amorosas. Fúria se impulsionava dentro dela, uma e outra
vez, e suas investidas a balançavam. Notava a dureza do chão em seus mamilos e
em sua face esquerda e, como quase tocava a parede com a cabeça, Artemio a
protegia colocando a mão no alto de sua cabeça. Não se dava conta de que
continha o fôlego e apertava os lábios, enquanto arqueava os quadris e as movia
para introduzi-lo dentro dela. Queria experimentar a sensação maravilhosa
novamente, infinitas vezes. Pensou na gula, na luxúria, na fornicação, nos atos
impuros, em tantas faltas que cometia ao mesmo tempo. Era muito tarde para
arrepender-se, de igual modo, não lhe importava. Esqueceu-se como por arte de
magia de sua índole de grande pecadora quando o ponto que se inflamava e
palpitava entre suas pernas se dispôs a estalar outra vez. Agora, já vem,
aproxima-se, sobe, sobe, cresce, sim, sim, já chega.
—OH, Artemio! —clamou.
Fúria a seguiu um instante depois e lançou um grito como se o tivessem ferido
de morte, alheio à brutalidade com que se enterrava nela, procurando saciar a
fome que lhe causava. Sua voz foi extinguindo-se junto com os arremessos e caiu
exausto sobre as costas de Rafaela. Permaneceram tendidos no chão do abrigo por
compridos minutos, até que, com um esforço de vontade, ele ficou de pé, carregou-
a em braços e a levou a carruagem.
***
Os homens de Artemio Fúria começavam a inquietar-se e a perguntar-se quando

128
partiriam de La Larga. Dia a dia, cumpriam com as tarefas como se fossem peões
permanentes, sabendo que o dinheiro que cobravam saía do bolso de Artemio,
porque dom Juán Andrés já tinha pago pelo que tinha prometido. Expor ao Calvú
Manque suas inquietações, e o índio se mostrava evasivo, quão mesmo Fúria.
—Dom Beli deve está com Jesus na boca perguntando-se por que não havemos
voltado a Morón.
—Sei, Calvú —admitiu Fúria—. Enviarei Billy e Isidoro com uma mensagem para
meu padrinho.
—Irá comprar o gado Palafox para seu campo em Morón?
—Já não comprarei o gado de Palafox. Eis decidi levar a senhorita Rafaela
comigo, Calvú. Ela já não andará acontecendo obrigações. Se seu pai ou seu
ficarem furiosos, que cuidem dessas vacas danificadas.
—Levar a senhorita Rafaela contigo? O que diz, peñi?
—Levo-me isso porque a quero para mim. Quero-a como minha mulher.
—Que inseto te picou, peñi? Nunca quis se juntar com nenhuma, nem sequer
com Albana. Sempre me dizem que até não cumprir com aquilo, não pensará em
mulher nem em filhos —Artemio o olhou com seriedade, e Calvú Manque soube
que não lhe responderia—: Acaso se esquecerá daquilo e cessará a busca?
—Nunca! —respondeu, com os olhos cheios de fogo.
—Cruzou pela sua cabeça que ela não é mulher para um homem como você?
Estas pessoas nos olham como cheirando merda, peñi. Ela é uma senhorita
refinanda, dessas que têm escravas e objetos finos. Agüentará nossa vida?
—Peñi, não crê que não pensei no que estais dizendo. Sei que a senhorita Palafox
é refinada e culta, mas também a vi de trabalhar duramente nestas semanas. Não
É melindrosa como as outras da cidade.
—É verdade, e muito trabalhadora, não teme sujar as mãos. É bem bonita.
—Levo-me isso, Calvú. À menina também —depois de uma pausa, adicionou—:
Além disso, poderia estar grávida.
—Grávida? Sempre teve o cuidado de não...
—Com ela não, peñi.
—Ah, caralho, perdeu o juízo com esta China!
—Assim é —admitiu.
—Quando iremos, Artemio?
—Logo falo a você.
Para Artemio Fúria, que possuía um espírito temerário e que, por convicção,
jamais se permitia arredar-se ou tornar-se atrás, o desgosto em que o sumia a
possível negativa por parte de Rafaela e o medo de enfrentá-la acentuavam o
humor áspero e a falta de gênio. Em ocasiões cobrava ânimos, em especial quando
ela utilizava locuções como "para sempre" e "toda minha vida". Como esquecer
que, antes de entregar-se a ele pela primeira vez, tinha-lhe confessado: "Amo-o,
senhor Fúria, assim como é você, mal falado, briguento, com argolas na orelha, com
um gênio que faz honra a seu sobrenome e até com aroma de cavalo"? Mas aí não
terminou o assunto. Isso era, um mal falado, um briguento, um gaúcho, tinha
argolas na orelha (tantas como Cristãos e infiéis tinha despachado ao outro
mundo), e mais ainda. Só que ela não sabia. Ao lhe pedir que fugisse com ele,
expor-lhe a verdade completa, sem suavizá-la. Ao seu lado deveria esquecer-se dos
objetos bonitos, das reuniões e das festas, das orquestras e dos bailes, das amigas
e da gente distinguida para viver a seu modo, como a mulher de um gaúcho, com
sua gente e em seu campo de Morón, em uma casa que em nada semelhava às

129
luxuosas residências de Buenos Aires, ou viajando largas distâncias, porque ele
não se adviria a deixá-la para que outro a roubasse. Ela era seu maior tesouro.
Rafaela, que o notava taciturno, não se atrevia a lhe perguntar o motivo. Temia
que admitisse que se cansou dela e que se largaria em pouco tempo para
prosseguir com sua vida de patrício errante. Ficou olhando-o dormir. A julgar pelo
modo em que acabava de lhe fazer o amor, suas dúvidas eram infundadas. Não
obstante, persistiam.
"Senhor, que criatura tão perfeita e bonita criaste!", pensou, em tanto seus olhos
vagavam pelas linhas de seu rosto e de seu corpo. Ela se achava sentada no
interior da carruagem, apoiada nas placas laterais de couro, enquanto Artemio
estava deitado de costas, a cabeça sobre suas pernas e as mãos, com dedos longos
e delgados, descansavam sobre um torso tão peludo que ela, quando desejava
lamber seus mamilos, abria caminho entre o espesso arbusto loiro como o arado
que corta a terra. Apesar do rosto bronzeado escuro, nas partes onde o sol não o
tocava, sua pele era quase translúcida. Com delicadeza para não despertá-lo,
enredou os dedos no pêlo de seu peito e provou a dureza de sua carne, e se
orgulhou ao concluir que se tratava da conseqüência de seu trabalho com as
cabeças de gado e os cavalos. Poucas vezes tinha visto tal desdobramento de força
e perícia combinadas. Descendeu para o umbigo. Sorriu ao advertir que o membro
de Fúria respondia a sua carícia.
Ao despertar, Artemio se encontrou com os seios de Rafaela balançando-se sobre
seu rosto. Um pinjente turquesa lhe pendurava do pescoço. Não controlou o
acento desconfiado e duro com que perguntou:
—Quem lhe deu isso? —e o balançou com o dedo.
—O que aconteceria se lhe confessasse que foi um homem que me presenteou?
—Você não quereria saber.
—Sim, quero saber. Diga-me.
—O degolaria por haver-se atrevido a lhe dar algo a minha mulher —a agarrou
pelos braços e a atraiu para ele. Falou-lhe perto da boca—. E depois mataria a
você por aceitá-lo.
—Ñuque —respondeu ela—, Ñuque me deu de presente —o beijou nos lábios
para aplacá-lo com a paciência de uma taurina, como teria pontudo tia Pola—.
Quando lhe contei que você tinha os olhos de uma cor turquesa similar ao de seu
talismã, o tirou e me entregou isso. E estes anéis? —quis saber a sua vez, e
levantou o tato de couro que Artemio jamais tirava.
—De meus pais —disse, cortante.
Fúria não tinha falado de seus pais salvo para lhe informar que estavam mortos.
Sem entrar em detalhes e pondo em claro que não gostava de referir-se ao
passado, tinha mencionado seus anos no convento e a educação que o padre
Ciríaco lhe tinha repartido. "Falo como minha gente porque me acostumei depois
de tantos anos e porque com eles que compartilho a vida", explicou-lhe, marcando
o acento campestre a propósito, quando lhe manifestou que a desconcertava que
se expressasse desse modo quando podia empregar uma perfeita pronúncia.
"Incomoda você?", tinha-a questionado. "Você bem sabe que não", tinha sido a
resposta de Rafaela.
—Faz muito tempo que perdeu a seus pais?
—Vinte anos —disse, relutante.
—Morreram juntos? —Fúria assentiu—. Como foi?
—Desgraçaram-nos.

130
Rafaela ficou olhando-o. O instinto lhe advertiu que não me aprofundasse na
questão. Podia ver o sofrimento que o embargava. Sentiu tanto amor por ele nesse
momento que teria desejado que sua dor passasse a ela para liberar o da carga.
Tomou o frasco com seu perfume e molhou atrás das orelhas, com o passar do
pescoço e entre os seios antes de inclinar-se sobre seu nariz e tentá-lo. Já tinha
reparado no poder que seus aromas exerciam sobre a vontade do gaúcho Fúria.
Ele começou a cheirá-la, de maneira relutante ao princípio, com avidez crescente à
medida que as mãos de Rafaela se passeavam por seu membro e seu testículo de
maneira indolente.
—Cheire-me, senhor Fúria. Sei que é algo de mim que gosta. Cheire-me até
saciar-se. Sou toda sua, senhor Fúria, com meus aromas e com tudo o que há em
mim.
Ante essas palavras, Artemio tomou pelos braços e a apartou para olhá-la com
essa expressão inescrutável que lhe resultava familiar, embora turbadora.
—Meu Deus, Rafaela! —exclamou, e Rafaela ficou perplexa porque sabia que ele
jamais usava o nome de Deus em vão, nem tanto por respeito como por
ressentimento e orgulho—. Você, Rafaela, é a única que não me faz perder por
completo a fé neste mundo. Por você seria capaz de viver outra vez tudo o que vivi.
Por você, Rafaela. Só por você, minha Rafaela.
—E eu, por você, senhor Fúria, daria minha vida. Amo-o, senhor Fúria, como
jamais amei a ninguém. Como nunca amarei a ninguém. Eu sei. Eu sei que você
está gravado a fogo em meu coração e que já ninguém poderá apagá-lo dali.
—Que nada me apague de seu coração —suplicou ele, com feroz ansiedade—.
Que nada se atreva a me apagar de seu coração.
Levantou-se para deitá-la sobre as mantas que cobriam o chão da carruagem e a
penetrou lentamente, sem apartar a vista dela. Rafaela Palafox compunha a visão
mais maravilhosa que ele conhecia, mas no gozo, ela se convertia em um
espetáculo sublime. Roubava-lhe o fôlego.
***
Dias atrás, Rafaela tinha recebido uma nota de sua amiga Pilar Montes onde lhe
informava que Melody Blackraven, condessa de Stoneville, e ela desejavam visitá-
la em La Larga. Propunha um dia e uma hora. Rafaela, emocionada, rabiscou um
"Sim, lhes espero com ânsias" e lhe devolveu o papel dobrado ao mensageiro.
Essa tarde, por fim conheceria a famosa Melody Blackraven, a mulher que por
muito tempo se encontrou no centro das fofocas de Buenos Aires. Sua prima
Cristiana, que a tinha conhecido na casa de Rafaela de Pinheiro, mais conhecido
como a vice rainha velha, assegurava que "a negrófila", como a chamava sua mãe,
Clotilde, não era nem bela nem agraciada e que tinha a figura de um tonel. "Dizem
que está grávida", aduziu Rafaela naquela ocasião. "Pois lhe custará muito
recuperar sua figura, se alguma vez a teve", profetizou sua prima.
Como se tratava de uma jornada agradável de princípios de março, com o céu
diáfano, acomodaram uma mesa e várias cadeiras no pátio principal, onde a brisa
arrastava o perfume dos muguetes que subiam pelas colunas da galeria. Rafaela
jogou uma olhada a seu redor e ficou de acordo com o resultado. A mesa, coberta
com uma toalha branca de linho, refletia a alegria que aninhava em seu coração.
Graças às provisões compradas pelo senhor Fúria em São Fernando da Boa Vista,
tinham-na repleto de manjares e bebidas. Do jardim de Rafaela, tinham obtido as
flores do ciclamor e da laranjeira amarga para decorá-la. Inclusive Rafaela se
arrumou para a ocasião, e acreditava que o espartilho de musselina em um tênue

131
amarelo e a saia de algodão em um tom verde mar sentavam a sua tez pálida e
acentuavam a cor de seus olhos. Estudou-se no espelho de seu dormitório e se viu
formosa, com uma tonalidade saudável graças ao papel com pó de cochinilha que
Creóla lhe tinha passado pelas maçãs do rosto. Seus olhos estavam grandes e
brilhantes, em parte porque os tinha esclarecido com chá de camomila e também
porque Creóla lhe tinha arqueado as pestanas as apertando contra a parte
côncava de uma colher quente. Seu penteado consistia em duas tranças que lhe
rodeavam a cabeça como coroas e nas quais Peregrina tinha colocado pequenas
flores de muguete e de flor-de-laranja. Perfumou-se com prodigalidade e sorriu ao
imaginar a careta de Fúria ante esse festim de aromas. O que estaria fazendo
nesse momento? Se encontraria no rodeio, ou no curral com os cavalos, ou
curando a ferida de um touro ou ajudando a parir a essa vaca que estava a ponto
de arrebentar. Amava vê-lo reconcentrado em seus trabalhos. Pasmava-a a perícia
e o conhecimento com que se desempenhava. Seu vigor a voltava branda de
desejo. Pulverizou em seus lábios o bálsamo com sabor a baunilha, enquanto uma
idéia que cobrava vigor a fazia sorrir como uma travessa. "Esta noite", prometeu.
Mimita estava muito linda também, com seu vestidinho de tafetá rosa e seus
tamancos brancos. Rafaela a perfumou com uma colônia almiscarada, ajustou-lhe
o coque em cada trança e a abraçou.
—Quero-te, Mimita —lhe disse ao ouvido, e percebeu que as mãozinhas da
menina se ajustavam em suas costas.
Perto das quatro, Peregrina entrou no pátio, sacudindo os braços e vociferando
como uma galinha poedeira. A senhora Pilarita e sua amiga, a condessa,
acabavam de chegar. Rafaela, de mão dada com Mimita e suas escravas como
escoltas, saiu às receber. Duas carruagens estacionaram frente ao portão
principal, e a Rafaela deu a impressão de que nunca acabavam de esvaziar-se.
Muitos meninos, várias mulheres e um homem exótico, com turbante e aspecto
ameaçador, compunham o grupo. Rafaela soube, logo que posou seus olhos nela,
quem era a condessa de Stoneville. "recuperou a figura." Pilar Montes as
apresentou.
—Senhorita Palafox —disse, e tendeu suas mãos a Rafaela, que tomou com
desconforto pois não se acostumava o contato físico entre os portenhos—. Tinha
tantos desejos de conhecê-la!
—Eu também, senhora condessa —admitiu, com uma curta reverência.
—Nada de senhora condessa. Me chame Melody.
—E vossa senhoria, por favor, me chame Rafaela.
Habituada ao silêncio e à ordem, Rafaela se viu transbordada pelas risadas e os
gritos dos meninos. Em meio da gritaria, Melody realizou as apresentações.
Rafaela assentia com um sorriso e não recordava os nomes. Enfeitiçava-a a
maneira natural com que a condessa desdobrava seu encanto e repartia seu amor
a todos. Pensou em tia Clotilde, em como teria desaprovado esses modos francos e
abertos, que implicavam muitos apertões de mãos, beijos e sorrisos, tudo o que ela
detestava, embora concluiu que, se a condessa de Stoneville tivesse mostrado
preferência por conhecer sua filha Cristiana em lugar dela, para tia Clotilde se
teria constituído no epítome do bom gosto e da delicadeza, já não a teria chamado
"negrófila" e até teria desprezado que concedesse o mesmo trato a Pilar Montes,
baronesa da Pontevedra, e a tal Miora, uma negra.
Ante o assombro de Rafaela, Melody se agachou frente a ela e tendeu a mão para
a Mimita, que se escondia entre as dobras de sua saia, atemorizada pela invasão

132
de meninos e de ruídos dissonantes.
—Você deve ser Mimita, verdade? O que vestido tão bonito leva! E olhe que
sapatos tão elegantes. Esta é Rosie, minha filha —a menina se aproximou com o
passo vacilante do que logo começa a caminhar, e um pacote na mão—. Vamos,
Rosie, entregue o presente a Mimita. Isto é para ti, carinho —disse Melody.
Uma bola se formou na garganta de Rafaela e em seguida uma ardência ganhou
os olhos. Com dissimulação, baixou o rosto, tirou o lenço que levava sob o punho
e se secou as lágrimas que ameaçavam transbordando. Se agachou a sua vez.
—OH, senhora condessa! Não deveria haver-se incomodado.
—Me chame Melody, por favor. Quem me conhece sabem quanto me irrita que
utilizem meu título para me chamar.
—Desculpe. Abre seu presente, tesouro —Mimita rompeu o papel de arroz que
cobria a caixa. Rafaela a abriu—. Que magnífica boneca! Olhe, tesouro, que bonita
é! Diga obrigada a Melody. Vamos, lhe diga "repita".
Mimita, em troca, abraçou o pescoço da condessa e lhe deu um beijo ruidoso e
salivoso na face. Todos riram, inclusive o tal Somar.
Tomaram assento em torno da mesa. Creóla e Peregrina encheram os copos com
tipo de refresco, hordiate e chá de hortelã, e repartiram os doces, massas e
confeitos. Todos pareciam desfrutar da tarde. Rafaela suspirou, agradada.
—Entendo que é muito hábil com as plantas e as flores —comentou Melody—. O
senhor Belgrano me assegurou que sabe tanto como o naturalista Haenke.
Não soube o que responder. Não sabia que Manuel Belgrano, amigo de Corina
Bonmer, tivesse reparado nela alguma vez.
—Manuel —atravessou Pilarita— te há dito a verdade, Melody. Você mesma
pudeste comprovar as dotes de nossa querida Rafaela ao ver o jardim do asilo.
—Não consigo imaginar —disse Melody— a beleza de seu jardim, Rafaela, se tiver
conseguido que o nosso luza tão esplêndido.
—Na verdade, Melody, meu jardim, o de nossa quinta em Buenos Aires —
esclareceu—, é meu orgulho. Na primavera, quando todas as plantas florescem a
insistência, com tantos aromas e cores que se misturam, sua exuberância o volta
quase vulgar.
—Referiram-me Pilar e Lupe que fabrica perfumes e cosméticos.
—E também vela, sabões, pastilhas para incensos e rosários de pétalas de rosa.
Preparo-os com as flores e as plantas de meu próprio jardim. Se quiserem,
convido-as a conhecer o quarto onde Creóla, Peregrina e eu fabricamos nossos
produtos, aqui, em La Larga. Embora deva admitir que é uma oficina precária. O
da cidade é realmente muito completo.
—Eu adoraria conhecê-lo! —assegurou Béatrice, prima da condessa.
A ponto de incorporar-se, Rafaela viu ingressar no pátio a Artemio Fúria com a
desenvoltura que tinha adquirido nas últimas semanas. Ele se deteve de repente
ante o inesperado quadro.
—Desculpem —disse, e volteou para retirar-se.
—Senhor Fúria! —Rafaela abandonou seu local e caminhou para ele—. Por favor,
senhor Fúria, não se vá. Eu gostaria de lhe apresentar a umas amigas —se
olharam fixamente—. Não se vá, por favor —lhe suplicou em um sussurro.
—Atiemo! —Mimita abandonou a boneca e aos seus novos amigos, correu onde o
gaúcho e se abraçou a suas pernas. Ele a levantou em braços e continuou
observando à multidão desconfiado.
—Entre, senhor Fúria, por favor —insistiu Rafaela.

133
—Senhoras —disse Artemio, e tirou o lenço para inclinar a cabeça.
Rafaela testemunhou o instante em que os olhos de Fúria se detiveram na
condessa de Stoneville, e advertiu a mudança em sua expressão, como a tensão de
seus músculos se relaxava, e apreciou a lentidão com que se entreabriam seus
lábios e a luz que pareceu circundá-lo e que lhe deu um aspecto de beatitude,
como se tivesse achado o mais prezado para ele. Não se equivocava: a condessa de
Stoneville tinha balbuciado, quase sem fôlego: "Meu deus!", e seu semblante
também refletia o impacto do encontro com esse homem. Contemplaram-se
durante uns segundos.
Ao alternar a vista de uma a outro, Rafaela caiu na conta de que a tonalidade de
seus olhos, os da condessa e os de Fúria, era a mesma, esse sólida cor turquesa,
quase inverossímil. Pigarreou, compôs-se e iniciou as apresentações. O ambiente
se rarefez e, depois de que Fúria se desculpou, não prosseguiu a conversação
amena do princípio. Meia hora mais tarde, os convidados retornaram a São Isidro.
***
Rafaela se enfiou dentro da banheira que lhe tinham acondicionado para banhar-
se. A água morna despedia o perfume do azeite de bergamota, e, se movia a
cabeça, alagava-a o do azeite de amêndoas que levava no cabelo. Os aromas que
desde fazia anos formavam parte de sua vida tinham adquirido um novo
significado, que lhes tinha dado o senhor Fúria. Não usaria de novo seu perfume
sem pensar nele, nem se esfregaria com o bálsamo de melisa sem recordar o efeito
que lhe ocasionava, nem colocaria manteiga de cacau nos lábios sem evocar a
voracidade de seus beijos.
Uma lágrima se mesclou com as gotas de água que umedeciam sua face. Artemio
Fúria tinha desejado à condessa de Stoneville com uma intensidade que não tinha
podido ocultar; desejou-a abertamente, como seu espírito arisco e livre o permitia.
Por sua parte, a condessa de Stoneville se comoveu ante a beleza de suas feições e
a imponência de sua figura. Em certa maneira, compreendia-a; ela também tinha
sido vítima do feitiço que esse homem jogava sobre as mulheres, o feitiço que a
tinha privado de prudência, moral e sentido comum. Recordou as palavras de
Creóla, que pareciam tão longínquas no tempo: “A Felisarda diz que a Fúria, onde
quer que vá, não falta nunca lhe falta uma saia para se coçar. A campanha deve
está cheia dos seus gauchinhos”. E pensou na atriz, a tal Albana, e nas outras que
o amariam. Um homem como ele não permaneceria fiel a um amor se existiam
tantas mulheres dispostas a entregar-lhe ambas as mãos.
Rafaela chorou em silêncio e amargamente. Queria-o só para ela ou não o queria.
Ficou de pé e permaneceu quieta na banheira aguardando a que a água escorresse
junto com as lágrimas. Baixou a vista e se olhou. Estava nua por completo. Já não
usava a camisola de linho para banhar-se, outro costume decente a que tinha
renunciado da perda de sua virgindade. De repente, urgiu-a a determinação de
recuperar o que tinha abandonado por ele. Precisava aferrar-se às máximas e aos
princípios desprezados durante essas semanas de loucura e paixão. Resultava
imperioso voltar a ser a Rafaela de antes.
Deu um coice e afogou um chiado ao advertir que alguém se movia no quarto.
Artemio Fúria emergiu de um setor escuro e caminhou para o círculo onde a vela
jogava uma luz trêmula e amarelada. Contemplava-a com uma severidade que lhe
deu medo. Cobriu-se os seios e o triângulo entre as pernas. Quanto tempo tinha
permanecido oculto, observando-a? Podia ser sigiloso se o propunha.
—Como entrou na casa? —quis saber, com voz quebrada.

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—A Creóla me deixou entrar. O que acontece? —dirigiu-se a ela em um sussurro
áspero e exigente—. Por que chora? Por que se cobre?
Rafaela saiu da banheira e se envolveu com a toalha. Voltaram a olhar-se através
da curta distância e da penumbra. Viu-o avançar com rapidez, sem arrancar um
som ao piso de tijolos, e cair sobre ela para tomá-la pelos braços, justo sob as
axilas. Sacudiu-a para que o olhasse, mas ela se negou.
Artemio queria que lhe dissesse à cara que já não o amava, que a visita de seus
amigas refinadas a tinha levado a avaliar quanto perdia ao unir-se a um veludo
cotelê como ele. O mau pressentimento que o embargou ao ver esse grupo tão
elegante junto a sua Rafaela, que já não vestia as saias e blusas de gênero barato
a não ser um espartilho e saia cara e que coloriu a face e penteou os cabelos de
uma maneira bastante complicada, permaneceu o resto da tarde e entrou a noite
enquanto o tempo passava e ela não escapulia para encontrar-se com ele. Nesse
momento, sentindo-a fria, as suspeitas se converteram em certezas.
—Diga-me o que tem que me dizer —lhe exigiu, perto dos lábios.
—O que teria que lhe dizer?
—Por que não veio para mim esta noite? 'Tive esperando-a como bobo lá fora.
—Tenho que ir todas as noites?
Artemio afundou seus dedos na carne de Rafaela e apertou o cenho. Fez gesto de
falar e calou. Suas respirações agitadas compunham o único som do quarto, que
crispava as ferozes emoções em que se achavam envoltos.
—Todas as noites. Sim, todas as noites —repetiu, com os dentes apertados—,
cada dia, cada hora, cada minuto. Você é minha, Rafaela, e a quero para mim,
sempre.
—Em troca, você, senhor Fúria, não me pertence —ele manifestou seu
desconcerto levantando as sobrancelhas—. Uma vez lhe disse que queria que seus
beijos fossem só para mim, que você fosse só para mim.
—E eu lhe jurei que assim o era. Eu não juro em vão, Rafaela.
—Pois mentiu.
Pensou que a destroçaria. Jamais tinha visto essa fúria em seu olhar. Temeu-lhe
como nunca tinha temido a um ser humano. Sua intensidade e fortaleza a
envolveram e lhe tiraram a respiração. A mão de Fúria se fechou em torno de seu
pescoço e o apertou, lhe causando um comichão incômodo na garganta.
—Solte-me! —alcançou a articular.
—Como se atreve a duvidar de minha palavra. E porque sou o que sou que já não
me quer, verdade? Diga-me isso Não seja covarde.
—O que diz? É você um tolo! Quero-o! Quero-o desta maneira desesperadora!
Quero-o apesar de saber que você não merece meu amor! Porque para você, eu só
sou uma mais.
Fúria se tornou para trás como se tivesse recebido um empurrão.
—Você é única —disse, com escasso fôlego, e ficou olhando-a, sem pestanejar,
agitado, perplexo.
—Descarado! Como se atreve a me dizer que sou a única depois de ter devorado
com o olhar à condessa de Stoneville? Pensa que sou idiota? Acaso cega?
—Não —disse em voz baixa, e levantou a mão para acariciar o pescoço de
Rafaela, onde lhe tinha feito mal. Ela se retirou, afastou-se, deu-lhe as costas—.
Rafaela —se aproximou com prudência, temendo espantá-la—. Rafaela, meu amor.
Rafaela mordeu o lábio, fechou os olhos e ajustou os braços em torno da toalha.
Era a primeira vez que a chamava "meu amor". "Diga-o uma vez mais, senhor

135
Fúria. Por favor, uma vez mais."—Meu amor —o escutou pronunciar de novo, e em
um instante se achou na armadilha que constituía seu abraço. Ele a tinha
obrigado a voltar-se e a apertava contra seu peito e a beijava e percorria as mãos
pelo corpo, completamente abandonado a seus instintos e a suas paixões—. Meu
amor —repetia—. Meu. Meu e único.
A toalha caiu a seus pés, e Rafaela ficou perdida entre as roupas e os braços
dele, envolta em seu aroma a tabaco e fumaça. O tecido do poncho lhe raspava os
mamilos, o metal do atirador se cravava em seu ventre, e as impigens lhe picavam
por causa das franjas do calção. Nua e descalça, sentiu-se pequena e inerme. Ele
se erguia como um titã sobre ela.
—Então, não vai deixar me?
—Não. Não poderia —admitiu ela, já sem orgulho nem raiva.
Fúria lhe buscou os lábios e os devorou. Não se tratava de um beijo. Ele não
estava beijando-a a não ser tratando de aplacar nela a loucura de medo e fúria
que se desatou em seu interior ao acreditar que a perdia. Lambia-a, sugava-a,
mordia-a. Arrastava seus lábios quentes por sua boca, seu rosto e seu pescoço.
Apertava-lhe o traseiro e a esfregava contra seu vulto. Rafaela notou que se
desfazia do atirador e liberava seu membro. Sentiu-o duro e viscoso contra o
ventre.
Deito-a na cama, e Rafaela, embora movida por outra disposição, levantou as
pernas e lhe permitiu que se introduzira dentro dela. Artemio vibrou enquanto se
deslizava na apertada calidez de sua vagina e explodiu segundos depois. Rafaela o
contemplou no orgasmo, extasiada ao vê-lo abrir a boca em um grito mudo, que
terminou por converter-se em um gemido prolongado, rouco, que ao final se
tornou afônico. Balançava-a com brutalidade, enquanto impulsionava sua pélvis
para ejacular cada vez mais dentro dela. desabou-se, extenuado pela paixão.
Rafaela o envolveu com seus braços e lhe beijou a cabeça. Alcançou a
compreender que Fúria lhe sussurrava:
—Durante o dia, tento arrancá-la de minha cabeça. Mas quando cai a noite,
anseio-a. Tanto. Tanto.
Rafaela guardou silêncio e seguiu lhe acariciando as costas e o cabelo,
acreditando-o tão dela que desejou não sentir assim. Artemio Fúria não pertencia
a ninguém. As lágrimas brotaram e escorregaram por suas têmporas.
—Rafaela —pronunciou Artemio, comovido ao vê-la chorar—, hoje, quando vi a
condessa, pareceu-me que era outra pessoa. Acreditei que...
—O que acreditou, senhor Fúria?
—Acreditei estar na frente de minha mãe. Acreditei que voltava a vê-la. Tudo me
recordava, seu olhar, a cor de seu cabelo, o de seus olhos.
—Era igual ao seu —apontou ela—. Turquesa.
—Rafaela, não vi à condessa como um homem vê a uma mulher, como eu a você,
mas sim como um filho a sua mãe.
—Tão parecida é a condessa a sua mãe?
—Minha mãe se foi faz vinte anos e às vezes seu rosto vai de minha mente. Mas
hoje... Hoje a recordei como se fosse ontem. A condessa me recordou isso.
—Sinto muito, senhor Fúria. Lamento ter desconfiado de você. Acreditei morrer
quando seus olhos se posaram nela. A condessa também se mostrou afetada.
Embora isso não deveria me surpreender. Sei bem o que sua beleza causa nas de
meu gênero.
Artemio ficou de pé. Não apartou o olhar de Rafaela enquanto se despia. Seu

136
pênis começou a erguer-se os seus testículos se voltaram pesados. Tinha-o em um
punho, dominava-o como a um menino só por olhar o desse modo, por estar ali
tendida, nua, com as pernas derrubadas para um lado, os seios relaxados e
generosos. Sua pele branca, quase iridescente, atraía-o na escuridão do quarto.
Deitou-se sobre ela e escutou que lhe cortava o fôlego ao receber o peso de seu
corpo.
—Rafaela. Minha Rafaela. Sou lindo para você? —ela exalou um suspiro de
exasperação que causou a risada de Artemio—. Diga-me que te agrado.
—Senhor Fúria —falou a jovem, passado um momento—, você sabe o que penso
porque o leu em minha caderneta. A primeira vez que o vi fiquei olhando-o como
uma boba, alimentando sua vaidade, acrescentando sua soberba. Não finja que
não o recorda porque minha atitude foi tão evidente que até um cego a teria
notado —Artemio parecia divertido com a confissão e voltou a gargalhar—. Não ria.
Já nem dignidade fica para lhe ocultar que imaginou às outras, olhando-o como
eu o fiz, boquiaberta e oferecendo-se a você para que as ame; o ciúmes me cegam
e despertam em mim uma hostilidade que não sabia que existia em meu interior.
Fazem-me sentir mundana e frívola.
—Jurei-lhe que era só seu —insistiu, enquanto a beijava no pescoço e lhe
imprimia um carícia úmida e quente em sua descida até os seios.
—O que viu em mim, senhor Fúria? —arqueou-se e ofegou quando Artemio usou
a ponta de sua língua para lhe desenhar o contorno da aréola—. Não sou formosa
como a condessa nem como minha prima Cristiana, a que conheceu em Bosque
Alegre. O que vê em mim quando me olha?
Artemio sorriu sobre seu mamilo e se propôs não iluminá-la sobre o efeito que
causava nos homens; por exemplo, não lhe mencionaria que dom Juan Andrés
tinha ficado meio apaixonado por ela, nem que Mariano Orma, amigo de Sorte
Arzac, andava perguntado pela senhorita das flores nem que Manuel Belgrano a
admirava como a poucas. Na verdade, sua beleza não estava na perfeição de seus
contornos, e sim a um conjunto de elementos —o matiz de sua voz, a tonalidade
pálida e cremosa de sua pele, a doçura de seu caráter, a boa disposição que
mostrava, os aromas que despedia seu corpo, a cor e tamanho de seus olhos, sua
paixão pelas plantas, a voluptuosidade de sua figura e a pouca consciência de si
mesmo—, os quais, à medida que foram tirando o chapéu —e só os descobriria
aquele que contasse com a paciência e o discernimento para ver além de um
simples rosto bonito—, delineavam a uma pessoa completa, corpo, alma e
temperamento, que podia definir-se com a palavra "tesouro". Quem ganhasse seu
favor, jamais quereria perdê-lo. Artemio experimentou uma exultante euforia:
Rafaela Palafox só tinha pertencido a ele, e embora tivesse amado ao tal Juan de
Dios, consolava-se dizendo "A ninguém quis como a mim", porque a ninguém se
entregou de corpo e alma. Para isso tinha eleito a ele, um gaúcho, um mal
entretido.
Tomou-a pelos ombros e, rindo, deu um giro na cama para ficar de costas, com a
Rafaela escarranchado sobre sua pélvis.
—Quer saber o que vejo quando a olho?
De repente, Rafaela não queria saber. Ela não era bonita. O que lhe diria? Não
desejava que lhe mentisse para agradá-la. Inclinou-se sobre ele e lhe ofereceu seus
seios porque, ao menos disso estava segura, ele os encontrava apetecíveis. Os
passou pela face e se estremeceu com o contato de sua barba. Tinha-a espessa e
dura. Fazia dias que não se raspava.

137
—Eu gosto de suas comissuras, senhor Fúria. São marcadas, muito varonis. Eu
gosto das beijar justo na dobra —disse, para distraí-lo.
—Não quer que lhe diga o que vejo quando a olho? —Rafaela negou com a
cabeça—. O que quer, afinal?
—Você sabe —disse, evitando seu olhar.
Artemio sorriu, esse sorriso amplo em que mostrava seus dentes perfeitos, em
que destacava seu nariz, pequena e afiada, em que lhe formavam rugas em torno
dos olhos, que faiscavam com ironia. Rafaela suspirou, afligida por tanta beleza.
—Quero que me diga —insistiu isso, e suas mãos começaram a vagar pelas
costas dela—. Quero que me diga o que quer que lhe faça —Rafaela voltou a
sacudir a cabeça, e Artemio advertiu que sua face se coloriu . - Quero lhe ouvir
mentir.
Rafaela o contemplava com uma seriedade que a Fúria dava risada. Amaram-se
muitas vezes e, em geral, de formas pouco ortodoxas; ela se entregou com
confiança e, entretanto, custava-lhe expressar o que desejava.
—Por que não me diz?
Rafaela lhe sussurrou ao ouvido:
—Tenho vergonha.
Artemio refletiu que nunca uma mulher tinha despertado nele tanta paixão e
ternura ao mesmo tempo.
—Não me daria vergonha porque confio em você. Você se confia em mim?
—Sim. Em ninguém confio como em você, senhor Fúria.
—Rafaela —sussurrou ele, e levantou os braços para lhe embalar o rosto com as
mãos.
Ela se reclinou sobre ele e voltou a lhe falar com ouvido:
—O direi. Direi o que quero. Quero que meus mamilos estejam em sua boca e
que você os chupe como se estivesse alimentando-se de mim —as pupilas de Fúria
se dilataram e Rafaela sentiu no ventre a pressão de seu membro que crescia—.
Quero também que me chupe aqui —disse, e apontou para a parte entre as penas.
—Onde? —instigou-a ele, com uma voz escura que a emudeceu—. De onde estou
não vejo. Diga-me o nome desse lugar.
—Não sei —admitiu, em um fio de voz, e em seguida adicionou—: Na verdade não
sei seu nome, mas sei como se chama seu dono. Ele é o gaúcho Artemio Fúria, o
único que a teve alguma vez, ele único que a terá sempre.
Com um movimento rápido que a assustou, Fúria se levantou e ficou sentado
frente a ela, rodeado por suas pernas. Então, ele inclinou sua cabeça e lhe deu o
que ela tinha pedido. E depois, enquanto a tinha saciada entre seus braços,
confessou-lhe:
—Quando a olho, minha Rafaela, vejo minha mulher, a única que quero, a única
que desejo, a que levo cravada aqui —e se golpeou o peito—. Não chore, Rafaela.
Não lhe hei dito isto para que chore.
—Choro de felicidade, Artemio. Agora me dou conta de que esta a primeira vez
que sou feliz. E o devo a você. Meu senhor Fúria.
***
Roger Blackraven e seu anfitrião, Abelardo Montes, conversavam depois do
jantar, desfrutando de um excelente conhaque e de uns charutos com o tabaco de
La Isabella, o imóvel de Blackraven em Antígua. Depois de discutir assuntos de
negócios, Montes comentou:
—Seus compatriotas andam querendo ficar no Rio da Prata. Parece que o

138
comércio aqui lhes dá bem. Mas Cisneros se mostra relutante a lhes permitir que
fiquem. Os ingleses se uniram, formando um pequeno comitê. À cabeça está
Alexander Mackinnon, cujas gestões obtiveram que o Surdo prorrogasse o prazo
até em 18 de abril.
—Estive com eles em Buenos Aires. Comentaram-me a situação.
—O doutor Moreno é seu notário. Estão bem representados —assegurou—, e
farão o possível para ficar, inclusive tirar Cisneros.
—Seriamente? —Blackraven simulou surpreender-se.
—As águas estão muito turbulentas, Roger. A marejada que açoita a Espanha
alcança estas costas. A rapaziada crioula anda com os esporões de ponta. Não
querem saber nada com que nos governem Juntas espanholas, as quais, segundo
eles, não têm soberania sobre nós. Alegam que nós pertencemos à Coroa da
Espanha, ou à a Espanha mesma. E se a Coroa não está, dado que Napoleão está
preso, então nós temos direito a nos governar por nossa conta. Em meio deste
cenário, os comerciantes ingleses aproveitam a situação. Além disso, contam com
o apoio da frota inglesa infiltrada nas costas do Prata. Querido amigo, estamos
sentados em um paiol de pólvora.
Mais tarde, antes de retirar-se do quarto que Blackraven compartilhava com sua
esposa na estadia de São Isidro, propriedade dos Montes, cruzou umas palavras
com o turco Somar, que tinha acompanhado Melody a São Fernando da Boa Vista.
—Tudo partiu bem. Miss Melody conheceu a senhorita Rafaela Palafox e passou
um momento agradável. Embora ocorreu algo que chamou minha atenção.
Apareceu um homem, um patrício, pelos objetos que usava, embora de aspecto
estranho.
—A que te refere com "aspecto estranho"?
—Que era loiro, muito loiro, e seus olhos de uma cor turquesa similar ao de miss
Melody. Ela se mostrou muito surpreendida ao vê-lo e ficou olhando-o fixamente.
A senhorita Palafox o apresentou. Disse que se chamava Artemio Fúria.
—Sim, hei-o sentido nomear. É amigo de Eddie —Somar ensaiou um gesto de
assombro—. Está bem, Somar. Vai descansar. Boa noite.
Blackraven partiu para seu dormitório com um ânimo negro. Encontrou a sua
esposa amamentando Rosie, e Melody acreditou que a olhada que lhe dispensou
se devia a isso; fazia meses que lhe pedia que desmamasse à criatura. "Terminará
pele e osso", reprovava-lhe freqüentemente.
A menina ficou adormecida com o mamilo na boca. Melody lhe limpou o leite do
canto da boca, obrigou-a a arrotar e dormindo a recostou no berço que se
localizada ao lado da cama. Aproximou-se de seu marido e lhe abraçou o torso nu
por detrás. Em seguida percebeu sua irritação.
—O que ocorre, Roger?
—Como foi esta tarde em Palafox? —disparou ele.
—Bem, embora...
—Embora o que?
—Aconteceu algo que me deixou inquieta. Enquanto compartilhávamos umas
bebidas no pátio da casa, apareceu um homem, um peão, imagino, ao que Rafaela
apresentou como a pessoa que está fazendo-se carrego da administração da
estadia. Seu nome é Artemio Fúria.
Blackraven girou com brutalidade, e Melody advertiu a ira que fulgurava em seus
olhos azuis.
—O que há com o tal Fúria?

139
—É que... OH, Roger! De repente pensei que tinha a meu pai frente a mim.
—O que?
—Sim, a meu pai. Fúria me recordou isso de um modo tão vivido e intenso que
fiquei olhando-o como tola. Dava um espetáculo lamentável, sei. A impressão me
fez atuar assim.
—O que pode ter em comum um homem da campanha com seu pai?
—Embora seu cabelo fosse loiro, não como o de meu pai, que era avermelhado,
assim, como o meu, suas feições e seus olhos eram os dele. Não posso tirar-me o
da cabeça.
—Tem certeza que recordava a seu pai.
—Sim, vividamente.
Blackraven experimentou alívio quando o ciúme se esfumou. Terminou de tomar
banho e se meteu nu na cama.
—Vem —ordenou a sua esposa, que acomodava a roupa e o equipamento—.
Deixa isso, mulher. Necessito-te aqui comigo.
Melody se deitou junto ele e se aconchegou em seu abraço.
—Que idade crê que tem o tal Artemio Fúria?
—Diria que uns trinta —calculou Melody.
—Ser parecido com seu pai poderia tratar-se simplesmente de uma casualidade
ou Artemio Fúria poderia ser seu bastardo.
—Filho de meu pai? OH, Por Deus...
—Diga-me, carinho, o que sabe da família de seu pai?
—Muito pouco, em realidade. Meu pai não falava de seu passado na Irlanda nem
de sua família, salvo para destrambelhar contra os ingleses e para relatar a ordalía
pela que o tinham feito acontecer quando o torturaram. Nem sequer depois da
chegada da Enda a Bela Esmeralda, ele se mostrou afeto a recordar os velhos
tempos. E Enda, é obvio, jamais mencionava sua vida passada. Mas te referirei o
que sei.

140
Capítulo XII

Deixe-a ir

Artemio Fúria despertou, e inclusive antes de abrir os olhos, sentiu-se contido no


perfume de Rafaela, potencializado pelos suores da noite. Sorriu, sempre com os
olhos fechados, e tomou uma grande porção de ar, que lhe expandiu o peito nu.
Sua memória não registrava outro momento em que tivesse experiente tanta sorte
como nessa manhã junto à Rafaela.
Suas comissuras baixaram lentamente quando ressaibos da tristeza e da fúria,
velhas companheiras de caminho que lhe tinham moldado o caráter, penetraram
em seus pensamentos. Terminou julgando como uma traição o sentimento que o
levava a agradecer estar vivo. Imaginou o rosto de sua mãe, tão nítido depois de
ter visto a condessa de Stoneville no dia anterior, e se esforçou por apagar a
imagem de seu corpo frio e ensangüentado. Queria evocá-la sorrindo e
acariciando-o. Apertou o anel de claddagh (tradicional anel Irlandês) e, pela
primeira vez em vinte anos, falou-lhe em gaélico: "Màthair, o entregarei a Rafaela.
Espero que aproves".
Depois de tanto tempo, a má jogada do destino, a que o tinha preservado dos
inimigos de seu pai aquela noite de 5 de junho de 1790, adquiria uma
significação.
—Fúria.
As pálpebras de Artemio se dispararam. Creóla se inclinava perto de seu rosto.
Assombrou-se de não havê-la escutado.
—O que ocorre? —sussurrou.
—Tem que ir-se. Mencia e Felisarda já estão na cozinha. Não quero que o vejam
sair da casa.
—Que horas são?
—As cinco e meia.
—Caralho —resmungou.
Jamais ficava adormecido. Pensou em Calvú Manque e em outros, que deviam
estar trabalhando no rodeio fazia uma hora.
—Irei à cozinha para evitar que Mencia e Felisarda se metam na casa —propôs
Creóla—. Vá rápido.
Esperou a que a escrava saísse do dormitório antes de apartar o lençol. Moveu-se
com cuidado para não incomodar a Rafaela. Que seguisse dormindo, pensou;
devia estar exausta depois de uma noite como a que tinham compartilhado.
Vestiu-se depressa, sem desviar o olhar de sua mulher, que dormia nua, de lado,
com as mãos sob o queixo e os joelhos perto do peito. Estava tão estática que se
aproximou para verificar que respirasse. Devia estar louco para seguir perdendo
tempo, agachado junto à cama, cheirando-a e lhe acariciando a perna. "É um
segredo", havia-lhe dito Rafaela quando lhe perguntou com o que fabricava seu
perfume, embora depois consentiu em lhe revelar a parte fundamental da fórmula.
"Azeite essencial de rosas, de bergamota e de laranjas doces." Ele quis saber com
que nome o tinha batizado. "Não o batizei de maneira nenhuma em especial",
admitiu ela, "sempre penso nele como em 'meu perfume'. Desde hoje o chamarei

141
Amor". Explicou-lhe que Amor era uma fragrância exclusiva, que ela não vendia a
ninguém. "Embora já não voltarei a fabricá-la", anunciou, "porque conto com
pouco azeite essencial de rosas". Artemio se inteirou de que, a diferença de outros
destilados o de rosa não o obtinha no alambique de seu rudimentar laboratório
mas sim comprava o que importava Demetrio Solo. "Necessitaria milhares de rosas
para conseguir algumas gotas de azeite", explicou. Entretanto, o azeite que
comercializava o farmacêutico Solo custava uma fortuna e ela não podia permitir-
lhe.
Artemio a cobriu com o lençol, beijou-lhe a têmpora e partiu. Achou a seus
homens repartidos entre o rodeio e o curral e lhes informou que em dois dias
partiriam rumo à Garganta de Morón.
***
Rafaela tomava chá de hortelã sentada frente à veneziana da sala principal que
dava à galeria do primeiro pátio. Ñuque, que tecia em seu tear, de vez enquanto
levantava a vista ao escutá-la suspirar. Mimita brincava com sua boneca, batizada
Melody em honra à condessa de Stoneville, perto da banqueta onde Rafaela
apoiava os pés.
A jovem se levou a taça aos lábios e sorveu o chá, fazendo-o jogar em sua boca,
querendo empapar desse sabor que a Fúria tanto gostava. A atitude de repouso
em que se achava, depois de uma jornada de intenso trabalho, não revelava a
verdadeira disposição de seu espírito. Experimentava uma sorte que a conduzia
por divagações que lhe arrancavam um sorriso, por exemplo, agradecer a Deus
que a estadia A Larga se encontrasse em estado lamentável, pois de outro modo
não teria conhecido Fúria; ou pior ainda, agradecer a Deus que seu pai tivesse
participado da passeata do nove, a qual tinha propiciado o abandono de La Larga
e o conseqüente pedido de auxílio de dom Íñigo. Qualquer sofrimento do passado
se justificava à luz dos acontecimentos que a tinham guiado aos braços de Artemio
Fúria.
O tempo de tomar uma decisão se aproximava. Essa manhã, Ñuque expôs seu
desejo de passar a Quaresma na quinta da rua Larga, por isso breve
empreenderiam a volta a Buenos Aires. A idéia de voltar para essa casa, com sua
tia Clotilde e com Cristiana, resultava insuportável. Tampouco desejava enfrentar
a seu pai, apesar de que fazia mais de um ano que não o via. Perguntou-se se
Aarón teria conseguido revogar as demandas que o mantinham em Montevidéu.
Não lhe importava. Rómulo Palafox, cedo ou tarde, jogaria mão de suas conexões e
amizades para ficar limpo e recuperar seu local entre as famílias portenhas. Tudo
voltaria a ser como antes. Seu pai continuaria brigando no seio da Audiência Real
para obter a Executória de Nobreza que certificasse que ele, como bisneto do
marquês de Montalbán, tinha direito ao título e às prerrogativas aparelhadas,
obtidas graças a seus antepassados, os Pinheiral e os Bracamonte, que em tempos
do Carlos II e Felipe III, destacaram-se como militares. Fazia tempo que Rómulo
lutava por esse reconhecimento. Não tinha resultado fácil conseguir o primeiro
documento com o qual se iniciava o penoso trâmite, chamado "certificado de
pureza de sangue", que assegurava que na família Palafox e Binda não existiam
rastros de sangue judia, nem moura, nem negra, nem de outras raças. Eles eram
Cristãos velhos e espanhóis puros e, como tais, nunca se tinham envelhecido
realizando trabalhos braçais.
Recordou a tarde em que Rómulo as congregou em seu escritório e, com orgulho,
procedeu à leitura do certificado, emitido a partir dos papéis atracados de Madrid

142
e graças ao testemunho de dom Martín de Álzaga. Esta família é livre de toda má
raça de mouros, judeus, mulatos e dos recém convertidos a nossa Santa Fé.
Nenhum de seus membros foi castigado pelo Santo Ofício da Inquisição nem por
outro tribunal com pena que induza infâmia. Declara-se que tampouco se
exerceram ofícios braçais nem vis. Embora amasse seu pai, chateavam-na as
moléstias que se tomava para passar a formar parte da aristocracia espanhola.
Vivia-o como uma humilhação; Rómulo mendigava um reconhecimento que, no
fundo, todos sabiam que não merecia. Suspeitava que tinha pago uma forte soma
pelo certificado e que o faria também pela Carta Executória de Nobreza. Doía-lhe a
certeza de que Rómulo evocava de contínuo ao seu pai, Ambrosio Palafox, e nunca
a sua mãe, Engracia Binda, porque esta tinha sido crioula. Parecia esquecer que
sua esposa, Rosalba Barquín, tinha-o sido e que sua filha o era também.
Não queria nem podia formar parte da hipocrisia da casa da rua Larga. Artemio
Fúria lhe tinha ensinado a ser livre. Sua felicidade dependia dele. Não obstante,
uma nuvem cinza se suspendia no horizonte já que se aproximava o fim da
temporada em La Larga e Fúria não mencionava o que ocorreria com eles. Negava-
se a duvidar de sua venerabilidade. A noite anterior lhe tinha confessado que a
considerava sua mulher e que a tinha cravada no coração.
Mimita o viu primeiro. Rafaela girou no confidente ao escutá-la pronunciar seu
"Atiemo". O descobriu no ingresso da sala principal, com esse olhar enérgico que
acusava um rápido domínio da situação. "É formidável", pensou. Embora seguia
sem barbear-se e sua barba lhe espessava com o correr dos dias, a jaqueta
corralera (modelo típico da época na Argentina) e a camiseta que vestia estavam
limpas, e se notava que se asseou depois das tarefas com o gado. Ao tirar o
chapéu, revelou o cabelo preso em um rabo de cavalo; uma trança de couro lhe
circundava a testa. "É formidável, orgulhoso e poderoso", insistiu. Seu porte,
quase aristocrático apesar dos objetos, não a enganava; um substrato de
selvageria espreitava embaixo desse modo desenvolvido e tranqüilo; ela sabia
capaz de matar. Seu olhar impassível ao mesmo tempo se mostrava alerta; os
movimentos desajeitados de seu corpo podiam converter-se nos de um felino.
Pensou que se tratava de um homem complexo e, entretanto, também o julgava
prático e de um grande sentido comum; sobre tudo lhe admirava que, a diferença
dela, tomasse-se as coisas com calma e não lhe temesse à vida.
Artemio cruzou o olhar com os de Ñuque, que, para estupor de Rafaela, dedicou
ao gaúcho um sorriso de gengivas quase desdentadas que não lhe conhecia.
—Ave Maria Puríssima! —saudou o homem.
Com ela não empregava essa fórmula a não ser um "senhorita Rafaela" e uma
inclinação de cabeça com o chapéu ou o lenço na mão. A Ñuque destinava os
modos e códigos que utilizava com sua gente. Rafaela se sentiu marginalizada e
ciumenta.
—Sem pecado concebida —respondeu a anciã—. Entre meu filho, entre. Como
diz que vai?
—Aqui estamos, Quelupén, trabalhando para não perder o hábito —respondeu,
ao tempo que tomava nos braços Mimita e lhe dava um beijo na face.
—Assim eu gosto, meu filho. Porque como diz São Pablo "que não trabalha, que
não come".
—Senhorita Rafaela —disse ao fim, e, de acordo com o que Rafaela esperava,
inclinou a cabeça a modo de saudação.
Fúria se colocou detrás de Ñuque para apreciar seu trabalho no tear. Comentou

143
algo na língua de quão índios arrancou uma gargalhada à anciã, mais incomum
ainda que o sorriso desdentado. Rafaela se localizou junto ao gaúcho, ávida de sua
atenção, doente de ciúmes. Ele moveu a cabeça, e seus olhos turquesa a
imobilizaram. Assim permaneceram por longos segundos, contemplando-se,
falando-se com o olhar, evocando a noite anterior, as palavras compartilhadas, o
prazer recebido e a entrega. Não se tinham topado durante o dia, e viveram esse
encontro como um momento sublime, e o compartilharam em um silêncio
reverencial no que só se escutava o roce do fuso no tear e a respiração
congestionada da menina.
Rafaela percebeu o sigilo com que Fúria lhe ajustava a cintura com seu braço
livre e como, com uma ligeira pressão, obrigava-a a ficar na ponta dos pés para
beijá-la na boca, de lado, com a Mimita no outro braço, olhando-os. Entrelaçaram
suas línguas e brincaram, os lábios de Artemio engoliram os dela. Ele terminou
abandonando a cintura de Rafaela para lhe sustentar a parte posterior da cabeça
e introduzir-se em sua boca até sentir que a afogava. Cuidou-se de não fazer ruído
ao separar-se. Não queria que Ñuque os visse em uma situação comprometedora.
Mimita os observava sem alarme nem condenação, como se tivesse presenciado
em várias ocasiões um beijo dessa natureza. Rafaela e Artemio lhe sorriram, e a
menina lhes respondeu de igual modo. Rafaela exultava de alegria. Eles formavam
uma pequena família.
Fúria se inclinou em seu ouvido e lhe pediu:
—Sirva-me chá de hortelã assim levo o sabor de sua boca todo o tempo na
minha.
Enquanto servia a infusão, Rafaela o escutou retomar o diálogo com Ñuque
nessa língua cacofônica e gutural. Aproximou-se e aguardou que Fúria
depositasse Mimita no chão antes de lhe entregar a taça.
—Por que a chama Quelupén?
—Porque esse é seu nome.
—Seu nome é Ñuque —teimou Rafaela.
—Ñuque significa mãe —explicou Fúria—. Quelupén é seu nome.
—Por que alguma vez me há dito que Quelupén é seu nome?
—Porque nunca o perguntaste —respondeu a anciã.
—Estivemos te chamando "mãe" toda a vida —se admirou Rafaela.
—Assim é —afirmou Ñuque, e se acomodou na cadeira para continuar com seu
trabalho—, Diga-me, meu filho, quando é que parte de La Larga?
—Em dois dias.
Rafaela o buscou com o olhar, sem êxito; Fúria contemplava o tear de Ñuque. O
desespero e o medo ganharam o ânimo. Ele tinha decidido que partia e em tão
somente dois dias. Nada lhe havia dito, nada lhe tinha mencionado. Apoiou a taça
sobre a mesa com a mão tremendo. Mordeu o lábio e apertou os olhos para refrear
as lágrimas.
Um latido retumbou no espaço. Todos se voltaram para a soleira. Rafaela
pensou, com alívio: "Ah, é Poupée que ladra!", e em seguida caiu na conta de que
seu pai, com Cristiana do braço e Aarón a seu lado, acabava de aparecer na sala.
A cena se tornou confusa.
—O que faz este marreteiro23 em minha sala? —perguntou Rómulo Palafox, e
agitou a mão enluvada em direção de Fúria.
23
Possui vários significados, inclusive malandro, andarilho, bandido, ambulante.

144
—Pai! —conseguiu articular Rafaela, e avançou para ele.
Horas depois, na solidão de seu dormitório, Rafaela repassaria esses momentos e
concluiria que tinha atuado como uma autômata e com a impotência de quem vive
um pesadelo.
—Pai! —exclamou de novo—. Que alegria vê-lo!
—Rafaela —insistiu Rómulo—, o que faz este cafajeste aqui?
—Pai, por favor! Não fale assim. O senhor Artemio Fúria —e, em tanto falava,
afastava-se de seu pai para aproximar-se do gaúcho— é amigo de dom Juan
Andrés de Pueyrredón.
A Fúria o humilhou e exasperou que Rafaela jogasse mão dessa conexão para
dignificá-lo aos olhos de seu pai. Os olhares se cruzaram. Ambos os sustentaram
com império, como se tratasse de um cotejo de forças. As explicações de Rafaela se
converteram em um som longínquo, sem importância.
Com suavidade, Rómulo desprendeu o braço de Cristiana e avançou para Ñuque,
a quem beijou na frente. Voltou-se para sua filha. Artemio teria desejado que a
expressão de Rafaela não comunicasse tanto medo nem submissão.
—Faça o favor de abandonar esta casa - ordenou a Fúria, sem olhá-lo.
—Não —se opôs Rafaela—. O senhor Fúria me há...
—Cale-te, Rafaela! —explorou Rómulo—. Comportaste como uma prostituta —
Rafaela levou a mão à boca e retrocedeu, com os olhos bem abertos. A comoção
não a salvou de escutar a risada de Cristiana—. Envergonhaste-me —continuou
seu pai— e enlodaste meu nome vendendo esses xaropes que fabrica à pérfida da
Bernarda de Lezica, que o contou a todo mundo. Passeaste-te por toda a cidade
com esta criatura —disse, e assinalou a Mimita— quando sabe que te proibi fazê-
lo. Abandonaste a segurança de seu lar junto a sua tia Clotilde e te refugiaste em
La Larga para conversar em minha sala com personagens da pior classe —e
apontou a Fúria.
—O senhor Fúria não é nenhum personagem da pior classe! Você não tem
autoridade moral para julgá-lo! —demarcou, com a vista em Cristiana, que se
ruborizou atrás do leque.
Até a Rafaela, a resposta lhe resultou excessiva. A Rómulo, inesperada. Tomou
um segundo reagir. Levantou o braço para lhe pegar. Uma força o deteve.
—Não lhe ponha um dedo em cima.
Havia uma nota sinistra na voz desse homem, como se proviesse do além. Esse
tom rouco, quase de sussurro, falava de um poder subjacente e letal, o qual não
terminava de dissimular-se no modo certeiro e aprazível com o qual tinha sujeito a
mão de Rómulo. Essa periculosidade vibrava também em seus olhos, de uma cor
antinatural, onde ardia uma fúria que os tornou escuros em questão de segundos.
Pasmavam a segurança com que atuava e a superioridade que comunicava sua
figura alta e solidamente construída. Contudo, Palafox não teve oportunidade de
sentir-se intimidado nem envergonhado já que se mantinha imóvel, subjugado por
esse a quem tinha chamado marreteiro, quão mesmo o resto, inclusive Ñuque.
Dava a impressão de que a casa mesma tinha sujeito o fôlego.
—Como se atreve? —atinou a balbuciar.
Artemio levantou a comissura, e Rafaela se estremeceu. Conhecia-lhe esse gesto
macabro que simulava um sorriso.
—Por favor, senhor Fúria —lhe rogou—, deixe ir a meu pai.
O sorriso de Fúria se transformou em uma careta de aberto desprezo. Girou a
cabeça com deliberada lentidão para observar a mão que sustentava na atitude de

145
considerar a possibilidade de soltá-lo.
Rafaela testemunhou o instante em que o rosto do gaúcho mudava e lhe
congelava a expressão em uma careta de estupor. Desfez-se da mão de Palafox
como se esta o tivesse queimado.
—Que caralho...? —articulou em voz baixa, curto de fôlego, enquanto caminhava
para trás—. Que merda... ?
Rafaela avançou para ele, com os braços estendidos.
—Senhor Fúria —suplicou, mas seu pai, de um empurrão, atirou-a ao chão.
Cristiana e Aarón se apartaram para dar passo a Artemio, que abandonou a sala
em poucas e largas pernadas.
Rómulo orientou sua ira e orgulho ferido para a Rafaela e a esbofeteou.
—Como ousa me rebaixar frente a esse dom Ninguém? —descarregou seu punho
uma vez mais em sua filha—. Como permitiste que ingressasse nesta casa? É uma
perdida!
—Rómulo! —a voz de Ñuque soou com firmeza—. Deixe-a! —Palafox se abaixou,
e, ofegando, e sentou em uma cadeira—. Aarón, ajuda a sua prima a levantar-se.
Creóla! —a escrava devia estar espiando pois apareceu rapidamente—. Leva a sua
ama a seu quarto. E você, Peregrina, lhe diga a Mencia que lhe prepare uma
infusão de pasionaria, merlisa e cedrón. Vem, Mimita —disse ao cabo, abrandando
o tom de voz—, Vem, carinho. Não chore.
***
Artemio saltou sobre os arreios e proferiu um grito que fez encabritar ao Regino,
seu parelheiro. Ao cair os cascos sobre o terreno, o baio saiu disparado a uma
velocidade que impedia de distinguir suas patas. Fúria carregou o torso sobre a
sela de Regino e lhe permitiu entrar na planície, sem rumo, tão somente punha
distância entre eles e o casco de La Larga. Entre ele e Rafaela.
Não queria refletir sobre o que acabava de viver na sala dos Palafox. Apertava os
olhos para não voltar a ver o que trocaria sua vida e selaria um destino perverso.
Fazia chiar os dentes para não romper em pranto e, um segundo depois, soltava
uma gargalhada com lagrimas entre o irônico da situação.
Regino perdia força. Fúria, também. Já não conseguia reprimir a raiva, o rancor
e, sobre tudo, a dor que lhe esticavam o corpo. Avistou um umbuzeiro; perto havia
um rancho. Aproximou-se a trote ligeiro. Vários cães magros começaram a ladrar.
Apeou e os espantou agitando os braços e soltando ameaças. Uma moça correu o
tecido que servia de porta e o olhou.
—Ave Maria puríssima —saudou Artemio.
—Sem pecado concebia.
—Ando querendo um pouco de água para meu cavalo, nada mais.
—Está Passe.
Além da água para Regino, a moça lhe entregou um chifre com gin um assobie
com genebra e um prato com guisado. Devorou-o em silêncio e bebeu mais do que
devia.
—Quer colocar seu recaio aí, para descansar?
Estudou-a com impertinência. A moça não se mostrou ofendida; pelo contrário,
sorriu-lhe e balançou os quadris em um tácito convite.
"Não está nada mal", disse-se. "Além disso está sozinha." Apresentava-se um
bocado fácil e tentador, e em tanto seguia aquilatando-a, o rosto de Rafaela se
desenhou em sua mente. "Como cheirará esta China? Raios", concluiu. "Merda!"
Antes a teria volteado sobre a cama sem olhares nem melindres. "Antes", repetiu.

146
—Obrigada, mas devo seguir caminho.
—A estas horas? Já é quase noite. E esta parte está cheia de vizcacheras
(mamífero parecido com esquilo) e tocas de tatu. Podem aleijar o pingo, e seria
uma pena. E bem bonito. Como seu dono —adicionou, com um riso.
Despediu-se da moça e montou de um salto. Afastou-se ao galope. A comida e a
bebida tinham melhorado seu ânimo, como se tivesse recuperado o sangue.
Entretanto, o cansaço o decidiu a fazer noite em meio do pampa. Desceu da sela e
travou as patas dianteiras de Regino com uma manea. Se tivesse montado a
Cajetilla , o teria deixado solto; deste parelheiro, ainda não se confiava. Estendeu
a manta no chão, colocou o cojinillo para brandura e usou os bastos da montaria
como travesseiro. Escondeu o atirador e colocou à mão a faca antes de tornar-se e
atar um cigarro. Cobriu-se com o poncho de lã.
Com o braço esquerdo sob a cabeça, fumava e contemplava o contraste entre a
luminosidade da lua e das estrelas e o negro da abóbada noturna. Embora
necessitasse da solidão do campo, ansiava por Rafaela a seu lado. "Rafaela",
sussurrou, desejando que ela pudesse ver esse céu e que ele pudesse sentir seu
calor perfumado. Sabia que atuava como um covarde e que se negava a enfrentar
a verdade desvelada na sala dos Palafox. Não se deteria nisso, não ainda, e seguiu
refletindo nela, no beijo que lhe roubou sob o pé de damasco, no pala-pala, na
carruagem do abrigo onde a tinha amado tantas vezes. "Chuña, Minha Chuñita."
Colocou a mão sob a carona24 e pinçou em seu atirador até extrair o lenço
perfumado. Esmagou-o contra seu nariz e inspirou. Persistiam alguns rastros da
fragrância, a de rosas, bergamotas e laranjas doces, a que só ela usava, a que
resumia sua essência, a um tempo feminina e vigorosa.
Sem propor-lhe terminou analisando a expressão de Rafaela ao descobrir na sala
a seu pai do braço de Cristiana. O assombro e a incredulidade a impulsionaram a
abrir de um modo desmesurado os olhos. Seus lábios se separaram, as mãos lhe
caíram como mortas aos flancos do corpo; não obstante e face à surpresa, achou a
fibra para defendê-lo, ela, uma menina decente, preconceituosa e de princípios,
submetida à autoridade paterna e ao medo, tinha-o defendido, a ele, a um
marreteiro. "minha Rafaela." As lágrimas brotaram ao tempo que um sentimento
quente pugnava contra o frio de sua alma. Sabia que essa seria a última
oportunidade para chorá-la e amá-la porque se aproximava o momento em que, ao
enfrentar a verdade, a apartaria para sempre de sua vida.
Levantou-se de modo súbito e brusco, e assustou Regino. Artemio descansou a
frente sobre os joelhos flexionados, enquanto fechava o punho em torno do lenço.
Agüentou a tensão na garganta e no rosto até que, vencido, soltou um uivo rouco e
profundo que estremeceu a ordem do pampa. Chorou com raiva, mordendo o
punho, apertando os dentes até sentir dor nas gengivas, insultando e
amaldiçoando ao destino que lhe tinha jogado sujo ao lhe entregar o que
procurava desde fazia anos em troca de um preço muito alto preço: Rafaela. Não
tinha pago suficiente com a perda de sua família? Agora também lhe arrebatava ao
amor de sua vida.
A verdade resultava arrepiante. Haver-se apaixonado pela filha de um dos
assassinos de seus pais era algo para o que o gaúcho Fúria não estava preparado,
porque, sem dúvida, a mão de Rómulo Palafox era a que ele tinha visto, do

24
Peça da montaria dos cavalos. Consiste em uma peça lisa de couro, sobre a qual se coloca a sela.

147
baú, a noite da tragédia. Jamais a esqueceria; a teria identificado entre milhares.
Não só se tratava da falta do polegar nem do anel que lhe ocupava uma falange no
índice da mão direita, mas sim das características de suas unhas, do comprido de
seus dedos, da rugosidade da pele, do tamanho da palma, da cor dos nódulos,
médio amarelados, do largo das articulações, do calo manchado com tinta junto à
unha do dedo maior. Tinha visto essa mão em detalhes e a levava impressa na
retina fazia vinte anos. Lembrou-se da inquietação que lhe tinha causado a marca
do gado de Palafox, uma P e uma R, justapostas, uma cópia das do anel; em
realidade, uma R e uma P, Rómulo Palafox. Sentia saudades que não as tivesse
reconhecido durante a yerra.
Ficou estragado pela raiva e o pranto, fraco também, com as extremidades
intumescidas. Separou a cabeça dos joelhos e a ergueu, sumido em uma sensação
de pesadez. Ao secar as lágrimas com o lenço e limpar os olhos, descobriu Quinto
frente a ele, sentado sobre seus quartos, observando-o com solenidade. As
comissuras de Artemio Fúria se moveram em um gesto que não chegou a formar
um sorriso.
—Vem, amigo —pediu-lhe, com voz áspera—. Aproxime-te —o puma caminhou
sobre a colcha e se deteve centímetros de Fúria—. Você chegou justo quando te
necessito. —admitiu o homem.
***
Acabado o jantar, compartilhado em um ambiente tenso e de caras largas, Aarón
Romano decidiu sair da casa a fumar um charuto que armava com o tabaco que
sua prima Rafaela perfumava com âmbar. Pensou nela, encerrada em seu
dormitório. Rómulo não lhe tinha permitido jantar com eles. De igual modo, Aarón
duvidava de que Rafaela tivesse aceito acompanhá-los. Poucas vezes a tinha visto
tão alterada, e nunca, contradizer a seu pai e lhe faltar ao respeito. "E tudo por
defender a esse vacante." Artemio Fúria, um nome lembrado com freqüência nas
mercearias do Baixo. Havia quem o admirava e quem o odiava, e até estes
preferiam manter-se fora de seu caminho e não despertar a fúria que, diziam,
tinha-lhe dado o sobrenome.
Segundo os rumores, não se tratava de um gauderio (gaúcho) a mais. Embora
errante e com pinta de vadio, era matreiro como uma cobra, com ascendência
entre os peões e camponeses, e dono de um porta-níqueis bem gordo que tinha
começado a encher graças ao comércio com as províncias, para o qual se servia
das carruagens de seu patrão, Ismael Santos, a quem despachou de uma cutilada.
A viúva de Santos, Dolores García, que vivia em Córdoba, ainda o recebia com
gosto em sua cama. Fúria se dedicava ao furto e ao contrabando de gado, de
couros e de toda classe de mercadorias. A diferença de seus pares, não esbanjava
os reais jogos nem em bebida. Corria o rumor de que viajava de modo incansável
pelo Vice Reinado do Rio da Prata em busca de seus piores inimigos, a quem tinha
jurado despedaçar. Não se sabia quem nem quantos eram nem por que se
granjearam seu ódio. "Esses pobres diabos", asseguravam os paroquianos, "são
dignos de compaixão. Têm a sorte em cheque. Ninguém se salva do guampudo25
nem da Fúria de Artemio Fúria".

25
Facão ou faca com cabo de chifre utilizado pelos gaúchos.

148
O homem contava com a amizade dos Pueyrredón e de vários dos bagunceiros, os
que se reuniam no Café de Marcos a destrambelhar contra o Surdo e o regime
colonial. Tinha contado seu amigo, Tomás de Grigera, o prefeito das Colinas de
Zamora, que conhecia fúria porque tinha tido entendimentos com ele. "Olhe,
Romano", tinha-lhe referido Grigera naquela oportunidade, "se o gaúcho Fúria o
propor, poderia levantar em rebelião na metade da campanha, como o fez no ano
seis quando, junto com dom Juan Martín" —falava de Pueyrredón— "formou exército
para expulsar aos ingleses. Esses patrícios som uns centauros endemoninhados e o
seguem e respeitam. Fúria é seu líder". Aarón admitia que, depois da descrição
provida de Grigera, uma mescla de inveja, medo e reverência o assaltava cada vez
que o nomeava. Essa tarde, ao conhecê-lo, a impressão o deixou pasmado. Fúria
era loiro, de olhos celestes e de uma imagem que falava de antepassados vikings.
Evocou o instante em que seu olhar se cruzou com a do gaúcho. Algo sinistro
habitava nele.
Terminou de fumar e se encaminhou ao posto de dom Íñigo. Esperava encontrá-
lo sóbrio. Golpeou as mãos perto da ramagem e vários cães saíram a recebê-lo.
—Dom Aarón! —surpreendeu-se Mencia—. Entre, entre, por favor.
—Não, não. Diga a dom Íñigo que saia.
—Como você mandar, dom Aarón.
"Está ébrio", concluiu ao vê-lo cambalear-se. "Possivelmente seja melhor",
pensou. "Os bêbados sempre dizem a verdade."—Dom Aarón. Boa noite, patrão.
—Vem. Caminhemos para o curral.
Ao afastar do posto, Aarón se voltou e olhou com desprezo ao capataz.
—Que merda passou com o gado? Meus homens dizem que o arrebataram uma
noite, e que você formava parte do grupo que o fez.
—Eu não matei ninguém, dom Aarón —balbuciou Íñigo, ao bordo do pranto—.
Fúria e seus homens despacharam a vários e perdoaram a vida a outros. Eu não
fiz nada.
—Que caralho faz Fúria aqui?
—Eu fiz tudo o que sua excelência me mandou. Depois do roubo, pedi-lhe a um
comerciante que lhe escrevesse essa nota à menina Rafaela, para que não
suspeitasse de mim. Ela apareceu aos dias e, pouco depois, apresentou-se Fúria.
Diz que o mandava dom Juán Andrés para ajudar à menina. Ele ficou ao mando,
recuperou o gado e colocou ordem por todos os lados.
—Faz muito que chegou a La Larga?
—Muito, quase três meses.
—Merda —resmungou Aarón.
O gaúcho Fúria lhe tinha arruinado um negócio certo. O dinheiro obtido com o
furto o teria destinado às obras do bordel e da casa de jogo clandestino como
também a devolver o platal26 que devia a Bernarda da Léxica. Encontrava-se em
um apuro.
—Tive-me que fazer o tolo, dom Aarón, porque me deu medo de que esse
malandro do Fúria se desse conta de que eu havia tido algo que ver com o roubo
do gado. Vi-me no aperto de ter que ajudá-lo a recuperá-lo, porque haveria
suspeitado de mim, se não. Você não o conhece, o Fúria, é um homem mal. Quem
sabe quantos Cristãos mandou ao outro mundo graças a seu guampudo! É

26
Grande quantidade de dinheiro.

149
matreiro como uma raposa. E que tem esporões! Ninguém sabe como ele conhece
as tarefas do campo. Não é fácil passá-lo para traz.
Irritado com o elogio, Aarón o mandou calar.
***
Em que momento a felicidade se transformou em um inferno? A partir da tarde
do dia anterior, até respirar lhe significava um esforço. Depois de uma noite
acordada, quão pior recordava, não tinha encontrado consolo no amanhecer.
Assaltavam-na escuras premonições. Segundo a informação solicitada por Creóla,
Artemio Fúria partiu de La Larga e nem Calvú Manque sabia aonde. Seu pai a
desprezava e a mantinha encerrada no dormitório. Jamais o tinha visto tão
furioso. Cristiana devia estar desfrutando-o. "Maldita Cristiana!" Desejava-lhe toda
classe de torturas. Desejava-lhe a morte. "Não, não!", arrependia-se, assustada
dos escuros abismos de seu coração.
Escutou a chave que girava na porta e se ergueu da cama. Ñuque entrou com
uma bandeja que parecia mais pesada que ela. Depositou-a sobre a penteadeira e
se encaminhou para a Rafaela, que se abraçou a ela e afundou o rosto em seu
colo.
—Está tudo bem, minha. Não chore. Tudo se solucionará.
—O senhor Fúria me chamava assim, "minha Rafaela". Onde está ele, Ñuque?
Preciso vê-lo. Preciso vê-lo com desespero.
—Não sei. Não o vi hoje. Ninguém o viu.
O pranto de Rafaela recrudesceu. Ñuque, em silêncio, ajudou-a a tomar banho e
a trocar-se. Penteou-a e a obrigou a tomar a sopa e a beber o leite. Embora em um
princípio Rafaela se opôs a comer, depois reconheceu que se sentia mais animada.
—Pode sair de seu dormitório. Seu pai lhe permitiu isso.
—Meu pai —disse, e suas palavras destilaram ódio—. Chegar aqui, de braço com
essa rameira. E insultar ao homem que salvou sua estadia da ruína. Ao homem
que recuperou seu gado de mãos dos ladrões, a risco de sua própria vida. Detesto-
o, Ñuque! Com toda minha alma!
—Sempre foste mulher de emoções extremas —comentou a anciã—. E mais de
uma vez te vi te arrepender de sua veemência. Acalme-te e sai um momento. Fará
bem a você passar umas horas em seu laboratório ou em seu jardim.
Rafaela, em troca, se escapuliu para a zona dos currais e se refugiou no abrigo.
Subiu à carruagem e se recostou sobre as mantas. Albergava a ilusão de que
Artemio Fúria a buscasse nesse local onde tinham feito o amor. Ficou adormecida.
Ao despertar comprovou que seu sonho não se tornou realidade; estava sozinha.
Dirigiu-se à zona dos postos. Ali topou com o Calvú Manque e outros, que
entravam e saíam dos ranchos com vultos e trastes.
—Vamos, senhorita —lhe informou o índio—. Seu pai nos achará.
—Sinto-o —balbuciou Rafaela—. Estou tão mortificada e envergonhada.
—Não se preocupe, senhorita. Artemio já nos havia dito que em dois dias iríamos
de La Larga.
—Sabe algo dele? Onde está, Calvú?
—Não sei, senhorita. Eu levarei suas coisas e ao Cajetilla . Ele anda com Regino.
Rafaela assentiu, sem atrever-se a lhe pedir que não se levasse os pertences de
Fúria. Queria lhe dar uma desculpa para retornar.
—Meu pai lhes pagou as jornadas que lhes devia?
—Não, senhorita. Disso se ocupava Artemio.
—Como? Acaso não lhes pagava dom Juán Andrés?

150
—Pois sim, no início. Depois, pagava-nos Artemio, de seu bolso. Não me ponha
assim, senhorita! —suplicou-lhe o índio, ante os olhos alagados de Rafaela—. Ele o
fazia com muito prazer, para ajudá-la.
Rafaela secou as lágrimas e se limpou o nariz com dissimulo antes de despedir e
agradecer ao resto da partida. Os homens tiraram os chapéus e a saudaram com
uma inclinação de cabeça.
—Calvú —disse Rafaela, e voltou sobre seus passos—, quando vir ao senhor
Fúria, lhe diga... Não, não lhe diga nada.
***
Cristiana e Poupée entraram na sala principal com graciosa atitude. Ñuque
levantou a vista do tear, estudou-a uns segundos e reiniciou o trabalho. Mimita,
que brincava no chão com sua boneca Melody, proferiu um grito e se subiu às
pernas de Peregrina, que cevava mate sentada no tapete. A pequena cadela, que
professava uma animosidade especial pela menina, correu até ela e começou a
saltar e a ladrar. Peregrina ficou de pé de um salto, enquanto Mimita se
encarapitava até seu pescoço. Tremia e gritava. Peregrina também.
—Tira sua cadela daqui! —ordenou-lhe Ñuque, enquanto Cristiana ria dos torpes
intentos da Mimita por ficar fora do alcance de Poupée. Sempre lhe tinha parecido
uma criatura desagradável, mas, gesticulando pelo medo e o pranto, encontrava-a
repulsiva.
Rafaela viu a cena antes de ingressar na sala. Correu pela galeria e se equilibrou
dentro. Chutou Poupée, que proferiu um ganido e terminou sob o tear de Ñuque.
Girou sobre si e descarregou seu punho no rosto de Cristiana, que aterrissou
sobre o sofá, com o penteado desfeito. Apartou-se as mechas para ver sua prima
arrancar Mimita dos braços de Peregrina. A menina escondeu o rosto no pescoço
de Rafaela e pôs-se a chorar.
Chateava-a o vínculo entre a Mimita e sua prima. Embora lhe custava admiti-lo,
sentia ciúmes, raiva, dor. Embora pensou: "Oxalá Mimita tivesse morrido ao
nascer!", em ocasiões desejava amar a sua filha. Esse desejo se desvanecia quando
Cristiana se dizia que, além da potencial oposição de Rafaela, Rómulo se negava a
desposá-la por temor a que, de sua união, nascesse outro espantalho como essa
menina. Por outra parte, intuía que seu tio considerava Mimita um castigo divino
pela relação incestuosa que mantinham.
A três anos do parto, ainda recordava as horas de sofrimento indescritível nas
que Rafaela se manteve a seu lado, lhe segurando a mão, lhe secando o suor, lhe
dando de beber aguamiel, animando-a a empurrar. Nunca a abandonou, a
diferença de sua mãe, que delegou o assunto nas mãos de Ñuque e não retornou
até a manhã seguinte. "É uma menina e está morta", opinou a Índia quando por
fim o bebê saiu de seu corpo. Depositou-o no chão, sobre um lençol. Cristiana
jamais esqueceria a impressão que lhe causou a cor azulada das feições de sua
filha, com um matiz violáceo em torno dos lábios. "Tudo terminou", pensou.
Fechou os olhos e em seguida voltou a abri-los ao escutar o pranto de Rafaela.
Viu-a ficar de cócoras junto à criatura e tomá-la em braços; viu-a beijá-la na
cabeça, nas pálpebras e na frente, e acomodá-la sobre suas pernas e, com um
bálsamo —de cânfora, a julgar pelo aroma—, lhe massagear o pequeno torso, os
bracinhos, as mãozinhas e as pernas. O fazia com tanta delicadeza e lentidão que
Cristiana começou a adormecer-se. Um grunido a sobressaltou, ao que seguiu um
gemido tênue. "A menina respira! A menina vive!", exclamou Rafaela, e Ñuque se
moveu com agilidade para assisti-la. Chamaram-na Milagres, porque, na verdade,

151
vivia de milagre. Graças a Rafaela, que lhe havia devolvido o fôlego. Cristiana
refletiu que Mimita poderia haver falecido dias mais tarde, de fome, pois ela se
negava a amamentá-la e o leite de burra lhe causava diarréia. Então, conheceu a
índole oculta de sua prima, violenta, forte e cruel. "Amamente-a", ordenou-lhe,
enquanto colocava à criatura em seu colo. "Faça-o! Ou seus amigas aristocratas
saberão que pariste a uma bastarda. Juro-te pela vida de meu pai que o
farei."Poupée a devolveu à realidade saltando sobre suas pernas, em busca de
consolo. Cristiana se precaveu de que o pranto de Mimita a adoeceria, em tanto
Rafaela dava palmadinhas nas costas e cantava uma canção de berço. A cena lhe
resultou intolerável.
—É a segunda vez que me golpeia, Rafaela. A próxima vez...
—A próxima vez —a deteve— A cortarei. Adverti-te que mantivera longe a esse
feto diabólico. Adverti-lhe isso e não me fez conta.
—Quem é você para que eu te faça conta?
—Sou a proprietária de casa! Da casa onde você, sua mãe e seu irmão vivem
como recolhidos!
—OH!
—O que ocorre aqui? —a voz de Rómulo trovejou na sala.
—Tio! —Cristiana se levantou e correu a refugiar-se nos braços de Palafox—.
Rafaela me golpeou!
—Sim, golpeei-te, e a próxima vez te deixarei cortada.
—Parecem duas bandoleiras da Recova.
—Eu não me comportei como uma bandoleira, tio.
—É certo, você não é uma bandoleira —apontou Rafaela—. É um ser macabro
que desfruta vendo como um animal manhoso e perverso machuca a uma criatura
indefesa.
—Basta! —impacientou-se Palafox.
Cristiana baixou a vista; Rafaela, em troca, sustentou a de seu pai, Não
descobriu nele a irritação do dia anterior; pelo contrário, julgou-a um olhar
predador. Contemplou-os alternadamente, a seu pai e a, Cristiana, e soube que
jamais falaria de modo franco sobre seu namoro. Algo muito profundo nela o
impedia. Deu meia volta e partiu com Mimita nos braços. Encontrou Creóla no
laboratório. Entregou-lhe à menina e ficou a trabalhar. Abriu duas vagens de
glicinas e jogou as sementes no almirez. Começou às amassar.
—O que faz, minha menina?
—Se estas sementes quase me mataram quando menina, de seguro acabarão
com o Poupée.
—Menina Rafaela! Por amor de Deus!
—Mesclarei a massa com sua comida. Amanhã amanhecerá morta.
—Não, não! Não o faça!
—Jurei-o, Creóla. Jurei a Cristiana que se esse animal importunasse de novo a
Mimita, o envenenaria. E acaba de importuná-la.
—Essa cadela não tem culpa de nada, minha menina. Os animais são como seus
donos os criam. Ela não tem culpa —insistiu—. É culpa de sua prima, de ninguém
mais.
A declaração de Creóla a levou a deter-se. Artemio Fúria havia dito algo similar
ao lhe falar dos cavalos. E com que paixão o tinha feito. Amava a esses animais e
eles a ele, e suspeitava que poucos conheciam de maneira tão acabada a natureza
dessas bestas, as características de sua anatomia, as enfermidades que os

152
afligiam, suas manhas e caprichos.
—Dizem que domar um potro ao índio não é coisa de homens —lhe tinha referido
naquela oportunidade—. Para que, me pergunto eu, lhe quebrar o lombo a pobre
besta que será nosso aliado para não perecer no pampa? Sem o pingo, os
marreteiros não são nada. Eles são nossos verdadeiros amigos. É muito estranho
que se arruíne a um cavalo se o doma ao índio. Em troca, com o modo dos
Cristãos, é mais frequente. Assim muitos bons pingos se perdem, quando, lhes
tratasse com respeito e carinho, teriam sido excelentes. Jogam a culpa ao animal.
Diz que tem muito temperamento, os pontua de estrelleros.
—Estrelleros?
—Porque, como são ariscos, dão cabeçadas, quer dizer, levantam a vista para ver
as estrelas. Inclusive a alguns, manda-se carneá-los. O cavalo É um animal com
excelente memória e não se esquece nem perdoa um mau momento. Por isso é
melhor tratá-los bem desde potros, para que sejam lhes confiem e, portanto,
confiáveis. Ao domá-lo como os índios, obtém-se um pingo com muito pouco uso
de rédea, quase o dirige com o corpo, mediante movimentos e sinais. Isto é muito
bom quando se está caçando, em especial ao avestruz. O cavalo é, pois, como seu
dono o cria —tinha rematado, passado um silêncio.
Rafaela se dirigiu ao poço dos resíduos, localizado-se no pátio da servidão, e
arrojou a massa de glicinas. Teria matado Poupée se sua escrava não a tivesse
detido. Às vezes a assustavam seus impulsos. "Sempre foste mulher de emoções
extremas", havia-lhe dito Ñuque horas atrás. As paixões a tinham dominado desde
pequena, e a esgotava o esforço pelas manter a raia e mostrar uma superfície
calma para agradar a seu pai. Fúria, ao tentá-la com a liberdade, tinha talhado o
nó gordiano que sujeitava sua verdadeira índole. Possivelmente tinha sido um
engano provar essa liberdade porque suspeitava que já não se conformaria com
menos.
Tampouco jantou com sua família essa noite. Uma dor de cabeça a desculpou de
enfrentar a seu pai, a quem terminaria por reclamar que tivesse se despedido dos
homens de Artemio. Ficou adormecida imediatamente, sem conseguiu paz no
sonho. Um pesadelo a despertou angustiada, com uma dor na garganta à força de
reprimir o pranto. Deu-se conta de que tinha dormido pouco, pois a vela não se
consumou. A realidade, que Artemio Fúria se partiu, derrubou-se de novo sobre
ela, e ficou a chorar.
Um som rompeu a mansidão da noite. Deteve o pranto para ouvir. Tratava-se de
um grunhido. Levantou o torso e girou a cabeça. O coração lhe deu um salto. De
pé, ao outro lado da janela, achavam-se Artemio Fúria e Quinto. A alegria e o
alívio arrasaram com a angústia. Saltou da cama e, sem torná-la bata em cima,
cruzou o dormitório à carreira. Abriu a janela de par em par e não reparou no
vento frio que lhe pegou a camisola ao corpo.
Artemio a contemplava dormir fazia um momento. Tinha-a visto agitar-se em
sonhos e despertar. Nesse momento, enquanto observava como se balançavam
seus ombros por causa de um pranto apenas audível, mordia-se o lábio para não
chamá-la e acabar com sua pena. Ele, um homem de grande resistência, capaz de
suportar climas extremos, regiões inóspitas, homens sanguinários e depredadores
ferozes, sucumbia ante a tristeza de sua Rafaela. Entretanto, tinha uma promessa
que cumprir. Seu coração voltou a tornar-se de pedra. Fechou as mãos ao redor
das grades, onde apoiou a testa, arrasado pelo peso de uma promessa e a
intensidade de seu amor. "Vai-te, parte ",insistiu-se. "Esqueça dela. Deixa-a ir."

153
"Só uma vez mais", disse-se. "Quero vê-la uma vez mais. Depois, a deixarei.
"Quinto o delatou. Ou possivelmente percebeu o desejo que o dominava e atuou
por ele. Ao vê-la saltar da cama e correr para a janela, só seu desprezo pela
covardia o manteve quieto, porque, na verdade, teria fugido, subido o muro e
pulado sobre Regino para escapar. Não tinha valor para enfrentá-la, não confiava
em sua determinação.
Ali estava sua Rafaela, de pé frente a ele, contemplando-o com seus enormes
olhos verdes, as pestanas pesadas de lágrimas, os lábios úmidos inchados e
entreabertos, como depois de receber seus beijos. Desejava-a apesar de que fosse
a filha de um homem detestável. Tinha acreditado logo depois de evocar a noite de
5 de junho de 1790, repassando os momentos mais trágicos de sua vida, teria
conseguido exorcizar a imagem de Rafaela e reconstruir a parede de fúria e ódio
que ela tinha demolido.
—Senhor Fúria —disse, e tirou das grades. Artemio lhe cobriu as mãos com as
suas e fechou os olhos quando Rafaela lhe beijou os dedos, molhando-lhe Graças
a Deus, retornou —sua voz quebrada agitou as palpitações dele—. Lamento tanto
o ocorrido ontem na sala. Estou tão envergonhada. Meu pai foi injusto e miserável.
Hoje despediu seus homens, sem lhes dar um cuartillo (uma medida castellana).
—Não se preocupe por isso. Não se preocupe com nada.
Devia partir, não tolerava a hipocrisia. Ele, que planejava destruir Rómulo
Palafox, pedia-lhe que não se preocupasse com nada. Sentiu asco de si.
—Parto-me.
—Sim, sim. Aguarde um momento. Preparo uma confusão de roupa para mim e
para a Mimita e iremos com você.
Artemio colocou a mão entre as grades e a deteve pelos pulsos.
—Parto-me sozinho.
—Sozinho?
—Você pensou que a levaria comigo? —seu acento irônico a golpeou. O orgulho
lhe impediu de responder—. Você é uma menina de sociedade, como pensou que
me levaria isso? Para que? Seria um estorvo. Nem sequer come carne. E na
campanha, só se come carne.
Rafaela deu um passo atrás.
—Por que faz isto, senhor Fúria? Eu acreditei que...
—Que o que? Que nos casaríamos?
—Não. Acreditei que você me amava tanto como eu o amo —Fúria gargalhou para
ocultar o efeito produzido pela declaração—. Por que faz isto ? —insistiu Rafaela—.
Já lhe disse que estou envergonhada pelo comportamento de meu pai. Eu não sou
como ele. Não me castigue.
—Vocês, gente bonita, acreditam ser melhores que todos, com seus sobrenomes
espanhóis e seus costumes pomposos.
—Eu não —soluçou Rafaela.
—Você é igual a todas as pessoas de sua casta. Assim o senti quando seu pai a
viu comigo na sala. Envergonhou-se de mim!
—Não! Jamais!
Esticou os músculos para controlar um tremor. As lágrimas de Rafaela e sua
expressão de menina perdida significavam um duro golpe; não obstante, simulou
um ar desumano. Queria que o odiasse tanto como ele deveria odiá-la por ser a
filha de Palafox.
—A que veio, senhor Fúria? —perguntou-lhe, sem irritação.

154
—Já lhe disse. Para dizer que parto. Para me despedir de você.
A imagem de Fúria se distorceu. Observava-o através de um véu de lágrimas.
Teria desejado ser uma mulher inteligente, de respostas rápidas, como tia Pola;
em troca, permanecia ali, de pé frente à janela, com a grade interpondo-se entre
ela e Fúria, e não atinava a fiar duas palavras. Por experiência sabia que, em
umas horas, elaboraria vários argumentos sólidos e engenhosos para retê-lo. Ela
os precisava nesse instante em que sua mente se mantinha em branco. O
desespero lhe recrudesceu o pranto. Ele a olhava com irreverência, como se a
julgasse pouca coisa, privando a de força e do desejo de viver.
—Vai, então? —Fúria a olhou e não lhe respondeu—. Assim termina tudo?
Viu-o assentir. Rafaela se deslizou até ficar sentada no chão, com a testa sobre
as grades. Artemio desejava consolá-la contra seu peito, deixar-se enfeitiçar por
seu aroma, beber suas lágrimas, beijá-la entre as pernas, lhe arrancar um último
orgasmo. Nenhuma mulher era tão bela como Rafaela Palafox quando o prazer
alagava seu corpo e lhe resplandecia no rosto. Nenhuma mulher tinha respondido
a seu ardor como ela. Nenhuma voltaria a significar para ele o que sua Rafaela das
flores. Deu meia volta para ocultar o pranto iminente, que despontava nos
tremores de seu queixo, e pôs-se a andar em direção a taipa.
—Não! —desesperou-se Rafaela, e se esqueceu do orgulho—. Não me deixe! —
reagiu.
Artemio Fúria se deteve no meio do pátio, voltou-se apenas e apartou o rosto
depressa para não voltar a ver a Rafaela nesse estado. As lágrimas lhe turvavam a
vista, e lhe resultava uma ordalía não fincar-se e prorromper em gritos. O ódio, a
raiva, o amor, a impotência e a angústia se amontoaram em seu peito até
transformar-se em um ponto que o privou de fôlego. Rafaela seguia chorando e
chamando-o, "Artemio, Artemio". Torturava-o a última imagem dela, de joelhos,
com o rosto sobre as grades e os braços estendidos para ele. "Artemio, Artemio."
Conseguiu inalar. A dor se acentuou para diminuir um momento depois em tanto
a respiração se normalizava. Correu até o algarrobo que crescia junto ao muro,
subiu com a agilidade de Quinto e se encarapitou na taipa. Caiu de pé sobre a
montaria e deslizou até sentar-se. O cavalo parou em seus quartos, relinchou e
saiu disparado para o norte.

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Capítulo XIII

Vênus e Mercúrio

Depois da partida de Artemio Fúria, Rafaela caiu doente. A febre a atacou ao dia
seguinte, durante a viagem de volta a Buenos Aires. A garganta lhe raspava, e
tossia com uma ferocidade que terminou por lhe rasgar o lado esquerdo. A dor do
rasgo foi tão violento —como se tivesse recebido uma navalhada— que lhe tirou a
respiração. Pensou: "Estou morrendo", e experimentou alívio. Entretanto, a dor
remeteu e ela seguiu vivendo, apenas consciente, pois a febre a sumia no delírio.
Por momentos se achava na carruagem junto a Fúria, em outros, na lagoa ou em
seu posto, onde via quinto; só às vezes reconhecia as feições de Ñuque, que se
inclinava sobre ela.
—Bebe, Rafaela —e a obrigava a sorver uma infusão aos tombos, no interior da
cabine.
—Onde estou?
—No carro, caminho a Buenos Aires.
—Mimita —se desesperava.
—Ela viaja na outra carruagem, a de seu pai, com a Creóla. Não pode
permanecer aqui. Poderia contagiá-la.
Fechava os olhos e em seguida mergulhava em um mundo de confusão. Não
soube se entrou e saiu desse estado mórbido por dias ou por horas. Teve uma
visão fugaz do rosto de seu primo Aarón, que lhe beijava a testa e a carregava nos
braços. Identificou o aroma de seu dormitório e, ao entreabrir os olhos, distinguiu
as linhas da cortina do dossel. Depositaram-na sobre o colchão, e distinguiu o
perfume a limpo dos lençóis. "Estou de volta em casa", alegrou-se. Tinha a
impressão de que tinha abandonado a quinta da rua Larga anos atrás. Soltou um
suspiro e se afundou em uma escuridão infestada de imagens confusas, como a de
seu pai chorando sobre sua mão, ou o cenho do doutor O’Gorman, que lhe
sustentava o braço, ou o sorriso de Ñuque, enquanto lhe aproximava uma colher à
boca. Também percebia os aromas, o dos óleos, que lhe recordou o dia em que sua
mãe recebeu a Extrema-unção; o de seu primo Aarón,como a damasco, que se
mesclava com o do tabaco almiscarado de seus charutos; o de Mimica, a que
Creóla perfumava com Água da Hungria; ou o de seu perfume, que tinha batizado
Amor. "Senhor Fúria", desejava gritar, mas a voz não lhe saía.
***
Paolino, o vendedor de água, descarregou várias canecas de água nos jarros do
último pátio da quinta dos Palafox. Creóla, enviada para fiscalizar o serviço,
arrojar a pastilha de sulfato que desencardiria a água lamacenta do rio e lhe pagar
cinco reais, olhava para outro lado, para o terreno que se desdobrava mais à frente
do pátio, ocupado quase em sua totalidade pelo jardim da senhorita Rafaela e pelo
horta, ambos os famosos por sua fertilidade e exuberância. Paolino não precisou
lhe perguntar à escrava a que se deviam seus olhos inchados e seu nariz tinto.
—Como segue a menina Rafaela?
—Mau.

156
—Muito mal? —Creóla assentiu—. Tanto como para...? —pergunta-a ficou em
suspense.
—Isso diz dom Miguel —falava do doutor O’Gorman—, que temos que esperar o
pior. A pneumonia é muito perigosa.
Creóla cobriu o rosto com o avental e rompeu a chorar. Paolino jogou olhadas
antes de abraçá-la e beijá-la na testa. Despediram-se entre lágrimas, com
profissões de amor. O vendedor de água saltou sobre o jugo e espetou aos bois que
atiravam a carruagem. Com a mesma vara, golpeou o sino para anunciar sua
presença aos vizinhos da rua Larga, pareceu-lhe que os sinos comunicavam uma
mensagem lúgubre, como se refletissem a pesadez de seu ânimo. Não podia ver
sofrer a Creóla.
Ao chegar às imediações da Praça da Vitória, Paolino tomou pela rua do
Conselho, em direção a de Santo Cristo. Deteve-se na esquina, frente ao
Matadouro Central, conhecido como Caricaburu. Entrou na mercearia. Divisou
Artemio Fúria sentado a uma mesa em um rincão escuro. Tirou-se o chapéu de
palha e se aproximou.
—Amigo, Paolino.
—Como anda, dom Fúria?
—Sente-se.
Paolino, sem levantar a vista e espremendo o chapéu entre as mãos, fez como lhe
ordenava. Apesar de seu acanhamento, orgulhava-se de estar servindo ao gaúcho
Fúria; gabaria-se entre suas amizades. Artemio Fúria, a quem Paolino tinha
escutado memorar em várias ocasiões e de quem se formou uma imagem que
raiava a lenda, nesse momento, encontrava-se frente a ele porque lhe tinha pedido
um favor pelo qual lhe pagaria com generosidade —sua largueza era conhecida—.
Cada real contava para alcançar seu sonho: comprar a liberdade de Creóla e
desposá-la.
Fúria estendeu um copo de bronze e serviu carne. Indicou a Paolino que bebesse.
—Obrigado.
—O que me averigou de Rómulo Palafox?
A pesar do tom baixo, quase um murmúrio, a voz de Fúria o impressionava.
Parecia emergir de uma fossa ou de uma caverna.
—Pouco e nada, dom Fúria. Não pude lhe perguntar a Creóla porque anda triste.
É que a menina da casa que está mau, muito mal. Está à morte, dizem.
—Mimita? —a inflexão no acento de Fúria não passou inadvertida ao vendedor de
água.
—Não, não, a criatura não. Trata-se da senhorita da casa, da menina Rafaela.
Os contornos de Fúria deveram ter se alterado visivelmente, posto que Paolino se
tornou para trás, como se dispusera a escapar. Artemio estirou o braço através da
mesa e o segurou pelo ombro. Embora o fazia doer, o vendedor de água não se
queixou.
—O que diz? —pergunta-a apenas se escutou; surgiu como um sopro.
—A senhorita Rafaela Palafox, a ama de minha Creóla, está à morte. Neuni...
Neuno... Não me lembro do que tem. Algo com neu... Não, não me lembro.
O horror o conduziu a um estado de abstração no qual só sentia as pulsações no
pescoço, dolorosas e lentas, e via um borrão cheio de cores diante dele. Sua mente
se inundou em uma palavra, "Rafaela", e a repetia com perseverança lhe
exasperem. Fez fundo branco com a carne e se serviu de novo, para tornar-lhe
outra vez ao gibão.

157
—Dom Fúria, o que lhe acontece?
—Nada, nada. Que mais sabe?
—Diz Creóla que Palafox parece migalhas. Para ele, nada é mais importante que
sua filha. É sabido que a consente desde pequena e que ela é a luz de seus olhos.
Fúria ficou de pé e arrojou umas moedas sobre a mesa.
—Paolino, em dois dias voltaremos a nos encontrar aqui. Averigua quanto possa
sobre o estado da senhorita Palafox.
Na rua, Artemio olhou por volta de um e outro lado até deter-se na loja de
Bernarda de Lezica. As memórias foram a ele como a erecida de um rio, de
maneira violenta e inesperada, cobrindo-o, afogando-o, afundando-o em um pesar
que ele só acertava a associar com a noite de 5 de junho de 1790, porque de
repente se sentiu como um menino indefeso, vulnerável e medroso ao que lhe
tinham tirado tudo. Desatou a Cajetilla do palanque, montou de um salto e o
instigou a gritos.
Caía a noite quando cavaleiro e cavalo alcançaram os confins da propriedade dos
Palafox. Ainda não penduravam a braçadeira de luto negro na porta nem zelavam
as janelas. "Vive", reanimou-se. Voltou todos os dias. Mantinha-se oculto e atento.
Avistou varia vezes Rómulo subir ao carro e rumbar para o centro. Não tinha
dúvidas a respeito da identidade desse homem: tinha sido cúmplice do assassino
de seus pais, junto com Antenor Ávila. De igual modo, o ter em frente não agitava
nele os demônios que deveram haver-se desatado. Só queria saber se Rafaela vivia.
***
Rafaela despertou uma manhã de princípios de abril e, embora soltasse um
gemido —algo martelava suas têmporas—, notou que tinha a mente limpa e que
não via os objetos através de um véu de névoa mas sim percebia com claridade
seus contornos e cores. Ao voltar o rosto, topou-se com a expressão ansiosa de
sua tia Justa.
—Tia.. —murmurou. Não pôde seguir. A debilidade e uma dor no peito o
impediram.
—Não fale, tesouro —lhe suplicou Justa.
—Água.
Ao momento, Ñuque lhe dava de beber uma infusão doce. Como não podia
incorporar-se nos travesseiros, a tarefa se tornava lenta e chata, e Justa devia lhe
limpar as comissuras por onde escapava a beberagem. Seu pai lhe sustentava a
mão e a beijava, passava-lhe a mão pela testa e repetia, com voz fanhosa: "Já não
tem febre". Possivelmente ficou adormecida, pois ao levantar as pálpebras de novo,
a paisagem tinha trocado. O doutor O’Gorman tomava o pulso e cochichava com o
Clotilde. Afastada, como escondida em um rincão, achava-se Creóla, com os olhos
inchados e o nariz vermelho.
—Creóla —a chamou.
Ante o consentimento do médico, a escrava se ajoelhou junto à cabeceira da cuja
e apoiou a testa na palma da mão de Rafaela, Pôs-se a chorar.
—O que acontece? Por que chora? —disse, quase sem fôlego—. Mimita!
—Não, não. Ela está bem, minha menina. Muito bem. Choro por você. Porque
quase se foi.
Não compreendeu a declaração de Creóla. "Aonde ia?", perguntou-se, e deduziu
que sua família se inteirou de sua intenção de fugir com o Artemio Fúria. O pânico
se esfumou quase em seguida quando as lembranças a invadiram com a violência
de um vendaval. Sua intenção, a de seguir ao senhor Fúria onde o destino os

158
levasse, tinha ficado em água de borrasca. Ele a tinha traído e abandonado.
Tinha-a seduzido com mentiras para se divertir durante os dias em La Larga e
cobrar o trabalho que ninguém lhe pagava. Poderia ter tomado Felisarda —a muito
descarada se mostrava mais que disposta—; não obstante, o homem tinha
pontudo alto: à menina da casa, à filha do dono, a uma dama.
Rafaela se detestava por sua estupidez. Tinha brincado com fogo e se queimou,
porque todo o tempo tinha estado consciente de que lutava com um gaúcho. Ao
final, dava-lhe a razão a seu pai: essas eram pessoas desprezíveis. Guiada por
ideais românticos vãos, esmagada por sua beleza e dignidade, abrandou-se e
atuado sem critério nem prudência. Tinha-lhe entregue sua virgindade a um ser
baixo que nem sequer a tinha acreditado virgem. Como riria dela nesse momento!
Como se gabaria de suas proezas amorosas! Como se mofaria do amor que lhe
tinha professado!
A noite em que Fúria a abandonou, desejou morrer, Rafaela o recordava muito
bem, e seu corpo quase cedeu à tentação. Pneumonia, esse foi o diagnóstico do
doutor O’Gorman. A convalescença levaria semanas, advertiu o médico, e receitou
descanso, boa alimentação e tônicos. Como espreitavam os primeiros frios
outonais, o quarto devia permanecer cálida, embora resultava imperioso arejá-lo
todos os dias. Rafaela testemunhava da cama o empenho de Ñuque, de sua tia
Justa e das escravas por cumprir as prescrições médicas e por consenti-la em
tudo que pedisse. Observava-as mover-se pelo quarto e se reprovava: "ia
abandonar a minha família, quão únicos verdadeiramente me amam, por esse
cafajeste". Rómulo a visitava três vezes por dia. Não lhe mencionava sua escapada
à Larga, nem seus entendimentos com os peões, nem com Fúria. Notava-o
tranqüilo, por isso presumia que suas questões com a lei se achavam sob controle.
Aarón a fazia rir. Sentava-se junto à cuja e lhe contava anedotas de seu grand
tour pela Europa e o norte do África que lhe arrancavam gargalhadas que a
debilitavam. Ñuque o jogava com caixas destemperadas. Rafaela caiu na conta de
que ansiava as visitas de seu primo ao redor das quatro da tarde. Seu ânimo se
alegrava quando o aroma a albarícoque alagava a estadia e a obrigava a dilatar as
janelas de seu nariz. Às vezes, Aarón se perfumava com a colônia comprada em
Paris, a que ela não terminava de decifrar: almíscar, noz moscada, benjuí e algum
outro ingrediente desconhecido; por momentos acreditava que se tratava de um
pouco tão simples como louro e em outros, um pouco mais complexo, como
almíscar. Tratava-se de uma essência penetrante e exótica como seu primo. Em
tanto lhe falava, Rafaela o observava e se perguntava que pensamentos ocupavam
sua mente. Aarón Romano era um homem inescrutável. De modos impecáveis,
jamais protagonizava um arranque de ira ou uma expressão de felicidade. Sempre
se mostrava constante, racional e de bom humor. Dirigia com habilidade a ironia,
e em ocasiões a utilizava para ridicularizar a quem considerava inferior e de
poucas luzes; só uma mente aguda teria identificado a sutileza de seu sarcasmo.
Priorizava a etiqueta à sinceridade, até entre os membros de sua família. "Tão
distinto de Fúria", meditou.
Pensava-o de contínuo. Às vezes o rancor cedia à nostalgia. Em sua memória
guardava cada palavra, cada gesto, cada carícia, cada instante compartilhado com
esse homem. Odiava-o e o amava, e para ela, uma mulher de certezas, essa
combinação a angustiava. O Artemio Fúria que a converteu em mulher não tinha
nada que ver com o que a humilhou a última noite em La Larga e a deixou
abandonada na janela de seu quarto. Passava horas conjeturando os motivos da

159
mudança inopinada e cruel, e sempre chegava à mesma conclusão: tinha-a
enganado. O verdadeiro Artemio Fúria era um ser sem escrúpulos, malvado e com
dotes para a atuação, que de seguro tinha aprendido da mulher que mantinha na
cidade, a tal Albana, atriz do Teatro Argentino.
A debilidade de seus membros e de sua mente não se converteria em astenia.
Rafaela desejava recuperar a alegria de viver. Artemio Fúria não merecia esse
padecimento. Abandonaria a cama, voltaria para seus trabalhos, prepararia
perfumes e cosméticos, trabalharia no jardim, visitaria a Corina Bonmer, com
quem evocaria ao bom do Juan de Dios, retomaria o hábito de consultar a
biblioteca do cunhado de sua prima Federica, frei Cayetano Rodríguez, e iria ao
Convento das Clarisas para conversar com a filha mais nova de sua tia Justa,
Águeda (irmã Visitação), quem, com apenas olhá-la, transmitia-lhe paz.
Clotilde, que comparecia no dormitório de Rafaela para as distintas orações do
dia, anunciou-lhe uma manhã que o doutor O’Gorman tinha autorizado que se
levantasse por uma hora desde dia seguinte.
—Nada de loucuras, Rafaela. Permanecerá aqui, em seu dormitório, bem
abrigada e próxima ao trabalhador braçal. O’Gorman disse que, com a ajuda de
alguém, deverá dar alguns passos cada dia. Enjoará no início princípio, pois
guardaste cama por duas semanas, mas, com o tempo, irá recuperando a
fortaleza.
Ao outro dia, apoiada no braço de Aarón, caminhou até a penteadeira, onde se
desabou no tamborete que carecia de respaldo, por isso seu primo se colocou
detrás e a sustentou pelas costas. Com os olhos fechados, Rafaela descansou a
cabeça no peito dele e inspirou para dominar o enjôo e as náuseas. Mais segura,
ergueu-se. Ao descobrir sua imagem no espelho, soltou um gemido. Não a
angustiou tanto o estado do cabelo —murcho, enredado e sujo— como os círculos
violeta ao redor dos olhos e o tom macilento da pele. As maçãs do rosto se
sobressaíam no rosto magro.
—Voltará a ser tão formosa como foi antes da enfermidade —profetizou Aarón.
—Sim, querida, assim será. Logo recuperará sua beleza —demarcou Justa, a que
nenhum emprestou atenção. Contemplavam-se através do espelho. Ele sorria,
como sempre. Ela, em troca, estudava-o com seriedade.
***
Ao afastar-se das ruas centrais, Aarón obrigou a seu cavalo a acelerar o passo. O
doutor Diego de Saldaña residia em uma quinta ao norte da cidade, na distante
rua de São Pablo, um local conveniente para visitá-lo sem levantar suspeitas.
Ninguém devia inteirar-se de que padecia de sífilis, em especial, seu tio Rómulo.
Durante a estadia em Montevidéu, enquanto fechavam alguns negócios e quitavam
as questões legais, Aarón lhe tinha pedido a mão de Rafaela e seu tio se mostrou
disposto a conceder-lhe Não falaram a respeito do dote porque Aarón desprezou o
tema.
O doutor Saldaña lhe devia dinheiro, perdido na mesa de jogo, por isso o atendia
grátis e não lhe cobrava quão preparados ele mesmo fabricava. Aarón não recorria
a ele porque não lhe cobrasse mas sim porque Saldaña aplicava um novo método
para curar o morbo francês. "Uma noite com Vênus, uma vida com Mercúrio",
tinha expresso o médico depois de confirmar o diagnóstico. Entretanto, a novidade
de sua profilaxia se centrava no uso do arsênico —e mais os emplastros, ingestão
e vapores de mercúrio—, cujo suor despedia um ligeiro aroma de damasco.
Por fortuna, tinham desaparecido as manchas que por semanas lhe tinham

160
inutilizado as mãos e as plantas dos pés, às que Saldaña chamava "pregos
sifilíticos". Seu desaparecimento não implicava a cura. "Assim como
desapareceram os cancros de seu membro", explicou-lhe, "também desaparecerão
os pregos. A enfermidade, entretanto, persistirá, sempre latente e à espreita".
Depois da revisão do médico, que transcorreu sem novidades, Aarón enfiou para o
centro. Faria uma visita a seu amigo, o coronel Martín Rodríguez, a cargo dos
Húsares do Rei. Os quartéis se achavam sobre a rua da Santíssima Trindade,
entre São Carlos e São Francisco, à volta da igreja. Atou seu cavalo no palanque e
cruzou o pátio do quartel saudando com um movimento de cabeça aos militares.
Sem maior cerimonial, o secretário do Rodríguez lhe franqueou a entrada no
escritório de seu chefe pois conhecia a estreita amizade que os unia. Em tanto se
tirava o barragán, as luvas e o chapéu, Aarón passou revista à pequena junta com
a que se encontrou. O sargento maior Rodríguez, sentado a seu escritório, achava-
se rodeado de alguns companheiros de armas, aos que Aarón em seguida
individualizou: Lucas Viva e Pedro Núñez, segundo e terceiro no mando da
Cavalaria; o sargento maior Antonio Beruti, do esquadrão ao mando de Vivas, ao
que se conhecia como A Infernal; o gigante Sorte Arzac, que era sargento dos
Húsares; e Esteban Romero, a cargo de um dos regimentos de Patrícios. Suas
feições conservavam o entusiasmo da noite anterior durante a reunião na fábrica
de sabões de Vieytes, no qual os copos de carlón se esvaziaram e encheram várias
vezes. Só um cego não teria advertido o ar conspirativo de suas expressões, Aarón
pensou que pareciam membros de uma loja maçônica.
Receberam-no com sorrisos e palmadas nas costas porque sabiam de parte da
causa pela liberdade. Em realidade, a Aarón importava pouco a independência das
colônias. Seu interesse radicava em achar-se sempre do lado vencedor. E, de
acordo com o modo em que se precipitavam os fatos, estimava que ao Surdo ficava
pouco tempo como vice-rei e que esses militares jovens e de temperamentos
jacobinos, que o consideravam seu amigo, terminariam fazendo-se com o poder.
Faltava o principal, o homem forte do momento: o tenente coronel Cornelio
Saavedra, comandante do Regimento de Patrícios, herói das Invasões Inglesas e
vencedor da passeata de 1o de janeiro de 1809. Segundo Aarón, Saavedra não
mostrava o mesmo ardor dos jovens. Acaso não lhes respondia: "Patrícios, as
prévias ainda não estão amadurecidas" em cada oportunidade em que o
enfrentavam para solicitar seu apoio? O grupo de intelectuais à frente do
movimento independentista, em especial Manuel Belgrano, Nicolás Rodríguez
Penha, Juan José Castelli, Juan José Passo e Hipólito Vieytes, sabiam que, sem as
armas ao mando de Saavedra, não poderiam atuar contra Cisneros.
—E o comandante Saavedra? —interessou-se Aarón.
—Passa uma temporada em seu quinta de São Isidro —lhe informou Esteban
Romero.
—Não é tempo para afastar-se da cidade —comentou Beruti, a quem todos
tinham por exaltado, fanático da causa e valente.
O bate-papo se estendeu por uma hora. Aarón confirmou sua assistência à
próxima reunião da Sociedade dos Sete, que já contava com muitos mais
membros, na quinta do Mariano Orma, e se despediu. Deteve sua rápida
caminhada perto da saída para divisar, sob o mojinete da galeria que circundava o
pátio do quartel, Artemio Fúria, que conversava com o sargento maior dos
Húsares, Domingo French. Notou-o mudado. Embora vestia os típicos objetos dos
homens de campanha, estas eram muito finas, de bom gênero e confecção;

161
barbeou-se. A esse mal nascido lhe devia ter perdido uma fortuna que o teria
tirado do apuro no que se achava. Este pensamento lhe recordou que ainda ficava
por realizar uma última gestão: enfrentar a Bernarda de Lezica, a quem lhe devia
uma boa soma de dinheiro. Montou seu cavalo e partiu para a rua de Santo
Cristo.
"Maldita seja", insultou para seus adentros ao topar-se na loja de Lezica com
Juvenal Romano, que por esses dias se fazia chamar León Pruna. Mediram-se com
olhadas intensas.
—Como está, filho?
—Não me chame assim.
—É meu filho —afirmou Juvenal, com uma calma que indignava a Aarón.
—Sabe bem que não o sou.
—Entretanto, leva meu sobrenome.
—Algo do que não me orgulho.
—Teria preferido que lhe chamassem bastardo?
"Toucbé", pensou Aarón. Tentou abandonar a loja, mas Romano o deteve pelo
braço. Soltou-o em seguida.
—Não volte a me pôr uma mão em cima, sujo imundo.
Juvenal passou por cima o insulto já que, salvo o de imundo, no resto Aarón
dizia a verdade: ele era um sujo, um converso que, ocultamente, praticava o
judaismo.
—Bernarda me há dito que lhe deve uma forte quantidade.
—Esse não é assunto dele.
—Eu poderia lhe pagar sua dívida.
—Em troca do que?
—De que deixasse de lado suas atividades non sanctas (não preciso te explicar a
que me refiro) e que trabalhasse comigo em um novo negócio que empreenderei:
uma companhia de aluguel de carros para viagens ao interior. —Aarón riu, uma
gargalhada oca e forçada—. Sei no que anda metido. Terminará mau, Aarón.
Ofereço-te uma atividade decente. Seria tua o dia em que eu morresse.
—Esqueça-se de mim, esqueça-se de minha mãe. Não volte a visitá-la nem a
importuná-la.
—Ela é minha esposa e Cristiana, minha filha. Tenho direito às ver.
—Você não tem direito a nada, judeu de merda.
—Sei de suas visitas à casa de doutor Saldaña. Sei também o que as motiva. Sei
tudo sobre ti, Aarón. Se escolhesse te destruir, poderia fazê-lo.
A Lezica emergiu na loja e em seguida notou a palidez de Aarón. Este sabia que
Juvenal e Bernarda eram amigos, alguns insinuavam que eram amantes. Pelo que
se encontrava seguro era de que ambos se dedicavam à usura.
—Boa tarde, senhor Romano.
—Boa tarde, senhorita de Lezica.
—Como se encontra sua prima? —ante o silêncio de Aarón, Bernarda se
apressou a esclarecer—: Soube que a saúde da senhorita Palafox não é boa.
—Já se encontra melhor —respondeu de maneira lacônica.
—Quanto me alegro!
Aarón a estudou com desenvoltura. Fazia tempo que o atraía a quarentona.
Possivelmente, se conseguisse levar à cama, obteria uma estorva na dívida ou uma
comutação total.
—Voltarei mais tarde, senhorita de Lezica, quando pudermos falar com maior

162
tranqüilidade.
—Como quiser.
Ao fechá-la porta atrás de Aarón, Juvenal expressou:
—Tentará te seduzir esperando que lhe perdoe a dívida.
—Não sabe com quem está lutando, então.
—Seriamente a senhorita Palafox está doente?
—Assim fofocam nas reuniões.
Juvenal se entristeceu. Tinha conhecido a Rafaela nessa loja, Bernarda os tinha
apresentado. A jovem o tratava com deferência, até com simpatia, o mesmo ao
encontrá-lo em sua casa da rua Larga quando ele, ansioso por ver o Clotilde e a
Cristiana, apresentava-se sem ser convidado.
- Comentam também que seu filho pretende sua mão.
—A da senhorita Rafaela?
Bernarda assentiu.
***
Artemio observou o sol e calculou que devia ser uma da tarde. Paolino lhe tinha
comentado que as senhoras Palafox estavam acostumados a concorrer à missa de
uma em São Francisco escoltadas por Ñuque. Precisava ver a Índia e lhe
perguntar pela Rafaela. Como contava com tempo —a missa não terminaria a não
ser perto das duas—, decidiu partir aos quartéis da rua da Santíssima Trindade
para encontrar a seu amigo, o sargento maior Domingo French, quem lhe tinha
enviado uma mensagem à pensão de dona Clara. A coisa está que arde, rezava a
nota. Preciso falar contigo. Não a tinha assinado porque sabia que Artemio
identificaria a caligrafia. A amizade datava de vários anos, da época em que
French, recém casado e sem um cuartillo no bolso, se uniu com os mercedários.
Em 1802 renunciou ao emprego no convento da Mercê porque o nomearam
carteiro oficial de Buenos Aires, trabalho que conservava até esse momento e que
desempenhava ao mesmo tempo em que sua atividade militar no Regimento a
América dos Húsares, também conhecido como A Infernal.
—Artemio! —alegrou-se French ao vê-lo transpor o portão do quartel.
Deram-se um abraço e intercambiaram perguntas de rigor.
—Vem, passemos a meu escritório. Aqui há muitas orelhas ansiosas por escutar.
Depois de fechar as portas, French cevou um mate a Fúria e começou a lhe
pintar o panorama político. O grupo de jovens crioulos, a quem Cisneros chamava
"subversivos", tinha alcançado um ponto que exigia ação.
—Já basta de arengar nas mesas do Café de Marcos —destrambelhou French—,
ou de confabular na fábrica de Vieytes. Aqui faz falta pôr os ovos, amigo, e tirar de
em meio ao Surdo. Que legitimidade tem este vice-rei para vir a nos dar ordens?
Quem o designou? A Junta de Sevilha! Já! Um grupete de plebeus, tão súditos de
Fernando como nós. Acaso eles têm poder sobre as colônias? De maneira
nenhuma! As Índias Ocidentais não pertencem a Espanha a não ser à Coroa.
Fúria chupava o chimarrão e ouvia com atenção, para nada intimidado pela
veemência do discurso nem pelas cores coradas que adotava o formoso rosto de
French. Conhecia suas maneiras exacerbadas que coincidiam com o ardor de suas
idéias independentistas.
—Necessitamos que tenha preparado os componeses, Artemio. Mais cedo que
tarde tiraremos do governo a estes maturrangos —com esse término se chamava
os espanhóis, conhecidos por montar sem estilo e mau—, a facada e a boleadora
limpa.

163
—Contamos com o apoio de Saavedra?
—O que sei eu! —exasperou-se French—. Esse não faz mais que repetir: "As
prévias não estão ainda amadurecidas". Tem-me até o alto da cabeça. Joaquín
Campana —French falava do secretário privado do chefe dos Patrícios—, foi para
São Isidro a lhe levar umas cartas onde o convocamos para que tome as armas.
Veremos se tiver culhões. Eu acredito que é um covarde.
—Coloca-me em maus negócios lutar com mornos, Domingo. Não sabe como que
sairão.
—Sei. Você gosta de ter tudo sob controle —acrescentou, com um sorriso—. E,
sem dúvida, lutar com mornos pode trazer surpresas desagradáveis. Em minha
opinião, Saavedra o é. Um morno, quero dizer. Mas o necessitamos.
—E a cúria? —interessou-se Artemio.
—Dividida —admitiu French—. O bispo Lué e Rega, como imaginará, está do lado
dos maturrangos. Outros padres nos apóiam. Alberti, Grela e, é obvio, seu querido
padre Ciríaco Aparicio se estão jogando a batina arengando dos pulpitos em favor
da causa. Eu tenho fé em que triunfaremos! —explorou de súbito—. Só é questão
de convencer a Saavedra e organizamos. Por isso te convoquei hoje, para que
prepare a sua gente, como o fez no ano seis. Tomás de Grigera também está
mobilizando a seus patrícios das Colinas de Zamora.
—Sabe que eu não gosto de Grigera.
—Sim, sei. Também me cai como patada ao fígado, mas o necessitamos. Quanto
maior força armada reunamos e apresentemos, mas fácil será e, embora pareça
uma paradoxo, menos efusão de sangue haverá, se é que nenhuma. Os espanhóis
não terão culhões para nos enfrentar. Suas tropas são poucas, estão debilitadas,
mal treinadas e sem equipamento. Sabem que os lancharíamos!
French o acompanhou até a saída do quartel, onde cruzaram as últimas palavras
antes de despedir-se. Com uma ansiedade desconhecida, Artemio montou seu
overo e o guiou ao passo pela rua da Santíssima Trindade. Logo que dobrou à
direita na de São Carlos, avistou o grupo de mulheres que saía da missa de uma
em São Francisco. Aproximou-se do limite do átrio e, sem apear-se, escrutinou a
multidão. Ao topar-se com a figura encurvada e pequena de Ñuque se deu conta
de que esta o tinha descoberto antes que ele a ela. Observava-o com fixidez e,
apesar de que não lhe via os olhos, pois permaneciam ocultos pelas pálpebras
cansadas e enrugadas, percebeu a força desse olhar. Viu-a girar e aproximar-se de
umas mulheres. Dirigiu-se a duas delas, e Fúria deduziu: "Devem ser as irmãs de
Palafox". Paolino lhe havia dito que se chamavam Clotilde e Justa. Com a pasta
enrolada sob o braço, a anciã ingressou de novo no templo. Artemio esperou uns
segundos para saltar do cavalo e segui-la.
Divisou-a na penumbra do templo, sulcada por um raio de luz de cores, que
revelava a fumaça do incenso ainda suspenso no ar da basílica. Não se atreveu a
aproximar-se o tirou-se o chapéu e aguardou perto da pia com água benta. A Índia
ia de negro, mas não devia inquietar-se, disse-se, porque não significava que
levasse luto. As mulheres assistiam de negro a missa.
Sem necessidade de voltear, Ñuque advertiu a presença de Fúria detrás dela, a
uns passos. A energia desse homem a tocava como uma mão, sua ansiedade a
comovia, seu mistério a inquietava. Fez-se o sinal da cruz, deu meia volta e
caminhou para ele. As ânsias mortais em que se achava Fúria se revelavam em
seu corpo imóvel e tenso e em uma expressão séria embora não severo, de lábios
apertados e olhos imóveis. Advertiu que o gaúcho se aferrava ao bordo da pia com

164
uma força que alterava a cor de seus nódulos. Ñuque estava segura de que ele não
percebia que estava tocando a água bendita com a ponta dos dedos. Supôs que
não falaria. O pomo de Adão lhe subia e descia pelo pescoço. De igual maneira,
folgavam as perguntas.
—Rafaela se encontra bem. O doutor há dito que está fora de perigo.
Artemio deixou cair a cabeça. O queixo lhe roçou o poncho. Levou-se a mão ao
rosto e apertou os olhos com os dedos. Ñuque escutava sua respiração agitada e
via os estremecimentos que lhe sacudiam o corpo.
Artemio levantou a vista, e a anciã não soube se eram lágrimas ou água bendita
o que aglutinava suas pestanas negras. Pensou: "É um homem de uma formosura
sacra. Excessiva".
—Obrigado, Quelupén.
Advertiu que a voz do gaúcho surgia rouca e pastosa. Respondeu-lhe com uma
inclinação de cabeça. Fúria teve a impressão de que a Índia lhe soltaria uma surra
de perguntas e reclamações. Manteve-se firme, com a vista fixa na dela, à espera
do embate.
—Não volte a machucar a minha menina —expressou Ñuque—. Que Deus o
abençoe e o acompanhe, meu filho —passou a seu lado com a pasta enrolada sob
o braço.

165
Capítulo XIV

Periódicos ingleses

Melody contemplou o perfil de sua cunhada Elísea enquanto esta amamentava


ao pequeno James Maguire, ou Jimmy, como o chamavam. No silêncio se
intensificavam os sons que realizava com sua pequena boca ao sugar.
De repente, Elísea quebrou o silêncio para perguntar:
—Melody, sabe por que seu pai batizou esta estadia com o nome de Bela
Esmeralda? Pergunte a Tomás —falava de seu marido, o irmão do Melody—, mas
ele assegura não saber.
—Meu pai tinha uma irmã chamada Esmeralda, a que tinha querido muito.
Suponho que, em honra dela, chamou assim à estadia.
—Seria uma mulher formosa —inferiu Elísea.
—Tão somente uma vez meu pai a mencionou e foi em seu leito de morte. Disse-
me: "Recorda a minha irmã, minha querida Esmeralda".
—Então, era formosa —assegurou Elísea—. Sabe o que aconteceu com ela?
—Absolutamente. Suspeito que morreu faz anos. Algo escuro se sombrio com ela,
pois assim como meu pai falava abertamente de seu irmão Jimmy, jamais
pronunciou uma palavra a respeito de Esmeralda.
Bateram na porta. Era Brunilda, a doméstica.
—Senhora Elísea, o almoço está logo.
Vários comensais ocupavam a mesa de Bela Esmeralda, porque aos usuais se
somaram Edward O’Maley e Liam Flaherty, capitão de um dos navios da frota de
Roger Blackraven, o White Hawk, que tinha infiltrado dias atrás em Las Conchas,
um porto natural ao norte de Buenos Aires. Trazia correspondência e periódicos
com notícias inquietantes da Espanha.
—A senhora Isabella —falou Flaherty para referir-se à mãe de Blackraven—, e o
capitão Malagrida viajaram à França onde visitaram primo de você, capitão Black,
no castelo de Valençay.
A amizade de Blackraven com o imperador da França, Napoleão Bonaparte,
afiançada detrás anos de um fluido intercambio epistolar, implicava certas
prorrogativas, como por exemplo que Isabella di Bravante visitasse seu sobrinho
Fernando VII no castelo de Valençay, onde vivia exilado desde 1808.
—Era bom o estado de saúde de Fernando, suponho —comentou Roger, com
sarcasmo.
—Sim, bom, embora de ânimo deprimido, conforme me referiu sua mãe, capitão.
Fernando alega que Bonaparte não cumpriu com o prometido na Bayona.
Blackraven professava um afeto genuíno por seu tio, o destronado rei da
Espanha, Carlos IV, apesar de que não contava com as luzes nem com o
temperamento indispensável para um soberano. Seu primo, em troca, chateava-o.
Influenciado pelo cônego Juan de Escoiquiz, dedicou-se a intrigar contra seu pai,
sua mãe e o ministro Godoy, atirando o golpe de graça aos Bourbons da Espanha.
—Recebeu de bom grau a letra de mudança que a senhora Isabella lhe entregou
em seu nome, capitão. "O bom Roger" chamou-o.
Blackraven inclinou a boca em um sorriso depreciativo ao evocar os parágrafos

166
lisonjeadores da carta de seu primo, como também os comentários do Napoleão
sobre o exilo de Valençay. Seu primo, meu querido Roger, é tão obsequioso como
sua excelência ardiloso. Pede-me que lhe encontre esposa de minha eleição e oferece
a seu irmão, dom Carlos Maria Isidro, para conduzir os exércitos espanhóis que
enviarei à Rússia. Professa-me admiração e me assegura que desejaria ser meu
filho. E o povo espanhol o chama El Deseado e deixam seu sangue no campo de
batalha para levar o de retorno a sua pátria! Quem compreende aos povos?
Possivelmente me dita e publique a correspondência desse adulador e traidor no
Moniteur para expô-lo ao julgamento de seus súditos.
—Enviou dinheiro a seu primo Fernando? —estranhou Melody.
—Enviei-o porquê desejo que meu tio, Antonio Pascal, a quem minha mãe adora,
e meu primo Carlos Maria não passem necessidades no castelo de Valençay.
—Entendo.
—É obvio, o covarde do Fernando gozará desse benefício também.
Na realidade, a Blackraven não inquietavam tanto as notícias a respeito de seu
primo como as publicadas por vários periódicos ingleses de princípios de ano, que
Flaherty lhe entregou logo que atracado: Sevilha se encontrava nas mãos do
exército napoleônico, e com o desaparecimento da Junta Central, que governava
em nome de Fernando, o reino se afundava no caos.
"Já nada ata às colônias com a Metrópole", refletiu Blackraven. "Até o Surdo
perdeu legitimidade, pois a Junta Central, que o nomeou vice-rei do Rio da Prata,
deixou de existir." Em sua opinião, desde 1806, depois da expulsão dos ingleses,
existiam as condições para reclamar a independência. Os acontecimentos dos
últimos anos —a invasão napoleônica na Espanha, a deserção dos Bourbons na
Bayona e o virtual abandono em que se achavam as colônias— promoviam a
agitação entre os crioulos, quem, abertamente, declaravam o direito do Vice
Reinado do Rio da Prata de formar Junta. A notícia da queda de Sevilha e a
conformação de um Conselho de Regência no Cádiz, último baluarte dos
espanhóis, precipitaria os acontecimentos pelos que Blackraven brigava fazia
comprido tempo.
Depois do jantar, enquanto os homens, reunidos na sala, fumavam charutos e
cachimbos e tomavam o porto, Edward O’Maley perguntou:
—Saberá o Surdo a respeito da queda de Sevilha?
—É provável —admitiu Blackraven—, embora manterá a notícia oculta baixou
sete chaves. Ele sabe que se chegasse à mãos dos crioulos, seus dias como vice-rei
estariam contados.
—Por quê? —interessou-se Flaherty.
—Porque os crioulos não aceitarão às Cortes do Cádiz como um órgão soberano
para governar as colônias —explicou Roger—. Dirão que os homens do Cádiz são
tão súditos dos Bourbons como eles e que não têm autoridade sobre as Índias
Ocidentais. É o que vêm dizendo da Junta Suprema. Este advento, a queda da
Junta Suprema de Sevilha, dará a desculpa para atuar.
—O que é o que pretendem os nativos? A liberdade? —interessou-se o capitão do
White Hawk.
—Sim, a liberdade —concedeu Blackraven—, embora não o admitirão
abertamente. Dirão que têm direito a formar Junta e governar em nome do
Fernando VII ao igual às Juntas da Espanha. Entretanto, o que realmente
pretendem é tirar o jugo espanhol. No fundo da questão, o econômico guia todo.
Estão cansados de pagar altos impostos para encher as arcas de um reino

167
decadente que os esqueceu faz anos —e não comentou, por deferência a seu
cunhado Tommy, quem odiava aos ingleses, que a pressão que estes estavam
exercendo sobre o vice-rei Cisneros para comercializar livremente no Rio da Prata
selaria o destino do Vice Reinado.
A conversação derivou em outros temas e desembocou na salga A Cruz do Sul,
propriedade de Blackraven.
—Roger, dias atrás estive com Fúria em Buenos Aires —comentou Eddie
O’Maley—. Assegura que a ponta de gado está gorda e pronta. Disse que ele
mesmo a tocaria até A Cruz do Sul.
—Fúria? —interessou-se Tommy Maguire—. Artemio Fúria?
—Sim, Artemio Fúria —respondeu Eddie.
—Conhece-o? —quis saber Blackraven.
—Que se o conheço? Pablo e eu fomos seus troperos. A caravana para a que
trabalhávamos era de sua propriedade.
—O que pode me dizer dele?
Tommy baixou a vista e se pressionou o queixo em tanto procurava as palavras
para descrever o seu antigo patrão.
—É um gaúcho fora do comum —afirmou.
Eddie, rindo, perguntou:
—Porque é loiro e de olhos celestes?
—Bom, sim, embora não referia a isso a não ser ao seu comportamento, ao seu
modo de pensar e de conduzir-se. Como bom patrício, era calado, mas bem
taciturno, a quem a companhia dos homens terminava por chatear. Só com seu
amigo, o índio Calvú Maque, a quem Fúria chamava peñi, que significa irmão na
língua desses infiéis, parecia com gosto. Diz-se que se criaram juntos.
—Então a Fúria o criaram os índios?
Tommy sacudiu os ombros em sinal de desconhecimento.
—Pouco se sabe dele —admitiu—. Como pinjente antes, era calado, falava pouco,
menos ainda para referir-se a si mesmo. Voltava-se anti-social se tentavam
averiguar sobre seu passado. E embora fosse tranqüilo e não costumava levantar o
tom de voz, quando seu mau gênio se desatava, amedrontava ao mais enérgico.
Melhor não achar-se perto se decidia desembainhar seu guampudo. Era hábil
como o mesmo Lúcifer. Vi-o bater-se com três homens, três troperos que quiseram
lhe roubar —acrescentou—, e deixá-los com as tripas ao sol em menos do que
canta um galo.
—Dou fé disso —demarcou Eddie.
—Fez frente a todos, a modo de castigo. "Aqui quem dá as ordens sou eu. Ao que
não goste, me manda mudar", isso disse esse dia. Diziam que o de Fúria ia porque
seus arranques de fúria eram proverbiais, embora não freqüentes. Sempre me
pasmava dele a segurança e a autoridade com que dirigia a um grupo de gaúchos
com caras de demônio. Nunca parecia intimidado, nada o comovia, nem a pior das
vicissitudes. Sempre conservava a calma. Embora exigente como patrão, seu
pagamento era dos melhores.
—Tinha inimigos? —interessou-se Roger.
—Um homem como esse — meditou Somar—, deve contá-los por montões.
—É certo —coincidiu Tommy—, embora também tem muito fortes aliados. Por
exemplo, é amigo dos Pueyrredón e de outros crioulos elevados.
—Tem mulher? —interessou-se Blackraven.
—Várias, segundo lembrança. Não lhe conheço filhos.

168
—Que idade tem?
—Uma indefinida entre os trinta e os quarenta.
—Seu aspecto —disse Blackraven—, alguma vez chamou sua atenção?
Tommy levantou as sobrancelhas, surpreso pela pergunta.
—Em que sentido chamaria minha atenção?
—Não recordava a ninguém?
—A última vez que o vi —expressou Tommy— usava uma barba tão larga que lhe
chegava ao peito e as riscas lhe cobriam a metade das costas. Não recordou a
ninguém que eu conhecesse.
À manhã seguinte, Blackraven convocou Somar e O’Maley no escritório.
Desdobrou os periódicos ingleses que Flaherty lhe tinha entregue e disse:
—Eddie, é imperioso que estes periódicos cheguem às mãos adequadas. Aqui se
informa a respeito da queda da Junta em Sevilha e do debando de seus membros,
que formaram um Conselho de Regência no Cádiz.
—A quem devo fazer os chegar?
—Estes ao Mackinnon, o líder dos comerciantes ingleses no Rio da Prata. Vive no
de dona Clara —acrescentou—. Em caso de que não dê com ele, os levará a doutor
Moreno, a sua escrivaninha da rua da Piedade. Ele é o notário dos comerciantes
ingleses —explicou—. E estes os entregarão a dom Nicolás —Blackraven se referia
a Nicolás Rodríguez Penha.
—Assim farei.
—Seja discreto. Se sair nesta mesma tarde —quis saber Roger—, quando
atracará em Buenos Aires?
—A arrebenta cavalos —apontou Eddie—, o mais provável é que alcance a cidade
amanhã para o meio-dia.
—Perfeito. Então, amanhã 10 de maio lhe consignará estes periódicos a alguém
de sua confiança para que os entregue a quem te indiquei. Eu chegarei em dois ou
três dias para testemunhar as reações.
—Entendido.
—Somar —disse Blackraven—, lhe diga a sua senhora que comece a empacotar.
Amanhã pela manhã retornamos a Buenos Aires.

169
Capítulo XV

Uma casca vazia

Entre as dispensas que obteve Rafaela por sobreviver à morte se encontrava a


permissão de seu pai para que Corina Bonmer a visitasse na quinta da rua Larga.
É obvio que "A imprentera", como a apelidava Rómulo, não tinha acesso ao estrado
de Clotilde, um soalho elevado no chão da sala principal, com uma balaustrada
perimetral de madeira, coberta por um tapete cordovês chamada chusé, que
continha almofadões e mesas e assentos baixos, onde as senhoras punham-se a
costurar, bordar ou tecer, enquanto conversavam e bebiam chocolate ou
casquinha; no inverno, queimavam nos braseiros estopins aromatizados que
Rafaela fabricava com benjuí, estoraque, âmbar, flor-de-laranja ou lavanda. Não
importava que as cadeiras se impuseram desde fazia alguns anos e que as
mulheres se integrassem aos homens nas reuniões; a casa dos Palafox conservava
o estrado como sinal de nobreza espanhola, herança dos árabes.
Dado que Rafaela nunca participava do estrado de sua tia Clotilde, pouco lhe
importava a proibição que pesava sobre Corina. Recebia-a em seu quarto ou no
laboratório, e, embora a Rafaela teria gostado de lhe mostrar seu jardim, ainda lhe
proibiam sair.
Corina encontrava a sua amiga triste. Custava lhe arrancar um sorriso;
impossível escutá-la rir. Parecia como nos tempos depois da morte de Juan de
Dios.
Rafaela ansiava lhe contar sua traumática experiência amorosa e o fez uma tarde
em que se sentia especialmente afligida. Corina a escutou com um gesto aprazível
e a confortou. Nada a escandalizava, nem que Fúria pertencesse a uma condição
tão baixa, nem que falasse mau, nem que tivessem feito amor. Corina julgava
fascinante a experiência.
—O que fará agora?
—Nada —respondeu Rafaela—. Seguirei com meus antigos planos. Nunca me
casarei, criarei Mimita e cuidarei de meu pai na velhice.
—Já não pensa nele?
Habituada a fingir e a ocultar-se e escrava de seu orgulho, Rafaela esteve a ponto
de responder que não. Ao levantar a vista e encontrar a expressão sincera de
Corina, compreendeu que sua amiga não a condenaria, com Corina, seria a
verdadeira Rafaela.
—Todo o tempo —admitiu.
Às vezes, Rafaela caía na conta de que acabavam de passar uns minutos sem
que sua mente recreasse as imagens de Artemio Fúria. O resto do tempo lembrava
dos momentos compartilhados, dos beijos, das carícias, das palavras que, embora
falsas, tinham-na comovido. O rastro de Fúria em seu coração parecia indelével.
Para que empenhar-se em apagá-la se ele a tinha marcado a fogo, quão mesmo ao
gado? Pertencia-lhe, era de sua propriedade. Nem sequer seu corpo respondia a
ela, porque desde que tinha começado a sanar, desde que não desfalecia por causa
da debilidade, a necessidade de sentir a carne dele se fundir com a dela se tornava

170
insuportável e se enchia de palpitações, de inquietação, lhe inchavam os mamilos
e suas mãos vagavam para acariciá-los como os lábios de Artemio Fúria quando os
chupavam.
As conversações com Corina e com Ñuque a ajudavam a tirar fora a angústia, e
lhes formulava as perguntas das que não obtinha resposta em solidão. Quanto
tempo duraria a tristeza? Esqueceria Artemio Fúria? Sorriria de novo? Caía
facilmente no desespero. Pessimista por natureza, via um futuro negro e triste.
Custava-lhe começar uma jornada porque a idéia de terminá-la a desgostava.
Mimita era a alegria de seu coração. Se aferrava a seu corpinho pouco simétrico e
pequeno, parecia-lhe que sua vida estava em ordem.
Os membros da família Palafox jamais teriam adivinhado as penosas horas que
vivia Rafaela. Mostrava-lhe sua melhor cara. Viam-na ocupar do laboratório, da
educação da menina, interessar-se pelas questões domésticas e rir com Aarón.
Quanto a sua prima Cristiana, a enfermidade de Rafaela não tinha servido para as
unir; pelo contrario, mostravam-se mais antagônicas que de costume.
—Sua família está cega se não ver sua dor —assegurou Corina uma tarde em que
acompanhava a Rafaela em sua primeira saída. Babila conduzia o carro que se
dirigia ao Convento das Clarisas.
—Eles vêem o que desejam ver. Em minha família, Corina, não se admitem os
problemas nem as faltas. Tudo está bem e em ordem, sempre.
—Deveria casar e te largar dessa casa. O ambiente me asfixia, com sua tia
Clotilde tão metida e seu pai que me olha de acima, às vezes lhe incomodava a
franqueza de Corina. Juan de Dios teria empregado palavras sutis para expressar
a verdade. De igual maneira, sua amiga tinha razão.
—Não me casarei, já lhe hei isso dito.
—Por que não te casará?
—E com quem o faria? Ninguém se fixaria em mim. Não sou bonita nem tenho
grandes talentos. Além disso, não sou virgem. Como ocultaria essa realidade na
noite de bodas?
—Acaba de expressar a maior seqüência de sandices que ouvi em minha vida —
Rafaela não pôde conter a risada—. É bonita —prosseguiu Corina— e sabe.
—Senti-me bonita nos braços de Fúria, mas nunca fui consciente, nem o sou, de
minha suposta beleza.
—Pois é bonita. E vários se interessam em ti. Não te faça de surpreendida! Bem
sabe que Manuel —falava do Belgrano—, a olha com afeto, quão mesmo Mariano.
—Que Mariano?
—Mariano Orma. E meu chefe —se referia ao Agustín Donado, encarregado da
Imprensa dos Meninos Abandonados—, sempre pergunta por ti. Ah, também
pergunta por ti, embora com outras intenções, a senhorita de Lezica. Vendeu seus
perfumes e cosméticos como rosquinhas e quer saber se seguirá fabricando-os
para ela.
—Não o farei. Meu pai me proibiu isso. Não é decente.
—Bobagens! O que tem de indecente trabalhar? Acaso me julga indecente?
—Não, é obvio que não —vacilou Rafaela.
—Graças a sua indecência, todos estes meses em que seu pai esteve exilado, sua
família não morreu de fome. Segue vendendo seus produtos a Lezica, Rafaela, sem
que ninguém saiba. Eu farei de intermediária. Uns reais no bolso não lhe virão
mau.
Adulava-a que seus produtos tivessem saído das cristaleiras da loja da senhorita

171
Bernarda. A possibilidade de fazer-se de umas economias a tranqüilizava. O
dinheiro lhe dava segurança. Além disso, produzir perfumes e cosméticos era sua
grande paixão. Manter-se ocupada lhe ajudaria a esquecer.
—Está bem. Diga a Bernarda de Lezica que você será nossa intermediaria.
—O que te ocorre? —alarmou-se Corina—. De repente, puseste-te da cor da cera.
—Nada, um ligeiro enjôo. Hei-me sentido lânguida o dia inteiro e não comi. Só
bebi uma infusão de coentro e erva-doce.
***
Para o aniversário de Rafaela, em 7 de maio, Rómulo surpreendeu a sua filha
com um presente que lhe arrancou uma exclamação de alegria: um livro sobre os
segredos da arte de fabricar perfumes. Em seguida pensou nas novas fórmulas
que encheriam as prateleiras da loja da senhorita Bernarda.
—Obrigado, pai. Isto é um tesouro para mim.
Seu pai a desconcertou ao abraçá-la. Rafaela permaneceu rígida contra seu peito.
O contato físico não só era incomum mas também mal visto.
—Está tão magra - lamentou Rómulo—. Deve comer mais.
A idéia da comida lhe provocou uma pontada no estômago. Separou-se de seu
pai e lhe pediu autorização para retirar-se.
Como o livro estava escrito em francês, idioma que não dirigia com a solvência do
latim ou do grego, decidiu visitar frei Cayetano Rodríguez para lhe pedir um
dicionário. Ao retornar a sua casa, escutou da entrada a interpretação no piano de
Música notturna delle strade dava Madrid, de Boccherini. Sem dúvida, admitiu,
Cristiana era uma exímia concertista. Decidida a passar de comprimento, como se
aquele desdobramento de talento filarmônico não a afetasse, deteve-se na galeria
ao entrever a sua tia Clotilde na companhia de León Pruna, seu assíduo visitante,
de quem se murmurava que praticava a usura. Achavam-se em silêncio,
desfrutando da música. Na realidade, Pruna o fazia, com os olhos fechados;
seguindo o compasso com um ligeiro tamborilar de dedos no joelho. Clotilde, em
troca, observava-o a ele, absorta. Um semblante de complacência que lhe
suavizava a rigorosidade das feições chamou a atenção de Rafaela. O que
observaria Clotilde em Pruna que lhe ocasionava essa mudança de atitude? O rito
tinha mudado em uma expressão a qual quase podia definir-se como um sorriso.
Resultava extraordinário ver a sua tia relaxada e contente.
—Boa tarde, senhor Pruna —Rafaela se plantou frente a ele e o sobressaltou.
—OH, senhorita Rafaela! —o homem ficou de pé com um movimento torpe.
—Boa tarde, tia —obteve como resposta uma olhada fulminante—. Vejo que
desfruta da música.
—Sim, sim, muitíssimo. Sua prima de você é uma grande concertista —Rafaela
se limitou a assentir—. Quanto me alegro de vê-la tão reposta! Clo..! A senhora
Romano me comentou que andou você má.
—Sim, mas, a Deus obrigado, já me encontro reposta.
Embora sorrisse e agitasse a cabeça, Juvenal disse que a pneumonia tinha
marcado duramente à senhorita Palafox. Encontrou-a enfraquecida, com a face
enxuta e o pescoço magro e esbelto; círculos escuros lhe orlavam os bonitos olhos
verdes, que careciam do brilho que estava acostumado a faiscar no passado.
Sobressaltaram-se quando Cristiana açoitou o teclado produzindo notas
dissonantes.
—Rafaela! —repreendeu-a—. Entra na sala e te dedica a falar com o convidado de
minha mãe como se eu não estivesse tocando o piano. Sente-se e escuta ou vê-te!

172
Rafaela sorriu com ironia ao senhor Pruna, agitou os ombros e se despediu. Ao
momento, concentrada na análise do livro dos perfumes, tinha esquecido a cena
com Cristiana. Resultava exaustivo interromper a leitura em francês para procurar
palavras desconhecidas no dicionário de frei Cayetano e, a um mesmo tempo,
estimulante. Gostava de realizar investigações. Ñuque entrou com um montão de
roupa limpa. Rafaela levantou a vista dos livros e lhe sorriu.
—Escutei Cristiana queixando —comentou a Índia—. A que se devia?
Rafaela desprezou a briga. Em troca, perguntou:
—Ñuque, quem é o senhor Pruna?
—É o marido de sua tia Clotilde —respondeu a mulher, enquanto acomodava os
lençóis em um arca.
Rafaela ficou de pé de um salto.
—O que há dito?
—Que é o marido de sua tia Clotilde.
—Tia Clotilde é viúva.
—Não o é.
Rafaela se aproximou da anciã, tirou-lhe os lençóis das mãos e a obrigou a
sentar-se em um confidente.
—Explique-te, Ñuque, ou acreditarei que perdeste a razão. Nunca mencionou que
esse homem fora marido de tia Clotilde.
—Porque nunca o perguntou.
—Ñuque, por favor! Explique-te!
—O senhor Pruna é, na realidade, o senhor Juvenal Romano.
—Pai de Aarón e de Cristiana?
—De Aarón não. Só de Cristiana.
—Como? —Rafaela se deixou cair aos pés de Ñuque—. Deus bendito, está
desvairando —afirmou.
—Não o estou. Você perguntou e eu te respondi.
Como sempre que acertava com a pergunta, meditou Rafaela, Ñuque lhe dizia a
verdade.
—O que está dizendo é confuso para mim, Por favor, me explique.
—Sua tia Clotilde casou com o senhor Romano em Córdoba, onde vivíamos
naquele tempo, e partiu para Lima, de onde é oriundo Romano. Isso sabe. Quando
sua prima era pequena, sua tia descobriu Juvenal lendo um livro em hebreu e
praticando ritos judeus —Rafaela abriu grandes os olhos—. Desse modo Clotilde
soube que a havia desposado um cristão novo, que, para pior, era sujo, porque
seguia praticando sua religião anterior, o judaísmo. Não suportou a idéia de estar
casada com um judeu e o abandonou. Ao chegar a Buenos Aires, pediu asilo a seu
pai.
—Que engano tão vil!
Ñuque sacudiu os ombros para desprezar a afirmação de Rafaela.
—Juvenal é um bom homem, Rafaela. Seu pai e ele eram amigos. Conheceram-se
na Universidade de Córdoba, onde ambos estudavam leis. A ele jamais o teriam
admitido se tivesse apresentado como judeu. Visitava freqüentemente a casa de
seu avô, em Córdoba, pela amizade que tinha com seu pai, e assim conheceu
Clotilde. Apaixonou-se perdidamente dela.
—E ela dele?
—Não, não. Tinha entregue o coração e algo mais a outro, o pai de Aarón.
—Isto é inverossímil! Tia Clotilde, disposta a cair sobre mim como o fará Deus o

173
dia do Julgamento Final, tem um passado tão negro como o de uma mulher da má
vida.
—Todos temos segredos escuros, verdade, Rafaela? —disse a mulher, e levantou
as pálpebras rugosas para perfurá-la com um olhar que desmentia a velhice da
Índia.
—Todos, Ñuque, é certo. Entretanto, nem todo mundo julga a meia humanidade
por seus atos. E isso é o que faz tia Clotilde —percebia como o ressentimento se
apoderava de seu coração e o enchia de escuridão.
—Você também é uma grande preconceituosa, Rafaela, e julga a seus
semelhantes sem compaixão. Faz com seu pai e com sua prima Cristiana. E agora
com sua tia Clotilde.
Rafaela a olhou com dureza. Não tinha sabor de mel que lhe marcassem os
defeitos; se os marcava Ñuque, das poucas pessoas que respeitava, doía-lhe
profundamente.
—Quem é o pai do meu primo Aarón? —perguntou com frio acento para ocultar
seu orgulho machucado.
—Um militar espanhol, também amigo de seu pai. Embora pensava desposar a
sua tia Clotilde, ela rompeu o compromisso quando se inteirou de que seu
prometido coabitava com uma mulher. Seu pai o desafiou a duelo.
—Seriamente! —a Rafaela custava imaginar a seu pai com uma arma na mão.
—O duelo não chegou a ter lugar. Teria sido um escândalo. Sua tia já estava
grávida...
—E teria que salvar sua honra —demarcou Rafaela, com ironia.
—Clotilde aceitou Juvenal como marido e partiu para Lima. Levava cinco meses
de embaraço, os quais, embora bem ocultos sob uma apertada bandagem, logo a
sociedade cordovesa descobriria. Seu primo nasceu em Salta.
—Sabe meu pai que Aarón não é filho de Juvenal?
—É obvio. Foi ele quem fez os acertos das bodas.
—Aarón sabe que não é filho de Juvenal Romano?
—Sabe. Deve ser prudente posto que sua prima Cristiana pensa que seu pai
morreu quando ela era muito menina. Não sabe quem é, em realidade, León
Pruna.
—O que foi do pai de Aarón?
—Não sei. Ao pouco tempo do casamento de Clotilde, seu pai foi renomado
Diretor Geral da Real Rende de Tabacos aqui, em Buenos Aires, e deixamos
Córdoba para sempre.
—Alguma vez voltaram a ver o pai de Aarón?
—Rómulo teve notícias dele tempo atrás.
—Como se chamava, Ñuque?
—Deveria perguntar "como se chama" pois, até o que sei, não morreu. Seu nome
é Martín Avendaño.
—Como era ele, Ñuque ?
A anciã não duvidou em responder:
—Endiabradamente atrativo —guardou silêncio, como se meditasse as palavras—
: E galante, quando o propunha. Seu olhar, de um cinza como o aço, transmitia
um domínio que me assustava. Às vezes, Artemio Fúria me recorda isso.
Rafaela empalideceu e baixou a vista. Fazia tempo que sua ama não o
mencionava, e gostava de pensar que Fúria formava parte do passado. Não
obstante, a menção de seu nome desatou fortes palpitações em seu peito.

174
—Existia algo sombrio e sinistro em Avendaño, algo que acreditei ver nos olhos
de Fúria —Ñuque posou a mão na face de Rafaela para dizer—: Tesouro —a afetou
que a chamasse com esse apelido, ao que jogava mão em contadas ocasiões—, foi
para melhor que esse homem saísse de sua vida.
—Porque era um gaúcho? —chateou-se Rafaela, e em seguida se arrependeu.
—Bem sabe que não. Os homens como Avendaño e Fúria são superiores a nós,
simples mortais. Possuem um espírito de ferro e, sobre tudo, não conhecem o
medo. Isto os converte em criaturas especiais, indestrutíveis. Ao igual Avendaño
mais de vinte anos atrás, Fúria teria trazido a desgraça a esta família
—Esta família! —exclamou Rafaela, em tanto se tirava as lágrimas com o dorso
da mão—. Que família a minha, Ñuque! Uma casca vazia, isso é o que somos. Só
uma casca. Quanta mentira e hipocrisia! Quanta desfaçatez! Envergonho-me de
que o sangue Palafox corra por estas veias —exclamou, com o braço estendido.
Rafaela perdeu interesse na tradução do livro de perfumes e passou o resto da
tarde atirada na cama, olhando a seda branca do dossel, saltando de um
pensamento a outro. Ao anoitecer, Creóla trouxe Mimita, que se deitou a seu lado
e lhe pediu em sua meia língua que lhe contasse uma história de princesas e
dragões. Rafaela lhe deu gosto e, enquanto lhe relatava o conto de Perrault,
Riquete, o do topete, e lhe acariciava os cachos de cabelo, observava-a e refletia:
"Você é a vítima desta malfadada família. Você é o único de bom que surgiu os
Palafox", porque ela, Rafaela Palafox e Binda, também formava parte da rede de
mentiras e hipocrisia que se entreteceu com os anos e, portanto, reputava-se uma
escória como outros.
—Gostou do conto? —perguntou à menina, e a viu assentir.
Em ocasiões, Mimita a contemplava com a fixidez e intensidade de um adulto. De
repente, não parecia retardada, justamente o contrário. Passou-lhe a mão pelo
rosto para suavizar o rigor do gesto.
—O que ocorre, tesouro?
—Atiemo? Atiemo?
O sorriso congelou nos lábios de Rafaela. Mimita não o tinha mencionado na
volta de La Larga e tanto Creóla como ela acreditavam que o tinha esquecido.
Iludidas! Mimita também o amava do modo desmesurado em que Artemio Fúria
sabia fazer-se amar. "Maldito seja por destruir o coração de uma criatura
inocente".
—O senhor Fúria se foi, tesouro, e não retornará jamais.
Uma funda tristeza encheu de lágrimas os olhos. Mimita tinha baixado a cabeça
e aferrava em seu punho o tato com os pingentes de osso que ninguém podia lhe
tirar. Essa noite, depois de jantar em silêncio, de acordo com o costume das boas
famílias espanholas, Rómulo falou sobre os avanços do trâmite para obter a Carta
Executória de Nobreza, documento que lhes devolveria a dignidade nobiliária aos
primogênitos Palafox. Seu entusiasmo contagiou ao resto dos membros, que
faziam planos para o dia em que chegasse o diploma, atochado de anéis e com a
assinatura do rei Fernando VII. Rafaela, que simulava ler Sentido comum, de
Thomas Paine, esforçava-se por sujeitar seu caráter irascível porque se tivesse
dado rédea solta, teria arrojado o livro ao rosto de seu pai e se teria arrojado a
enumerar os ocultos pecados dos Palafox.
—Foi indispensável —escutou comentar a sua tia Clotilde—, ter conseguido esse
documento que certifica a pureza de nosso sangue.
—Teria sido horroroso que a Real Audiência se negasse a estender tão valioso

175
documento, verdade? —expressou Rafaela.
—Sim —admitiu Rómulo—, teria sido vergonhoso.
—Por quê?
—O que pergunta desnecessária, filha! Teria sido vergonhoso posto que teria
significado que nossa família não pode proclamar-se livre de más raças, como a
dos negros, mouros, mulatos...
—E judeus —soltou Rafaela.
—E judeus, é obvio! Era mister demonstrar que somos cristãos velhos.
Rafaela observou Clotilde de soslaio e advertiu que, embora mantinha a vista
baixa, tinha detido o bordado e se concentrava no diálogo entre ela e seu pai.
—Pergunto-me o que teriam feito a Virgem Maria, São Pedro, São Paulo e o resto
dos Apóstolos se lhes tivesse exigido um certificado de pureza de sangue. Eles não
teriam sido capazes de demonstrar ser cristãos velhos. De fato, são os Cristãos
mais novos que alguma vez existiram! - exclamou, com voz carregada de uma
risada que pouco tinha de alegre.
Aarón soltou uma gargalhada.
—Cale-te, Aarón! —admoestou-o Clotilde, e girou o rosto para sua sobrinha—. É
desavergonhada como sua tia Pola. Ela também estava acostumada a blasfemar.
Lamento que Rosalba lhe encarregasse sua educação.
—Em troca, eu lhe estou muito agradecida. Prefiro a falta de vergonha de minha
tia Pola a sua hipocrisia, tia Clotilde.
Várias exclamações alagaram a sala.
—Tio Rómulo! —queixou-se Cristiana—. Permitirá que insulte a minha mãe?
—Rafaela —falou Palafox—, te desculpe com sua tia e vá para seu quarto.
Rafaela ficou de pé com a maior dignidade que conseguiu reunir e partiu sem
abrir a boca. Até depois de ter cruzado o primeiro pátio, escutava destrambelhar
Clotilde. Fechou a porta de seu dormitório evitando fazer ruído, embora a teria
tirado de suas dobradiças. Arrojou o livro sobre a penteadeira e se tornou de
barriga para baixo na cama a chorar. O rancor a afogava e não sabia a quem
dirigi-lo. A seu pai, a Cristiana, Clotilde, a Pola, por havê-la abandonado. Não, a
Fúria, o único culpado de sua miséria, por havê-la adoçado com a liberdade para
depois arrojá-la na escuridão e em uma tortura sem fim. Queria arrancá-lo de sua
cabeça.
Abaixou-se porque lhe faltou o ar. Sentou-se no bordo, com as pernas fora da
cama, apoiou as mãos aos flancos do corpo e jogou a cabeça para frente,
procurando encher seus pulmões entre os espasmos e o pranto. Não desejava
viver. A vida se tornou trabalhosa. Embora fingia desde fazia anos, não tolerava
seguir adiante com a farsa. Não era feliz e queria expressá-lo. Entretanto, o
orgulho a salvava de humilhar-se ante Clotilde e Cristiana. Tragou o nó que lhe
estrangulava a garganta e passou as mãos pelo rosto bruscamente. Superaria o
abandono e o engano de Fúria. O, depois de tudo, era só um gaúcho.
***
Apenas Rafaela se retirou da sala, Rómulo indicou a Aarón que o acompanhasse
a uma pequena habitação, mas afastada, a que só acessava o dono de casa. Ali, o
mais jovem serviu umas taças com brandy de duvidosa qualidade e tomou assento
frente a seu tio, cujo semblante tinha adotado uma expressão rigorosa.
—Tio, realmente acredita que recuperará o título de marquês de Montalbán?
—Tenho todas minhas esperanças postas nisso, Aarón. Nossa família manteve
uma trajetória irrepreensível. Seu avô Ambrosio realizou grandes serviços aos

176
Bourbons e por isso obteve a licença para explorar as minas de Potosí. Nenhum
escândalo rodeia o nome Palafox, nossos antecedentes são impecáveis.
—Se chegasse, ou seja, se o de Juvenal Romano...
—Nem o mencione! Juvenal prometeu a sua mãe que não abrirá a boca.
—Até quando e a que custo?
—No momento, nada pediu. O importante é evitar escândalos associados a nosso
nome. Nada deve empanar o sobrenome Palafox —depois de uma pausa, em que
bebeu um comprido trago, Rómulo trocou o tom para expressar—: Sabe que vejo
com bons olhos a proposta que me fez em Montevidéu. Ter você como genro seria
uma alegria para mim.
—A proposta segue em pé, tio.
—Embora me custe admiti-lo, dei asas a Rafaela e perdi o controle sobre ela. Sei,
sei, fui brando e condescendente ao educá-la, mas é minha única filha e o mais
importante que tenho na vida.
Cristiana, que ouvia detrás da porta, apertou a mão na tranca e fechou os olhos
para evitar que lágrimas de raiva lhe banhassem o rosto. Tinha entregado sua vida
a Rómulo; não obstante, ocupava um segundo lugar em suas prioridades afetivas.
Rafaela, sempre Rafaela. Odiava-a e não sabia como tirá-la do meio.
—Quero que as bodas se realizem antes que termine este ano —seguiu Rómulo—
. É obvio, viverão aqui, posto que não consentiria que lhe levasse longe —a este
ponto, Cristiana teria irrompido no escritório e golpeado a seu tio—. Entretanto,
ela se converterá em sua responsabilidade e você a guiará com mão férrea, embora
com respeito. Embora não intervirei em seu matrimônio, não tolerarei a violência.
—Tio, por favor!
—Aarón, fixaremos agora o dote. Amanhã comunicaremos nossa decisão a
Rafaela e começaremos com os preparativos. Como sabe, depois de meu exílio e do
saque de que fui vítima, minhas finanças sofreram um duro golpe. Entretanto, já
estou em gestões com o senhor vice-rei para que me restituam aquilo que as
tropas me roubaram. Não poderei te entregar o total até que me devolvam esse
dinheiro. De igual modo, amanhã concorrerei ao do notário para lavrar a ata onde
estipulo os bens que conformarão o patrimônio que te entregarei junto com
Rafaela. Tuas serão La Larga, e uma soma de doze mil pesos de moeda forte, a
mais o enxoval que Ñuque preparou para a Rafaela desde que era uma menina e
da prataria que pertenceu a minha esposa Rosalba, que é muito valiosa.
Aarón haveria desposado a sua prima ao dia seguinte para fazer-se da pequena
fortuna que o salvaria de tantos problemas e lhe permitiria montar seu negócio.
Esforçou-se por manter-se impassível, como se o anúncio nada significa-se para
ele.
—É você muito generoso, tio.
"Doze mil pesos de moeda forte!", horrorizou-se Cristiana. "Sobre meu cadáver
Aarón receberá essa soma".
—Aarón —disse Rómulo, e ficou de pé para remarcar a solenidade de seu
discurso—: entrego a minha filha, meu tesouro maior, o que mais amo neste
mundo. Espero que esteja à altura para recebê-lo e cuidá-lo.
Cristiana refletiu que bastaria uma palavra de Rafaela para que Rómulo e ela
contraíssem matrimônio. Sua prima, entretanto, tinha-lhe declarado a guerra.
Um momento mais tarde, Aarón se vestiu com seu casaco de barragán e se

177
calçou as luvas de couro antes de montar seu picazo27 e foi ao centro. Seu porta-
níqueis ia cheio graças a um adiantamento do dote concedido por seu tio.
"venderei o gado que o tal Fúria recuperou", tinha-lhe informado Rómulo, "a muito
bom preço. Poderei te dar o que me pede", ao final, a intervenção de Fúria o tinha
favorecido pois de seguro teria obtido menos dos ladrões.
Deteve o cavalo frente ao negócio da senhorita de Lezica e bateu na porta com
golpes insistentes, despreocupado da hora. Bernarda apareceu atrás do cristal
com o cabelo solto e envolta em um salto da cama. Aarón a encontrou irresistível e
se passou a língua pelo lábio inferior ao imaginar a noite que passariam juntos.
Bernarda o repreendeu sem lhe abrir:
—O que faz aqui, senhor Romano?
—Preciso falar com você.
—Volte para uma hora decente.
—Trago parte do dinheiro que lhe devo. Acabo de consegui-lo e não queria
demorar um minuto mais o pagamento.
—Esperei-o semanas, senhor Romano. Umas horas mais não serão problema.
—Abra-me, por favor. Preciso falar com você —insistiu.
A cortina que separava a loja do interior da casa correu para dar passo ao
Juvenal Romano, com o cabelo desgrenhado e envolto em uma bata de fina seda
púrpura. Embora suspeitasse que existia um namorico entre eles, a visão turvou
Aarón e, ao recuperar-se da surpresa, a ira se apoderou dele. Desejava Bernarda
de Lezica mais do que se permitiu admitir. A questão superava a dívida. Pensava
de contínuo nela e em pular entre suas pernas. Fulminou-os de uma olhada antes
de girar sobre si e caminhar às pressas para seu cavalo.
Rumbou para o Baixo e se meteu em um local miserável onde estava acostumada
a desafogar seus apetites sexuais e suas ânsias depois de jogar. Bebia genebra em
silêncio e sem companhia quando uma sombra se projetou sobre ele. Elevou o
rosto. Um homem —ao julgar pelas suas toscas e escuras feições—, não muito alto
e bem robusto, olhou-o aos olhos com uma insolência que o chateou.
—Retire-se e não me incomode.
—Senhor Romano —falou o empregando um modo que desmentia seu olhar
turvo—, apresento-me. Meu nome é Tarcisio Gabino, mas conhecem-me como "o
domador".
—E o que tem que ver isso comigo?
Gabino sorriu, paciente, e voltou a tomar a palavra.
—Se diz por ai que sua excelência anda procurando um perito como eu para um
negócio que pensa abrir perto de Hueco de las Cabecitas —se tratava de uma área
desolada no norte da cidade, perto de Retiro.
—Poderia ser que esteja certo —respondeu Aarón, de repente interessado. Abrir
um bordel e uma casa de jogo clandestino para gente da pior estirpe podia
converter-se em um negócio tão lucrativo como arriscado. Dali que contar com um
pequeno exército de homens robustos e sem escrúpulos resultasse indispensável
para subsistir.
Aarón estudou o que lhe pedia. Não parecia melhor nem pior que outros
paroquianos.
—Para que é bom?

27
Malhado, espécie de cavalo.

178
—Ninguém me ganha com o facão.
—Ninguém? —Aarón elevou uma sobrancelha? Incrédulo, e advertiu que o
homem perdia a segurança.
Gabino estava pensando em Artemio Fúria e na humilhação a que o tinha
submetido em La Larga frente a seus companheiros, ganhando a briga e ficando
com seu facão.
—Ninguém, patrão. Juro —disse, e executou o símbolo da cruz sobre seus lábios.
***
Rómulo analisou sua imagem no espelho de cavalete e gostou do que viu. Apesar
de seus quarenta e cinco anos, tinha poucas rugas e seus rasgos não tinham
sofrido grandes alterações. Inspirou para expandir os peitorais e admirou seus
ombros quadrados e seu ventre chato. O ano de exílio, primeiro na Patagônia, em
Montevidéu depois, durante o qual em mais de uma ocasião foi dormir com o
estômago vazio, tinha servido para acabar com uma pança incipiente. Ainda
conservava um físico magro e juvenil. Olhou-se aos olhos e sorriu. Quando seus
olhos verdes me contemplam no cenário me fazem vibrar. Sabia-se de cor a nota
de Albana Buquê. Tinha-a julgado esplêndida em sua apresentação na Las armas de
la hermosura , a obra de Caldeirón de La Barca. Dominava-o a ansiedade por voltar a
vê-la sobre o cenário, desejava receber seus olhares ocultos e seus sorrisos
sugestivos e compartilhar a cumplicidade que centenas de pares de olhos
ignoravam enquanto a admiravam e desejavam, tinha-o pasmado a nota que um
menino lhe entregou à saída do teatro e na qual a senhorita Buquê confessava seu
interesse por conhecê-lo. Em um par de dias, voltaria para teatro para desfrutar
de sua atuação e, terminada a obra, a visitaria em seu camarim para iniciar uma
relação. Como nunca, desejou contar com sua Executória de Nobreza para
impressioná-la. Além disso, necessitava a renda associada ao título de marquês.
Uma amante como a senhorita Buquê seria algo barato.
Cristiana entrou no quarto de seu tio sem chamar e o descobriu contemplando-
se frente ao espelho, com um sutil sorriso nos lábios que lhe sentava muito bem.
Desejou-o.
—Rómulo —disse, como o chamava na intimidade.
Sem dar-se volta, Palafox a olhou através do espelho. Sua beleza sempre o
afetava. Baixou a vista e a fixou em seus seios, que, redondos, erguidos e
delicados, apareciam sob o merino da bata. Desejava-a como sempre, com a
paixão abrasadora que o tinha conduzido ao seu quarto anos atrás para convertê-
la em mulher quando ainda era uma menina. Não obstante, perguntou-lhe com
frieza:
—O que faz aqui?
—Sinto sua falta —admitiu Cristiana—. Desde que retornou do Montevidéu,
nunca foste a me visitar em meu quarto.
Embora lhe custasse, Rómulo tinha esboçado outros planos. Conseguiria um
marido para Cristiana e a afastaria da casa da rua Larga. Tamparia sua falta de
virgindade com um bom dote e o prestígio que significava ser a irmã do futuro
marquês de Montalbán, posto que Aarón Romano se faria do título à morte de
Rómulo. Não devia cair de novo na tentação se já não estava disposto a desposá-
la, e não o faria por várias razões, o pânico a engendrar novamente uma criatura
como Mimita contava entre as principais; entretanto, a possibilidade de perder o
carinho de Rafaela pesava mais que as outras.

179
—Retorna ao seu quarto, Cristiana. Não quero que lhe encontrem aqui.
—Quem poderia vir a seu quarto a estas horas?
—Sua prima Rafaela está acostumada me trazer remédio.
—Rafaela! —chateou-se—. Sempre Rafaela.
—Ela é minha filha, Cristiana. Minha única filha.
—E eu sou sua mulher, seu amor, conforme me dizia antes de partir ao exílio.
—Não quero escândalos neste momento, me entenda, o nome dos Palafox não
pode estar em boca de ninguém enquanto tramita a Carta Executória de Nobreza.
—Desposar-me seria um escândalo?
—Sabe que sim.
—Nega-te a me desposar pela Rafaela, não por temor ao escândalo.
—Cristiana, estou muito cansado. Preciso dormir. Amanhã falaremos.
—Rafaela sabe de nós. Sabe que você é o pai de Milagres.
Palafox demorou uns segundos em absorver a transcendência da informação.
Com dois passados compridos, equilibrou-se sobre sua sobrinha e a aferrou pelos
ombros.
—O que está dizendo?
—Eu mesma o disse —expressou Cristiana, com acento firme.
Palafox ficou mudo, com a boca entreaberta. Seu fôlego a brandy golpeava o rosto
da jovem, que o contemplava com firmeza e coragem.
—Como foi capaz de a machucar desse modo? Agora compreendo a atitude de
minha filha. Agora compreendo seu comportamento estranho, sua frieza. Vai antes
que eu perca os estribos.
—Rómulo...
—Vá-te! Abandona meu quarto!

180
Capítulo XVI

São estes tempos radicais

Na sexta-feira 18 de maio, Corina Bonmer se apresentou na casa da rua


Larga com notícias que, em sua opinião, trocariam o curso da história do Rio da
Prata. Rafaela, imersa em suas misérias e tristes memórias, escutou-a com atitude
abúlica, tendida no divã de seu dormitório, junto ao braseiro. Corina, que preferiu
permanecer de pé e que percorria o quarto em tanto arengava mais que comentava
as novidades, explicou-lhe que cinco dias atrás, no domingo 13 de maio, tinha
ancorado perto da costa de Buenos Aires uma fragata inglesa pertencente à frota
do conde de Blackraven, que trazia periódicos de princípios de ano com notícias
da Espanha. Ditos periódicos londrinos tinham chegado, em menos do que
cantava um galo, à mãos do representante dos comerciantes britânicos no Rio da
Prata, Alexander Mackinnon, e da Sociedade dos Sete.
—Agustín —Corina falava de seu chefe da Imprensa dos Meninos Abandonados,
Agustín Donado—, traduziu o artigo do periódico imediatamente e me ordenou
imprimir centenas de cópias. Os moços empapelaram Buenos Aires com este
impresso. Olhe —e lhe tendeu um, ao qual Rafaela lhe jogou uma olhada—. Por
sua parte, Manuel —se referia ao Belgrano—, publicou-o no Correio de Comércio
de Buenos Aires. Acaso seu pai não o leu?
—Não vi a meu pai. Anda, Corina —disse Rafaela, e lhe devolveu o libelo—, não
me faça lê-lo. Diga-me o que diz.
—Que a Junta de Sevilha caiu! Seus membros fugiram espavoridos quando o
exército francês entrou na cidade. E agora um grupo de comerciantes gaditanos28
formou Junta no Cádiz, e pretende nos governar. Veja! Pretensões vãs —
assegurou—. Esta manhã, assediado pelos pasquins e as reclamações de nossos
patriotas, o Surdo publicou uma proclama vergonhoso. Diz que com ele estamos
seguros! E que sua autoridade segue vigente. Que vigente nem oito quartos! Se
caiu a Junta de Sevilha, Cisneros perdeu legitimidade. Ele assegura que não se
realizará nenhuma mudança até que não sejam consultados, entre outros, o vice-
rei do Peru. Imagine!
Rafaela lhe teria perguntado que diabo tinha que ver isso com ela. Não obstante,
calou para não desencantar Corina. Invejou sua vitalidade e paixão.
—A cidade está que arde, Rafi, e a mina, ao arrebentar. Não deseja vir comigo?
Verá Pancho Planes e seu primo Vicente López pregar na Hospedaria das Nações, e
a Orma e a Donado no Café de Marcos. Falam de formar Junta aqui!
—Sim, minha menina —se uniu Creóla, que por comentários de seu noivo, o
vendedor de água Paolino, sabia a respeito do convulsionados que se achavam os
arredores da Praça da Vitória—, vamos à cidade. Fará bem sair um pouco deste
fechamento.
—Tenho que terminar uns rosários de pétalas de rosas para as Clarisas e uns

28
Pessoas que nasceram na cidade de Cádiz, Espanha.

181
sabões para a senhorita de Lezica.
—Fala-me de rosários e sabões neste momento histórico, Rafaela! Vamos, não
seja sem graça —a atirou da mão para obrigá-la a incorporar-se—. Creóla, traz o
xale de sua ama, suas luvas e as botas de cano longo!
Creóla se apressou a cumprir a ordem. Precisava afastar-se da rua Larga. Uma
opressão a angustiava desde muito cedo quando, ao ver Peregrina enxaguar os
panos29 da senhorita Cristiana, caiu na conta de que fazia tempo que não lavava
os de sua ama. Essa manhã, ao despertá-la, tinha tido que lhe aproximar a bacia
para que vomitasse. Sua ama estava esperando um filho do gaúcho Fúria e
parecia não haver-se dado conta. "Caiu-me mal o pescado que comemos no
jantar", tinha assegurado. Creóla não se atrevia a dizer-lhe —Que revolução?
A apatia de Rafaela trocou por interesse ao chegar à Praça da Vitória, onde um
movimento incomum de tropas e civis alterava a paisagem do centro da cidade.
Corina tirou meio corpo pelo guichê e gritou:
—Ei, Babila, negro lindo! Leve-nos ao quartel dos Patrícios!
—Iremos aos quartéis? —escandalizou-se Rafaela.
—Sim, iremos ao coração da revolução!
—Que revolução?
—A revolução que estivemos esperando, Rafi! A revolução que nos sacudirá de
cima o jugo dos pelucones (cabeludos) —assim chamavam os peninsulares por
usar perucas empoeiradas.
—O senhor Rómulo é espanhol —assinalou Creóla, com ar ofendido.
—Pois o sinto por ele.
A esse ponto, Rafaela entendeu que as notícias de Corina, as que em um
princípio lhe tinham resultado alheias, afetariam sua vida possivelmente do modo
irrevogável em que o tinha feito a passeata de 1o de janeiro de 1809.
Rafaela e Creóla não desdobraram nada da segurança de Corina ao transpor a
soleira do quartel dos Patrícios, e caminharam muito juntas, com as cabeças
pegas e tiradas do braço. A tropa se via exaltada. Cruzavam o pátio à carreira,
vociferando e soltando gargalhadas, agrupavam-se para conversar ou ler algum
pasquim. Em seus semblantes se refletia o ânimo confabulador que os dominava.
—Rafaela!
Rafaela, Corina e Creóla giraram e em seguida descobriram que não havia motivo
de alarme: tratava-se de Isabel de Pueyrredón de Albarellos, que, rodeada por um
séquito de mulheres, aproximava-se para as saudar.
—Que agradável surpresa! —disse a modo de saudação.
—O mesmo digo, Isabel.
Isabel a apresentou a seus amigas.
—Este é o anjo que me ajudou a trazer para o mundo a meu pequeno Nicanor.
Apesar do olhar de apreciação com que a honravam, Rafaela não conseguia
despojar-se da sensação de desconforto que lhe causava socializar com as amigas
de Cristiana. Essas mulheres acreditavam que Mimita era sua filha.
Rafaela e Corina acabavam de advertir que as moças foram cobertas de xales de
bolinha celeste debruados com fitas brancas de gorgorão quando Maricas
Thompson, uma das do séquito, assinalou a mantilha escura de Rafaela.
—Deveriam levar nossas cores, o celeste e o branco, se é que estão com a causa

29
A autora menciona apositos (curativos). Relaciona-se ao ciclo menstrual.

182
dos patriotas.
—Não sabia que esses fossem as cores dos patriotas —apontou Rafaela,
intimidada—. A que se deve que sejam celeste e branco?
—São as cores da Cavalaria —explicou Corina—. O sargento Arzac me explicou
que os gaúchos de Pueyrredón levavam duas cintas, uma celeste e outra branca,
presas ao poncho quando expulsaram aos ingleses. Tomaram as cores do manto e
da túnica da Virgem de Lujan. Fizeram-no para que Ela os protegesse na batalha.
—Estamos tão felizes com as novas notícias —expressou Isabel de Pueyrredón—.
A queda de Sevilha nas mãos dos franceses anelou um destino de liberdade para
esta terra. Nossos bonitos patriotas se preparam para o que for.
—Meu pai —atravessou Ángela, e se referia ao doutor Castelli—, sustenta que
poderemos formar governo sem necessidade das armas. O que se busca é
convocar um Conselho Aberto para discutir e votar a sorte do Vice Reinado.
—De todos os modos, a presença do coronel Saavedra é imperiosa —esclareceu
Remédios de Escalada, filha do locador de Corina—, embora não seja para
amedrontar ao Surdo. Logo sairá uma comitiva para São Isidro para trazê-lo.
—Ao rastro, se for necessário! —demarcou Angela.
—Quem irá buscá-lo? Tem que tratar-se de homens distintos e respeitáveis para
convencer ao coronel.
—OH, não te inquiete por isso, Maricas —expressou Isabel—. Meu irmão acaba
de me dizer que irão alguns da Infernal, com seus comandantes à frente.
—De seguro o trazem, pois. Já sabemos que a French e Beruti nada os intimida.
—A mais se vão escoltados pelo gaúcho Fúria —demarcou Remédios, com um
brilho peculiar no olhar.
Creóla percebeu o estremecimento de sua ama e Corina sentiu como lhe apertava
o antebraço.
—Tranqüila —lhe sussurrou.
—Falando do rei de Roma… —sentenciou Remédios, e seus amigas se deram
volta para olhar em direção ao portão principal do quartel.
Artemio Fúria acabava de transpô-lo. Sobressaía entre os milicianos por seu
cabelo loiro e sua altura, e pela companhia de uma mulher deslumbrante. Rafaela
os olhou com olhos como pratos, e Corina e Creóla viram como lhe separavam os
lábios lentamente e seus maçãs do rosto ficavam sem cor.
—Ah! —surpreendeu-se Ángela—. Essa que vem junto a ele deve ser Albana
Buquê, a atriz.
—Sim, sim, é-o! —ratificou Remédios—. Aluga umas habitações nos Altos de
Escalada. Não é magnífica?
Toda a tropa se mobilizou para saudar a mulher. Rafaela se dedicou a estudar
seu traje enquanto permitia que um sentimento de aversão e de raiva se
apoderava dela; não tinha intenções de reprimi-lo. A beleza e a superioridade de
Buquê lhe resultavam insultantes. Sentiu-se feia e vestida com farrapos. Um
demônio se erguia dentro dela e a tentava com idéias macabras.
—Tranqüila —voltou a sussurrar Corina e, em voz alta, expressou—: Nós lhes
deixamos, senhoras e senhoritas. Devemos encontrar o sargento Arzac. Boa tarde.
Corina, assídua visitante do quartel, conhecia-o bem, por isso se moveu como se
achasse em sua casa. Logo se refugiaram em um quarto vazio.
—Sente-se.
—Não —se opôs Rafaela—, quero vê-lo-o contemplou pela fresta de uma janela.
Pavoneava-se com a tal Albana Buquê, repartindo sorrisos às amigas de Isabel,

183
flertando com Remédios de Escalada, que desdobrava um comportamento
indecente—. O odeio —murmurou.
—Não, minha menina —atravessou Creóla—. Não o odeie.
—E por que não deveria fazê-lo? —zangou-se Rafaela.
—Pois... Pois... Porque você... Ele... Você e ele deveriam falar, minha menina.
—Do que? Fúria foi muito em claro ao me dizer que eu seria um estorvo em sua
vida.
—Pois têm que falar. Você não se deu conta, minha menina, mas... Você vai ter
um menino. O filho de Fúria.
—Cale-te! —Rafaela pareceu rugir a palavra. Baixou a cabeça, apertou os olhos e
fechou os punhos. Parecia perturbada, não surpreendida.
—Você já sabe, minha menina?
—Suspeitava-o —admitiu, quase sem fôlego—. Meu Deus, o que farei?
As gargalhadas que exploraram no pátio do quartel contrastaram com o
ambiente lúgubre do quarto e os semblantes pesarosos das três moças.
Essa noite, na casa da rua Larga, ocorreu algo incomum: seu pai e Aarón
falaram durante o jantar, e o fizeram para referir-se aos acontecimentos políticos
dessa sexta-feira 18 de maio. Ambos se mostravam acalorados com as novidades e
realizavam conjeturas e emitiam julgamentos. Pela primeira vez, Rafaela ouviu
memorar aos "chisperos" e aos "manólos".
—Quais são esses? —animou-se a perguntar Cristiana.
—Uns tipos ao mando do French —explicou Aarón— que nada têm de soldados,
mas bem são patrícios, gaúchos e peões com intenções de amedrontar ao vice-rei.
—Por que os chamam desse modo tão peculiar?
—Seu avô Ambrosio —tomou a palavra Rómulo—, estava acostumado a nos
contar que existiam em Madrid dois bairros onde habitava a gentinha. Estes eram
o Lavapiés e a Barquinha. Dado que o primeiro estava dominado por judeus,
chamavam a seus habitantes "manólos", já sabem, por isso de que os
primogênitos dos convertidos devem chamar-se Manuel. Na Barquinha eram
maioria os ferreiros, dali que os chamassem "chisperos". De modo que, quando
ouvirem memorar a "chisperos" e "manólos", não tenham dúvida de que se está
falando de gente da pior estirpe.
Não era o discurso que Rafaela desejava escutar nesse momento. Estava
cansada, doía-lhe a cabeça e lhe pulsavam os pés. A ira que tinha experimentado
ao ver fúria na companhia dessa prostituta foi convertendo-se em angústia e
depressão. Tinha o ânimo pelo chão.
—Pai, poderíamos ir a sua sala, por favor? Preciso falar com você.
Rómulo temeu que queria abordar o tema de sua relação com Cristiana, assim
pensou em negar-se. Ao final, assentiu. Aproveitaria para lhe comunicar sua
decisão de entregá-la em matrimônio a Aarón. A conversação não começou como
ele esperava.
—Pai, preciso me retirar um tempo ao Convento das Clarisas.
—Do que está falando?
—Minha alma necessita paz. Os últimos tempos foram difíceis. Com seu exílio,
tudo se precipitou, e vivemos situações de muita angustia —Palafox baixou a
vista, envergonhado—. Agora que você retornou e que tudo começa a solucionar-
se, desejo me retirar a meditar.
—De que diabo está falando, Rafaela? Quer te converter em freira? Não o
permitirei!

184
—Não, pai. Não se trata disso. Só procuro me serenar. Há um tempo, sofro um
permanente desassossego, não durmo bem, não como bem, nada me conforma. Só
necessito silêncio e paz.
—O que precisa é um marido.
—Decidi que jamais me casarei —objetou Rafaela—. Permanecerei a seu lado,
cuidando-o, e criando Mimita.
—Sandices! Casará. Não permitirei que esbanje sua vida. E já decidi com quem o
fará. Casará com seu primo Aarón —disparou, sem pausa.
—O que?
—Ele é de minha confiança. Conheço-o desde pequeno. É como um filho para
mim.
—Mas eu não o amo —balbuciou Rafaela.
—O que importa isso? O matrimônio não é uma questão de amor. Não me venha
com esses desatinos! De seguro, tenho que lhe agradecer a sua tia Pola por eles —
suavizou o gesto e o tom para expressar—: Rafaela, não sofrerá por nada. Com o
tempo, chegará o carinho. Aarón te respeita e se fará cargo de ti do modo em que
eu o faria.
—Pai, não o farei. Não desposarei Aarón, Não posso fazê-lo.
Rómulo se moveu com impaciência e esfregou o rosto até lhe arrancar uma cor
encarnada.
—Rafaela, não estou solicitando sua opinião. O dever de um pai é brigar pelo
bem-estar de sua filha. E eu julgo que uma aliança com Aarón é o melhor para ti.
—Não o farei —se empacotou Rafaela.
—Fará. Deve-me respeito e obediência.
—Obedeci-o em tudo, pai. Nisto, não.
—Fará! Não se fale mais do assunto.
—Não o farei! —gritou, e fez o gesto de partir.
Palafox a sujeitou pelos pulsos e, de um puxão, aproximou-a para lhe dizer:
—Estou cansado de seus desplantes e caprichos, Rafaela. Fui brando contigo e
aqui tem os resultados. Converteste-te em uma jovem díscola e irreverente. Casará
com o Aarón. Esta conversação terminou.
No silêncio que se abateu sobre eles, seus olhos pareciam falar com gritos.
Rafaela considerou lhe espetar seu assunto com Cristiana, embora já sabia que
não o faria; tratava-se de um tema muito vergonhoso e delicado. Em troca,
manifestou com aprumo:
—Não poderei me casar com o Aarón porque espero o filho de outro homem.
Tempo depois, Rafaela se perguntaria de onde tinha surgido a coragem para dizer
a verdade a seu pai, quando desgostá-lo e lhe desagradar constituíam seu pior
pesadelo.
Rómulo não compreendeu imediatamente. Demorou uns segundos em reagir.
—O que há dito? —Rafaela não respondeu—. Acaso perdeste o julgamento? Você
não pode estar...! Diga-me não é certo.
Rafaela deixou cair as pálpebras e exalou um suspiro. Palafox, de condição
fatalista, pressagiou os piores desenlaces, entre eles, perder a Carta Executória de
Nobreza. A confusão, a angústia e o medo assediavam a determinação de Rafaela.
Ela teria desejado que seu pai os acolhesse, a ela e ao menino, e lhes permitisse
viver na casa da rua Larga sob seu amparo. À medida que o discurso de Rómulo
avançava, seus desejos se desmoronavam.
—Quem é o mal nascido que te tem feito isto? Terá que responder!

185
—Está morto.
—O que está dizendo?
—Pai, dele esqueça-se.
—Exijo saber quem te fez isto, Rafaela! Esse desgraçado pagará!
—Nem sob tortura lhe direi quem é o pai de meu filho —escondeu sob um
simulado ímpeto a vergonha de lhe confessar que se deitou com o homem ao que
ele tinha jogado de sua sala como a um cão, ao que tinha chamado de cafajeste.
Rómulo Palafox se tornou em sua espera e cobriu o rosto com as mãos. Rafaela
temeu que pusesse-se a chorar. Tinha-o decepcionado e lhe doía. Seu pai não
chorou, a raiva o salvava de humilhar-se.
—Casará com seu primo Aarón.
—Pai, por amor de Deus. Espero o filho de outro homem.
—Basta! —explorou, e ficou de pé—. Cale-te, Rafaela, ou não sei do sou capaz.
Puseste em perigo o bom nome desta família. Fará o que digo ou terá que
abandonar esta casa.
***
Artemio se tornou sobre a cama de Albana e fechou os olhos. Seu estado de
ânimo era deplorável. O cansaço também jogava em seu contrário —esse dia,
sábado 19 de maio, tinha resultado especialmente duro—, e tinha um humor dos
mil demônios, como lhe tinha reprovado Albana um momento atrás. Em realidade,
sua amante estava zangada com ele porque no dia anterior, no quartel dos
Patrícios, tinha adivinhado o nervosismo que o dominou quando Isabel de
Pueyrredón comentou que minutos antes tinha conversado com a Rafaela Palafox
nesse mesmo pátio do quartel.
—Estava aqui faz um instante. Deveu dirigir-se para os interiores. Sua amiga,
Corina Bonmer, procurava Arzac.
—Artemio, por amor de Deus —lhe tinha sussurrado Albana—, guarda
compostura e troca essa cara de desenquadrado. Lerão-lhe como um livro.
Fúria seguiu girando sobre si no centro do pátio para registrar o entorno. Viu-a
por fim; em realidade, deduziu que se tratava dela pois ia embuçada por completo
para a rua, do braço de Creóla, acompanhada pela Corina e escoltada por Sorte
Arzac. Caminhava depressa, como se alguém a perseguisse, apertando o xale à
altura do queixo. "Viu-me", deduziu Fúria. "Escapa de mim." Recordou as noites
em que lhe haviam se separado. Desejou ver seu rosto, mas sobre tudo, desejou
cheirar seu perfume e provar o sabor a hortelã de sua boca.
Com um peso no coração, abandonou o quartel para preparar Cajetilla e a seu
parceiro. Breve, iniciariam a marcha para São Isidro em busca do coronel Cornelio
Saavedra.
Viajaram em silêncio. Não sabiam se encontrariam com a resistência do coronel
ou com sua predisposição. O segundo no mando dos Patrícios, Esteban Romero,
tinha assegurado que Saavedra, com a notícia da queda da Junta Suprema
Central, apoiaria a revolução.
Os acontecimentos se precipitavam e os patriotas deviam atuar com diligência.
Nas tabernas se dizia que Cisneros tinha mandado chamar o Liniers de Córdoba e
que um grupo de milicianos de Montevidéu desembarcaria logo em Las Conchas
para sufocar os ares sediciosos. Além disso, corria o rumor de que em Hueco de
las Cabecitas e nos Sauces se reuniam os espanhóis para armar-se e resistir a
quão crioulos pretendiam fazer do Forte, da Audiência Real do Conselho. Fúria
tinha enviado Billy, "o rengo", e Modesto, "o entrerriano", para comprovar a

186
veracidade da fofoca. Ambos verificaram que essas paragens seguiam desoladas e
tenebrosas, como de costume.
Chegaram à quinta de Saavedra bem avançada a noite da sexta-feira e, ao lhe
informar que, a conseqüência da notícia da queda da Junta de Sevilha, armou-se
um alvoroço com cós de subversão, Saavedra se zangou.
—É imperioso conter ao povo, para o qual terá que lhe pedir aos desmedidos de
sempre, em especial a Pancho Planes e a essa caterva de exaltados, que detenham
suas brigas no de Marcos.
—Não se engane, coronel —falou um oficial dos Húsares—, a coisa não se pode
atalhar e estou seguro de que se sua mercê se empenhar em contê-los, a sua
mercê mesma o têm que fazer a um lado. Reflita bem o que vai fazer.
Saavedra desviou o olhar e tropeçou com o de Fúria, que se tinha mantido
silencioso e equânime, o que não ajudava a redimir o do traçado de carrasco letal.
Conhecia-o da época em que expulsaram aos hereges britânicos e sabia que Juan
Martín de Pueyrredón lhe devia a vida. Poucos homens o intimidavam; Fúria era
um deles. Temia-lhe mais a esse patrício analfabeto, o qual, com um estalo de
dedos, revoltaria a toda a campanha, que aos oficiais armados com fuzis que o
convidavam —bom eufemismo, meditou— a acompanhá-los a Buenos Aires para
ficar à frente da passeata.
—Joaquín —Saavedra se dirigiu a seu secretário privado, Joaquín Campana—,
manda alistar cavalos e remuda. Sairemos para Buenos Aires neste instante.
Empreenderam a volta. Entraram na cidade muito cedo pela manhã do sábado
19. Apesar da hora, apalpava-se a ebulição. O os soldados compatriotas, com
semblantes tresnoitados, alagavam as ruas; jovens civis, que exibiam suas armas
calçadas na cintura, apinhavam-se às portas dos cafés mais concorridos, o de
Catalães, o de Marcos e o da Hospedaria das Nações, do qual emergiam as vozes
de conspícuos oradores. Cada tanto, da lonjura, chegava o som de um disparo
seguido do grito: "Viva a Pátria! Abaixo o vice-rei!". Várias turmas, das baixas
esferas sociais a julgar pela vestimenta, aos que se apelidava "chisperos" ou
"manólos", circundavam o Forte, arrojavam pedras e vociferavam insolências.
Uma multidão recebeu Cornelio Saavedra na porta de sua casa e, sem lhe
permitir apear-se, conduziram-no ao quartel dos Patrícios, onde se viu rodeado
pela maioria dos oficiais patriotas, entre eles Esteban Romero e o comandante da
Cavalaria, mais conhecido como Húsares, o tenente coronel Martín Rodríguez, de
modos veementes —alguns teriam julgado que carentes de fineza— e com um
vozeirão que se impunha. Arengou por compridos minutos. Saavedra, com ar
imperturbável, escutava, consciente de seu poder e valia. O teria a última palavra.
—Senhores —pronunciou Saavedra—, isto é coisa séria e não pode decidir-se em
meio da exaltação. Preciso consultar com os homens de peso da cidade.
O concorrido grupo, com Saavedra à cabeça, partiu por volta da quinta onde,
desde fazia anos, confabulava a chamada Sociedade dos Sete. Já no do Rodríguez
Penha, Artemio descobriu o primo de Rafaela, Aarón Romano, cujo sorriso de ar
obsequioso lhe causou um sentimento de desprezo. Cansado depois de uma noite
sem dormir e esfomeado, afastou-se em direção à cozinha. Sabia de cor o que
Belgrano, Castelli, Passo, Moreno, Vieytes e Rodríguez Penha exigiriam ao chefe
dos Patrícios. Começava a chateá-lo a mesma cantiga.
Uma massa escura bloqueou seu caminho. Media algumas polegadas mais que
ele, tinha o cabelo solto e comprido, e levava um capote de couro negro até o piso e
um estoque na mão. Contemplava-o fixamente, embora sem animosidade.

187
A Roger Blackraven o surpreendeu que Artemio Fúria mantivera o terreno e que
lhe devolvesse o olhar sem turvar-se. Respeitou-o por isso. Poucos conservavam a
compostura quando ele se decidia a jogar mão de sua figura ciclópea e de difíceis
de intimidar.
—Dizem-me que é você Artemio Fúria —expressou Blackraven.
—Assim me chamam.
—Meu nome é Roger Blackraven —o anúncio não pareceu fazer racho no
gaúcho—. O senhor Diogo Coutinho, administrador de meu curtume, A Cruz do
Sul, ficou muito de acordo com a ponta de gado que você lhe entregou dias atrás.
—Bom.
—Coutinho assegura que os animais estão entrados em carnes e saudáveis e que
seu couro é reluzente —o gaúcho ficou olhando-o com sobriedade, e Blackraven
lhe devolveu o olhar. Deu-se conta de que, com um homem como esse, não
serviriam os rodeios—. Meu cunhado conhece você. Trabalhou faz anos em uma
de suas caravanas de carruagens. Foi um de seus troperos.
—Eu tenho muitos troperos. Qual é o nome do seu cunhado?
—Tomás Maguire —Blackraven advertiu que as pálpebras pesadas do gaúcho se
elevavam logo que—. Tinha um amigo, se chamava Pablo.
—Não meu acordo de eles.
—Você também conheceu minha esposa faz uns meses, na estadia dos Palafox.
Isaura Blackraven, condessa de Stoneville.
—Eu recordo —admitiu Fúria.
—Minha esposa e Tomás Maguire são irmãos.
"Isaura Maguire", disse-se Artemio. "Deus bendito! A que luz tão parecida com
minha mãe, leva seu sobrenome." por que o conde de Stoneville se mostrava
eloqüente e lhe brindava essa informação quando, em opinião do Eddie O’Maley,
era um tipo duro, desconfiado e arteiro, não dos que andam compartilhando dados
a respeito de sua família?
—Possivelmente o considere uma rabugice de minha parte, mas eu gostaria de
lhe fazer uma pergunta.
—'Você bem.
—Qual é sua origem? —Ante o silêncio de seu interlocutor, Roger explicou—: Não
é comum ver um homem da campanha loiro e de olhos celestes. Você parece
saxão, se me permitir que o assinale.
—E você que o é, dom, não o parece.
Blackraven jogou a cabeça para trás em uma gargalhada. Voltou a admirar a esse
patrício mal falado que o tinha posto em seu local sem alterar-se.
Alexander Mackinnon os interrompeu e falou em inglês com Blackraven. Artemio
conhecia Mackinnon, tinha-o visto na pensão de dona Clara, onde estava
acostumado a reunir-se com seus colegas e os comandantes navais apostados
frente ao porto de São Felipe do Montevidéu e de Buenos Aires. Dedicavam-se a
confabular para obter um novo adiamento da licença para vender seus produtos
no Vice Reinado. Fúria simulou distanciar-se e emprestou atenção ao que diziam.
—Excelência —disse o comerciante—, suplico-lhe que me acompanhe. Queria lhe
apresentar ao capitão Charles Montagu Fabián. Ele intercedeu ante o vice-rei a
última vez que conseguimos uma prorrogação para comercializar.
—A que venceu ontem?
—Assim é, excelência.
—Não acredito que esta vez precise prorrogá-la, Mackinnon.

188
—Assim o esperamos nós, excelência. Acompanha-me?
Blackraven assentiu e se dirigiu a Artemio para lhe dizer:
—Se me desculpar, Fúria, devo me retirar. Eu gostaria de voltar a fazer negócios
com você. Se for de sua conveniência, espero-o amanhã em minha casa, às dez da
manhã. Encontra-se no número 59 da rua de São José.
—De acordo.
Depois de roubar algo na cozinha e beber uns goles de vinho, Artemio voltou
para a alvoroçada sala do Rodríguez Penha. Apesar da insistência dos oficiais de
resolver a questão com os sabres, Saavedra sugeriu evitar o derramamento de
sangue, por isso um Conselho Aberto se apresentava como a melhor opção.
Trataria-se de uma reunião na qual as autoridades civis, militares e eclesiásticas e
os vizinhos mais destacados decidiriam o destino do Vice Reinado.
—Nem Lezica nem Leiva são dos nossos! —queixou-se French, em referência aos
homens mais importantes da Prefeitura—. Julgo muito arriscado convocar a um
Conselho Aberto.
—Tenente —falou Saavedra—, atuemos com responsabilidade. Devemos esgotar
as vias pacíficas antes de recorrer às armas.
—O que devemos fazer, meu coronel, é atuar com presteza antes que se voltem
as voltas —retrucou Beruti—, e dialogar com Leiva ou com Lezica resulta uma
perda de tempo. Nada conseguiremos. No Conselho temos a quase todos em
contra.
Depois de um comprido debate, Saavedra e Manuel Belgrano ficaram em marcha
para concorrer à Prefeitura e falar com o prefeito de primeiro voto, Juan José de
Lezica, e pressioná-lo a que convocasse o Conselho Aberto. Blackraven ofereceu
acompanhar Castelli, que, por sua parte, manteria uma conversação com o Julián
de Leiva, o síndico procurador.
Artemio abandonou a quinta do Rodríguez Penha enfastiado de tanto palavrório.
Dirigiu-se para os Altos de Escalada. Chegou de noite. Encontrou Albana ainda
ofendida e ciumenta.
—Se tivesse visto seu rosto ontem no quartel! Parecia um boneco de pano
procurando-a em qualquer parte. Assim não é você, Artemio! O que tem essa
mulher para te pôr nesse estado de ânimo? Suponho que algumas quedas com ela
enquanto fazia de capataz em sua estadia nem sequer são dignas de recordar.
O olhar de Fúria a obrigou a fechar a boca.
—Estou cansado, Albana. Faz dois dias que não durmo.
—Pois dorme!
Artemio se tornou na cama de sua amante e fechou os olhos. Desde essa posição,
perguntou-lhe:
—Mandou o convite a Palafox como te disse?
—Sim, amo —se burlou a mulher—. Que assuntos te traz com esse homem?
Ao não obter resposta, Albana se voltou. Fúria tinha adormecido.
***
Cristiana percebia um ambiente rarefeito na casa da rua Larga. Não só se tratava
de Rómulo, com seu rechaço e mau humor; Rafaela se comportava de modo
estranho, quão mesmo seu irmão Aarón. Todos pareciam afligidos. A sombra, que
se abatia sobre a família Palafox desde fazia mais de um ano, seguia sobre eles,
obscurecendo o horizonte. Porque, a mais dos problemas que tinham, o mal-estar
dos crioulos com o vice-rei, desatado dias atrás, resultava preocupante. Rómulo
tinha manifestado que se "essa horda de sediciosos e ingratos" se fazia com o

189
poder, os espanhóis sofreriam humilhações. Cristiana estremeceu ante a
possibilidade de que o exilassem de novo.
Suas amigas, Isabel e Juanita de Pueyrredón, acabavam de ir-se. O entusiasmo
que desdobravam enquanto lhe relatavam os acontecimentos políticos a chateava.
Acaso não compreendiam que seu tio Rómulo, sua tia Justa e sua mãe eram
espanhóis? Além disso, mencionaram um encontro com a Rafaela no quartel dos
Patrícios e a coroaram de elogios. Um comentário chamou sua atenção.
—Depois nos topamos com o gaúcho Fúria —disse Juanita—. Ia na companhia
de Albana Buquê, que entrou no quartel dando-se ares. Devo dizer que Fúria,
apesar de ser patrício30, é arrojado e arrumado como um diabo. Salvou a vida de
meu irmão Juan Martín quando Perdriel o ajudou a escapar da prisão o ano
passado.
—Comentamos a Fúria que acabávamos de ver sua prima Rafaela —prosseguiu
Isabel—, e seu gesto, sempre impassível, emocionou-se e começou a procurá-la
por toda parte. Estranho, verdade?
—Eles se conhecem —informou Juanita.
—Sei —assegurou Cristiana—. De La Larga.
À luz das palavras de Isabel de Pueyrredón, Cristiana analisou a atitude de
Rafaela a tarde em que Rómulo flagrou Fúria na sala da estadia. O
comportamento de sua prima e o afã com que defendeu ao homem naquela
ocasião tinham resultado excessivos, por isso não lhe custou atracar a uma
conclusão, que ratificaria com sua escrava.
—Olhe-me nos olhos, Peregrina —a escrava, habituada a baixar a cabeça em
presença dos amos, elevou o queixo com desconfiança—. O que houve entre minha
prima Rafaela e esse gaúcho, o tal Artemio Fúria? —o gesto de Peregrina bastava
para confirmar sua presunção; de igual modo, exigiu uma resposta—. Fala, negra,
ou te venderei amanhã mesmo! E me encarregarei pessoalmente de te buscar um
amo cruel e vicioso.
—Não, pelo amor de Deus, não! —a escrava caiu de joelhos—. Não me separe de
você, ama! Eu a servi sempre como a uma rainha.
—Fala, pois.
Peregrina não só confessou que tinham existido amores entre a senhorita Rafaela
e o gaúcho Fúria mas sim suspeitava que a senhorita se encontrava grávida. Os
olhos celestes de Cristiana brilharam com cobiça e seus lábios se enviesaram em
um sorriso de complacência. Não duvidou em ir à sala de Rómulo.
—Que desejas?
—Desejo que saiba que classe de filha tem —a olhada de Rómulo não a
intimidaria—. Sua Rafaela, esse ser magnífico e perfeito, teve amores com o
gaúcho Artemio Fúria e está esperando um filho dele.
Palafox, ainda jovem e ágil, saltou de sua poltrona e aferrou a Cristiana pelo
pescoço.
—Cristiana, volta a repetir essa calúnia e lhe mato.
—Solte-me —rogou, sufocada—. Não posso respirar.
—Quem te há dito isto ?
—Escutei Rafaela e a sua amiga, a Bonmer, falando —mentiu.
—Por seu próprio bem, Cristiana, fecha a boca. Agora, saia daqui. Deixe-me

30
Pode ser sinônimo de cidadão.

190
sozinho.
Essa noite, Palafox presidiu a mesa, como de costume, mas não tocou a comida.
Cada tanto, levantava a vista e a passeava pelos membros de sua família. Ao
finalizar o jantar, Rafaela lhe pediu:
—Pai, desculpa-me, por favor? Estou muito cansada e tenho enxaqueca.
—Virá à sala conosco. Realizarei um anúncio de capital importância.
Não se alterou ante o olhar suplicante que lhe lançou sua filha. Ela o tinha
traído, tinha desonrado o sobrenome Palafox, agora devia pagar. Aguardou a que
todos se acomodassem para dizer:
—Aarón pediu a mão de Rafaela e eu aceitei —Justa e Clotilde exclamaram de
alegria—. As bodas se celebrará quanto antes. No fim do mês, se for possível.
—Rómulo —se queixou Clotilde—, não haverá tempo para organizar a cerimônia
e o festejo.
—Importa-me um rabanete, Clotilde. Contrairão matrimônio na igreja de São
Francisco e não haverá festejo, só um almoço compartilhado em família.
Aarón ficou de pé e caminhou para a Rafaela, que desejou não ser objeto desse
olhar nem desse sorriso; lhe resultava impossível lhe corresponder. Aarón tomou
sua mão e a olhou com uma doçura que nunca lhe tinha visto empregar. Seu
aroma a damasco revoou sob o nariz quando se inclinou para beijá-la.
—Espero que esteja contente, querida Rafaela —ela assentiu de maneira
imperceptível—. Farei você feliz, já o verá.
A hora que transcorreu junto a sua família, suportando os comentários e a
alegria de suas tias e de Aarón, converteu-se em um martírio. Cristiana parecia
tão angustiada como ela. Seu pai guardava silêncio e se dedicava a contemplá-la
com fixidez. Padecia esse olhar porque a condenava. A condenação de seu pai era
das coisas a que Rafaela mais temia.
Terminou por desculpar-se e abandonar a sala. Logo que saiu do campo visual
de sua família, cruzou o pátio à carreira e se encerrou em seu dormitório. Se
encolheu na cama e se largou a chorar, enquanto apertava o pingente de pedra
turca de Ñuque, que lhe recordava os olhos do senhor Fúria.
***
No domingo 20 de maio, Rafaela amanheceu com dor de cabeça. Tinha dormido
mau e por sua vez, quando Creóla correu as cortinas e insistiu que levantasse,
negou-se a sair da cama. Ñuque se apresentou no dormitório com uma bandeja e
a obrigou a incorporar-se nos travesseiros para tomar o café da manhã.
—Deve te alimentar, pelo bem de seu filho.
A Rafaela não a surpreendeu que soubesse da gravidez.
—Quem lhe disse isso?
—Rómulo.
Rafaela sempre tinha suspeitado que, entre seu pai e Ñuque, existia uma relação
que eles cultivavam quando ninguém os via, porque não tinha lembrança deles
encerrados na sala, conversando; não obstante, a mulher conhecia Palafox do
direito e do reverso.
—Estou tão confundida, Ñuque. Não sei o que fazer. Meu pai me obrigará a
desposar Aarón quando eu amo a outro homem, do qual espero um filho. Porque
ainda o amo, Ñuque, não posso evitá-lo. Também o odeio, e tudo é uma grande
confusão em minha cabeça.
—Tranqüila —Ñuque passou a mão por sua testa—. Não te desespere. Tudo
passa.

191
—Eu gostaria de morrer.
—Não fale assim! Pensa em seu filho, na Mimita, em todos os que lhe amam.
Rafaela cobriu o rosto e começou a soluçar. Estava cansada de tanta lágrima.
Necessitava das certezas de sua vida anterior. Possivelmente o matrimônio com
seu primo Aarón trouxesse a calma e a segurança que desejava.
—Não quero enganar Aarón. Não quero que pense que este filho é dele.
—Terá que dizer-lhe então.
—Não me animo.
—Não te anima? A que teme?
—Sabe que temo a tudo! Fui uma covarde, sempre.
—Não foi quando se entregou a um homem como Fúria.
Rafaela se deu conta de que a cor subia por sua face; de repente a sentiu quente.
—Não —admitiu—, a seu lado me senti poderosa e forte e formosa e desejada.
Não temia a nada, nem sequer Quinto, seu puma, quando você sabe que até o cão
mais insignificante me espanta. Quanto sinto falta de Quinto! Sua amizade me
fazia sentir valente. OH, Ñuque, o que desgraçada sou!
—Não respondeste a minha pergunta. A que teme? Que Aarón retire sua oferta
de matrimônio?
—Sim, e sinto repulsão de mim mesma. Não o amo. Tenho-lhe carinho, mas não
o amo. Não obstante, medito a possibilidade de casar com ele para me salvar do
escárnio público. No fundo, não sou muito diferente de meu pai nem de minha tia
Clotilde, sempre preocupados com o que dirá as pessoas. Sou covarde e hipócrita.
Dou-me asco.
—Não seja tão dura contigo —a insistiu a Índia.
—Sabe o que, Ñuque? Quando meu pai me perguntou quem era o pai de meu
filho, assegurei-lhe que tinha morrido e me neguei a dar seu nome. E o fiz por
vergonha. Envergonhei-me dele, envergonhei-me porque é um patrício a quem
meu pai despreza.
Ñuque a convenceu de que abandonasse a cama e se vestisse. Em tanto Creóla a
penteava, Peregrina bateu na porta e alagou a presencia de Corina Bonmer, que
encontrou o olhar de Rafaela no espelho da penteadeira.
—Por que traz esse ar conspirativo?
—Tenho um presente para ti —expressou Corina, e tirou de sua bolsa uma
pequena garrafa cujo plugue estava selado com lacre—. Azeite essencial de rosas.
O semblante de Rafaela se iluminou.
—Não deveria havê-lo comprado, Corina! Deveu te custar uma fortuna.
—Não o comprei —Rafaela levantou as sobrancelhas em sinal de confusão—. Foi
Fúria. Ele lhe envia isso.
—Minha menina! —exclamou Creóla.
Rafaela ficou contemplando a garrafa que sustentava na mão, incapaz de
coordenar o matagal de pensamentos que a assaltavam. Em uma primeira reação,
sentiu-se feliz; um momento depois, atinou a perguntar:
—O mesmo lhe entregou isso?
—Sim. É bonito quando sorri! Agora compreendo que te tenha apaixonado por
ele.
—Diga-me como foram as coisas —insistiu Rafaela.
—Bom, você sabe que ele e Albana Buquê são amigos.
—Amantes, deveria dizer.
—O que seja. E Albana é minha vizinha nos Altos de Escalada. Pois ele a visita

192
freqüentemente. Embora não passa a noite lá! —esclareceu, depressa.
"Como se fazer o amor fosse uma questão noturna", meditou Rafaela, e pensou
na infinidade de vezes em que Fúria a havia possuído quando o sol se localizava
em seu apogeu.
—Pois esta manhã, Fúria me interceptou nas escadas dos Altos de Escalada e me
pediu que te entregasse isto.
—Devolva-o - disse Rafaela, e estendeu o frasco a sua amiga—. Não quero nada
que venha desse senhor.
—Não seja tola. Conserva-o. Há-me dito que é custoso e que te ficaste sem ele
para preparar seu perfume.
Tentava-a ficar com o azeite essencial não porque fora custoso, mas sim porque o
dava de presente ele. Suas mãos tinham rodeado a pequena garrafa e,
possivelmente, ao comprá-lo, tinha rememorado o perfume que estava acostumado
a enlouquecê-lo em La Larga.
—Não entendo o que pretende este homem de mim.
—Te cortejar, é óbvio.
—Por que quereria me cortejar quando me chamou de "estorvo"?
—De seguro, está arrependido e sente falta de ti.
—Assim tem que ser, menina —interveio Creóla—. Possivelmente Fúria a aceite
de novo e a leve agora que vão ter um filho.
—Não quero que me aceite de novo pelo menino! Creóla, não abrirá a boca para
falar de meu filho ou lhe costurarei. Nem sequer o mencionará a Paolino.
Entendeste? —a escrava assentiu—. Devolva-lhe Corina. O senhor Fúria morreu
para mim.
Peregrina bateu na porta. Trazia uma nota para a Rafaela.
—Acaba de chegar, ama.
—Para mim? —sentiu saudades, porque, ao contar com poucas amizades,
estranha vez recebia correspondência.
—Sim, para você —assegurou a escrava.
Não reconheceu o anel, uma águia bicéfala. Quebrou-o e leu: Senhorita Rafaela,
seria uma honra e uma alegria para mim contar com sua presença e a da Mimita em
casa esta tarde. Também assistirão Lupe e Pilarita. Espero-a às 16 horas no 59 da
rua de São José. Fico a seu serviço. Melody Blackraven.
—O mensageiro aguarda resposta?
—Sim, ama.
—Diga-lhe que sim, que irei esta tarde ver a condessa de Stoneville.
***
Artemio se despediu do pai Ciriaco e cruzou a rua de São Martín. O bate-papo
com o mercedário se estendeu e ele estava chegando tarde à função no Teatro
Argentino. Pouco lhe importava a obra que ficaria em cena, Roma salva. Em
realidade, comparecia para ver seu inimigo, Rómulo Palafox, a quem Albana lhe
tinha enviado um convite especial no dia anterior de acordo com o plano.
Ao ver a multidão formado redemoinhas às portas do teatro, a Fúria deu vontade
de achar-se no fim do mundo, com o silêncio da noite como único companheiro.
Desde que tinha descoberto Palafox, às vezes desejava ter perdido a memória a
noite de 5 de junho de 1790. Ante esse pensamento indigno, obrigava-se a repetir
o mote dos de Lacy: Quis seu ipse sis memento (Lembre-se de quem você é). "Eu
sou Sebastian de Lacy", dizia-se. "Vingarei a morte de meus pais e recuperarei a
minha irmã.

193
Os crioulos comentavam a respeito dos sucessos dos últimos dias, mostravam-se
eufóricos e vociferavam suas esperanças de liberdade, enquanto que os espanhóis
se alinhavam em silêncio e mantinham a vista baixa. "Têm medo", deduziu Fúria.
Resultava assombroso que se animaram a assistir essa noite ao teatro, com a
tensão reinante nas ruas. Se a revolução saía de leito, correria o sangue dos
peninsulares, e seus bens se converteriam em bota de cano longo de guerra.
Pensou em Palafox. Ele era espanhol e estava muito orgulhoso de sua origem.
Artemio captou a conversação entre dois crioulos.
—Hoje, pela manhã, reuniram-se todos os cabildantes31 para analisar o pedido
que ontem lhes fizeram Saavedra e Belgrano.
—Sei. Como resultado dessa reunião, dizem que de Lezica —falavam do prefeito
de primeiro voto—, foi hoje ao meio dia ao Forte para conferenciar com o Surdo.
Este, ao receber as novas, fingiu surpresa, como se não estivesse a par de nada. A
quem quer fazer acreditar que não sabe que isto está que arde se os moços andam
cantando zombarias e arrojando pedras às janelas há dois dias?
As conversações foram perdendo-se em tanto a multidão começava a ingressar
no teatro. Artemio sabia além que Cisneros tinha qualificado aos revoltosos de
"turfa de sediciosos" e assegurado que não moveria um dedo sem consultar às
altas filas dos corpos do exército, por isso convidou aos comandantes a um
relatório no Forte às sete da tarde desse mesmo dia, domingo 20 de maio. Às
quatro, os comandantes e seus ajudantes improvisaram uma junta no quartel de
Patrícios, onde Artemio lhes informou a respeito de um complô para capturá-los
logo que pusessem pé no pátio central do Forte. Advertiu-lhes além que se
planejava tomar por assalto os quartéis. Um tenso silêncio caiu na sala. Os
militares intercambiaram olhadas receosas, que o gaúcho Fúria devolveu com
escarro. Não lhes diria sua fonte, se isso esperavam, nem como tinha chegado a
fazer-se da informação.
Artemio não sabia por que Blackraven o tinha eleito para lhe confiar um dado
dessa relevância quando era amigo de personalidades de grande valia. Menos
ainda o entendia depois de como se desenvolveu a reunião essa manhã na casa de
São José.
Ele tinha comparecido poucos minutos depois das dez, de acordo com o
convencionado com o Blackraven no dia anterior no de Rodríguez Penha. O
aristocrata inglês o tinha recebido em seu escritório e oferecido café, ao que
Artemio se negou. Falaram de negócios, de futuras compras de gado, de
distribuição de produtos nas províncias através das caravanas de Artemio, de
contrabandear sebo ao Brasil usando as via fluvial e da aquisição de sal na
Patagônia, na boca do Rio Negro. Em plena polêmica a respeito da conveniência de
viajar a Patagônia por mar e não por terra, a porta do escritório de Blackraven se
abriu e a senhora condessa se precipitou dentro. Artemio ficou de pé.
—OH, sinto muito! —desculpou-se—. Não sabia que estava ocupado, Roger.
Blackraven, com o cenho escuro e franzido, pediu-lhe que se retirasse, molesto
pela maneira em que Fúria a contemplava.
—Com permissão —balbuciou Melody, antes de dar meia volta e sair.
Artemio não podia apartar seus olhos da condessa. Esse dia, dado que levava a
cabeleira recolhimento em um coque à altura da nuca, recordava-lhe

31
Significa lobista.

194
especialmente a sua mãe. Voltou a sentar-se quando escutou o pigarro de
Blackraven. Ao descobrir seu semblante, deu-se conta de que o tinha aborrecido e
de que lhe devia uma desculpa. Se alguém tivesse cuidadoso com essa rabugice a
Rafaela, ele teria tirado o facão. Perguntava-se o que detinha Blackraven; sabia
um homem de armas tomar e que zelava o seu como um leão.
Com um abrecartas na mão, Roger disse:
—Se voltar a olhar a minha esposa desse modo, te arrancarei os olhos.
—Blackraven, peço-lhe desculpas se o ofendi. Mas não olhei a sua esposa com
irreverência. Acontece que ela recorda a alguém e não pude evitá-lo.
Roger não se surpreendeu pela declaração mas sim pela maneira culta que Fúria
empregou para expressar-se.
—Você não é quem diz ser.
Artemio ficou de pé e colocou o chapéu.
—Sou o que sou —disse—. Agora vou embora.
—Fúria, tenho algo que lhe confiar antes que se vá —Artemio se deteve junto à
porta—. Dê aviso a seus amigos de que se cuidem as costas. Há vozes que
asseguram que planejam lhes tender uma emboscada e tomar por assalto os
quartéis. Se eu fosse Saavedra, não me mostraria tão ansioso por me apresentar
no Forte hoje às sete —Artemio tirou apenas o chapéu e inclinou a cabeça em
sinal de agradecimento—. Fúria, uma coisa mais. A quem lhe recorda minha
esposa?
—A minha mãe —respondeu, e saiu ao corredor.
Um empurrão enquanto acessava a sala do teatro o obrigou a voltar para
presente. Seguiu caminhado para sua poltrona, estudando o entorno sob a asa do
chapéu. Distinguiu entre o público ao capitão José Antonio Melián, que tinha
participado da reunião dessa tarde no quartel, dos primeiros em dar crédito a suas
palavras junto com French, Beruti e Esteban Romero. Passado o momento de
incredulidade, o resto dos militares aceitou a possibilidade de que estivesse
gerando um golpe por parte do Cisneros e das tropas leais a ele, e se empenharam
no traçado de um plano para neutralizá-lo.
—O mais sensato seria —sugeriu Eustaquio Díaz Veloz, dos Patrícios— tomar o
mando dos guardas do Forte.
—Podemos ir com a Tetrada e com você, Díaz Vélez —sugeriu Juan Ramón
Balcarce, dos Húsares—, e nos ocupar disso agora mesmo. Para as sete, não ficará
um guarda que não responda a nossas ordens.
—Flor se levantá! —exclamou Martín Rodríguez.
—Devemos controlar os acessos ao Forte —apontou Beruti— e nos fazer das
chaves. Nossa gente não admitirá o acesso de nenhum que esteja contra a causa.
—Como os distinguirão? Entre regimentos, conhecem-se pouco —apontou com
critério Manuel Ruiz, a cargo dos Naturais, o batalhão formado pelos negros livres,
índios e pardos.
—Que todos usem nosso distintivo, o dos Húsares, as cintas azuis e brancas —
propôs Lucas Viva.
—As cores da Virgem —assinalou French.
Mostraram-se de acordo e enviaram Joaquín Campana, o secretário privado de
Saavedra, a Recova comprar vários metros de cinta azul e branca que, em menos
de três horas, deviam converter-se no salvo-conduto que os soldados patriotas
luziriam em suas jaquetas. Finalmente, a reunião na sala do vice-rei no Forte
transcorreu sem sobressaltos.

195
—Ao meio-dia —falou Cisneros—, veio para ver-me o prefeito maior do Conselho
e me referiu que há certa intranqüilidade na população com motivo das notícias
atracações da Espanha —sorriu com ironia—. Não emprestei importância ao
assunto porque se trata de um grupo de perdulários e sediciosos, como apontou
de Lezica. Em caso de que estes desmedidos se desmamem, sei que conto com
meus comandantes para pô-los em seu local e conservar a fidelidade que todos
devemos a nosso augusto e amado monarca, o senhor dom Fernando VII.
—Desculpe-me, excelência —interveio Martín Rodríguez—, mas considero que
vossa mercê está muito enganado. Nem são perdulários nem são sediciosos os que
afirmam que a Junta formada no Cádiz não tem nenhuma soberania sobre os
povos americanos. Acaso um punhado de comerciantes gaditanos pode erigir-se
como governo de todo o Império espanhol? O melhor da sociedade portenha clama
por um Conselho Aberto para designar novas autoridades até dom Fernando seja
restabelecido no trono.
—Coronel Saavedra —pronunciou Cisneros, sem dignar-se a responder ao
Rodríguez—, o que opina sua mercê desta situação? Acaso não conto com seu
apoio como brindou ao Liniers na passeata do ano passado?
Todos notaram o nervosismo de Saavedra no modo em que fazia dar voltas o
chapéu entre suas mãos. Quando por fim falou, o fez com voz trêmula.
—Sua excelência, a situação é muito distinta da de 1º de janeiro de 1809. O
mesmo povo que naquele momento amparava Liniers, agora clama por uma
mudança. O que sim posso asseverar a sua excelência é que me ocuparei de
conter os desmandos e os desacatos contra sua pessoa.
—Já vejo —disse o vice-rei, molesto.
—Possivelmente —insistiu Saavedra—, se nomeassem personalidades destacadas
do povo para acompanhá-lo no governo...
Não pôde terminar. Cisneros explodiu em um discurso inflamado.
—Do que está falando, Saavedra? Nomear-me acompanhantes? A mim, que
sempre me desempenhei com honra? Renunciarei antes de admitir essa
humilhação! —Cisneros calou, afligido por sua explosão. Mais composto,
disparou—: Senhores, tiremos as máscaras. Conto ou não com seu apoio?
—São estes tempos radicais, sua excelência —afirmou Martín Rodríguez—, e os
militares estão dispostos a acatar o que dispuser o Conselho Aberto.
—Conselho Aberto! —exclamou Cisneros—. Pois adiante! Convoquem o
malfadado Conselho Aberto! E que a sorte desta terra seja decidida pelos vizinhos.
Fúria, que aguardava no Café de Marcos os resultados da reunião no Forte,
conheceu os detalhes da boca do French.
—Artemio —disse este ao terminar seu relato—, vá para a campanha e prepara a
sua gente. Não sabemos quando lhe necessitaremos, mas pode ser de um
momento a outro.
—Já o tenho feito —assegurou—. Calvú Manque estará amanhã pela manhã com
um grupo de peões e patrícios, para ficar às ordens da Pátria.
—Bem! —prorrompeu French, e lhe bateu o ombro.
Artemio se despediu e saiu do Café de Marcos em direção ao de dona Clara.
Devia trocar-se para a apresentação no teatro, embora antes visitaria padre
Ciríaco e Serapio.
Por fim em sua poltrona, não lhe custou localizar Rómulo Palafox; por Albana
sabia que local lhe tinha indicado no bilhete. A uns palmos dele, dedicou-se a

196
estudá-lo com atenção. Para passar inadvertido, não levava chiripá32 nem calções
a não ser uma calça que lhe tinha conseguido dona Clara, e o poncho de vicunha,
muito elegante e muito caro; inclusive se deixou posto o chapéu com a aba caída
na testa; os sapatos de cordobán33 estavam matando-o.
Não havia nada de Rómulo Palafox em Rafaela; talvez a altura e esse porte
aristocrático de ombros quadrados e retos. Albana assegurava que tinha olhos
verdes, mas ele não se aproximou o suficiente para sabê-lo, nem o recordava da
tarde em La Larga. O homem tinha mudado pouco ao longo desses vinte anos, e
resultava doloroso contemplá-lo porque, sem remédio, as cenas da noite de 5 de
junho iam a sua mente. Fazia tempo que o investigava e conhecia bastante a
respeito dele, de seus negócios e de suas inclinações políticas. Sabia que
idolatrava a sua única filha. E com ela, Artemio Fúria iniciaria seu plano de
vingança.
Aarón Romano se aproximou de seu tio Rómulo, saudou-o e se acomodou na
poltrona contigua. Artemio o observou com fixidez, ao tempo que lhe vinham à
mente as palavras de Juan Andrés de Pueyrredón: "Sua irmã Cristiana, que é
agora nossa hóspede, insinuou que Aarón pretende desposar a sua prima Rafaela.
Deus a livre e a guarde". Artemio apertou os punhos sob o poncho no gesto de
enforcá-lo. Parecia-lhe que Romano tinha bom porte e, ao vê-lo sorrir, não duvidou
de que seu sorriso seduzia a Rafaela, sempre atenta a esses detalhes. Tempo
atrás, lhe tinha confessado que lhe tirava o fôlego. O teatro e os ruídos se
esfumaram quando a imagem de Rafaela nua, erguida sobre seu corpo, com as
pernas abertas sobres ele, lhe fazendo cócegas para vê-lo rir, penetrou em sua
mente. Sorria, senhor Fúria. Quanto mais sorri, mais o amo. É no sorriso onde sua
beleza se desdobra. "Merda!", ofegou. Tinha que odiá-la, como ela o odiava. "Fúria,
Rafaela se negou a receber seu presente", comunicou-lhe a Bonmer, e lhe entregou
o frasco com o azeite essencial de rosas. "Disse que, para ela, você morreu". Uns
gritos invadiram sua concentração. O teatro parecia convulsionado. Advertiu que
Palafox e Romano ficavam de pé e tentavam descobrir a que se devia a balbúrdia.
—Queremos Roma salva —exigiam os crioulos, enquanto o dono da companhia
anunciava a gritos que não se apresentaria Roma salva a não ser Misantropia. A
desculpa —o ator principal estava indisposto— soava inverossímil.
Para Artemio resultava claro que o Surdo julgava a obra de Voltaire, na qual se
exaltavam a liberdade e o patriotismo, imprudente para um tempo radical como o
que transitavam, razão pela qual o chefe da Polícia acabava de levantá-la. O
bulício e o descontentamento cresciam, e terminaria correndo sangue se não se
dava gosto ao público.
Aarón Romano tomou pelo cotovelo a seu tio e o tirou do recinto. Artemio os
seguiu até a rua, onde os viu subir a um carro que se dirigiu ao sul. Resmungou
um insulto. Albana não levaria Palafox a sua casa essa noite para lhe surrupiar
informação. De igual modo, pensou, no momento oportuno, lhe surrupiaria a
informação que mais necessitava.
***

32
Peça da indumentária típica gaúcha.
33
Feito em Córdoba, cidade Argentina.

197
Depois de deixar Rómulo na casa da rua Larga, Aarón montou seu cavalo e se
dirigiu para a fábrica de sabões de Vieytes, onde se encontravam reunidos os da
Sociedade dos Sete. Ao cruzar o centro, advertiu grande desassossego e muito
movimento para a hora. Divisou um grupo de paroquianos de mau aspecto que
subiam do Baixo; foram emponchados e com os rostos cobertos e, entoados com
bebidas espirituosas, vociferavam: "Morra o vice-rei! Queremos Conselho Aberto!".
Lamentou não contar com a escolta de Gabino, seu novo servente, a quem tinha
encarregado o manejo dos capatazes que remoçavam a casa onde instalaria o casa
de jogo clandestino e o bordel. O gaúcho contava com um talento para amedrontar
às pessoas e fazê-la trabalhar.
Agitou as rédeas e se moveu em direção contrária ao piquete. Se a revolução se
achava nas mãos dessas gente, as horas de Cisneros estavam contadas, e ele, por
sua parte, pavonearia-se entre os vencedores. Seu tio, como espanhol, ficaria a
mercê do amparo que suas conexões com a Sociedade dos Sete lhe brindariam.
Poderia resultar muito vantajoso e rentável.
Encontrou os ânimos esquentados na fábrica de Vieytes. Mariano Moreno não se
incomodava em ocultar o desagrado que lhe tinha produzido inteirar do
desempenho do coronel Saavedra durante a reunião no Forte. "Nós jogamos as
cabeças e este covarde que as entrega em bandeja de prata!". Belgrano e Rodríguez
Penha tentavam acalmá-lo, tomando o episódio em brincadeira.
Não gostava de Moreno, por seu ar soberbo e prepotente. Teria sido uma
estupidez negar que possuía uma mente brilhante. Sua representação dos
Fazendeiros e Lavradores, elaborada no ano anterior em defesa do livre comércio e
das classes trabalhadoras da terra, dava amostra da claridade e rapidez de seu
discernimento.
Artemio Fúria apareceu de um nada e ficou a conversar com Moreno. Pasmou-o o
bom trato que o jovem advogado lhe concedia ao gaúcho. Este assunto da "pátria"
juntava em uma mesma bolsa a tipos de todas as raças. Sem motivo, detestava a
esse patrício, talvez porque lhe infundia temor. Apesar da má iluminação,
distinguia a réstia de argolas que lhe perfilava a orelha direita, o enorme facão que
tinha cruzado no atirador e as boleadoras que abanavam perto de seus joelhos.
Nas últimas jornadas, tinha-o ouvido memorar freqüentemente já que nas
mercearias se falava dele com respeito e o associava ao movimento que
propugnava voltar o vice-rei e formar Junta só com crioulos. Dizia-se que sua
ascendência entre as gente da campanha não conhecia limites, que era um
centauro sobre a arreios e rápido com as armas. A Aarón o inquietava que um
homem como esse tivesse passado tanto tempo com Rafaela em La Larga. Não se
tratava de ciúmes mas sim de uma questão de territorialidade. Ciúmes tinha
sentido ao flagrar Juvenal Romano em bata na loja de Bernarda de Lezica. Não
queria pensar nisso. Não havia tornado a vê-la após, consumido pela ira, a
humilhação e o ciúmes, embora logo o faria para levantar o pagamento. Nunca
tinha desejado a uma mulher como a essa, que lhe levava quase dez anos e que o
olhava como uma mãe o faria com um filho travesso.
Perto da meia-noite, chegaram os que tinham concorrido ao Teatro Argentino e, a
insistência, relatavam os detalhes da trifulca desatada ante o anúncio da
suspensão de Roma salva. Juan José Passo, dos mais entusiasmados, explicou
que finalmente ficou acordada a obra do Voltaire e, com a fortificação em alto,
declamou a parte de Cicerón: Entre reger ao mundo ou ser escravos, escolham,
vencedores da Terra!, ao que os congregados na fábrica responderam: "Viva

198
Buenos Aires livre!".
Apesar de que a Aarón esse desdobramento resultava grotesco e enjoativo, ria e
aplaudia, unia-se às exclamações e cânticos. Apostava por esse grupo de exaltados
e pensava recolher os frutos de achar-se do lado dos vencedores. Em caso de
perder, o exílio se converteria na pena menos onerosa.
—Escutem, companheiros! —vociferou Passo—. Amanhã concorreremos a
primeira hora ao Conselho, onde exigiremos a convocatória ao Conselho Aberto.
Cisneros já o consentiu. Amanhã será o começo do fim de vários séculos de
escravidão!
Aarón procurou com o olhar ao gaúcho Fúria e sentiu saudades descobri-lo
impassível, embora atento ao discurso breve de passagem. Experimentou um
sentimento incomum: invejou a esse patrício sem origem e mal falado, invejou-lhe
a segurança com que se movia entre pessoas elevadas sem necessidade de
obséquios para demonstrar sua adesão à causa.
***
Com a desculpa de ouvir missa em São Francisco, Rafaela tinha tentado evadir-
se de sua casa onde o ambiente a oprimia e angustiava. Seu pai, entretanto,
tinha-lhe proibido sair. Tanto Paolino, o vendedor de água, como Babila, que
acabava de chegar do centro, asseguravam que, desde cedo na manhã de
segunda-feira, 21 de maio, a Praça da Vitória se converteu em um caos. Ñuque,
por sua parte, assinalou-lhe a imprudência de aventurar-se com um tempo frio e
chuvoso quando ainda convalescia de sua enfermidade.
Passou a manhã com Mimita, narrando histórias e lhe cantando rimas para lhe
ensinar a falar, e também para esquecer a briga dessa manhã entre seu pai e
Aarón. Tinham discutido durante o café da manhã por causa de suas
irreconciliáveis posturas políticas. Enquanto Rómulo, que professava idéias
monárquicas, defendia a continuidade do vice-rei, Aarón falava de uma Junta
formada pelos verdadeiros donos da terra. A disputa chegou a seu fim quando
Clotilde, elevando o tom, recordou-lhes que durante as comidas não se falava. No
silêncio que continuou, Rafaela estudou o perfil de seu primo, admirada pela
paixão com que tinha defendido sua causa, ele, que nunca desvelava as emoções.
De repente, teve a sensação de achar-se sentada junto a um homem novo, de
aparência agradável, que, quando girou e lhe sorriu, deixou-a boquiaberta. "Como
é que alguma vez reparei na beleza de seu sorriso?", perguntou-se.
Esperava que a briga entre seu pai e Aarón não desse ao traste com as bodas.
Envergonhava-a ter rechaçado a idéia dois dias atrás quando nesse momento
começava a habituar-se. Detestava a veleidade e a inconstância. As bodas, na
verdade, expor-se como a única saída digna para evitar que seu filho fora tachado
de bastardo. Doía-lhe enganar Aarón, ele não o merecia, mas seu pai lhe tinha
proibido abrir a boca. De igual modo, ela não teria se atrevido a confessar-lhe as
vezes desejava ter morrido de pneumonia.
Para afastar os maus pensamentos e enquanto agradava a sua tia Clotilde e se
ocupava do bordado de uma toalha para o enxoval, dedicou-se a rememorar a
tarde do dia anterior transcorrida em casa da condessa de Stoneville. De
propósito, tinha esperado a que a família se achasse reunida à hora do almoço
para lhe pedir permissão a seu pai. Sua tia Justa a felicitou por "uma amizade tão
conveniente" e "por relacionar-se com uma dama da aristocracia inglesa", em tanto
Clotilde e Cristiana abriram a boca como peixes fora da água. Seu pai, é obvio,
autorizou-a a concorrer a Blackraven, apesar de seguir furioso com ela; Justa a

199
acompanharia.
Melody Blackraven a recebeu com doçura e lhe demonstrou que valorava sua
amizade. Mimita, retraída no princípio, em seguida fez amizade com Rosie, a mais
nova dos Blackraven. Lupe, a mais informada a respeito dos acontecimentos
políticos, contou detalhes que nem Corina imaginava.
Rafaela estava passando muito bem até que a condessa mencionou que o gaúcho
Fúria se reuniu essa manhã com seu marido. "Artemio", pensou Rafaela, "esteve
neste mesmo local horas atrás, respirando este mesmo ar". Não queria seguir
encontrando-lhe não desejava saber dele nem de suas aventuras. O destino,
entretanto, teimava em cruzá-los. Por que lhe tinha enviado o frasco com azeite
essencial de rosas?
—Rafaela! —exclamou sua tia, e a trouxe para a realidade—. No que está
pensando, criatura? —admoestou-a—. Olhe que torcido costuraste o bordado.
—Filha-demarcou Justa—, ponha mais atenção. Não podemos perder tempo.
Esta decisão absurda de seu pai de que case no fim do mês não nos dá tempo
para remediar enganos.
—Eu o corrigirei-atravessou Ñuque—. Deixa a toalha sobre a mesa, Rafaela, e vá
descansar.
Dispunha-se a retirar-se quando Peregrina, que tinha partido a atender um
batido na porta, entrou na sala e disse que acabava de chegar um bilhete do
Conselho para o amo Rómulo. As mulheres se olharam com preocupação,
pensando que a notificação tinha que ver com a participação de Palafox na
passeata de 1809.
—Rómulo! Rómulo! —chamou-o Clotilde.
O homem, que trabalhava em sua sala, se apresentou ante suas irmãs e sua
filha.
—Abre este bilhete —lhe rogou Justa—. Acaba de chegar.
Palafox rompeu o anel de lacre.
—É um convite do Conselho —leu em voz alta para satisfazer a curiosidade das
mulheres—: "O Excelentíssimo Conselho convoca a você para que se sirva assistir
precisamente amanhã, 22 do corrente às 9, sem etiqueta alguma e em classe de
vizinho, ao Conselho aberto, que com vênia do excelentíssimo Senhor Vice-rei,
acordou-se celebrar, devendo manifestar este bilhete às tropas que guarneçam as
avenidas desta praça, para que lhe permita passar livremente".
—Irá?
—É obvio, Clotilde.
Mais tarde, quase na hora do jantar, Rafaela recebeu uma nota de Corina.
Querida amiga, resultou-me impossível ir visitar-te hoje como te prometi.
Trabalhamos arduamente todo o dia imprimindo os bilhetes de convite para o
Conselho Aberto que se celebrará amanhã pela manhã. Embora o Surdo tenha
exigido que só se convidasse "à parte sã e principal do povo", temo-nos feito de
vários convites para as repartir entre a juventude patriota. Além disso, depois que
Eustaquio Díaz Vélez, um grande patriota, seja quem comanda as tropas que
controlarão as ruas circundantes à praça, por isso o ingresso dos nossos está
garantido. Amanhã será um grande dia, Rafi. Sua amiga de sempre. Corina.
***
Faltava pouco para as nove da manhã. Artemio Fúria, de guarda na esquina da
rua do Conselho e da Santíssima Trindade, com o edifício da Prefeitura detrás
dele, observava a seus homens e aos da Infernal, cobertos por compridos ponchos

200
e capas, os lenços de seda quase ao meio rosto para protegê-los do frio e os
chambergos34 cansados sobre as testas; não resultava difícil deduzir que levavam
armas entre seus objetos. Por certo que esses homens, apelidados "chisperos" ou
"manólos", intimidavam, por não dizer que aterravam. Conformavam uma tropa de
ao redor de seiscentos homens que, desde no dia anterior, ocupavam a Praça da
Vitória para convencer ao vice-rei e aos regedores de que o Conselho Aberto
chegaria ao fim ou o sangue correria pelas ruas de Buenos Aires. Depois de
muitas idas e vindas, a paisagem que conformavam resultou dissuasiva e o vice-
rei emitiu o bando que convocou à reunião da vizinhança, das primeiras horas
desse dia terça-feira 22, quando ainda reinava a noite, vários escravos desfilavam
de casas vizinhas conduzindo cadeiras e banquetas para se localizá-los na sala e
na galeria superior da Prefeitura que não contava com mobiliário para albergar a
tanta gente. Do mesmo modo, nas cozinhas se preparava chocolate quente e vinho
morno com especiarias, e dado que a jornada se pressagiava sombria, ordenou-se
trazer do porão grande provisão de velas de sebo que eram substituídas ao longo
da reunião.
Ao redor das oito e trinta da manhã, começou a chegar pessoas, as que
participariam da reunião no Conselho e os curiosos. Fúria observou que alguns se
detinham, estudavam o desdobramento de homens encapotados, davam a meia
volta e retornavam a seus lares. Outros, que não se arredavam, estendiam o
convite ante os soldados. A noite anterior, durante a reunião na fábrica de sabão
de Vieytes, repartiram-se as cintas características dos Húsares para que os
revolucionários as luzissem no poncho ou no impermeável35 e lhes franqueasse o
passo com diligência. As mulheres, por sua parte, tinham comprado vários metros
de tecidos azuis e brancos em uma loja da Recova com o dinheiro entregue por
French e confeccionado distintivos para as repartir no lugar aos simpatizantes da
causa. Quanto ao grupo que apoiava Cisneros, lhes permitia o acesso se tratava de
personagens muito importantes e conhecidos; nos outros casos, inventavam-se
desculpas para mandá-los a suas casas.
—Artemio.
Calvú Manque se apresentou a suas costas. Tinha chegado da campanha no dia
anterior, escoltado por um numeroso grupo de patrícios e gaúchos, quem, ante a
convocatória de Fúria, uniam-se aos patriotas para compor a força de choque que
French e Beruti consideravam chave para dissuadir às autoridades.
—Deram-lhes de comer no quartel? —interessou-se o gaúcho.
—Sim. Mate, guisado de carne e pão de centeio.
Artemio assentiu, enquanto esquadrinhava os seus homens, apostados em locais
estratégicos da praça.
—Esta noite não acamparemos no Alto —Artemio se referia ao bairro da periferia,
no sul da cidade, onde se achava a igreja de São Pedro Telmo e onde se
concentrava a multidão pobre que os chefes da Infernal tinham convocado ao
lugar—. Ficaremos aqui, no centro. Acomodaremo-nos nos quartéis e onde melhor
se possa.
—Está bem —respondeu Manque—. Como vai tudo por aqui?

34
Tipo de chapéu.

201
—Bem —respondeu Artemio.
—Em chegando, vá ao doutor Moreno. Anda muito inquieto.
—Diz que é o companheiro que quer arriscar.
—Será —depois de um silêncio, o índio perguntou—: O que ganhamos nós com
isto?
—Poder.
—Poder? Como assim?
—Triunfaremos, Calvú, e os que se convertam em autoridades nos deverão um
favor que eu lhes saberei cobrar.
—E o que lhes vais cobrar?
—Primeiro, a liberdade de meu padrinho. Não quero que ande como eu, como um
matreiro.
—Soldados, bom dia —saudou uma voz masculina à reserva apostada em uns
palmos.
Fúria e Manque voltearam. Frente a eles se encontravam Rafaela Palafox e Binda
e seu primo, Aarón Romano. Acompanhava-os a senhorita Cristiana Romano, e
detrás deles se apostavam os escravos Babila, Creóla, com Mimita em braços, e
Peregrina. Por um momento, sobressaltou-os o desconforto.
O primeiro que Fúria se perguntou foi que fazia Rafaela fora de sua casa com
esse clima frio e instável. Desejou envolvê-la na manta que pendurava com
descuido da cabeça e levá-la nos braços até o carro.
Com uma rápida olhada, comprovou a ausência de Rómulo Palafox. Onde se
encontraria? Ele tinha visto seu convite no dia anterior na imprensa. Deduziu que
tinha decidido não apresentar-se por temor aos chisperos e manólos que sabiam
ser um sarraceno.
De costas e tão coberto, Rafaela não o tinha reconhecido. Limitou-se a lhe
sustentar o olhar; não se tratou de um ato deliberado mas sim do efeito que lhe
ocasionavam seus olhos. Baixou o rosto e apertou as mãos dentro dos bolsos até
provocar-se dor, não por nervos, mas bem por raiva. Ele parecia tão composto,
tinha tanta confiança em si, tanta segurança e calma, que sentiu inveja. Durante
esse tempo, o senhor Fúria tinha prosseguido com o ritmo de sua vida como se ela
jamais tivesse existido. Odiou-o com uma força renovada. Levantou o rosto e
sorriu ao índio Manque.
—Miss —disse este, e tirou o chapéu—, como está seu negócio?
—Como se atreve a... ?
—Aarón, querido —interveio Rafaela, e extraiu uma mão dos bolsos para apoiá-la
no antebraço do jovem—. Conheço Calvú Manque. Ele trabalhou em La Larga este
verão. Bom dia, Calvú. Encontro-me bem. Obrigado.
Fúria observava a mão de Rafaela em contato com Romano, enquanto esse
"Aarón, querido" repicava em sua mente. Nada de incredulidade dominava seu
ânimo a não ser ciúmes; feroz, violento e negro ciúme. Sob o poncho, percebeu a
rugosidade do cabo de osso de seu guampudo (facão). O teria parecido no ventre
de Romano com prazer. Elevou o rosto até encontrar o olhar de Rafaela. Seus
olhos verdes fulguravam e davam uma nota de cor à manhã cinza.
—Atiemo! Atiemo!
Mimita se reanimava em braços de Creóla.
—Mimita, fica aquieta! —admoestou-a Rafaela.
Fúria deu um passo e tomou à menina em braços ante os gestos atônitos de
Aarón e de Cristiana. Rafaela falou com ouvido de seu primo, com bastante

202
equanimidade:
—Afeiçoou-se com o senhor Fúria durante sua estadia em La Larga.
—Não deveste trazê-la. Sabe que meu tio Rómulo lhe proibiu isso. Está nos
envergonhando!
—Deixa-a em paz, Aarón. Uma vez que alguém lhe demonstra sincero carinho,
deixa-a em paz!
A cor subiu pela face de Aarón; inclusive as orelhas lhe puseram vermelhas.
Mimita mostrava o colar com o pinjente de osso a Artemio e sorria ante as
palavras murmuradas do homem que ninguém alcançava para ouvir.
Depois de um momento de debilidade, no qual Rafaela lutou contra as vontades
de chorar, fez-se de novo com a ira ao recordar que Fúria não tinha destinado um
pensamento a Mimita quando decidiu as abandonar em La Larga.
—Vem, tesouro —apoiou as mãos na cintura da menina, que se aferrou ao
pescoço de Fúria e começou a chiar seu nome.
Na resistência, Artemio aproveitou para aproximar o nariz a Rafaela, e embora
tenha captado um aroma delicioso, não reconheceu a fragrância que desejava
inspirar.
—Por que não aceitou o azeite de rosas?
As pálpebras de Rafaela dançaram antes abrir-se por completo e desvelar a
comoção que lhe causava a voz enrouquecida do gaúcho, que, ao baixar vários
decibéis, converteu-se em um sussurro áspero e detestável. Era a primeira vez da
separação que lhe dirigia a palavra e que se aproximava. Não emprestou atenção à
pergunta e, como de costume, o efeito da surpresa lhe jogou em contra. Ficou
olhando-o, muda, nem sequer respirava. A intervenção de Aarón lhe devolveu o
fôlego.
—Soldado! Acabemos com isto e receba meu convite. Urge-me ingressar na
Prefeitura. A reunião está por começar.
Artemio pôs Mimita nos braços de Rafaela e se voltou com ar fleumático para
lançar uma olhada irônica a Romano, como se o sorriso depreciativo que seus
lábios não esboçavam se plasmasse em seus olhos. Rafaela se envergonhou de
Aarón. Sofria em sua comparação com Fúria, nem tanto por sua juventude ou seu
físico de citadino como pela falta de rasgos de dignidade.
—Adiante, senhor —indicou o soldado.
—Babila —disse Aarón, e assinalou a Cristiana e a Rafaela—, leva as de retorno a
casa.
—Aarón! —queixou-se sua irmã—. Pensava ir às compras.
—Não é um dia para compras. Há muita gentinha dando volta.
Rafaela olhou imediatamente a Fúria e não encontrou rastro de irritação, como
se o comentário de Aarón não tivesse estado dirigido a ele. Em silêncio, levantou a
saia de seu vestido e se afastou com Mimita em braços e os escravos por atrás.
Artemio Fúria a contemplou partir. Caminhava com atitude vencida. O vestido,
que caía justo ao seu corpo, não delineava as curvas do verão; estava muito
magra. O efeito das olheiras de Rafaela em contraste com a palidez de seu
semblante impressionava. Temeu por sua saúde.
—Artemio —Calvú lhe pôs uma mão sobre o ombro—. Não a olhe assim, peñi.
Fúria assentiu. Ao voltar-se, descobriu ao padre Ciríaco que cruzava a praça. Ao
igual à grande parte do clero portenho, participaria do Conselho Aberto. Ao vê-lo
levantar a mão e saudar com um sorriso, desejou correr para ele e cobrir-se em
seu colo regaço como o tinha feito tantas vezes de menino.

203
***
Depois de assegurar-se de que seus homens recebessem uma ração de carne e
uma boa medida de álcool para combater o frio, Fúria montou Cajetilla e cruzou a
Praça da Vitória em direção a fábrica de Vieytes. A excitação dos revolucionários
se percebia da porta, onde o recebeu um barulho alterado por uma gargalhada ou
uma exclamação. Falavam sobre a jornada no Conselho.
Artemio, morto de cansaço e de fome, sentou-se em uma cadeira e separou as
pernas para comer a empanada de carne que lhe serviu Remédios de Escalada.
—Agarre outra, Fúria —o insistiu—. Com semelhante corpo, não fará nada com
uma empanada.
—Obrigada, senhorita.
Dedicou-se a comer, a sorver o excelente vinho —obsequio do conde de
Stoneville— e a seguir com a vista em Corina Bonmer, que acompanhava seu
amante, o Gigante Arzac, nessa noite de vigília. A jovem o evitava.
Pensou em Rafaela, fria e distante essa manhã frente ao Conselho, e apertou a
mão em torno do copo de bronze até senti-lo ceder. Levantou as pálpebras com
lentidão, e o bulício dos revolucionários, seus gestos exagerados e vozes
destemperadas substituíram a imagem de Rafaela e da Mimita. Acomodou-se na
cadeira e se dispôs para ouvir as anedotas para enganar a seu pensamento e
impedir de tomar caminhos dolorosos. Ele, que se tinha passado o dia fora, na
praça, desconhecia os detalhes da reunião no Conselho e fez um esforço por
interessar-se neles. Desse modo, soube que o bispo Lué e Rega, primeiro orador,
exacerbou os ânimos com um discurso que demonstrava sua falta de tato ao
manifestar que "enquanto existisse na Espanha um pedaço de terra mandado por
espanhóis, esse pedaço de terra devia mandar aos americanos, e que enquanto
existisse um solo espanhol nas Américas, esse espanhol devia mandar aos
americanos podendo só vir o mando aos filhos do país quando já não houvesse um
solo espanhol nele". Embora Castelli tenha iniciado sua réplica com voz vacilante,
quase imediatamente se impôs seu talento para a oratória e desacreditou as
palavras do bispo ao assegurar que as colônias não pertenciam ao povo espanhol
a não ser à Coroa, à dinastia Bourbon, e dado que o infante dom Antonio (referia-
se ao tio de Fernando VII, a quem este tinha renomado presidente da Junta
Suprema de Governo em sua ausência) tinha abandonado Madrid por causa dos
franceses, o governo se encontrava caduco, mais ainda quando a Junta de Sevilha
se desbaratou depois da rendição da Gerona. Os gaditanos que conformavam o
Conselho de Regência desde janeiro desse ano, não tinham, sobre as Américas,
poder algum. Todos, crioulos e peninsulares, eram súditos da mesma Coroa.
A brilhante dissertação de Castelli, Manuel Villota, fiscal da Real Audiência, opôs
uma razão fundamental: Buenos Aires não podia, em nome do Vice Reinado,
formar Junta sem a participação das províncias. Os revolucionários se voltaram
para Castelli, quem, desprovido de argumentos, contemplou a seus companheiros
com uma palidez que denunciava seu desconcerto. O doutor Juan José Passo
salvou a situação ao expressar que não era momento para perder tempo; devia
formar-se com prontidão uma Junta transitiva para resguardar os territórios do
Rio da Prata em nome de dom Fernando e proteger os da ambição francesa e
portuguesa. Logo, convocar-se-ia às províncias para conformar um governo
permanente.
Pancho Planes, muito exaltado e com algumas monopoliza de mais, sentou-se a
seu lado, bateu-lhe nas costas e vociferou:

204
—Que jornada, Artemio! Histórica, amigo! Histórica!
—Assim dizem.
—Pensei que, passado o dia de hoje, ficariam esclarecidas muitas questões, mas
ainda vejo tudo muito escuro. Nossa causa ainda não está salva. Verá, com o voto
de Pascal Ruiz Huidobro, dividiram-se as opiniões aqui.
—Para surpresa de todos —lhes uniu o doutor Madeiro—, o general Ruiz
Huidobro votou pela destituição de Cisneros e expressou que o Conselho deve
assumir a autoridade em nome do povo até tanto se forme um governo provisório.
Alguns querem pôr ao mesmo Ruiz Huidobro à frente de dito governo dado que é o
militar de maior fila e um homem cabal.
—Mas ele é um maturrango36 —opôs Artemio—, e a mais um ostentoso —
acrescentou; a paquera de Ruiz Huidobro era bem conhecida. Tranqüilo lançou
uma gargalhada.
—Isso digo eu! Como diabo lhes ocorre que nos desfaremos de um pelucón para
nos jogar em cima a outro? —soltou um suspiro e expressou, passado um
silêncio—: A questão é que hoje todos votamos e amanhã se realizará a
recontagem.
Artemio sabia. De fato, três de seus homens vigiavam os acessos ao Conselho
para evitar que, durante a noite, alguém se deslizasse dentro e alterasse os
listrados da votação. Em honra da verdade, poucos duvidavam do fracasso de
Cisneros. A votação não tinha sido secreta a não ser cantada a viva voz, e a
aqueles que se inclinavam pela continuação do vice-rei os insultava, cuspia e
ameaçava. Alguns se esconderam no recinto para não votar e outros, conhecidos
por monárquicos, fizeram-no contra suas idéias. Um grupo de jovens
revolucionários tinha apregoado do balcão do Conselho a marcha da votação a
chisperos e a manólos e aos da Infernal, colocados nas escadas e no pórtico. A
algazarra, carregada de adeptos quando se votava pela destituição de Cisneros e
de insultos em caso contrário, terminou por amedrontar aos indecisos.
Mariano Moreno sentou em uma cadeira junto a Pancho Planes e fechou os olhos
ao tempo que exalava um bufo que falava de seu esgotamento. Artemio disse que
apresentava um semblante doentio.
—Pensei que hoje na Prefeitura —disse Pancho ao jovem advogado—, aguentaria-
lhes uma de suas boas arengas. Não tem aberto boca —Fúria entreviu uma nota
de recriminação na voz de Planos—. E sabe Deus que é tão bom como Castelli e
Passo. Depois de sua Representação dos Fazendeiros e Lavradores, quem o poria
em dúvida?
—Em troca você, Pancho —disse Moreno—, excedeste-te ao solicitar o julgamento
de residência a Cisneros pelos abusos cometidos o ano passado em La Paz e
Chuquisaca.
—O doutor Moreno tem razão, Pancho —acordou Madeiro.
—Ora! —desdenhou Planos.
—Asseguro-te —continuou Moreno—, que votei pela destituição do vice-rei só
porque, em caso contrario, o tolo de Martin Rodríguez me teria surrado. De outro
modo, não me teria exposto porque temo uma traição por parte do Conselho. Não
confio no Julián de Leiva —se referia ao síndico procurador—. Se o Conselho
assumir a autoridade, sua cabeça, Pancho, será primeira em rodar. Suspeitava, e

36
Expressão regional que se refere à pessoa que monta mal, que não entende do serviço do campo.

205
não me equivoquei, que, tanto o prefeito de primeiro voto como o síndico Leiva,
apoiariam ao Surdo. Para cúmulo de maus, eu vi a Leiva o outro dia
parlamentando com Saavedra, tratando de derrubá-lo para seu bando —Moreno
ficou de pé com um gemido—. Estou cansado e muito desiludido. Vou a minha
casa de onde não penso sair em vários dias. Boa noite, Fúria —disse, e o honrou
ao levantá-la galera e inclinar a cabeça ao passar diante dele.
—Boa noite, doutor.
Artemio bebeu o último sorvo de vinho e ficou de pé, cambaleando-se a causa do
esgotamento e do álcool. Não voltaria para a pensão de dona Clara nem às
habitações de Albana mas sim compartilharia a sorte de seus homens e dormiria
nos quartéis, sobre um colchão ou sobre um palheiro nas cavalariças. Despediu-se
de Planos e de Madeiro e retornou ao centro.
***
Rafaela vomitou na baia que Creóla aproximou do bordo a cama. Enxaguou a
boca e voltou a tender-se com um gemido.
—Quanto durará esta maldição? Não o suportarei por muito tempo.
—Não sei, minha menina. E se lhe dá de vomitar na cerimônia das bodas em São
Francisco? —assustou-se Creóla.
Ñuque levantou as pálpebras e lhe lançou uma olhada à escrava, que se
desculpou e saiu do quarto. Rafaela recolheu os joelhos e as pegou ao peito. O
menor de seus problemas o constituía a possibilidade de um vômito sobre a
jaqueta de seu prometido. Em realidade, tirava-lhe o sonho imaginar o que
aconteceria depois da cerimônia e do almoço, quando ela e Aarón se encontrassem
a sós no quarto nupcial. Não conseguia apagar a sensação de sufoco e
repugnância que experimentou com o primeiro beijo de seu prometido.
A noite anterior, Aarón tinha chegado tarde, ao término da votação no Conselho
Aberto. Aguardavam-no acordados, em ânsias mortais, sobre tudo Rómulo, quem,
a último momento, tinha desistido de comparecer depois de atender aos conselhos
de seu sobrinho e futuro genro. "Não será seguro para você, tio. Há muita
animosidade contra os peninsulares." Palafox, apesar de seguir zangado com seu
sobrinho por unir-se à causa desses jovens descarados, compreendeu a sensatez
do conselho e decidiu não apresentar-se no Conselho.
Com o cansaço impresso no rosto, Aarón se sentou na sala e, enquanto Rafaela
revoava lhe oferecendo comida, café e bebidas espirituosas, o jovem se deteve nos
pormenores de uma jornada larga, tediosa e, por momentos, perigosa.
—Pai —interveio Rafaela—, Aarón parece cansado. Sua mercê o manteve aqui por
mais de uma hora. Permita-lhe retirar-se a descansar. Amanhã lhe referirá os
detalhes.
—Sim, sim, moço, te retire a descansar.
Aarón partiu arrastando os pés e estirando os braços. Pouco depois, Rafaela se
desculpou e partiu para os interiores. Ao passar frente ao quarto de seu primo, a
porta se abriu de súbito e uma mão a arrastou dentro. Antes de compreender que
se achava em braços de Aarón, escutou o estalo da porta ao fechar-se.
—O que faz ?
—Passado um momento a sós com minha futura esposa. Não tivemos nenhum
destes momentos desde que nos comprometemos. E não é porque eu não o deseje
mas sim porque você te mostra esquiva.
Sem aguardar resposta, Aarón lhe cobriu os lábios com os seus, e ela ofegou por
causa da surpresa.

206
—É apaixonada, verdade? Não sabe? Muito inocente para conhecer sua natureza
de fêmea? Eu te ensinarei e você não me decepcionará, sei.
—Aarón, me deixe! —sossegou-a esmagando sua boca contra a dela outra vez.
—Por que teria que te deixar? Acaso em poucos dias não será este meu direito?
O aroma de damasco de Aarón já não lhe resultou agradável. Sua doçura e uma
nota aguda lhe provocaram uma espetada no sobrecenho que terminou por
aninhar em seu estômago. Apartou os lábios com um movimento brusco de
cabeça, apanhou uma grande porção de ar e sujeitou o vômito quando ameaçava
escapando.
—O que ocorre? —perguntou-lhe, irritado, e em seguida relaxou a expressão e a
beijou com delicadeza—: Assustei-te. Perdoa meu ardor. Enlouqueceu-me na sala,
trabalhando em excesso para me servir, mostrando seus encantos —passou a mão
pelas costas até acariciar seus glúteos.
—Não! Por favor, deixe ir.
Soltou-a a contra gosto e a contemplou ir-se, enquanto se preocupava com a
palidez de seu rosto e pela tintura violácea de seus lábios. Sabia que Rafaela era
assustadiça, embora também conhecia um matiz ousado que emergia nos
momentos difíceis e que a transformava em uma mulher forte e admirável.
Respeitava-a como a poucas pessoas. E acabava de descobrir que a desejava.
Depois de tudo, meditou, seu matrimônio não só lhe brindaria benefícios
econômicos. Teve uma ereção ao imaginar Rafaela nua sob seu corpo. A imagem
de Bernarda de Lezica penetrou em seu pensamento e lhe azedou o humor. Odiava
a essa agiota e ansiava possuí-la, tudo ao mesmo tempo.
Rafaela alcançou seu quarto e trancou a porta. Temia uma visita noturna por
parte de seu primo. Não conciliou o sonho até o amanhecer. Ao redor das nove,
despertaram os golpes que Creóla propinava à porta. Pouco depois, apareceu
Ñuque para testemunhar seu vômito matutino, e nesse instante a estudava com a
expressão que empregava para ler a mente das pessoas.
—O que te aconteceu? Suas olheiras falam da falta de um bom sono.
Não lhe referiria o episódio com o Aarón pois a anciã, com sua lógica
incontestável, diria que cancelasse as bodas, algo que ela não podia permitir-se.
—Ontem me topei com Fúria no Plaza Mayor.
—Falaram?
—Ele me perguntou por que não aceitei o azeite essencial de rosas, e eu, como de
costume, permaneci como uma tonta, olhando-o, adorando-o, admirando-o. Que
estúpida sou! Nem sequer fica orgulho para enfrentá-lo! Odeio-o! Odeio-o —disse,
sem tanto ímpeto—. O odeio por me converter nesta idiota.
—Vamos —animou Ñuque—, esqueça desse homem. Chamarei a Creóla para que
te lave e lhe vista. Sairá a dar um passeio. Um pouco de ar te sentará bem.
—Sabe que meu pai me proibiu aparecer o nariz. Está furioso comigo. Permitiu-
me sair ontem porque ia com Aarón e Cristiana.
—Falarei com ele.
Seu pai a autorizou a visitar sua prima Federica, a filha de Justa, e a consultar
livros na biblioteca de frei Cayetano Rodríguez. Devia retornar para o almoço que
se serviria às duas da tarde. Respirada por Ñuque, Rafaela realizou uma mudança
de planos: concorreria ao negócio da senhorita Bernarda e visitaria Corina na
Imprensa dos Meninos Abandonados.
A pouco de entrar na loja de Lezica, esta partiu aos interiores para procurar o
pagamento de Rafaela e a deixou sozinha, com Creóla a suas costas. O chiado das

207
dobradiças da porta principal as levou a voltear. León Pruna tirou o chapéu e
entrou.
—Bom dia, senhorita Palafox.
Rafaela lhe sorriu e inclinou a cabeça. Gostava de León Pruna, ou melhor
dizendo, Juvenal Romano. Encontrava-o atrativo, de um olhar suave e lhe
convidem e de modos que transmitiam uma segurança cativante. Pensou em sua
tia Clotilde e, como de costume, julgou-a uma idiota.
—Bom dia, senhor Romano.
Tomou uns segundos advertir que a jovem o saudava com seu verdadeiro
sobrenome. Ante a expressão desolada do homem, Rafaela se apressou a explicar:
—Sei tudo, senhor Romano. Ñuque me referiu isso dias atrás.
—Ah, a boa de Ñuque —disse, em um sussurro, notavelmente afetado.
—Peço-lhe que não se preocupe. Meus lábios e os de minha escrava estão
selados.
—Obrigado, senhorita Palafox.
—O que mais lamento deste assunto é que minha prima Cristiana não saiba que
sua mercê, um homem tão cabal e honorável, é seu pai. Ficaria feliz em saber.
Para surpresa de Rafaela e de Creóla, os olhos de Romano se tornaram
brilhantes. O nó que enrijeceu a garganta lhe impediu de responder.
—Conte comigo para o que necessite, senhor Romano.
Juvenal pigarreou antes de expressar:
—Eu sou judeu. Referiu-lhe isso Ñuque?
Rafaela assentiu, muito composta.
—Jesus Cristo e sua Mãe também o eram. Insisto, senhor Romano, conte comigo.
Juvenal Romano apoiou a cartola sobre o mostrador e tomou as mãos enluvadas
de Rafaela entre as suas.
—E você, senhorita Palafox, conte comigo sempre que o necessite. Encontro a
sua inteira disposição —deslizou um cartão pessoal na bolsa de tafetá que
pendurada em seu pulso—. Para qualquer serviço. Qualquer —recalcou.
***
Na casa de seu amigo Martín de Álzaga, Rómulo Palafox e outros partidários do
catalão emprestavam atenção ao síndico procurador, Julián de Leiva, quem lhes
relatava as idas e voltas da recontagem de votos e a designação da Junta de
Governo, ambos os feitos ocorridos ao longo dessa jornada da quarta-feira 23, tão
fatigante e complexa como a anterior.
—O triunfo da facção que desejava a destituição do vice-rei foi entristecedor —
expressou o síndico—. Ao ganhar sorte a facção, que a sua vez pôs em mãos do
Conselho a condução do Vice Reinado, quer dizer, em mim —adicionou, com ar
suficiente—, resultou fácil assegurar que a presidência da tão memorada e
desejada Junta recaísse em Cisneros. Este aceitou, embora manifestasse que
desejava consultar aos comandantes.
—O que disseram estes? —interessou-se Álzaga.
—Martín Rodríguez disse que de maneira nenhuma aceitariam Cisneros, que o
povo queria sua destituição —Leiva sorriu com uma careta de astúcia—. Mas
Saavedra soube ver a prudência de formar uma Junta de conciliação até tanto
cheguem os representantes das províncias. Espanhóis e crioulos governando
juntos, com Cisneros à cabeça.
—E o que tem que Freiem e Beruti? Eles contam com os da Infernal e com a
gentinha do gaúcho Fúria. Bem poderiam prescindir das forças de Saavedra para

208
impor sua vontade.
—Então —admitiu Leiva—, isto se converteria em um banheiro de sangue.
—Esperemos que não —interveio Rómulo Palafox.
—Saberemos amanhã —manifestou Leiva—, quando publicarmos o bando com a
conformação da Junta.
—Além do Cisneros —se interessou Palafox—, quais integrarão esta bendita
Junta?
—Havemos pensando no pároco de Monserrat, Juan Nepomuceno Solo, como
representante do clero; no Saavedra, como militar; e no secretário do Consulado,
Manuel Belgrano, como advogado. Ou possivelmente o doutor Castelli.
—E quem representará aos comerciantes? —chateou-se Álzaga, o que abriu um
debate que terminou arrojando vários nomes.
Rómulo Palafox abandonou a casa de seu amigo Martín de Álzaga bastante
conforme e mais tranqüilo. Se o governo seguia em mãos do Cisneros, não tinha
por que preocupar-se. Outro teria sido seu ânimo em caso contrário. Aterravam-no
o exílio, o cárcere e a confisco. Aborrecia a esses jovens jacobinos que, em nome
da revolução, teriam cometido desmandos e injustiças, como, por exemplo, frear o
trâmite de sua Carta Executória de Nobreza, estava seguro disso, porque não se
deixaria enganar: a Sociedade dos Sete disfarçava em uma suposta lealdade a dom
Fernando um desejo irrefreável de libertar o Rio da Prata do império dos Bourbons
e convertê-lo em uma república.
Subiu ao carro e indicou a Babila que o conduzisse ao teatro. Depois do encontro
frustrado do domingo anterior, ansiava voltar a ver Albana Buquê. Tinha-o
convidado a compartilhar um copo de absinto em seu camarim, depois da obra.
Excitou-se em antecipação. Não passaria muito tempo antes de tendê-la em uma
cama.
***
Na quinta-feira 24 de maio, pela manhã, os cabildantes, localizado-se ao longo da
mesa com toalha de damasco vermelho, na sala capitular, dispunham-se a tomar
juramento à nova Junta de Governo, cujos integrantes, bem engalanados,
mostravam-se nervosos e vacilantes. Cisneros, em seu uniforme de tenente
coronel da Marinha espanhola, com grande profusão de galões e medalhas,
embora sem a banda nem o fortificação que o tinham distinto como vice-rei,
aguardava com gesto tenso a que o prefeito de primeiro voto, Juan José de Lezica,
terminasse de ler o documento no qual se enumeravam as obrigações dos novos
governantes. Os restantes membros da Junta, o presbítero Juan Nepomuceno
Sozinha, o coronel Saavedra, o doutor Castelli e o comerciante José Santos de
Inchaurregui, alinhavam-se a suas costas. A severidade dos gestos não se
relacionava com a solenidade do ato a não ser com a preocupação que os assolava.
"Passarão a degola", tinha-lhe advertido Castelli a Saavedra minutos antes de
ingressar no recinto. "French nos jogará em cima a seus chisperos e nos
converterá em mingau por ter aceitado formar governo com o Surdo", acrescentou,
ao que Saavedra nada respondeu.
Uma hora mais tarde, a porta principal do Conselho se abriu para dar passo à
nova Junta. A praça se sossegou. Artemio viu sair aos cinco membros, que
descenderam os degraus do pórtico e cruzaram a rua da Santíssima Trindade em
direção ao Forte. Escoltavam-nos membros da Real Audiência, o comandante de
Dragões, José Ignacio da Quintana, e alguns ajudantes. Jogou uma olhada a seus
homens para comprovar que se mantiveram em seus locais e com as armas

209
embainhadas.
Algum grito ocasional de "Fora Cisneros!" aprofundava o silêncio que, de modo
antinatural, dominava esse espaço do centro de Buenos Aires, usualmente
buliçoso. A destemperança do clima e a cor plúmbea do céu foram de acordo com
os ânimos.
—Bamba —sussurrou Artemio—, vê o quartel e lhe refira os fatos a Domingo —se
referia a seu amigo French, que se tinha aquartelado com os soldados da Infernal.
***
As últimas horas da tarde da quinta-feira 24, os integrantes da flamejante Junta
de Governo se achavam no salão principal do Forte, onde Cisneros mantinha seu
escritório e habitações privadas. Castelli, com a vista fixa em uns peso de papel de
bronze, revivia as circunstâncias da tensa reunião levado a cabo poucas horas
antes, na quinta do Nicolás Rodríguez Penha. Martín Rodríguez e outros militares
revolucionários não se incomodaram em ocultar sua fúria pelo que consideravam
uma deserção dos cabildantes ao nomear Cisneros como presidente do novo
governo. Aos gritos, Beruti tinha expresso que uma Junta com Cisneros à cabeça
era quão mesmo Cisneros vice-rei, e tinha ameaçado Castelli e Saavedra a
apresentar suas renúncias na primeira assembléia do novo governo.
—Senhor Presidente —falou Castelli—, peço a palavra —Cisneros assentiu e fez
um gesto de mão—. O coronel Saavedra e eu viemos a apresentar nossa renúncia.
O antigo vice-rei pôs cara de desagrado, embora não se mostrou surpreso.
—Ameaço-os a aguardar até manhã —disse, com acento medido.
—Resulta impossível —se plantou Castelli—. A borrasca nos vem em cima. Já há
grupos de chisperos e manólos arrancando os bandos onde se anuncia a
nomeação desta Junta, e um mal-estar se apodera das forças militares, que estão
aquarteladas e em compasso de espera. Não podemos nos apartar de nossos
sentimentos e nossos deveres para com a terra em que nascemos.
Cisneros moveu os olhos e os posou em Saavedra.
—As tropas se encontram revoltadas —advertiu o militar— e nada podemos fazer.
—Então —decidiu Cisneros—, renunciemos todos.

210
Capítulo XVII

Uma jornada memorável

A primeiras horas da manhã da sexta-feira 25 de maio, a maioria dos membros


da Sociedade dos Sete se congregou na casa do Miguel da Azcuénaga, localizada-
se na esquina da rua das Torres e de São Martín, em diagonal com o Conselho.
Martín Rodríguez, que acabava de chegar da Prefeitura, irrompeu com seu modo
pouco cuidado e os pôs em automóveis: os cabildantes se negavam a aceitar as
renúncias de Cisneros e do resto dos membros da Junta.
A declaração do comandante dos Húsares provocou grande alvoroço, e os
revolucionários falaram com insistência e em voz alta. Ao final, Belgrano os
mandou calar. Rodríguez Penha tomou a palavra e manifestou que resultava
imperioso enfrentar às autoridades da Prefeitura e lhes exigir a imediata deposição
de Cisneros.
—Entregaremos a lista que confeccionamos ontem à noite —anunciou French, e
se referia a um documento com os nomes dos membros da nova Junta.
Decidiram que Chiclana, French, o pai Grela, o padre Ciríaco Aparicio e Pancho
Planes, entre outros, encabeçassem o grupo que conduziria a mensagem. Ao grito
de "Ao Conselho!", abandonaram a casa da Azcuénaga e cruzaram a praça, onde
uma pequena multidão, que não se acovardava por causa da chuva, do frio, nem
dos rostos sinistros dos chisperos e manólos, aguardava notícias.
Artemio Fúria, que falava com Billy, "o rengo", Modesto, "o entrerriano", e com o
Eddie O’Maley, se apartou para interceptar ao padre Ciríaco.
—Aonde se dirige? —quis saber.
—Encomendaram-nos concorrer à Prefeitura para exigir a Lezica e a Leiva que
aceitem a renúncia de Cisneros e do resto dos membros da Junta. Deus ilumine a
esses dois. De outro modo, correrá sangue.
Para ouvir essas palavras, Eddie O’Maley sussurrou a Fúria:
—Parto-me. Tenho que levar esta noticia ao capitão Black.
—O capitão Black? —perguntou Fúria.
—Assim chamam seus marinheiros ao conde de Stoneville. Estarei no de dona
Clara —lhe anunciou—. O capitão está reunido aí desde cedo com o Mackinnon e
os outros comerciantes ingleses, à espera do desenlace. Envie-me mensagem por
Bamba ante qualquer novidade.
—Está certo.
O grupo ingressou no Conselho e, em desconcerto, ocupou as galerias superiores
do edifício. Leiva saiu da sala, furioso.
—Ordem, senhores! O que é o que desejam?
—A deposição imediata de Cisneros! —vociferou Pancho Planes—. Agora mesmo!
O prefeito de primeiro voto, Juan José de Lezica, apareceu e disse:
—Está bem, mas o faremos em ordem, como pessoas decentes e civilizadas.
Escolham a um pequeno grupo de entre vós e passem ao recinto para conferenciar
com o resto dos cabildantes. Outros se dirigirão ao primeiro andar e conservarão a
calma.
Em uns minutos escolheram aos que compareceriam. Ao tratar de ingressar,
Pancho Planes foi detido por Leiva.

211
—Não, meu senhor, você não. É vossa mercê muito louco para este negócio.
O padre Ciríaco apertou o braço de Pancho quando este se dispunha a armar
uma animação.
—Pancho, espera aqui, moço. Não sairemos do recinto sem o que viemos a
procurar. Prometo-lhe isso.
Os patriotas não se andaram com pequenas e, evitando preâmbulos e
formalidades, expressaram seu desejo.
—Aceitem imediatamente a renúncia dos membros dessa infame Junta que
formastes ontem contra os desejos do povo que dizem representar —exigiu
French— e nomeiem uma nova de acordo com a lista que aqui lhes entrego.
Lezica recebeu o papel e lhe jogou uma olhada.
—Não podemos fazê-lo sem o consentimento das demais províncias —apontou
Lezica.
—Isso não é óbice para formar Junta —explicou Chiclana—. Como vê, ao pé do
documento se estabelece a imediata convocatória às províncias do interior para
que concorram a Buenos Aires e decidam o destino do Vice Reinado.
—Isto é um atropelo —exclamou Gregorio Yaniz, prefeito de segundo voto—. Que
autoridade invocam para ingressar nesta Prefeitura a apresentar suas exigências?
—A do povo! —prorrompeu Planos, que acabava de deslizar-se dentro.
—Esta não é uma democracia como a Norte-americana, senhor Planos! —
recordou-lhe Leiva.
—Aqui governa o povo! —teimou Pancho—. Desde que Fernando VII está
impossibilitado de governar, a soberania pertence a seu povo.
—Senhores —atravessou Tomás de Anchorena, o único cabildante que apoiava a
causa da Sociedade dos Sete—, esta disputa carece de sentido. O que devemos
fazer é convocar aos comandantes das forças militares para que nos dêem seu
parecer.
Como se achavam em casa da Azcuénaga, os chefes das tropas não demoraram a
aparecer na sala capitular. Decidiu-se que tomasse a palavra Esteban Romero,
chefe do segundo regimento de Patrícios, para evitar que Martín Rodríguez
cometesse uma explosão.
Leiva expôs a situação. Ao fim de seu discurso, passeou o olhar pelos militares e
disse:
—Portanto, senhores, espero que vós não vacilem em sustentar o resolvido nos
dia 23 e a autoridade instalada e jurada ontem. Espero que digam se pode contar
com as armas a seu mando para sustentar o governo estabelecido.
—Senhores cabildantes —se apressou a dizer Romero—, as tropas e o povo estão
indignados e nós não temos autoridade para lhe dar apóio ao Conselho porque
estamos seguros de que não seremos obedecidos devido à efervescência em que se
encontram as tropas e os filhos do país. Se o Conselho se obstina, será impossível
evitar que a tropa se venha hoje à praça e cometa toda classe de excessos contra o
Conselho e a pessoa do senhor Cisneros até formar por si só um governo a seu
gosto. Não lhes enganem, isto já se desatou, já parece. O povo consignou o que
quer por escrito. Esses são quão sujeitos quer ver no governo —expressou, ao
tempo que assinalava a lista em mãos de Lezica.
Pancho Planes, que tinha saído do edifício do Conselho para conferenciar com
Fúria, retornou à sala capitular com um sorriso macabro ao tempo que a turfa
invadia os corredores, as galerias, esmurrava as portas e exclamava impropérios,
dando conta do caráter selvagem que tinha adquirido o conflito político.

212
—Por favor! —implorou Leiva a Martín Rodríguez—. Contenham a essa fileira de
bestas!
—Farei —assegurou Rodríguez, levantando o tom de voz sobre o tumulto— se
prometerem aceitar a renúncia de Cisneros.
Leiva deduziu com os vizinhos e os viu assentir, com caretas de terror.
—Está bem—disse, com grande desânimo. Seu plano perfeito se derrubou—.
Faça-o, logo, antes que esses nos passem pelas armas.
Martín Rodríguez abriu de par em par as venezianas que davam para a galeria
superior e se mostrou à multidão. Ao vê-lo, Artemio Fúria levantou o braço e
sossegou à turfa.
—Patrícios —exclamou Rodríguez—, fica separado o vice-rei Cisneros. Tenham
um momento de paciência que vai se tratar o resto.
A multidão prorrompeu em vivas e vitória que alagaram a sala, arrancando
sorrisos e aplausos a alguns de seus ocupantes, e sombrios olhares a outros.
A notícia de que o Conselho aceitava a renúncia de Cisneros voou a casa do
Miguel da Azcuénaga. Tinha chegado o momento de obrigar a os cabildantes a que
aprovassem a nova Junta. Rodríguez Penha se dirigiu a French:*—Voltem para
recinto, da Prefeitura e ameacem com as armas se for preciso.
O grupo que ingressou na sala capitular resultou mais numeroso e decidido que
o dessa manhã. Alinharam-se frente aos cabildantes, quem permanecia sentados à
larga mesa. Acenderam-se várias velas apesar do início da manhã. As chamas
dançavam sobre os semblantes taciturnos das autoridades.
Beruti lhes falou com dureza:
—Senhores, vamos em nome do povo retirar nossa confiança de suas mãos. O
povo acredita que a Prefeitura faltou a seus deveres e que traiu o encargo que lhe
fez ao nomear ao antigo vice-rei como presidente da Junta. O Conselho já não tem
faculdade para substituir aos membros da dita Junta com outros porque a
autoridade retornou à mãos do povo. É vontade do povo soberano que o novo
governo se componha de quão sujeitos ele quer nomear com a precisa e
indispensável condição de que no término de quinze dias saia uma expedição de
quinhentos homens para as províncias interiores para que o povo de cada uma
delas possa votar livremente por quão deputados têm que dever resolver a nova
forma de governo que o país deve dar-se. Se isto não é aceito no ato, senhores
vocais, podem vós ter-se aos resultados fatais que vão se produzir porque daqui
vamos partir aos quartéis para trazer para o lugar as tropas que estão reunidas
neles, e que já não podemos nem queremos conter.
—Devo lhes recordar —expressou Yaniz— que na votação do passado 22 de maio,
o povo reunido em Conselho Aberto decidiu que fosse esta Prefeitura o que
escolhesse às novas autoridades.
—O Conselho —interpôs Hipólito Vieytes— excedeu escandalosamente as
faculdades que lhe demos o 22, e intrigou para nos perder.
—Se crêem que o Conselho se excede em suas faculdades —disse Lei—vai—, por
que vem aqui a nos pedir que legitimemos um governo que vós querem lhes impor
pela força? É porque bem sabem que se não contarem com nosso apoio, sua
memorada Junta não valerá nada, não terá legitimidade.
—Contamos com o apoio do povo e das armas —recordou French— e se viermos
aqui a solicitar seu apoio legal e jurídico é para evitar o que poderia terminar com
um derramamento de sangue. Mas saibam, senhores, que nós estamos dispostos a
tudo.

213
Pancho adicionou:
—O Conselho Aberto que obrou como soberano o 22, resolveu separar do governo
ao senhor Cisneros e lhe retirar o mando das armas. E embora seja verdade que
esse mesmo Conselho Aberto decidiu que fosse a Prefeitura quem escolhesse às
novas autoridades, o que as autoridades de dita Prefeitura têm feito foi burlar-se
da vontade do povo ao nomear como presidente da Junta a quem poucas horas
antes o povo tinha decidido separar do mando.
—Vós —tomou a palavra Leiva e ficou de pé— falam do povo. Povo isto, povo
aquilo —Rodeou a mesa e se aproximou do grupo que se achava perto do balcão
que olhava para a praça—. Pergunto-me, onde está esse povo ao que, supõe-se,
meus colegas e eu devemos dar gosto por soberano?
—No documento que lhes entregamos —manifestou o padre Ciríaco— estão as
assinaturas de todas as pessoas em nome de quem atuo.
—Vós compreenderão que a formalidade do ato que nos exigem requer que os
cabildantes vejam a esse povo tão numeroso de que falam. Onde está o povo? —
insistiu, enquanto se inclinava sobre o corrimão e contemplava o lugar—. A esse
grupejo de malviventes chamam povo? A esse número reduzido de indivíduos?
—Senhores do Conselho! —explorou Beruti—. Isto já passa de brincadeira. Não
estão em posição de burlar-se de nós com sandices. Se até agora procedemos com
moderação foi para evitar desastres e efusão de sangue. O povo, em cujo nome
falamos, está armado nos quartéis e uma grande parte da vizinhança espera em
outras partes a voz de alarma para vir aqui. Querem vós vê-lo, pois toquem os
sinos a alerta —Mas como recordou que Liniers tinha mandado tirar os badajos
depois da passeata do 1º de janeiro de 1809, adicionou—: Vamos decidir agora. E
já verão vós o rosto desse povo cuja presença sentem falta de agora! Vamos,
decidam, senhores! Não estamos dispostos a sofrer demoras e enganos, mas se
voltarmos com as armas na mão, não respondemos de nada.
Da praça, levantou-se uma gritaria.
—Abram-nos quartéis! Não esperemos mais!
—Senhores! —gritou Leiva, e o bulício minguou—. O Conselho se considera
ameaçado pela força e pelas calamidades com que nos ameaçam. Os pôsteres do
bando que tínhamos mandado fixar nas esquinas onde anunciavam à nova Junta
foram arrancados e atirados ao lodo das ruas, e os empregados desta Prefeitura
que os levavam foram despojados e também danificados. Esta é uma rebelião
aberta,—Não se deu conta? —perguntou-lhes Pancho Planes, o que gerou uma
gargalhada geral.
—Sim, senhor, é-o! —gritou Beruti.
—Por desgraça —admitiu Leiva—, não fica dúvida disso. E cedemos. Mas tenham
calma para ouvir as condições com que o Conselho dará por anulados os atos do
dia 23 e 24. Depois, proclamaremos às novas autoridades.
Artemio Fúria tirou do braço a Bamba e lhe indicou ao ouvido:
—Vai primeiro ao de dona Clara e diz a Eddie que já está feito, que a revolução
triunfou. De ai, ligeiro lhe vai procurar isso ao doutor Moreno às casas e o diz que
eu digo que se venha para casa de Azcucnaga. Que é membro da nova Junta de
Governo.
—Repete os nomes dos membros da nova Junta—lhe pediu Cristiana a seu irmão
Aarón.
Encontravam-se no interior do cabriolé, caminho à quinta do Nicolás Rodríguez
Penha, onde os patriotas celebravam o triunfo com uma festa. No assento, junto a

214
Aarón, achava-se Rafaela, que permanecia em silêncio.
—Como presidente e comandante geral de armas se escolheu ao coronel Cornelio
Isso Saavedra parecia agradar a Aarón pelo acento que empregava para
pronunciar o nome do militar—. Os vocais som: Juan José Castelli, Manuel
Bclgrano, Miguel da Azcucnaga, o presbítero Manuel Albcrti, Domingo Mathcu e
Juan Larrea.
—Acaso Larrea e Matheu não são europeus? —interrompeu-o Rafaela—. Acreditei
que se trataria de um governo conformado só por filhos da terra.
—São europeus, mas fiéis à causa —explicou Aarón, e prosseguiu—: Juan José
Passo e o doutor Moreno são os secretários. Aí tem a todos os membros, Cristiana.
—OH, Aarón! —disse a moça—. Que alegria que você seja parte deste grupo de
patriotas! Graças a sua influência, tio Rómulo não passará penúrias por sua
condição de peninsular.
—São tempos duros para os espanhóis —profetizou Aarón, e apertou a mão de
Rafaela antes de manifestar—: Mas nosso querido tio não tem do que preocupar-
se. Comigo formando parte do governo, nenhum de nós corre perigo.
—Formará parte do governo? —surpreendeu-se Rafaela.
—Sim, querida —respondeu, e lhe beijou a mão—. Esta tarde, no meio do
folguedo pelo triunfo, meu amigo Grigera, o prefeito de Colinas da Zamora, e
Joaquín Campana, o secretário do coronel Saavedra, apartaram-me para me dizer
que proporiam meu nome para o cargo de intendente de Polícia.
Descenderam do carro e se encaminharam para o ingresso da casa dos Rodríguez
Penha.
—Não tenho grande entusiasmo por participar deste sarau —admitiu Cristiana.
—Esta sim que é uma novidade —apontou Aarón—. Você, a amante das
reuniões.
—Isabel de Pueyrredón diz que será um festejo no qual as pessoas decentes
conversarão com o mais baixo. Se até assistirão o gaúcho Fúria e seus homens! —
Cristiana estudou pela extremidade do olho o semblante de Rafaela, que se
manteve sereno.
Artemio Fúria a descobriu quando ingressava do braço de seu primo Aarón
Romano. Viu-o inclinar-se e lhe arrancar um sorriso com um comentário
sussurrado ao ouvido. Ela levantou o rosto, e seu sorriso se congelou primeiro
para esfumar-se imediatamente ao deter o olhar nele. Um brilho de raiva iluminou
seus olhos verdes, realçados graças ao magnífico gorgorão azul turquesa da saia e
do apertado corpete, adornado com flores bordadas em fios de ouro e botões de
lápis azul. Penteou-se de um modo peculiar que sentava a seu rosto oval, em duas
bandas recolhidas com pentes de prender cabelos de madrepérola, que se fundiam
à altura da nuca em uma trança arremesso sobre o ombro, que lhe chegava ao
ventre.
A visão de Rafaela o aturdiu, e não apartou o olhar dela, seus olhos a
percorreram da cabeça aos pés, e seguiu contemplando a daquela forma
descomedida embora ela o ignorasse enquanto se mesclava entre os convidados
para conversar, sorrir e dançar com a frivolidade de sua prima Cristiana. Os que a
solicitavam para um minué ou uma contradança em alguma instância da peça
demoravam o olhar em seu profundo decote. Alguns a farejavam nos giros do baile
como ele tinha feito em La Larga. Com o transcorrer das horas, notou que o rosto
de Rafaela se coloriu, lhe outorgando uma tonalidade insalubre, já que
contrastava com o contorno dos olhos e dos lábios, de uma intensa palidez. Estava

215
exigindo-se muito; depois de tudo, acabava de sobreviver a uma pneumonia, ainda
convalescia. Não a tinha visto provar nada, só sorver um pouco de vinho quente,
quando não estava habituada ao vinho. O salão, cheio de correntes fria, resultava
um péssimo local para ela, em especial, por esse vestido tão escandaloso. Albana
se plantou frente a ele quando se dispunha a tirá-la ao rastro.
—Aonde crê que vai? —repreendeu-o.
—Sai de meu caminho, Albana.
—Não te permitirei fazer o ridículo.
—Peñi —se somou Manque—, por favor.
—Deixe-me só —lhes exigiu, e se moveu em direção a Rafaela, — Albana o deteve
pelo antebraço—. Solte-me!
—Artemio, ela não te pertence! Rafaela Palafox e Binda está prometida em
matrimônio a seu primo!
Fúria recebeu a declaração como um coice no estômago. Soltou o fôlego uns
segundos depois com a força de uma maldição.
—Sinto-o —sussurrou a atriz—, acabo de saber.
Fúria insultou entre dentes, deu meia volta e saiu ao pátio. Agradeceu o impacto
que significou o frio da noite em seu rosto febril. Apoiou os antebraços sobre a
parede e descansou a testa sobre o dorso de suas mãos. Por que Paolino não lhe
tinha comunicado essa informação tão importante? A família o teria oculto até
esse dia? Ora! Que se casasse com esse covarde. Melhor, desse modo facilitava seu
plano de vingança; que se entregasse a esse imbecil, que se entregasse somente.
Rafaela dançava, ria e conversava, e todo o tempo se perguntava: "Alguma vez
pensará em mim como eu penso nele a cada minuto, a cada segundo do dia?".
Tinha avistado Fúria logo que pôs pé no salão. As moças decentes revoavam em
torno dele como se fosse um herói, lhe arrancando sorrisos e comentários. Depois
de tudo, Cristiana estava certa: por esses dias, as raças sociais tinham
desaparecido e a sociedade de Buenos Aires se dividia em patriotas e
espanholistas.
Fantasiava com que Fúria estivesse observando-a, desejando-a, zelando-a,
espreitando-a, por isso paquerava com descaramento, dançava embora não
conhecesse bem os passos do Minueto de Boccherini, conversava embora não se
sentisse parte desse grupo, sorria e ria embora levasse a tristeza como um peso no
coração. Sua diversão terminou por decompô-la. Sentiu-se enjoada. Um sufoco lhe
impedia de tomar grandes inspirações. Caminhou sujeitando-se dos respaldos das
cadeiras e das paredes até achar uma porta que a conduziu ao exterior. O ar
gelado lhe golpeou o peito e lhe arrancou um gemido.
Fúria tirou as mãos da testa e girou a cabeça ao escutar o chiado das
dobradiças. Alguém se escapulia para o pátio. Em seguida soube que se tratava
dela. Viu-a recostar-se contra a parede, levantar o queixo e inspirar com
dificuldade. A teria surrado por expor-se em uma noite gélida sem xale.
Ao notar que a opressão no peito cedia, Rafaela se tranqüilizou e pouco a pouco
levantou as pálpebras. Gritou ao descobrir Fúria diante dela. O gaúcho lhe
tampou a boca com uma mão; com a outra, sujeitou-a pela cintura para arrastá-la
ao interior da casa. Seus sapatos de tafetá roçavam o piso. Terminaram em uma
habitação escura, afastada do bulício do salão. Rafaela escutou o estalo da trava
ao fechar a porta e, continuando, o de um isqueiro, com o qual Fúria acendeu
uma lamparina que achou em uma cômoda. Pasmada, carente de fala, Rafaela o
viu tirar o poncho. Reagiu quando entendeu que se propunha cobri-la com o

216
objeto de casaco.
—Como se atreve? Deixe-me passar.
Na penumbra da habitação, Rafaela se estremeceu ante o olhar do gaúcho, que
havia se tornado avermelhado e líquido por efeito da chama da vela. Percebeu que
ele estava cheio de uma energia violenta, e lhe teve medo. Um calafrio lhe sulcou o
corpo e tentou dar-se calor fechando os braços sobre seu peito.
—Não me toque! —indignou-se ante o novo intento de Fúria por cobri-la.
—Cale-se! Você está congelada por sua própria loucura. Este esfriamento poderia
matá-la.
—E a você o que lhe importa!
—Importa-me! —exclamou, ao tempo que a envolvia com o poncho e a pegava a
seu corpo—. Muito —sussurrou, e lhe umedeceu os lábios com seu fôlego—. Muito
—o escutou repetir.
Rafaela tomou consciência do frio da noite ao ver-se envolta pelo calor que
irradiava Fúria. Seu corpo se estremeceu e de novo se arrepiou a pele. Com um
gemido, jogou a cabeça para trás e se relaxou em seus braços. Quase
imediatamente sentiu os lábios dele sobre os seus, e a delicadeza com que a
beijava —apenas uns roce— a aplacaram como por cura. A boca de Fúria,
entretanto, tornou-se exigente, e seu beijo, atrevido. Como se a sacudissem de um
sonho, as pálpebras de Rafaela se dispararam e ficou ereta no abraço do gaúcho.
Uma respiração superficial, que mais a afogava que oxigená-la, lhe impedia de
insultá-lo. Sujeitou-lhe o rosto com as mãos e o apartou uns centímetros.
Olharam-se com intensidade. Ele parecia molesto pela interrupção e ofegava como
se tivesse permanecido muito momento sob a água.
—Você é um homem sem princípios.
—E você, uma desfrutável por andar por ai com estes objetos.
—Uma desfrutável, senhor, fui o dia em que entreguei a um ingrato como você.
Contemplou-a com inescrutável seriedade até que suas comissuras, as que
encontrava tão varonis, começaram a elevar-se para formar um sorriso que lhe
provocou*um afrouxamento nas pernas.
—Enviei-lhe um presente e você não quis aceitá-lo.
—Não aceito presentes de estranhos.
—Sou um estranho para você?
—A verdade é que não sei quem é você.
—A ver se com isto lhe refresco um pouco a memória.
Aprisionou-a contra a parede e abaixou o corpete do vestido. Os seios de Rafaela
saltaram fora e se derramaram sobre o azul turquesa do gorgorão; sua brancura
refulgiu. O gaúcho, que os observava com expressão faminta, os olhos como
pratos e os lábios entreabertos, não reparou no grito de Rafaela e lhe segurou os
pulsos com uma mão quando ela tratou de cobrir-se. A pesar do enfraquecimento
geral de seu corpo, encontrou seus seios excessivamente grandes, como inchados,
e os mamilos, eretos e duros. inclinou-se sobre eles.
—Não! Não o faça, maldito! Solte-me!
Antes que a língua de Fúria lhe tocasse a pele, Rafaela percebeu a calidez de seu
fôlego no mamilo. Isso bastou para excitá-la. O primeiro contato dos lábios do
gaúcho lhe arrancou um gemido comprido e afogado. Não tinha sabido quanto
necessitava a esse homem em seu corpo.
—Ah, minha Rafaela! Tão fria por fora, tão quente por dentro. Apesar de manter
os olhos fechados, Rafaela podia imaginar como a ponta da língua de Artemio lhe

217
desenhava circunferências na aréola e como, um instante depois, lambia-lhe o
mamilo. "Amanhã me arrependei disto. Agora não posso detê-lo." Tinha voltado
para a vida. Vibrava. Respirava. Abria-se a ele como uma flor ao sol.
—Quero fazer amor com você —o ouviu dizer sobre a pele de seu seio.
—Por quê? Por que me faz isto? Deixe ir. Devo voltar para a festa.
—Não o fará. Para que quer ir à festa? Para coquetear e mostrar a esses lobos o
que é meu?
—Sua? —disse, e o separou de um empurrão—. Não seja tolo —E acomodou os
seios dentro do vestido com modos impaciente.
—Você é minha, Rafaela.
—Já não me sinto sua, senhor Fúria. Senti-me sua mulher em La Larga e não
podia pensar em outras mãos para que percorressem meu corpo. Agora, não. Você
me abandonou como um covarde e me perdeu.
—Você é minha! Agora e sempre! Eu não me esqueci de suas palavras, Rafaela.
Você me disse que eu estava gravado a fogo em seu coração e que nada poderia
me apagar dali. Se recorda dessas palavras de você? Se recorda de que me disse
isso em nossa carreta? Se acordar de nossa carreta, Rafaela?
Fúria sempre dizia a verdade e ela se perguntou como seria não ter necessidade
de ocultar nem fingir. Ele não conhecia o medo nem amos nem princípios nem
prejuízos.
—Não, nunca me lembro! Deixe-me retornar à festa.
Artemio sujeitou o decote do vestido e, como se tivesse tratado de papel, rasgou-o
até a cintura. Com um sorriso inclinado, expressou:
—Agora pode voltar ao maldito sarau.
Sem lhe dar tempo a opor-se, tomou o poncho de vicunha do chão e a envolveu
nele. Conhecia a casa de cor, resultava claro pelo modo em que a conduzia para o
exterior evitando a zona principal. Ela brincava de correr a seu lado, sustentada
por seu braço, incapaz de rebelar-se; movia-se como em um sonho, embargada por
um sentido de irrealidade e confusão.
—Babila! —chamou Fúria, e o chofer desceu da boléia e correu para eles—. Vais
levar a sua ama para casa agora mesmo.
—E o amo Aarón e a ama Cristiana?
—Mais tarde volta por eles.
Fúria abriu a portinhola e, de um tranco, obrigou a Rafaela a subir. Apartou a
Babila e entregou dois dobrões de ouro enquanto lhe dava instruções em voz
baixa.
—Homem do demônio! O que há dito a Babila?
—Amanhã de noite ele a levará ande indiquei. Para conversar-mos. Você e eu.
—A última vez que falamos, senhor Fúria, você me fez chorar. Não permitirei que
isso ocorra de novo —Ante o sorriso sardônico do homem, Rafaela foi às nuvens—.
A verdade é que não temos nada de que falar! Jamais lhe perdoarei...!
—Babila! Em marcha!
O carro pôs-se a andar e Rafaela ficou com a palavra na boca.

218
Capítulo XVIII

A vingança é um prato que se come frio

A carruagem se afundou em um buraco e Rafaela se sacudiu dentro. O


movimento acentuou o mal-estar estomacal, conseqüência de uma noite acordada
e um péssimo dia, que tinha começado cedo, quando Aarón se apresentou em seu
dormitório e, fazendo caso omisso de que ela se encontrava de camisola,
repreendeu-a por ter abandonado a festa sem lhe avisar. Tratava-se da primeira
vez em que Aarón parecia zangado e apaixonado. Colocou um dedo sob o queixo e
lhe levantou o rosto.
—Em uns dias será minha mulher. Seu corpo e sua alma me pertencerão —Seus
olhos vagaram pelo decote aberto de Rafaela—. Nunca volte a atuar por sua conta.
O humor de Rómulo tampouco conhecia seu melhor momento. A notícia do
triunfo da causa crioula o tinha sumido na amargura, e nem sequer o animava
que seu sobrinho e futuro genro contasse entre os diletos do coronel Saavedra.
Sua sabida índole fatalista o levava a pressagiar toda classe de calamidades, entre
as quais o exílio e a confisco de seus bens resultavam as menos perniciosas.
O ânimo de Rafaela flutuava entre picos de êxtase e de depressão, sobre tudo
quando passava de reviver os momentos com Fúria na festa a ameaçar-se a não
ceder ao impulso de ir ao encontro dessa noite. Não sabia o que fazer, embora
soubesse o que desejava: voltar a vê-lo. Ao comentá-lo com Ñuque, esta lhe disse:
"Não faça o que quer nem o que deve; faz o que te convenha". Ao lhe perguntar o
que lhe convinha, a anciã lhe respondeu: "Convém-te aquilo que te faz feliz". Essa
resposta a levou a uma nova discussão: Fúria a fazia feliz? Apesar de que tinha
decidido que não, ali estava, na carruagem de seu pai, fugindo no meio da noite
para encontrar-se com o homem que amava, o pai de seu filho. Cada tanto, levava-
se o poncho de Fúria ao nariz e o cheirava.
Havia gasto uns reais extras fazer-se com o luxo de uma banheira em seu quarto.
Submerso na água quente, sorriu ao rememorar a careta de dona Clara, a
proprietária da pensão, quando lhe solicitou esse luxo. "Que patrício mais
estranho é você, Fúria!", proclamou, com seu pesado acento inglês. "Pensei que
todos os de sua casta eram bem sarnentos." O certo era que antes tinha
emprestado pouca atenção* ao asseio. Seus hábitos tinham mudado quando
Rafaela Palafox irrompeu em sua vida, desde que levava seus aromas impressos
nas fossas nasais, desde que enlouquecia com sua pele lisa e cheirosa, desde que
tinha saboreado suas zonas recônditas com gosto de fruta doce, desde que
percebia no fundo da garganta um gosto de hortelã.
Soltou o ar lentamente. Faltava pouco mais de uma hora para que Babila a
conduzisse até a pensão. Tinha enviado a três de seus homens, entre os que se
achava Calvú Manque, para que, de incógnito, escoltassem o cabriolé de Palafox.
O povo se encontrava exaltado e, não obstante ter acontecido a noite anterior e
esse dia festejando o triunfo da causa crioula, lançando foguetes, fogos de artifício

219
e globos aerostáticos e libando como em um bacanal, ainda persistiam nas ruas e
nas mercearias demonstrando uma resistência digna de um espartano.
Esse primeiro dia da Junta Provisória de Governo tinha sido intenso. Bamba
despertou muito cedo para lhe comunicar que o doutor Moreno lhe ordenava
comparecer no Forte. No pátio central da fortaleza, topou-se com seu amigo
Domingo French.
—O vice-rei e os auditores da Real Audiência juraram lealdade à Junta —lhe
informou—. Mas acreditam que é uma farsa. por agora, começamos a preparar a
quinhentos soldados que partirão a Córdoba para comunicar a notícia ao
governador e para ordenar a eleição de quão deputados formarão parte do
congresso que escolherá as autoridades definitivas.
—E Liniers? Não está em Córdoba, acaso? —perguntou Fúria.
—Em especial por ele enviamos as forças a Córdoba. Diz-se que esse francês
traidor e Cisneros mantêm comunicações secretas para nos perder.
Ante as portas do escritório do antigo vice-rei, um soldado da Infernal lhe
franqueou o passo com uma respeitosa inclinação. O amplo recinto bulia. A mais
dos nove membros da Junta, vários presbíteros, entre os que contava o padre
Ciríaco, militares e civis conversavam dispersos em grupos. Amanuenses e
secretários trabalhavam com diligencia nos bandos do novo governo.
—Filho! —saudou-o Ciríaco—. É este um momento sublime! —Poucas vezes
Artemio o tinha visto tão emocionado—. Estou orgulhoso de ti, meu filho. Todos
falam de sua valia e de sua lealdade. Sem seus homens, esta gesta não teria
chegado a bom porto. Isso declarou Domingo a viva voz, um momento atrás.
—O doutor Moreno meu mandou chamar —disse Fúria, para frear as adulações
do mercedário, não porque o incomodassem mas sim porque os julgava
exagerados.
—Sim, sim, Mariano quer falar contigo —Ciríaco se inclinou em atitude
intimista—. Conheço o Mariano desde que era pequeno. É um homem de um gênio
peculiar e um discernimento fora do comum. Já verá que ficará a esta Junta por
montera rapidamente —olhou para o setor onde se achava Saavedra—. Não sei
quanto passará antes que as coisas estalem entre Moreno e o coronel. São a água
e o azeite.
Fúria recordou a cerimônia do dia anterior na qual os cabildantes tinham
tomado juramento aos membros da Junta. O discurso que Saavedra pronunciou a
seguir com acento trêmulo tinha incomodado a vários patriotas. "Os povos fortes
são generosos. o de Buenos Aires demonstrou já que era o um e o outro quando
teve que pôr seu peito aos rifles e baionetas do inglês. Essas virtudes que então
mostraram ser de maior valor e de maior dever para os magistrados que
representam agora a um amado soberano que todos choramos no cativeiro,
rogando ao céu que o volte para seu trono." Ninguém queria recordar que dom
Fernando seguia sendo o dono de tudo quando, na verdade, tratava-se de uma
reverenda mentira. Artemio não compreendia por que seguiam com a farsa da
fidelidade a uma dinastia européia que os tinha abandonado a sua sorte anos
atrás. Julgava-o hipócrita e covarde e se envergonhava, embora coligisse que a
fraqueza de Saavedra tinha que ver com que seu coração era mais monárquico que
patriota.
Ao vê-lo com o padre Ciríaco, Moreno se aproximou de passo rápido.
—Fúria, obrigado por vir —o gaúcho se limitou a saudar com um movimento de
cabeça—. Antes que nada, urge lhe agradecer em nome desta Junta os serviços

220
que emprestou para proteger o bom nome de nosso soberano dom Fernando...
—Não o fiz em nome de dom Fernando, doutor, mas sim de meu povo —escutou
que Ciríaco pigarreava—. Eu sou parte do povo e só a ele devo. A dom Fernando
não o conheço e nunca hei recebeu nada dele.
Moreno o contemplou sem disfarces e em silêncio até que inclinou a cabeça em
um gesto de tácita aquiescência. Retomaram a conversação para falar de questões
menos filosóficas. Moreno surpreendeu a Fúria lhe oferecendo a prefeitura de
Morón, o mesmo cargo que ostentava Tomás de Grigera nas Colinas de Zamora e
pelo qual tinha acumulado autoridade e poder.
—Entendo que você é proprietário de umas terras em Morón.
—Assim é —admitiu Fúria—. Mas o de ser prefeito, doutor —agitou a cabeça—,
em verdade, não vai poder ser. Sou das vacas e dos cavalos, não dos assuntos de
governo. Igualmente, meus homens e eu ficamos ao serviço da Pátria, tal como
vossa graça nos ordenou.
Moreno lhe concedeu um de seus escassos sorrisos e lhe estendeu a mão na
atitude de quem sela um pacto. Artemio, que não tinha tirado dos ingleses o
costume de dar a mão, atrasou-se em aceitá-la.
—Você sabe onde vivo, Fúria. Eu gostaria que me visitasse de vez enquanto,
quando suas atividades o permitam. É no povo onde radica a força de todo
governo e você, meu amigo —Ciriaco levantou as sobrancelhas ante a expressão
"meu amigo"—, representa à parte mais digna e forte deste povo.
—Moreno —lhe sussurrou o pai Ciriaco uma vez que o secretário da Junta se
afastou—, teme-te e te respeita.
Artemio sacudiu os ombros e ensaiou um gesto ambíguo. Despediram-se. Ao
chegar à pensão de dona Clara, encontrou-se com a pequena sala lotada de
elegantes homens que falavam em inglês. Tratava-se dos comerciantes britânicos
que festejavam a formação da nova Junta com mais entusiasmo que os crioulos.
Roger Blackraven contava entre eles e, ao divisá-lo sob a soleira, aproximou-se
para saudá-lo. Para falar a verdade, inquietava-o o bom trato que lhe brindava o
nobre inglês, que não só o saudou com cortesia mas também o apresentou aos
comerciantes e ao capitão Charles Montagu Fabián, comandante ao mando da
frota inglesa apostada no Rio da Prata. Dado o apadrinhamento de Blackraven, os
comerciantes se mostraram interessados nas atividades de Fúria e, antes que
terminasse a tarde, tinha selado vários entendimentos para transportar suas
mercadorias ao interior. Duas de suas caravanas apostadas no Alto do Miserere já
contavam com trabalho para o resto do ano. Perto das oito, despediu-se dos
ingleses e partiu a sua peça para banhar-se e trocar-se. Rafaela chegaria ao redor
das dez.
Fez-o um pouco mais tarde. Bateu na porta, e Fúria se apressou a abrir. Dona
Clara a escoltava, embora a mulher não tivesse podido dizer de quem se tratava
pelo modo em que Rafaela se ocultou sob o xale confeccionado com um gênero
próprio das negras, jamais das senhoritas de bem. Fúria jogou chave à porta e
aguardou a que os passos da proprietária se afastassem para lhe falar.
—Agradeço-lhe que tenha vindo.
Rafaela girou sobre si para enfrentá-lo, e o xale caiu sobre suas costas com a
inércia do movimento.
—Só me demorarei um instante, senhor Fúria —a Rafaela a envaideceram a
segurança que evidenciou sua voz e o gesto entre doído e surpreso do gaúcho—.
Encontro-me aqui por duas razões: para lhe devolver seu poncho de vicunha, que

221
é um objeto caro e luxuoso, e para lhe pedir que não volte a me importunar. O que
aconteceu entre nós em La Larga foi um engano e ficou no passado —colocou o
poncho no respaldo de uma cadeira com estudada delicadeza—. Adeus, senhor
Fúria —ele se manteve diante da porta—. Por favor, me permita passar. Tudo
terminou.
Fúria se aproximou tanto que Rafaela deveu levantar o rosto para olhá-lo. Seus
olhos se tornaram escuros e, como de costume, mantinham-na encadeada. As
mãos dele se meteram sob a manta desceu por sua cintura em um movimento
lento e deliberado para lhe dar tempo a opor-se. Odiou-se por não apartá-lo nem
resisti-lo, por ser débil, por perder a vontade com um olhar e um roce. Baixou o
rosto e se mordeu o lábio para frear a emoção e as lágrimas. A causa do esforço,
tremeram-lhe os ombros e, segundos depois, seu corpo se sacudia em um pranto
sem sons.
Fúria sentiu um tombo no peito. A tristeza de Rafaela lhe enredou no pescoço e,
como uma mão, oprimiu-lhe a garganta, lhe provocando ardência e umidade nos
olhos. "O que estou fazendo?", perguntou-se, horrorizado, enquanto a abraçava e a
apertava. Queria deter essa loucura, voltar o tempo atrás, esquecer o que sabia,
apagar sua promessa de vingança. Queria-a, a sua adorada Rafaela das flores.
Obstinada à cintura de Artemio, Rafaela não se continha, chorava abertamente e
empapava de saliva e lágrimas a camisa do homem.
—Por que rompeu meu coração? —perguntou-lhe entre espasmos—. Por que
rompeu o coração de Mimita? —esse nome o golpeou como uma navalhada—.
Mimita o ama mais que a ninguém. Você não deveria haver-se enfurecido com ela.
Não com ela. Meu pobre anjo.
Uma voz lhe sussurrou com tenacidade: Quis seu ipse sis memento, e, apesar da
intensa emoção que o dominava, a opressão na garganta foi cedendo e o controle,
retornando a seu corpo e a sua mente. Lembrar as cenas da noite de 5 de junho
de 1790, sempre funcionava para que as garras do ódio se cravassem em suas
vísceras. Escutou de novo os gritos de sua mãe, observou o olhar orgulhoso e
carregado de desprezo de seu pai e seguiu com a vista a camisola de Edwina antes
que o devorasse a escuridão da noite. Viu sangue e chamas, e o frio se apoderou
dele como um momento atrás o tinha feito a tristeza da filha de Rómulo Palafox e
Binda, A loucura devia continuar para terminar.
Não falou, não respondeu às perguntas nem deu explicações. Procurou os lábios
de Rafaela e a beijou de um modo selvagem, consciente de que a machucava.
Escutou-a queixar-se e a sentiu reanimar-se em seu abraço, mas não se deteve. O
sangue lhe rugia nos ouvidos com a violência do ódio. Sem apartar-se de Rafaela,
obrigando-a a caminhar para trás, conduziu-a à cama.
***
A nota de Albana Buquê indicava que se encontrariam ao redor das onze da noite
na porta traseira do teatro, ao finalizar a função. Rómulo consultou seu relógio. As
onze menos vinte. Levantou-se da poltrona que ocupava na sala de seu amigo
Martín de Álzaga e anunciou que partia. A espera pelo encontro com a formosa
atriz o deixava inquieto; queria ir-se. Além disso, estava cansado de ouvir as
lamentações de seus amigos peninsulares que vigiavam um negro horizonte para
os sarracenos, considerava que seu grande inimigo, Cornelio Saavedra, que tinha
desbaratado seus sonhos em 1 ° de janeiro de 1809, desde no dia anterior se erigia
em grande senhor do Rio da Prata. Amanhã se deteria pensar no futuro. Nesse
momento só podia pensar em uma noite de prazer entre as ancas dessa

222
maravilhosa fêmea. Montou seu cavalo e se encaminhou para a zona da Mercê,
onde se situava o teatro.
Emocionou-se ao encontrá-la esperando-o, bem embuçada, na porta por onde
ingressavam atores e empregados. Desembarcou de um salto e lhe beijou a mão.
—Aluguei uma estadia muito acolhedora em uma boa pensão —lhe informou
Albana—, onde poderemos conversar tranqüilos e beber um delicioso Bordeaux.
—Não iremos a sua casa, senhorita Buquê?
—OH, não. Ali mesmo habita a senhorita Bernarda de Lezica, e sua língua é tão
afiada e larga como a de uma serpente. Se nos visse chegar juntos (o qual é
provável posto que sempre está me espiando), amanhã a cidade inteira saberia.
Sua mercê não quereria isso, verdade?
—Não, claro que não. Sua reputação é de capital importância para mim.
—E a de sua mercê, para mim. Especialmente agora que sua mercê tramita a
Carta Executória de Nobreza —Albana notou que a face do homem se acendia—.
Vamos, senhor Palafox?
—Vamos, senhorita Buquê.
***
O senhor Fúria estava lhe fazendo o amor. Parecia-lhe um sonho. Tanto tinha
desejado encontrar-se sob o domínio de seu corpo e sentir sua carne afundar-se
na dela que quase não desfrutava do momento devido à pasmosa incredulidade
em que se achava. Por outra parte, notava-o estranho. Procurava seus lábios, e
estava quase segura de que ele evitava beijá-la. Com a cabeça, caída para frente, o
queixo sobre o peito e os braços estendidos, penetrava-a com uma violência que
não tinha empregado em seus encontros mais febris em La Larga. Temeu que
danificasse ao menino. A ponto de detê-lo e lhe confessar que estava grávida,
escutou umas vozes no corredor, uma risada feminina depois. Fúria parecia não
precaver-se de nada e se concentrava em impulsionar-se dentro dela. Pensou que
não devia preocupar-se, esse local era uma pensão e muitas pessoas habitavam
nele. Entrou em pânico ao escutar que introduziam uma chave na porta e a faziam
girar.
—Senhor Fúria, não permita que entrem!
Artemio se deteve e, naquela posição, o corpo tenso, as mãos afundadas no
travesseiro e os braços estendidos, girou a cabeça, sobre o ombro e sorriu ao casal
que se achava sob a soleira. Rafaela proferiu uma exclamação e escondeu o rosto
no peito de seu amante, à espera de que os intrusos partissem.
—Artemio —disse Albana—. Desculpa a interrupção.
Fúria saltou da cama com a graça de um felino e deixou a Rafaela nua à vista de
seu pai. A moça soltou um alarido e agitou os braços para cobrir-se com o lençol.
—Senhor Palafox e Binda, passe, por favor —o convidou Artemio—. Estava
esperando-o.
—Senhor Fúria! Pelo amor de Deus!
Fez caso omisso à súplica de Rafaela, incapaz de encontrar seu olhar nessa
situação. Enquanto se cobria com os calções, escutou que Rafaela saía da cama a
tropicões e se entrincheirava em um rincão. A respiração agitada e chorosa da
moça acentuava a tensão, a violência e o silêncio.
Palafox avançou e se deteve um instante depois. A cor abandonava seu rosto até
tornar o de uma cor cinzenta. Fúria pensou que se desvaneceria. O homem,
entretanto, manteve-se de pé, com a vista fixa em Rafaela, que sujeitava o lençol
contra seu corpo e chorava com pouca força, logo que pareciam suspiros curtos.

223
—Minha filha, o que faz aqui? —a voz de seu pai lhe resultou desconhecida, e a
angústia que se filtrou em sua pergunta a apunhalou.
—Sua filha e eu somos amantes, senhor Palafox.
—Cale-se! —ordenou-lhe Rafaela, sem levantar a vista.
Não a perturbou que houvesse dito que eram amantes a não ser o tom de
brincadeira e desprezo que tinha empregado, como se tomasse a menos o amor
que lhe professava. Queria fechar os olhos e simular que aquilo não estava
acontecendo. A confusão e a dor a tinham despojado de sentido comum,
discernimento e prudência, e não sabia o que fazer. Não se atrevia a separar o
queixo do peito, aterrava-a a idéia de contemplar outra vez a imagem lastimosa de
seu pai ou a macabra de Fúria, em especial a de Fúria, a quem as mechas
obscurecidas pelo suor e aderidos à frente, a dentadura que destacava em uma
careta diabólica e os olhos que resplandeciam com a frieza do gelo, investiam-no
de um aspecto desumano. Ali de pé, com as mãos sobre a cintura, mostrando seu
corpo semidesnudo e sua ereção como se de um troféu se tratasse, Artemio Fúria
se converteu em um estranho para ela.
Rómulo se encaminhou para sua filha, que se levou o braço à cabeça para
proteger do golpe. Seu pai não tinha intenções de golpeá-la. Tirou-se a
sobrecasaca e o estendeu.
—Ponha-o sobre os ombros e saiamos daqui.
Artemio Fúria freou Palafox sujeitando-o pelo ombro, devorou-lhe o casaco e o
jogou no chão. Empurrou-o até interpor-se entre a Rafaela e ele.
—Não se atreva a dar ordens. Você e sua filha farão o que eu diga. Albana, tira a
daqui.
—Que sua rameira não ouse me tocar! E você menos, senhor! —advertiu-lhe,
quando Artemio, com um vaio de impaciência, tentou tirá-la do rincão onde se
defendia.
Com a dignidade que conseguiu reunir, sem olhar a seu pai, até tratando de
esquecer que ele testemunhava sua pior humilhação, ajustou-se o lençol e
caminhou para a porta, lentamente pois lhe tremiam as panturrilhas. Aonde iria e
o que faria logo depois de cruzar a soleira, não tinha idéia. Só sabia que devia
fugir desse local.
—Albana, recolhe sua roupa e acompanha à primeira porta da direita.
As mulheres saíram ao corredor, e Artemio Fúria fechou a porta com chave.
Recolheu a camisa do chão e a pôs.
—Desafiaria-o a duelo por esta afronta se você fosse um cavalheiro —declarou
Rómulo, e, no tremor de sua voz, evidenciou-se a indignação que lhe tinha
apagado o gesto pasmoso e voltado as bochechas como amadurecidas.
Fúria riu enquanto servia uma bebida ambarina em dois jarros de latão.
—Palafox, você não desafiaria a duelo assim eu fosse o duque de Alvorada. E não
o faria porque é você muito pouco destro com qualquer tipo de arma, a mais de
um covarde —lhe ofereceu o jarro, que Palafox não tomou. Acabava de dar-se
conta de que Fúria se dirigia a ele em perfeito castelhano, com um leve rastro do
acento campestre.
—Quem diabo é você? —atinou a perguntar. De repente, já não parecia o gaúcho
inculto de La Larga, mas bem alguém capitalista e temível.
—Será melhor que tome assento e bebê. É um excelente conhaque, dos que
contrabandeia seu louvável amigo de você, Martín de Álzaga —Ante a
inobservância da sugestão, Artemio gritou—: Sente-se! —e acompanhou a ordem

224
com um empurrão.
Palafox caiu em uma cadeira e aferrou o jarro, vertendo algo do conteúdo dado o
tremelico de sua mão.
—Beba —Palafox assim o fez.
—Quem é você? Por que nos fez esta armadilha a minha filha e a mim? Porque
imagino que isto é uma armadilha, verdade? O que é o que deseja? Que me
desculpe por meu comportamento ruim em La Larga? Por despedir de sua gente
sem lhe pagar?
Fúria o observou por sobre o fio do jarro, estudando as feições desse homem,
que, vinte anos atrás, tinha profanado sua casa à beira do rio Ctalamochita e
colaborado na destruição de sua família. Observou-o com fixidez, sem agitar as
pálpebras, enquanto a bebida se deslizava por sua garganta e lhe esquentava o
peito. Quantas vezes tinha desejado o ter em frente e em atitude vencida? A
situação se tornava irreal, inverossímil. Farejava o medo de Palafox e a inquietação
que segundo a segundo ganhava seu ânimo. Tinha visto como seus olhos se
dirigiam para o facão que descansava em uma mesa, esses olhos verdes, grandes e
ligeiramente aguçados, tão similares aos de Rafaela.
—Pergunta-me que desejo. Varias coisas. Vingança, a primeira. Em parte, esta
foi saciada porque deveu que ser um duro e desagradável golpe ver sua filha
encamada com um gaúcho. Saiba que foi minha de todas as formas possíveis em
que um homem pode tomar a uma mulher —ensaiou um sorriso, mas bem uma
careta fria, como uma máscara sinistra, antes de voltar a falar—: Seu sofrimento,
sua decepção e sua repugnância, Palafox, são glórias para mim. A doce Rafaela, a
luz de seus olhos, rebaixando-se com um gaúcho sujo e grosseiro.
—Você não é um gaúcho.
—Ah, mas o sou, Palafox! Sou-o, de pés a cabeça.
—Quem é você? Exijo saber!
Fúria riu pelo baixo e se sacudiu de ombros.
—Exige saber? Enfim, agradá-lo-ei. Chamam-me Artemio Fúria quando em
realidade eu sou Sebastian de Lacy, filho de Horatio de Lacy, a quem você
ajudou a assassinar uma noite de inverno de 1790.
—Deus misericordioso! —Palafox saltou da cadeira. A palidez que voltou a
ganhar suas feições revelou que não tinha esquecido aquelas circunstâncias. O
terror que transbordava seus olhos verdes afetou Artemio, que girou sobre si para
ocultar as emoções. Estava tão sobressaltado como sua vítima. Era a primeira vez
em vinte anos que pronunciava seu nome em voz alta. Compartilhar a memória
macabra daquela noite com alguém que a tinha vivido resultava uma experiência
turbadora, fascinante, aterradora.
Como continuar? O que dizer? Fúria encheu seu copo e fez fundo branco. Que a
bebida o aturdisse para não sentir, sobre tudo para não sentir compaixão por
Rómulo Palafox, que se tinha deixado cair na cadeira e, curvado, sujeitava-se o
rosto. Parecia uma ave ferida e assustada. Sim, que a bebida o aturdisse para que
essa voz cessasse de repetir: "É o pai de Rafaela. É o pai de Rafaela".
—O que quer de mim? —suplicou Palafox.
—Arruiná-lo.
—É o justo. Mas imploro piedade por minha filha. Ela é inocente. Ela não é
culpada de nada.
Fúria apertou os olhos e fechou os punhos em torno do copo para afogar o
tremor que lhe subia pelas extremidades. Ao levantar as pálpebras, topou-se com

225
o rosto brilhante de lágrimas de Palafox e um olhar que suplicava a gritos.
Pigarreou e voltou a servir uma medida de conhaque.
—A reputação de sua filha está em minhas mãos. De você dependerá sua ruína
ou sua salvação.
—O que tenho que fazer? Diga-me que deseja!
—Quero saber por que.
Pergunta-a surpreendeu ao Palafox e precisou de uns segundos para ordenar
seus pensamentos.
—Horatio de Lacy constituía o tipo de vítima a que meu sócio chamava "fácil".
Era estrangeiro, estava sozinho nestas terras e desconhecia os conluios e a
corrupção do governo do Vice Reinado. Como supusemos, o título de propriedade
da estadia que seu pai tinha adquirido à beira do Terceiro rio não se achava
aperfeiçoado, adoecia de vários vícios. Para isso precisava do meu sócio, para a
questão legal. Ele se ocupava de jogar os das terras e de apropriar-se de suas
casas, de suas terras e de seus animais. Dava-me uma parte do que obtinha com
a venda.
—Tinham-no feito em outras oportunidades?
Rómulo levantou a vista. Até esse momento, não tinha reparado na nota escura e
cavernosa da voz desse homem. Limitou-se a assentir.
—Fomos jovens, ambiciosos e imorais —admitiu—. Entretanto, no caso de seu
pai, aconteceu algo imprevisível. Meu sócio enlouqueceu por sua irmã. Eu não
soube até depois. Essa noite, meu sócio se apresentou na casa de seu pai como
um lobo com pele de cordeiro. Já tínhamos visitado a propriedade em duas
ocasiões, e seu pai tinha começado a suspeitar de nossas perguntas e intenções.
Horatio de Lacy não era como as vítimas anteriores a não ser um homem culto e
muito preparado. Tinha consultado a um notário em Córdoba e estava
solucionando os vícios formais do título de propriedade. Essa noite —retomou
Palafox—, meu sócio lhe ofereceu corrigir ditos vícios sem demoras nem
complicações e sem custo em troca de que lhe concedesse a mão de sua filha. Foi
assim soube a respeito das verdadeiras intenções de... de meu sócio. É obvio, seu
pai e sua mãe se negaram de maneira terminante. O que seguiu aconteceu de
modo rápido e horrendo. Sua irmã apareceu na sala conduzida por esse demônio
de Antenor Ávila e pude ver a cobiça nos olhos de meu sócio. Desejava-a como
nunca tinha desejado a uma mulher. Parecia um demente. Em realidade, acredito
que o era —acrescentou, em um sussurro.
As imagens que por anos Palafox tinha tentado enterrar no esquecimento
emergiram à superfície. Artemio o viu contorsionar o rosto em uma careta de
sofrimento.
—Está recordando, verdade? Está recordando os gritos de minha irmã, o
desespero de meu pai, o gole que saltou de seu pescoço quando seu sócio o
degolou. Ou possivelmente está pensando na mancha vermelha que se pulverizou
na blusa branca de minha mãe quando ele a apunhalou ? No som que produziu a
faca ao afundar-se em seu ventre? Ah, esse som! É difícil de descrever, também de
esquecer.
—Basta, por piedade —choramingou Rómulo, cobrindo-os ouvidos, sacudindo a
cabeça.
—Não deixarei de mencionar quando ateou fogo a minha casa, com meus pais
dentro.
Rómulo caiu de joelhos e tocou o chão com a testa. Artemio se ergueu diante dele

226
e testemunhou seu desmoronamento desde seus seis pés e três polegadas.
—Perdão! Perdoe-me! Por piedade!
—Jamais.
—Por anos levei esta culpa como uma pesada carga. OH, Meu Deus, sabia que
algum dia voltaria para me atormentar. Mil vezes pensei naquele menino sozinho...
—Levante-se! Digo-lhe que se levante! —Artemio o insistiu desferiu um ligeiro
chute nas costelas. A situação começava a enojá-lo. Não estava obtendo o prazer e
a satisfação que tinha acreditado. Desejava que esse verme desaparecesse.
—Diga-me quem é o assassino de meus pais e onde posso achá-lo.
—Eu... Eu não sei.
Rómulo proferiu um alarido de terror quando Artemio Fúria, com um rugido de
besta, equilibrou-se sobre ele, aferrou-o pela jaqueta e o levantou no ar.
Escutaram-se gritos no corredor e golpes frenéticos na porta.
—Pai! Pai! —chiou Rafaela—. Maldito, não lhe faça mal!
—Albana! Leve-lhe a daqui!
—Minha filha! Rafaela! Estou bem, tesouro! Estou bem! Vá, vá tranqüila.
Ao voltar a calma, Fúria arrastou Palafox, propulsou-o contra a parede e o
manteve aprisionado pelo peito.
—Palafox —disse, lhe mostrando os dentes—, não faz falta que lhe explique que
está em minhas mãos. Posso destruí-los, a você, a sua filha e a sua família, de
várias maneiras. Se lhe perguntar quem era seu sócio e onde se encontra não me
dará uma resposta negativa mas sim assentirá e me dirá isso.
—Seriamente que não sei.
—Pior para você pois me dedicarei a arruiná-lo antes de lhe abrir o pescoço de
lado a lado como fizeram com meu pai. Sabe que sou capaz do um e do outro, de
matá-lo e de arruiná-lo, posto que, quem é Rómulo Palafox? Um sarraceno, um
peninsular suspeitado de conjuração. Saiba que a nova Junta o manterá vigiado,
dia e noite. Violarão sua correspondência, confiscar-lhe-ão os bens, rechaçarão
sua Carta Executória de Nobreza e não lhe devolverão um cuartillo do que lhe
tiraram o ano passado.
—Deus bendito —se horrorizou Palafox. Esse gaúcho sabia dele mais que
ninguém.
—Agora bem. Se colaborar com o gaúcho Fúria, quem se ganhou o favor dos
membros da nova Junta, sua vida no Rio da Prata da Revolução não se converterá
no inferno que, de outro modo, não demoraria para cair sobre você e os seus.
Saiba que eu me faria cargo disso, de que lhe caísse um inferno, quero dizer.
—Seu nome é Martín Avendaño. Era militar, coronel —acrescentou—, na época
do assassinato de seus pais. Pouco depois, deixou a tropa. E nossos caminhos se
separaram. Eu obtive uma nomeação...
—Onde vive?
—Não sei com exatidão. Faz anos que.. —em um abrir e fechar de olhos, Fúria se
fez da faca gigante e apoiou a folha no pomo de adão de Palafox—. Posso averiguá-
lo! —vociferou este—. Posso averiguá-lo. Farei. Juro-o.
—Minha irmã —pronunciou, com ferocidade—. O que sabe dela?
—Sei que a conservou. A fez sua mulher —Rómulo soltou um gemido quando o
facão lhe desenhou um corte superficial.
—Sua mulher —repetiu Fúria, quase sem fôlego, e afrouxou a pressão da faca.
—Ao encontrá-lo a ele, encontrará a ela, se ainda viver.
Os braços de Artemio caíram aos flancos de seu corpo; a ponta da faca quase

227
roçava o chão. Rómulo o seguiu com a vista. Em que pese a que parecia abatido,
não se atrevia a mover-se. Ainda o assombrava a facilidade com que o tinha
levantado no ar, como se fora um menino, e a rapidez com que se deslocava.
—Eu vou te ajudar, Fúria —se deteve, duvidou; não sabia se chamá-lo "senhor
de Lacy"—. Eu vou te ajudar —insistiu, pois Artemio parecia não escutar—. Mas
você deve me prometer que não me denunciará pelo ocorrido naquela infame noite
de 90 —o silêncio e o desânimo de Fúria o fortaleceram—. A mais, você não conta
com nenhuma prova para me culpar. Trata-se das lembranças de um menino...
;Ah, Por Deus, piedade!
Em um giro fulminante, Artemio tinha apoiado o facão no queixo de Rómulo.
—Silêncio, maldição! —obrigou-o a retornar contra a parede, onde o reteve ponta
de faca—. De novo tenho que lhe explicar que você e sua família se encontram em
minhas mãos? Meu senhor, não está em posição de esgrimir uma palavra em sua
defesa. Pergunto-me o que diriam os integrantes da Junta se eu lhes relatasse os
malfadados sucessos daquela noite de 90, quando você, jovem, ambicioso e
imoral, foi cúmplice do mais perverso dos crimes. Alguns, que o têm por um
maturrango traidor, não duvidariam em encontrar essas provas que você se
empenha em dizer que não existem. Simplesmente, apareceriam, por más artes,
isso é seguro —trocou a inflexão zombadora para adicionar—: Não me provoque,
Palafox. Se você sair com vida esta noite é porque me resulta útil. Em caso
contrário, já estaria jantando com Satanás.
—Faça de mim o que queira. Vive Deus, mereço seu ódio e sua vingança. Mas
Rafaela, minha pequena Rafaela.. —quebrou a voz—. A ela não a prejudique. Ela é
inocente. Não lhe faça mal. Não a arraste em minha ruína.
—Vá-se, Palafox! Já não suporto sua presença. Parta! Leve sua odiosa pessoa
longe de mim! Se chegar a trair acautelando a seu sócio, pagará caro. Vivi por
anos entre índios infiéis e conheço métodos de tortura que você nem sequer
poderia imaginar.
—Juro-o, não o trairei!
—Vá-se e cumpra sua promessa, que logo saberá de mim. Quando isso ocorra,
quererei saber onde se encontra seu sócio, e juro pelo mais sagrado que não
desdobrarei a paciência e a benevolência com que o tratei esta noite —sacudiu a
mão e fez um gesto de desprezo para lhe indicar que saísse do quarto. Viu-o
inclinar-se para recolher o casaco. Antes que Palafox abrisse a porta, acautelou-
o—: de hoje em diante, não volte a caminhar com ligeireza pelas ruas, nem sequer
pelas habitações de sua casa, posto que sempre haverá uma sombra atrás de você,
um fôlego arquejante em sua nuca, espreitando-o, espiando-o. Não o esqueça.
Você já não é um homem livre a não ser um escravo de minha propriedade.

228
Capítulo XIX

Ao pé do altar

As horas transcorriam com lentidão. Rafaela adoecia em seu dormitório, às vezes


arremessava na cama, outras no divã, em ocasiões sentada frente a penteadeira,
abstraída no reflexo de sua própria imagem. Tinha pronunciado poucas palavras
da noite em que seu pai a surpreendeu com o Artemio Fúria; de fato, não tinha
falado durante a viagem de volta. manteve-se calada em um extremo, incrédula e
pasmada ante a atitude de Rómulo, quem não parecia zangado, mas bem triste e
afligido.
Por muito que repassasse os acontecimentos dessa noite, Rafaela não acertava
com a verdade. Seu pai não tinha querido vê-la nem pensar com ela. O passava
em sua sala, a qual só abandonava para ir dormir; não compartilhava as comidas
e só admitia a presença de Ñuque. Dada a atitude solitária de Rómulo,
surpreendeu-a inteirar-se de que León Pruna, melhor dizendo, Juvenal Romano,
achava-se reunido com ele. Ela tampouco desejava ver ninguém, exceto à anciã.
Por compaixão, admitia Creóla que uma vez por dia lhe levava Mimita. Não visitava
o jardim nem o laboratório; os pedidos da senhorita Bernarda se acumulavam e de
nada serviam as notas se desesperadas que lhe enviava sua amiga Corina
Bonmer. Clotilde tinha solicitado vê-la para discutir os últimos detalhes do
enxoval, ao que Rafaela se negou. Finalmente, teve que admitir a Aarón por temor
a que jogasse a porta abaixo. O rosto de angústia de seu primo a encheu de culpas
e apreensões. abraçou-se a ele e chorou sobre seu ombro.
—Está assustada. É normal. Um passo tão solene e definitivo assusta a
qualquer.
—Você não luz para nada assustado.
—O flamejante intendente de Polícia assustado? Que classe de exemplo daria?
A fez rir entre lágrimas e, como recompensa, a beijou. Tratou-se de um beijo
amargo porque, embora fosse de fechar suas memórias, teve saudades a
ferocidade dos lábios de Fúria.
As perguntas, que giravam em sua mente como um torvelinho, esgotavam-na,
possivelmente por essa razão permanecia abúlica, ou porque não tinha vontades
de viver com o coração mortalmente ferido; a pena se voltava difícil de suportar.
Com que fim o senhor Fúria e a senhorita Buquê lhes tinham tendido essa
cilada? O que tinha ocorrido entre o gaúcho e seu pai? Este lhe teria confessado
que ela estava grávida? Às vezes a falta de respostas, de bom dormir, as náuseas e
os vômitos lhe azedavam o humor, e mandava calar às escravas que riam ou
cantavam enquanto realizavam os trabalhos, ou ameaçava decapitar Poupée se
seguia ladrando. Passava da inquietação à apatia com uma rapidez que a levava a
pensar que estava voltando-se louca. De que maneira reuniria forças para
embainhar-se no vestido de noiva e concorrer com seu pai a São Francisco para
desposar Aarón em dois dias era a pergunta que mais a angustiava.
***

229
Rómulo não estava ébrio graças a Ñuque, que tinha tido o bom julgamento de
tirar da sala as garrafas com brandy e carlón. De outro modo, teria bebido sem
tino para sumir-se em um torpor que o afastasse dos problemas. Não desejava ver
ninguém, à exceção da velha a Índia, seu único laço com o mundo exterior. Em
seus braços tinha chorado depois do encontro com o Sebastian de Lacy. Ela
conhecia a história, por isso tinha resultado fácil lhe referir os fatos; inclusive a
velha a Índia lhe tinha formulado uma pergunta que ele, ainda emocionado, não
tinha tido em conta.
—Como sabe que é o verdadeiro filho de Horatio de Lacy e não um impostor?
Embora —se respondeu a própria Ñuque—, dá igual se for ou não o verdadeiro
Sebastian de Lacy. Por isso me há dito, conhece os detalhes daquela noite tão bem
como você. E isso bastaria para te prejudicar. Em especial neste momento, em que
seus inimigos se feito com o poder. Soube que o nome de Artemio Fúria se
memora com admiração nos quartéis, inclusive entre a oficialidade—Rómulo a
olhou aos olhos, perguntando-se como uma mulher anciã, de pouca educação e
escassos recursos, achava-se melhor informada que muitos de seus amigos.
—Nós contamos com Aarón —expressou, em um arranque de irritação—. De algo
servirá sua deserção. Ele é agora o intendente de Polícia desse grupo de vadios.
—Rómulo —pronunciou Ñuque—, com Aarón nunca se conta, e você sabe.
Faltando dois dias para o casamento de sua filha, mandou comparecer a seu
cunhado, Juvenal Romano, quem, junto com Martín Avendaño, tinha sido seu
grande amigo da juventude.
—É um homem cabal —lhe disse quando o teve em frente—, e quero que me
perdoe por meus desprezos do passado.
Juvenal levantou as sobrancelhas e em seguida soltou uma curta gargalhada.
—Sua declaração, querido Rómulo, serviu-me para descobrir que não perdi a
capacidade de assombro. E eu que me julgava um cínico de primeira espécie! —
Passado uns segundos, deduziu—: Vai me pedir um favor. Vai me pedir dinheiro.
—Sim, peço-te dois favores, mas não dinheiro. De igual modo, embora te custe
acreditá-lo, penso que é cabal e desejo seu perdão. Nunca devia ter permitido que
a cabeça oca de Clotilde te abandonasse. Devia havê-la retornado a Lima quando
se apareceu aqui com isso de que você foi um sujo —passou a mão pela testa com
impaciência e se abandonou na poltrona—. Sim que fui um tolo! E você o
suportaste tudo com dignidade e paciência elogiáveis. Peço-te perdão, Juvenal. Se
algo ficar do afeto que nos deixamos quando jovens, peço-te perdão.
Romano pigarreou, incômodo, e se sentou frente a seu cunhado.
—Esquece-o, Rómulo. Meu matrimônio é minha responsabilidade e de ninguém
mais. Vá direto ao ponto. Sabe que nunca fui afeto aos sentimentalismos. Peça-me
os dois favores. Verei o que posso fazer por ti.
—O primeiro é que me ajude a encontrar Martín —não o surpreendeu o gesto
desconcertado de Juvenal—. Preciso dar com ele mas sem que ele saiba que estou
buscando-o. Disse-me que, tempo atrás, estiveram em contato. Você é minha
única esperança de achá-lo.
—Não te garanto nada, Rómulo, mas tratarei de averiguar onde se encontra.
moveu-se muito da última vez em que o vi, em 90.
—Preciso saber onde se encontra o antes possível. Por favor!
—Está bem, está bem. O que ocorreu?
—Nada, nada. Só quero saber onde está. O segundo mais que um favor é te pedir
que faça um juramento solene —Juvenal assentiu—. Inteirei-me que sua

230
companhia de carros de aluguel está funcionando bem e de que é um homem
endinheirado, por isso sei que o que te pedirei não significará uma grande carrega
para ti. Deve me jurar pelo mais sagrado que, em caso de que algo me
acontecesse, você te faria cargo do bem-estar de minha filha Rafaela. Jura-o?
—Rómulo, toma por este surpresa pedido. Acaso ela não se converterá logo na
esposa de Aarón? Não corresponderia que lhe solicitasse este juramento a ele?
—Estou pedindo isso a ti, Juvenal, posto que é, junto com Ñuque, o único em
quem confio. Aarón é ambicioso e carece de princípios, essa é a verdade, para que
ocultá-la? Digno filho de seu pai! —adicionou, com um sorriso amargo—. Só se me
jurasse que, em caso de que algo me ocorresse, você te faria cargo de minha filha,
ficaria tranqüilo.
—Juro-o.
***
Peregrina entrou no quarto de sua ama e se aproximou da penteadeira onde
Cristiana se recolhia os cachos de cabelo. Cruzaram as olhadas no espelho.
—Averiguou-o?
—Sim, ama. Está na pensão de dona Clara, a da rua de Santo Cristo.
—Sei onde fica. Prepare-se, Peregrina, e diga a Babila que prepare o carro.
Sairemos neste instante. A quem te pergunte dirá que visitarei meu amiga
Marcelina Valdez e Inclán.
De fato, Babila estacionou o cabriolé frente à porta da casa do Valdez e Inclán,
na rua do Santiago, e de ali caminharam, bem embuçadas, até a de Santo Cristo.
A jogada que se encontrava a ponto de levar a cabo constituía a última
oportunidade para acabar com a influência de Rafaela sobre seu pai.
A noite de 25 de maio, na festa dos Rodríguez Penha, ocupou-se de que Fúria se
inteirasse do compromisso de sua prima com o Aarón, segura de que a reação não
demoraria para chegar. Passavam os dias, as bodas se aproximava e Fúria seguia
inativo, como se seriamente não lhe importasse com quem se desposava sua
antiga amante.
Cristiana precisava desfazer-se de Rafaela para recuperar Rómulo e anular a
preponderância que seu irmão estava obtendo na casa da rua Larga do triunfo da
partida dos patriotas; o muito descarado até lhe tinha insinuado que a casaria
com o filho mais velho de Tomás de Grigera, o que lhe proporcionaria uma aliança
invejável e a confinaria nas longínquas Colinas da Zamora. "Tio Rómulo me há
dito que está de acordo." Cristiana teria podido arrancar os olhos de "tio" Rómulo
de havê-lo ouvido pronunciar seu consentimento.
A mesma dona Clara lhes abriu a porta.
—Passem, gentil senhora —disse, e se fez a um lado—. De que modo posso lhes
ajudar?
—Preciso ver Artemio Fúria.
—Que pena com vossa mercê. Dom Artemio deu ordem de não ser incomodado.
Dona Clara raciocinou que, se em tantos dias não tinha desejado ver a senhorita
Buquê nem a seu amigo, o índio Manque, menos atenderia a uma desconhecida.
—Senhora —disse Cristiana, em tanto deslizava uns cuartillos no bolso do
avental da mulher—, asseguro-lhe que se você referir a Fúria que Cristiana, a
prima de Rafaela, está aqui para lhe dar informação de capital importância, ele me
receberá.
—Eu disse que estava para ninguém! —clamou Artemio quando chamaram a sua
porta.

231
—Sei, dom Fúria, mas aqui está a senhorita Cristiana, a prima da senhorita
Rafaela. Diz que tem informação de capital importância para vossa mercê.
O anúncio de dona Clara demorou para penetrar através do bafo de álcool que
embotava sua lucidez. Uma agitação se apoderou dele. Rafaela. O que lhe tinha
acontecido para que sua prima solicitasse vê-lo? Depois se lembrou de que eram
inimigas. Que diabo queria essa moça? Não tinha vontade de receber a ninguém.
Fazia dias que não abandonava o quarto, tampouco se banhava nem mudava de
roupa. Da noite em que enfrentou Rómulo Palafox, tinha permanecido encerrado,
afogando-se em álcool. O primeiro passo em seu plano de vingança tinha sabor do
diabo, nada da exultação antecipada. Nada de nada, só um vazio que ele pretendia
encher com genebra, e uma dor que se voltava físico quando o rosto de Rafaela se
apresentava diante dele, o qual acontecia a cada maldito minuto. Estava a ponto
de perder a razão, sabia.
—Que acontece! —disse, e não se moveu do rincão que ocupava no chão, o
mesmo onde Rafaela se resguardou, envolta no lençol.
Cristiana e Peregrina abriram a porta e, ao localizá-lo sentado no chão, com o
rosto afundado nos joelhos, ficaram quietas e caladas. Cristiana pigarreou. Fúria
não se moveu.
—Não adianta fingir —declarou a moça— que um patife, um imprestável como
você desdobra as maneiras de um cavalheiro de rançoso berço. Fique de pé! Uma
dama acaba de entrar.
Fúria levantou o rosto, e Peregrina afogou um grito de pânico. Tinha os olhos
injetados de sangue, o que ressaltava a cor turquesa da íris, conferindo-lhe um
aspecto maligno. A barba enchente e enredada embrutecia suas feições, e o cabelo
rígido de suor e sebo acentuava o traço de alguém no limite da prudência. Quando
decidiu a falar, sua voz ébria não ajudou a melhorar a imagem de louco perigoso.
—Se você veio para adulem com galanteios, é melhor dá a volta e sair por onde
entrou. Advirto-te, hoje justamente não ando com paciência. Não estou para que
me venham com bagatelas.
Cristiana avançou e Peregrina fechou a porta. Golpeou-as um aroma de suor
humano, álcool e urina (pelo visto ninguém se ocupou da latrina), que se tornou
insuportável. Cristiana se levou um lenço perfumado ao nariz. Com a voz
amortecida pelo linho, expressou:
—A fé que não compreendo como uma mulher como Rafaela, tão sensível aos
aromas e aos perfumes, pôde apaixonar-se por um gaúcho fedido como você.
A declaração avivou Fúria. Cristiana se tornou para trás e Peregrina proferiu um
alarido quando o homem ficou de pé feito um alfavaca e arrojou o copo de latão
sobre suas cabeças, as salpicando com genebra. Em tanto recuperava o fôlego e as
contemplava com ira, caiu na conta de que Cristiana sabia de seu namoro com a
Rafaela.
—A que merda veio! Fale de uma vez e parta. Advirto que se seguir calada e me
olhando com cara de peixe, arrancarei suas tranças, não importa tão boa seja
vossa mercê.
—Rafaela casará amanhã com meu irmão Aarón —balbuciou Cristiana.
—Que caralho me importa! —exclamou, para ocultar a surpresa que significava
que as bodas se realizasse tão logo, como também o pânico que essa iminência lhe
provocava—. Que se case com quem merda queira! Que se entregue ao tolo de seu
irmão!
—Rafaela está grávida! —interrompeu-o Cristiana—. Ela está esperando um filho

232
seu! Fúria, ela está esperando a seu filho.
Artemio separou os lábios e relaxou o cenho. Abriu os punhos, e os braços
penduraram aos flancos do corpo. Resultava quase chocante testemunhar o
estupor e o medo que se evidenciavam no gesto desse homem enorme e selvagem.
Fúria posou o olhar em Peregrina e a inquiriu sem necessidade de palavras. A
escrava assentiu para confirmar a revelação de sua ama.
—Então —se animou a falar Cristiana—, permitirá que meu irmão não só lhe
roube a mulher mas também o filho?
***
Rafaela pensou que a deteriorada fachada da igreja de São Francisco —se
derrubou no ano sete— refletia o estado de seu ânimo, quão mesmo o clima,
instável e frio, e o céu cinza. Sentia-se feia, cansada, sem forças. Com artimanhas
e lisonjas, Ñuque e Creóla tinham conseguido levantá-la da cama, banhá-la e lhe
pôr o vestido de noiva, de cor branca com fitas de seda rosados. Caminhar ao altar
do braço de seu pai, a quem via pela primeira vez do encontro com Fúria,
dependia dela, e não estava segura de obtê-lo.
Tremeu quando as portas da igreja se abriram. Rómulo lhe apertou a mão para
reconfortá-la; assim e tudo, Rafaela não se animou a encontrá-lo com o olhar. O
estalo das portas ao fechar os impulsionou pela nave quase vazia, só ocupada pela
família e uns amigos de Aarón. Rafaela reconheceu a Tomás de Grigera, o prefeito
de Colinas da Zamora, e ao Joaquín Campana, o secretário do coronel Saavedra.
Aarón a esperava ao pé do altar, e a calidez de seu sorriso a reconfortou. Deixou
cair as pálpebras e inspirou com vontades quando lhe tirou o véu. Logo passaria,
animou-se. Tudo ficaria no passado e ela o esqueceria. Aarón seria um marido
considerado, seu filho se chamaria Romano e ninguém o tacharia de bastardo.
Frei Cayetano Rodríguez iniciou a cerimônia. Não emprestava atenção a suas
palavras e, embora tentasse concentrar-se, não podia seguir o fio de sua
argumentação. Em realidade, não escutava. Tinha a impressão de achar-se sob a
água e que lhe falavam da superfície. Uma conhecida moléstia no estômago a
levou a pensar que possivelmente a profecia de Creóla se cumpriria, e a elegante
jaqueta de veludo púrpura de Aarón terminaria com vômito. Mordeu-se o lábio
para reprimir a risada que lhe provocava aquela imagem. Sim, estava voltando-se
louca. Ria quando um minuto antes se teria posto-se a chorar.
Em um primeiro momento acreditou que se tratava de um trovão, um fragor seco
que fazia estremecer os vitrais e que lhe desentupiu os ouvidos. Os alaridos a
seguir a levaram a dar-se volta. Tudo ocorria com rapidez pasmosa e, ao mesmo
tempo, com a lentidão dos movimentos aquáticos. A silhueta do magnífico corcel
que com seus quartos dianteiros tinha aberto as portas da igreja se recortava na
meia luz do exterior. Soube que se tratava de Cajetilla e que Artemio Fúria se
achava sobre os arreios, sujeitando as rédeas do encabritado animal, ao qual
subjugou sem esforço e guiou pela nave, a passo lento; ia escoltado por um grupo
de cavaleiros. Estavam todos: o índio Manque, Bamba, "o marucho", Isidoro, "o
rastreador", Torquil, "o marinheiro", Billy, "o rengo", Juan, "o peludo", Modesto, "o
entrerriano", e Buenaventura Buena. O coração lhe saltou de alegria ante aqueles
rostos familiares. Ao tropeçar com o olhar de Artemio Fúria, sua alegria,
converteu-se em uma fúria negra.
Levava a barba muito grande, e o cabelo comprido e solto lhe cobria os ombros.
Avançava com ar fanfarrão, o chapéu caído nas costas, sustentado pela correia.
Jogava olhadas aos convidados, desafiando-os a abrir a boca, a mover-se. Sua

233
beleza resultava profana no contexto, como a de um anjo cansado que desdenhava
a autoridade divina. Rafaela notou que, embora Fúria não empunhasse uma arma
de fogo, seus homens sim.
—Que significa esta afronta! —estalou frei Cayetano, ao vencer o estupor—. Que
classe de heresia estão cometendo! Entrar com suas bestas à casa do Senhor!
Parte daqui, blasfemos!
Artemio Fúria sorriu, e Rafaela conteve o fôlego. Não se tratava do sorriso que ela
adorava mas sim de um gesto carente de humor, macabro, como a ação instintiva
de uma fera quando descobre as presas para amedrontar a sua vítima.
Passado o estalo do sacerdote, ninguém se atreveu a falar. Os cascos inquietos
dos cavalos retumbavam sobre o assoalho e cada tanto um relincho provocava um
eco que ricocheteava no abside37. Aarón obrigou Rafaela a colocar-se atrás dele
quando Artemio aproximou tanto Cajetilla que os beiços do cavalo quase roçaram
sua jaqueta. O gaúcho o contemplou fixamente durante uns segundos. Aarón lhe
sustentou o olhar com coragem, embora o percorresse um estremecimento quando
o ouviu dizer com voz rouca e profunda:
—Esta mulher e o filho que leva no seu ventre me pertencem.
—Não! —gritou Rafaela, e, em uma confusão de tules e saias, escapuliu para a
sacristia.
Aarón observou, enfeitiçado, como o gaúcho, sem apartar a vista de Rafaela,
realizava um movimento preciso e rápido com os dedos de sua mão direita e
desenredava o laço enrolado a sua montaria antes de fazê-lo girar sobre sua
cabeça e lançá-lo em direção da jovem, que soltou um gemido ao ver-se detida
bruscamente em sua escapatória. Um clamor se levantou entre os convidados.
—Deixe-a ir, maldito filho de puta! —exigiu Aarón.
—Ordeno-lhe que a solte! —prorrompeu frei Cayetano.
Buenaventura Buena se inclinou sobre os arreios e apoiou a ponta de sua pistola
no alto da cabeça do noivo.
—Melhor fechar o pico, dom —lhe aconselhou—. Artemio Fúria anda de más, e,
quando anda de más, faz honra a seu apelido. O mesmo para você, padre, com
todo respeito.
Artemio puxou o laço, obrigando a avançar a passos involuntários e torpes a
Rafaela, quem, com os braços sujeitos aos flancos do corpo, lutava para conservar
o equilíbrio. Quando a teve junto a Cajetilla , pôs-lhe um dedo sob o queixo e lhe
levantou o rosto. A jovem, ao sacudir a cabeça para livrar do contato, despediu um
aroma delicioso, quente, penetrante, para nada sutil.
—Minha Rafaela das flores —sussurrou Fúria, e, sem lhe dar tempo a atuar,
inclinou o torso, rodeou-lhe a cintura com o braço livre, levantou-a no ar e a
localizou na arreios diante dele, ao modo das mulheres.
Aarón tratou de equilibrar-se, mas Calvú Manque lhe cruzou o cavalo e
Buenaventura Buena lhe recordou a ameaça de sua pistola ao cravar-lhe na
queixada. Os insultos de Aarón, as ameaças de frei Cayetano, os lamentos de
Creóla e de Peregrina e os murmúrios dos convidados se mesclavam com os gritos
de Rafaela, que se agitava na arreios como peixe fora da água. Rómulo, paralisado,
pensava que Artemio Fúria devia possuir uma fortaleza extrema para subjugar a

37
Termo arquitetônico para denominar a ala de um edifício, normalmente religioso, formado por uma abóbada ou
semi-cúpula.

234
sua filha com um só braço e controlar a um cavalo brioso com a pressão dos
joelhos.
—Merda, Rafaela! —o fôlego quente de Fúria lhe queimou a orelha. Ficou quieta e
ofegante, com a vista baixa, humilhada, em tanto Cajetilla galopava pela nave em
direção à porta principal. Incomodou-lhe a luz ao sair ao átrio e ocultou o rosto no
poncho de Fúria, também por vergonha. Ouviu-o açular ao cavalo no idioma
gutural dos índios, e sentiu a resposta de Cajetilla quando este, ao lançar-se pela
rua de São Martín rapidamente tendido, provocou-lhe uma sacudida que quase a
joga na rua. O braço de Fúria lhe impediu de cair.
Perto da esquina com a rua das Torres, Artemio obrigou ao cavalo a diminuir a
velocidade e dobrar para a direita, em direção oeste. Em seguida reataram a
marcha a toda pressa. Atrás foram ficando o bulício de Recova, o pregão dos
camelôs e dos bandoleiros, os sinos das Igrejas e os zurros das mulas. Rafaela
sabia que Fúria a tiraria da cidade. Não estava assustada, só tinha curiosidade.
Aonde a levaria? Que destino lhe esperava? Apesar de que ele se converteu em um
estranho para ela, não lhe temia, e, apesar de que ele a tinha arruinado
publicamente, envergonhava-se de uma emoção que mantinha aceleradas suas
pulsações e que em nada se parecia com a indignação que deveria estar sentindo.
Já longe da cidade, em meio de um descampado solitário, Artemio Fúria atirou
das rédeas, e Cajetilla trocou a um passo ligeiro.
—Tire-me este laço! Tenho os braços dormentes.
—Fique quieta ou a jogo do cavalo!
—E matar ao filho dele que levo no ventre?
—Se seguir mexendo assim cairá igualmente e você sozinha causará dano ao
nosso filho —transcorrida uma pausa, conjeturou—: Por ai, É o que anda
querendo. Desfazer-se de meu filho.
Aquelas palavras esfriaram a irritação de Rafaela. aferrou-se a cela, baixou a
cabeça e permaneceu quieta. Artemio lhe tirou o laço, enrolou-o e atou a
montaria. Tirou-se o poncho e o passou pela cabeça de Rafaela. A ela lhe arrepiou
a pele do pescoço quando Fúria lhe ordenou ao ouvido:
—Relaxe. Está mais rígida do que uma tábua.
—Quero voltar para minha casa —disse, sem desejá-lo seriamente.
—Cale-se. Sabe que não a devolverei a esse badulaque de seu primo mesmo que
Deus me ordene. E não me aborreça porque estou com um humor dos diabos.
Ando furioso com você, minha Rafaela.
—Sou eu que está enfurecida com você, senhor Fúria!
—É melhor que passe porque tenho pouca paciência para caprichos.
—Desgraçado, arruinou-me socialmente!
—De agora em diante, a única coisa que você tem que se preocupar é não se
arruinar ante meus olhos, porque eu sou o seu dono —como Rafaela fez gesto de
responder, aferrou-a pela nuca e lhe falou perto dos lábios—: E agora fecha essa
boca, na verdade, Rafaela, minha paciência está por um fio.
Não obstante a dureza de suas palavras, Fúria passou a mão sob o poncho e a
colocou sobre o ventre. Começou a massagear-lhe com movimentos circulares,
abrangendo-o por completo. A calidez de sua palma atravessou o tecido do vestido
e a embargou de uma sensação de prazer. Soltou um suspiro. Ao cabo, o gaúcho
deteve a massagem e realizou uma ligeira pressão, sem lhe causar moléstia. Com
um estalo, instigou ao overo que de novo reatou a marcha a grande velocidade. A
mão de Artemio seguiu apoiada sobre o filho de ambos em ciumenta atitude.

235
***
Tinha-a roubado ao pé do altar não por ela mas sim porque estava grávida.
A noite em que seu pai os descobriu fazendo o amor, Albana lhe confessou com
péssima intenção que Fúria sabia de seu compromisso com o Aarón e que nada
lhe importava. Resultava óbvio que a mulher não tinha mencionado o embaraço
porque não estava informada. Como se tinha informado Fúria de que esperava um
filho? Quem a tinha traído? Rómulo, Creóla, Corina e Ñuque conheciam seu
segredo, e não podia imaginar a nenhum contando-lhe a Fúria.
Doíam-lhe as nádegas e os rins. Levava horas acima dos arreios e, embora Fúria
tivesse diminuído a marcha, seguro de que ninguém os perseguia, a sacudida a
maltratava. Além disso, estava deprimida, com o orgulho manchado. Não a queria
a ela a não ser ao bebê. Teria permitido que casasse com o Aarón de não haver-se
informado de que estava grávida. De repente, teve medo. Fúria lhe faria pagar caro
que tivesse estado disposta a entregar seu filho a outro.
Levantou as pálpebras com dissimulação e o observou, severo e reconcentrado
no caminho que ia ficando em penumbra; arrumado e formoso apesar da
rigorosidade de seu gesto; são e forte, exalava virilidade. Deu-lhe de pensar em
Pam, o deus grego da sexualidade desenfreada, temido por seus arranques de ira.
dali a palavra "pânico", tinha-lhe explicado sua tia Pola. Apartou os olhos, não
suportava imaginar a inclemência que cairia sobre ela. Odiava-o porquê lhe temia.
Odiava-o porquê o amava, e ele não.
Estava incômoda, incomodava-lhe o maçaneta, e a cela lhe cravava entre as
pernas, pois já não montava ao modo feminino. Tinha reparado em que esses
eram os arreios habituais de Fúria. Para benefício do espetáculo montado na
igreja, tinha-a trocado por uma mais singela e leve, sem sela na parte posterior,
com o dianteiro muito baixo e o assento fofo, que demonstrava servir de pouco
para a comodidade de suas nádegas. Teria suplicado que a mantivesse se o
orgulho não a tivesse ajudado a tolerar a aflição.
Fúria apertou os lábios para dissimular um sorriso. Quanto mais suportaria
Rafaela essa postura? Para não tocá-lo, mantinha-se ereta e afastada, derrubada
sobre a cela. Era presunçosa e obstinada. Admirou-a por isso, e algo da cólera que
tinha despertado todos seus demônios se dissipou. Jogou o corpo para trás e a
obrigou a posicionar-se contra seu torso. Ela resistiu, mas uma sacudida
terminou por se localizá-la onde ele a queria. Soube quando claudicou, sentiu-a
render-se, afrouxar o corpo e amoldá-lo contra seu peito. Seguro de que dormia,
beijou-a na têmpora e no ponto que ela perfumava, detrás da orelha, onde nascia
o pescoço, e aí se atrasou, recordando o primeiro beijo sob o pé de damasco. Sua
Rafaela. Sua Rafaela das flores. Sua adorada Rafaela que tinha sobrevivido à
morte e que levava vida em suas vísceras. Os olhos lhe alagaram de lágrimas. Que
loucura estavam vivendo! Ele, apanhado em um pesadelo de ódio e vingança, ela,
convertida em sua vítima. Jamais o perdoaria. Tinha-a insultado de todas as
maneiras possíveis, tinha-a tratado com a baixeza que, talvez, Martín Avendaño
teria empregado com Edwina. O medo se manifestou em um tremor que o obrigou
a afrouxar as rédeas. Cajetilla o notou imediatamente e trocou a marcha. Já não
raciocinava bem nem dominava seus arreios. Deteria-se e faria noite longe do
caminho.
Rafaela despertou, confundida, perguntando-se onde se acharia, enquanto Fúria
a descia do cavalo. separou-se dele como se seu contato a queimasse. Ele ficou
quieto, vendo-a, não com abatimento a não ser com irritação, a raiva impressa em

236
seu olhar.
—Quero voltar para minha casa!
—Está indo a nossa casa.
—Não existe nossa casa. Você e eu não somos nós. Não somos nada.
—Você leva a meu filho em seu ventre.
—Levo a meu filho em meu ventre! E seu pai será Aarón Romano.
—O que diz? —aferrou-a pelos ombros e a sacudiu.
—Não quero que você seja o pai de meu filho!
—Mas o sou! Sou-o! Não se atreva a mentir para quem mal nasceu ou...
—Ou o que? Vai me golpear? —Artemio resfolegava, ébrio de fúria—. Que fácil
teria sido, senhor Fúria, que me tivesse pedido em La Larga para que o seguisse! O
teria seguido até o fim do mundo com tanta alegria. Agora já não. Não o amo,
senhor Fúria. Você se ocupou de matar um amor que eu acreditei infinito. Eu...
Eu já não sei quem é você.
O tom de amargura de Rafaela o alcançou como um murro no estômago. Teria
preferido uma rixa e insultos, não essa calma cheia de tristeza. Tinha-a perdido.
Não o tolerava, não o consentia. Não sabia de que maneira lutar com essa mescla
de dor e desespero. Ele podia sentir, como se de bílis se tratasse, que a ira subia
das profundidades até a superfície, sabia que o lamentaria e, entretanto, não
podia detê-la.
—Não sabe quem sou? Eu sou o que a desvirginou, lá, em La Larga. Eu sou o
que a montou de todas as formas possíveis e a fez gritar de prazer. Eu sou o que
lhe fez um filho. Eu sou seu homem, Rafaela, e você é minha.
—Não é, não é —sussurrou—. Pertenço a Aarón. Estou prometida a ele.
—Cale-se! Você é minha! —tinha enlouquecido. O nó que mantinha sujeita sua
parte diabólica se desatou e possivelmente a vida de Rafaela dependesse da
resposta à pergunta que temia formular. Tremeram-lhe a voz e o corpo quando
falou.
—Acaso esse filho da puta a fez sua mulher?
Rafaela baixou a vista e negou com a cabeça. Escutou-o insultar e afastar-se. A
erva ressecada rangeu sob o peso de suas botas de potro até que o som se
desvaneceu. Caiu de joelhos sobre o terreno e, com a cabeça vencida, ficou a
chorar. Enojava-a a hipocrisia, um mal de família que levava consigo. Por orgulho,
mas sobre tudo para machucar Fúria, havia dito uma fileira de mentiras. Em
realidade, não desejava voltar para sua casa, não queria a Aarón e não tinha
deixado de amar ao senhor Fúria, embora, na verdade, já não sabia quem era ele.
Um comichão lhe atravessou a nuca. Girou-se de modo brusco e soltou um
alarido ao distinguir a silhueta de um animal cujos olhos resplandeciam no
crepúsculo.
—Quinto! —o animal se aproximou, e Rafaela passou a mão pela cabeça de
Quinto. Senti sua falta, querido amigo.
O puma lhe lambeu a mão, e Rafaela sorriu e se tornou a seu pescoço como se de
Ñuque ou de Rómulo se tratasse. Fúria chegou correndo, com um feixe de ramos
—O que acontece? Por que gritou? —perguntou, sem fôlego—. Ah, é você —se
tranqüilizou ao ver quinto.
Rafaela seguiu abraçada ao animal, com a cabeça, apoiada sobre seu lombo,
inspirando o aroma selvagem da pelagem amarela, e, desde essa postura,
observou a Fúria acender uma fogueira e preparar os equipamento para preparar
mate e algo para comer. Lutou contra o peso de suas pálpebras. Não queria perder

237
de vista ao senhor Fúria. Gostava de vê-lo atuar em seu ambiente. Ao momento,
ficou dormida sobre o pescoço do puma.
***
Despertou com suavidade, e descobriu a erva perto, do rosto. Quinto, brincando
a uns palmos, a cabeça sobre as patas dianteiras, observava-a com olhar sereno.
Sorriu-lhe, e o animal emitiu um miado sem abrir a boca. Amanhecia com
tonalidades rosáceas e laranjas. Havia silêncio e, ao mesmo tempo, muito ruído, a
dos pássaros e insetos. Rafaela se achou deitada sobre a montaria, com o cojinillo
como colchão e a cela como travesseiro, envolta no poncho e, sobre este, várias
caronas. Não desejava abandonar esse ninho confortável e quente. Tinha vagas
imagens de como havia, acabado ali. "Minha Rafaela", havia, sussurrado Fúria,
enquanto lhe beijava a testa várias vezes antes de agasalhá-la sobre os arreios.
Não, tinha-o sonhado.
O senhor Fúria apareceu com a lenha. Tinha encontrado uma lagoa ou um canal
de irrigação posto que levava o cabelo e a barba molhados. Viu-o agarchar-se
frente à fogueira, com os joelhos perto do rosto. Ia fazer o fogo. Sabia o que fazia,
notava-se que o tinha realizado infinidade de vezes. Saltaram faíscas à fricção do
pederneira e o elo, e Fúria soprou para avivar as chamas. Dispôs uma base e um
caldeirão cheio de água para o mate. Tirou de seu atirador a bolsa de couro com
os utensílios para fazer um cigarro, o que fez com admirável destreza. Roubou um
ramo aceso na fogueira e o aproximou do cigarro que pendia entre seus lábios.
Rafaela sentiu uma ardência no estômago quando ele apertou o cenho e
entreabriu os olhos para acendê-lo. O primeiro trago foi longo, e lhe relaxou as
feições. Rafaela o estudava desde seu leito e logo que separava as pálpebras para
que Artemio não soubesse que estava espiando-o.
Embora não comesse carne, o aroma do assado despertou o apetite. Apartou a
cela e o carona e se ergueu, de costas a Fúria. Sabia que estava observando-a.
Passou as mãos pelo cabelo, convertido em um ninho de cobras. Como estaria? De
seguro, teria os olhos inchados e vermelhos, e marcas de lágrimas sulcariam seu
rosto. E as olheiras? Profundas e azuis, é obvio. Ficou em pé com cuidado para
evitar o enjôo e as náuseas, e se aproximou da fogueira, com Quinto atrás, que
apanhou no ar um pedaço de carne que Fúria lhe jogou. Sem olhá-la nem lhe
dirigir a palavra, o gaúcho pegou a erva mate e verteu água quente com gesto
grave. Deu as primeiras chupadas para eliminar o sabor amargo. O ofereceu. Os
dedos de Rafaela roçaram os de Artemio, e seus olhares se cruzaram por um
momento. Rafaela apartou a vista e sorveu o tônico com fruição, enquanto ele
cortava outro pedaço de carne assada e, com a mesma faca, o levava a boca.
Rafaela se sentou frente ao fogo, sobre uma manta, a certa distância de Fúria e
com Quinto a seus pés. Ao lhe devolver o mate, descobriu bolachas e uma parte de
queijo sobre um retalho de gênero branco.
—Para você —o ouviu dizer—. Como não come carne...
—O qual é um grande estorvo para você.
—É, sim.
—Então, me devolva a minha família. Não lhes importa se...
—Basta, Rafaela —não se tratou de um grito, nem sequer de uma ordem
ascensão de tom a não ser expressa em um sussurro entre dentes que a deixou
muda.

238
Capítulo XX

Pichín-Ülleún

Perto do meio-dia, Rafaela avistou uma fazenda. Um quarto de hora mais tarde,
Cajetilla se deteve as portas de um casarão velho e ruído, embora de sólida
edificação, com um amplo pórtico de colunas brancas e piso de tijolo, e o entorno
prolixo e desmazelado.
—Esta é sua casa —escutou dizer a Fúria a suas costas.
Não deu a volta, não o enfrentaria apanhada nessa tormenta de emoções e idéias
contraditórias. Seguiu contemplando os detalhes das janelas gradeadas e da
pintura deteriorada. Fúria passou a seu lado e abriu a porta, que estava sem
chave. Entraram em um vestíbulo amplo que comunicava a três estadias, dois se
desdobravam para os flancos e a terceira, para o fundo. Estas, a sua vez,
comunicavam com mais habitações, e assim a casa parecia não ter fim, como se a
mesma imagem se refletisse em infinitos espelhos. Permanecia em metade do
vestíbulo, olhando as asas que se abriam para sua direita e esquerda. Por isso
espionava, não havia muito mobiliário nem adornos; de fato, o vestíbulo estava
descascado, salvo por uma lamparina de sebo de potro suspensa no teto.
Um bulício a obrigou a voltar-se. Os homens de Fúria, duas moças e vários
meninos se apertaram no pórtico.
—Pichín-Ülleún! —pronunciou uma das jovens, e se lançou ao pescoço de Fúria.
Rafaela se moveu depressa para evitar ser machucada. A outra moça também o
chamou Pichín-Ülleún e recebeu um abraço.
—Rafaela —a chamou Fúria, sorridente.
Resultava tão incomum vê-lo nessa disposição, que ficou quieta, olhando-o como
tola. Fúria a tirou da mão.
—Elas são meus lamúenes, minhas irmãs —esclareceu.
—Irmãs? —disse, sem desprezo, só confundida.
—Suas irmãs do coração —explicou uma delas—. Somos as lamúenes de Calvú.
Meu nome é Alihuen. Mari-mari, Rafaela. Dou-te a bem-vinda.
—Ela é Millao —expressou Fúria.
—Mari-mari, Rafaela. Pichín-Ülleún nos falou muito de ti.
—Pichín-Ülleún?
—Pequena Fúria —interveio Calvú Manque—. Esse nome demos a Artemio faz
vinte anos, quando chegou a nossa toldería, no deserto. Agora só fica o Fúria.
—Irei saudar minha ñuqué —anunciou Artemio, de volta em seu aspecto áspero.
Embora tinha acentuado a última sílaba, Rafaela reconheceu a palavra com que
ela e sua família chamavam a ama a Índia, "mãe". Viu-o saltar sobre Cajetilla e
dirigir-se para um rancho, afastado da casa principal.
Bamba se aproximou com o rosto e as orelhas tintas e, esfregando a boina,
confessou-lhe:
—Estou feliz que tenha vindo para cá.

239
—Obrigada —disse, e lhe apartou uma mecha rebelde dos olhos. O que podia
responder? "Eu também", quando Fúria a tinha arrastado à força? O canhoto38
sabia e, entretanto, expressava-lhe sua satisfação. A situação se tornava grotesca
pelo irreal. Não sabia o que sentir nem tinha vontade de pensar no embrulho em
que estava colocada. Doía-lhe do alto da cabeça até os pés, e só desejava tomar
um banho e meter-se na cama. Encontraria uma cama? Fúria a tinha abandonado
com pessoas às que logo que conhecia, em uma casa que não lhe pertencia, sem
roupa nem objetos pessoais, só com o vestido de bodas, os incômodos tamancos
de seda bordada e seu elegante poncho de vicunha.
—Millao —disse Calvú—, a senhorita Rafaela tem que está muito cansada.
Acompanha-a a sua peça para que descanse.
***
Não voltou a ver o Artemio Fúria em vários dias. Ao cair a noite desse primeiro
dia na Garganta de Morón —já se inteirou de que ali se encontrava—, Anuillán, a
mãe de Calvú Manque, de Millao e de Alihuen, apresentou-se na casa com roupa,
comida e outros utensílios e lhe informou que Pichín-Ülleún tinha retornado a
Buenos Aires. O impacto da novidade lhe apagou a cor do rosto. Sentou-se no
bordo da cama e cravou a vista no zócalo de tijolos. Anuillán se sentou junto a ela
e tomou as mãos. Tentou tragar o nó que lhe formou na garganta, sem êxito. A
Índia passou um braço pelas suas costas e a empurrou sobre seu peito.
—Por que se foi sem despedir-se? —perguntou-lhe, entre choros e soluções.
—Ele me pediu que a cuidasse muito —lhe assegurou, em um castelhano duro e
mau pronunciado.
—Eu não lhe importo, só o menino —em que pese a dar-se conta de que atuava
com essa estranha como se de Ñuque se tratasse, seguiu lhe relatando suas
desventuras. A mulher a escutava em silêncio e lhe acariciava o cabelo, e Rafaela
se perguntava se acreditaria louca porque lhe referia feitos e pessoas como se os
conhecesse; possivelmente, nem sequer sabia que ela estava grávida.
Como fora, fizeram-se amigas. Às vezes Anuillán recordava Ñuque, por sua
sabedoria e noção fatalista da vida, embora sorria mais e gostava de abraçar e
beijar às pessoas, em especial a seus netos. Resultou uma alegria para a Rafaela
inteirar-se de que a mulher era curandeira, ou machi, como a chamavam por aí.
Enquanto andavam pelo rancho de Anuillán, passavam horas conversando a
respeito das propriedades e perigos das plantas, as flores e as raízes. A machi
parecia ter a cura para todos os males. Rafaela notou que Anuillán começou a
olhá-la com outros olhos o dia em que lhe ensinou a elaborar um ungüento com
graxa de porco e a polpa da sábila que cicatrizou em vários dias as escoriações de
seu neto mais novo. Também lhe explicou como elaborar sabão de insípida e
outros mais delicados para a pele feminina, e alvejante, com as cinzas barrilha39.
Como se inteirou de que vários dos meninos padeciam de diarréia, sugeriu-lhe
limpar a água que tiravam do canal de irrigação com alumbre40 ou com pastilhas

38
A autora menciona a palavra marucho, que significa canhoto.
39
Carbonato de Sódio.
40
Um tipo de sulfato de alumínio.

240
de quinina41.
—Vendem-se em qualquer farmácia. Há uma farmácia no povo de Morón? Posso
lhe pedir a Bamba que me leve a comprar.
Anuillán baixou a vista e trabalhou em excesso com nervosismo no pão de
centeio que amassava, em tanto murmurava desculpas. Rafaela demorou para
advertir que a mudança de aspecto da Índia se devia a que Fúria tinha proibido
que ela saísse de sua propriedade.
—O não quer que vá ao povo, verdade? —ainda sem olhá-la, a mulher negou com
a cabeça—. Pensa que escaparei ? Que o denunciarei por me haver raptado?
—Não sei por que o proibiu, Rafaela. Ele nunca explica nada. Ele só diz o que se
faz e o que não, e aí se acaba a coisa.
—Não escaparia nem o denunciaria.
Assombrava-a que Fúria acreditasse que contaria com o valor para fugir e vagar
sozinha por essas paragens.
—Além disso —disse, com sarcasmo—, como poderia escapar se me mantém
vigiada com sua gente? De noite, fazem guarda em torno da casa como se eu fosse
uma criminosa.
—Ah, não, querida, não pense isso! Calvú diz que os moços fazem guarda porque
Pichín-Ülleún anda com medo de que os teus lhe dele separem.
Rafaela sorriu com desânimo. Durante as noites acordada, com a única
companhia de Quinto, que dormia no chão junto a sua cama, tinha chegado à
conclusão de que sua família não a quereria de volta; fariam de conta que se
desvaneceu no ar, que nunca tinha existido. A intriga de que um gaúcho, por
muito patriota que fosse, tinha-a raptado, devia estar percorrendo a cidade como a
peste negra. Seu nome se associaria ao escândalo para sempre e Rómulo não
obteria a ansiada Carta Executória de Nobreza. A repudiaria e a culparia pela
ofensa que havia manchando o bom nome dos Palafox e Binda. Por fim, proibiria
nomeá-la. O que opinariam a condessa de Stoneville, Pilar Montes e Lupe Moreno?
Na verdade, estava sozinha. Atormentava-a a idéia de que Fúria lhe tirasse o
menino ao nascer e a jogasse de suas terras. O que faria? Aonde iria? Nesses
instantes de angústia, recordava as palavras de Juvenal Romano: "E você,
senhorita Palafox, conte comigo sempre que o necessite. Encontro a sua inteira
disposição", com o amanhecer, chegava a mudança de disposição, e o ânimo
lúgubre que a assolava de noite mudava a um mais entusiasta. Gostava da vida
que levava em Morón, apesar de que sentia falta de Creóla, Ñuque e Mimita, de
que não contava com seus alambiques e redomas e de que vivia com roupa alheia.
Sentia-se bem com a simplicidade dessas pessoas, na naturalidade com que
expressavam seus pensamentos. Careciam de artifícios ou poses. Simplesmente,
eram, e essa qualidade atraía a Rafaela, surpreendia-a primeiro, pacificava-a
depois. Através de conversas com Anuillán ou com suas filhas, descobria os
pedaços da vida de Artemio Fúria. Por Millao soube que um mercedário, o padre
Ciríaco Aparicio, tinha-o chamado Artemio por havê-lo encontrado em 6 de junho,
dia de São Artemio, mártir.

41
Quinina (fórmula química: C20H24N2O2) é um alcalóide de gosto amargo que tem funções antitérmicas, antimaláricas e analgésicas. É

um Estereoisómero da quinidina. O sulfato de quinina é oquinino. É extraída da quina.

241
—Então —raciocinou—, se o padre Ciríaco o chamou Artemio e por vós é
conhecido como Ülleún, ou Fúria, qual é seu verdadeiro nome?
—Ninguém sabe. Acho que disse a meu peñi, mas se Pichín-Ülleún não quer que
se saiba, não sairá da boca do Calvú. São dois em um.
Mais tarde, no mesmo dia, Rafaela golpeou as mãos na ramagem do posto de
Anuillán e a Índia a convidou a entrar. Encontrou-a untando42 umas fatias de
carne.
—Levou-te Millao o ajiaco43 de lebre? —pelo Artemio, a Índia sabia que Rafaela
não comia carne de vaca e lhe preparava pratos especiais.
—Sim obrigado, Anuillán, Não é necessário que se incomode. Eu posso preparar
meus alimentos. Limpei e remodelei a cozinha da casa grande. Só necessito que
me provejam de utensílios e ingredientes. Posso ir à horta a recolher hortaliças?
—Pois claro! Bamba te vai levar carnes para seus guisados.
A mulher percorria o rancho juntando panelas de bronze, colheres de madeira e
demais equipamento, quão mesmo uma bolsa de couro com sal, um pote de
açúcar marrom, uma garrafa de cerâmica com azeite, pimentões, espigas de milho,
uma fôrma de sebo e outros ingredientes.
—me diga, Rafaela —falou Anuillán—, quantos dias leva entre nós? Vão seis? —
Rafaela assentiu—. Como se sente? 'Vocês bem na casa?
—Sim, estou-o.
Rafaela se dedicou a estudar o rancho, um quarto grande, compartimentada em
duas por um divisório de couros, com as paredes de cana e tijolo cru, o chão de
terra calcada e o teto de junco e palha. Além de uma mesa e duas cadeiras, havia
um camastro construído com quatro tocos dos que nasciam laços entretecidos que
sustentavam um colchão de manta de algodão. Embora o lugar estivesse limpo,
resultava muito pobre.
—Por que não vive você na casa, Anuillán? É tão grande! Está muito vinda a
menos, mas há lugar para todos, até para suas filhas e suas famílias.
A Índia sacudiu os ombros antes de falar.
—Não estou acostumada à casa grande, nem sequer o mesmo Pichín-Ülleún a
usa. Quando volta de suas viagens, deita-se aí - disse, e assinalou a cama de
armar—. A abrimos e a limpamos quando soubemos que você viria.
Rafaela mordeu o lábio, intrigada. Quando tinha decidido o senhor Fúria levá-la
ao campo de Morón, antes ou depois de haver-se informado de que levava a seu
filho no ventre?
Calvú Manque entrou no rancho de Anuillán, tirou o lenço da cabeça e lhe
sorriu, e Rafaela lhe devolveu o gesto. Embora o índio tivesse participado do rapto,
nunca tinha podido atribuir-lhe e terminou por afeiçoar-se a sua companhia
nesses dias turbulentos, afastada de sua família, preocupada com Mimita e com
um futuro escuro por diante. A diferença de Fúria, Calvú Manque era expansivo e
risonho e lhe tinha devotado sua amizade. Visitava-a ao pôr do sol, e Rafaela
descobriu que lhe resultava fácil lhe contar no que tinha ocupado seu tempo.
Atraía-a a companhia do ranquel, em especial porque ninguém conhecia o Artemio
Fúria como ele.

42
A autora menciona emborrizando.
43
Um prático típico. Espécie de sopa.

242
A uma ordem de Anuillán, Calvú Manque juntou os utensílios de cozinha e
ajudou a Rafaela a transportá-los à casa grande.
—Hoje não vi ao Pichín-Calvú e a Hueyqué —Rafaela perguntava pelos filhos de
Calvú Manque, de dez e oito anos, cuja mãe tinha morrido tempo atrás dando a
luz ao terceiro menino, que não sobreviveu.
—Tiveram comigo, colocando coleira os potros da égua madrinha.
—Senti falta deles. São uma grande companhia para mim.
Advertiu de longe que dom Belisario se achava na galeria da casa, sentado sobre
um toco, esculpindo. Das pessoas que habitavam essas terras, a ninguém Rafaela
queria tanto como a esse homem. Apareceu um dia depois de sua chegada, com a
boina na mão e lhe olhando o ventre, apresentou-se como o padrinho de Artemio.
Rafaela amava como se iluminavam seus olhos desbotados quando mencionava
seu afilhado, a cadência que adotava sua voz, a maneira em que suas comissuras
ameaçavam elevando-se em um sorriso que jamais chegava porque dom Beli,
como o apelidavam, era tão parco como seu afilhado.
—Boa tarde, Belisario.
—Mari-mari, dom Beli! —disse Manque.
—Boa. Estou terminando esta escultura para você, Rafaela. Um pente.
—Obrigado, Belisario! Não sabe você quanto o necessito.
A face do homem se coloriu. Baixou a vista e seguiu trabalhando. "Tudo que
sabia havia ensinado a seu afilhado", confessou-lhe em um de seus primeiros
bate-papos. "Desde depenar avestruzes e polir e esculpir o chifre. Também a tingi-
lo com aqua régis para lhe dar essa cor bonita. Gosta dessa cor, Rafaela?" Às
vezes, em suas maneiras e no modo em que inclinava a cabeça e a olhava
esperando uma resposta, descobria no Belisario as mesmas faíscas de inocência
de Fúria.
Passou o resto da tarde sob o pórtico da casa grande, envolta em uma manta e
em companhia de Calvú Manque e de dom Belisario, bebendo água cevada morna
e às vezes conversando. Por momentos, um harmonioso silêncio caía sobre eles, e
Rafaela suspirava e perdia a vista na paisagem. Havia muitos animais nos
arredores, cães, galinhas, gansos, porcos, ovelhas, é obvio vaca e cavalos,
encerrados em amplos currais de madeira a rivalidade se localizavam a umas cem
jardas da propriedade. Havia também dois ñandúes com suas crias ao pé. Rafaela
lhes temia; eram descaradas e comiam quanto viam, desde pedaços de bolacha a
botões, moedas e presilhas.
Disse-se que poderia viver para sempre com essas gente e ser feliz se Mimita
estivesse com ela. Essa qualidade de seu espírito que tanto desiludia a seu pai e
exasperava a tia Clotilde, pela qual se achava a gosto entre pessoas de baixa
condição, nunca se tinha manifestado de maneira tão clara como durante esses
primeiros dias em Morón.
À manhã seguinte, Rafaela sentiu saudades ao não achar a Quinto junto a sua
cama. Comentou com dom Belisario.
—Artemio deve estar a chegar —conjeturou o homem, e os batimentos do coração
de Rafaela puseram-se a correr—. Quinto deve ter farejado e saiu a recebê-lo. Em
umas horas, o teremos de volta.
Com a ajuda de Millao e do Alihuen, Rafaela preparou a comida favorita de Fúria
de acordo com a informação de Anuillán, ajiaco de peludo, que Isidoro havia
caçado o dia anterior, e, como sobremesa, bolo de leite e mel, torta de patay e
guirlache, uma delícia feita com massa de amêndoa e caramelo. Quando tudo

243
esteve pronto, esquentou água para tomar um banho de bacia em seu quarto.
***

A avidez com que estudava a Rafaela acabou quando posou o olhar na curva
pronunciada de seu ventre. O aroma do sabão que flutuava no ar penetrou em
suas fossas nasais e lhe agitou as pulsações junto com as visões do passado. O
som da água, que lambia esse corpo nu antes de gotejar sobre a bacia, manteve-o
calado. O leve roce da esponja sobre essa pele lhe provocava calafrios. Não
desejava irromper no paraíso que Rafaela tinha criado, e preferia observá-la
através da fresta da porta. A paz desse local servia para lhe recordar seu
desassossego durante os dias em que tinha permanecido longe dela, em Buenos
Aires.
Ao chegar à cidade, ansioso por conhecer qual era sua situação depois de ter
raptado a uma senhorita de família, Artemio tinha visitado seu amigo Domingo
French.
—Que flor44 de inimigo te jogaste em cima —lhe havia dito o sargento maior de La
Infernal—. Nada mais e nada menos que ao novo intendente de Polícia, Aarón
Romano. Acredito que Moreno, que se converteu no coração da Junta, teme-te ou
te admira, não sei qual das duas, porque pediu a Romano que arrume os assuntos
de saias fora das instituições de governo. Quando Romano interpôs que te
capturaria já que você tinha cometido um delito ao seqüestrá-la, Moreno lhe
recordou que você e ela esperavam um filho e que tinham vivido um romance.
Porque deve saber, querido Artemio, que a notícia de seu assunto com a filha de
Palafox correu pela cidade como uma trilha de pólvora.
Inclusive tinha chegado para ouvidos do padre Ciríaco, que o recebeu com uma
bofetada.
—Arruinaste a essa pobre moça! —espetou-lhe com uma cólera que Artemio não
lhe conhecia—. A arruinaste para sempre. Envergonhei-me que ti ao saber o que
tem feito em São Francisco. No que falhei ao te educar? Por que atuaste assim?
Albana tampouco lhe deu a bem-vinda.
—Levaste-lhe isso porque ainda a amas!
—Está prenha45. O que queria que fizesse?
—Não me tome por estúpida, Artemio! Soube da sua gravidez o dia anterior das
bodas com Romano, e sei bem que enviou a Bamba à Garganta de Morón com a
ordem de que Anuillán preparasse a casa grande para recebê-la ao dia seguinte da
festa no do Rodríguez Penha. Não minta para mim. Sempre foi sua intenção lhe
levar isso e não te atreva a te justificar me dizendo que o faz para castigar a seu
pai porque bem poderia utilizar outros meios para isso. Acaso Palafox não é um
maturrango a quem poderia enviar ao cárcere acusando o de contra-
revolucionário?
Albana tinha razão, os patriotas se mostravam implacáveis com os espanhóis, e
se viviam dias de grande tensão. Tinham exilado ao tesoureiro da Real Audiência,
Pedro da Viguera; negado a permissão ao bispo Lué e Rega para viajar ao
Montevidéu, ainda realista; e confinado ao Martín de Álzaga e a seus amigos,

44
Expressão popular se refere ao tipo de pessoa.
45
A autora menciona preñáa.

244
Neyra, Villanueva e Santa Coloma, nas Ilhas da Madalena, um assentamento
próximo à Enseada do Barragán. Se Rómulo Palafox seguia em Buenos Aires e em
poder de seu patrimônio se devia à ação do gaúcho Fúria, que assim o tinha
pedido ao Mariano Moreno. "Doutor, eu dou fé da fidelidade de Palafox", tinha
assegurado. Sabia que algum dia teria que devolver o favor.
Visitou a casa da rua Larga logo que chegou a Buenos Aires. Esperou a noite
para mover-se com liberdade. Pulou a cerca, e Creóla, alertada por seu noivo,
Paolino, franqueou-lhe a porta que conduzia aos pátios internos e lhe indicou qual
era o quarto de Rómulo. Ao chegar, este acendeu um castiçal e se encontrou com
Fúria sentado em sua poltrona.
—Deus bendito! —sobressaltou-se.
Fúria ficou de pé e avançou com lentidão deliberada, o facão movendo-se contra
sua perna direita.
—Devolva-me a minha filha, maldito trapaceiro!
—Eu nunca minto, Palafox. Portanto, o que declarei em São Francisco é verdade.
Sua filha é minha. E não a devolverei. Jamais. Agora, se voltará a vê-la algum dia
é o que está em jogo neste momento.
—Você prometeu não prejudicar a reputação de Rafaela!
—Eu não prometi nada.
—Meu sobrinho está buscando-o! O achará e lhe fará pagar o dano que você,
maldito selvagem, infligiu a minha filha.
—Por seu bem, Palafox, que Romano deixe de procurar a Rafaela ou terei que
despachá-lo ao outro mundo. Juro-o —pronunciou, com uma ferocidade que
perturbou ao espanhol.
—Por favor, Fúria, por favor, não faça mal a minha filha. Piedade, senhor.
—Sua filha me dará um filho. Jamais lhe faria mal.
O homem se desmoronou no bordo da cama e cobriu o rosto.
—Que classe de vida terá ao lado de um como você? Ela viveu como uma
princesa —levantou a vista, afligido pelo silêncio. Nem sequer sabia se o gaúcho
seguia no dormitório. Aí estava, entretanto, contemplando o de uma maneira
impossível de decifrar—. A que veio? A ver-me sofrer? Adiante! Por agora, é o que
posso lhe oferecer, minha dor, porque ainda não dei com o paradeiro de Avendaño.
—Vim pela Mimita, Creóla e os pertences de Rafaela. Partirei em uns dias e quero
tudo preparado. Levarei até o último de seus objetos. Livros, roupa, cosméticos e o
que utiliza para fabricar perfumes. Além disso, quero os papéis de propriedade de
Creóla.
Abandonou o quarto de Rómulo sem aguardar uma resposta. Creóla o guiou para
fora. Toparam-se com Ñuque no último pátio. Pela atitude da Índia, Artemio
deduziu que não se tratava de um encontro casual. A mulher deu um passo
adiante e elevou o queixo para olhá-lo aos olhos.
—Creóla, vá para seu quarto —ordenou, e a escrava se perdeu na escuridão.
Artemio viu como a mão pequena, cheia de veias e enrugada de Ñuque se
aproximava de seu rosto, e se manteve suspensa, sujeitando o fôlego. A anciã lhe
acariciou a testa, deslizou a ponta dos dedos por sua têmpora e os afastou antes
de alcançar o fio de sua mandíbula. Na escuridão, seus olhos dissolvidos e quase
perdidos nas dobras das pálpebras adquiriram um brilho incomum ao encher-se
de lágrimas. Pareceram eternizá-los segundos em silêncio. Quando Ñuque ao fim
falou, o fez na língua de seus antepassados.
—Sei o que Rómulo fez aos teus. Sei tudo, Artemio. E só o Senhor conhece a

245
profundidade de minha dor. Sofro por ti, por sua família e por meu Rómulo, posto
que ele também padeceu e viveu arrasado pela culpa durante vinte anos.
A figura de Ñuque se tornou imprecisa, e uma opressão no pescoço obrigou a
Fúria a tragar repetidas vezes.
—Sei que clama por vingança. E é justo. Mas Rafaela, minha Rafaela... devolva-
me isso Artemio.
—Não posso, Quelupén —replicou Fúria, na mesma língua de Ñuque.
—A amas?
—Mais que a minha vida.
—Jure-me que não lhe fará mal.
—Juro-o —disse, depressa.
—É tudo para ela.
—Rafaela me odeia, Quelupén.
—Não, meu filho, não te odeia. Ama-te como poucas vezes vi a uma mulher amar
a um homem —Ñuque advertiu o efeito de sua declaração na expressão do
gaúcho—. Embora a tem feito zangar, e muito. Rompeu-lhe o coração quando a
abandonou em La Larga e quase se deixou morrer de tristeza, porque o médico
ruim poderá dizer que se tratou de uma infecção aos pulmões, mas eu sei que
quase morre por sua causa.
—Merda —sussurrou, com voz quebrada, e se pressionou os olhos com a ponta
dos dedos.
—Rafaela é orgulhosa e teimosa —admitiu Ñuque—, e também rancorosa. Mas
sei que te perdoará porque, cansada da hipocrisia desta família, decidiu ser fiel a
seu coração, e aí só há amor para ti. Artemio, meu filho, eu ando de mais neste
mundo. Sou velha como Matusalém e já estou cansada de viver. Por isso, me
prometa que me trará para minha Rafaela um destes dias para que me dela
despeça.
—Prometo-o, Quelupén.
Nesse momento, a palmos de Rafaela, enquanto a observava banhar-se dentro da
bacia, Artemio Fúria se arrependeu da promessa. Não queria levar a de novo à
cidade. Queria-a só para ele. Temia compartilhá-la, que a arrebatassem.
Necessitavam tempo a sós para recuperar o amor vivido em La Larga. Artemio a
reconquistaria, Ñuque lhe tinha dado esperanças. Agradou-o encontrá-la tão
composta. Tinha temido achá-la entrincheirada em uma habitação, com aspecto
sujo, gasto, em atitude desenquadrada, vociferando impropérios. Em troca,
parecia tranqüila, e sua feminilidade parecia ter contagiado à casa, a qual tinha
sido limpeza e ordenada a consciência.
—É muito trabalhadora sua Rafaela, Pichín-Ülleún —lhe tinha informado Anuillán
minutos antes—. Passou todo tempo limpando e arrumando a desordem da casa
grande.
Sorriu, satisfeito de sua mulher. A decisão de partir e deixá-la só no campo de
Morón tinha resultado sensata. Rafaela de precisava tempo para acalmar-se e
adaptar-se à nova situação. Sua presença a teria irritado, porque, por orgulho,
não teria demonstrado que, em realidade, agradava-lhe viver ali.
Rafaela levantou a cabeça quando uma corrente fria lhe arrepiou a pele das
pernas. Artemio Fúria se achava sob o dintel. Olhou-o sem piscar, como se tivesse
cansado em um encantamento, e não se deu conta de que soltou a esponja, que
desapareceu sob a água. Pensou que, com a barba enchente e o cabelo solto sobre

246
os ombros, o senhor Fúria se parecia com o Jesus Cristo. Na paleta46 de dourados
e marrons que compunham seu rosto, os olhos ressaltavam como gemas turquesa
e despediam uma energia poderosa, quão mesmo sua figura. O homem quase
roçava a viga de madeira com alto da cabeça e seus ombros ocupavam o largo da
porta. Viu-o transpor a soleira e fechar detrás de si. Saltou fora da bacia e
arrebatou a toalha de uma cadeira.
—Saia! —articulou com muita dificuldade, enquanto se envolvia—. Vá-se!
O gaúcho avançava em sua direção, em tanto ela, sujeitando a toalha com mãos
trementes, caminhava para trás. De repente, o ar do quarto se tornou gélido, e não
podia deter o bater de seus dentes para falar e insultar. O silêncio em que Fúria se
movia a aterrava; a maldade de seu olhar e a dureza de seu gesto lhe drenavam o
vigor. Ao chocar contra o vidro da janela, soltou um gemido; estava gelado.
Fúria a envolveu em seus braços, e o calor que despediu seu objeto de lã operou
como um narcótico nela. Apertou-se contra seu peito, fechou os olhos e suspirou.
—Venha, está gelado—o escutou queixar-se, e lhe permitiu que a conduzisse
perto do braseiro.
Rafaela, que mantinha os olhos fechados, adivinhava, pelos movimentos torpes
de Fúria, que atiçava os carvões e que logo tirou o poncho com uma mão para
colocá-lo sobre suas costas. Dizia-se: "Devo me zangar com ele. Devo me mostrar
ultrajada", e permanecer inativa, absorvendo a vitalidade do corpo do gaúcho,
esperando recuperar a compostura. Afundou o nariz em seu colete de pano, e a
familiaridade do aroma —de suor, a fumaça, a cavalo, a cigarro— a levou a pensar
nos momentos compartilhados em La Larga.
Ao notar que Fúria se apartava e o frio voltava, levantou as pálpebras com
chateio —estava tão a gosto assim—. Despertou quando o viu ajoelhar-se frente a
ela. O homem apartou o poncho, logo a toalha, até chegar a seu ventre nu. Rafaela
o observava sem soltar o fôlego, absorvida pela intensidade do olhar fixo em sua
barriga logo que avultada. Ele se tinha congelado nessa posição. Uma ardência a
percorreu, completa, quando as mãos calosas de lhe contiveram a curva do ventre
e seus lábios rachados lhe beijaram o umbigo.
Essa veneração não estava dirigida a ela a não ser ao filho de ambos. Recordou
que a tinha raptado ao pé do altar porque estava grávida, não porque a amasse.
Lembrou-se também da vergonha a que a tinha submetido na pensão de dona
Clara, quando a expôs a seu pai para vingar-se da humilhação sofrida em La
Larga, e se arrependeu de haver-se alegrado ante sua chegada iminente, e de lhe
haver preparado suas comidas favoritas, e de haver-se banhado para recebê-lo
envolta nos aromas que o fascinavam. Arrependeu-se também de ter pensado que
poderia viver para sempre nessas terras. Não sentia raiva nem rancor a não ser
tristeza. Fúria seguia ajoelhado, com o ouvido sobre seu ventre, e um ligeiro
sorriso nos lábios, e ela não reunia a vontade para apartá-lo.
Alguém bateu na porta. Artemio resmungou um insulto e ficou de pé.
—O que acontece? —perguntou de mau modo, e sua voz trovejou na paz do
quarto.
—Peñi —falou Alihuen—, tenho que te falar.
—Está bem. Já vou —A Rafaela, ordenou-lhe—: Vista-se. Espero-a na sala.

46
Refere-se à peça utilizada pelos pintores.

247
Vestiu-se depressa, confundida por emoções contraditórias e pelas vontades de
chorar. Dobrou o poncho de Fúria com esmero e ensaiou os movimentos e a careta
indolente aos que jogaria mão para devolver-lhe. Na sala se esqueceu do poncho,
que terminou em mãos de Alihuen, ao topar-se com Creóla e Mimita e uma grande
quantidade de canastos e arcas. Ficou a chorar, enquanto as abraçava e as
beijava. Atraída pelo ímpeto do olhar de Fúria, girou a cabeça e o descobriu
contemplando-a com o gesto de quem realizou uma boa ação e aguarda seu
prêmio. Como a embrulhava esse gaúcho! O que pretendia dela? Devolveu-lhe o
olhar sem desvelar seus sentimentos. Desejava machucá-lo, confundi-lo, humilhá-
lo, mas não contava com esse poder. O gaúcho Fúria era inalcançável.
Depois de levar Creóla e Mimita para seus quartos, Rafaela saiu da casa e partiu
à cozinha para preparar o jantar. Millao e Alihuen a ajudariam a pôr a mesa. Não
havia toalha, quase nada de baixela, não obstante, ela e as moças compuseram
um formoso quadro com umas pequenos toalhas de mesa tecidas por Anuillán,
uns guardanapos brancos e um arranjo de flores silvestres. Rafaela estudou pela
extremidade do olho a reação de Fúria ante a visão da mesa. O homem ficou
quieto, com a mão no respaldo da cadeira, enquanto estudava os detalhes. Tomou
assento na cabeceira. Parecia incômodo e fora de local; de igual modo, quando
Creóla lhe pôs um prato cheio de ajiaco, aspirou profundamente, sorriu e se
lançou a comer.
—Está muito bom, Alihuen —disse, com a boca cheia, enquanto assinalava o
guisado com a colher de osso esculpida pelo Belisario.
—Sim, muito bom —coincidiram os homens de Fúria.
—Preparou-o Rafaela, peñi —informou Alihuen—. Como ñuqué lhe disse que era
sua comida favorita...
A Rafaela deu a impressão de que os comensais cessavam de mastigar. No
silêncio que sobreveio temeu que escutassem os batimentos de seu coração.
Manteve a vista sobre o prato para ocultar o rosto vermelho.
—Você não come, Rafaela? —escutou perguntar a Fúria, e, sem lhe responder,
afundou a colher no guisado de peludo e pimentões e a levou a boca. Poderia ser
rayos47 ou ambrósia48, ela não saberia dizer. Mastigou e tragou de modo mecânico.
Passados uns segundos, a normalidade se restabeleceu na mesa.
Os homens de Fúria e as irmãs de Calvú Manque falavam todos juntos, e a
Rafaela chocava. As normas de educação ditavam que as comidas se faziam em
silêncio. Tampouco tinham rezado antes de iniciar o jantar, e as maneiras desses
patrícios deixavam muito que desejar. Não usavam os guardanapos e bebiam com
comida na boca. Apesar de que cada um contava com uma colher, a maioria a
tinha descartado; em troca, carregavam de guisado o fio do facão e, ao introduzi-lo
na boca, faziam toda classe de ruídos porque estava quente.
—O que lhe passa, Rafaela? —interessou-se Artemio, com uma nota irônica—.
Não gosta de comer com patrícios mal educados?
—É que vós —atravessou Creóla— falam enquanto comem. E isso não é certo,
amo Fúria.
—Eu não sou seu amo, Creóla, nem o de ninguém. E não quero que sob meu teto

47
Comida típica espanhola.
48
Tipo de doce, conhecido como o manjar dos deuses.

248
haja escravos. Assim amanhã mesmo irei ao juiz de paz de Morón e lhe pedirei a
papelada para sua libertação.
Rafaela levantou a vista e o olhou, boquiaberta.
—Eu sou de minha ama Rafaela! —queixou-se a escrava—. Não quero me apartar
dela!
—Fica com ela ou vá-te. Mas livre. Nada de escravos em minhas terras.
—Como se atreve? —balbuciou Rafaela, enquanto ficava de pé.
Arrojou o guardanapo ao lado do prato e correu para seu quarto. Fúria levou as
mãos ao rosto e exalou aborrecido. Moveu a cadeira para trás, e as pernas
chiaram contra o piso de tijolos, uma nota discordante no silêncio sepulcral. Ficou
de pé e, depois de limpar o fio do facão no guardanapo, calçou no atirador.
—Comam mais —disse—. Já volto.
Saiu da sala sem problemas e entrou na zona das habitações. Entreabriu a porta
do dormitório de Rafaela e a encontrou deitada de barriga para baixo na cama,
chorando. Tirou-se o facão, as boleadoras e o atirador, e se recostou junto a ela.
—Vá-se! —ouviu-a dizer com voz fanhosa.
—Não me movo daqui —replicou, com paciência, e a envolveu em seus braços e
afundou o rosto em seu cabelo—. Não chore, Rafaela.
—Homem cruel. Por que me odeia tanto?
—O que diz? Não a odeio —a Fúria o comoveu a pena de Rafaela e entendeu que
não estava zangada a não ser triste—. Não a odeio —repetiu, e ajustou o abraço.
—Sim, odeia-me. Humilhou-me frente a meu pai e de sua amante.
—Amante?
—A senhorita Buquê!
—Albana não é minha amante. É minha amiga. E você melhor não me irritar,
Rafaela, porque ainda me esqueci que ia casar com o burro do seu primo...
—Porque é um homem de valor! Em troca você... Você.. —Rompeu a chorar de
novo e ocultou o rosto no travesseiro—. Quero voltar com meus! Quero voltar para
minha casa! Não quero que tire a Creóla!
—Não o tiro a Creóla. Mas não a quero como escrava em minha casa.
—Então, deixe retornar a Buenos Aires! Para que me quer aqui? Já destruiu meu
bom nome e o de minha família. Já se vingou pelo que meu pai lhe fez em La
Larga. Que mais pretende? Ver-me morta?
Obrigou-a a voltar-se com um giro brusco e a manteve imóvel contra o colchão.
—Não volta a dizer que a quero ver morta. Não o volta a faz porque então saberá
por que me chamam Fúria.
Rafaela tinha interrompido o pranto, e só se ouvia sua respiração congestionada.
Na escuridão do dormitório, os olhos de Artemio tinham adotado matizes metálicos
e brilhantes. Ele também estava agitado. A raiva o agitava. Seus seios se
entrechocavam.
—Não volta a dizer que a quero ver morta —repetiu, e ficou olhando-a e
pensando em que só Deus sabia quanto a tinha sentido falta de todos esses
meses, quanto tinha padecido ao sabê-la doente, quanto tinha fantasiado fazendo-
a sua, quanto a tinha desejado em meio da nuvem de ódio e sede de vingança que
não resultava suficiente para matar o amor que lhe inspirava. Inclinou a cabeça e
a beijou no pescoço, feliz de tê-la em seus domínios e sob seu peso.
—Não quero que me toque. Vá-se com a senhorita Buquê!
—Não te rocei nenhum dente desde a última vez que fizemos amor, minha
Rafaela. Recorda da última vez que nos amamos em La Larga?

249
—Cale-se! —exigiu-lhe em um sussurro.
—O recorda?
—Não! —mentiu.
—Eu, sim. Você estava furiosa, como agora, porque eu havia olhando a miss
Melody com olhos de peixe. Depois perdeu a birra e me andou pedindo que lhe
fizesse as coisas que você gosta.
—Cale-se, desgraçado!
Artemio se pôs-se a rir. Bateram na porta, e a risada se esfumou.
—Merda.
—Artemio! Sou eu, peñi —Calvú Manque falou do outro lado da porta—. O rodeio
está inquieto e Quinto anda arranhando a porta para sair. Tem um jaguar
rondando o gado.
—Já vou —rugiu Fúria—. volto mais tarde —disse, e, sem lhe dar tempo a
replicar, saiu de em cima de Rafaela.
Observou-o da cama colocar o atirador, o facão e as boleadoras, e sair do quarto
sem jogar uma olhada atrás. O vazio que seguiu lhe provocou medo porque lhe
revelou uma verdade a que ela se fechava: sua vida carecia de sentido sem
Artemio Fúria.
***
Artemio matou aos dois jaguares, que tinham ferido gravemente a uma vaca e
destroçado a seu bezerro. Esfolariam-os ao dia seguinte, e as mulheres se
ocupariam de secar suas peles para confeccionar duas toalhas de mesa que
entregaria a Rafaela. Vibrava de antecipação já que sabia que a surpreenderia com
o custoso presente.
Estava sujo e cheirava mau. Disse-se que deveria dormir no rancho de seu
ñuqué e não incomodá-la por essa noite. Já a tinha feito muita raiva. Sua
natureza egoísta se impôs e não voltou a pensar no bem-estar de Rafaela enquanto
se dirigia para seu quarto. Encontrou-a adormecida. Despiu-se sem fazer ruído e
lavou o rosto, o pescoço, as axilas e o peito com uma pastilha de sabão de vetiver49
e a água da bacia, que já estava fria e lhe arrepiou a pele. Deslizou-se nu sob as
mantas e exalou longamente quando sentiu o calor do leito e o perfume de
Rafaela. Apesar de estar exausto, a excitação o mantinha acordado. Custava-lhe
acreditar que Rafaela dormisse a seu lado, como sua esposa. Uma parte sensata o
insistiu a não despertá-la; outra luxuriosa o obrigou a lhe passar os braços pela
cintura e acomodá-la para que ficasse de lado, frente a ele, seus lábios muito
próximos. Viu-a queixar-se em sonhos e agitar-se em seu abraço. Esperou com
ânsias a que levantasse as pálpebras. Ela pestanejou várias vezes até que seus
olhos se fixaram nos dele.
Os braços de Fúria se ajustavam a seu corpo como correias. Ficou suspensa,
perplexa sob o feitiço de seu olhar. Estava cansada de especular e de perguntar-se
o que significava para ele. Tratou de reter as lágrimas, sem remédio. Escorregaram
por seu rosto até cair no lençol.
—Outra vez vai chorar?
—Você é muito cruel comigo. Destruiu o amor que lhe tinha.
—Não me diga isso. Mata-me quando chora. Mata-me quando me diz que já não
me quer.

49
Planta aromática.

250
—Não o quero! Você me machucou muito. Já não o quero.
Artemio a abraçou com paixão, obrigando-a a ocultar o rosto em seu torso
peludo. Beijou-a na cabeça, na orelha, no rosto.
—Rafaela!
—Não —murmurou logo que—. Vá-se. Não confio em você.
—Na Larga se entregava para mim e se deixava amar por este gaúcho bruto,
você, minha Rafaela das flores, minha senhorita decente e refinada, e fomos
felizes.
—Mas depois, tudo mudou. Por sua culpa —apertou os olhos, como se desejasse
afugentar uma imagem—. Não consigo esquecer aquela noite na pensão de...
—Esqueça-o! Fui um tolo, estava louco. Você é minha vida, Rafaela.
Ficou olhando-o, suspirosa como uma menina a causa do soluço, com vontades
de lhe perguntar por que a tinha desprezado em La Larga para reclamá-la meses
depois. Só pelo menino? Doía-lhe a verdade, temia-lhe à resposta.
—Rafaela, Minha Rafaela. Minha Rafaela —pronunciou ele, com uma voz que
pressagiava uma mudança em seu comportamento.
E que mais dava se a conservava a seu lado pelo menino quando ela o tinha
saudades em que pese a tudo ? Não queria imaginar o que ocorreria uma vez que
desse a luz.
—Senhor Fúria.. —disse, e ele, ao beijá-la no pescoço de modo selvagem, cortou-
lhe a fala.
Rafaela reconheceu o instante em que ele abandonou as cortesias e se dispôs a
tomá-la. Sentiu a mudança em suas mãos, que se moveram por suas costas, para
baixo.
—Diga-me que ainda me quer —lhe suplicou ao ouvido, tremendo de desejo—.
Diga-me que não deixou de desejar-me como em La Larga.
—Não —murmurou, e fechou os olhos e apertou os lábios para apanhar um
gemido quando percebeu que os dedos de Fúria vagavam por suas nádegas, e que
apareciam um momento depois sobre seus seios para acariciá-los através do
tecido da camisola.
Não era justo, ele usava o poder que suas mãos exerciam sobre ela. Cansada,
triste e sedenta desse homem, ficou mansa e não ofereceu resistência quando a
despiu. Que ele se desmamasse e começasse a gemer só com o contato de suas
peles nuas, venceu a última barreira. Jogou os braços ao pescoço e começou a
friccionar seu ventre contra a ereção dele e a lhe repetir seu nome ao ouvido. Ela
também tinha poder sobre ele. Sentiu-o contorsionarse e o ouviu ofegar como se
padecesse uma dor aguda quando lhe manuseou o pênis para logo lhe conter os
testículo com carícias até ficarem pesados e duros. A boca de Fúria não achava
paz, queria devorá-la toda, passava de seu rosto a seus mamilos, a seu ventre, a
seu umbigo, a suas partes íntimas e aí ficava, saboreando-a e chupando-a com a
mesma fruição com que tinha comido o ajiaco na hora do jantar. Estava voltando-
a louca. As mantas tinham cansado ao chão, e seus corpos nus, alheios ao frio da
o quarto, moviam-se em liberdade.
—Senhor Fúria, por favor —a espera estava transtornando-a, o batimento do
coração entre suas pernas clamava por alívio—. Por favor.
—O que, minha Rafaela? —exigiu-lhe—. Diga-me isso.
Rafaela se molhou os lábios com a língua, e ele a apanhou para sugar-lhe Ela
apartou o rosto, em busca de ar.
—Por favor, Artemio —suplicou, desesperada—. O necessito.

251
—Diga-me que quer meu membro50 dentro de você!
Rafaela, com a boca entreaberta e os olhos fechados, incapaz de falar, assentiu
sobre o travesseiro e o convidou lhe afundando as unhas nos glúteos,
pressionando-o contra seu sexo. Artemio lançou um gemido rouco e a penetrou.
Resultou paradoxal que em um momento onde a união de seus corpos parecia
produzir faíscas, Rafaela achasse a paz. "Pertenço a este homem até a morte. Para
bem ou para mau. E que Deus me ajude”.

50
A autora menciona verga.

252
Capítulo XXI

O juramento

Aarón Romano resmungou um insulto ao ver o Gabino entrar em seu escritório


localizado na planta alta do Conselho. Logo que obtido sua nomeação como
intendente de Polícia, tinha-lhe mandado dizer que não aparecesse pela cidade,
que ele iria vê-lo em Hueco de las Cabecitas de vez enquanto. Não podia permitir-
se que se associasse o nome do intendente de Polícia com Gabino, um patrício de
péssimo traçado, maus antecedentes, que se ocupava de regentear um bordel e
uma casa de jogo clandestino. Vários na Junta desejavam sua cabeça, em especial
Moreno, a quem lhe tinha declarado a guerra depois de este lhe tinha impedido de
liberar ordem de captura contra o gaúcho Fúria.
—O que faz aqui, Gabino? Ordenei-te não te mover do bordel.
—É que soube o que aconteceu com seu negócio, o dia de suas bodas, na igreja
de São Francisco.
A ira estalou dentro de Aarón. Tinha padecido suficiente humilhação para que
um patrício de merda se apresentasse em seu escritório e removesse a ferida.
—E para isso veio até aqui, filho da puta! —Gabino se tornou para trás—. Para
me dar suas condolências, patrício pulgoso?
—Não, patrão, nada disso. Soube que foi esse diabo do Fúria o que roubou sua
noiva. Eu venho porque eu sei ande se esconde Fúria. Eu sei onde está sua
prometia.
Aarón apartou a vista de Gabino. "Deus bendito!", exclamou para si, "Será
verdade que este dom ninguém me guiará até Rafaela?" Por mais que oferecia
recompensas, não tinha conseguido uma pista certeira. Os homens da campanha
se fecharam como tatus; ninguém soltava nada, "Ninguém abrirá o pico, dom
Aarón", tinha-lhe advertido um paroquiano da mercearia que freqüentava no
Baixo. "Cortarão a língua antes de trair ao gaúcho Fúria." Embora em um
princípio, enlouquecido de raiva, pensou em capturar a algum e torturá-lo nas
masmorras do Conselho até lhe arrancar onde se achava Fúria, ao meditá-lo,
desistiu. As idéias de justiça e de igualdade nascidas da Revolução da França se
achavam presentes nos discursos de vários dos integrantes da Junta, e a prisão
sem causa justificada e a tortura já não eram bem vistas.
—Aonde se esconde esse bastardo?
—Ele tem umas terras na Garganta de Morón. Eu sei ande fica porque fui
algumas vezes pastorear a fazenda.
—Por que pensa que minha prima Rafaela está ali?
Gabino, espremendo a boina, sacudiu-se de ombros.
—É o que me parece —admitiu.
Aarón meditou que não tinha nada que perder.
—Muito bem —expressou—. Irá a esse lugar em Morón e rondará a zona até
confirmar se minha prima está ali. Uma vez que confirme sua presença, idearemos
um plano para resgatá-la. Mas não te atreva a mover um dedo sem minha

253
autorização. Fui claro?
—Sim, patrão.
***
A vida ao lado de um homem como Artemio Fúria não resultava fácil. Por
exemplo, a Rafaela chateava que se mostrasse hospitaleiro com quanto estranho
chegasse a suas terras e pedisse asilo. O gaúcho alegava que, assim como ele
brindava um teto e comida por uma ou duas noites, também o brindavam a ele e a
seus homens quando vagavam pela campanha. "É costume entre minha gente", e
com esse argumento anelou a questão, fazendo-a sentir alheia, marginada e
egoísta. De todas formas, embora se mostrasse gentil e generoso com os
forasteiros, Rafaela notava que colocava o facão sob o travesseiro e dormia
obstinado a ela como se temesse que a tirassem durante a noite. Além disso,
obrigava Creóla a travar a porta do dormitório que compartilhava com Mimita no
outro extremo da galeria.
A Rafaela tampouco gostava dos visitantes porque traziam notícias do mundo
exterior e alteravam a qualidade de intemporalidade da vida que levavam e a falta
de referência geográfica dessas terras. Tinha a impressão de que o tempo se deteve
e de que Buenos Aires, com sua família e seus problemas, pertenciam a outro
mundo. Esse campo na Garganta de Morón se achava suspenso em uma
dimensão onde a embargava a paz e o contente, que os forasteiros destruíam
quando mencionavam que Cisneros tinha enviado aviso a Córdoba solicitando o
apoio militar a Santiago de Liniers para combater à nova Junta; que se preparava
um exército de quinhentos soldados ao mando do coronel Ortiz de Ocampo para
partir às províncias; que em 15 de junho, em segredo, os membros da Real
Audiência tinham jurado fidelidade ao Conselho de Regência na Espanha, o qual,
ao sair à luz, provocou a reação da Junta, que enviou Castelli e Freiem a deter
ditos funcionários e também Cisneros e a embarcá-los em um casco de navio
inglês que os conduziria às Ilhas Canarias. Fúria mostrava interesse e realizava
perguntas.
Rafaela ficava exasperada pelo fato dos homens de Fúria não respeitarem sua
intimidade e entravam e saíam da casa grande como se tratasse de uma
mercearia. Suas boas maneiras se limitavam a tirar o chapéu ou o lenço e inclinar
a cabeça em sinal de saudação e, aqueles que as usassem, a tirá-las esporas antes
de pôr pé dentro; julgava-se uma grande falta de urbanidade ingressar com as
esporas já que a rodela danificava os pisos. Rafaela dizia a Fúria que estava
disposta a tolerar as más maneiras de seus homens quando compartilhavam uma
comida ocasional, mas que não se acostumava à presença súbita e inesperada
desses patrícios na sala, a cozinha, o comilão ou nos interiores. Artemio
desprezava sua queixa. "Eles são minha gente e minha casa é sua casa", esgrimia.
Uma manhã, entretanto, ao experimentar em carne própria o que Rafaela tentava
lhe explicar, trocou de opinião.
Como de costume, apareceu ao redor das onze da manhã na cozinha para
reclamar seu café da manhã. Tratava-se de uma jornada especialmente gélida,
com um vento sul que cortava a pele. Rafaela viu suas as mãos machucadas e os
lábios ressecados, com finas linhas de sangue.
—Vá ao comilão. Em seguida lhe servirei o café da manhã e lhe curarei essas
feridas.
Encontrou-o sentado à cabeceira, tão fora de local como um cavalo dentro de um
salão de baile. Olhava as palmas das mãos e levantava a pele das bolhas

254
arrebentadas. Distraiu-o a vista da comida. Como de costume, estava esfomeado.
Rafaela sorveu um chá de hortelã enquanto Fúria comia pamonha e carne
assada e bebia mate cevado por Creóla. Agradavam-lhe esses momentos que
compartilhavam pela manhã. Ele desertava a sua gente, que tomava o café da
manhã perto dos currais, e voltava para a casa para estar com ela.
Principalmente, Fúria comia em silêncio, o olhar perdido, absorvido em suas
questões. Às vezes, interessava-se por suas coisas, contava-lhe uma anedota ou
brincava com Mimita.
Terminado o café da manhã, o gaúcho adotou uma atitude total quando Rafaela
se dispôs a tratá-lo. "Devem estar lhe doendo muito as mãos para mostrar-se tão
dócil", deduziu, e não se atreveu a mencionar-lhe pois tinha aprendido que a Fúria
não gostava de receber ordens nem que lhe descobrissem debilidades. Guardou-se
de comentar a respeito da insensatez de enlaçar touros com a fortaleza de vinte
homens sem luvas de couro. Aproximou-se da cabeceira e lhe pediu que girasse
sobre a cadeira e estendesse as mãos. Desinfetou-as com azeite de tomilho, cobriu-
as com seiva de aloe e as enfaixou com retalhos limpos de lençóis, deixando os
dedos livres. Flagro-o observando-a com um sorriso que a fez acordar da paixão
com que a havia possuído pela madrugada. Sentiu-se incômoda, pois, embora se
amassem na escuridão da noite e dentro dos limites do quarto, à luz do dia
desdobravam um trato distante, respeitoso e frio, como se Rafaela ainda não lhe
perdoasse o rapto ao pé do altar.
Pelo bem de Mimita, que brincava junto a Fúria, Rafaela tomou com naturalidade
que o gaúcho a localizasse entre suas pernas e lhe apertasse os quadris com os
joelhos até em cima dos pés. Teria perdido o equilíbrio se não sujeitasse a seus
ombros. Prosseguiu os cuidados com ar indiferente, enquanto Fúria lhe cheirava o
pescoço. Tinha terminado por aceitar o azeite essencial de rosas e fabricar o
perfume que a ele seduzia, que ela tinha batizado Amor.
Limpou-lhe a pele morta dos lábios e os restos de sangue com um gênero
embebido em água de hamamelis. Carregou o dedo com a pomada que tinha sabor
de baunilha e a lubrificou nos lábios do gaúcho. Sentiu sua ereção contra as
pernas. Levantou a vista imediatamente e descobriu que os olhos turquesa se
tornaram negros e exigentes.
—Recorda nosso primeiro beijo embaixo da árvore em La Larga? —sussurrou-lhe.
—Não sorria —o admoestou Rafaela—. Voltará a parti-los lábios.
—Creóla —pronunciou Fúria—, vai para a cozinha. E leve Mimita.
—Sim, dom Fúria.
Ao ficar sozinhos, ordenou-lhe:
—Abra o corpete para eu ver seus seios.
—Nem em sonho, senhor Fúria.
—Abra-o ou o faço com o guampudo51 —disse, e cabeceou em direção à mesa,
onde descansava o facão.
Rafaela desatou as cintas e as fez deslizar por seus ombros. Ainda a cobria a
combinação, de um algodão fino que se aderia a seus mamilos. Não era a causa do
frio que os deixasse eretos, dado que um braseiro bem alimentado mantinha
cálida a estadia.
Fúria correu as mãos pelos ombros e arrastou as tiras da combinação até lhe

51
Facão.

255
despir os seios. Contemplou-os com a seriedade que lhe tinha visto empregar
quando estudava as feridas de um animal ou os dentes de um cavalo.
—Cada vez estão maiores, como as tetas de uma vaca sem ordenhar.
—Isso não é muito adulador, senhor Fúria.
—Estão cheios de leite para meu filho.
Massageou-lhe os seios com a face sem barbear. Passava-as uma e outra vez,
inclusive às vezes roçava os mamilos com o queixo, onde a barba era mais espessa
e dura. A excitação de Rafaela não lhe impedia de escutar como se transtornava a
respiração de Fúria. Percebia o calor e a umidade de suas mãos abertas, que lhe
ocupavam as costas e a sujeitavam. Com a brutalidade crescente de suas carícias,
os seios de Rafaela ricocheteavam, e o puxão doloroso se diluía no prazer que lhe
proporcionava essa pele áspera sobre a dela. Observou a seu amante e observou
seus seios, avermelhados e inchados. De modo instintivo, subiu as mãos pela
nuca de Fúria e enredou os dedos em seu cabelo loiro. O grunhiu ao sentir a
pressão. Rafaela necessitava que os lábios desse homem se fechassem em torno de
seus mamilos e acalmassem a ansiedade.
—Chupe-me —se escutou sussurrar.
Fúria pegou a pequena lata de pomada, engordurou os dedos e lhe lubrificou a
ponta dos seios. Rafaela gemeu e se arqueou para oferecer-lhe a língua de Artemio
envolveu e sugou o mamilo de seu seio direito, e, quando passou ao outro, como
presa de uma convulsão, Rafaela se fechou sobre ele e lhe envolveu a cabeça.
—Ouça , peñi! Acaba de chegar a ponta… —Calvú Manque se congelou no
ingresso da sala—. Epa!
—Merda! —resmungou Fúria, ao tempo que ficava em pé de um salto e se
colocava de costas a seu amigo para ocultar a nudez de Rafaela—. Fora daqui!
Calvú Manque saiu disparado. Fúria a manteve abraçada e pega a seu corpo
para não confrontar a condenação de seus olhos nem escutar as recriminações
que lhe soltaria. Foi ela que rompeu o abraço. Ele se apressou a prometer:
—Direi a minha gente que não volte a entrar sem dar aviso. Juro-o, Rafaela, mas
somente se me deixar duro.
—Que vergonha, Artemio! —exclamou, mortificada.
—Não, não, vergonha nenhuma, minha Rafaela. Vergonha nenhuma.
A promessa de Fúria se cumpriu. Seus homens não voltaram a pôr o pé sequer
na cozinha, que se achava separada da casa, sem aplaudir, bater na porta ou
vociferar "Ave Maria puríssima".
Às vezes Fúria parecia inquieto, seu humor mudava de modo súbito, e Rafaela se
perguntava quanto tempo toleraria essa vida sedentária. Tratava de preparar-se
para o momento em que desdobrasse as asas e se fora a vagabundear pela
campanha.
Como não queria atormentar-se refletindo sobre o futuro, ocupava seu dia com
todo tipo de atividades. Anuillán e suas filhas se converteram em boas amigas, e
assim como ela lhes ensinava a preparar xaropes, tônicos e cosméticos, as índias
a introduziram na arte de trabalhar o couro e o tear. Aprendeu a confeccionar
uma cigarreira estirando um couro molhado sobre um molde provido por Anuillán
e sujeito com tatos a estacas cravadas na terra, pelo que obteve um pequeno e
primoroso cofre de couro, que deu de presente a Mimita para que guardasse seus
brinquedos —aumentavam diariamente graças à habilidade de Belisario na talha
do osso—; aprendeu a tingir lã com pó de cochinilha e a fixar a cor vermelha com
alumbre ou bórax; também a tecê-la, e o primeiro objeto foi um colete para Fúria,

256
bastante mal confeccionado. Surpreendeu-o ao entregar-lhe uma noite, depois de
se amarem, e ele, comovido, limitou-se a abraçá-la e a beijá-la na têmpora. Com
Anuillán lhe explicou que se acostumava entre as mulheres dos gaúchos a lhes
confeccionar a guayaca, a bolsa de couro com divisões internas onde guardavam
os equipamentos para fumar, Rafaela teimou em fabricar uma para Artemio, para
o qual mandou comprar à mercearia de Morón um pedaço de pelica que lhe
custou grande parte do economizado pela venda de seus perfumes no da Bernarda
de Lezica, embora o gasto tivesse valido a pena, pois o semblante de Fúria se
iluminou o dia em que a entregou. "Que couro tão suave!", exclamou,
entusiasmado, mas quando lhe ofereceu lhe perfumar o tabaco, ele declarou: "Isso
não é coisa de homem", e Rafaela pensou em Aarón.
Desfrutava especialmente das tardes não muito frias em que Fúria mandava lhe
selar uma égua mansa e, com Mimita sobre o lombo de Cajetilla , saíam os três a
percorrer a propriedade; se Artemio terminava cedo suas tarefas, iam até o
povoado provisões. Em uma oportunidade, Rafaela lhe pediu permissão para
entrar na igreja de Morón, conhecida como de Nossa Senhora da Boa Viagem.
Fazia semanas que não ouvia missa nem realizava nenhuma oração.
Havia pouca gente no interior, só algumas devotas rezando uma novena, as
quais, ao vê-la dirigir-se para o altar, benzeram-se e comentaram em voz alta: "É a
concubina do gaúcho Fúria". A Rafaela lhe dispararam as pulsações e ficou
paralisada pela vergonha. "A concubina do gaúcho Fúria", repetiu. "A concubina do
gaúcho Fúria," Possivelmente se deveu ao respeito com que as mulheres
pronunciaram o nome de Artemio, que a vergonha cedeu para dar passo a um
sentimento de orgulho que colocou um sorriso em seus lábios. Fez o sinal da cruz
se, mas não rezou. Passeou o olhar pelo templo até fixá-la na imagem da Virgem
Maria. Não experimentava paz a não ser uma vontade louca de sair correndo e
jogar-se nos braços de seu amado. Apareceu no átrio sorrindo, e o gaúcho, ao vê-
la, levantou as sobrancelhas, ensaiando um gesto infantil de confusão. Então,
Rafaela caiu em uma gargalhada.
***
—José Luis —disse Gabino, e falava de um de seus homens— pediu para fazer
ronda no campo que Fúria tem em Morón, e ficou dois dias, patrão, para ver se
miss Rafaela andava por lá.
—E? —interessou-se Aarón.
—Por lá anda, patrão. A vêem pouco, porque o gaúcho Fúria não a deixa
mostrar-se aos forasteiros, mas lá estava.
Tinha que recuperar Rafaela, o único meio para fazer-se com a fortuna de seu
tio. Frustrava-o encontrá-lo tão tranqüilo apesar de que os espanhóis estavam
tendo um tempo ruim com nomeação da Junta. À proposta de pôr os bens a seu
nome para evitar a confisco, Rómulo desprezou a possibilidade de que o novo
governo o prejudicasse e até declarou que resultava provável que lhe devolvessem
os quarenta e cinco mil pesos de moeda forte e as cento e vinte onças de ouro
expropriados depois da passeata do ano anterior. Embora a notícia o tenha
inquieta do quem manteria entendimentos seu tio no novo governo para mostrar-
se tão bojudo?—, sua cobiça cresceu.
—Vai com um grupo de homens —ordenou ao Gabino—, e traz minha prometida.
Responderá com sua vida se algo mau chegar a lhe ocorrer.
—Patrão, há duas índias, muito boas, irmãs do índio Calvú Manque, amigo da
Fúria. Andariam bem em seu bordel.

257
—As traga se isso não comprometer seu propósito principal: recuperar a minha
prometida.
Dois dias mais tarde, Gabino e quatro cavaleiros aguardavam, ocultos, o
momento em que Rafaela, Creóla, Millao e Alihuen partissem ao jardim se
localizado na zona traseira da casa grande para as raptar. À escrava, Gabino a
queria para ele. Havia enlouquecido com o balanço de seus quadris durante os
dias em La Larga.
Tinham planejado o golpe com minuciosidade; Gabino se faria cargo da
prometida de dom Aarón, em tanto três dos cavaleiros se ocupariam das outras
mulheres; o quarto, o único com arma de fogo, cobriria a retaguarda. Caíram-lhes
em cima de um nada e, depois de um momento de estupor, as quatro mulheres
ficaram a gritar a coro até que seus pescoços adotaram a cor de vinho vermelho.
Não contavam com a presença da menina tola, que, de modo desajeitado, saiu
correndo em direção à casa.
—Deixa-a ir! —ordenou Gabino ao homem que insinuou seguindo-a.
Uns aos outros se ajudaram a amarrar as mulheres e a subir às garupas dos
cavalos. A ponto de partir, Gabino vociferou:
—Cuidado, Torre! Depois de ti!
A advertência resultou em vão. O puma, emerso da erva, saltou em cima do
cavaleiro e o jogou dos arreios junto com uma das índias, que logo depois de
rodar, afastou-se pedindo socorro. Gabino e outros cavaleiros se horrorizaram
ante a sanha com que o felino destroçava o pescoço do homem. O que sujeitava a
pistola não se atrevia a acioná-la por temor a ferir seu companheiro. A arma lhe
tremia na mão e balbuciava incoerências.
—Vamos! Rachemos daqui! —vociferou Gabino, ao descobrir Fúria e a vários de
seus homens galopar para eles—. Dispare-lhe! —ordenou ao da pistola, em tanto
lutava por submeter Rafaela, que se sacudia e gritava sobre os arreios. A teria
golpeado, mas a condenada se movia muito e ele não tinha um bom ângulo nem
as mãos livres. Fincou as esporas nos flancos de seu cavalo, que empreendeu a
marcha a toda velocidade.
Artemio Fúria podia sentir como o pânico ia dominando-o. Tratava-se de uma
corrente gélida que o paralisava. Pareciam chamas de fuzil os brilhos que
exploravam em sua mente e o faziam reviver as cenas da noite em que tinha visto
morrer a seus pais. Lembrou de sua atitude passiva frente à tragédia, até se tinha
terminado. Não permitiria que lhe arrebatassem a vida outra vez. Ninguém levaria
a sua Rafaela.
—Eu me ocupo de Gabino! —advertiu a outros.
Tratava-se de seu antigo trabalhador; tinha-o reconhecido por Atrevido, sua
montaria. Desde essa distância, teria utilizado as boleadoras para travar as patas
do picazo se Rafaela não se encontrou sobre seu lombo. Uma queda dessa altura e
a essa velocidade teria resultado letal.
—Rafaela, fique quieta! —ordenou-lhe, mas, ao ver que seguia movendo-se,
supôs que não o escutava.
Ele tampouco ouvia os gritos, nem o estrondo dos cascos, nem os disparos que
irrompiam na paz de suas terras. O coração, que lhe pulsava dolorosamente no
pescoço, ensurdecia-o. Não o alcançavam os alaridos de Millao nem de Creóla,
embora as via com suas bocas abertas e revoltadas tentando escapar dos captores.
A impotência e a ira deslocavam ao medo original. Fúria cavalgava com o torso
pego à cela de Cajetilla, que parecia sobrevoar o terreno. Alcançaria Atrevido e

258
arrebataria a Rafaela dos braços de Gabino. Depois, ocuparia-se desse mal parido.
Seu coração parou e a respiração e lhe travou no peito ao ver que Rafaela caía do
cavalo e arrastava Gabino com ela. Em um ato mecânico, estirou o braço para
sustentá-la. Fechou o punho vazio e uma frouxidão o atacou nas pernas quando a
cabeça, de sua mulher ricocheteou ao dar com o chão. Jogou-se de Cajetilla antes
que se detivesse e se equilibrou sobre o Gabino, que, já de pé, via-o vir com
aspecto fatalista. Não houve luta. Artemio o investiu como um aríete, sustentou-o
pelo pescoço contra o terreno e, antes de lhe afundar o guampudo no peito,
sussurrou-lhe, lhe mostrando os dentes:
—Agora quito o que não quitei em La Larga.
Ofegava como um animal ferido. Soltou a faca ensangüentada e se arrastou até a
Rafaela. Sua palidez lhe causou espanto. Chamou- a gritos por seu nome, tantas
vezes que a voz lhe afinou de modo antinatural até que a perdeu. Não conseguia
voltá-la em si. Tomou em braços e, com ajuda de Buenaventura Buena, subiu-a ao
lombo de Cajetilla . Montou de um salto e a conduziu ao rancho de sua ñuqué.
Depositou-a na cama de armar com delicadeza.
—Deus bendito! —exclamou Anuillán.
—Por favor, ñuqué, salva-a! Caiu de um cavalo. Parece morta!
—Está perdendo ao menino! —disse a mulher, e lhe indicou o sangue que
começava a empapar a saia celeste de Rafaela—. Vá ao povoado e traz o Doutor! —
como Artemio ficou imóvel, como enfeitiçado pela mancha vermelha, Anuillán
desferiu um golpe no braço—. Depressa, Pichín!
***
Seus homens e as moças o rodeavam em silencio sob a ramagem do posto de
Anuillán. Fúria, sentado na ossatura de uma vaca, com os cotovelos sobre os
joelhos, sustentava-se a cabeça com ambas as mãos. Não pensava. Sua mente se
achava entupida em uma mesma imagem: o momento da queda de Rafaela. Não
podia desfazer-se da cena, como se fosse uma melodia irritante. Apertou os dedos
contra a testa e exalou com raiva.
—Meu filho —escutou sussurrar a seu padrinho—, tenha fé.
Levantou a vista e se topou com vários pares de olhos que transbordavam
ansiedade.
—Estão bem? —perguntou às moças.
—Sim, Pichín-Ülleún, estamos bem —respondeu Millao.
—E a menina?
—Ela está bem, dom Fúria —assegurou Creóla, com voz quebrada.
—Grande filho da puta, esse Gabino —resmungou Juan, ao que apelidavam "o
peludo".
—Esse não volta a foder ninguém mais —adicionou Isidoro.
—O que aconteceu com os demais? —quis saber Fúria.
—Eram cinco —informou Manque—. Quinto despachou a um, que queria levar-
se Millao. Modesto e eu nos fizemos cargo de outros dois. O que estava armado
fugiu.
—Não os enterrem. Jogam-nos no monte para que os comam as raposas e as
corujas.
—Está bem —disse Manque.
—O que me agarrou —expressou Creóla—, é o mesmo que pediu para passar a
noite aqui, o dia de Nossa Senhora do Carmen, que tocou o violão na fogueira.
Lembra-se, dom Fúria?

259
Sim, lembrava-se, mas não abriu a boca nem olhou à escrava. Tinha ocorrido na
semana anterior, na segunda-feira 16 de julho. Tinham discutido porque Rafaela
insistia em que o homem não lhe inspirava confiança. Para os de sua classe, se
um patrício anda sujo e mau vestido, parece um preguiçoso e um mau entretido”,
acusou-a, com intenção de brigar e impor-se. "Então, a você teria que julgá-lo
como preguiçoso e mau entretido todos os dias", replicou-lhe ela.
Uma mão apartou o couro da entrada do rancho de Anuillán e apareceu o
médico, seguido da Índia. Fúria detestava os charlatões, não confiava neles. Ficou
de pé, com sua gente em cacha detrás dele, e o olhou com fixidez. O médico fez
rodeios.
—O menino saiu completamente e a hemorragia é profusa e preocupem-se.
Creóla se pôs-se a chorar sem contenção.
—Torquil, leve a Creóla para casa! —ordenou Fúria, sem se virar.
—Contudo —prosseguiu o médico—, o que mais me preocupa é que não tenha
voltado a si. Embora não apresente traumas, recebeu um duro golpe na cabeça.
Tem uma contusão importante na zona posterior e poderia existir dano cerebral.
—Fale com palavras comuns, Doutor —exigiu Fúria, de mau modo—. O que está
querendo dizer com tanta conversa de charlatão?
—Que sua mulher, Fúria, pode não despertar jamais.
O médico se arrependeu de sua crueldade ante a comoção do gaúcho. Havia-se
posto branco como o papel e, rapidamente, lhe esquartejaram os lábios. Resultava
insólito ver fraquejar a um homem dessa talha, uma lenda entre a gente do
campo.
—Sinto—lhe ordenou— e coloque a cabeça entre os joelhos.
—Deixe de tolice! E me diga o que posso fazer por minha mulher.
—Dei a Anuillán as indicações. Ela saberá o que fazer.
—O que quer dizer com isso de que poderia não despertar jamais?
—Também poderia despertar —suavizou o médico—, em qualquer momento. O
tempo o dirá. E se acordada, é provável que não seja ela mesma, que tenha
perdido a memória, ou algo pior. Voltarei amanhã para ver como segue. Enquanto
isso, seria sensato lhe dar os Santos Óleos52.
A proposta encolerizou a Fúria.
—Calvú —disse—, lhe pague e despede-o.
—Sim, Artemio.
As horas seguintes se tornaram uma dura prova para Fúria. A impotência o
afligia e a culpa o desolava. Gabino o tinha golpeado onde mais lhe doía para
vingar a afronta, quão mesmo ele com Rómulo Palafox. Em ambos os casos,
Rafaela se tinha convertido no cordeiro do sacrifício.
Sentado junto à cama de armar, sustentava-lhe a mão e não apartava a vista de
seu rosto, apenas se permitia piscar. Temia perdê-la se a tirava de seu campo
visual.
De noite, Anuillán declarou que Rafaela tinha febre. Artemio mandou por água
gelada do canal de irrigação e ele mesmo se ocupou de lhe colocar panos frios
sobre a testa e outros embebidos em álcool nas axilas. Dado que a temperatura
aumentava, ele e Anuillán a despiram e a cobriram com um lençol empapado em
água gelada. Creóla, por sua parte, entreabria-lhe os lábios ressecados e lhe vertia

52
Extrema Unção.

260
uma infusão de milenrama53 prescrita pelo médico. A hemorragia não cedia, a
palidez de Rafaela resultava alarmante. Como se mantinha estática, Artemio se
inclinava para escutá-la respirar, apenas um gotejo de ar que entrava e saía sem
força. Ao redor das cinco da manhã, Anuillán tomou pelo braço, afastou-o do
cama de armar e lhe falou em sua língua.
—Pichín—Ülleún, meu filho, ela é huinca. Vá e busca ao pai Ramón para que
faça o que tenha que fazer —Anuillán não se intimidou ante a ira afogada nos
olhos do gaúcho—. Aceita-o, filho. Rafaela está muito mal e poderia...
—Não, ñuqué! Não o aceito!
—Está muito débil, Pichín. Você mesmo me disse que esteve à morte pouco
tempo atrás.
—Minha Rafaela é corajosa! Não se renderá. Ela vai viver, o fará por mim, porque
sabe que é minha vida. E eu, sem ela.. —deteve-se e, incômodo pelo desplante,
abandonou o rancho sem prestar atenção aos que velavam sob a ramagem. Saltou
sobre o lombo nu de Cajetilla e galopou como alma que leva o diabo, obstinado às
crinas do overo. Sabia bem aonde se dirigia.
Cajetilla diminuiu a velocidade até deter-se por completo frente à igreja de Nossa
Senhora da Boa Viagem. Através do pórtico com colunas, viu que a porta de duas
folhas se achava aberta. Desceu do cavalo e caminhou como ébrio até a escada
que o guiou ao interior do templo vazio. Faltavam uns minutos para as seis, e a
primeira missa não começaria a não ser em meia hora.
Sobressaltaram-no a solidão e a imponência da construção e, embargado de
angústia, impulsionou-se para o altar. Quantos anos tinham transcorrido desde
sua última oração? Comoveu-se diante do Santíssimo exposto em uma
ornamentada capa de ouro e prata. Caiu de joelhos e tocou a testa com o piso.
Acreditava em Deus, sempre tinha acreditado. Estava zangado com ele; em
realidade, furioso, mas nunca tinha duvidado de sua existência nem de seu poder.
Em muitas ocasiões, tinha-o atacado o desejo de golpeá-lo por haver arrebatado a
sua família dessa maneira tão cruel. Sim, tinha-o odiado. Nesse momento,
arrasado pelo pânico de perder a Rafaela, rendeu-se ante a grandeza do Criador e
rompeu a chorar como um menino perdido e assustado, com a boca aberta e o
corpo convulsionado. Não tinha nada que oferecer em troca da vida de sua
mulher. O era um pecador, indigno da misericórdia divina. Levantou o olhar e,
depois do véu de lágrimas, vislumbrou o perfil de um grande crucifixo. Tirou o
lenço de seda do pescoço e limpou o rosto. Ficou quieto, observando ao Santo
Cristo agonizante, tão vulnerável e abatido como ele, e, de algum modo,
experimentou consolo.
—Have merey on me, my Lord —suplicou, sem dar-se conta de que tinha falado
em sua língua mãe, o inglês, que sempre utilizava para pensar—. Tenha piedade
de mim, Senhor —disse de novo—. Não leve a minha Rafaela. Ela é minha vida, a
único de bom que me ocorreu. Sei que Você a pôs em meu caminho para suavizar
o rancor de minha alma pecadora —guardou silêncio, não sabia o que dizer—. Não
tenho nada que oferecer em troca. Diga-me o que posso te dar. Tudo o que possuo
o ponho a seus pés —se estremeceu quando um pensamento se manifestou de
modo súbito—. Renuncio a minha vingança! Entrego-te o perdão aos assassinos
de meus pais! —exclamou depressa e sem pausa.

53
Planta medicinal.

261
Inclinou-se sobre seu torso e rompeu a chorar de novo, uma mescla de alívio por
ter acertado com a oferenda e de profunda dor ao sentir que traía a sua família.
—É o que mais me custa te oferecer —disse, no meio do pranto— e Você sabe.
Juro não procurar vingança e acabar com o ódio que me consome. Juro-o pela
memória de meus pais! Que difícil! —pensou, em voz alta—. Mas o farei!
Esquecerei minha vingança e perdoarei a meus inimigos. Por ela, Senhor! Para que
me devolva isso! Por piedade!
Seguiu balançando-se no chão e repetindo "por piedade" até cair em uma espécie
de estupor. Sobressaltou-se quando uma mão lhe tocou o ombro. Era o pai
Ramón.
—Padre, venha para minhas terras. Preciso de ti —admitiu.
***
Bamba se ocupou da mula do sacerdote depois de que este tirou da alforja uma
caixinha de madeira escura.
—Por aqui, padre —lhe indicou Artemio.
O silêncio se apoderou do grupo congregado na ramagem. Ante uma sacudida de
cabeça de Fúria, abriram-se para lhes permitir passar. Anuillán levantou o couro e
saiu do rancho com expressão alterada.
—Pichín-Ülleún! —exclamou—. Até que enfim regressou, meu filho!
Artemio se deteve em seco.
—OH, não, ñuqué, não —balbuciou, e caminhou para trás, pálido e
desencaixado.
A Índia se equilibrou e tomou pelos pulsos.
—Não, meu filho! Não me assuste! Está curada, sua Rafaela, despertou!
Despertou! —insistiu, porque Fúria parecia não compreendê-la.
O gaúcho correu ao interior e se arrojou junto à cama de armar. Colocou a mão
de Rafaela no rosto e lhe falou com paixão ao ouvido.
—Rafaela. Minha Rafaela. Não me deixe. Por amor de Deus, não me deixe.
A moça pronunciou seu nome sem levantar as pálpebras. Junto com o sangue,
drenou-se o vigor de seu corpo, e jamais tinha experimentado uma sonolência tão
entristecedora.
Anuillán fez a um lado a Fúria e, aproveitando a consciência de Rafaela, deu-lhe
a beber a infusão de milenrama e os remédios. A Artemio o mortificava
testemunhar o esforço que significava para a Rafaela o simples ato de tragar.
Desvaneceu-se de novo, e o pai Ramón propôs lhe repartir a Extrema-unção. Fúria
aceitou com uma severa inclinação de cabeça, embora a angústia que quase tinha
acabado com sua prudência horas atrás tivesse se desvanecido. Deus tinha aceito
o juramento e cumpriria sua parte do trato. Rafaela não morreria.
Terminado o rito e despedido o sacerdote, Artemio deitou sobre uma manta que
acomodou no chão, junto à cama de armar onde estava Rafaela, e, com a cabeça
elevada em uma mão, dedicou-se a contemplá-la dormir. Até que o sono o venceu.
Despertou confundido e lhe custou reconhecer onde estava. Ergueu-se de
repente ao escutar o pranto de sua mulher. Anuillán lhe falava com ouvido.
—O que aconteceu? —alterou-se—. Por que chora? O que aconteceu?
—Acabo de lhe dizer do menino —explicou a Índia, em voz baixa—. Perguntou-
me e não tive coração para lhe mentir.
Anuillán se afastou e Fúria tomou seu lugar. Rafaela escondeu o rosto e evitou
olhá-lo. Ele apoiou a testa na têmpora da jovem e sorriu ao notá-la fresca.
—Rafaela. Minha Rafaela das flores —sussurrou—, Por que chora? Já sabe que

262
não acho graça que chore.
—Meu filho —alcançou a dizer antes de que um soluço lhe roubasse o fôlego—.
Caí, e meu filho...
Fúria vaiou para sossegá-la.
—Agora cale-se. Você fraca. Não se preocupe com nada. Tudo vai ficar bem. A
doçura de Artemio Fúria a surpreendeu. Voltou-se para ele e o encontrou com um
desses sorrisos que exaltavam sua beleza.
—Perdi nosso filho. Sinto muito, sinto-o tanto. Nosso bebê...
Rafaela rompeu em um pranto amargo, e Fúria, desprovido de palavras e de
força, fechou-se sobre ela e chorou em silêncio.

263
Capítulo XXII

Suspeitas e sentimentos

Rafaela recordava que no Manual de esposas no qual continha muitas e diversas


receitas muito boas havia uma fórmula para deter fluxos de sangue. Mandou
comprar incenso, almáciga, sementes de balausta, três nozes moscadas e meia
dúzia de pregos de aroma. Creóla se ocupou de amassar os ingredientes no
almirez e passá-los pela peneira. Cada manhã, a escrava separava uma medida do
pó, mesclava-o com duas claras de ovos recém postos e o dava a Rafaela na boca.
A hemorragia cedeu ao fim de seis dias, quão mesmo as cólicas. Embora Anuillán
assegurava que nada a restabeleceria como um tigela de sangue morno de vaca
recém carneada, Rafaela se negou, e Artemio disse que não a forçassem. Obrigada
a comer bem e variado, sobre tudo chouriço, fígado, ovo de ñandú e legumes, e a
beber tônicos e leite, logo recuperou peso e vigor. Seu espírito, em troca, seguia
quebrado.
—Quero voltar para casa —expressou uma manhã, e Fúria ficou olhando-a,
confundido.
—A que casa?
—À casa grande —respondeu Rafaela—. Não podemos seguir incomodando
Anuillán. Sinto-me bem. Posso me levantar e voltar para casa —embora não o
confessaria a Artemio, deprimia-a o aspecto misérrimo do rancho e sentia falta do
que já considerava seu lar.
Fúria sorriu, ditoso pela primeira vez em vários dias, aliviado também pois tinha
suposto que Rafaela lhe exigia que a devolvesse a sua família. Embora se
recuperasse do golpe na cabeça e do aborto, notava-a triste, calada, opaca.
Dedicava-lhe seus momentos livres e desdobrava uma eloquência que ele
assombrava. Rafaela, que no passado tinha demonstrado grande interesse por
suas inusitadas amostras de loquacidade, dispensava-lhe um olhar perdido.
—Acontece que se culpa pela perda do menino —lhe explicou Anuillán.
—Ela não teve culpa! O culpado sou eu. Gabino a usou para vingar-se de mim.
—Diz que se jogou dos arreios porque não queria que esse mau parido a
separasse de ti. Reprova-se por não haver pensão no menino.
Artemio mandou acondicionar uma carruagem e, depois de emponchar a Rafaela,
carregou-a nos braços e a acomodou na parte posterior, entre quillangos54.
Deitado junto a ela, dedicou-se a contemplá-la em silêncio, enquanto Bamba
conduzia os bois para a casa grande.
—Olhe-me, Rafaela —lhe pediu, e ela o obedeceu logo depois de vacilar—. Anda
triste, minha Rafaela?
54
Cobertor de pele.

264
Os olhos lhe encheram de lágrimas e apartou o rosto de novo.
—Quem sabe por que Deus levou a nosso filho —disse o gaúcho.
—Não foi Deus. Perdemo-lo por minha culpa.
—Você sabe que não teve culpa de nada. Foi por minha culpa. O filho da puta do
Gabino a queria levar para se vingar pelo que ocorreu em La Larga.
—Joguei-me do cavalo. De propósito. Voltei-me louca quando caí na conta...
—Na verdade, não foi nem por sua culpa nem pela minha. Assim é a vida, você
sabe. Só Deus manda aqui embaixo e acima.
—OH, Artemio! —deu-se volta para cobrir-se no peito do homem—. Eu desejava
tanto ter meu bebê.
—Sei! Mas eu lhe vou fazer outro filho. E outro e mais outro. Todos os que
minha Rafaela quiser, para que fique contente de novo, para vê-la sorrir.
Instalada na casa grande, Rafaela recuperou o vigor e seu ânimo mostrou
melhorias. Em que pese que se cansava freqüentemente e passava muito tempo na
cama, todos os dias pedia a Fúria que a levasse a cozinha, onde a acomodava em
uma cadeira com almofadões para que, de ali, ela dirigisse a preparação das
comidas e das sobremesas favoritas do gaúcho. O guirlache tinha destronado a
torta com leite e mel e o pedia com freqüência. Gostava de sentir-se útil, e se dava
conta de que a dominava uma obsessão por voltar-se indispensável na vida do
gaúcho porque, depois de perder ao menino, o temor a que a devolvesse a
espreitava de contínuo. Em sua opinião, o motivo que o tinha impulsionado a
raptá-la acabava de morrer junto com seu filho. Ou na verdade a amava? Assim
como sabia que jamais falaria com seu pai a respeito de Cristiana, tampouco
perguntaria a Fúria por que a tinha roubado, se por ela ou pelo filho. Que
capitalista era seu orgulho! E que covarde sua alma.
A mesma insegurança que a angustiava com dúvidas e suspeitas, levava-a a
experimentar ciúmes dos homens de Artemio Fúria. Eles compunham um grupo
bem unidos, conheciam-se como se fossem irmãos de sangue, respeitavam-se e se
tinham afeto, nunca brigavam. Fúria os consultava e compartilhava com eles a
maior parte do tempo; de fato, a Rafaela parecia que destinava a esses patrícios
mais tempo que antes do assalto de Gabino, e conjeturava que se devia a que ela,
desfigurada, débil e nostálgica, não resultava boa companhia. Não tinham
reiniciado a intimidade e, embora Artemio dormisse com ela, não a tocava. "É
porque sabe que você teve uma perda, minha menina", raciocinava Creóla, e, face
à lógica do argumento, Rafaela resmungava e seguia pensado que Artemio não a
desejava porque parecia feia e que a conservava movido pela lástima e a culpa. Às
vezes, segura de que, passado um tempo, ele a abandonaria, pensava em fugir.
Inquietou-se a manhã em que lhe anunciou que viajaria a Buenos Aires para
ocupar-se de suas caravanas de troperos que breve rumbariam para o interior.
Fúria queria ir, não suportava permanecer em um mesmo local durante muito
tempo. A vida sedentária a que ela o reduzia estava contra sua natureza de gaúcho
errante.
Uma manhã no princípio de agosto, Paolino, o vendedor de água da casa da rua
Larga, apresentou-se no campo de Morón para visitar Creóla. Antes manteve uma
conversação em privado com Artemio.
—Trago-lhe duas mensagens, dom Fúria.
—Desembucha, Paolino.
—Uma é de dom Juan Martín de Pueyrredón. Acaba de chegar do Rio do Janeiro
e pede vê-lo. Mas bem logo, dom Fúria.

265
A notícia o alegrou. Graças à eliminação dos espanhóis do governo, seu amigo
podia retornar do exílio ao que o tinham condenado por causa de suas idéias
independentistas.
—A outra mensagem é de Ñuque —prosseguiu o vendedor de água—. Não anda
bem e faz dias que não sai da cama. Mandou-me dizer com Peregrina que quer ver
Rafaela.
Fúria recordou sua promessa. Tinha chegado o dia de cumpri-la, embora não
queria fazê-lo. A cidade se apresentava como um monstro que ameaçava o casulo
que tinha construído para ele e sua mulher. O intento de Gabino de roubar-lhe o
tinha sensibilizado e posto em alerta. Esse mal parido a havia enlouquecido e
machucado e destroçado sua ilusão de ser mãe. Que ardesse no inferno! Não
permitiria que ninguém voltasse a lhe fazer dano. Dava-se conta, e não podia
controlá-lo, de que seu instinto de posse estava alcançando um patamar insano.
Às vezes o chateava vê-la conversar com o Calvú ou que lhe cevasse mate a Isidoro
ou cortasse o cabelo de Bamba. Rafaela Palafox era dele e de ninguém mais. Seus
olhos deviam olhá-lo só a ele, suas mãos tocá-lo só a ele, seus lábios desenhar
sorrisos e emitir palavras só para ele, seus pensamentos só deviam referir-se a ele.
Além disso, temia-lhe à cidade porque estava seguro de que a monotonia e a falta
de civilização dessa paragem de Morón a aborreciam e chateavam. Buenos Aires a
tentaria com seus ares de metrópole, e ele a perderia. Entretanto, tinha que levar-
lhe a Ñuque, sua honra lhe impedia de faltar à promessa. Tinha fantasiado
mantendo oculta a sua princesa, sair sozinho ao mundo a bater-se com hereges e
dragões, e retornar, como um cavalheiro de armadura, à segurança de seu castelo
e ao colo de sua dama.
—Dom Fúria —a voz do Paolino o arrancou das meditações—. Queria lhe pedir
um favor, se for possível —Artemio me assentiu—. Queria levar isso a Creóla, para
vivermos juntos, agora que você lhe libertou, Deus o pague. Ela me aceitou. Você o
permite, dom Fúria?
—Falarei com a Rafaela.
Dois dias mais tarde, depois de ouvir a missa da boa viagem, saíram para a
cidade. Rafaela, Creóla e Mimita foram na carruagem, envoltas em mantas e
quillangos. Fúria cavalgava detrás delas, com Quinto atrás. Ia armado com uma
pistola, quão mesmo os homens que tinha eleito para que o escoltassem. Ainda
refletia a respeito da reação desconcertante de Rafaela ante o anúncio de que o
acompanharia a Buenos Aires. Negou-se, e Creóla necessitou horas para
convencer a de que, possivelmente, Ñuque seriamente estivesse gravemente
doente. Por que não desejava retornar à cidade? A que lhe temia? De seguro, ao
escárnio público, não lhe ocorria outra razão.
Rafaela, a cada momento, inclinava-se sobre os cobertores de couro e espionava
por um orifício a silhueta graciosa e imponente que cavalgava ao lado da estrada;
às vezes, adiantava-se para dar indicações a Bamba, que conduzia a carruagem;
outras, ficava na retaguarda e ela o perdia de vista. Com que ardor amava Artemio
Fúria! Esmagava-a esse sentimento. Sabia que não suportaria outro abandono, e
essa ida a Buenos Aires aumentava suas suspeitas.
Desviaram-se do caminho à hora do crepúsculo para passar a noite. Calvú
Manque cavou um buraco que Billy cobriu com folhagem e lenha, e em poucos
minutos acenderam uma fogueira. Creóla se ocupou de preparar o jantar.
Comeram em silêncio. Como de costume, ao terminar, Rafaela esperou com
ansiedade o momento em que Fúria tirava a guayaca de pelica, a que ela tinha

266
confeccionado, e fazia um cigarro. Depois do primeiro trago, informou-lhe, sem
olhá-la:
—Mandei dizer a dona Clara que nos prepare um quarto em sua pensão.
Transcorreu um momento antes que Rafaela atinasse a responder:
—Senhor Fúria, não penso pôr pé nesse local e você sabe por que.
Artemio levantou a cabeça e, pela primeira vez no dia, olhou-a aos olhos.
—Está bem. Então iremos à hospedaria Os Três Reis. O que diz?
—Parece-me bem.
Fúria e seus homens se deitaram sobre os recados em torno da fogueira. Embora
não tivesse frio e estava cômoda na carruagem, Rafaela não conciliava o sonho.
Envolveu-se com o quillango e baixou. Manque, de guarda, aproximou-se com
presteza.
—O que acontece, Rafaela? Por que se levanta? Ainda está muito fraca.
—Estou bem, Calvú. Procuro o senhor Fúria.
—Está ali—disse, e lhe assinalou o local.
Deitou-se ao seu lado com delicadeza, para não despertá-lo. Entretanto, quando
se recostou sobre a almofada da sela, descobriu que Artemio a observava. Não
pronunciou palavra. Olhou-a longamente, tranqüilo e manso, sério embora não
zangado. Rafaela levantou a mão e lhe tocou a orelha direita.
—Tem uma nova argola de prata —sussurrou—. Quem lhe fez o orifício?
—Anuillán.
—Doeu-lhe? —Fúria negou com a cabeça—. Por que leva outra argola?
Duvidou em lhe responder. Ao final, respondeu:
—Porque despachei ao Gabino ao mesmo inferno.
—Duvidou em matá-lo?
—Nem um segundo. Quis roubar a minha mulher. Fiz com gosto. Espanta-te que
minhas mãos estejam tintas em sangue?
—Não —sentiu-se bem com sua firmeza ao responder e lhe agradou o assombro
na expressão do gaúcho—. Eu faria o mesmo se alguém quiser fazer dano a você.
Por que não usa sua orelha esquerda para pendurar argolas? Vejo que tem três
orifícios —apontou, e lhe acariciou o bordo.
—Tinha-os lhes reserve para outra coisa.
—Que coisa?
—Já não importa. Agora vou usar para pendurar tantas argolas quantos filhos
faça a você.
***
Instalaram-se em umas habitações na planta superior da hospedaria Os Três
Reis, na rua de Santo Cristo, próxima à Praça da Vitória. Depois da agitação dos
primeiros momentos, enquanto Creóla acomodava a roupa e preparava o banho,
Rafaela caiu na conta de que esse local se converteria em sua prisão durante o
tempo de estadia na cidade, já que não sairia à rua nem se expor; até lhe
resultava difícil imaginar como enfrentaria aos habitantes da casa da rua Larga
quando visitasse ñuque.
Chateava-a a serenidade de Fúria. Acabava de tomar um banho de banheira e se
barbeava e penteava para sair. Devia ter alguma comissão importante a julgar
pelos objetos de luxo que tinha pedido que lhe estendessem sobre a cama. Via-o
mover-se pelo quarto com as roupas de baixo como única vestimenta, e o desejo
por voltar a senti-lo dentro dela crescia, inquietava-a e desfazia o chateio original.
Concentrou-se nos músculos de suas costas, que se moviam quando o gaúcho

267
atava uma tira de couro ao redor da cabeça. Baixou lentamente para fixar a vista
em seus glúteos, pequenos e arrebitados, e não se deu conta de que seus lábios se
separavam e os batimentos do coração de seu coração se voltavam densos.
Aturdia-a o afã por enredar os dedos no denso pêlo de suas pernas, dessa
tonalidade entre loira e avermelhada, e deslizá-las até suas nádegas, as apertar, as
morder, para logo fazê-los vagar até seus testículos e acariciá-los, e chegar até seu
membro, que a esperaria ereto e enorme. Sentou-se no sofá, envergonhada de
suas fantasias, cheia de batimentos do coração, espetadas e desejos.
O se voltou, com o rosto ao meio raspar e o guampudo carregado de espuma de
sabão, e Rafaela pensou que se tratava da criatura mais bonita que existia.
Olharam-se através do quarto, e o tempo ficou suspenso, quão mesmo suas
respirações. Não lhe importava permanecer confinada nesse lugar para agradá-lo.
Não lhe importava nada, exceto que ele não a abandonasse. Tempo atrás, tinha-
lhe pedido: "Seja livre, Rafaela. Comigo, seja livre"; entretanto, o gaúcho Artemio
Fúria se converteu em sua prisão.
—Agora sairei um momento - anunciou— e voltarei para jantar com você.
Descanse. Está pálida.
—E feia —demarcou ela.
—Tão feia como eu, negro.
Apesar disso, Rafaela riu, um som cristalino e pueril que arrancou um sorriso a
Fúria. Terminou de vestir-se, beijou-a na testa e partiu.
Na casa paterna de dom Juan Martín de Pueyrredón, na rua de São Bartolomé,
conferiram-lhe o trato de um visitante de linhagem: fizeram-no esperar na sala
principal e lhe serviram malvasía55. Dom Juan Martín não tinha trocado nesse
tempo, o via saudável, corado e de bom aspecto. A Fúria caía bem porque, sim um
indivíduo ganhava seu respeito, Pueyrredón não reparava na casta a qual
pertencia e lhe brindava um trato de amigo.
—Artemio, homem, prosperaste! —exclamou, depois de um abraço e bateram-se
nas costas—. Olhe as suas botas como brilham!
—Não ia vir cheirando a bosta e com as roupas pobres, dom Juán Martín.
—Eu acreditei que havia se tornado um dândi por obra da rapariga que prendeu
seu coração —Artemio enviesou os lábios em um sorriso arteiro—. Sim, sim, já me
referiram o escândalo que armou o dia em que lhe a roubou de São Francisco.
Uma tremenda bagunça armaste!
—É minha, dom Juan Martín. E o que é meu, ninguém me tira.
—Fez bem, Artemio —declarou Pueyrredón, e lhe pôs uma mão no ombro—.
Olhe-me. Pensei que a minha volta encontraria com uma esposa. Na verdade,
encontrei-me com uma esposa, mas de outro.
Fúria soube que a prometida de dom Juan Martín, Maria Ventura Marcó del
Pont, com quem, supunha-se, contrairia matrimônio por poder, tinha-o deixado
para casar-se com Manuel Muñoz Casabal.
—Deveria ter ouvido a meu amigo Roger Blackraven, que me advertiu no ano seis
que não delegasse estas questões aos tabeliães e notários. Enfim, tudo será para
melhor —expressou, e em seguida se ocupou do tema pelo qual tinha convocado a
Fúria—: A Junta me nomeou governador de Córdoba e devo partir imediatamente
e assumir o cargo. Mariano Moreno se mostrou insistente em que você e uma

55
Um tipo de espumante feito de uva.

268
reserva de seus homens me escoltem.
"Chegou o dia de pagar favor com favor", meditou Fúria.
—Sei que este pedido de Moreno é inoportuno, mas a causa te precisa, Artemio.
—Como posso me negar a servir à Pátria, dom Juan Martín, e você sabe melhor
que ninguém.
—É obvio. Ninguém conhece como eu sua valia, Artemio.
—Quando parte?
—O mais rápido. Deve saber que Córdoba é um enxame de contra-
revolucionarios e que contamos com poucos amigos: o reitor da Catedral, Gregorio
Funes, seu irmão Ambrosio, o jovem Tomás de Allende, e outros de peso, mas
ninguém mais. Iremos a campo inimigo.
—O que aconteceu com o Liniers?
—Esse é um triste assunto, meu amigo. Mas Liniers selou seu destino ao
declarar que a conduta dos de Buenos Aires (por nós)com a Mãe Pátria, usurpada
por Bonaparte, é igual a de um filho que, vendo seu pai doente, mas de um mal de
que pode recuperar-se, o assassina na cama para herdá-lo. Além disso há dito que
atuamos em nome dos ingleses —Sacudiu a cabeça, aflito—. O capturaram junto
com outros conspiradores, e a Junta, à exceção de Alberti por ser clérigo,
determinou que sejam fuzilados.
—Dom Juan Martín, me dê uns dias para arrumar umas coisas. Viajando em
disparada, estaremos em Córdoba em quatro dias, no meio do mês.
—De acordo.
Em seu retorno, Artemio Fúria planejava a viagem a Córdoba e confeccionava
uma lista mental das disposições a tomar antes de partir. A viagem era
inoportuna, sobre tudo porque deixaria sozinha Rafaela depois do traumático
ocorrido com Gabino. Entretanto, não podia negar-se ao pedido de Moreno, não
depois de que o secretário da Junta tivesse mantido sua palavra, e Palafox, em
que pese a seus antecedentes, seguisse em liberdade; inclusive lhe tinham
chegado rumores de que o sarraceno tinha recuperado parte do confiscado depois
da passeata do ano anterior.
Na casa de Moreno, recebeu-o sua esposa, Lupe, que, depois de lhe dispensar
um olhar longo, indicou-lhe que aguardasse no vestíbulo. O secretário da Junta o
recebeu em seu escritório e o tratou com cortesia. Ofereceu-lhe tomar assento, o
que Fúria rechaçou.
—Em dois dias, Doutor, parto para Córdoba, escoltando a dom Juan Martín.
—Bem, bem. É necessário que cheguem quanto antes. Não confio no Ortiz de
Ocampo —se referia ao militar a cargo do exército da Junta, chamado Exército
Auxiliar das Províncias—. A deserção de Liniers me tem preocupado. E o bispo
Funes… —Moreno falava depressa, mas bem parecia pensar em voz alta, como se
Fúria não se achasse frente a ele. Ao final de seu discurso, Moreno lhe exigiu—:
Mão dura, Fúria. Não podemos nos permitir fraquejar nesta instância ou nos
devorarão.
De caminho para a porta, topou-se com o Lupe no vestíbulo, que se dirigiu a seu
marido.
—Moreno, se não te importar, falarei com este homem.
—Adiante, mulher.
—Fúria, trouxe Rafaela com você?
—Sim, senhora.
—Onde se alojam? —Artemio lhe disse—. Poderia visitá-la?

269
—Nada me agradaria mis, miss Lupe.
Sem despedir-se e com ar entre altiva e ofendida, Lupe deu meia volta e retornou
ao interior da casa.
Meia hora mais tarde, Artemio bebia umas genebras na Hospedaria das Nações
em companhia de French, Pancho Planes e o gigante Sorte Arzac, que o punham a
par dos caldos que se coziam no seio da Junta. Pancho, sempre veemente e
exaltado, opinava que o presidente Saavedra não contava com a inteligência que
seu cargo requeria, e se atreveu a expressar que, em realidade, o militar não
aceitava a revolução mas sim a julgava uma simples crise que se solucionaria
quando o rei Fernando recuperasse o trono.
—É com Moreno com quem mais desavenças tem —comentou French.
—Um é muito velho e conservador —apontou Arzac— e o outro, muito jovem e
jacobino. Não se entendem. Espero que isto não termine mau
—Deveríamos deixar de bobeira —se zangou Planos—, e declarar a
independência. "Aos mornos os vomitarei", disse Cristo. E nós, nos declarando leais
a Fernando e, por outra parte, enviando um exército para convencer às
intendências de unir-se a nossa causa, estamos sendo ambíguos e mornos. Isto
me dá asco.
—Pancho—interpôs Arzac—, deve entender que é necessário fingir fidelidade a
Fernando para ganhar tempo. Moreno assegura que se nos rebelarmos
abertamente, as forças espanholas nos cairão em cima e nos destruirão. Além
disso, os ingleses, aliados dos maturrangos neste momento, se unirão a eles e
selarão nosso destino.
De retorno na hospedaria Os Três Reis, Creóla lhe informou que Rafaela dormia.
—Creóla —disse Fúria—, Paolino diz que quer te levar com ele —a escrava
assentiu—. Quero que me espere voltar de Córdoba. Parto assim que amanhecer.
Quando retornar, irá com ele, se quiser.
—Está bem, dom Fúria. Minha ama vai se pôr triste quando souber que você se
vai.
—Não abra o pico. Eu mesmo o direi.
Essa noite, Artemio, com a cumplicidade de Peregrina, entrou na casa de Palafox
e o esperou em seu dormitório, esta vez, com uma vela acesa, de modo que o
homem o viu logo que transpôs a porta. Fechou em silêncio e correu a tranca.
—Como está minha filha? —perguntou, sem animosidade, como desinteressado.
—Está bem. Trouxe-a comigo posto que Ñuque pede para vê-la. Permitirá fazê-lo
quantas vezes ela o deseje. Ninguém a incomodará, nem seu sobrinho nem suas
irmãs, fui claro? —Palafox assentiu—. Que notícias me tem de Martin Avendaño?
—Consegui localizá-lo.
Fúria avançou, com o coração desbocado no peito. Palafox levantou a tampa de
seu escritório e revolveu entre uns papéis.
—Aqui tem —disse, e lhe estendeu um cartão com uma anotação—. Vive em
Córdoba.
—Em Córdoba? —Fúria não conseguiu ocultar a impressão.
—Não deveria surpreendê-lo. Viveu grande parte de sua vida nessa cidade. Aí
tinha propriedades e parentes.
—Minha irmã está com ele?
—Meu contato não me soube dizer. Isso terá que averiguá-lo você mesmo.
***
Rafaela se debatia entre a raiva e a depressão. A notícia da viagem de Fúria

270
ratificava suas suspeitas: planejava abandoná-la. Iria e nunca retornaria, não
voltaria a vê-lo. Como não o confrontaria nem lhe rogaria, disfarçou o medo e a
tristeza com ares de arrogância e impaciência.
—Não penso ir viver aos Altos de Escalada. Ali vive sua concubina, essa
prostituta com a que me humilhou frente a meu pai aquela noite.
—Albana não é minha concubina —insistiu Fúria— nem prostituta. Quero que se
vá para os Altos de Escalda com sua amiga, Corina Bonmer. Ela está feliz de
recebê-la. Ali terá alguém te resguardo enquanto não estou. Ademais, dom José
Antonio —se referia a José Antonio de Escalada, proprietário dos Altos— aluguei
um quarto no andar superior para Calvú e para Torquil, que ficarão para cuidar
de você.
Aproximou-se, mas Rafaela lhe deu as costas. Fúria suspirou, cansado de seus
caprichos. Ainda subtraía atender várias questões antes da viagem e não seguiria
perdendo tempo. Colocou o chapéu e saiu do quarto sem despedir-se. Rafaela
escutou o estalo da porta ao fechar-se e se cruzou de braços, zangada.
A visita de Corina Bonmer mudou seu humor, e, quando Fúria retornou à
hospedaria de noite, Rafaela o esperava com a mesa posta para jantar. "Se quiser
que volte para ti", tinha-lhe aconselhado Corina, "não o despeça com latidos a não
ser com carícias".
Artemio advertiu sua mudança. Inclinou-se e a beijou nos lábios quando Rafaela
se aproximou com uma pastilha de sabão e uma toalha para que se lavasse.
Demorou o nariz em seu pescoço, enquanto se embriagava de perfume, e a
suspendeu logo perto de sua boca para confirmar que acabava de tomar chá de
hortelã, e se moveu depois detrás de suas orelhas para seguir o rastro da
fragrância para o decote, separando os objetos com o queixo, perguntando-se o
que outras partes de Rafaela estariam impregnadas com a essência de rosas,
bergamota e laranjas doces.
—Também perfumou essa parte —disse, e começou a lhe levantar sua saia e
puxar sua roupa interior—, da que eu sou o único dono? —Rafaela, ruborizada,
esquivando o olhar, assentiu—. Se recorda que você me disse em La Larga que eu
era o único dono desta parte? —afrouxou o cordão da calça e deslizou uma mão
dentro. Rafaela se sacudiu por causa do contato—. Diga-me isso outra vez —lhe
exigiu, com os dedos enredados em seu pêlo pubiano, enquanto lhe atirava um
pouco, contente ao comprovar que já não sangrava.
—Você é o único —ofegou, com a frente no torso de Fúria—. O único.
Artemio se deixou cair sobre uma cadeira, que rangeu com o peso, e arrastou a
Rafaela sobre suas pernas; enfrentando-se com os olhos. O beijo foi grandioso,
comovedor. Ele tomou pela nuca e a sujeitou pela parte baixa da cintura. Rafaela
se aferrou a seu pescoço e se pegou a ele, buscando-o, necessitando-o, desejando-
o. Essa dança frenética desatada entre suas línguas refletia o tumulto de
sentimentos que os dominava. Artemio sugava os lábios dela para absorver seus
sabores, a hortelã e a baunilha, e saciar-se em sua carnosidade. Separaram-se o
tempo que lhes requereu desfazer da calça e da roupa interior e liberar o pênis do
chiripá.
Fúria tomou pela cintura e a acomodou escarranchado sobre ele. Manteve-a
suspensa sobre seu falo ereto para lhe acariciar os lábios da vulva e o clitóris com
a ponta viscosa. Rafaela gemia com os olhos fechados e a cabeça ligeiramente
caída para o lado. Ele a observava dessa posição: a brancura dos dentes que
apenas se insinuavam, o corte regular da mandíbula, o pequeno queixo, a sombra

271
que formavam suas pestanas sobre a pele, a vermelhidão do rosto, a pequena
orelha, a pele perfeita, sem falhas. Era dele. Esse tesouro era só dele. Agitou-se,
comoveu-se, e a manipulou com brutalidade para que sua vagina o tragasse e se
deslizasse sobre seu pênis como uma luva apertada e quente. Soltou um gemido
rouco que Creóla escutaria no quarto do lado, e tomou ar com desespero para
controlar-se. Abriu-lhe o decote e liberou seus seios, junto com uma esteira de
perfume. O orgasmo de Rafaela não demorou para chegar. Sua cabeça caiu para
trás e expôs a pele do pescoço, translúcida e sulcada por veias celestes. Artemio
lhe apoiou os lábios na garganta e sentiu as vibrações que produziam seus
gemidos como lamentos, que ao final foram silenciados pelos gemidos dele quando
se derramou dentro dela.
Passados uns minutos, Fúria ficou de pé, com as pernas de Rafaela em torno de
seus quadris. Depositou-a na cama e se tornou sobre ela para olhá-la. Parecia
extenuada pela paixão e ainda respirava de modo agitado. Tinha cometido uma
imprudência ao submetê-la a esse esforço quando ainda convalescia. Era uma
besta.
—Rafaela —sussurrou—, você bem? —ela assentiu, com um sorriso—. Se sente
bem? —insistiu, enquanto lhe apartava umas mechas do rosto.
Rafaela levantou as pálpebras e sorriu ante o gesto contrito de Fúria. Acariciou-
lhe a face barbuda. Partiria o dia seguinte, depois das acompanhar a casa de
Corina Bonmer. Não necessitava que ele partisse para saber como a atravessaria a
dor da nostalgia, como o choraria de noite, como ansiaria seu corpo e seus beijos,
seus modos bruscos e sua conversação pouco refinada e interessante. Embora
tivesse prometido mostrar-se inteira, a pena a quebrou, e seus olhos verdes
brilharam na penumbra do quarto. A abraçou e lhe pediu que não chorasse. Cego
de amor e de tristeza, buscou-lhe a boca e voltou a beijá-la com ardor. Enquanto
seus lábios seguiam unidos, Rafaela lhe suplicou:
—Não me esqueça, senhor Fúria. Por favor, não me esqueça.
—Nunca —jurou ele, e tirou o cordão do pescoço—. Este anel —disse, e lhe
mostrou o claddagh—, era de minha mãe, Emerald Maguire. Tenho conservado
perto de meu coração desde o dia em que ela se foi. Agora é de minha vontade que
você o leve em sua mão, sempre, para que, quando o ver, se acorde de mim. Assim
é a tradição, quem entregar seu coração a um homem, têm que usá-lo na mão
direita e com o coração para dentro.
—Então, assim o usarei eu.

272
Capítulo XXIII

Miss Eduarda

Na opinião de Rafaela, nada melhor que as rotinas para afastar a melancolia.


Tinha dividido a jornada em atividades que a mantinham ocupada e a ajudavam a
esquecer que Fúria estava longe, que sua vida era um caos e seu futuro, um
mistério. O apoio e o carinho de Creóla, Mimita e, sobre tudo, de Corina Bonmer
se transformaram em seus grandes pilares. Impulsionada por uma força de
vontade com tinturas de obstinação, levantava-se muito cedo e se mergulhava em
um frenesi de tarefas e diligências como se, ao final do dia, alguém lhe requeresse
contas. Creóla, com ordens de Fúria de ocupar-se da alimentação de Rafaela e de
seu descanso, enfurecia-se ao notá-la abatida e extenuada. "Quando dom Fúria
voltar, a encontrará fraca e feia e se irá com dona Albana", mortificava-a, e assim
obtinha que sua ama pusesse-se a descansar ou tomasse um tônico fabricado com
cascas de ovo, presente de Pilar Montes, porque, apesar de ser uma baronesa e
uma grande dama da sociedade portenha, e Rafaela, uma pária, a senhora Montes
lhe estendeu a mão, reiniciado sua amizade, quão mesmo Lupe Moreno e Melody
Blackraven, de modo que se encontravam com freqüência na casa de alguma delas
ou no asilo Martín de Porres. Tratavam-na com o carinho de sempre e se
cuidavam de mencionar a Fúria ou à precária e pecaminosa relação que a unia a
ele.
Por Lupe e pela Corina, Rafaela estava informada dos mesentérios da política
portenha, infestada de complexidades e conluios. Resultava evidente que Moreno
não se levava bem com o presidente Saavedra posto que Lupe, ao referir-se à
esposa do militar, chamava-a "a gata fraca de Saturnina". A diferença de Corina,
que parecia desfrutar da política tanto como de seu amante, Sorte Arzac, Rafaela a
detestava, e declarava que só servia para dividir aos cidadãos, posto que se tinha
cercado uma batalha entre revolucionários e contra-revolucionários que enchia a
prisão de supostos traidores e infestava de denúncias os escritórios da Junta,
muitas apoiadas em rancores pessoais. Rafaela ouvia memorar com freqüência o
nome de seu primo, Aaron Romano, e se dava conta do poder que ostentava. "Seu
antigo prometido", comentou-lhe Corina em uma ocasião, "tem um exército de
espiões não só em Buenos Aires mas também nas intendências. Na imprensa nos
obrigou a contratar a um negro que sabe até o dia de nosso aniversário. O poder
de Romano se expande e, como não é trigo limpo, assusta-me".
Na opinião de Rafaela, os dois únicos atos de governo que valiam sua admiração
eram a fundação de um novo periódico, a Gazeta de Bons Ayres, e a criação de
uma biblioteca pública a cargo de frei Cayetano Rodríguez, ambas as obras do
secretário Moreno, as quais a beneficiavam: o periódico, posto que, a sugestão do
próprio Moreno, escrevia uma coluna semanal sobre o cuidado das plantas e da
terra que lhe rendia três pesos e seis reais por mês, e que não assinava nem
sequer com um pseudônimo; e a biblioteca, porque concorria freqüentemente a
consultar os livros, embora evitava topar-se com seu diretor porque temia que a

273
repudiasse.
Tampouco se topava com os membros de sua família quando concorria à casa da
rua Larga para visitar ñuque. O primeiro encontro foi de grande ansiedade. Babila
foi procurá-la com o carro aos Altos de Escalada perto do meio-dia. Entraram pelo
portão da garagem. A casa em que tinha vivido desde seu nascimento e que
conhecia profundidade lhe resultou alheia e estranha, e a sufocou, como se, ao
transpor a soleira, acessasse a entrar em uma prisão. Perturbou-a o incomum
silêncio, como se essas mesmas paredes condenassem sua relação com o gaúcho
Fúria.
Não se cruzou com ninguém, exceto com Peregrina, que a abraçou e lhe beijou as
mãos e lhe informou a respeito da condição de Ñuque. "Dom Miguel", a escrava
chamava assim ao doutor O’Gorman, "assegura que seu coração está muito
debilitado". A anciã, incorporada sobre uns travesseiros, emocionou-se ao vê-la, e
Rafaela pensou que se tratava da primeira vez em que a via chorar. A diferença de
seus amigas Lupe, Pilar e Melody, com Ñuque falava livremente a respeito de
Artemio Fúria, sem ocultações nem falsidades.
Levava várias semanas indo à casa da rua Larga, acostumada a seu silêncio e
escuridão, quando Cristiana se cruzou em seu caminho, com Poupée em braços.
Não houve intercâmbio de formalidades, só de olhadas carregadas de negros
sentimentos. A cadela cravava os olhos em Rafaela e grunhia. Aborrecia-as a
ambas, em especial por contar com a capacidade para tirar o pior dela.
—Inteirei-me de que está comprometida para casar com o filho de Grigera.
—Inteirei-me de que perdeu ao filho de Fúria —contra-atacou Cristiana—. Agora
entendo por que te abandonou.
—Não me abandonou. Viajou a Córdoba porque a Junta assim o pediu.
—Iludida—sorriu Cristiana—. A raptou aquele dia só pelo filho que esperava.
—Isso não é verdade.
—É verdade, posto que fui eu quem o visitou na pensão de dona Clara o dia
antes de suas bodas e lhe disse que estava esperando um filho dele —como
sempre, a surpresa a afundou em um estupor lhe paralisou. Sua prima
continuou—: Em um primeiro momento, só lhe informei que casaria com meu
irmão e... Como foi que respondeu? Ah, sim. Disse: "Que se case com quem merda
queira".'Que grosseiro! Verdade?
Desde esse encontro, a dúvida e o desgosto se instalaram na alma de Rafaela, e
nem sequer suas rotinas, atividades e amigas lhe devolveram as vontades de viver.
Para pior, voltaram os dores de estômago que fazia tempo não a incomodavam.
***
Aarón Romano se disse que era jovem e poderoso, com ascendência sobre o
presidente Saavedra, amigos influentes e um exército de prefeitos de bairro e
agentes de polícia que lhe temiam. Sua vida, entretanto, achava-se longe do ideal.
Junto com o fracasso da missão de Gabino, perdeu-se a oportunidade de
recuperar Rafaela e jogar mão à fortuna de seu tio Rómulo. Bernarda de Lezica era
a amante de seu padrasto e o olhava com desprezo. E, por último, a enfermidade
que o afligia tinha retornado com virulência; os pregos sifilíticos, como chamava o
doutor Saldaña às rodelas rosáceas, enfureciam-se com suas costas e seu peito.
—Agradeça, senhor Romano —interpôs o médico—, que não lhe tenham
aparecido no rosto. Vi narizes deformados por causa destes pregos —Aarón,
desesperado, exigiu-lhe uma medida drástica—. Aumentarei a dose do arsênico,
mas não a do mercúrio. Além disso, recomendo uma vida celibatária e repousada,

274
comida frugal e o uso de purgantes, que eu mesmo lhe proverei. As sangrias e os
banhos de vapor são benéficos.
Não retornaria à loja da Bernarda de Lezica. Para papelões e humilhações, a
noite anterior bastava. Ainda o dominava a ira de ter sido rechaçado como um cão
quando, em realidade, era um dos funcionários mais prestigiosos do novo governo.
Em suas mãos se achava o destino de muita gente. Acaso essa petulante não via
que podia mandar enclausurar sua loja e arruiná-la? Por que preferia a um velho
como Juvenal Romano quando ele era jovem e forte? Sua resolução não bastou e,
movido por essa paixão turbadora, caminhou até as portas da loja. Ali tropeçou
com Rafaela. Através do vidro, Bernarda testemunhava o encontro.
—Rafaela —pronunciou, e tirou a cartola; parecia incômodo, tímido de repente,
enquanto jogava olhadas a Lezica.
—Boa tarde, Aarón.
—Sabia que estava na cidade. Aonde te dirige?
—Retornava a minha casa.
—Acompanho-te.
Rafaela duvidou antes de caminhar junto a seu primo e transpor o portão dos
Altos de Escalada. Nas habitações de Corina não havia ninguém. Convidou-o a
passar e lhe serviu chocolate e uma parte de pão de laranja. Comeram e beberam
em um silêncio embaraçoso.
—Ainda te amo, Rafaela —expressou Aarón, e lhe buscou a mão através da
mesa—. Ainda te receberia se decidisse retornar para mim.
—Não sabe o que diz. Minha reputação foi destruída e nada poderá repará-la. As
pessoas me evitam na rua. Desprezariam-lhe se associasse seu nome ao meu.
—Você não tem culpa de que esse selvagem te tenha raptado.
—Aarón, não quero seguir te mentindo, não o merece. Fúria e eu tínhamos sido
amantes em La Larga. Eu esperava um filho dele.
—Há dito "esperava" porque, conforme entendo, Deus teve piedade de ti e tirou a
esse feto do ventre.
—Como pode falar assim? —Rafaela ficou de pé e Aarón a imitou—. Era meu
filho também, e eu o amava. Sofro uma tortura por causa de sua perda.
—Sinto muito, Rafaela, mas não pode pretender que eu queira ao filho desse
cafajeste. Onde está ele? Soube que te abandonou, covarde mal nascido.
Rafaela não reuniu a integridade para negar a afirmação porque, na verdade,
começava a pensar que era certo, tinha-a abandonado. Fazia mais, de dois meses
de sua partida e ainda nada sabia de Artemio Fúria. Deu as costas a Aarón e em
seguida sentiu suas mãos nos ombros. Obrigou-a a voltar-se e a abraçou. Tentou-
a a segurança e a fortaleza que emanavam de seu corpo com aroma de damasco.
Aarón significava amparo quando a vida a atemorizava. Beijou-a, um beijo lento e
reverente que a comoveu e, embora tivesse pensado em entregar-se, desistiu.
Assim como Aarón constituía um amparo, também formava parte da hipocrisia
dos Palafox, da decadência de uma família da qual ela se envergonhava. Não se
uniria a um homem por temor, não lhe mentiria cada noite quando a possuísse,
não fingiria amá-lo e desejá-lo quando sua cabeça estava cheia de Artemio Fúria.
—Vai, Aarón, por favor, vai. Não voltarei contigo. Destruiria seu bom nome.
Merece a alguém melhor que eu.
—Você é o melhor para mim. Só diga que sim e vamos para casa.
—Não. Jamais voltarei ali. Jamais.
Acompanhou-o à porta para despedi-lo. Pela extremidade do olho, Aarón

275
espionou a Calvú Manque que subia as escadas em direção a eles. Tomou pela
cintura e a beijou com ardor. Rafaela o apartou logo depois de superar a surpresa.
A figura de Manque dominou sua visão ao colocar-se a costas de Aarón. O índio a
contemplou com uma seriedade carregada de recriminação.
—Até mais tarde, Rafaela —se despediu Aarón—. Voltarei amanhã.
O "não" que teria pronunciado se entupiu em sua garganta. Não o viu partir.
Seus olhos permaneciam fixos nos escuros de Manque.
—Não é o que crê —acertou a dizer—. Tomou despreparada.
—Por que o deixou entrar?
—É meu primo.
—Era seu prometido. E Artemio o detesta.
—Não lhe mencione este incidente sem importância.
—Não me peça isso —disse, e se meteu dentro de suas habitações.
Rafaela lhe tivesse gritado: "Vá e diga-lhe igualmente nunca volte por mim".
***
Logo que chegou a Córdoba, depois de uma viagem exaustiva e enquanto se
ocupava das comissões de dom Juán Martín, Artemio enviou a Bamba, com um
saco cheio de moedas, a rondar em torno da casa que correspondia à direção
provida por Rómulo Palafox. Ao cabo de uns dias, o marucho sabia o nome do
proprietário, um tal Martín Avendaño, e conhecia seus movimentos.
—É casado? —quis saber Fúria.
—Sim. Sua esposa se chama Eduarda. Chamam-na miss Eduarda.
—Como é?
—Nunca..
—O que? Nunca sai? —Bamba se sacudiu de ombros—. Talvez eu consiga vê-la.
"Miss Eduarda." Eduarda. Edwina. O bastardo lhe teria trocado o nome para
afastar suspeitas? Edwina era um nome peculiar nessas latitudes.
Não contava com tempo para especular. Pueyrredón o mantinha ocupado até
tarde da noite. A cidade de Córdoba não aceitava a Revolução e se opunha à
Junta, por isso dom Juan Martín se movia com cuidado, sempre escoltado por um
grupo de seus homens, media as palavras e só confiava em torno de Artemio
Fúria. Apalpava-se a tensão no ambiente, e os fuzilamentos de Liniers e de
Gutiérrez da Concha, ocorridos em 26 de agosto, perto da paragem Cabeça de
Tigre, ao sudeste de Córdoba, pesavam no ânimo da população.
De noite, jogado na cama do quarto contiguo ao de Pueyrredón, no Conselho da
cidade, Artemio, com o facão ao alcance da mão, dedicava-se a fumar e a pensar,
e, embora o preocupassem as questões políticas e o obcecava Edwina, sempre
terminava evocando Rafaela. Os meses compartilhados no campo da Garganta de
Morón a tinham convertido em indispensável para ele. Lembrou-se da ansiedade
que o dominava quando se aproximava a hora de compartilhar uma comida ou, ao
cair o sol, de retornar à casa que ela mantinha limpa e acolhedora.
Teve muito tempo para meditar ao longo dessas noites de insônia, e se deu conta
de que, do juramento realizado diante do Santíssimo, vivia em relativa paz. Queria
achar sua irmã, sim, mas às vezes temia ao encontro. Sua vingança, a que o tinha
mantido em movimento durante anos, já não constituía o pilar de sua vida.
Rafaela era quão único necessitava. "Minha Rafaela", sussurrava na escuridão,
"ainda está aí, me esperando? Sabe Deus que não tenho direito a exigir-lhe. Às
vezes, um sufoco o obrigava a incorporar-se e a sentar-se no bordo da cama para
inspirar várias vezes de modo profundo. Atormentava-o uma imagem: ele, de

276
retorno em Buenos Aires, entrando na casa de Corina Bonmer, e esta, com cara
triste, lhe informando que Rafaela se foi com o Aarón Romano. Esse patife era um
homem de peso agora e podia convencê-la se o propunha. Não me esqueça, senhor
Fúria, tinha-lhe pedido ela com um desejo na voz que afastava as dúvidas. "Não a
esquecerei, minha Rafaela das flores. “Penso sempre em você.” Queria fazê-la feliz,
que esquecesse as humilhações, os maus tratos e, sobre tudo, a perda do menino.
Acondicionaria-lhe uma parte do terreno no campo de Morón para que o
transformasse em um jardim. Compraria-lhe plantas exóticas, com flores
perfumadas, e árvores estranhas; ela tinha mencionado alguns que desejava, um
ocozol, do qual obteria liquido âmbar, e uma sampaguita, cujas flores cheiravam
melhor que o jasmim, para confeccionar azeites e perfumes; pois os conseguiria.
Disse-se que sabia muito de Rafaela porque ela, apesar de sentir-se traída,
mostrava-se expansiva e lhe confiava seus sonhos. Ele, em troca, guardava para si
seus pensamentos mais ocultos, um velho costume nascido a noite de 5 de junho
de 1790, a qual, nesse novo tempo em que começava a transitar, não tinha lugar.
Rafaela seria sua confidente além de seu amante e a mãe de seus filhos.
—A mulher de Avendaño sai pouco —lhe informou Bamba, alguns dias mais
tarde—. As vezes, ela mesma vai às compras em Portal de Valados. Muito embora
e com duas escravas por detrás.
Como o Portal de Valados, um almpendre com lojas, situava-se perto do
Conselho, Fúria ordenou a Bamba que, quando a mulher de Avendaño aparecesse,
fosse buscá-lo. O acontecimento não demorou para ocorrer, e Bamba, agitado e
com o rosto avermelhado, cruzou o pátio principal do Conselho e se meteu no
quarto de Fúria.
A mulher, como o marúcho tinha antecipado, ia muito coberta; resultava difícil
vislumbrar suas feições. Entrou na farmácia, e Fúria a seguiu. As escravas lhe
lançaram olhadas receosas ao vê-lo com suas roupagens de gaúcho e o facão
cruzado no atirador. Aproximou-se do mostrador e se colocou junto à mulher. O
primeiro que espionagem foram suas mãos, de dedos largos e muito brancos, e
unhas bem cuidadas. "Mãos de dama", pensou.
Como Rafaela lhe tinha comentado que, desde fazia tempo, desejava fabricar um
perfume a base de almíscar e pastilhas de abelmosco para o fôlego fresco, sua voz
trovejou no pequeno recinto ao pedir:
—Uma onça de almíscar e oito pedacinhos de sementes de abelmosco.
Tanto o farmacêutico, que atendia à mulher embuçada, como seu ajudante o
olharam, pasmados. Esse não era o tipo de mercadoria que solicitava um homem
com aspecto tosco e feroz.
—São produtos muito custosos —interpôs o farmacêutico, com tom medido.
—Não importa —disse Fúria, e soltou sobre o mostrador um porta-níqueis com
grande estrondo.
A mulher girou a cabeça e o que tinha pretendido ser uma olhada de soslaio se
converteu em um aberto escrutínio, como se tivesse achado algo fascinante no
rosto do homem e não conseguisse separar a vista dele. O farmacêutico pigarreou,
e a mulher em seguida baixou o rosto para ocultar sua contrariedade.
Para o Artemio se tratou de um momento fugaz, embora o suficiente para
apreciar a cor turquesa dos olhos da mulher; inclusive viu algumas mechas que
lhe caíam sobre a frente, de uma tonalidade indefinida entre o loiro e o
avermelhado, similar a da condessa de Stoneville. O coração lhe deu um tombo,
como se detivesse por um instante, e as mãos lhe tremeram. Não tinha dúvida:

277
junto a ele se encontrava sua irmã Edwina. E se tratava de uma perversa
casualidade e a esposa de Avendaño tinha esboços similares aos de sua irmã?
Estudou-lhe o perfil, com o nariz como a dele, pequena e reta, e o lábio superior
carnudo e um pouco escoiceado, e evocou uma imagem de Emerald que não sabia
que ainda conservava em sua memória. Sim, era Edwina. Tão perto e, ao mesmo
tempo, tão longe. Não se atrevia a abordá-la com essas escravas por detrás.
Ao dia seguinte, Bamba, com um estímulo de vários reais, conseguiu que uma
doméstica entregasse a miss Eduarda uma nota. Se quer saber que destino sofreu
seu irmão Sebastian de Lacy, vá amanhã à igreja da Mercê às 3 da tarde. A Mercê,
por tratar-se da igreja nas cercanias da casa de Avendaño, era a igreja onde
Edwina assistia a missa, uma coincidência que Fúria não passou por cima e que o
levou a pensar no padre Ciríaco, com quem seguia aborrecido, e em seus anos no
convento.
Edwina, com o xale cobrindo-a por completo, inclusive o rosto, saiu de sua casa
acompanhada por uma menina mulata. Caminhavam rápido e com passo nervoso.
Fúria entrou na igreja detrás delas. A penumbra do interior contrastava com o sol
da sesta, e, por um momento, ficou cegado. Não havia ninguém, e percorreu o
templo com liberdade até as divisar em uma das capelas laterais. Afetou-o que se
tratasse da de São Serapio. Ajoelhou-se junto a sua irmã.
—Sabia —sussurrou—, que São Serapio era de origem irlandesa? —a mulher deu
um coice e girou para confrontá-lo—. Sabia?
—Você é o homem da farmácia.
Edwina ficou de pé e Fúria a imitou, comovido pelo som de sua voz. De repente,
uma luz de lembranças transbordou em sua cabeça. Parecia aterrada, e na tensão
de seu semblante se podiam entrever as forças que a dominavam; umas a
impulsionavam a fugir, outras, a ficar e averiguar se esse homem tinha que ver
com a nota. Tomou a mão da menina e girou para afastar-se.
—Edwina! —pronunciou Fúria, e a viu deter-se em seco.
—Deus bendito! —escutou-a murmurar.
Fazia tantos anos que não a chamavam por seu nome. Um calafrio, que lhe
subiu pelas pernas, aninhou em seu estômago em forma de ligeira náusea. Não se
atrevia a voltear. Escutou-o pronunciar seu nome de novo, esta vez mais perto, a
suas costas.
—Quem é você? —disse de repente, e girou sobre si, com um ímpeto que se
sobressaiu a seu interlocutor.
—Chamam-me Artemio Fúria —conseguiu responder—, mas, ao igual ao seu,
esse não é meu verdadeiro nome.
—Não sei a que se refere.
Artemio começou a falar em inglês.
—Seu nome não é Eduarda a não ser Edwina de Lacy —a comoção na mulher
resultava evidente—. Você é filha de Horatio de Lacy e do Emerald Maguire,
assassinados em 5 de junho de 1790 pelo coronel Martín Avendaño.
O tremor que nasceu no queixo da mulher se estendeu ao resto de suas feições e
de seus membros. Caiu sentada no piso, com a cabeça afundada entre os ombros,
presa de um pranto dilacerador. A menina, ajoelhada junto a sua ama, abraçava-a
e a beijava. Artemio a ajudou a incorporar-se e a obrigou a sentar-se no
confessionário frente a São Serapio. Tirou o lenço de seda do pescoço, apartou o
xale da cabeça de sua irmã e lhe secou as lágrimas com uma ternura tão
inesperada em um homem de sua textura e de seu aspecto que só conseguiu que o

278
pranto aumentasse.
—Quem é você? —voltou a inquirir a mulher, entre soluços.
—É que ainda não o adivinha? —falou Fúria, sempre em inglês.
—Desejaria que você fosse meu pequeno irmão Sebastian —disse ela, caindo na
mesma língua com naturalidade.
—Sou-o.
Edwina cobriu o rosto e, sem pensá-lo, recostou-se sobre o torso de Artemio para
seguir chorando. Procurava controlar-se e lhe resultava impossível; uma eclusa se
aberto em seu interior, e o pranto, apanhado por mais de vinte anos, por fim
achava o caminho para fluir. Artemio a recolheu em seus braços e a balançou
como a uma menina. Chorava ele também, enquanto tentava cancelar de sua
mente as cenas que o atormentavam, não só a da camisola de Edwina tragado
pela escuridão junto com seus gritos, mas também as que sua imaginação
ensaiava de como teria transcorrido sua vida ao lado de um homem abominável.
Não obstante, no meio da dor, uma calidez lhe enfraquecia a alma: tinha
recuperado Edwina e, em certa forma, o passado e sua identidade.
***
Sem seu alambique, o queimador, as redomas e demais equipamento, Rafaela se
encontrava limitada para produzir perfumes e cosméticos; não obstante, em um
rincão das habitações de Corina, ela e Creóla improvisaram um pequeno
laboratório; se tratava de cozidos ou das mesclas de sebo, usavam a cozinha dos
Altos de Escalada, para o qual pagavam um extra de 2 pesos, quatro reais ao mês.
Convencida de que Fúria não voltaria, Rafaela tinha decidido entrar em
entendimentos de novo com Bernarda de Lezica. "Seus produtos, Rafaela, vendem-
se como rosquinhas", tinha expresso a tendera e prestamista. Até tanto
recuperassem os elementos, fabricavam só algumas pastilhas de sabão, certos
ungüentos e água da Hungria, a que usava Mimita, uma combinação de
bergamota, essência de limão e romeiro que, de acordo com a informação de
Lezica, fascinava a todos os cavalheiros do Rio da Prata. Uma vez consumidos os
poucos azeites e essências que ficavam, seria necessário o alambique para realizar
destilados de flores. Creóla pronunciou em voz alta a pergunta que a Rafaela
tirava o sonho: de onde tirariam as flores? Também necessitariam dinheiro para
comprar álcool, sebo, cera de abelhas e, sobre tudo, fixador para o perfume, um
ingrediente muito custoso, como o âmbar cinza e a borracha arábica.
Pouco a pouco, o rincão do laboratório ganhou preponderância e em questão de
semanas as habitações de Corina despediam intensos aromas que atraíam às
vizinhas, com exceção de Albana, a quem viam pouco e que, ao passar, não se
dignava às saudar. Resultava parte da composição encontrar a Rafaela coberta por
seu avental branco, do exuberante peito até os pés, com um lenço na cabeça,
ocupada em mesclar emplastros, em macerar flores, em extrair o azeite de uma
bergamota com a técnica de compressão ou em pendurar de barriga para baixo
Ramos de lavanda, cantueso, mimosa, flor-de-laranja, rosas, tomilho, milenrama e
romeiro, que obtinham do jardim da casa da rua Larga e do asilo de Martin do
Porres.
Corina, desacostumada a esse festim de fragrâncias, queixava-se.
—Para que te empenha em cozinhar estes preparados nauseantes?
—Necessitamos o dinheiro.
—Eu tenho dinheiro. Além disso, Fúria te deixou tantos dobrões que não sei
quando terminará de gastá-los.

279
—Um dia se acabarão —interpôs Rafaela.
—Então, ele voltará.
—Sabe que não o fará. E se voltar, Calvú lhe dirá que me viu com o Aarón e tudo
acabará.
—Não sabe.
—Sei, Corina. Conheço fúria. O pensará que o traí. Um homem como esse jamais
perdoaria uma traição.
No fim de novembro, Rafaela ainda não tinha recebido notícias de Fúria.
Estanhava que Calvú Manque e Torquil seguissem ocupando o quarto contigüo
nos Altos de Escalada. De seguro, eles também esperavam que o gaúcho
aparecesse e os relevasse do encargo. Desde o episódio com Aarón, Calvú Manque
lhe falava pouco e só para lhe perguntar se necessitava algo. Ela tinha tentado
esclarecer a confusão uma vez mais, mas o índio não tinha querido escutá-la.
Uma tarde, a primeira do mês de dezembro, Rafaela entrou no negócio da
senhorita Bernarda para entregar uma encomenda de sabões. A mulher, que a
noite anterior tinha sofrido uma nova visita de Aarón Romano, parecia desfigurada
e preocupada. Olhou Rafaela, sorriu-lhe com relutância e continuou com a
recontagem da mercadoria. Deteve-se, voltou a olhar a Rafaela e, depois de um
suspiro, expressou:
—Seu primo, Rafaela, não é uma boa pessoa. O digo não porque seja uma
fofoqueira mas sim porque lhe tomei carinho e não desejo que esse canalha a
prejudique.
—Senhorita Bernarda!
—Desculpe-me que fale com franqueza, mas seu primo não é mais que isso, um
canalha, um vagabundo, um rasteiro, por muito intendente de Polícia que seja —a
esse ponto, Rafaela ficou sem palavra—. O vi o outro dia, aqui na porta de minha
loja, tratando de seduzi-la. A que não? Afaste-se. Padece uma enfermidade muito
contagiosa. O morbo francês.
—Deus misericordioso!
—Além disso, é dono de um bordel na zona da Praça de Marte, perto de Retiro.
Dizem que rouba às mulheres e as obriga a trabalhar. Também tem uma casa de
jogo clandestino. Vejo que me contempla como se de repente me tivessem crescido
chifres na frente. Se não me crê, pergunte a León Pruna. Não lhe mentirá porque,
apesar de que arruma a esse mal nascido, quê-la muito a você.
Essa noite, enquanto repassava o diálogo com Bernarda de Lezica, Rafaela jurou
que a hipocrisia de sua família jamais a tocaria. Apesar da promessa, expressa em
términos veementes, teve medo porque se deu conta de que pela primeira vez em
sua vida estava sozinha, sem Fúria, sem Aarón e sem Rómulo.
***
Artemio pensava que no olhar de Edwina se revelasse o sofrimento pelo que tinha
atravessado. Não obstante, tratava-se de uma mulher formosa, que conservava o
caráter jovial e otimista que ele recordava da infância.
Visitava-o quase diariamente nas habitações que ele ocupava no Conselho, e
sempre em companhia da pequena mulata, Pandora, uma escrava a quem Edwina
se havia aficionado. As entrevistas se concretizavam em segredo, pois a servidão
da casa de Avendaño teria informado ao patrão das escapadas. Quando Adelfa, a
cozinheira, fiel ao amo Martín, perguntava a Pandora aonde tinha ido com a ama
Eduarda, a pequena sempre respondia: "À novena da Mercê".
Os primeiros encontros se desenvolveram em um ambiente tenso, até que

280
decidiram confrontar a situação com franqueza e falar. Edwina tinha dois filhos
com Avendaño, de dezenove e dezessete anos, Martín e Eduardo. Amava-os mais
que a nada no mundo e teria dado a vida por eles. Avendaño também os adorava,
e os filhos professavam admiração pelo pai. Os três se encontravam na
Chuquisaca, onde Martín e Eduardo permaneceriam durante cinco anos para
estudar leis.
—Odiei a Avendaño com uma força da que não me acreditava capaz, Sebastian.
Odiei-o para tentar matá-lo. Não o consegui. Tratei de me tirar a vida, mas ele me
impediu isso. Por dias inteiros não comi nem bebi, até que ele me obrigou. Escapei
e o denunciei por ter assassinado a nossos pais. Terminei encerrada em um
convento, acusada de insanidade. Ali permaneci dois meses a pão e água e a
banhos frios. Retornei quebrada e sem ânimo para lutar. Em seguida fiquei
grávida, e odiei ao filho de Avendaño até o dia em que nasceu, até que o sustentei
em meus braços. Então, tudo mudou. Chorei e chorei, por mim, por ti, por nossos
pais e por meu filho, a quem não queria fazer infeliz. Essa pequena criatura não
tinha culpa de nada.
Artemio se dava conta de que Edwina tentava justificar-se com seu discurso; em
ocasiões, até tinha a impressão de que lhe pedia perdão por estar viva e ser feliz
com seus filhos. Não aborrecia a Avendaño, Artemio o via, embora tampouco o
amava.
—Edwina, nosso destino foi duro e difícil —a tranqüilizou—. Não tem que me dar
explicações pelas decisões que tomaste. Encontrava-te sozinha, com quinze anos,
em mãos deste homem que te desejava e te queria junto a ele.
—vieste a matá-lo, verdade?
—Não.
—Obrigado —pronunciou Edwina, com voz trêmula—. Não por ele, mas sim por
meus filhos. Sofreriam com a morte de seu pai.
—Ele é bom contigo? Trata-te com decência?
Edwina assentiu, sem olhá-lo. Avendaño, a sua maneira, amava-a. Tinha
abandonado a sua prometida, uma mulher de classe alta, para ficar com ela.
Tinha-a convertido em sua esposa para não desonrá-la, nem a ela nem aos
meninos, a quem, sem dúvida, amava profundamente, eram seu orgulho e o
sentido de sua existência. Não mencionaria a Artemio as infidelidades do
Avenduño nem como a zelava; às vezes a castigava com compridos silêncios e lhe
proibia sair da casa simplesmente por lhe sorrir a um cavalheiro ao saudá-lo; às
vezes, se tomava mais da conta, lhe escapava um tapa. Tampouco falaria de seus
negócios turvos nem das dívidas de jogo porque não lhe importavam. Só queria
estar perto de seus filhos e viver em paz.
—O que sabe de Antenor Ávila? —interessou-se Artemio.
—Esse traidor te buscou por meses. Avendaño me tinha prometido que, se lhe
achavam, viveria conosco. Mas nunca deu contigo. Antenor morreu três anos
atrás. Degolou-o um marido ciumento. Tenho que te confessar que me alegrei.
Também tocavam outros temas. Artemio lhe falava de sua vida como gaúcho, de
seu campo em Garganta de Morón e especialmente de Rafaela. Por sua parte,
Edwina, quase cinco anos mais velha que Artemio e conhecedora da história dos
de Lacy, relatava-lhe as anedotas de seu avô, o conde.
—Teu seria o título se o reclamasse —lhe informou—. Embora duvide de que o
atual conde de Grossvenor, nosso avô, aceite-te. É o filho de uma Maguire, de uma
supersticiosa papista, como a chamava. Aborrecia-a ao ponto de mandar matá-la.

281
Foi por isso que nosso pai decidiu pedir ajuda a seu tio, na Espanha, e terminou
nestas terras.
Com Edwina, Artemio era distinto, e, sem contenção, abria-lhe seu coração e lhe
contava a respeito dele.
—Aos dezessete anos, quando deixei o convento, saí ao mundo com um único
propósito: encontrar a ti e vingar a morte de nossos pais. Junto a meu amigo,
Calvú Manque, iniciei uma vida errante. Viajamos de um extremo a outro do Vice
Reinado, te buscando, perguntando, averiguando, enlouqueci. Nada. Nunca soube
nada. Com o tempo, a angústia e o desespero cederam, embora não as
esperanças, e sempre segui te buscando. Até que conheci Rafaela e, com ela, a seu
pai. Bom, já te referi quem é ele.
—OH, Sebastian, quanto o sinto!
—Edwina —disse Artemio, e tomou as mãos—, quero que saiba isto: que nunca
deixei de te buscar. Nunca, jamais desisti de minha busca. Desejava ver-te de
novo, saber que estava viva e bem. Quando fomos meninos, amava-te tanto. Você
foi minha adorada irmã mais velha, a que me contava histórias e me permitia
dormir em sua cama quando tinha medo, a que me fazia rir com cócegas e dar
voltas no ar. Nunca pude te esquecer. Amava-te antes e te amo agora.
—Sebastian! —exclamou Edwina, e terminou chorando em seus braços—. Irmão
meu! Como desejaria que papai e mamãe estivessem aqui! Hoje especialmente os
joguei tanto de menos. Não há dia em que não pense neles, na forma em que
morreram. E o assassino de nossos pais é o pai de meus filhos. Perdoe-me,
Sebastian!
—Você não tem culpa de nada, Edwina. É uma vítima e tem feito o que
consideraste sensato para enfrentar esse destino cruel. Admiro sua integridade e
seu valor. Nunca volte a me pedir perdão.
No fim de novembro, Juan Martín de Pueyrredón recebeu a ordem de assumir em
janeiro o governo de Chuquisaca e, embora pediu a Artemio que o acompanhasse,
este se negou. A menção de Chuquisaca o enfrentava com seu destino: Martín
Avendaño se achava nessa cidade. Temia a seu temperamento e não confiava em
sua perseverança.
—Entendo —Pueyrredón se mostrou pormenorizado—. Deixaste sozinha a sua
mulher em Buenos Aires e quer voltar por ela.
—Ademais, dom Juan Martín, porque esse lobo de Aarón Romano deve estar
espreitando-a, como em zelo.
—Acaba com ele, Artemio! Acaso não te desafiou no campo de honra por lhe
haver roubado a noiva? —Fúria negou com a cabeça—. Covarde! Pouco homem!
Mereceria que o trespassasse com seu guampudo em uma esquina escura e pelas
costas.
—Aceitaria com gosto um duelo, dom Juan Martín, mas anda parecendo que
Rafaela não me perdoaria se despachasse a seu primo ao inferno.
—Sim, sim, claro, entendo. Assim são as mulheres, seres brandos. Pois bem,
prepara sua partida. Alguns de seus homens (você escolhe quais) me
acompanharão a Chuquisaca. Outros, voltarão contigo para Buenos Aires
escoltando ao bispo Gregorio Funes quem, como sabe, é o deputado por Córdoba e
deve integrar-se à Junta.
Fúria se consagrou a organizar a volta. De repente o embargaram umas ânsias
irreprimíveis de voltar para a Rafaela. O lenço de seda empapado com seu perfume
Amor conservava um leve aroma que, longe de satisfazê-lo, aumentava sua sede

282
por ela. Quanto a Edwina, informou-lhe que Bamba permaneceria em Córdoba a
seu serviço. Como ela não podia contratá-lo sem levantar suspeitas, decidiu-se
que viveria na casa de uma velha amiga de Artemio, Dolores García, viúva de
Ismael Santos, a quem Fúria tinha esfaqueado em um duelo para apoderar-se de
sua mulher e de sua caravana de carruagens. Não tinha lamentado desfazer-se de
Santos, ao contrario, tinha-lhe enterrado o facão com gosto nas tripas enquanto se
lembrava de como o muito mal parido se deleitava golpeando Dolores até lhe
deformar o rosto.
Como sempre, a viúva de Santos o recebeu com dramalhão. Pendurou-se de seu
pescoço e o beijou na boca. Fúria a apartou com jeito. Entregou uma bolsa de
couro cheia de dobrões —a metade dos lucros anuais das carruagens— e
apresentou a Bamba.
—Dolores, aqui te trago para a Bamba. Este moreno é muito inteligente e correto.
Quero que o receba em sua casa enquanto faz um bico aqui, em Córdoba. Pagarei.
A mulher examinou ao moço em silêncio.
—Para o que? —perguntou-lhe.
—Para o que a dona mandar —respondeu Bamba.
—Está bem, Fúria. Que fique.
Durante a despedida, Bamba parecia cabisbaixo.
—Não quero ficar, Artemio. Quero voltar contigo.
—Bamba, confio em ti tanto como em Calvú —A declaração animou ao
marucho—. Estou te encarregando de algo muito importante para mim. Quero que
cuide e fique a serviço de miss Eduarda. O que ela te peça, você o faz. Está claro?
—Sim, Artemio.

283
Capítulo XXIV

O imperador do rio de prata

Como de costume, Babila chegou a Altos de Escalada para conduzi-la à casa da


rua Larga. Ñuque, conforme lhe informou o chofer, tinha pedido repetidas vezes
por ela e se achava inquieta. Ao vê-la, Rafaela comprovou que a anciã tinha
piorado em poucos dias. Tirou-se as luvas e tomou as mãos.
—Aqui estou, Ñuque. Diz Babila que perguntaste por mim.
A anciã lhe pediu que a incorporasse no travesseiro.
—Hoje, ao despertar, soube que já não fica muito tempo —levantou a mão e
desenhou uma careta severo quando Rafaela tratou de rebater sua afirmação—.
Não fica muito tempo —insistiu—, e acredito que chegou a hora de te contar uma
história.
—Eu gosto das histórias —sorriu Rafaela.
—Esta é muito triste. Trata-se de um menino pequeno que uma noite viu como
um homem, junto com dois cúmplices, esfaqueava a seus pais, roubava-se a sua
irmã e incendiava sua casa.
—É uma história verdadeira? —Ñuque assentiu—. Pobre criatura!
—Ficou sozinho no mundo, cheio de medo, de ódio e de sede de vingança.
—Por que me conta isto?
—Porque hoje esse menino leva o nome de Artemio Fúria.
—OH, não! —Rafaela saltou do bordo da cama e permaneceu quieta, de pé, com
as mãos sobre a garganta e o olhar fixo em Ñuque—. Não —murmurou, não é
certo.
—Vem aqui, Rafaela. Quero que conheça a história até o final. Não trema —lhe
pediu Ñuque, e lhe aferrou as mãos com uma energia inesperada—. Não trema.
—Ñuque. Meu Deus —tratou de concentrar-se, de acomodar as idéias—. Como
conhece você esta história? Acaso o senhor Fúria lhe contou isso?
—O não. Contou-me isso seu pai.
Ñuque se assustou ante a palidez que, em um instante, apoderou-se do rosto de
Rafaela. Tomou um frasco com sais, desarrolhou-o e o passou sob as fossas
nasais da jovem. A amônia lhe ocasionou um coice, como se lhe houvessem
desferido um tapa para voltá-la em si.
—Meu pai? —disse, com voz quebrada—. Não quero escutar, Ñuque.
—Seu pai foi um dos cúmplices —Rafaela caiu de rosto sobre a cama—. Artemio
o reconheceu quando o viu em La Larga aquela tarde. Recorda como escapou
aquele dia, como alma que leva o diabo?
Rafaela não respondeu, e sua cabeça seguiu balançando-se a causa do pranto;
não obstante, ouvia e entendia o que Ñuque lhe contava. As imagens do passado
iam a sua mente para encaixar em um quebra-cabeças que a ela tinha
desconcertado até esse momento. Os diálogos, as reações, os comentários, tudo

284
adquiria um novo sentido à luz da revelação de Ñuque.
—Agora compreendo por que me odeia tanto.
—É uma tola! —a ferocidade da anciã a levou a incorporar-se e a contemplá-la
com pasmo—. Te ama mais que a sua própria vida! Não te dá conta de que não
assassinou Rómulo, como se merecia, porque é seu pai? —Os olhos de Rafaela
voltaram a alagar—. O tem feito por ti, Rafaela, pelo imenso amor que lhe inspira.
Não seja egoísta e pensa! Pode imaginar o inferno em que viveu desde que soube
quem era seu pai?
Não, não podia imaginá-lo. Era incapaz de recrear um sentimento que se
aproximasse do que Artemio Fúria tinha experimentado. Permitiu-lhe à dor e à
tristeza que a levassem por diante, deixou de pensar, até de chorar, e permaneceu
arremesso sobre as pernas de Ñuque sem ânimo para nada. Nesse estado
letárgico, foi aquietando-se. Ñuque lhe acariciava o cabelo e seguia lhe falando em
voz baixa. Uma imagem, das mais belas que Rafaela entesourava, cobrou vida em
sua mente. "por que não usa sua orelha esquerda para pendurar argolas? Vejo
que tem três orifícios." "Tinha-os lhes reserve para outra coisa." "Que coisa?" "Já
não importa. Agora a vou usar para me pendurar tantas argolas como filhos faça a
você." Os lábios lhe tremeram quando sorriu.
***
Em 5 de dezembro chegou a Buenos Aires a notícia da vitória do exército da
Junta sobre as forças realistas na Suipacha. Moreno foi ao Forte para unir-se aos
festejos organizados pelos militares do entorno de Saavedra. O soldado de guarda,
com ar prepotente, disse-lhe que não o conhecia e que não podia passar. Furioso,
Moreno retornou a sua casa. Perto das doze da noite, visitou Beruti para lhe
referir que o capitão Atanasio Duarte, incondicional do presidente da Junta e do
coronel Martín Rodríguez, muito ébrio, tinha pronunciado um brinde "à saúde do
imperador Cornelio Saavedra". Além disso, o cozinheiro do Forte tinha preparado
um merengue em forma de coroa que se localizou diante de Saavedra.
Moreno, fora de si, incapaz de pegar olho, dedicou-se a escrever o decreto que se
conheceu dias mais tarde na Gazeta de Bons Ayres como "Supressão das honras
ao presidente da Junta e outros funcionários públicos". A greta entre morenistas e
saavedristas se ampliou até desvelar o abismo que os separava.
Lupe, a quem Rafaela visitava com freqüência em sua casa da rua da Piedade
para entregar os artigos sobre plantas que publicava a Gazeta, referia-lhe estes
fatos com temperamento entusiasmado. Falava-lhe dos viciados na causa, dos
inimigos declarados e dos mornos, e das intenções de Saavedra em erigir-se como
imperador do Rio da Prata; desconfiava dos deputados que, pouco a pouco, foram
chegando a Buenos Aires, e definia como um desatino a idéia de incorporá-los à
Junta porque a tarefa de governo se voltaria impraticável.
—O que se fará com os deputados? —fingiu interessar-se Rafaela.
—Moreno quer que formem um congresso para decidir o tipo de governo que nos
regerá. Além disso, exige que pronunciem a ruptura com a monarquia espanhola e
declarem a independência. Vejo —acrescentou Lupe—, que lhe assustam minhas
palavras ao igual a assustam aos deputados. Deve saber, querida Rafaela, que ao
gaúcho Fúria não o assustariam já que ele está muito de acordo com isto.
Rafaela se ruborizou; suas amigas nunca mencionavam a Artemio. Lupe seguiu
encetada em seu monólogo a respeito da situação política do Rio da Prata.
Escutava-a por consideração e assentia, embora se dedicasse a meditar a respeito
de Fúria, a quem sentia falta com forças renovadas desde a confissão de Ñuque.

285
—Castelli e Belgrano apóiam a meu Moreno na Junta, mas agora estão longe, em
missões militares, como bem sabe. Moreno lamenta de não ter emprestado
atenção ao conde de Stoneville quando lhe sugeriu que não se precipitasse a
enviá-los longe quando a situação em Buenos Aires não estava consolidada. Agora
Moreno e Passo devem enfrentar sozinhos a Saavedra e sua banda de
monarquistas.
A manhã do domingo 9 de dezembro, Babila se apresentou nos Altos de Escalada
e informou a Rafaela que Ñuque havia falecido na madrugada. Trocou-se depressa
e partiu com o chofer para a casa da rua Larga. Temperou seu caráter pois
resultaria inevitável topar-se com seu pai, suas tias e suas primos.
Ñuque estava deitada em sua cama, vestida com um custoso traje negro que
Rafaela não conhecia. Seu semblante transmitia paz. Ao entrar Clotilde, Rafaela,
sem saudá-la, partiu para os interiores. Deteve-se ante a porta do quarto de sua
tia Justa e ouviu a voz de seu pai que trovejava. Chamou e, sem esperar a
permissão, entrou. Rómulo se deteve o vê-la. Sua tia Justa, sentada no bordo da
cama, com vários de seus vestidos sobre a saia, chorava.
—O que acontece? —perguntou Rafaela—. Por que brigam?
—Sua tia Justa quer mandar tingir todos seus vestidos para levar luto por
Ñuque.
A Rafaela pareceu desmedido. Ninguém da sociedade teria aceito que se vestisse
de negro por um membro do serviço doméstico.
—Tia Justa, não é necessário —atravessou Rafaela.
—Você não compreende —vacilou a mulher.
—O que deve compreender? —chateou-se Rómulo—. Que te tornaste louca e que
quer nos envergonhar e nos humilhar ainda mais frente a nossos pares? Não foi
suficiente todo o escárnio que devemos suportar?
Rafaela não recolheu a indireta acusação e observou a Rómulo e a Justa com a
desapreensão com que se olha uma peça de teatro.
—Tratava-se de uma doméstica! —insistiu Palafox—. Como justificará o luto por
uma faxineira?
—Não era uma faxineira! —explorou Justa, e ficou de pé—. Era nossa mãe!
Em um princípio, Rafaela pensou que sua tia o dizia em sentido figurado.
Entretanto, ante a palidez e o gesto desencaixado de Rómulo, uma dúvida a
perturbou.
—Cale-te, Justa! Fecha a boca!
—Nossa mãe! A que nos pariu! A que nos deu a vida!
Como Rómulo se aproximou para sossegar a Justa de um golpe, Rafaela se
interpôs. Olhou-o aos olhos e o odiou.
—Vá-se —sussurrou, quase sem separar os lábios—. Longe daqui.
Abraçou a sua tia Justa e a consolou. A mulher, mais acalmada, contou-lhe a
verdade a respeito de Quelupén, quem, desde pequena, tinha servido a Engracia
Binda e que inclusive a tinha acompanhado a Espanha quando partiu de Buenos
Aires para casar com um aristocrata madrileno, Ambrosio Palafox, que caiu cativo
da beleza exótica da jovem Índia logo que posou seus olhos nela. Engracia nunca
concebeu, por isso Ambrosio a obrigou a aceitar como próprios os filhos que tinha
com Quelupen. Por essa razão abandonaram Madrid e procuraram o anonimato
em Potosí, onde Rómulo, Justa e Clotilde foram criados como legítimos de Palafox.
Peregrina trouxe um chá de pasionaria e melisa para Justa, e Rafaela o deu a
beber a colheradas. Ajudou-a a recostar-se e saiu do quarto ao vê-la adormecida.

286
Seu pai a esperava fora. Era outro. A energia o tinha abandonado; um peso lhe
abatia os ombros, uma sombra subtraia vivacidade dos olhos verdes, um tremor
lhe deformava os lábios. Estirou o braço e tendeu a mão a sua filha. Ela duvidou.
Pensava em Artemio, em seus pais, na dor que Rómulo lhes tinha causado;
também recordou Cristiana e a Mimita, e a Rómulo de sua infância, ao que a tinha
mimado, ao que a tinha feito sentir amada. A súplica no olhar de seu pai a
comoveu. Não recordava havê-lo visto tão vencido nem entregue, tão despojado de
sua presunção. Tomou a mão, e seu pai a apertou com a mesma intensidade com
que apertava a boca e as pálpebras para conter o pranto.
—Pai —sussurrou Rafaela, e Rómulo pôs-se a chorar.
Terminaram abraçados em meio da galeria que circundava as habitações.
—Fique ! —implorou-lhe Rómulo—. Fica para sempre!
—Não, pai. Aconteceram muitas coisas entre nós. Já não pertenço a esta família.
Só me sinto parte de Artemio Fúria, de ninguém mais.
Rómulo assentiu. Acompanhou-a até a zona das cavalariças. Babila a levaria de
retorno ao centro. No trecho que caminharam, Rafaela jogou mão de uma
conversação banal.
—Como vai sua Carta Executoría de Nobreza?
—Esquecida. O novo governo, embora se diz monarquista, é muito jacobino, e
está contra os privilégios de classe. Já haveria lido na Gazeta que nem sequer o
presidente da Junta pode receber um trato preferencial.
—Sinto muito.
Rómulo sacudiu os ombros. Surpreendia a pouca importância que lhe outorgava
ao assunto. Viu-o pinçar em seu bolso e lhe estender uma folha dobrada e
lacrada.
—É carta de sua tia Pola —sorriu ante a expressão de sua filha—. Saberia que
ficaria contente.
—Quando chegou?
—Faz uns meses.
—houve outras?
—Não muitas —admitiu seu pai.
—Já vejo —murmurou, sem forças para iniciar uma discussão.
—Virá para ver-me? —Rafaela assentiu—. Te quero, minha filha.
Guardou silêncio porque não sabia que sentimento lhe inspirava seu pai exceto
lástima. Sorriu-lhe e subiu ao carro, e ficou olhando-o até que Rómulo se
transformou em um ponto na extensa rua Larga. Colocou a cabeça, se enrolado
assento e chorou amargamente. Com a morte de Ñuque, todo vínculo com sua
família se extinguiu. Não voltaria. Sentiria falta de seu jardim.
***
Em meados de dezembro, em um dia caloroso, faltando poucas léguas para
chegar a Buenos Aires, Artemio Fúria pôs Billy, "o rengo", ao mando do comboio
que escoltava ao bispo Gregorio Funes e, com um grito que resumia sua
ansiedade, bateu o calcanhar em Regino56, que saiu disparado com Cajetilla57 de
reata. Em sua montaria tomava rum com lentidão e, enquanto galopava, ria como

56
Um dos cavalos de Artemio.
57
Um dos cavalos de Artemio.

287
louco, o corpo tenso de antecipação. Faltava pouco para estreitar a sua Rafaela,
para cheiraria, para amá-la.
Devido ao calor, mantinham a porta aberta das habitações nos Altos de
Escalada. Rafaela e Creóla moldavam sabões; Mimita, sentada no piso, brincava
com sua boneca Melody; e Corina lhes lia em voz alta o decreto de "Supressão de
honras ao presidente da Junta". Uma sombra que se projetou dentro do quarto
levou a menina a levantar a vista. Sem falar, ficou de pé e correu aos braços de
Artemio, que a levantou no ar e a fez girar. A risada da Mimita deteve a leitura de
Corina e atraiu a atenção de Creóla e Rafaela.
—Atiemo! —anunciou a menina ao fim.
—Tudo bem —saudou o gaúcho, e entrou com a Mimita em braços.
Evitou a Rafaela de maneira deliberada e, com um gesto, saudou crio-a e a
Corina. Depois a olhou a ela. Encontrou-a adorável, com um lenço branco na
cabeça e embainhada em um avental cheio de manchas. Seus olhos verdes o
seguiam com umas ânsias que o envaideceram. Dedicou-lhe um amplo sorriso,
tênue reflexo de sua sorte por voltar a vê-la, por encontrá-la onde a tinha deixado,
agradecido com uma humildade que ele não se permitia entre os patrícios e que só
destinava a sua proprietária.
Creóla desembaraçou a Fúria da Mimita e seguiu a Corina até o dormitório. Ao
fechar a porta, amorteceu-se em parte o pranto da menina. Rafaela não reparou
em nada, só advertia que Fúria se aproximava e que ela estava feia e mau vestida.
A um passo, ele pronunciou seu nome,"minha Rafaela", disse, e Rafaela notou que
ele também estava emocionado; tremia-lhe a mão que tinha apoiado no bordo da
mesa.
Caminhou para seus braços, e ele a rodeou até lhe comprimir as costelas e lhe
dificultar a respiração. Não pronunciou queixa alguma. Não importava. Queria
permanecer assim para sempre. Os medos e as dúvidas se esfumavam em tanto
ele apertava.
Fúria começou a lhe beijar a cabeça com certa contenção e seguiu pela testa, as
orelhas, as pálpebras, os maçãs do rosto, o nariz, médio desmamado para então,
até que seus lábios roçaram os dela, e, com um grunhido rouco, tomou dentro de
sua boca. A Rafaela zumbiam os ouvidos e via faíscas de cores; tinha a cabeça
arremesso por completo para trás e as pernas frouxas; era uma boneca de estopa
sustentada por Fúria. A língua dele parecia gigante dentro de sua boca, penetrava-
a com violência, e só depois de vários segundos, ele começou a acalmar-se e a
diminuir o ardor de seu beijo. Manteve-a contra seu peito e lhe sussurrou sobre a
face.
—A última légua a fiz a mata cavalo, enlouquecido por vê-la. Quanto queria lhe
cheirar o perfume! Eu cheiro a diabos, não?
—Para mim cheira a glória.
A risada dele a comoveu. Poucas vezes o tinha escutado rir e nenhuma de modo
tão inocente.
—Devia passar primeiro no quarto de Calvú e me lavar um pouco. Você é tão
refinada e sempre cheira tão bem. Em troca eu...
—Em troca você —o interrompeu—, com seu aroma do campo —disse, e Fúria
voltou a rir pelo eufemismo—, tem-me feito feliz ao voltar para mim —Fúria a
apartou e, agora sério, olhou-a aos olhos—. Obrigado por não me esquecer, senhor
Fúria.
—De verdade, Rafaela? —quis saber, sem incredulidade, mas bem com a

288
candura de um menino ao que lhe agrada receber adulações—. Está feliz por
minha volta, de ver-me outra vez?
Ela, em pontas de pé, falou-lhe com ouvido.
—Senhor Fúria, amo-o além da compreensão. O que você crê?
Artemio a abraçou e lhe esmagou o rosto em seu peito para que ela não visse as
lágrimas que brotavam de suas pálpebras fechadas. As secou com o lenço de seda
que tinha enroscado nos pulso e pigarreou.
—Vou um momento ao quarto de Calvú. Quando souber que voltei, vai descer
para Morón. Detesta a cidade.
Saiu depressa e não advertiu a sombra que opacaba o semblante de Rafaela. Ao
cabo de meia hora, Artemio retornou. Deteve-se sob o dintel e lhe cravou um olhar
de pálpebras entreabertas.
—Corina —sua voz áspera encheu o quarto—, se me permitir, queria falar com
sua amiga.
Corina assentiu, levantou Mimita do piso e voltou a encerrar-se no dormitório
com Creóla. Fúria avançou. O pânico de Rafaela se transformou em algo material e
evidente. Uma veia lhe pulsava no pescoço, seus lábios se tingiam de uma
tonalidade azulada ao tempo que as bochechas se esvaziavam de cor.
—Aarón Romano andou por aqui —declarou, e esperou em vão uma resposta—.
Responda-me! —ela assentiu, aterrorizada—. E você o deixou passar.
—Só uma vez. Depois não lhe permiti entrar. Nem sequer lhe abri a porta.
—Calvú diz que os viu beijando-se! —Rafaela não conseguia arrancar um som a
sua garganta—. Fale!
—Não estávamos nos beijando! Tomou por surpresa!
—Merda, Rafaela! —insultou, e girou para sair.
—Artemio! —reteve-o devorando o da camisa, e ele se deu volta e se equilibrou
sobre ela com um giro tão brusco e inesperado que Rafaela proferiu um alarido.
Aferrou-a pelos ombros, ébrio de fúria, e lhe cravou os dedos na carne até chegar
ao osso.
—A destroçaria com meus dentes —respirava pela boca e seu fôlego golpeava o
rosto de Rafaela. O turquesa de seus olhos parecia gelo, seu olhar refletia uma
alma de aço—. Que merda pensou? Que podia me coloca chifres? Justo a mim?
Soltou-a com uma investida e abandonou o quarto. Ela correu atrás dele e, da
mureta que dava ao pátio, viu-o saltar escada abaixo. Albana o deteve na porta de
saída e lhe pôs as mãos sobre o peito. Rafaela podia ler os lábios da mulher:
"Acalme-te, Artemio. O que aconteceu?". Deu meia volta e voltou para o quarto. O
ciúme tinha tomado o lugar do medo e da culpa.
***
Fúria retornou em torno das doze da noite, um pouco bêbado, e com a raiva e o
ciúme esfumados. Dirigia-se ao quarto que Calvú e Torquil já teriam desocupado
quando viu uma linha de luz sob a porta da casa de Corina Bonmer. Chamou
agitando apenas os nódulos. Abriu-lhe Creóla depois de certificar-se de que se
tratava dele. Fúria abrangeu o recinto de uma olhada e encontrou Rafaela dormida
na poltrona. Aproximou-se sem arrancar um som às tábuas do piso. Observou-a
longamente. Tinha as pestanas aglutinadas e úmidas, sulcos de lágrimas sobre o
rosto e o nariz e os lábios avermelhados. Remoeu-lhe a consciência.
Fazer as pazes com o pai Ciriaco e conversar com o tinham ajudado a recompor-
se. O mercedário, ao lhe marcar as renúncias que Rafaela enfrentava por
converter-se na concubina de um gaúcho, havia-lhe devolvido a segurança,

289
porque, na verdade, essa mulher o despojava de uma qualidade inata nele, a
confiança em si mesmo, e o abismava a um mundo de incerteza que detestava e
atiçava o pior matiz de seu temperamento.
Inclinou-se sobre a Rafaela e a levantou. A moça se queixou, resmungou palavras
incompreensíveis e seguiu dormindo em seus braços. Carregou-a até o quarto que,
como tinha previsto, encontrava-se vazia e a depositou sobre a cama. Despiu-se
sem apartar a vista dela, e a viu encolher-se e colocar-se de lado. Lavou-se e se
deitou nu, adaptando seu peito à costas dela.
Prometeu-se não incomodá-la, bastava-lhe com que dormisse a seu lado.
Apoiaria uma mão na curva de sua cintura, e nada mais. Deslizaria sobre a perna
coberta pela saia, e isso seria tudo. Rodearia o tornozelo e lhe acariciaria a pele, e
ali terminaria sua incursão. Não o fez. Começou a subir pela coxa ao tempo que a
despia, e, ao tropeçar com a renda da roupa interior, internou-se entre suas
pernas. Atacaram-no umas vontades irrefreáveis de cheirá-la, de chupá-la, de
saboreá-la. Colocou-a de costas e, quando Rafaela murmurou em sonhos e se
reanimou, disse-lhe ao ouvido:
—Durma, minha Rafaela —e ela se aquietou.
Abriu-lhe a blusa e lhe desatou as cintas do corpete para lhe liberar os seios.
Contemplou-os com atitude reverencial e, ao roçá-los com os dedos, sentiu como
se endureciam. Rafaela gemeu, sonolenta. Tirou-lhe a saia e as duas combinações,
e a despojou dos calções. Vê-la assim, meio nua, com a blusa e o corpete abertos,
vulnerável como um recém-nascido, agitou nele uma emoção que se mesclou com
seus desejos baixos e carnais, e destruiu as boas intenções de minutos antes. Já
não lhe importava despertá-la. Separou-lhe as pernas e, enquanto às cegas lhe
manuseava os seios, internou a cabeça até que o pêlo pubiano lhe fez cócegas no
queixo e, com sua língua, abriu-lhe os lábios. Percebeu que Rafaela se arqueava,
escutou-a clamar. Sentiu que lhe enredava as mãos no cabelo para apressá-lo a
que terminasse o que tinha desatado. Ela pulsava em sua boca. A umidade de sua
vagina lhe engordurava os lábios, e ele bebia de seus sucos ao tempo que lhe
sugava o clitóris até inflamar-lhe a um ponto em que a explosão lhe faria perder o
sentido, Elevou o rosto ao suspeitar que ela estava ao bordo do clímax. Como
amava esses gemidos lamentosos! Seus seios balançavam com os espasmos de
prazer e seu ventre subia e baixava.
Depois do orgasmo, Fúria se ergueu e a esmagou com seu peso.
—Ninguém toca a minha mulher e vive para lhe contá-lo, advertiu.
—E ninguém toca a meu homem —replicou ela— e vive para contá-lo.
Artemio riu, uma risada masculina, carregada de sensualidade, e a beijou nos
lábios.
—Que Albana não pose as mãos outra vez em você, senhor Fúria, ou lhe
arrancarei os olhos.
Fúria a penetrou com uma investida brusca e a tomou por surpresa, lhe
arrancando um gemido.
—Prometa-me que não fará mal a Aarón. Não me preocupo com ele —se apressou
a esclarecer— mas sim por você.
—O que crê, que eu coloque o rabo entre as pernas sem lutar com esse covarde?
—Aarón sairá com o rabo entre as pernas, e não quero que você se converta em
fugitivo. Prometa-me isso Fúria lhe sorriu com cinismo e começou a balançar-se
dentro dela—. Artemio, prometa-me isso.
—Está bem, o prometo. Mas agora fecha a boca e deixe que a faça minha. Depois

290
de quatro meses, estou mais quente que uma brasa.

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Capítulo XXV

A Junta Grande

Os deputados das províncias não queriam ao Mariano Moreno. A idéia do


secretário de romper o vínculo com os Bourbons e sua exigência contínua de uma
definição em favor ou contra a revolução resultavam inquietantes. A intensidade
do jacobino, como apelidavam Moreno, assustava-os. Quão mesmo ao presidente
Saavedra. O bispo Funes, recém-chegado de Córdoba, ideou um plano para
neutralizar Moreno: os deputados não se reuniriam em congresso para estabelecer
o tipo de governo definitivo mas sim se incorporariam à Junta Provisória para
converter-se em maioria e esmagar o influxo de Moreno e de seus seguidores.
Artemio Fúria pensou que, de ter sabido que Gregorio Funes terminaria sendo
um descarado, o teria degolado à beira do caminho. A aversão e a mesquinharia se
instauraram no seio da Revolução. French, que temia pela vida de Moreno, propôs
que se mobilizasse escoltado por uma reserva de soldados, ao que o secretário se
opôs.
—Prefiro correr o risco de ser assassinado por servir a minha pátria que me
apresentar nas ruas com o aparelho dos tiranos —de igual modo, levava um par
de pistolas pequenas nos bolsos da jaqueta e, ao sair do Forte de noite,
acompanhavam-no um ou dois amigos, entre os que contava Fúria.
Em 18 de dezembro, os nove deputados das províncias compareceram na sala do
Forte. O bispo Funes, em representação dos oito restantes, expressou o desejo de
formar parte ativa no governo de acordo com o disposto em 25 de maio ao
constituí-la Junta Provisória Governamental. Moreno e Passo se opuseram e
alegaram que os deputados deviam reunir-se em Congresso Nacional e limitar a
ele seu acionar. Uma Junta dessa magnitude faria impossível a tira de decisões e
lentificaría os trâmites e resoluções. A votação lhe resultou adversa, e Moreno
renunciou.
Ao cair o crepúsculo, Fúria se reuniu com Moreno, French, Beruti, Passo,
Rodríguez Penha e outros revolucionários na fábrica de Vieytes.
Alguns estavam furiosos e exaltados com o que julgavam uma deserção por parte
de Saavedra; outros estavam cabisbaixos e deprimidos. Na opinião de Fúria, os
mais ofuscados eram Bernardo do Monteagudo e Julián Álvarez, ambos muito
jovens, que propunham fundar uma sociedade para formar uma frente que
destruíra aos traidores.
Ao despedir-se, Fúria anunciou que retornava a seu campo em Garganta de
Morón, e Moreno lhe pediu:
—Não se afaste por muito tempo da cidade, meu amigo. Você é muito importante
para a pátria. E se esses cães não passam a todos nós pela força das armas é
porque sabem que você está preparado para lhes saltar em cima com seus
patrícios tão valorosos.
***
Como retornariam a Morón ao dia seguinte, Rafaela foi despedir se de sua amiga,
a condessa de Stoneville. Encontrou a casa da rua de São José sumida em um

292
caos de baús ao meio armar e domésticas que foram e vinham com roupa e
utensílios. Melody, com semblante tranqüilo, informou-lhe que ela e sua família se
embarcavam para Londres em dois dias.
—Acabo de te escrever uma nota —disse, e a agitou no ar— para te avisar de
nossa iminente partida. Chamei-te com o pensamento, Rafaela.
Tomaram um refresco fresco e conversaram com a facilidade de sempre. Rosie,
que brincava com Mimita, aproximou-se e puxou o decote de sua mãe a procura
de leite.
—Rafaela, acompanha-me em meu gabinete enquanto amamento a Rosie?
Rafaela tomou assento frente a Melody. Atraiu-a a visão de Rosie, que sugava
com fruição o mamilo de sua mãe. Quase imediatamente lhe chamou a atenção o
anel que pendurava de uma corrente de ouro em torno do pescoço de Melody.
Nunca antes tinha reparado nele, possivelmente porque a condessa o levava
embaixo dos vestidos.
—Olhe, Melody —disse, e estendeu a mão direita—. Seu anel é muito parecido ao
meu, quase igual, diria.
—É verdade! Este pertenceu a meu pai. Tem seu nome gravado na parte interna.
Chama-se claddagh. É uma velha tradição irlandesa. Quem deu o teu?
—O senhor Fúria —Melody ficou pasmada—. Pertenceu a sua mãe. Ele o
conservou desde sua morte e, meses atrás, entregou-me isso. Também tem o nome
dela gravado na parte interna.
—Como se chamava?
—Emerald Maguire.
—Deus bendito! —sussurrou Melody.
—O que acontece? —inquietou-se Rafaela.
—Nada —mentiu—. Rosie me mordeu.
Essa noite, Melody referiu os fatos a Blackraven, que a escutou em silêncio.
—O que pensa? —perguntou, ansiosa, e Roger, sem pronunciar palavra, tirou
uma carta da gaveta de seu escritório e a entregou—. É de seu pai —apontou
Melody.
—Recebi-a ontem. Vê o quinto parágrafo.
—Em dois dias" —leu Melody— "deixo Cornwall e parto para Londres para visitar
Horatio..."
—Horatio de Lacy —explicou Roger— é um velho amigo de meu pai, um conde
irlandês que tem, é obvio, uma residência em Londres.
—"... que retornou que sua viagem a Espanha com as mãos vazias e, dizem-me,
está muito abatido. Seu cunhado não soube dar caonta do filho Horatio e da
camponesa irlandesa com quem escapou anos atrás, Emerald Maguire." Emerald
Maguire! —Melody olhou a seu marido, emocionada.
—Acredito, meu amor, que sua tia Emerald era a esposa de Horatio de Lacy, filho
do conde de Grossvenor.
—Artemio Fúria tem que ser seu filho. Roger, é igual a meu pai!

293
Capítulo XXVI

O refúgio

Como o interior da carruagem se converteu em um inferno, Rafaela e Mimita


viajavam a cavalo. Rafaela montava à maneira feminina em uma égua, enquanto
que Mimita ia sentada diante de Fúria, sobre Regino. Nos últimos meses, a
menina tinha ganho peso e segurança e ampliado seu vocabulário. Nada a fazia
mais feliz que a visão de seu "Atiemo", e com ninguém se mostrava tão expansiva.
De fato, nesse momento, falava e movia as mãozinhas com a graça de uma menina
normal. Fúria assentia e, cada tanto, pronunciava um comentário. Rafaela sorriu,
convencida de que o gaúcho não entendia palavra do que Mimita lhe contava. Não
obstante, formavam um dueto concordante, ambos se sentiam a gosto na presença
do outro. Outro sorriso despontou em suas comissuras ao evocar a excitação de
Mimita ante a montanha de presentes que Fúria havia lhe trazido de Córdoba:
uma chusé (um tapete de malha grossa e cores vivas, tipicamente cordovesa ou
catamarqueña) para seu dormitório na casa de Morón; uma boneca portuguesa
que devia ter tirado um olho do rosto; uns tamancos de damasco com bordados de
flores; e bolinhas de vidro para brincar no chão, embora Rafaela duvidasse de que
alguma vez Mimita adquirisse a destreza para as lançar. A ela também a tratou
com atenção com vários presentes, dois dos quais a deixaram boquiaberta, um
pote com almíscar e sementes de abelmosco, não só por serem caros mas também
porque não imaginou que ele os recordasse já que tinha a impressão de que,
quando lhe mencionava seus experimentos e novas fórmulas, ele pensava no
rodeio, nas enfermidades do gado ou na égua prenha. Artemio Fúria sempre a
surpreendia; tratava-se de um homem que, depois desse verniz de simplicidade,
escondia uma complexa personalidade. Não havia como confundir seu aspecto
silencioso e reconcentrado com um distraído. Baixava essas pálpebras pesadas,
seus olhos se moviam para abranger o entorno até individualizar cada objeto e
pessoa. Às vezes, com essa qualidade quase mágica dos patrícios, parecia ver além
do visível, pressentir os fatos. Por exemplo, nesse momento, enquanto cavalgava e
conversava com Mimita, indicava ao Juan, "o peludo", que um dos bois coxeava.
Ninguém tinha reparado nisso exceto ele, nem sequer o novo boiadeiro, que
substituía a Bamba.
Não podia apartar seus olhos de Artemio Fúria, e uma emoção que crescia e lhe
expandia o peito a afogava, voltava-lhe irregular o fôlego: esse homem lhe
pertencia. Não era seu marido, possivelmente nunca o seria porque, como lhe
tinha explicado Fúria em La Larga, os gaúchos não se "casavam"; entretanto,
sentia-se unida a ele por um laço como o do sacramento em que pese a ser só sua
concubina, sua concubina. Concubina. Concubina. A indiferença que o som
dessas palavras lhe provocava no presente antes de Fúria tinha sido espanto. Ele,
ao destruir a hipocrisia dos Palafox, tinha liberado seu espírito e, sobre tudo,
acabado com seus medos. Resultava maravilhoso respirar plenamente e não ter
moléstias no estômago. Apurou a égua até colocá-la junto ao Regino e ali, frente
aos homens de Fúria, estirou o braço e lhe acariciou o rosto. Sua desfaçatez o

294
pasmou, e ela riu ao vê-lo abrir grandes os olhos e deixar cair a mandíbula em
uma pergunta que não formulou.
Essa noite, enquanto outros dormiam, eles se dedicavam a contemplar o céu
estrelado e a lua cheia. Sentado no chão e com as costas sobre a roda da
carruagem, Fúria tinha Rafaela entre suas pernas. Rodeava-a com os braços e lhe
sussurrava histórias sombrias, do lobisomem e de como, com ajuda do sapo,
curava-se de uma dor de cabeça até a disenteria. Ela não sabia se Fúria dava
crédito a essas superstições; tampouco lhe importava.
—Hoje é lua cheia. Em um momento começa-me a crescer cabelo, saem-me
garras e me converto no lobisomem —lhe mordeu o pescoço—. Tem medo?
—Nem convertido em lobisomem lhe temeria, senhor Fúria. Você jamais me faria
mal.
Comoveu-o a resposta. Ela havia tornado a confiar nele a pesar do abandono em
La Larga, a humilhação na pensão de dona Clara e todo o resto. Apertou-a e lhe
cheirou a nuca e detrás da orelha. Sua Rafaela das flores, que o tinha exorcizado
do demônio da vingança e que se converteu no meio para dar com Edwina. Ela
não sabia o que tinha significado encontrá-la na casa de Corina a sua volta de
Córdoba. Sua alma se achava em repouso, embargada de pura paz, embora, ao
mesmo tempo, resultava paradoxal que tanta paz o inquietasse. Temia perdê-la.
—Vai ficar triste porque a Creóla se juntará com o Paolino? —Rafaela agitou a
cabeça, para negar—. E pela morte de Ñuque?
—Tampouco. Estava preparada. Já não queria vê-la sofrer.
Rafaela se perguntou quando lhe confessaria que, graças a Ñuque, sabia como
tinham morrido seus pais e a participação de Rómulo. "Não esta noite", decidiu,
embora tivesse lhe contado como tinha descoberto que Ñuque, uma Índia, era sua
avó.
—Quando a vi de perto—, disse-me: "Esta tem sangue índio", pela grossura de
seus lábios e pela forma de seus olhos.
Apareceu Quinto, e Rafaela saltou dos braços de Fúria para lhe dar as boas
vindas. Não o tinha visto durante os quatro meses transcorridos em Buenos Aires.
—Como senti sua falta, querido amigo.
—E a mim? —escutou dizer a Fúria, e se sentiu arrastada de novo a seu colo. O
lhe falou ao ouvido—: sentiu minha falta? Alguma vez me disse isso desde que
cheguei —a fez girar para enfrentá-lo e lhe amoldou as pernas a seus quadris—.
Pensava em mim, Rafaela? —ela fingiu meditá-lo—. Eu vivia com você em meu,
cabeça. Todo o dia, e, na noite, nem o conto. Punha-me duro de tanto que te
imaginava nua.
Ficou de pé com um empurrão que creditou a força de suas pernas. Ela, atendida
à cintura do gaúcho, percebia na pele nua a frieza das rodelas de prata que
constelavam o atirador. Fúria a baixou uns centímetros para acomodá-la sobre
sua ereção. Rafaela fechou os olhos e inspirou bruscamente, e se esfregou no vulto
duro e quente, enquanto Artemio, com habilidade, colocava as mãos sob seus
calções e a acariciava entre as nádegas. Ocultou o rosto e afogou o ofego em sua
camisa.
—O que me diz, sentiu minha falta? —teimou ele.
Afastaram-se do grupo e entraram no mato guiados pela luz da lua. Quinto se
moveu para segui-los, mas Fúria resmungou uma ordem no idioma dos ranqueles,
e o puma retornou ao acampamento. Fariam amor no chão, sobre a erva
umedecida pelo sereno. A excitação lhe cortou o fôlego. Movida pela urgência,

295
admitiu:
—Sim, faltaram-me as lágrimas. De noite, ansiava-o com tanta paixão que me
tocava aí, onde você me toca, e imaginava que era sua boca, sua mão, seu
membro, e não podia me deter até obter o prazer —calou de repente, assombrada
de sua falta de vergonha, e Fúria soltou uma gargalhada, não divertida; mas bem
comunicava emoção.
—Minha descarada Rafaela! —exclamou, e a recostou no chão.
***
Pouco a pouco, Rafaela retomou suas orações, embora tivesse decidido que não
se confessaria com o pai Ramón; carecia de sentido se ela não se arrependia; além
disso, voltaria a pecar uma e outra vez na maior das sortes. Não permitiria que a
hipocrisia da religião —essa expressão estava acostumada empregar sua tia Pola—
a amargurasse como tinha feito com sua tia Clotilde. Era feliz longe dos códigos e
da sociedade, nesse refúgio que compunham a casa grande do campo de Garganta
de Morón e o gaúcho Fúria. Até seus homens formavam parte do equilíbrio que
encarnava essa paragem. Respeitava-os e os queria ao ver a devoção e a fidelidade
que professavam por Fúria. Não seguia zangada com Calvú Manque porque
Artemio lhe tinha explicado que seu peñi não teria dito sobre o beijo de Aarón de
não havê-lo surrupiado e pressionado.
—Eu sentia que esse filho da puta estaria espreitando em minha ausência. E
atirei joguei verde para colher maduro até que Calvú pisou no palito e falou.
Conheço-o demasiado para saber quando me esconde algo sob o poncho.
Fúria contratou a uma jovem do povoado para que a ajudasse com as tarefas
domésticas, e tanto Millao e Alihuen colaboravam no cuidado do jardim, da horta
e no laboratório. Mostravam-se entusiastas cada vez que fabricavam uma pastilha
de sabão, um ungüento ou um perfume, e os vendiam no povoado, o que
significava um ingresso extra para suas famílias e para ela.
A casa cobrou ritmo e vivacidade, e inclusive se voltou caótica quando Fúria
decidiu fazer uma reforma. A Rafaela assombrou o anúncio porque a ela não
importava morar em um local com goteiras, paredes rachadas, portas e janelas
saídas de suas dobradiças e com madeiras curvadas, e paredes com a pintura
descascada e opaca. Suspeitava que a decisão de azulejar a cozinha, de pintar as
paredes, trocar os pisos e reparar as aberturas e o teto tinha surgido depois de
que comentou com Anuillán sobre o esplendor da casa da condessa de Stoneville.
Belisario se ocupou das obras e, embora houvesse vários capatazes e aprendizes,
ele levava a cabo a metade dos trabalhos; era hábil e prolixo. Sua amizade com
Rafaela se estreitou nesses dias de confusão, pó e aroma de terebintina.
Fúria viajava freqüentemente a Buenos Aires, e Rafaela ficava sumida no
desassossego. Ela se queixava e lhe perguntava por que tinha que ir à cidade
quando contava com vários colaboradores. Fúria lhe explicava que, quando
transportava fazenda às cercanias de locais povoados, só confiava nele para a
tarefa. Uma correria poderia cobrar-se muitas vidas. Não se tratava de uma
desculpa, embora também ia à cidade em busca de informação a respeito da
situação política, cada vez mais espinosa para os do partido de Moreno. Este tinha
sido afastado não só da Junta mas também do Rio da Prata.
Na quinta-feira 24 de janeiro de 1811 havia partido do porto de Buenos Aires,
embarcado no veleiro britânico Mistletoe, com destino a Londres, em missão
diplomática. Despediu-se de seus incondicionais e, ao chegar a Fúria, olhou-o aos
olhos e lhe confiou: "Não sei que coisa funesta se anuncia em minha viagem. Sua

296
mulher e a minha são grandes amigas. Não a deixem sozinha". As suspeitas de
Moreno cobraram veracidade a dias de sua partida quando Lupe recebeu em sua
casa da rua da Piedade uma caixa com os elementos para o luto —luvas, mantilha
e leque negros— e um bilhete que rezava: "Estimada senhora: como sei que vai ser
viúva, tomo a confiança de remeter estes artigos que logo corresponderão a seu
estado". Rafaela se inteirou da brincadeira macabra porque Lupe a referiu em uma
carta.
Não gostava quando Fúria partia para Buenos Aires, nem tanto porque a deixava
sozinha mas sim porque, quando retornava, notava-o mais grave e reservado que
de costume, com certa insipidez no trato. As conjeturas a afligiam. Remexia os
miolos refletindo sobre as causas. Às vezes pensava que se tratava de Albana
Buquê, outras de Aarón; em ocasiões se dizia que estava preocupado pelo doutor
Moreno e o destino da Revolução; bem podia tratar-se de questões do campo ou de
dinheiro; estavam gastando muito da reforma, e ela sabia que o gaúcho Fúria não
era rico.
Fúria preferia mantê-la alheia às suas preocupações. Via-a entusiasmada com os
acertos da casa e não desejava apagar sua alegria lhe contando que, uma noite,
dois homens o tinham abordado na Recova, frente à Praça da Vitória, para
assassiná-lo; sem dúvida, eram esbirros de Aarón Romano. Tampouco lhe diria
que o tinha procurado nas mercearias do Baixo para desafiá-lo a duelo. Aarón,
meio metido, terminou aceitando, e Artemio, ao dia seguinte, comprou uma argola
de prata. Fúria e seus homens compareceram minutos antes da entrevista nos
barracos dos matadouros do Alto, lugar famoso pelos duelos, e, depois de uma
hora e meia de espera, foram-se. A covardia de Romano se comentou em todos os
mentideros, dos mais baixos aos mais elevados, e a fama do intendente de Polícia
ficou desdourada. Seus puxa-sacos o defendiam argüindo que um homem da
ascendência de Aarón Romano não podia debater-se com um cão.
Depois das tensões vividas em Buenos Aires, Fúria procurava refugiar-se no
campo de Morón e na calidez de Rafaela. Às vezes, quando voltava, sem paciência
para aguardar até a noite, obrigava-a a ter relações no meio do trabalho, como em
uma oportunidade em que se apresentou perto do meio-dia e a encontrou pondo a
mesa. Sem pronunciar palavra nem tirar o pó da viagem, com o lenço a corsário
ainda lhe rodeando a cabeça, sentou-a sobre o bordo da robusta mesa de
quebracho e lhe separou as pernas para colocar-se entre elas. Ordenou-lhe que
despisse os seios em tanto lhe tirava os calções e liberava seu pênis. A docilidade
de Rafaela o enlouquecia, e bastou que lhe chupasse um pouco os mamilos para
que ela estivesse úmida e pronta para recebê-lo. Esperava que o tinido cada vez
mais audível da baixela e, um momento depois, seu lamento rouco e prolongado
bastassem para manter afastada à faxineira.
Uma noite em que Rafaela se achava em uma disposição peculiar, elevou a
cabeça sobre o travesseiro e o chamou.
—Senhor Fúria, está dormindo?
—Não. O que quer?
—Há algo delicado que devo lhe confessar —Artemio voltou o rosto para ela, e
seus olhos e umas mechas que lhe cobriam a frente, cintilaram na penumbra do
quarto—. Não, não posso —se acovardou.
—Tem medo? —ela disse que não—. Então?
—Artemio —Fúria se inquietou; estranha vez o chamava por seu nome —.
Artemio, meu amor —disse, e se inclinou para beijá-lo.

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—O que ocorre, Rafaela? —ela adivinhou a ansiedade e o medo na coloração
escura de sua voz.
—Sei a verdade. Sei tudo. Ñuque me referiu isso antes de morrer. Sei que meu
pai foi cúmplice do assassino de seus pais. Sei também que raptaram a sua irmã,
que prenderam fogo a sua casa e que se roubaram a fazenda.
Aferrou o travesseiro com os punhos e escondeu o rosto; não suportava vê-lo
nesse momento. O colchão se afundou quando Fúria se acomodou sobre ela para
lhe sussurrar:
—Eu não queria que você soubesse. Nunca.
—Por quê? —choramingou Rafaela.
—Porque sabê-lo a ia faz sofrer, e eu não quero que nada e nem ninguém a faça
sofrer. Minha Rafaela tem que ser feliz e nada mais.
—OH, Artemio! —deu-se volta e o abraçou—. Quanto, quanto o sinto! O que
envergonhada e mortificada estou. Não posso imaginar o que lhe tocou viver, o que
teve que testemunhar, e só sendo um menino!
Resultou-lhe natural lhe referir os fatos daquela noite, ignorando os detalhes
macabros e suavizando a aspereza de seus sentimentos; inclusive lhe revelou seu
verdadeiro nome. De igual modo, Rafaela ficou muito afetada. Disse-lhe que tinha
o coração partido.
—Não suporto imaginar o que sofreu! Se me tivesse ocorrido, não doeria tanto.
Mas a você —disse, enquanto lhe acariciava o rosto, que— lhe tenha ocorrido a
você, a pessoa que amo além de tudo, volta-o intolerável.
Ele se inclinou para beijar suas lágrimas e arrasar com a escuridão de seu
semblante.
—Seu sofrimento —explicou Artemio—, está-me matando. Já não sofra por mim,
assim eu não sofro por você. Acalme-se e venha aqui.
Secou suas lágrimas com o bordo do lençol e se acomodou no abraço de Fúria.
Este lhe contou que, graças a Rómulo, tinha achado sua irmã Edwina em
Córdoba.
—Quando Avendaño retornou de Chuquisaca, o matará? —Artemio disse que
não—. Por quê? Pela Edwina?
—Meses atrás, um tempo antes de encontrar Edwina, jurei a Deus que
renunciava a minha vingança.
—Seriamente? Por que o fez?
Fúria a contemplou com fixidez. Seus olhos a perfuravam na escuridão.
—Por você, minha Rafaela. Jurei a Deus que renunciaria a minha vingança se ele
a salvasse quando perdeu a nosso filho. Ele cumpriu; eu também.
Cortou-lhe o fôlego e se manteve a noite acordada em tanto assimilava o alcance
da declaração. Atinou a aferrar-se ao pescoço de Fúria, e se deu conta de que não
estava consolando-o a não ser procurando ser consolada. Seu egoísmo a fez sentir
pior. Artemio estava sereno, ela o percebia enquanto ele a embalava e lhe
acariciava as costas.
—Está arrependido? —perguntou Rafaela, com voz fanhosa.
Com um movimento médio brusco, obrigou-a a enfrentá-lo.
—Faria-o de volta mil vezes para salvá-la.
Rafaela queria serenar-se e afrouxar a tensão do corpo. Obrigou-se a pensar em
coisas bonitas para afastar os pensamentos maus. Lembrou-se de que o senhor
Fúria lhe tinha comprado um ocozol que plantariam ao dia seguinte, embora
ainda não decidia onde, e que Melody Blackraven lhe tinha prometido lhe trazer

298
uma sampaguita, proveniente da ilha do Ceilão onde seu marido tinha uma
fazenda. Ao momento, sua mente voltou para a tragédia.
—Antes de seu juramento, tinha pensado em matar a meu pai?
—Sim - admitiu Fúria—. Depois de descobrir quem era seu pai, andei como louco
muitos dias. Não podia arrumar as coisas em meu coração. Mas soube como o
faria. Por você, porque não podia lhe causar essa pena —o tempo se suspendeu
em um olhar—. Você é tão bonita —disse, com ardor—. Você é a coisa mais bonita
da minha vida.
Rafaela levantou a mão e lhe apartou uma mecha quase branca que lhe metia no
olho, Esse homem, que tinha vivido coisas sinistras capazes de devastar a
dignidade humana, era, entretanto, o ser mais nobre e digno que ela conhecia.
—Sebastian de Lacy —pronunciou bastante bem—. Se algum dia tivermos um
filho varão, chamaremo-lo Sebastián. Mas você para mim sempre será meu senhor
Fúria. Meu amado senhor Fúria. Meu amor. Amor da minha vida.
Nos princípios de março, enquanto servia o jantar, Rafaela anunciou:
—Senhor Fúria, vou lhe dar um filho.
Artemio permaneceu imóvel, com o olhar cravado no prato de comida. Soltou a
colher e, com a ponta dos dedos, apertou-se os olhos, uma ação comum nele e que
Rafaela associava com a preocupação.
—O que ocorre? Não recebeu que bom grau a notícia.
Ele levantou a cabeça e a contemplou entre sobressaltado e ofendido.
—Você me julga mau, Rafaela. Estou feliz com a notícia. Desejava a esse filho e
como não se destinava a vir... E agora você me diz que está prenha... um pouco
emocionado, é só isso —esclareceu garganta—. O que passa é que eu lhe quero lhe
satisfazer. Quero casar-me com você, se você quiser.
—Eu não quero que me satisfaça, senhor Fúria. Jamais lhe pedi matrimônio
porque sei que não é costume entre os seus.
—Para mim, você é minha mulher para toda a vida. Não meu faz falta que um
padre me diga isso para eu sabê-lo. Mas como você é uma menina de bem, quero
que o padre Ciríaco nos abençoe. E que meu filho seja legítimo. Ninguém o
chamará bastardo.
De acordo com a Real Cédula de 17 de julho de 1803, Rafaela, por ser menor de
vinte e três anos, não podia contrair matrimônio sem a autorização de Rómulo.
Por outra parte, e devido a que casava por debaixo de sua condição social,
também necessitava a autorização do vice-rei. Como a figura do vice-rei tinha
desaparecido, valia a da Junta. Continuando, publicariam as admoestações. O
trâmite levaria seu tempo.
—Irá ver meu pai e lhe pedirá autorização? —sabendo o que isso significava para
o orgulho de Fúria, Rafaela propôs—: Esperemos a que eu faça vinte e três anos.
—Falta um montão para isso. Não me importa falar com seu pai.
Decidiram que viajariam juntos a Buenos Aires em meados de março.

299
Capítulo XXVII

Pela morte de dois

El Gales, o cortador (tipo de navio) de propriedade de Roger Blackraven que o


tinha conduzido a estas terras do sul em tão somente um mês, jogou âncoras a
uma milha da costa pois, conforme lhe informou o capitão, o porto de Buenos
Aires resultava inapropriado para a navegação com navios de certo bordado.
—Excelência —seguiu expressando o capitão—, agora subiremos a uns botes que
nos conduzirão umas jardas. De ali até a costa iremos em carruagens.
O desagrado causado por essa informação se mesclou com a tensão pela viagem
e o desgosto que lhe inspirava a paisagem da cidade —mas bem um conjunto de
casas mau construídas e algumas cúpulas e campanários insignificantes—. Ficou
de mau humor.
—Sou um velho de setenta e seis anos! —queixou-se—. Como pretende que salte
de um bote a uma carruagem sem perecer no intento?
—Excelência —manifestou o capitão, com sincero assombro—, me permita lhe
dizer que o dado de sua idade me deixa pasmado. Sua senhoria se conservou em
excelente forma. Não lhe teria dado mais de sessenta anos.
—Este desgosto não o arrumaremos com lisonjas, capitão.
Em várias ocasiões, em tanto o clíper avançava a grande velocidade pelo
Atlântico, perguntou-se se essa viagem, organizado em poucas horas e às
apuradas, não se tratava de um desatino.
Depois de alcançar a costa, com os nervos de ponta e os sapatos empapados,
alugou um cabriolé e lhe estendeu ao chofer o papel escrito de próprio punho de
Blackraven onde se consignava a direção de seu agente em Buenos Aires, um tal
Edward O’Maley. "Irlandês", pensou. O chofer leu em voz alta: "Rua da Concepção
número 78". Na casa de O’Maley o atendeu uma mulher negra que o conduziu à
sala. Disse-lhe algo em castelhano antes de partir, mas ele não compreendeu em
que pese a dominar a língua; sua esposa a tinha ensinado.
O’Maley se apresentou aos poucos minutos.
—Bom dia —saudou o visitante—. Meu nome é Horatio de Lacy, conde de
Grossvenor.
—Excelência! —proferiu O’Maley, e lhe ofereceu assento. Antes de partir para
Londres, Roger Blackraven lhe tinha advertido que possivelmente recebesse a
visita desse amigo de seu pai.
—Obrigado —disse de Lacy.
O’Maley serviu uísque, de acordo com a preferência do ancião, e o entregou.
Depois do primeiro sorvo e mais composto, de Lacy lhe estendeu uma carta
lacrada com a águia bicéfala, o anel da casa dos Guermeaux, a dinastia de Roger.
—O conde de Stoneville lhe envia isto. Leia-o, O’Maley. Depois falaremos.
Eddie se afastou em direção à janela para ler. Conhecida-a caligrafia de Roger
ocupava duas páginas. Surpreendeu-o o conteúdo. Depois dos segundos que
necessitou para acomodar suas idéias, retornou junto ao conde.

300
—Estou ao seu dispor, excelência.
—Obrigado. O primeiro que quereria é me alojar na casa de Blackraven. Meu
assistente e meu valete junto com a bagagem ainda aguardam no porto.
—Sim, é obvio. O acompanharei e indicarei ao serviço doméstico que sua
excelência é convidado do conde de Stoneville. O atenderão a corpo de rei.
—Descansarei hoje. A última parte da viagem foi extenuante. Mas amanhã
quererei ir ver esse homem que Blackraven supõe que poderia ser meu neto.
—Artemio Fúria —disse Eddie, ainda sobressaltado.
—Onde vive?
—Aqui e lá. É um gaúcho, um homem de campo que leva uma vida bem nômade.
Embora nos últimos tempos se assentou em umas terras que adquiriu a umas
léguas daqui, para o oeste. De todas maneiras, está de sorte, excelência, pois
Artemio chegou ontem a Buenos Aires e se aloja em uma hospedaria próxima à
praça principal.
—O’Maley —pronunciou de Lacy—, referiu-me Blackraven que você conhece este
Artemio Fúria. Há-me dito que vós são amigos.
—Assim é, excelência.
—Eu gostaria que me acompanhasse na hora do jantar na casa de Blackraven.
Necessito saber desse homem tudo o que você possa me contar.
—Assim o farei.
***
Em opinião dos morenistas, a Junta Grande mostrava debilidade no governo.
Seu compasso de espera, que se prolongava sem reflexos de terminar, minava os
alicerces da Revolução e arriscava a soberania do Rio da Prata, espreitada pelo
Francisco Javier do Elío desde o Montevidéu, pelos realistas do norte e pelos
portugueses do Brasil, com a infanta Carlota, irmã do Fernando VII, pressionando
para erigir-se em regente destas terras. A criação das Juntas Provinciais, uma
idéia do bispo Gregorio Funes, diluía o poder de Buenos Aires, semeava
descontente entre as cidades subordinadas e propiciava as cisões.
A Sociedade Patriótica, a confraria que agrupava aos partidários de Moreno e que
se reunia diariamente no Café de Marcos ou na Hospedaria das Nações, intrigava
desde fazia meses contra Saavedra sem majores resultados, já que o povo seguia
apoiando ao chefe dos Patrícios.
A noite do domingo 17 de março, em uma reunião secreta em casa do
Monteagudo, os ânimos começaram a esquentar-se. Um capitão jovem, amigo do
Joaquín Campana, bebia em silêncio enquanto observava e memorizava quanto
ouvia. Embora se identificava com as mesmas cintas celestes e brancas que
usavam os patriotas nas jaquetas, era um espião de Aarón Romano.
—Basta de sandices, amigos! —exclamou French, e sossegou as disputas—.
Tomem o touro pelos chifres ou isto se vai ao caralho! —as vozes se elevaram para
apoiar a moção—.Chegou o momento de levar a cabo um pronunciamento.
—Para isso precisamos contar com o grosso do exército —apontou Sorte Arzac.
—Contamos com os Húsares —interveio Beruti— e com os patrícios do gaúcho
Fúria.
—É imperativo mandá-lo chamar —opinou Agustín Donado, chefe de Corina
Bonmer na Imprensa dos Meninos Abandonados.
—Não é necessário —disse French—. chegou ontem a Buenos Aires.
—Está com seus troperos no Alto?
—Não. Como veio com sua mulher, aloja-se em Los Três Reis. Diz que quer casar

301
com a Palafox.
—Parece que o gaúcho tomará uma pátina de brilho e civilidade —comentou o
doutor Argerich.
—Não resultará fácil —admitiu French— porque deve pedir autorização a Rómulo
Palafox dada a idade de sua filha. Não sei se esse sarraceno a concederá depois do
escândalo em que Fúria sumiu a sua família.
—A concederá —assegurou Arzac—. Se Palafox não foi enviado ao exílio nem lhe
confiscaram os bens é porque Fúria deu fé dele à Junta. Palafox sabe e lhe deve
esse enorme favor.
—Não só que não lhe confiscaram os bens —demarcou o doutor Argerich— mas
também lhe devolveram parte do expropriado depois da passeata do ano passado,
que era uma fortuna em pesos fortes e em ouro.
—Deixa de fofocar como bandoleiras —exclamou Pancho Planes— e tratemos da
questão mais urgente: tirar do meio Saavedra e a seus monarquistas.
—Estão de acordo, então —perguntou French—, com a imperiosa necessidade de
realizar um pronunciamento militar?
O sim foi unânime. O espião de Aarón se despediu e caminhou para o Conselho.
***
Aarón colocou a cartola e abotoou sua sobrecasaca. O jovem capitão, amigo de
Joaquín Campana, acabava de lhe proporcionar uma informação muito valioso;
uma parte a compartilharia com a Saavedra; a outra incumbia a ele.
Apesar da hora, Joaquín Campana, o secretário privado do presidente da Junta,
informou-lhe que seu chefe ainda trabalhava. Aarón deveu esperar uns minutos
antes de ingressar no escritório de Saavedra.
—É tarde, senhor presidente —se desculpou Romano—, sei, mas não me teria
atrevido a importuná-lo se a questão não revestisse gravidade. Irei ao ponto. Está-
se gerando um pronunciamento militar entre as filas dos Húsares, com o French à
cabeça —Saavedra golpeou o escritório e resmungou um insulto—. Como sabem
que sua mercê controla a parte grosa do exército, decidiu jogar mão dos chisperos
do gaúcho Fúria.
—French e esse seu amigo gaúcho está me enchendo o “saco”. Com quanto
tempo contamos antes do pronunciamento? —quis saber o chefe dos Patrícios.
—Não sei com certeza —admitiu Aarón—, embora suponha que temos uns dias
para organizar uma contra-ofensiva.
Discorreram até concluir que não convinha jogar mão ao exército para
neutralizar a ação dos morenistas, tanto dos que ocupavam cargos na Junta
(Larrea, Azcuénaga, Rodríguez Penha e Vieytes) como dos que arengavam nos
cafés, mas sim, para lhe dar um reflexo de legitimidade, devia ser o próprio povo
quem pedisse sua destituição e exílio.
—Para isso —apontou Sino— necessitamos ao povo. Como o conseguiremos?
—Tomás do Grigcni, futuro sogro de minha irmã —propôs Aarón—, poderia
reunir a uma centena de patrícios de seu país, as Colinas da Zamora.
—O que faríamos com um ou duas centenas se soubermos que o gaúcho Fúria
conta com vários? —se desanimou Saavedra—. Esquecem acaso que reuniu ao
redor de quinhentos para a jornada de 22 de maio? Armaria-se a de Deus é Cristo
em meio do Plaza Mayor, e os de Grigera seriam aniquilados e nós passados a
degola.
Romano e Sino intercambiaram escuras olhadas.
—Não há alternativa, excelência —falou o secretário de Saavedra—. É imperativo

302
para a causa tirar do meio ao gaúcho Fúria.
A conclusão de Campana provocou um vazio no escritório do presidente.

—Falam de capturá-lo? —perguntou o presidente.


—Com o maior dos respeitos, excelência, acredito que seria um desatino —
opinou Romano—. Em menos de duas horas teríamos a toda a peonagem frente ao
Conselho exigindo a liberação de Fúria. Em realidade, a solução é uma sozinha:
tem que desaparecer —quando Aarón viu que Saavedra assentia, disse—: Eu me
ocupo.
Abandonou o Forte e cruzou a Praça da Vitória a passo rápido. Entrou de novo
no Conselho e perguntou quem estavam de guarda. Mandou-os comparecer em
seu escritório. O cabo Martínez e o cabo Paz apareceram em poucos minutos.
—A partir de agora, plantarão frente à hospedaria Os Três Reis e seguirão os
passados do gaúcho Artemio Fúria. Ides trocar lhes com roupas de camelôs ou
patrícios para passar inadvertidos. Amanhã ao meio dia lhes enviarei uma
substituição. Às oito da manhã, um de vós comparecerá ante mim e me informará
de seus movimentos. Retirem-se.
Ao ficar sozinho, Aarón se dirigiu para um móvel onde escondia garrafas com
bebidas espirituosas. Serviu uma medida de brandy francês expropriado a uns
contrabandistas. Antes de fazer fundo branco, elevou o jarro de latão e brindou:
—Pela morte de dois.
***
Horatio de Lacy não dormiu em toda a noite, nem sequer usou a cama.
Permaneceu sentado em uma cômoda poltrona, com os pés sobre uma banqueta,
e, em tanto esvaziava uma garrafa de malvasía, meditava a respeito da informação
que lhe tinha brindado O’Maley durante o jantar. Logo que despontou a alvorada,
mandou chamar a seu valete e lhe indicou que lhe preparasse um banho e roupa
de rua. Antes de enfrentar ao tal Artemio Fúria, visitaria outra pessoa.
No convento da Mercê lhe pediram que aguardasse no locutório. Apareceu um
sacerdote com batina marrom e uma corda de cor marfim em torno da cintura que
caía para um lado e terminava em vários nós. Possuía uma espessa barba branca,
embora bem recortada. A qualidade de seu olhar o agradou; pareceu-lhe advertir
um brilho de inteligência e um matiz bondoso no modo lento em que subia e
baixava as avultadas pálpebras. Ficou de pé para apresentar-se.
—Bom dia, padre Ciríaco —o saudou em um bom castelhano embora com pesado
acento saxão—. Meu nome é Horatio de Lacy, conde de Grossvenor.
"Horatio de Lacy", repetiu Ciríaco, para seus adentros. Esse nome nada
significava para ele.
—Bom dia. No que posso lhe servir? —ao vê-lo vacilar, Ciríaco lhe ofereceu—:
Tome assento, por favor.
—Não é fácil explicar o que me traz até aqui, padre. Possivelmente o mais
conveniente seja que lhe conte minha história.
Ciríaco o escutou, sem demonstrar nenhuma emoção com o passar do relato.
—Nem eu nem a família de minha mulher na Espanha tivemos notícias de meu
filho nem de sua esposa nem de minha neta Edwina. Entretanto, em meados de
fevereiro, Roger Blackraven, conde de Stoneville, recém-chegado a Londres
proveniente destas terras, confiou-me suas suspeitas a respeito de um homem, a
quem você, pai, conhece muito bem. Blackraven sustenta que este homem poderia
ser filho de meu filho Horatio, quer dizer, poderia ser meu neto. O chamam de

303
Artemio Fúria.
O impacto da notícia se evidenciou no gesto do mercedário. Sua aprazível
compostura ficou em um nada. Horatio o viu apertar uma cruz de madeira
agarrada aos cordões de suas vestimentas.
—É certo que você, padre, conhece este tal Artemio Fúria?
—Como se fora meu próprio filho —foi a contundente resposta—. Agora, senhor
conde, eu lhe referirei minha história —ao terminar e sem esperar os comentários
de o Lacy, Ciríaco exclamou—: Serapio! —o negro devia estar escutando depois da
porta porque apareceu imediatamente—. Vá a minha sela e me traga o relógio de
Artemio. Deixa-o cair e te arranco as orelhas! É algo que, acredito, pode lhes servir
para desvelar este mistério, senhor de Lacy. Trata-se de um relógio de corrente,
muito fino e custoso. É de ouro. Achei-o no cadáver do homem junto com um anel.
Eu conservo o relógio, assim o dispôs Artemio. Ele conserva o anel.
—Como é o anel? —interessou-se Horatio.
—Tem um desenho sobre uma base retangular, o que, no meu entender, poderia
ser o escudo de uma dinastia. A base está coberta por um esmalte vermelho, um
vermelho muito peculiar. Taraceado em dito esmalte,distingue-se, em ouro, o perfil
de um dragão sustentando um pendão.
Apesar da penumbra do locutório, Ciríaco advertiu que o gesto do conde mudava,
e gotas de suor lhe povoavam a frente.
—Similar a este? —ouviu-o pronunciar como em falsete, ao tempo que lhe
mostrava o anel que usava na mão direita.
—Eu diria, exatamente igual a esse.
—Good heavens!
Entrou Serapio e depositou sobre a mesa um pacote de veludo negro. Ciríaco o
dirigiu com cuidado.
—Este relógio estava no bolso do colete do homem que achei morto aquela
madrugada de 6 de junho de 1790. Tome-o com calma —sugeriu o sacerdote ao
advertir o tremor na mão de o Lacy.
O conde levantou a tampa do relógio. Ao notar o movimento dos olhos, Ciríaco
soube que estava lendo a dedicatória. To my beloved são Horatio. Continuando, o
homem apoiou o relógio sobre o veludo, cobriu-se o rosto e rompeu a chorar.
***
—Onde está Mimita? —perguntou Fúria, enquanto calçava, as botas de potro
sentado no bordo da cama.
Acabavam de fazer o amor, e Rafaela ainda estava entre os lençóis.
—Na casa de Pilar Montes, brincando com a Carolita, sua filha, a mais nova.
Artemio ficou de pé para colocá-la rastro sobre o atirador, a de luxo, observou
Rafaela, coberta de moedas de prata, até de ouro.
—O que fará você pela tarde?
—Lupe e Pilarita me acompanharão à loja de Aignasse a comprar uns gêneros
para as cortinas de nosso dormitório.
Ele a olhou de soslaio, enviesando a comissura esquerda em um sorriso
carregado de erotismo.
—Deixo-lhe uns dobrões para que compre isso que quer e direi ao Juan que a
acompanhe. Não me chateie —lhe advertiu, ante o intento de protesto de Rafaela—
. Esse vagabundo de seu primo, mais fraco e arteiro que um chacal, deve saber
que anda na cidade e a quererá incomodar.
—Aonde irá você, senhor Fúria?

304
—O padre Ciríaco me mandou chamar. Diz que tem que falar comigo urgente.
Depois tenho que fazer varia diligências. E de noite, vou ver seu pai. Não me
ponha essa cara. Tudo vai ficar bem. Já lhe mandei dizer que ia e me disse que
sim.
Rafaela saiu da cama e, nua, caminhou para ele. Rodeou-lhe a cintura e se
amoldou a seu corpo. Escutou-o soltar um suspiro, e percebeu sua impaciência
quando tomou pelos braços à altura das axilas, disposto a apartá-la.
—Não meu faça isto, Rafaela. Estou me pondo duro de novo e me tenho que ir.
—Não quero que se vá —confessou, dando-se as de menina—. Não quero que vá
ver meu pai. Não quero que casemos se você tiver que humilhar-se lhe pedindo
algo a quem tanto dano fez a você e a sua família. Prefiro ser sua concubina para
sempre.
Fúria a obrigou a levantar o rosto lhe colocando o polegar sob o queixo.
—Rafaela, meu amor. Que não faria eu por você?
Beijaram-se na boca e, quando Artemio notou que Rafaela começava a excitar-se,
separou-a dele. Colocou o chapéu e se encaminhou para a porta.
—Senhor Fúria —o deteve—, leve isto a Serapio —estendeu um pequeno pacote
envolto em papel de Manila—. Como você me há dito que é um louco pelos doces,
traga-lhe uma parte de guirlache.
—Obrigada —disse ele, meio emocionado—. Ponha a trava quando eu sair. E não
abra a ninguém. Ouviu-me? Volto tarde.
—O esperarei para jantar juntos. Cuide-se, senhor Fúria! Faça-o por mim.
—Está bem —prometeu, e abandonou o quarto.
No convento da Mercê, Serapio o recebeu com as amostras de carinho usuais, e
Artemio lhe deu de presente uns cuartillos e pôs nas mãos o pacote com guirlache.
—Manda-lhe isso Rafaela. Ela mesma o fez para ti —Serapio ficou olhando-o
entre confuso e encantado—. Me disse que quer te conhecer. Você quer conhecê-
la? —em lugar de lhe responder, Serapio ficou a saltar e a rir—. Está parecendo
que sim —sorriu Fúria—, quer conhecê-la.
No escritório, o primeiro que notou foi a ausência do principal; seu escritório
estava vazio. O padre Ciríaco se encontrava de pé junto a um ancião de porte
distinto e objetos que, embora sóbrias, revelavam a boa posição econômica do
estranho.
—Artemio, filho, obrigado por vir. Entre, entre. Quero te apresentar a este
cavalheiro que deseja te conhecer.
Seu instinto de alerta, agudizado na campanha, crispou-se, e, sem propor-lhe
jogou uma olhada ao ancião que o fez retroceder depois do padre Ciríaco. Sua feia
aparência —o cabelo solto preso com uma vincha (fita de cabeça)58, o rosto curtido
pelo sol, suas botas e, sobre tudo, o facão de vinte e três polegadas cruzado no
rastro— devia lhe inspirar terror.
—Não sei como dizer o que tenho que dizer —admitiu o mercedário—. Pois
falarei, sem mais rodeios. Artemio, ele é Horatio de Lacy, conde de Grossvenor.
Embora Artemio permanece quieto e mudo, Ciríaco advertiu, no modo em que
esticou as aberturas do nariz e na rapidez com que subia e baixava o pomo de
Adão, que se encontrava profundamente perturbado.
Horatio de Lacy deu um passo adiante e falou em inglês.

58
Tira de couro.

305
—Como disse o padre Ciríaco, meu nome é Horatio de Lacy. Meu filho, Horatio,
casou com o Emerald Maguire, com quem teve uma filha, Edwina.
O conde prosseguiu explicando os fatos e brindando dados. Ciríaco não entendia
palavra e alternava a vista de um em outro. Artemio emprestava atenção extrema;
parecia compreender. Sua voz trovejou de modo inesperado, e o sacerdote se
estremeceu para ouvi-lo expressar-se pela primeira vez em sua língua mãe.
—Meu nome é Sebastian de Lacy, filho de Horatio de Lacy e do Emerald Maguire.
Dirigirei a você em castelhano para que o padre Ciríaco possa compreender.
Tornei-me um selvagem nestas terras, como resulta evidente por meu aspecto, e
se a vista de minha mãe, por ser uma camponesa, irritava-o, a minha lhe
resultará intolerável.
Horatio de Lacy tinha caído sob um feitiço. Parecia venerar mais que olhar a
Fúria. Disse: "É um homem magnífico". O sangue corria com velocidade pelo
corpo, acalorando-o, lhe tingindo o rosto de vermelho, enchendo-o de vida. Não
tinha dúvida: estava frente a seu neto. Recordava a esse lunático que tinha
tentado assassiná-lo, o irmão de Emerald, Fidelis Maguire, embora os traços deste
moço, embora endurecidos, apresentavam um risco mais refinado, e eram de uma
beleza que tirava o fôlego. Embargava-o uma alegria inefável, e só o orgulho e a
animosidade de seu neto o mantinham a raia; tinha vontade de abraçá-lo.
—Não importa —conseguiu articular em castelhano—, é o filho de meu único e
adorado filho, Horatio. Eu não me importo com sua aparência. Quero te levar
comigo a Irlanda, a sua pátria, e te converter no próximo conde de Grossvenor.
—E trair a memória de minha mãe me unindo ao que mandou matá-la?
—Essa é uma calúnia!
—Artemio! —ofuscou-se Ciríaco.
—Pela memória de meu único filho, juro-te, Sebastian, jamais tratei de
prejudicar a sua mãe, de modo algum, jamais! É certo, estava furioso por esse
matrimônio, mas, depois de que nasceu sua irmã Edwina, estava disposto a
receber a seu pai e a sua pequena família em Grossvenor Manor, nossa fazenda
principal na Irlanda. A Irlanda —disse, de repente cansado—, sua pátria.
—Esta é minha pátria —objetou Fúria—, esta terra primitiva e selvagem aonde,
por sua culpa, meu pai procurou refúgio e encontrou a morte à mãos de uns
malfeitores. Se não tivesse abandonado a Irlanda por sua culpa, hoje estaria vivo.
—Tem razão —atravessou Ciríaco—, mas você jamais teria conhecido Rafaela.
Não questione os caminhos do Senhor.
Artemio ficou calado. Não podia retrucar essa verdade.
—Tenho que ir —falou de repente.
—Sebastian, por favor! —suplicou de Lacy—. É meu neto. Imploro-te, volta
comigo para sua pátria. Minha riqueza está aos seus pés! E a minha morte
converterá no conde de Grossvenor, um título de muito poder.
Fúria o olhou sem animosidade, como quem estuda um objeto de interesse.
Converter-se no conde de Grossvenor, pensou. Não se importava um pedaço de
título; de fato, aborrecia aos copetudos aristocratas. Mas pensou em sua Rafaela,
que era uma princesa, delicada, feminina, formosa, culta, refinada, e que merecia
viver com jóias, gêneros custosos e peles exóticas, atendida por um exército de
donzelas e em um palácio com lagos e jardins; sobre tudo, jardins.
—O verei amanhã —resolveu—. Onde se aloja?
—Na casa de Roger Blackraven.
—Sei onde fica —assegurou e, depois de dar meia volta, abandonou o escritório

306
do principal.
De Lacy, física e emocionalmente exausto, apoiou as mãos no escritório e se
abandonou na poltrona.
—Detesta-me. Perdi-o. Duvido de que volte a vê-lo depois de hoje.
—Artemio é tranqüilo —manifestou Ciríaco—, não obstante, como você pôde
comprovar, tem seu caráter quando o pressiona. Não por nada o apelidaram Fúria.
Só existe uma pessoa que pode fazê-lo entrar em razão. Rafaela Palafox, sua
mulher.
—Quem é ela? Uma camponesa?
—OH, não! É filha da boa sociedade portenha, a quem seu neto roubou do altar o
dia em que casava com um homem de sua classe —a careta de contrariedade de o
Lacy o levou a esclarecer—: Não se preocupe, ela está tão apaixonada pelo Artemio
como ele dela. Só Rafaela tem ascendente sobre ele, pelo profundo amor que seu
neto lhe professa. Amanhã o acompanharei a vê-la à hospedaria Os Três Reis.
Confesso-lhe que não a conheço, Artemio ainda não nos apresentou, mas
pressinto que será mais fácil para eu fazer as apresentações que para você
aparecer e apresentar-se sozinho.
***
Depois de carregar as pistolas, Aarón as limpou e as guardou nos bolsos internos
de sua sobrecasaca. Eram formidáveis, expropriadas a uns estrangeiros, embora
nunca assentadas nos registros da Polícia, por isso ninguém as associaria com ele.
Leves e bem pequenas —apenas onze polegadas—, com um retrocesso menos
violento que o usual; sabia por que tinha praticado toda a manhã atiro ao branco
em um descampado próximo ao Hueco de las Cabecitas, onde se achava seu
bordel. Orgulhava-se de sua pontaria. Se a noite em que Fúria o buscou na
mercearia para desafiá-lo não tivesse concedido que o duelo se realizasse com
armas brancas mas sim de fogo, não teria faltado ao encontro nos barracos dos
matadouros do Alto. O certo era que aquela noite, por causa de uma bebedeira
proverbial, não recordava sequer ter falado com Fúria, menos ainda os términos
do duelo, que terminou conhecendo por boca de seus cupinchas. Não importava,
em menos de duas horas se vingaria do gaúcho.
Sabia que Fúria se entrevistaria essa noite com seu tio. O cabo Martínez lhe
tinha informado a respeito de uma nota enviada por Fúria à casa da rua Larga, e
que ele encontrou pinçando nas gavetas do escritório de Palafox. A entrevista,
fixada às nove da noite, sem dúvida se levaria a cabo na sala de Rómulo, um lugar
conveniente para seu plano. Para essa hora, sua mãe, sua tia Justa e Cristiana
assistiriam a uma reunião em casa de Maricas Thompson, em tanto que os
escravos dormiriam no barraco do último pátio; não escutariam nada.
Eufórico, saiu do Conselho e cruzou o lugar em direção ao da Bernarda de
Lezica. Às sete e meia da tarde já era de noite e as ruas estavam vazias. Entrou na
loja; não havia ninguém.
—Em seguida o atendo! —escutou a voz de Lezica.
Aarón levantou a tampa do mostrador, apartou a cortina e se introduziu na parte
traseira, onde a mulher tinha suas habitações. Encontrou-a inclinada sobre uma
mesa; anotava entradas em um mamotreto. Bernarda levantou a vista e, ao vê-lo,
apoiou a pluma no tinteiro.
—O que aqui? —ficou de pé—. Por favor, saia.
Aarón se tirou o casaco e o depositou no respaldo de uma cadeira. Dirigiu-se
para a mulher com uma expressão resolvida que a induziu a caminhar para trás.

307
O quarto era pequeno; aí mesmo estava a cama. Tomou a Bernarda pelos ombros
e a fez ricochetear contra o colchão. Como a mulher rodou ao lado para escapar,
Aarón se tornou em cima dela. Bernarda moveu a cabeça e gritou. Romano franziu
o sobrecenho e contraiu o nariz ante o fôlego fétido. "comeu alho ou cebola",
pensou, e se lembrou do aroma a hortelã que sempre despedia a boca de Rafaela.
Observou Lezica como se tratasse da primeira vez; de fato, nunca antes a tinha
contemplado tão de perto. Tinha a cútis grossa e os poros dilatados no nariz; seus
dentes estavam tortos e eram meio amarelados; profundas rugas lhe cruzavam a
testa e outras nasciam em torno de seus olhos; descobriu-lhe muitos fios brancos
nas têmporas. Era velha e feia. Ergueu-se como se o contato o tivesse queimado, e
se afastou para trás, acomodando o cabelo revolto, olhando-a com repugnância. A
princesa se converteu em sapo. Arrebatou o casaco e abandonou a loja a toda
pressa.
Precisava acalmar-se. Não podia enfrentar Fúria e a seu tio nesse estado. Teve
saudades um gole de genebra; não obstante, beber não lhe convinha; seu pulso
devia ser estável. Decidiu que uma caminhada no ar fresco do crepúsculo
aquietaria suas pulsações. Em lugar de pensar na Lezica e no incidente, sua
mente voltava uma e outra vez à lembrança de Rafaela, ao sabor de sua boca, ao
perfume de seu pescoço, à perfeição de sua pele, à brancura de seus dentes, a
esbelteza de sua cintura, a seus modos femininos. Desejou-a, e sorriu ao pensar
que essa noite a teria para ele.
Consultou o relógio de bolso. Já era hora. Montou seu cavalo e se dirigiu à casa
da rua Larga.
***
Abriu-lhe Peregrina e, depois de lhe perguntar pela ama Rafaela, conduziu-o a
uma sala que acessaram do pátio principal. Já sozinho, Artemio estudou o
entorno. Tratava-se de uma cálida estadia, com paredes forradas em damasco
verde claro, móveis finos e adornos custosos. Pensou que a esse tipo de coisas
estava acostumada Rafaela e não às que lhe oferecia em seu campo de Morón.
Entrou Palafox.
—Agradeço-lhe —disse, a modo de saudação— que esta vez me tenha enviado
aviso de sua visita em lugar de aparecer-se em minhas habitações e me dar um
susto de morte.
Artemio se limitou a baixar o rosto e sorrir. Aceitou a bebida que Palafox lhe
ofereceu e se sentou onde lhe indicou.
—E bem, Fúria? A que veio? —o homem ocupou a outra poltrona, a seu lado—.
Entendo que minha filha o acompanhou nesta viagem. Poderei vê-la?
—Se ela quiser...
—O que necessita? —insistiu.
As dobradiças chiaram. Artemio e Rómulo olharam para a porta. Não tiveram
tempo de nada. Aarón arrombou um tiro à cabeça de Artemio, que ficou estendido
sobre o respaldo da poltrona, e, com grande destreza e rapidez, empunhou uma
segunda arma para descarregá-la contra seu tio; deu-lhe no peito. Agitado,
contemplou sua obra. A Fúria tinha dado no olho esquerdo, um tiro certeiro e
limpo. Caiu na conta de que a bala tinha saído pela têmpora porque o cabelo loiro
começava a tingir-se de vermelho. A seu tio, tinha-lhe acertado no coração.
Tratava-se de um golpe de mestre. Faria desaparecer o cadáver de Fúria para
dizer que tinha assassinado Palafox e fugido. Rafaela, só e necessitada, aceitaria
sua proposta de matrimônio, e, junto com ela, se faria da fortuna e Rómulo.

308
Acabaria de uma vez com suas obrigações econômicos e teria a Rafaela em sua
cama. Sentiu o impulso de rir a gargalhadas, nunca tinha experiente essa
felicidade. Não podia perder tempo, terei que desfazer do cadáver de Fúria antes
de que as mulheres retornassem da reunião. Deu meia volta e se topou com
Cristiana.
—O que faz aqui? Por que não foi ao Thompson? Vá, saia daqui!
A moça entrou, com Poupée em braços, e se dirigiu a Rómulo. Passou-lhe a mão
pelo rosto e lhe baixou as pálpebras. Inclinou-se e o beijou na frente. Observou
com olhos vazios ao gaúcho Fúria, sem demonstrar impressão pelo sangue que
emanava de sua ferida no olho e que lhe empapava o poncho. Ao voltar-se para
seu irmão, Cristiana o olhou com a mesma atitude que teria empregado na mesa
do café da manhã.
—Não casarei com o filho de Tomás de Grigera. Repugna-me. Romperá o
compromisso.
Aarón precisou de uns instantes para acomodar seus planos à nova situação.
Talvez poderia tirar proveito da irrupção de Cristiana.
—Farei, romperei seu compromisso com o filho de Grigera em troca de que você
ratifique minha versão dos fatos. O gaúcho Fúria disparou contra nosso tio e se
deu à fuga.
—De acordo.
—Agora vá. Tranque-se em seu dormitório e não saia. Eu irei te buscar quando
for propício.
Como tinha suposto, conduzir ao gaúcho Fúria não resultava uma empresa
singela. Era um homem de grande textura e pesava como um boi. Estendeu uma
manta sobre o piso junto à poltrona e manobrou o cadáver para acomodá-lo sobre
ela. Arrastou-o fora, atirando do tecido, cruzou o pátio e, antes de prosseguir para
a parte traseira da casa, passou-se um lenço pela frente e sorveu rum de sua
cigarreira. Cruzou a perto de tunas que marcava o perímetro da casa de Palafox
por uma abertura que conduzia a um terreno baldio. Deixaria o cadáver aí para
ocupar-se da denúncia e pôr em marcha seu plano. Voltaria para enterrá-lo ao dia
seguinte. Envolveu-o com a manta e a esta a dissimulou com erva.
Lavou-se, trocou-se a camisa, atou um novo laço e ficou uma jaqueta limpa.
Inspirou várias vezes enchendo o estômago, pigarreou e exercitou a mandíbula. A
farsa devia começar. Correu à zona do barraco e despertou aos escravos a voz em
pescoço.

309
Capítulo XXVIII

Os sonhos não bastam

Rafaela saltou da cadeira ante a violência dos golpes na porta. Olhou a Minuta.
Seguia dormindo.
—Rafaela, sou eu, Aarón! Abra!
—Não! Vá embora! Não te abrirei.
—Abra! ocorreu uma tragédia. Seu pai morreu. Fúria o assassinou e se deu à
fuga. Acaso sabia se iria encontrar se com meu tio Rómulo? Está Fúria aí contigo?
Rafaela permaneceu em silêncio, absorvendo o golpe da informação. O que seu
primo vociferava depois da porta tinha sentido, as circunstâncias coincidiam. As
pernas lhe tremeram ao levantar-se da cadeira. Abriu a trava e abriu. Aarón se
precipitou dentro. Rafaela o contemplou com o mais profundo estupor pintado no
rosto.
Atuou rápido e com diligência. Tomou a bolsa de sua prima, a mantilha e as
luvas e os pôs como se tratasse de uma menina. Pela primeira vez, elevou Mimita,
envolveu-a com o cojinillo e a passou a Rafaela. Conduziu-as escada abaixo e
através do salão da hospedaria, vazio e escuro, até o cabriolé que aguardava fora.
Ao cabo de uns minutos de percurso, Rafaela mostrou sinais de captar a
realidade.
—Aonde me leva?
—A casa de seu pai.
—Que horas são?
—A uma da madrugada.
"Que tarde!", pensou. "por que não terá retornado o senhor Fúria?"
—Por que nos leva a casa de meu pai? Quero voltar para a hospedaria.
—Rafaela, sei que está aturdida. Deve compreender que não podia te deixar
nesse local. Não estava a salvo ali. Seu lugar é com sua família agora.
Necessitamos de você. Além disso, pensei que quereria te despedir de seu pai. Seu
cadáver já foi revisado pelo doutor O’Gorman e as escravas estão lavando-o e
trocando-o para o velório.
—Por que diz que Artemio assassinou a meu pai?
A parcimônia de Rafaela preocupou a Romano.
—Cristiana e eu o vimos. Fomos testemunhas, entende?
Ao entrar no quarto de seu pai, Rafaela divisou o corpo tendido sobre a cama e
as suas tias chorando, uma a cada lado. Cristiana, abandonada em uma esquina,
cravou-lhe o olhar. Poupée, em braços de sua proprietária, grunhiu-lhe, e Rafaela
se arrependeu de não a haver envenenado com as vagens de glicina em La Larga.
Aproximou-se do leito. O semblante de Rómulo a afetou; tinha adotado a cor das
velas de sebo, as de confecção troca. Não tinha desejos de chorar.
—Olhe o que ocorreu por sua culpa! —explorou Clotilde—. Por causa desse
cafajeste que trouxe para nossas vidas, seu pai está morto! Esse maldito gaúcho o
assassinou! É uma prostituta! Uma mal parida!
—Mãe, cale-se!

310
Aarón tirou Rafaela do quarto e a acompanhou a seu antigo dormitório.
—Já vi meu pai. Agora me leve a hospedaria. Tenho que estar ali para quando
Artemio retorne.
—Acaso não compreendeste o que te dito? —impacientou-se Romano—. Fúria é
um foragido da Justiça. Todos meus agentes e os prefeitos de bairro estão atrás de
sua pista. Quando o encontrarem, o levarão a prisão e será justiçado.
—Deixe ir, Aarón! Não me importa se todo o exército estiver atrás dele. Tenho que
retornar à hospedaria. Buscará ali, e iremos juntos.
—Acaso perdeste o julgamento? Pensa viver como fugitiva o resto de sua vida?
Não compreende que ele assassinou a seu pai?
Rafaela carregou nos braços a Mimita, que chorava, e fez gesto de dirigir-se para
a porta. Romano a fechou de um chute.
—Daqui não sai.
—Abre a porta, Aarón! —depositou à menina no piso e o empurrou—. Afaste-se!
Não pode me obrigar a permanecer aqui. Tenho que ir à hospedaria. Artemio
morrerá de angústia se não me encontrar ali.
Aferrou-a pelos braços e lhe falou perto do rosto.
—Seu Artemio jamais voltará para a hospedaria.
—Sim, fará! Não se moverá da cidade sem mim.
—Digo-te que jamais voltará para a hospedaria porque eu lhe matei. Aarón
nunca tinha testemunhado uma palidez tão repentina e intensa. O azulado dos
lábios exacerbava o branco da face. Os olhos verdes adquiriram uma qualidade
vítrea e sem vida.
—O que há dito?
—Disparei-lhe. Coloquei-lhe um balaço no olho esquerdo. Matei-o. Cristiana viu
tudo. Ela dará fé de minhas palavras.
—Mentes! Está me mentindo!
—Não minto.
—Leve-me até ele!
—Jamais te direi onde o enterrei! Jamais!
—Aarón —disse, com a voz carregada de pranto—, sei que mente. Por que teria
que matar a Artemio e dizer, em troca, que fugiu?
—Crê que admitiria publicamente que acabei com o gaúcho Fúria? Minha vida
teria os dias contados. Sua gente, em especial esse índio, me perseguiriam até os
limites da Terra para vingá-lo.
Rafaela não pensou em que estava grávida nem tampouco em sua própria
segurança. Equilibrou-se sobre o Aarón para lhe arrancar o sorriso, e se debateu
com um vigor que tomou por surpresa. Custou-lhe subjugá-la. Arrojou-a de
barriga para baixo sobre a cama e lhe jogou seu peso em cima. O corpo de Aarón a
privou do fôlego. Rafaela respirava pela boca, incapaz de encher os pulmões.
Temia desvanecer-se, assim que se aferrou ao pranto da Mimita.
Aarón se inclinou para lhe cheirar o fôlego, e depois o pescoço, e a orelha, e a
face, e as têmporas. Percorreu-a com a ponta do nariz, inspirando as fragrâncias
que sempre dava por feitas. Passou-lhe a língua pela face, e a suavidade e a
untuosidade da pele de Rafaela lhe recordaram à nata.
—Acalme-se —sussurrou, de bom modo—. Sei que recebeste um impacto muito
doloroso, mas busca te acalmar. Tudo passará, e você e eu seremos felizes. Logo
depois de um tempo prudencial, converterá em minha esposa e restabelecerá sua
reputação. Em um princípio —prosseguiu Aarón, e Rafaela advertiu mais

311
intensidade em sua voz—, só me interessava pela fortuna de seu pai. Agora te
tornaste uma obsessão, uma febre, uma enfermidade. Desejo-te, desejo-te com um
ardor que está me enlouquece.
A forçaria na frente à menina? A lascívia de Aarón a afogava, como se um aroma
nauseabundo lhe dançasse sob as fossas nasais. Pensou na enfermidade que o
afligia, morbo francês o tinha chamado a senhorita de Lezica. A contagiaria,
machucaria a seu filho. Os gritos permaneciam encerrados em sua mente. Não
tinha força nem ar para proferi-los nem vontade para lutar.
Aarón rodou a um lado, e Rafaela fez ruído ao tomar ar e expandir seus pulmões.
ficou de pé de um salto e correu para a Mimita.
—Quero que te serene —exigiu Aarón, ao tempo que se acomodava o laço e a
jaqueta—. Dorme um pouco, se puder. Mais tarde, voltarei por ti —se foi e fechou
a porta com chave.
Tomou uns minutos acalmar a Mimita, lhe secar as lágrimas e lhe soar o nariz,
enquanto ordenava suas idéias. Não se deteria analisar a mentira de Aarón.
Artemio não estava morto, nada a induziria a lhe acreditar. Tinha que fugir dessa
casa e de seu primo. Ambos se tinham convertido em estranhos. O som da chave a
pôs alerta. Eram Cristiana e Peregrina. A escrava correu e as abraçou.
—Vamos —apressou Cristiana—. Não há tempo. Babila te aguarda na parte
traseira. Levará onde lhe indique.
—Por que me ajuda?
—Porque sim—disse para não explicar que jamais permitiria que seu irmão, o
assassino de Rómulo, casasse com ela e fora feliz. Sabia que a desejava; tinha-o
visto várias vezes contemplando-a com expressão enfatuada.
—Aarón diz que matou a Fúria e que você viu tudo.
—É verdade.
—Não te acredito!
Cristiana sacudiu de ombros. Deslizaram-se de modo furtivo pela casa e subiram
ao carro. Rafaela pinçou em sua bolsa, tirou o cartão de Juvenal Romano e,
enquanto a lia, ordenou ao escravo:
—Ao número 28 da rua de São Cosme e São Damián.
***
Quinto farejou o vulto. Apartou a erva que o cobria com suas patas dianteiras até
dar com uma manta, cujos borde separou usando o focinho. Cheirou o rosto de
Artemio Fúria, mesclando grunhidos com miados lastimeros e assobios raivosos.
Balançava a cabeça e movia o corpo, como se debatesse. Mordeu o poncho e
começou a arrastar o corpo. O objeto ficou pendurando de seus dentes, e o corpo
abandonado vários palmos atrás dele; o poncho se deslizou pela cabeça de Fúria.
Farejou-lhe o pescoço e a nuca, miando como um gato indefeso, até fechar suas
poderosas mandíbulas em torno da camisa e atirar. Demorou mais de duas horas
em alcançar uma área despovoada do Baixo, muito perto do rio, onde se escondia
enquanto Fúria permanecia na cidade; ele estranha vez entrava em Buenos Aires;
temia-lhe. Tinha-o feito de cachorrinho, em braços de seu dono, que o tinha
mantido a bom resguardo entre os muros do convento da Mercê.
Correu pelo Baixo até alcançar a restinga da Alameda, desolada a essa hora da
noite. Várias jardas depois do Forte, começou a descer o barranco para entrar pela
primeira vez em muito tempo em um povoado. Subiu a parede do convento da
Mercê com agilidade e se arrojou dentro; caiu sobre a acelga da horta. O olfato o
guiou ao pai Ciriaco. Subiu as escadas e caminhou pelo pórtico superior até dar

312
com a sela do sacerdote. Arranhou a madeira da porta, grunhindo e assobiando.
Parou as orelhas ao escutar o ruído do elo contra o pederneira. A fresta sob a
porta cobrou luz. Quinto seguiu arranhando.
—Quinto! —sussurrou—. O que faz aqui? Quase me mataste com susto! Não te
reconheci!
Ciriaco advertiu o estado de inquietação do puma. Movia a cabeça por volta de
um e outro lado, dava curtos passos para a esquerda e a direita, detinha-se frente
a ele, olhava-o e miava, sentava-se sobre seus quartos para levantar uma de suas
enormes patas e agitá-la no ar. Seu olhar, sobre tudo, parecia querer lhe
transmitir uma mensagem urgente. Ao fim, Quinto lhe mordeu o arena da
camisola e atirou para fora.
—Ei, Quinto! O que te propõe? Por que está aqui? Procura o Artemio?
Deteve-se o mencioná-lo. Ciriaco sabia que o animal jamais entrava na cidade.
Rondava sem aproximar-se, à espera de que seu dono se dignasse a retornar ao
paraíso agreste e sem humanos do qual provinha. Por que tinha arriscado o pele
violando um instinto de preservação tão forte? Soube, com certeza indiscutível,
que Artemio estava em perigo. Logo que entreabriu a porta para tirar a camisola,
se tornar em cima a batina e um poncho e calçá-las sandálias. Acendeu um farol
antes de apagar a palmatória de sua sela e sair. Elevou-o para iluminar o pórtico.
—Leve-me a ele, Quinto. Depressa.
***
Amanhecia quando a carruagem, com Fúria inconsciente atrás, cruzou o portão
do convento da Mercê, que um sacerdote se apressou a fechar. Baixaram-no entre
vários e o colocaram em uma maca utilizada para recolher feridos das ruas
durante a batalha contra os invasores ingleses. Acomodaram-no no refeitório,
onde o principal tinha mandado desdobrar uma cama de armar com colchão de
manta de algodão, também empregado durante os dias em que o convento servia
como hospital de sangue.
—Ciriaco —falou o principal—, acabam de ir uns agentes da Polícia que
procuravam Artemio. Sabem de sua relação com o convento e por isso vieram.
Dizem que assassinou a Rómulo Palafox e que se deu à fuga. Há gente buscando-o
em qualquer parte.
—Deus o ampare! —proclamou Ciríaco—. Mas, como pode ser isso possível se o
achei meio morto?
—Não é tempo de especulações! —interveio o pai Cosme—. Artemio está
morrendo. Seu pulso é muito débil. Urge que o veja um médico.
—Serapio foi pelo doutor Argerich —informou o principal—. Nele podemos
confiar. É amigo de Artemio e da causa dos patriotas.
O pai Cosme, quem, por ser o barbeiro do convento, entendia em matéria de
sangrias, aplicação de sanguessugas, extração de demola e colocação de ventosas,
assistiu ao doutor Argerich durante a cura e a revisão de Fúria. O médico não
mostrou uma boa expressão quando se aproximou do principal para lhe dar seu
diagnóstico.
—Perdeu o olho. A bala lhe esvaziou a cavidade ocular. Felizmente, o projétil saiu
pela têmpora esquerda. Não sabemos que dano tenha produzido em seu percurso.
—Viverá? —escutou-se a voz do Ciríaco.
—Seu pulso é muito fraco —foi a resposta do médico—, e a ciência não pode fazer
mais por ele. Fica nas mãos de Deus.
—Doutor —falou o principal—, estiveram aqui uns soldados. O acusa de ter

313
assassinado a Rómulo Palafox. Nós sabemos que não é certo. Como poderia sê-lo
se Artemio estiver aqui, meio morto? —o médico assentiu com gravidade—.
Queríamos lhe pedir que...
—Não direi uma palavra a respeito de Fúria —se apressou a esclarecer
Argerich—. Ele é um amigo e duvido de que a acusação seja certa. Questões muito
complexas se cozinham na política do Rio da Prata por estes dias, e Fúria está no
olho da tormenta.
—O melhor seria tirar o de Buenos Aires quanto antes —propôs Ciríaco.
—Convém movê-lo, doutor?
—Não convém —admitiu—. Mas tampouco convém que lhe joguem a luva seus
inimigos.
Reunidos no escritório do principal, Ciríaco e outros sacerdotes decidiam o que
fazer. Coincidiram em que a chegada do conde de Grossvenor a Buenos Aires era
um acontecimento da Divina Providência.
***
Gostava de dormir porque sonhava com o senhor Fúria, e seus sonhos adquiriam
um matiz tão real que, ao despertar, tomava um momento dar-se conta de que não
cavalgava junto a ele no campo de Morón nem se banhavam na lagoa de La Larga.
Queria evadir-se porque não tolerava a sórdida realidade. Queria sonhar e
esquecer que seu pai estava morto, que seu primo Aarón se converteu em um
monstro e que Artemio seguia desaparecido. Ele não tinha morrido, o repetia
diariamente para não fraquejar. Mas dormir custava e os sonhos não bastavam
para lhe devolver as vontades de viver.
Tinha resultado um acerto acudir ao Juvenal Romano. Aarón jamais a buscaria
em sua casa, onde se ocultava desde fazia dois dias. As notícias que Romano
obtinha na cidade resultavam desconsoladoras. Viu-o entrar na sala e advertiu
seu gesto contrariado. Aguardou a que se tirasse a cartola, as luvas e o capote
para aproximar-se e lhe perguntar:
—Senhor Romano, o que ocorre? Que notícias me traz?
—Intensificou-se a busca. Enviaram uma equipe a procurar fúria a um campo
que tem em Morón. É assim? —levantou a vista ao inquirir a Rafaela—. OH, por
favor, não você vá a desvanecer-se. Não saberia o que fazer. Venha, sente-se. Darei
algo forte para beber —a obrigou a sorver conhaque antes de prosseguir—. A você
também a buscam. Acusam-na de cúmplice no assassinato de seu pai.
—OH, Santo Deus!
—Aarón é implacável —admitiu Romano—. Foi a casa de sua amiga, a senhorita
Bonmer, e a golpeou para que confessasse seu esconderijo. Não chore, Rafaela.
Bernarda está cuidando dela. Não é nada grave em realidade. O lábio inchado, isso
é tudo.
—Poderia matar a Aarón com minhas próprias mãos. É um canalha do pior
classe. O que averiguou a respeito de Artemio?
—Nada. Ninguém sabe nada. É como se o tivesse tragado a terra. Os morenistas
o buscam, possivelmente, com mais afinco que a Polícia. Acredito que o
necessitam para algo. Além disso...
—O que? Fale, senhor Romano!
—Começou a correr o rumor de que na verdade está morto.
—Não, não, não —Rafaela agitava a cabeça, sem apartar os olhos de Juvenal—.
Não, não, ele não me deixaria. Ele não me abandonaria. Vamos ter um bebê. Vou
lhe dar um filho.

314
Romano teve piedade do sofrimento de Rafaela e a abraçou. Ao notá-la mais
tranqüila, decidiu lhe falar com sinceridade.
—Rafaela —disse, com acento sombrio—, acredito que o melhor será que você
abandone Buenos Aires.
—Não posso ir sem o Artemio! Aonde iria sem ele? Como me encontraria?
—Calma, Rafaela, não entre em pânico. Isso não ajudará para raciocinar. A ver,
pensemos com serenidade. É preciso que saia de Buenos Aires porque Aarón não
retrocederá até encontrar você. Como intendente de Polícia, conta com espiões em
qualquer parte. E não passará muito até que consiga saber onde se oculta. Esta
vez a senhorita Bonmer não há dito nada. O que ocorreria se, em lugar de lhe dar
uma bofetada, pusessem-lhe uma arma na têmpora? Ela não teria alternativa e
diria que você está aqui.
—Meu Deus! O que farei?
—Por isso acredito que o melhor é tirar a de Buenos Aires. Eu poderia...
—Tia Pola! —exclamou—. A irmã de minha mãe vive em Córdoba. Recebi notícias
dela recentemente. Sei onde vive, e duvido de que Aarón ou minha tia Clotilde
saibam. Esconderei-me em sua casa em Córdoba até que Artemio vá me buscar—-
sentiu um mal-estar de repente—. Como saberá Artemio onde estou? Quem o
dirá?
—Eu vou a casa da senhorita Bonmer e lhe confessaria que você se esconde aqui,
em minha casa. Amanhã mesmo irei aos Altos de Escalda e lhe darei minha
direção, para que a entregue a Fúria.
—Sim, sim, assim será! —voltou a deprimir-se—. Não conto com dinheiro para
pagar a viagem. Apenas se tiver uns cuartillos em minha bolsa. O dinheiro ficou no
quarto de Los Três Reis. Seria arriscado voltar por ele.
—Rafaela, Aarón expropriou suas coisas de Los Três Reis. Seu dinheiro, estou
seguro, terminou nos bolsos dos cabos da Polícia. Não se angustie pelo dinheiro,
eu lhe darei para que confronte a viagem. Além disso, você e Mimita irão em uma
de minhas diligências. A enviarei sozinha, sem outros passageiros, e com meu
melhore chofer e maioral.
—Deus o abençoe, senhor Romano!
—Rafaela, deve ter muito presente que não poderá me escrever. É sabido que a
Polícia viola a correspondência para manter-se informada. Comunicaremo-nos
através de cartas que lhe enviarei em minhas diligências. E agora, me dê a direção
de sua tia Pola.
—Quando partiremos?
—Esta mesma noite. Como não contam com salvo-condutos para viajar, pedirei à
senhorita Bonmer que os falsifique na Imprensa.
—Corina pode fazer isso?
—Rafaela, surpreenderia-se ao conhecer a habilidade de sua amiga com uma
imprensa. Devo ir agora se quero obter essa documentação para a hora da viagem.
Pensarei nomes falsos para você e Mimita no caminho. Além disso, decidi lhes
acompanhar até a Vila do Lujan me fazendo passar por seu pai. Depois dessa
posta, poderão continuar viagem sem perigo. Estimo que a influência de Aarón
não se estende mais à frente.

315
Capítulo XXIX

Floresça no caminho

O conde de Grossvenor confiava em Eddie O’Maley para que se ocupasse da fuga


de Artemio; considerava-o um homem competente e brilhante. A Polícia tinha
esboçado um cerco em torno da cidade e teria sido impossível tirá-lo pelos
caminhos de realengo.
Seu neto seguia inconsciente no refeitório do convento, e as orações dos
mercedários não estavam fazendo efeito. "Ao menos segue com vida", consolou-se,
embora não pudessem lhe baixar a febre. Quando delirava, Artemio se violentava e
se arrancava a atadura da cabeça. Deviam sujeitá-lo entre vários. Ao final,
optaram por atá-lo para evitar que se infligisse dano.
Entre as incoerências que resmungavam de seus lábios ressecados, uma palavra
surgia com claridade: Rafaela. A Horatio sangrava o coração ao perceber a
angústia com que seu neto pronunciava esse nome uma e outra vez até perder a
voz. Ele tinha amado com loucura a sua esposa e conhecia os abismos nos que
podia afundar um homem que sofria por amor.
Não importava quanto se esmerassem na busca, Rafaela Palafox não aparecia;
esfumou-se, e, embora não se atrevia a levar-se a Artemio a Irlanda sem sua
mulher, não vislumbrava outra opção. Como galgos, a Polícia farejava a seu neto
no convento, e se não tinham ingressado para requisitá-lo se devia à indignação
fingida pelo principal, que chegou a ameaçá-los interpondo uma denúncia ante o
Conselho Eclesiástico.
Eddie O’Maley entrou na casa da rua São José e lhe informou que essa noite
ficariam em marcha para tirar o Artemio de Buenos Aires. De Lacy lhe confirmou
que o capitão de Gales se achava a par da situação e logo para sapar logo que
subissem a Artemio no clíper, que ancorava a uma milha frente à costa portenha.
Carregaram-se os mantimentos e a água doce durante esses dias de espera.
—A parte mais difícil —admitiu O’Maley—, será conduzir a Artemio em uma
carruagem até a zona sul, na boca do rio. Ali o embarcaremos em uma ponte de
tábua que os transportará até o Gales. Há reservas de soldados e policiais em
qualquer parte e, se chegassem a nos deter para revisar a carruagem, estaríamos
perdidos.
—Iremos armados. Resistiremos. Não tenho nada que perder.
—Terá que lhe pedir ao doutor Argerich que obrigue a Artemio a beber láudano
para que durma durante o trajeto. Se começasse a delirar, nos delatará.
***
Calvú Manque se passeava pelo locutório do convento da Mercê com a
impaciência de um tigre em uma jaula. Soltava bufidos e elevava, a vista ao teto.
Escutou passos no corredor e se deteve.
—Calvú, filho! —exclamou Ciríaco, e o abraçou—. Graças a Deus que apareceste!
Onde estava? Enviei-te mensagem faz dias. Necessitávamos de você
desesperadamente. Não sabe...

316
—Antes de vir-se para cá, Artemio mandou a Recifes com um rodeio chucaro
para retirar canas verdes. Demoramos mais que o normal. Ao chegando no Morón,
minha ñuqué me deu o aviso de sua mensagem. E vim rápido como o vento para
vê-lo. Que caralho se passa?
—Vem, sente-se. Aconteceu uma desgraça.
Ciríaco lhe relatou os fatos. Manque não perguntava nem fazia comentários
porque não atinava a apreender a magnitude da tragédia.
—Quero ver meu peñi —balbuciou.
—Acaso não escutou que te hei dito que o embarcamos faz três dias e que, junto
com seu avô, o conde de Grossvenor, viaja para a Irlanda?
—Meu Deus, padre! Como o deixaram partir estando assim tão doente?
—Agora temos que achar Rafaela e lhe dizer a sorte correu Artemio.
—Como? Rafaela não embarcou com ele?
—Não pudemos achá-la. Desapareceu. Ninguém sabe onde está. Eu não a
conheço assim não sei quem são suas amizades, a que pessoas freqüenta.
Sabemos que não está em casa dos Palafox nem em Los Três Reis. A Polícia a
busca a ela também; acusam-na de cúmplice na morte de seu pai. Deve estar
escondendo-se, a pobre. Você, Calvú, conhece-a mais que eu. Possivelmente saiba
aonde ir perguntar por ela.
O índio ficou de pé e, com acento sombrio, declarou:
—Eu não gostaria de ser esse conde de não sei onde, quando meu peñi despertar
e souber que Rafaela não vai nesse navio.
***
—Pediu a Babila que a levasse a número 28 da rua de São Cosme e São Damián.
Agora, me entregue Poupée.
Aarón retirou a pistola que cravava no ventre da cadela e a devolveu a sua irmã.
—Se voltar a me trair —a ameaçou—, terminará pior que Peregrina —lançou uma
olhada ao vulto que formava a escrava em um rincão do quarto; tremia e gemia,
enquanto o sangue se encharcava em torno dela por causa de uma ferida na
frente.
Tinha-lhe tomado vários dias dar-se conta do papel de Cristiana na fuga de
Rafaela, pois em um princípio acreditou que a tinha ajudado a tia Justa. Até que
notou o nervosismo de Peregrina, e o instinto lhe marcou o caminho. O resto,
tinha sido fácil.
Montou seu cavalo e galopou para o norte. Para chegar aos 28 de São Cosme e
São Damián devia cruzar toda a cidade. Conhecia essa direção; ali vivia e
administrava sua companhia de aluguel de diligências Juvenal Romano.
Resultava-lhe improvável que Rafaela e seu padrasto se conhecessem. Não
obstante, iria ver. Se Cristiana lhe tinha mentido, retornaria e a golpearia até lhe
arrancar a verdade. Esgotavam-lhe a paciência e os recursos; já não sabia onde
procurar a sua prima; fazia mais de dez dias que tinha desaparecido. Estava
perdendo o controle, e, à exceção da morte de Rómulo, o resto de seu estratagema
se desmamava e fracassava. Rafaela tinha fugido e o cadáver de Fúria,
desaparecido. Ou, em realidade, ainda seguia com vida?
***
Calvú Manque lhe indicou à criada que precisava falar com o senhor León Pruna;
acrescentou que o enviava a senhorita Bonmer. Romano se apresentou na sala em
companhia da senhorita de Lezica. A Manque lhe chamaram a atenção seus
semblantes pesarosos com sinais de pranto. Não obstante, simulou não ter

317
reparado nisso e se apressou a tirar o lenço da cabeça, para incliná-la a modo de
saudação. Tratou de falar o melhor possível para causar uma boa impressão.
—Meu nome é Calvú Manque, amigo de Artemio Fúria. A senhorita Bonmer me
há dito que vossa mercê me daria notícias de Rafaela Palafox, a mulher de meu
irmão. Aqui lhe manda uma carta —lhe estendeu a nota, e Juvenal reconheceu a
caligrafia de Corina Bonmer.
Graças às conversações que tinha sustentado com a Rafaela, Juvenal sabia da
amizade de Fúria com esse tal Calvú Manque. Convidou-o a tomar assento e lhe
ofereceu um copo de vinho.
—Obrigado. Acabo de chegar a Buenos Aires e tenho a garganta seca da viagem.
Senhor Romano, o que pode me dizer de Rafaela? Estou muito preocupado com o
seu desaparecimento. Sua mercê sabe por onde anda?
—Senhor Manque —falou Romano—, sua visita é muito oportuna. Esta manhã
recebi uma notícia —se deteve, pigarreou e olhou para outro lado para dizer—:
Não é uma boa noticia a que tenho para você nem para Fúria. É certo, a senhorita
Palafox recorreu para mim para ocultar-se da perfídia de Aarón —lhe relatou de
maneira sucinta os fatos—. Ela não desejava ir-se sem Fúria, mas o perigo era
iminente. Aarón Romano não demoraria para saber que ela se ocultava aqui, e eu
a induzi a partir para Córdoba, a casa de uma tia, irmã de sua mãe.
—Faz quanto que se foi para Córdoba?
—Partiu faz nove dias.
—Estará lá ao chegar. Irei para Córdoba...
—Senhor Manque, ainda não terminei de relatar o sucedido. Como lhe expressei
um momento atrás, esta manhã recebi uma penosa notícia. A senhorita Palafox
nunca chegou a Córdoba.
—Aonde ela foi?
A inquietação de Manque o transbordava e, em um ato inconsciente, ficou de pé.
—A caravana em que viajavam foi atacada pelos índios a légua e meia da posta
de Pontas da Garganta Funda. Como conseqüência, a senhorita Palafox e a
menina morreram, quão mesmo o maioral e o chofer.
Calvú Manque sujeitou a Romano pelas lapelas. Bernarda saltou sobre o índio e
se pendurou de seu braço.
—Solte-o! O que faz!
—Onde está a mulher de meu peñi?
—Não escutou ao senhor Pruna? Morreu, junto com Mimita!
—Não é verdade. Onde está ela? Aonde a esconde?
—Sinto muito, sinto-o —choramingava Juvenal—. Eu a impulsionei a partir. Ela
não queria, não queria. E eu a induzi a que se fora. Pobre menina! Estava tão
assustada. Que morte tão horrível encontrou por minha culpa!
Calvú Manque o soltou e se abandonou na cadeira. Cobriu a cabeça com as
mãos e apoiou os cotovelos sobre os joelhos.
—Não é verdade —sussurrava.
—Achou-os outra de minhas diligências, que se dirigia também para o Córdoba.
Eles enterraram os quatro cadáveres à borda do caminho e despacharam um
mensageiro com a notícia. Chegou esta manhã.
—Não é verdade! Até que não veja o corpo de Rafaela não acreditarei.
***
Antes de enfrentar Juvenal, Aarón Romano se dedicou a estudar o movimento da
casa e dos arredores. A zona, afastada do centro, apresentava um aspecto

318
desolado; não havia gente nem carros, nem sequer cães.
A porta da casa se abriu de modo súbito e violento, e Aarón atinou a baixar a asa
de seu chapéu para evitar que Calvú Manque o reconhecesse; apurou o cavalo e
simulou ser um lhe passeiem. Depois de um momento, girou a cabeça e constatou
que o índio, a uma velocidade extrema, afastava-se em direção ao centro. Teria
jurado que Cristiana lhe mentia ao lhe dar essa direção; a presença de Calvú
Manque em casa de Juvenal arrojava uma nova luz sobre o caso.
Não bateu na porta, simplesmente entrou. Seu padrasto estava abatido, só no
amplo vestíbulo, meio jogado em um sofá. Levantou a cabeça, e sua expressão
afligida mudou imediatamente a uma dura e enojada. Se pôs de pé.
—O que faz aqui, Aarón? Como te atreve a entrar em minha casa sem chamar?
—Quero saber onde tem a Rafaela, onde a esconde.
—Nada sei eu de Rafaela, assim sai daqui. Agora!
—Por que tanta antipatia? Meses atrás me chamou filho e me ofereceu
compartilhar seu negócio de diligências.
—Você não é meu filho mas sim desse delinqüente de Avendaño. São lascas do
mesmo pau —manifestou, com um desprezo que conseguiu perturbar a Aarón.
—Pode-me dizer isso pelas boas ou lhe posso tirar isso pelas más. Encerrarei-te
em uma masmorra do Conselho e te farei torturar. Diz-me onde tem a Rafaela!
Um sorriso sardônico aflorou aos lábios de Juvenal.
—Antes de me abandonar, sua mãe me denunciou por ser judeu ao Tribunal do
Santo Ofício em Lima. Crê que, depois de ter sido torturado por esses inquisidores
filho da puta, peritos em técnicas para infligir dor, temerei aos improvisados do
Conselho? Se eles, com toda sua destreza, não conseguiram me arrancar um só
nome, pensa que poderá obter que te diga aonde escondi Rafaela Palafox?
Bernarda de Lezica, que tinha ido à cozinha em busca de uma infusão para
Juvenal, deteve-se o escutar murmúrios e permaneceu oculta no ingresso do
vestíbulo. Reconheceu a voz de Aarón Romano e pôs-se a tremer. A perversidade
desse moço tinha conseguido quebrar sua couraça de mulher valente e
independente e filtrar-se em seu tenro interior.
Temia-lhe ao ponto de ficar noites acordada imaginando as maldades às que a
submeteria. A última vez tinha tentado violá-la. Retornaria para prejudicá-la e
cairia sobre ela e sua loja sem piedade. Devido à posição que ocupava no governo,
sua perfídia e sua imoralidade o convertiam em uma criatura letal. Preferia que
não seguisse levantando as notas promissórias que lhe devia se com isso evitava
voltar a vê-lo. Comutaria-lhe a dívida.
Um estalo se mesclou com as vozes, e Bernarda identificou o som do gatilho de
uma pistola ao ser preparado para disparar.
—Cedo ou tarde a encontrarei —prometeu Aarón—. Agora, dar-me o gosto de
fazer algo que desejo a muito tempo: te mandar ao inferno, sujo de merda —e
disparou.
O som do disparo produziu ondas no ar, como as de uma pedra jogada sobre um
espelho de água, que alcançara Bernarda e a percorreram dos pés à cabeça.
Apertou o chimarrão com a infusão sem reparar em que queimava. Não soube
quanto tempo permaneceu oculta, com os dentes apertados e os olhos fechados.
Ao separar as pálpebras, necessitou vários minutos para atrever-se a enfrentar o
que sabia que acharia na sala: ao Juvenal morto.
***
Calvú Manque se mantinha erguido sobre os arreios contra sua vontade. Fazia

319
dias que não dormia nem comia bem. Fustigava aos seus parelheiros, e era
consciente de que descarregava sobre suas bestas a ira que o embargava. Refreava
o impulso de elevar o punho ao céu e agitá-lo em um gesto de ameaça para Deus.
"por que voltou a te enfurecer com ele, Senhor?", perguntava depois, abatido e
humilde. "Não foi suficiente que arrebatasse a sua família quando era um pirralho
que agora lhe tira o que mais ama nesta vida?" Sorriu com amargura ao evocar a
cara de orgulho de Artemio quando lhe comunicou que Rafaela ia lhe dar outro
filho. "Vou casar com ela peñi. Quero que até a lei de Deus diga que Rafaela
Palafox é minha mulher". Em tanto se aproximava do posto de Pontas da Garganta
Funda59, o medo crescia e o afogava. Negava-se à verdade e se sujeitava a um fio
de esperança. Possivelmente Rafaela e Mimita não estivessem mortas a não ser
cativas em Terra Adientro. Não resultaria difícil as redimir se achavam entre tribos
amigas.
A estrebaria não apresentava o aspecto misérrimo das que tinha deixado atrás.
Solidamente construída, com uma ampla estadia e habitações, até podia passá-la
noite em uma cômoda cama. Manque atou os cavalos ao palanque e entrou. Os
paroquianos e viajantes cessaram a conversação para estudar a catadura do
recém-chegado. Como era índio, ninguém se mostrou hospitalar nem amistoso.
Manque se aproximou do escritório de bebidas que se realizava através de uma
janela com grades para evitar os assaltos. Pediu um copo com grampeia antes de
perguntar:
—Quem é o dono desse lugar?
—Para que o busca?
—Você é o patrão?
—Não. Mas vou dar um conselho grátis, amigo. Evite ao patrão hoje em dia.
Desde que a mulher fugiu e o deixou abandonado, não é um cristão confiável, o
que se diz. está dentro, mamando-se, mais cabrero que um tigre com dor de ovo.
O que anda necessitando? Se puder ajudar, lhe dou uma mão.
—Faz cerca de quinze dias, aqui perto, mais para o norte, uns infiéis atacaram
um grupo que levava somente a uma menina e a uma jovem muito bonita e
refinada. Sabe você algo disto?
—Ah, sim! —confirmou o pulpero60—. A miss e a menina (meio estranha essa
criaturinha, se me permitir) fizeram noite aqui e se foram antes de que saísse o
sol. A légua e meia, uns índios atacaram a diligência, mataram ao maioral, ao
chofer e a elas. Um assunto muito triste, muito triste. Os que os encontraram,
deram-lhes uma sepultura cristã e até cravaram umas cruzes em cada tumba.
Disse-se que os corpos estavam muito maltratados porque os abutres e as corujas
feito a pança eles. Que triste assunto!
Calvú Manque se desmoronou em uma cadeira para seguir bebendo. Despertou
umas horas mais tarde sobre a mesa, confundido, com dores, pontos e moléstias
do alto da cabeça até os pés, e um sabor desagradável na boca. Saiu. Aproximou-
se de um poço de água e enxaguou o rosto e fez gargarejos. Acupou-se de seus
arreios, a que tinha descuidado sem perdão. Retornou à posta e se obrigou a
comer algo. Demorou a partir até que reuniu forças para prosseguir.

59
A autora menciona Puntas de la Cañada Honda.
60
Dono de estabalecimento.

320
Na invariabilidade do terreno, não lhe custou distinguir os quatro montículos que
o sol do entardecer banhava com uma luz dourada e suave. Desmontou com um
giro lento, deslizou-se devagar; não queria tocar terra porque, ao fazê-lo, seria
obrigado a aproximar-se das tumbas. Caminhou para elas e, a uns palmos, tirou-
se o chapéu em sinal de respeito. As cruzes, de ramos de chañar atadas com tatos
de couro, eram pequenas e torcidas, e não se divisavam do caminho. Perguntou-se
quais seriam as tumbas de Rafaela e da Mimita. Tinha levado uma espécie para as
desenterrar e ratificar que se tratasse delas; depois do comentário a respeito de
abutres e corujas cevando-se nos corpos, carecia de sentido. Jurou que Artemio
jamais se inteiraria de que a carne de sua mulher lhe tinha servido de comida a
um ave carnívora; esse segredo o levaria a outro mundo.
—Artemio —murmurou, e ficou de joelho, peñi— , como lhe vou disse isso?
Não queria ser ele quem lhe desse a notícia da morte de Rafaela e a do filho de
ambos. Tinha medo de enfrentá-lo, de testemunhar sua dor e seu
desmoronamento. Odiou-se por desejar que Artemio nunca despertasse da
inconsciência em que o tinha sumido o disparo que lhe tinha esvaziado o olho.
Embora ficasse com o meio coração depois da morte de seu irmão, preferia sua
perda a vê-lo padecer pela morte de Rafaela.
Secou as lágrimas com o lenço de seda, ficou de pé e inspirou profundamente. O
ar do pampa ao entardecer sempre operava maravilhas em seu ânimo. Ele era um
homem bem enérgico, recordou-se, um valentão com os ovos bem postos. Se
alguém tinha que dar a notícia a Artemio, esse era ele. E se alguém podia ajudá-lo
a agüentar a dor, esse também era ele, seu peñi, seu irmão da alma. Não tinha
sentido atrasar-se em procurar os culpados. Retornaria a Buenos Aires, delegaria
os assuntos do campo de Morón a Billy, "o rengo", e Isidoro, "o rastreador", e
embarcaria para a Irlanda.
***
Na segunda-feira 8 de abril de 1811, Bernarda de Lezica se apresentou na
Imprensa dos Meninos Abandonados, onde a receberam em um tenso silêncio e
com semblantes preocupados. Pediu falar com Corína Bonmer.
—Tomaram prisioneiro a nosso chefe, Agustín Donado —explicou à a Lezica—, e
o levaram ao Guarda do Lujan. Não sabemos o que será dele.
Donado e outros membros da Sociedade Patriótica, declarados morenistas,
partiriam rumo ao exílio. O golpe orquestrado pelo Joaquín Campana, Tomás de
Grigera e Aarón Romano tinha resultado vitorioso.
Com reflexos do povo, a passeata começou ao redor das onze da noite da sexta-
feira 5 de abril, quando, convocados pelos prefeitos, à cabeça o das Colinas da
Zamora, grupos de sitiantes, peões e patrícios, todos a cavalo e armados,
congregaram-se nos subúrbios, em especial nos currais do Miserere. Em um
silêncio imponente, partiriam para a cidade e ocupariam a Praça da Vitória.
Contavam com o apoio do regimento dos Húsares ao mando do coronel Martín
Rodríguez.
Os membros da Junta Grande, a par do movimento, fingiram surpresa e
desconhecimento. Atendeu-se à petição (um documento com dezessete pontos
redigido por Sino) e, sem discussão, concedeu-se quanto solicitavam. Entre sortes
exigências se encontrava o pedido de demissão dos aliados de Moreno no governo,
Nicolás Rodríguez Penha, Hipólito Vieytes, Miguel da Azcuénaga e Juan Larrea, e a
expulsão de Buenos Aires de Domingo French, Antonio Beruti, Agustín Donado,
Gervasio Posadas e o presbítero Vieytes, irmão do Hipólito. A partida de Moreno

321
tinha sido destruído.
—Com o gaúcho Fúria desaparecido e contando só com a Infernal —Corina falava
do regimento a cargo do French e do Beruti—, resultou impossível adiantar-se ao
golpe que nos atiraram estes traidores. Agora, o imperador —disse, em referência
a Saavedra— e sua camarilha são mais capitalistas que nunca.
Bernarda de Lezica, a quem tinham sem cuidado as rixas políticas, escutou-a
com paciência. Ao notar que a jovem se desafogou, dispôs-se a falar a respeito do
que motivava sua visita à Imprensa.
—Corina, tenho-te muito más notícias.
—OH, não —murmurou—, não mais más notícias, por piedade.
—Trata-se de Rafaela Palafox —a Bernarda a comoveu a angústia que se pintou
no semblante de Corina—. O sinto, mas ela e a menina morreram. Uns índios
atacaram a caravana em que se dirigiam a Córdoba e as assassinaram.
Corina soltou um grito que atraiu a seus companheiros. Embora subtraía lhe
dizer o mais importante, Bernarda preferiu esperar. Visitou-a esse mesmo dia,
pela tarde, nos Altos de Escalada. Achou-a em cama, com trapos embebidos em
vinagre aromático sobre as têmporas. Ainda não lhe apagavam os rastros do
pranto.
—O culpado da morte de Rafaela e da Mimita é Aarón Romano. Ele obrigou a
Rafaela a escapar, você sabe, não necessita que te explique como aconteceram as
coisas desde que Fúria matou Rómulo Palafox e se deu à fuga.
—Isso é mentira —a interrompeu a Bonmer, cobrando brios—. Não sei quem
matou Palafox nem onde está Fúria. Só sei que seu desaparecimento resultou
muito conveniente e oportuno para os traidores saavedristas. Estou convencida de
que esse sapo de Aarón Romano lhe tendeu uma armadilha para tirá-lo do meio.
Sabia-se que, com o regimento do French e a gente de Fúria, os saavedristas não
tinham possibilidade de permanecer no poder.
—Está bem, está bem, acredito-te e estou de acordo contigo. Por isso vim hoje até
aqui, porque quero te pedir que me ajude a destruir a Aarón Romano. Um ser
malévolo como ele não pode seguir à frente da Polícia.
—Estou de acordo —manifestou Corina, ao tempo que recordava o pânico vivido
nessa mesma estadia enquanto Romano a mandava golpear por um de seus
jayanes para que confessasse onde se escondia Rafaela—. Contudo, não vejo como
o destruiremos se Romano se converteu em um dos homens mais capitalistas do
momento.
—Destruiremos sua reputação. Sei coisas a respeito de Romano que o afundarão
na mais profunda das ignomínias, da qual nunca emergirá. Necessito que imprima
panfletos e bandos na Imprensa e que os mande pegar, que cubra a cidade com
eles. Toma —disse, e tirou de sua bolsa um papel dobrado.
À medida que lia, os olhos de Corina se aumentavam.
—Por Deus, senhorita de Lezica! É tudo isto certo? Que Aarón Romano é o filho
bastardo de um delinqüente, um tal Martín Avendaño? —Bernarda assentiu—.
Que sua mãe casou com um sujo a quem abandonou em Lima para fazer-se
passar por viúva todos estes anos? Que Romano é proprietário de um bordel e um
casa de jogo clandestino na zona do Hueco de las Cabecitas?
—E também é certo que rouba mulheres dos bairros pobres, em especial do Alto,
do Tambor e do Tripas, e também índias que lhe vendem por dois reais os
militares nos fortes, e as obriga a prostituir-se.
—É um monstro!

322
—E por fim, é certo que padece do morbo francês, ou sífilis, como prefere.
Dias mais tarde, as ruas centrais amanheceram cobertas de panfletos titulados O
policial delinqüente, e as esquinas mais concorridas, empapeladas de pôsteres
similares a bandos, com o mesmo conteúdo dos libelos.
Uma mulher embuçada deteve peregrina na Recova, estendeu-lhe um punhado
de panfletos e lhe ordenou:
—Leve este presente a seus donos.
A escrava levou uma bofetada de Clotilde depois de que esta leu a tropicões.
—De onde tirou isto, negra maldita?
—Deram-me isso na rua. Estão por toda parte. Há uns maiores pegos nas
esquinas do centro.
Peregrina se tornou para trás quando Clotilde caiu desvanecida a seus pés.

323
TERCEIRA PARTE

A ESPERANÇA

Nas imediações do porto da Enseada do Barragán, a dez léguas ao sudoeste de


Buenos Aires. Maio de 1820.

Capítulo XXX

Oceanos de tempo

Mina estendeu um lenço a Elisabetta d'Adda para que enxugasse as lágrimas.


—Calvú! —choramingou a mulher—. Que história de amor tão triste!
O índio, com o olhar fixo na costa que começava a vigiar-se, limitou-se a assentir.
Não teria podido pronunciar som com a garganta rígida. Evocar a morte de Rafaela
e da Mimita não resultava fácil, nem sequer depois de nove anos e de um oceano
de distância. Pela extremidade do olho, viu a mão enluvada de Elisabetta apoiar-se
na amurada do Smarag, o casco de navio que, por quase três meses, tinha-os
conduzido através do Atlântico em direção a Buenos Aires. O confinamento ao que
os submetia o navio —além de tratar-se de um casco de navio de grande bordado,
com um comprimento do navio de cento e cinqüenta jardas— e o tédio com que
transcorriam as horas em alta mar propiciavam largas conversações entre a nobre
italiana e o índio ranquel. Elisabetta se obcecou com a história de Rafaela Palafox,
e Manque, por compaixão, propôs-se saciar sua curiosidade.
—Sentamo-nos? —perguntou-lhe à mulher, com voz insegura e em seu inglês de
má pronúncia.
Calvú Manque lhe ofereceu o braço e se dirigiram, com Mina por detrás, por volta
de umas poltronas de cano e almofadões floreados que a tripulação acomodava no
convés pela tarde para que o proprietário do navio, Sebastian de Lacy, e seus
convidados desfrutassem de pôr-do-sol. Como de costume, um assistente de
Antoine, o cozinheiro, tinha disposto um carrinho com o serviço do chá. Elisabetta
estendeu uma taça a Manque e outra a Mina.
—Quase não me animo a lhe perguntar qual foi a reação de Sebastiano quando
você lhe confessou que Rafaela e a menina tinham morrido —advertiu que as
pálpebras de Manque descendiam com lentidão e que inspirava uma boa porção
de ar—. Eu não me encontrava em Grossvenor Manor quando meu tio Horatio
chegou com ele no ano onze.
Não queria recordar esse momento. Estremecia-se ao reviver a cena. Nunca
esqueceria a manhã em que, junto a Eddie O’Maley e a seus filhos, Pichín-Calvú e
Hueyqué —os tinha tido convencido de que sua presença faria bem a Artemio—,
apresentou-se em Grossvenor Manor. Esmagado pela grandeza e a pompa da
mansão, deixou-se guiar pela imponente escada de mármore até o quartoo de
Artemio. O conde, que caminhava a seu lado, punha-o a par da saúde de seu neto.
—Foi uma viagem que jamais esquecerei, um inferno. Acreditávamos que

324
Sebastian morreria em mais de uma ocasião. Recuperou do todo a consciência
recém ao chegar a Irlanda. E, como você imaginará, o primeiro que fez foi pedir
pela moça, pela Rafaela. Ao lhe informar o estado das coisas, ficou tão furioso que
temi por minha vida. Reprovou-me havê-lo tirado de Buenos Aires sem ela, e para
nada importou que tivesse a toda a Polícia atrás dele. Manteve-se áspero e
taciturno após. Ainda guarda cama porque está débil e se enjoava ao caminhar,
embora já resulta evidente, a Deus obrigado, que a bala não lhe danificou o
cérebro. Freqüentemente se senta em uma cadeira perto da janela e o passa
observando o exterior, esperando-a o deteve pelo braço para lhe confiar—: Não sou
um covarde, senhor Manque, mas não me atrevo a lhe dizer que Rafaela morreu.
—Isso me corresponde —respondeu o índio.
Calvú Manque sabia que Artemio tinha escutado a porta ao abrir-se e que não
volteava em uma amostra de atitude beligerante. Encontrava-se de pé junto ao lar,
uma mão sobre o suporte de malaquita da chaminé, a cabeça inclinada e a vista
fixa no oco onde não ardia nenhuma lenha pois era verão. Vestia uma bata de
seda azul marinho e levava o cabelo solto; notou quanto lhe tinha crescido;
superava-lhe os omoplatas.
—Artemio, peñi—disse, e Fúria girou de maneira súbita e se enjoou.
Calvú Manque reprimiu a surpresa ao descobrir o emplastro negro que lhe cobria
o olho esquerdo.
—Calvú! —pronunciou, e, ao recuperar o equilíbrio, procurou com o olhar atrás
do índio e de seu avô—. Onde está Rafaela?
—Peñi, tenho que te falar.
—Não me enrole, Calvú! Onde está Rafaela? Onde está minha mulher?
—Sebastian, por favor —interveio o avô.
Fúria avançou, tomando-se dos móveis, e se deteve frente a Manque.
—Fala! Onde está ela?
—Artemio, não te trago boas notícias, peñi.
Baixou o rosto e, amaldiçoando-se por sua debilidade, começou a soluçar. Fúria
lhe apertou os ombros e o insistiu com uma sacudida.
—Fala! Onde está minha mulher e meu filho?
—Artemio, como lhe vou dizer isso.
—O que, maldito seja! Fala! O que tem para me dizer!
—Estão mortas! Rafaela e Mimita, as duas estão mortas!

Elisabetta escutou que Manque inspirava bruscamente. Ainda permanecia em


silêncio e com os olhos fechados. Não se atreveu a irromper em suas memórias.
—Elisabetta —o escutou murmurar—, por favor, não me peça que lhe conte como
aconteceram as coisas aquele dia e os que seguiram.
—Está bem, está bem —sussurrou a mulher, e lhe bateu o antebraço.
"Não me peça que lhe conte que Artemio caiu de joelhos frente a mim e que se
pendurou de meu poncho e levantou a cabeça, com o único olho que ficava
tomado de lágrimas, e, chorando como um enjeitado, afogando-se enquanto falava,
rogou-me que lhe dissesse que não era verdade, que sua Rafaela estava bem, que
logo se reuniria com ele. Não me peça que lhe conte como me arrepiava a pele
cada vez, que Artemio, tendeu de barriga para baixo no piso, clamava o nome dela,
nem como eu caí a seu lado e o tomei em meus braços e choramos juntos, igual a
uma vez em que, quando éramos meninos, confessou-me como tinham morrido
seus pais. Não seja cruel e me peça que lhe refira que Artemio ficou violento

325
depois e começou a romper tudo a seu passo com um vigor inesperado. Parecia
um açoite; arrojava adornos, lançava os móveis, arrancava cortinas, enquanto
insultava e amaldiçoava a seu avô por havê-lo tirado do Rio da Prata. Não quero
me lembrar do instante, que me pareceu infinito, em que Artemio levantou do
chão um pedaço de cristal e ficou olhando-o, arquejando como um cavalo que
correu léguas, apertando-o até tirar-se sangue. 'Peñi', sussurrei, 'suplico-lhe isso,
solta isso', e me olhou com ódio e o soltou. Passaram dias até que pudemos lhe
curar a mão. Não permitia que ninguém se aproximasse, a ele. Só suportava
minha presença em seu dormitório que parecia uma confusão. Nem sequer me
afastava de seu lado para ir à privada porque tinha medo de que me jogasse pela
janela enquanto eu mijava; fazia minhas necessidades aí mesmo, meio escondido
detrás de um biombo, aparecendo cada tanto, sem que Artemio se desse conta
porque ficava furioso. Deram-me um colchão e o joguei junto a sua cama e aí
dormia. Dormir é um dizer. Ninguém pegava olho. Artemio chorava muito de noite
e eu tinha que me morder para não ir consolá-lo. Não queria humilhá-lo. Não
comia e se deprimia desde cedo. Estava sujo e tinha mau aroma, mas nada lhe
importava. Estava morto em vida."—Só lhe direi, Elisabetta —Manque abriu os
olhos e sentou-se na poltrona de cano—, que se tratou da coisa mais difícil e louca
da minha vida. Foi duro, muito duro. Até que uma manhã ocorreu um milagre.
Artemio se encontrava de pé junto a uma janela de seu dormitório que dava à
parte traseira da casa. Eu não lhe tirava os olhos de cima porque, como fazia
calor, estava aberta e temia que se jogasse de cabeça —Elisabetta afogou uma
exclamação—. Sim, Elisabetta, assim estavam as coisas. Por isso, porque o olhava
fixamente, notei que algo chamava sua atenção, Vozes provenientes do exterior
alagaram o dormitório. Eu não entendia nada porque naquela época o inglês era
uma língua estranha para mim. Artemio interveio na conversação que se
desenvolvia abaixo. Eu não saía de meu assombro para ouvir as primeiras
palavras que pronunciava em dias. Sua voz soava mais rouca do usual, e me
resultou desconhecida. Depois soube que ali abaixo havia dois arrendatários de
Grossvenor Manor a quem o administrador, o senhor Burke, tinha surpreendido
caçando furtivamente na reserva da propriedade. Agitava-lhes os faisões no rosto e
lhes informava que os levaria a Trim para encarcerá-los. Da janela, Artemio lhes
perguntou por que tinham caçado essas aves, e um dos moços respondeu que
para alimentar a seus filhos, já que se tinha perdido a colheita e não tinham um
centavo. Artemio ordenou ao administrador que lhe devolvesse as aves e lhes
permitisse partir. "E se pode saber quem é você para me dar ordens, senhor?",
perguntou Burke, com acento pejorativo. "O futuro conde de Grossvenor", foi a
resposta de Artemio. Este episódio marcou o início de sua recuperação. De Lacy,
com tal de agradá-lo e conservá-lo a seu lado, adveio-se a quanta condição lhe pôs
Artemio. Assim se converteu em dono e senhor das propriedades de seu avô e,
com o tempo, despediu Burke. Administrar as propriedades e melhorar as
condições de vida dos arrendatários lhe devolveram o sentido a sua vida.
—Agora compreendo por que lhes dedica tanto tempo e lhes tem tanta paciência
a essas gente. Às vezes me ponho ciumenta —admitiu Elisabetta.
—Bom, e agora a tem a você, é obvio.
—Sebastiano menciona seguido a Rafaela?
—Não, jamais. Quando recuperou um pouco a prudência, uma vez superados
aqueles dias de transtorno, permitiu-me que lhe referisse em detalhe o que acabo
de contar a você, como morreram Rafaela e Mimita. depois disso, nunca mais

326
voltou a nomeá-la.
—Você acredita que ainda pensa nela?
—Muito pouco —mentiu Manque, e, como Elisabetta tinha chegado a conhecê-lo
e sabia quando lhe regulava informação ou a suavizava para não machucá-la,
preferiu trocar o tema do bate-papo.
—Você me falou muito a respeito dessas terras que Sebastiano possui em Morón.
Acredita que ele me levará às conhecer?
—Essas terras já não lhe pertencem. As confiscaram quando aquele assunto do
assassinato do pai de Rafaela. Agora possui umas melhores, mais ricas e extensas,
perto do Santo Antonio de Areco, uma localidade a umas vinte léguas de Buenos
Aires.
—Ali levará o gado que traz na adega?
—Assim é.
***
Como tinham reabastecido o Smarag em Rio do Janeiro, as comidas
recuperavam o esplendor e variedade inicial, e, dada a nacionalidade de Antoine, o
cozinheiro, os pratos levavam nomes que Manque jamais podia pronunciar. O luxo
da mesa se apreciava em cada detalhe: a toalha de linho de coco, os candelabros
de prata de seis velas, o faqueiro de ouro e tartaruga marinha, a baixela de
porcelana da fábrica de Blackraven e as taças de cristal de Baccarat. Os
convidados, a tom com a mesa, usavam fraques confeccionados pelos alfaiates de
moda em Londres e Paris, em tanto que a única dama, embelezada com um
vestido de tafetá rosa e mantilha de tule de uma cor similar em torno dos ombros,
realçava, sua beleza com um enfeite de rubis e brilhantes, presente de seu futuro
esposo.
Calvú Manque, que não se sentia parte desse mundo de dinheiro e
excentricidade, bebia um licor de laranja e observava os convidados por sobre o
bordo de sua pequena taça com a atitude de um cientista. Artemio, meio ébrio,
com o olho velado por sua pálpebra cansada, dava-lhe pedaços de carne de boi a
Quinto, ao tempo que cravava a vista em William de Lacy, que não perdia
oportunidade de seduzir Elisabetta. Girolamo Sforza, primo e tutor da italiana,
contemplava a sua vez a Artemio, por quem, embora tentasse ocultá-lo, sentia
desprezo devido à origem de sua mãe e porque duvidava de sua identidade; ele
pensava que se tratava de um impostor e não do neto do décimo conde de
Grossvenor. Manque não o culpava; o traçado de Artemio, com seu emplastro
negro, suas argolas na orelha e seu olhar avesso, lhe teria inspirado medo se não
o conhecesse desde os dez anos.
Em sua opinião, coziam-se vários caldos pesados nesse salão do Smarag, em que
pese a que todos bebiam e conversavam sobre um ambiente de cordialidade. Como
bom conhecedor da natureza humana, perguntava-se quando esses três tirariam
as máscaras. Às vezes lhe dava de sorrir ao ver o William atuar como um
cachorrinho temerário e arriscar o pescoço ao roçar Elisabetta de maneira
desnecessária, ou ao demorar a mão em sua cintura, ou ao lhe dirigir comentários
fora de tom. Não sabia que Artemio Fúria podia degolá-lo com a faca que estava
usando para cravar esse pedaço de melão e que o faria de maneira tão súbita que
ele partiria para outro mundo sem saber o que lhe tinha acontecido?
Como costumavam depois do jantar e antes de ir dormir, Fúria e Manque
baixaram à adega a controlar o gado e a ocupar-se dos cavalos, apesar de que dois
moços irlandeses os cuidavam dia e noite.

327
—É magnífico —expressou Manque, enquanto acariciava a queixada de Zeus, o
cavalo andaluz de Fúria, de pelagem branca impoluta e com as crinas e a cauda
cinzas, que sobressaía por sua elevada, quase seis pés.
—Sim, é formoso o velhaco, e sabe. Também é hábil e voluntarioso. Se perceber
que afrouxa a rédea, fará de ti o que lhe deseje muito. Diomed, em troca —falava
de um hannoveriano de pelagem escura, quase negro—, é obediente e manso.
Ninguém salta como ele. É bom para a caça pois conserva a tranqüilidade apesar
dos disparos. Verdade, Diomed? —disse, e lhe aproximou a mão cheia de cubinho
de açúcar—. Para ti também há —assegurou a um alazão árabe que tinha
comprado no Tattersalls semanas antes da viagem com intenção de cruzá-lo com
uma égua crioula que, conforme Manque, era preciosa.
O índio o observava falar e atuar com os cavalos, inclusive com as vacas e os
touros, e refletia que só nesse ambiente Artemio recuperava sua verdadeira
natureza e caráter; o resto do tempo falseava um sorriso e fingia; tornou-se muito
cínico com os anos. De igual modo, não era feliz, nem entre quão animais tanto
queria, nem entre os arrendatários de suas terras, nem sequer com Elisabetta. A
palavra felicidade se apagou de seu vocabulário com a morte de Rafaela. Calvú
pensou que ele nunca tinha amado a uma mulher dessa maneira tão intensa,
quase demencial; tinha experimentado um grande afeto pela mãe de seus filhos,
mas nada mais, e freqüentemente se perguntava como seria amar como Artemio
tinha amado a Rafaela, ou, mas bem, como ainda a amava, porque nem a morte
tinha acabado com o sentimento. Não se atrevia a perguntar a Fúria.
Embora ao começo da viagem o tinha notado mais alegre, à medida que se
aproximavam da costa do Rio da Prata, Artemio caía de novo em sua sombria
melancolia e, cada vez com mais freqüência, encontrava-o sozinho no convés, o
olhar fixo no horizonte.
Fúria repartiu instruções aos cavalariços antes de retornar ao convés. Subiram
em silêncio resmungando curtos comentários sobre o clima e da condição dos
cavalos. Antes de que Manque entrasse em seu camarote, Fúria lhe disse:
—Já sabe que manhã perto do meio-dia atracaremos na Enseada de Barragán.
Quero te pedir que te ocupe de meus convidados e os conduza a Buenos Aires.
Logo que toquemos terra, eu irei sozinho à cidade, a cavalo. Você demorará a
viagem para chegar em três dias. Quanto ao gado, alugaremos uma porção de
terra a dom Anselmo e voltaremos a buscá-lo à Enseada mais logo, antes de
iniciar a viagem ao Santo Antonio de Areco.
—O que dirá a Elisabetta?
—Que me adianto para aprontar tudo na casa de Blackraven.
—E o verdadeiro motivo, qual é?
Fúria refletiu antes de responder:
—Preciso estar sozinho porque há um assunto de que tenho que me ocupar.
—Aarón Romano —completou Calvú Manque, e Fúria assentiu.
***
Havia um obelisco na Praça da Vitória, agora 25 de Maio, e sobre a rua do
Conselho, esquina com a de Santíssima Trindade, estavam construindo um
pórtico com locais para lojas que os portenhos começavam a chamar a Recova
Nova61; a velha, entre o Forte e a praça, seguia em pé, albergando a grande

61
Recova Nueva.

328
quantidade de comerciantes e envolta no mesmo bulício, fetidez e desordem de
costume. Fúria não advertiu outras mudanças.
Para não chamar a atenção, tinha eleito viajar da Enseada de Barragán no
Diomed; passear sobre Zeus, de elevada imponente e cores exóticas —branco
brilhante e cinza—, teria provocado o mesmo alvoroço que uma mulher nua no
mercado. Vestiu-se com roupas de patrício e se arrumou o chapéu sobre o lado
esquerdo para ocultar o emplastro. Assim apareceu no convento da Mercê. Causou
um revôo. Serapio, tão menino como sempre, ria e convocava a gritos aos
sacerdotes, que lançavam louvor ao céu à vista de um Fúria tão inteiro quando,
nove anos atrás, tinham-no coberto débil e vulnerável como um recém-nascido.
O encontro com padre Ciríaco foi comovedor. O mercedário choramingava e se
abraçava a Fúria, que lutava para estabilizar a voz.
—Você, padre Ciríaco, é como um carvalho em minha vida, forte e constante.
Desde que tenho dez anos, é a coluna onde sempre posso me apoiar. Ao chegar,
soube que muitas coisas podiam ter trocado em Buenos Aires, mas tinha a certeza
de que você estaria aqui.
—Meu filho!
Para serenar-se depois da visita à Mercê, bebeu genebra na mercearia de
Caricaburu com a vista fixa na loja de Lezica. Não se dava conta de que um sorriso
lhe levantava as comissuras. Vamos, Mimita, repete comigo, Te anime! Sou o
faroleiro da Porta do Sol, coxo a escada e acendo o farol. À meia-noite ponho a
contar e sempre me sai a conta cabal. Apertou o copo e as mandíbulas até que
conseguiu tragar o nó da garganta. Era um imbecil. Poderia ter eleito outro local
para beber.
Folheou a Gazeta de Bons Ayres e se informou da situação política, embora a
conhecia graças a Calvú Manque. Arrojou umas moedas sobre a mesa e cruzou a
rua de Santo Cristo. Na loja da Bernarda de Lezica o atendeu um homem que
confeccionava calçado e que lhe contou que Bernarda partiu da cidade a fins do
ano onze e que ninguém sabia dela. O aroma do local, a couro e cola, não
resultava desagradável; entretanto, ele, que tinha inspirado para absorver as
essências do neroli, da lavanda, da flor-de-laranja, do jasmim, das rosas, do
romeiro, do guayacol, do muguete, sofreu uma decepção. Saiu depressa e entrou
nos Altos de Escalada. De pé no centro do pátio principal, observou a galeria da
planta alta. viu-se si mesmo correndo escada acima, louco por vê-la depois de
quatro meses de separação, temendo não encontrá-la e esquecendo que o suor lhe
engordurava o corpo e que cheirava a merda. Para mim cheira a glória.
A caseira, sem reconhecê-lo, disse-lhe que Bonmer se casou no ano doze e foi
viver em Encargo, no Paraguai. Por Albana não inquiriu; sabia bem que sorte
tinha deslocado; de fato, vivia em Paris, em grande parte, a seus gastos.
Retornou à casa de Blackraven, na rua de São José. Precisava descansar e
preparar-se para a visita com que honraria a Aarón Romano de noite. De acordo
com a informação provida pelo Eddie O’Maley, Romano tinha desaparecido da
cena política depois da passeata do 5 e 6 de abril de 1811, ou revolução da gente
de médio pêlo, como a recordava. Um panfleto difamatório o tinha destruído. Além
de ficar em interdição sua origem e a moralidade de sua mãe, no libelo o acusava
de possuir bordéis, casas de jogo clandestino e de prostituir mulheres à força.
Tampou-se tudo. Não obstante, Saavedra lhe exigiu a renúncia, e o desterrou da
sociedade. Ainda vivia na casa da rua Larga com Clotilde. Sua irmã Cristiana
tinha morrido no ano anterior de raiva por causa de uma mordida de sua cadela

329
Poupée, a quem Clotilde mandou sacrificar. No dezessete, chamada a comparecer
na Câmara de Apelações —a instituição que substituía, a Real Audiência— pela
causa do assassinato de seu tio Rómulo, Cristiana assegurou que o gaúcho Fúria
não era o responsável pelo disparo a não ser outro malfeitor que ela tinha visto e
que não podia identificar. Com essa declaração e a do pai Ciriaco —que Artemio
Fúria tinha visitado o convento e jantado no refeitório a noite do crime e que lhe
significou dormir sem colchão durante vários meses como penitência por mentir—,
fechou-se a causa iniciada em 1811. Seguia pendente a incógnita do paradeiro do
gaúcho. O rumor de que tinha morrido em um duelo a faca terminou por cobrar
reflexos de veracidade.
Não associava Rafaela com a casa da rua Larga, por isso entrar e percorrê-la não
lhe provocou nada. Movia-se pelas estadias sem arrancar um rangido às pranchas
do piso, com o sigilo que os índios lhe tinham inculcado para caçar. O silêncio era
sepulcral, nem sequer chegavam vozes de escravos ou domésticas, e um sutil
aroma de umidade e os móveis cobertos com grandes peças de tecido branco
conferiam a idéia de que se tratava de uma casa abandonada. Entretanto, graças à
informação obtida por um espião de O’Maley, sabia que Romano estava em
Buenos Aires. localizou-se no vestíbulo, onde tomou assento e se dispôs a esperar.
Ouviu passos e se disse que eram dois; caminhavam devagar e arrastavam os
pés, como anciões. O chiado das dobradiças acompanhou o movimento da porta
principal ao abrir-se. Perfilou-se na penumbra a figura de um homem curvado,
que caminhava com dificuldade, guiado, ou mas bem, sustentado por uma
mulher.
—Espera aqui, Aarón —escutou dizer à mulher, cujo timbre de voz pertencia a
uma pessoa de sessenta anos ou mais.
Aarón, que respirava com esforço, descansou seu corpo na parede e aguardou a
que a mulher acendesse a palmatória. A luz banhou essa esquina do quarto, e
Fúria o viu com claridade. Aarón continuava apoiado, com as costas tão
encurvada que o torso estava paralelo ao piso; mantinha a vista baixa; um fio de
saliva escorria por sua boca e caía ao piso; balbuciava sem captar a atenção da
mulher, a quem Artemio reconheceu como a mãe de Romano. Moveu-se para dar-
se a conhecer.
—Deus bendito! Quem anda aí? —exclamou Clotilde, e elevou a palmatória—.
Quem é você? O que faz aqui?
—Chamam-me Artemio Fúria —disse, e advertiu que Aarón mantinha a mesma
posição, sem alterar-se, como se não o tivesse escutado—. Vim a saldar contas
com o filho da puta de seu filho.
—Artemio Fúria —repetiu Clotilde, e sua voz não vacilou, seu gesto não se
alterou; não tinha medo—. Um fantasma do passado a quem devemos nossas
desgraças.
—Vocês não me devem nada, nem suas desgraças nem suas sortes. Mas seu filho
sim me deve muito. Por sua culpa, Rafaela morreu e eu o perdi tudo. É hora de
que pague.
—Adiante —disse Clotilde, e se fez a um lado, e, com um amplo movimento do
braço, convidou-o a aproximar-se de Aarón—. Acabe com ele. Será uma bênção,
tanto para ele como para mim. Acaso não adverte o estado em que se encontra? A
sífilis o despojou que tudo, da vista até o entendimento. A demência o consome,
seus músculos não o sustentam, treme como uma folha e sangra quando urina.
Ficou completamente cego. Não reconhece nem a sua própria mãe, menos se

330
lembrará de você. Adiante! —exclamou, com uma cólera que não tinha empregado
até o momento—. Acabe com ele e me libere do castigo de ver sofrer a meu filho
que agoniza.
Fúria guardou silêncio, enquanto contemplava o despojo em que se converteu
Aarón Romano.
—Vim até aqui para matar Romano e pensava fazê-lo padecer. Padecer muito.
Mas vejo que a natureza me economizou o trabalho. Não intervirei em sua tarefa e
lhe permitirei seguir adiante porque sei que o final que lhe tem reservado a este
filho da puta é cruel. Desejo que sofra a pior agonia e que se retorça de dor até que
o Diabo o leve.
—Fora daqui, mal nascido! Fora! Amaldiçôo a hora em que entrou em nossas
vidas! E o amaldiçôo a você e a sua descendência!
Na quietude da casa, os anátemas e gritos de Clotilde, que ricocheteavam nas
paredes e enchiam as estadias vazias, paradoxalmente, acentuavam a solidão e a
tristeza.
***
A visita a Aarón devolveu a paz. De algum modo, foi feita justiça; o responsável
pela morte de sua mulher e de Mimita pagava um preço muito elevado. Fúria
sabia bem o que lhe esperava; tinha visto morrer a um de seus arrendatários da
mesma enfermidade, e a ele, que se gabava de ter perdido a capacidade de
assombro e que era duro como o pederneira, tinha-o perturbado a agonia em que
se debateu por dias antes de expirar. Em outro lugar e em outras condições,
Artemio teria depenado com seu guampudo ao camponês, para lhe economizar
tanto dor. Por fortuna, ninguém depenaria a Aarón.
Calvú Manque se ocupou de preparar a viagem a Córdoba em tanto Fúria atendia
a seus convidados e a seus compromissos. A todos surpreendia seu bom aspecto;
a Elisabetta a extasiava, e comunicava sua alegria lhe encontrando atrativos a
uma cidade que, em comparação com as européias, devia lhe parecer chata,
insossa e sem vida. Esperava com ânsias a viagem a Santo Antonio de Areco e a
Córdoba, sobre tudo este último porque desejava conhecer Edwina. Não se levou a
mal que Fúria viajasse sozinho a Montevidéu para visitar seu amigo no exílio,
Juan Martín de Pueyrredón, que, pressionado pelo embate dos caudilhos
provinciais que não avalizavam seu governo centralista nem sua idéia de
entronizar um monarca europeu no Rio da Prata, tinha apresentado a renúncia
em janeiro. Um mês mais tarde, Saavedra, como Chefe do Estado Maior,
comunicou-lhe a resolução do Congresso: julgava-se conveniente para a
pacificação das Províncias Unidas do Rio da Prata que o brigadeiro geral dom Juan
Martín de Pueyrredón saísse do país.
—Cheguei tarde, dom Juan Martín —se desculpou Fúria.
—Mas bem —o desculpou Pueyrredón—, mandei-te tarde a carta. Já todo me
vinha em cima, amigo. Foi judicioso me retirar da cena política para evitar que se
despedaçasse ao país. Aqui, em Montevidéu, estou tendo uns dias de relativa paz.
Falaram comprido e tendido, com a afabilidade e a confiança que os anos de
separação não tinham banguela.
—Caralho, Artemio! —exclamou Pueyrredón—. Parece mentira, mas será um
conde. Sempre disse que havia algo estranho em ti, algo que não encaixava com
seu traçado de gaúcho.
—Ah, mas em meu foro íntimo, sempre o serei, dom Juan Martín.

331
Capítulo XXXI

Córdoba da nova Andalucía

Elisabetta benzeu os dias que passaram no campo de Santo Antonio de Areco,


não porque o lugar possuísse grandes atrativos nem a casa fora cômoda e formosa
—de fato necessitava refeições leves e carecia de comodidades—, mas sim pelo
efeito que essas terras e as pessoas que habitavam nelas exerceram no ânimo de
Artemio. Subido ao lombo de Zeus, dirigia o rodeio, ocupava-se da cavalaria e
percorria os confins da propriedade com uma emoção que lhe intensificava o
turquesa do olho e lhe imprimia um sorriso nos lábios que Elisabetta tanto amava
beijar.
Gostava de vê-lo conversar com a mãe e as irmãs de Manque e com seus amigos,
que se desempenhavam como peões na estadia, porque com eles era distinto,
menos cínico, mais depravado. Mantinha-se atenta porque às vezes Artemio
explorava em gargalhadas, tão escassas na Irlanda, que lhe causavam cócegas no
estômago e a mesma emoção que o quarto movimento da Nona Sinfonia de
Beethoven. Amava-o com paixão, até na Irlanda, com seu aspecto ambíguo e
taciturno; nessas terras longínquas do sul tinha descoberto sua verdadeira
essência, e só pensava no dia em que se converteria em sua esposa.
Também descobriu que Artemio Fúria era letal. A primeira noite no campo do
Santo Antonio de Areco, Girolamo Sforza, secundado por William de Lacy, negou-
se a compartilhar a mesa com os homens de Fúria e com a mãe e as irmãs de
Manque. Artemio, que já ocupava seu local na cabeceira, permitiu que Sforza
destrambelhasse até saciar-se. O italiano se queixou de que essas gente não se
trocaram para jantar, que vestiam as mesmas camisas com que tinham
trabalhado todo o dia e, para pior, tinham-nas abertas até a metade do peito.
Fúria levantou a vista para verificar que o italiano tivesse acabado e, de repente,
Sforza se encontrou com sua faca na garganta. Conteve a pausa. Se movia o pomo
de Adão, a cercearia.
Fúria introduziu a ponta do facão sob o pescoço de seda e, de um golpe seco,
cortou a série de encaixe e, continuando, os dois primeiros botões da camisa.
—Agora estão todos iguais —disse, e voltou a sentar-se—. Agradeço ter falado em
uma língua que não podem compreender, Girolamo. Do contrário, estaria morto
por havê-los ofendido tão profundamente. Eles são minha família, como o será
você quando desposar a Elisabetta. Você, William, meu padrinho Belisario, meu
ñuqué e todos eles são iguais para mim.
—Iguais? Nunca! —clamou o italiano, e abandonou o comilão.
"As máscaras", pensou Manque, "começam a cair".
***
Devido a que Calvú Manque enviou um mensageiro a Córdoba com uma nota
para a Bamba, quando chegaram à cidade, o marucho lhes tinha alugado uma
casa frente à igreja de São Francisco, inclusive tinha contratado domésticas e
cavalariços e loja de comestíveis a despensa de provisões, e de embutidos e

332
queijos, as despensas do porão.
Bamba tinha se convertido em um homem, e a Fúria o agradou o temperamento
sólido e sereno que tinha adquirido; não ficava vestígio do menino atemorizado e
inseguro. Já não vivia na casa de Dolores García, embora seguia visitando a
porque a viúva de Santos gostava que lhe esquentasse a cama. Desde fazia uns
meses, Bamba tinha passado a formar parte da servidão da casa de Edwina, onde
desempenhava diversidade de tarefas, e o orgulhava pensar que era o guardião de
miss Eduarda, já que, da morte de seu marido e as bodas de Eduarda e Martín,
ficou sozinha, salvo pela Pandora, a mulata a quem Edwina queria como a uma
filha e que havia alforriado à morte de Avendaño.
Edwina e Elisabetta combinaram de um princípio. A italiana se achava em uma
boa disposição para querer a sua futura cunhada, e Edwina possuía o caráter de
quem estima e justifica a todos; a amizade nasceu entre elas de maneira natural.
Elisabetta cobriu de presentes a Edwina, que lhe arrancavam exclamações de
sobressalto. Nunca havia possuído seda nem brocados nem organdis, tampouco
artigos suntuosos. Conversavam diariamente, e ambas tinham a impressão de
conhecer-se de toda a vida. Gostavam de percorrer a cidade pelas tardes e, face à
companhia de Girolamo e de William, que as escoltavam resmungando ácidos
comentários a respeito da monotonia de Córdoba, que embora contava com uma
extensa variedade de conventos e igrejas, carecia de locais para entreter-se,
Edwina e Elisabetta se enrascavam em seus bate-papos e não lhes emprestavam
atenção.
Fúria advertiu que a morte de Avendaño não tinha entristecido a sua irmã, pelo
contrário, ela tinha florescido, e seu caráter se opunha ao da mulher medrosa que
tinha chamado no interior do templo da Mercê, no ano dez. Era patroa de seu lar e
proprietária de sua vida. Fazia e dizia o que queria, embora com sensatez e
critério, e nem sequer seus filhos se atreviam a contradizê-la quando tomava uma
decisão, como por exemplo, a de despedir Adelfa, a cozinheira, quem, por anos,
desempenhou-se como espiã de Avendaño.
—Não me alegrei com sua morte —admitiu Edwina a Fúria uma tarde em que
passeavam pelo Plaza Mayor, em companhia da Pandora—. Mas se tiver
experimentado um pouco de tristeza não foi por ele nem pela forma brutal em que
morreu mas sim porque vi sofrer a meus filhos. Eles o queriam.
—Como morreu? —atreveu-se a perguntar Fúria.
—Atiraram-lhe muitas punhaladas. O médico da Polícia que revisou o cadáver
contou mais de sessenta. Encontraram-no à beira de Suquía —falava do rio que
partia para a cidade em dois.
—Não parece que o fizessem para assaltá-lo.
—Não —ratificou Edwina—. De fato, levava um relógio de ouro e um pouco de
dinheiro e não lhe roubaram nada.
—A Polícia suspeita de alguém?
Edwina negou com a cabeça, e um silêncio caiu sobre eles.
—Fez-se justiça, Sebastian —expressou a mulher, ao cabo—. Quem tem
assassinado a Avendaño e qualquer tenha sido o motivo, vingou a nossos pais.
Fúria jogou uma olhada a Pandora e logo a sua irmã; sabia que a mulata
compreendia o inglês, pois Edwina o tinha ensinado.
—Fala com liberdade frente a Pandora, Sebastian. Ela está a par de tudo. Sabe
qual é meu verdadeiro nome e como e quem assassinou a nossos pais.
Fúria não realizou nenhum comentário e julgou lógico que, em meio de tanta

333
desolação e secretos, Edwina tivesse compartilhado com alguém suas angústias.
—Qui in gladio occident, gladio penbit —sentenciou um momento depois, e, ante
os olhares inquisitivos de sua irmã e da Pandora, traduziu—: Quem a ferro mata,
a ferro morre.
***
Para o Calvú Manque significou um impacto conhecer Edwina. Artemio lhe tinha
falado dela, embora nunca a havia descrito nem ele a tinha imaginado, Edwina de
Lacy era só um nome, sem cara nem corpo nem voz nem perfume, uma entidade
que às vezes parecia mais uma invenção de seu amigo que uma pessoa de carne e
osso.
Deveu resultar evidente para a Edwina o efeito que tinha causado nele porque
reprimiu uma risada e o contemplou com ironia. Até o movimento de sua mão
para tampá-la boca o cativou. Essa noite, incapaz de conciliar o sonho,
envergonhou-se de sua insensatez; tinha procedido como um adolescente sem
experiência quando, em realidade, era um homem de quarenta anos. Cessou de
torturar-se e imaginou Edwina. Fechou os olhos para estudá-la da cabeça aos pés;
sobre tudo o atraíam seu cabelo de fada, dessa tonalidade inverossímil, parecida
com o de miss Melody, e o turquesa de seus olhos.
Fúria o contemplava com suspicacia cada vez que se referia a Edwina ou quando
os achava a sós conversando, e Calvú Manque tentava decifrar sua disposição.
Não desejava brigar depois de tantos anos de amizade, mas sabia que por fim
tinha encontrado o amor e não tinha intenções de perdê-lo. Nem sequer por
lealdade a Artemio Fúria.
Foi Elisabetta a que marcou a preferência de Bamba pela Pandora. Fúria a
recordava daqueles dias no ano dez, quando acompanhava Edwina ao Conselho.
Os anos não a tinham trocado muito; ainda conservava o mesmo ar retraído e
frágil, e um corpo miúdo, embora de boas formas.
Quando lhe falou com Bamba a respeito da Pandora, Fúria advertiu um brilho
feroz em seus olhos escuros e uma inquietação que contradizia o temperamento
estável do marucho.
—Quer te casar com ela?
—Eu, sim. Ela, não.
—O pediste? —insistiu Fúria—. Ela te há dito que não te quer?
—Não quer aos homens —respondeu Bamba—. Não gosta do que os homens
fazem às mulheres. E não quer que, nem sequer eu, que a amo com tudo meu
coração, a toque —Fúria permaneceu calado e, depois de uma pausa, Bamba lhe
contou—: Tudo culpa desse filho da puta, mau nascido e que no inferno esteja,
dom Martín Avendaño.
—Do que está falando, Bamba? —alarmou-se Fúria.
—O filho da puta do Avendaño abusava de Pandora, o fazia desde que ela tinha
mais ou menos treze anos. Como ela dormia fora, longe da casa, miss Eduarda
não escutava seus alaridos. Essa víbora da Adelfa, a cozinheira, não dizia nada,
porque venerava ao amo Martín; os outros tampouco, por medo. Mas o dia em que
soube… —Bamba se mordeu o punho, a Fúria o surpreendeu a energia violenta
que emanou de seu corpo—. Os vinguei, Artemio, a seus pais e a Pandora.
—O que diz?
—Pandora me contou o que esse filho da puta fez a seus pais e a sua irmã.
Matei-o, o fiz para vingá-los a eles e para que já não machucasse à a Pandora.
Enquanto lhe cravava o facão, gritava-lhe por quem estava fazendo-o. Morreu

334
sabendo que suas maldades o matavam.
Não disse nada. limitou-se a olhar aos olhos de Bamba e lhe dar um apertão no
ombro.
Dias mais tarde, Fúria se ergueu com um movimento brusco no assento da
carruagem e apareceu pelo guichê. Na rua do Conselho, frente à Catedral,
pareceu-lhe ver a Rafaela.

335
Capítulo XXXII

Catalina da farmácia

—O que ocorre, querido? O que viu? —preocupou-se Elisabetta, sentada a seu


lado.
—Juan, detenha-se! —antes de que o carro freasse por completo, Fúria abriu a
porta e saltou—. Recordei um compromisso importante —explicou a sua
prometida.
—Mas...
—Juan, leva a senhora de volta à casa. Vemo-nos mais tarde —lhe prometeu à
italiana e fechou a portinhola.
Elisabetta correu a cortina e o observou avançar com passo decidido pela rua dos
Ourives, no sentido contrário ao que levavam momentos atrás, e dobrar à
esquerda na do Conselho, que corria frente à Catedral. Perdeu-o de vista.
Fúria alcançou a esquina e freou. A moça cruzava a rua dos Ourives e se dirigia
para o pórtico conhecido como Portal de Valados. Seguiu-a, conservando uma
distância que lhe permitisse estudá-la e, ao mesmo tempo, passar inadvertido. Ia
insuficientemente vestida e se amassava na mantilha como se tivesse frio. Ele, que
levava um capote de cachemira, luvas de couro forrados com pele de visom e botas
hessianas, não tinha advertido o gélido do vento sul. Viu-a entrar em um dos
comércios do pórtico, a farmácia, e, antes de que pudesse evitá-lo, um homem
jogou chave e colocou um pôster com a mensagem "Fechada". A jovem apartou um
cortinado e desapareceu atrás dele, enquanto o homem se ocupava de apagar as
velas; a loja ficou imersa na escuridão, logo que iluminada pela luz do farol do
pórtico. Não se atrevia a bater na porta porque não queria descobrir que se tratava
de um jogo macabro de sua imaginação nem que sua mente o tinha induzido a
acreditar que se tratava dela. Acaso não estava pensando em Rafaela ao avistar à
moça?
Tirou seu relógio do colete: seis da tarde. Logo seria noite fechada. O frio e a
iminente escuridão afugentavam aos transeuntes; as ruas ficariam desertas em
uma hora. A moça não sairia de novo. A moça não era Rafaela. Sua mulher e seu
filho estavam mortos e enterrados. Amaldiçoou entre dentes. A ponto de
empreender a volta a sua casa, deteve-se. Um homem jovem, elegante e perfumado
—a esteira de sua colônia, Água da Hungria, disse-se, dançava sob o nariz dessa
distância—, bateu na porta. Abriu-lhe uma mulher mais velha e o fez passar.
Acendeu um castiçal antes de desaparecer depois do cortinado. Apareceu a jovem,
e o semblante do homem —bastante atrativo em seu estilo mourisco— se
iluminou. A moça permanecia fora do círculo de luz; resultava difícil distinguir
seus esboços; destacavam o branco de um lenço na cabeça e o de um avental.
Trataria-se da faxineira, da cozinheira talvez? O homem saiu minutos depois, com
um cenho e os lábios apertados, e se afastou em direção à rua Larga do São
Domingo, com limiares largos que denunciavam sua frustração.
A ansiedade se apoderou de Fúria. Queria vê-la. Prepararia um discurso para

336
justificar sua aparição. Não resultou necessário. A jovem saiu da farmácia e o
dono fechou atrás dela. Ia embuçada por completo, inclusive se havia coberto a
cabeça. antes de que cruzasse a rua dos Ourives, saiu a mulher da farmácia e a
chamou: "Catalina!".
Chamava-se Catalina. Não era Rafaela. Que parvo tinha sido por iludir-se! A
decepção lhe drenou o vigor, e ficou quieto depois de uma coluna do pórtico.
—É para ti, Catalina —escutou dizer à mulher, e a viu lhe estender um pequeno
pacote—. Sei que não comeste nada em todo o dia e deve ter fome.
Fúria não pôde ouvir as palavras que a jovem logo que murmurou antes de
cruzar a rua dos Ourives. Viu-a sentar-se na escada da Catedral a comer. Em que
pese a que o fazia com a mantilha arremessada na cabeça, a Fúria o alcançava o
anseia com que engolia. Não tinha apetite a não ser uma fome crua e visceral.
Seguiu-a embora se chamasse Catalina, não importava; caminhou atrás dela sem
pensar, sem raciocinar, atraído por uma força de ímã. A jovem se dirigia para
Suquía, a zona da cidade em que habitavam as pessoas pobres. De novo
caminhava rápido e amassada na mantilha; fazia muito frio. Abriu uma cancela e
caminhou por um atalho de pedras até uma casa mau iluminada; apesar da
escassa luz, Fúria adivinhou o aspecto humilde da moradia. Viu-a inclinar-se para
pinçar em uma bolsa; de seguro procurava a chave. Abriu. Recebeu-a um menino,
que exclamou: "Chegou, mamãe!", e lhe pendurou do pescoço. A tênue
luminosidade que emergia do interior desapareceu depois da porta.
Ao dia seguinte, Bamba averiguou que a moça se chamava Catalina López e que
pouco sabiam dela seus vizinhos. Tinha um filho de uns dez anos e vivia com uma
mulher de má saúde, uma menina "estranha" e uma Índia. Catalina trabalhava na
farmácia de dom Boleslao Penha, um velho resmungão e miserável, famoso por
sua avareza.
Fúria retornou à farmácia. Logo que abriu a porta, envolveu-o uma rajada de
aromas intensos. Bergamota, sândalo, jasmim, flor-de-laranja, neroli, rosas,
benjuí, estoraque, âmbar, almíscar. Rafaela lhe tinha ensinado a distingui-los. O
efeito dos aromas lhe causou uma intensa alegria, e sorriu de forma autômato.
Havia muita clientela. Atendiam dom Boleslao e a mulher, sua esposa
provavelmente. Não havia rastro da jovem. Escrutinou as prateleiras povoadas de
frascos. Aguçou a vista de seu único olho. Água da Hungria. Azeite de malmequer.
Ungüento para lábios. Água de rosas. Perfume de lavanda. Colônia de melisa.
Fragrância varonil (romeiro). Água de aciano (para a beleza dos olhos). "Deus
bendito!" Ele conhecia essa caligrafia, a teria distinto entre milhares. "Rafaela,
Rafaela, minha Rafaela. Por amor de Deus, Rafaela." conteve-se de pegar um salto
sobre o mostrador e irromper na parte de atrás. Não sabia se ela se achava depois
do cortinado. Atuaria com prudência. Ainda existia a possibilidade de que a
caligrafia correspondesse a outra pessoa. Atendeu-o a mulher com uma cautela
que raiava na antipatia. Dom Boleslao jogava olhadas desconfiadas. Comprou
vários perfumes e azeites essenciais impostando a voz, falando quase em
sussurros, e saiu. Passou a manhã dando voltas à maçã. Nem sequer retornou a
sua casa na hora da sesta, em que dom Boleslao pendurou de novo o pôster que
dizia "Fechado".
A espera obteve seu ressarcimento. Ao redor das quatro, junto ao farmacêutico,
depois do mostrador, localizava-se a moça. Levava o lenço na cabeça, e o avental,
ajustado à cintura, denunciava sua extrema magreza. Como estava inclinada
enquanto realizava umas contas, Fúria não lhe via o rosto. Estudou-lhe as mãos.

337
Usava o claddagb, na mão direita e com o coração para dentro. reclinou-se sobre o
mostrador e jogou a cabeça para diante.
—Sente-se bem, senhor? —escutou dizer a dom Boleslao.
Fúria assentiu. A moça tinha detido suas contas; já não se ouvia o rasgo da
pena. De seguro, observava-o. A má iluminação do local e sua capa de pescoço
alto somado ao chapéu enviesado sobre o lado esquerdo, lhe impediriam de ver
seu rosto. Não se atrevia a levantar a vista; não desejava descobrir que se tratava
de uma macabra brincadeira do destino e que essa mulher não era sua Rafaela.
Fez-o quando esteve seguro de que se concentrava em outro cliente. "Rafaela!",
clamou sua alma. Seu perfil, seu nariz delicado, seus lábios carnudos, seus olhos
enviesados e grandes e verdes, a fina linha de suas sobrancelhas, o pescoço como
uma coluna de alabastro branco, direita e magra. Sim, estava muito magra; não
tinha bochechas, e as maçãs do rosto, que sobressaíam, dotavam a sua fisionomia
de um aspecto exótico onde os olhos adquiriam preponderância. Saiu do local sem
emprestar atenção ao chamado de dom Boleslao. Caminhou como ébrio sob o
pórtico em direção à rua Larga. Entrou na igreja do São Domingo para proteger-se
nesse recinto calado, lúgubre e solitário. Apoiou-se contra uma parede e se
deslizou até o chão. Custava-lhe respirar. "meu senhor, é isto verdade? Há-me isso
devolvido? Não tem quebrado, então, nosso juramento? Não brinque comigo!
Piedade de mim, Senhor!" Retornou a sua casa e se encerrou no dormitório para
evitar os questionamentos de Elisabetta. A italiana intuía que, desde na tarde
anterior, algo o afligia. Ele precisava pensar, ordenar o caos no que se sumiram
seu corpo e sua mente. Planejaria sua aparição. Não queria assustá-la. O efeito
nela seria tremendo.
***
Quinto subiu à cama e lhe farejou o rosto. Miou com o som que empregava
quando algo o desgostava. Fúria lhe aferrou a cabeça e o sacudiu um pouco ao lhe
dizer:
—Meu amigo, encontrei-a. Rafaela está viva. Não sei como. Não sei por que, mas
está viva. Minha Rafaela. Minha Rafaela das flores.
Ao som de suas próprias palavras, Artemio se pôs-se a chorar.
***
Um momento mais tarde, lavou o rosto e o torso, trocou a camisa e escovou seu
cabelo e refez o rabo de cavalo. Montou ao Zeus e partiu para o de sua irmã.
—Não a conheço —admitiu Edwina, quando Fúria lhe perguntou pela moça da
farmácia— porque não voltei para a loja de dom Boleslao em anos. Briguei com ele
tempo atrás e agora compro na de dona Carmina. Mas meus amigas a conhecem
porque estão encantadas com seus perfumes e cosméticos, e falam
freqüentemente dela. Dizem que é uma moça retraída, estranha vez a escuta falar.
Por que quer saber dela?
—Me conte o que saiba e depois lhe explicarei isso.
—Dizem que o negócio de dom Boleslao cresceu grandemente desde que ela
fabrica esses produtos com aromas deliciosos. Entretanto, esse avaro de dom
Boleslao lhe paga um salário miserável e a usa até o esgotamento. Faz anos que
trabalha para ele, e dizem que cada vez está mais magra e consumida. O que te
acontece, Sebastian? Há-te posto pálido —Fúria sacudiu a cabeça e a insistiu a
prosseguir—. Não é casada nem lhe conhece homem, embora me há dito Pandora
que Pancho Sosa Loyola, um rico daqui, a quer. Pandora! —chamou Edwina—. Se
alguém souber algo sobre a Catalina, essa é Pandora. Tem um talento especial

338
para estar informada e conhecer os segredos mais escuros das pessoas. Pandora,
moça, aqui está. Diga-me, o que sabe de Catalina, a jovem da farmácia de dom
Boleslao? É casada?
—Não, miss Eduarda, mas tem um filho. Vi-o uma que outra vez na loja do
Boleslao e passeando pelo Plaza Mayor em companhia de uma garotinha e de uma
Índia. É um pequeno adorável. Loiro, quase branco, e com olhos grandes e verdes,
como os de sua mãe.
—Está bem, pode te retirar —quando Pandora abandonou o comilão, Edwina se
aproximou de Fúria—: por que lhe tremem os lábios? Por que lhe arrasam os
olhos? Sebastian, não me assuste!
Fúria abraçou a sua irmã e lhe sussurrou com ímpeto:
—Esse menino é meu filho, Edwina! Catalina é Rafaela!
—Jesus misericordioso! Como pode ser isso possível?
—Não sei. Mas necessito sua ajuda.
***
Uma mulata lhe abriu a porta e a convidou a passar ao vestíbulo, que se abria a
um pátio enorme. Guiou-a até uma sala bem iluminada, com piano de cauda e
adornos bonitos. Pensou, para dar-se ânimos, que parecia como a sala de uma
família decente e que nada mau lhe aconteceria. Tinha duvidado de aceitar o
convite. Um jovem, que a contemplou com intensidade durante o tempo em que
permaneceu na farmácia comprando um tônico, deslizou-lhe, junto com as
moedas, uma pequena nota. É importante que se presente em minha casa hoje
mesmo. Tenho informação de capital relevância para sua mercê a respeito de
Artemio Fúria. Miss Eduarda. Mais abaixo detalhava a direção, na rua da Mercê.
A impressão de ver esse nome estampado no papel resultou suficiente para que
pusesse-se a tremer e para que seu corpo se cobrisse de uma capa de suor pese ao
clima gélido. Segundo dona Almudena, a esposa do farmacêutico, pôs-se da cor de
seu avental. A mulher discutiu com o Boleslao, que não lhe permitia retirar-se
cedo, até cansá-lo e obter a autorização.
—Está bem —resmungou o homem—, mas amanhã te quero aqui às sete.
—Sim, dom Boleslao —odiava a esse homem, por mesquinho e intolerável. Não
obstante, tinha que suportá-lo pelo bem de seu filho.
Embuçada, ainda tremendo sob sua mantilha, empreendeu a caminhada para a
rua da Mercê. Tinha duvidado frente à casa. E se era uma armadilha? O mesmo
agitou o aldabón e entrou.
Na sala havia um braseiro. Aproximou-se e estirou as mãos apreciando as
espetadas em sua carne ao entrar em contato com o calor intenso; tinha-as
congeladas, o mesmo os pés. Viu umas garrafas com licores e desejou poder servir
um gole. Tomou assento. Tinha comido muito pouco com o passar do dia, e uma
frouxidão profunda que lhe convertia o estômago em uma bolsa vazia, provocava-
lhe náuseas e enjôos. Seu coração parecia arrebentar com cada batida, por isso
respirava de modo acelerado. Se o suspense não acabava logo, terminaria morta
nessa poltrona.
—Rafaela.
Em um primeiro momento teria respondido com naturalidade a seu nome. Um
instante depois, ao cair na conta, experimentou um medo cerval que a manteve
congelada na poltrona. Escutou passos e viu uma sombra projetar-se sobre o piso.
A figura se materializou frente a ela. Em seguida apreciou a qualidade dos objetos
que vestia esse homem.

339
Fúria descobriu que Rafaela dobrava para dentro os punhos de seu jaqueta para
ocultar os fiapos e que colocava os pés sob a saia do vestido para que ele não visse
os buracos nas pontas. "Meu amor", chorou sua alma.
—Rafaela —repetiu.
Ela ficou de pé com dificuldade, apoiando-se na poltrona, sem apartar a vista
dele. Seus olhos verdes se moviam com rapidez sobre o rosto do estranho, ao
tempo que a compreensão ia imprimindo uma careta de pasmo em suas feições.
Não pestanejava, e mantinha a boca entreaberta, por onde respirava de modo
agitado. O comichão que se iniciou na parte inferior de seu estômago foi subindo
até converter-se em uma náusea feroz. Tinha a boca seca e a língua pesada. Sua
visão se tornou imprecisa.
Fúria observou como o tremor das mãos se estendia a todo o corpo de Rafaela.
Impressionou-se quando os olhos lhe puseram em branco, e saltou para diante
para sujeitá-la antes de que se derrubasse sobre a poltrona. Tomou em braços e,
chamando gritos a sua irmã, entrou na casa. Localizaram-na no antigo quarto de
seu sobrinho Eduardo, e Fúria ordenou a Bamba que trouxesse para um médico.
Em tanto Edwina a cobria com mantas —tinham comprovado que estava
gelada— e Fúria lhe acariciava as mãos e as beijava, Pandora passou sais sob seu
nariz. Na cozinha se levantou um revôo porque miss Eduarda acabava de entrar
vociferando ordens: pôr suficiente água para um banho de tina, procurar uma
muda de roupa limpa, preparar um caldo de galinha e levar um tigela de leite
morno e mel ao quarto do menino Eduardo. Pandora insistiu com os sais até que
ouviram o gemido de Rafaela e a viram agitar-se sobre o travesseiro. Fúria se
inclinou sobre ela e lhe apoiou os lábios na testa; ali os deixou, inspirando o
perfume de sua pele, embriagando-se de dita por tê-la de novo com ele. Queria
chorar, rir, gritar, saltar. O coração martelava o peito; o sangue corria,
enlouquecido; as lágrimas se amontoavam sob sua pálpebra fechada, enquanto
todo ele se sacudia em espasmos incontroláveis, como se padecesse uma febre
muito alta. Não podia retirar seus lábios de Rafaela.
—Sebastian, te mova. Permita-lhe respirar —lhe ordenou Edwina.
Ergueu-se com rispidez. Rafaela lamentou a separação. A fragrância deliciosa e
excêntrica que despedia esse pescoço a tinha serenado. Olhou-o com expressão
desmesurada, os olhos bem abertos, imóveis nesse rosto tão familiar e
desconhecido ao mesmo tempo. Fixou a vista no emplastro negro. Não conseguiu
modular, e seus lábios desenharam a palavra Artemio. Viu-o assentir, e se deu
conta de que ele não podia falar. Jogou os braços ao pescoço e rompeu a chorar,
primeiro em silêncio, apenas uns gemidos débeis; depois, quando sua garganta
desatou o nó, fez-o abertamente, como o teria feito seu filho ao cortá-las joelhos ou
ao machucar um dedo. Fúria também chorava com a mesma paixão e a fundia
contra seu corpo até privar a de fôlego.
—Afogará-a! —escutou que alguém lhe reprovava, e sentiu que, pouco a pouco, o
abraço implacável cedia.
Olharam-se com uma intensidade que arrancou um gemido a Fúria.
—Diga meu nome.
estremeceu-se ao som dessa voz rouca e áspera, de um timbre rico e profundo.
—Artemio —balbuciou.
—Rafaela! —o clamor de Fúria rasgou o ar—. Meu amor! Amor de minha vida!
Disseram-me que tinha morrido! Que uns índios tinham atacado a diligência em
que você e Mimita viajavam a Córdoba. Meu deus, acreditava-te morta!

340
Beijava-a e a abraçava sem precaver-se de que tinha caindo naturalmente na
intimidade. Rafaela o aceitou de modo espontâneo, o mesmo a sua maneira
elegante de falar. Os nove anos de separação o tinham mudado de um modo
radical e profundo, e o novo trato que lhe conferia se apresentava como a lógica
conseqüência. Soube que ela também, quando recuperasse a fala, sentiria-se
cômoda lhe chamando de senhor.
O doutor Allende Pinto entrou no quarto escoltado por Pandora. Fúria se negou a
partir e só consentiu em apartar-se enquanto o médico se ocupava de Rafaela. Ao
completar a revisão, Allende Pinto falou com ele e Edwina.
—Conheço Catalina da farmácia do Boleslao Penha e a avalio muito. Está
desnutrida, sua magreza assusta. Seus braços medem cinco polegadas, ao mais,
como a de uma menina. Faz tempo que venho lhe insistindo em que deve
alimentar-se melhor. Paralisou por causa de sua debilidade extrema.
—Meu deus! —resmungou Fúria, e cobriu o rosto com a mão.
—Embora não notei que seus pulmões estejam afetados, é imperioso que
descanse, que tome sol (sua palidez é pasmosa) e que se alimente de acordo com
uma dieta que prescreverei. Sugerirei-lhes um tônico para lhe abrir o apetite. Deve
ter o estômago tão pequeno que, ao princípio, não poderá ingerir grandes
quantidades.
—Mandarei agora mesmo comprá-lo —expressou Fúria.
—Insisto: tranqüilidade e descanso para ela. Seu corpo conheceu o limite do
esgotamento. Que não se agite nem emocione.
Fúria voltou junto à Rafaela, e uma calidez quase esquecida derreteu o gelo que
por anos tinha intumescido seu peito. Ela estirava os braços para ele e lhe sorria.
Nada era mais formoso que essa imagem. Recostou-se a seu lado, com a cabeça
erguida sobre o travesseiro. Rafaela o obrigou a baixá-la para afundar-se em seu
pescoço perfumado.
—Sabia que algum dia voltaria por nós —lhe confessou—. Sabia que não tinha
morrido, que era uma mentira de Aarón.
—Shhh. Não fale agora. Temos o resto de nossas vidas para explicar o que
ocorreu. Só te direi uma coisa: Calvú viu sua tumba e de Mimita no caminho para
cá. Juvenal Romano e, depois, os aldeãos lhe asseguraram que tinham morrido
durante um ataque dos índios. Jamais teria cessado de te buscar se tivesse
suspeitado que existia a mais remota possibilidade de que estivessem com vida.
Quando Calvú me disse que tinha morrido, algo se apagou dentro de mim. Não
encontrava sentido a respirar, a comer, a me banhar, a sair da cama, a sair ao
mundo. Tratei de me tirar a vida, mas fui um covarde e não encontrei o valor para
fazê-lo.
—Agradeço a Deus que, por uma vez em sua vida, tenha sido um covarde. O te
preservou para mim, para que voltássemos a nos amar. Artemio —pronunciou, e
elevou a mão para lhe acariciar o rosto; aquele simples contato a estremeceu, e
soube que, desde esse momento em adiante, ao redescobrir a seu homem e ao
amor que a unia a ele, voltaria a juntar os pedaços que conformavam a Rafaela
Palafox. Devolveria-lhe a identidade.
—Por que treme? —sua ansiedade a fez sorrir—. Se sente mau?
—Sinto tanto amor por ti, um amor tão infinito, que me atemoriza
—Rafaela, não tema a nada! Já estou aqui.
—Obrigado, Meu Deus!
***

341
Tinha esquecido como lutar com a teima de sua mulher. Ao final, depois de
obrigá-la a beber várias colheradas de caldo de galinha, que ele mesmo lhe deu na
boca, e embainhada em um vestido que lhe dançava sobre o corpo, com grossas
meias de lã, um par de botas de cano longo de cordobán, um casaco de merino,
luvas e um xale de pano de chão de pellón, Fúria acessou a que o acompanhasse a
casa da Pola. Carregou-a em braços até a carruagem, onde Bamba preparava um
braseiro sob o assento. Depois de indicar ao chofer a direção, Fúria subiu dentro e
fechou a portinhola. Procurou Rafaela como um cego até aferrá-la pela cintura e
aproximá-la a ele. Seus lábios se encontraram na escuridão. Ao princípio, um
acanhamento ganhou o ânimo dos dois, e, sobressaltados por sentir de novo ao
outro, permaneceram imóveis. Artemio não queria agitá-la nem obrigá-la a
esforçar-se, só desejava provar um instante a suavidade amaciada da boca de sua
Rafaela, a que tantas vezes tinha imaginado na solidão de Grossvenor Manor.
Beijou-a com reverência, logo que movia os lábios, suaves carícias como se
temesse rompê-la. A doçura dele a comoveu.
—Rafaela, não há palavras para descrever a felicidade que me embarga. Sinto-me
ébrio de sorte. Sinto-me completo de novo. Ainda me custa acreditar que te tenha
entre meus braços, meu amor! Quando nos separamos, uma parte de mim ficou
contigo. OH, Deus, desejo-te tanto!
—Artemio, não aconteceu um dia em que não tenha pensado em ti, em que não
tenha tido saudades seu sorriso, sua companhia, sua força, a segurança que me
dava. Em ocasiões tinha tanto medo e me sentia tão sozinha!
—Não me diga isso que me matas! Meu filho e você passando necessidades, e eu
vivendo na mais descarada das abundâncias.
—Seu filho jamais conheceu a fome nem frio, juro-lhe isso.
—Mas você sim, meu amor.
—Já sei que estou fraca e feia.
—Feia, jamais —expressou, com ardor, e a beijou na boca, e a obrigou a separar
os dentes para que sua língua a saboreasse por dentro—. Quanto a sua fraqueza,
eu me farei cargo de que ganhe peso e se sinta forte de novo.
—OH, Artemio. Devolve-me a paz!
Na casa de tia Pola, Sebastián deu a sua mãe o mesmo recebimento que Fúria
tinha testemunhado a noite anterior.
—Chegou, mamãe! —pendurou-se de seu pescoço, e Artemio sujeitou a Rafaela
pela cintura para evitar que o ímpeto do menino a jogasse de bruços—. Tem um
casaco novo? —interessou-se.
—Não vais saudar meu convidado, o senhor Fúria? —simulou zangar-se Rafaela.
—Boa noite, senhor Fúria.
Sua voz lhe acariciou a alma e lhe veio vontade de rir a gargalhadas, de levantar
seu formoso filho pelo ar e fazê-lo dar voltas, e abraçá-lo e beijá-lo. Conservou a
compostura e lhe permitiu que o observasse e se acostumasse a sua presença. O
emplastro negro e as argolas de prata chamavam sua atenção.
—Boa noite. Como te chama?
—Sebastián.
Fúria lutou por controlar a emoção. Sentiu que os dedos de Rafaela entrelaçavam
os seus e os apertavam para lhe infundir coragem.
—Que lindo nome —disse, e pigarreou.
—É o nome de meu papai —expressou o menino, com orgulho.
—E onde está ele?

342
—Minha mamãe me disse que está de viagem, mas que algum dia retornará.
"Aqui estou, meu filho, filho de meu coração".
—Sebastián —interveio Rafaela—, vá chamar a tia Pola e a Damiana. Onde está
Mimita? Chama-a também. Mudaremos para a casa da irmã do senhor Fúria.
De volta na casa de Edwina, Fúria e Rafaela comeram sozinhos no dormitório
enquanto a anfitriã, junto com seus filhos Eduardo e Martín, suas noras e seus
pequenos netos, ocupava-se de entreter aos convidados. Sebastián era um menino
loquaz e inteligente que logo ganhou a simpatia de suas primos e a de seus filhos.
A tia Pola, apesar de sua constituição adoentada, conversou animadamente com a
Edwina; mostrava-se tão feliz pela aparição de Artemio Fúria como sua sobrinha.
—Quando Rafaela e Mimita chegaram a Córdoba no ano onze —explicou Pola—,
decidimos que seguiriam usando os nomes consignados nos salvo-condutos falsos
com os que tinham viajado. Daí que as conheça pelo nome da Catalina e Etelvina
López. Vivemos com medo durante anos. Temíamos que esse demônio de Aarón
Romano viesse atrás de minha Rafaela.
—Tudo isso ficou no passado —a tranqüilizou Edwina.
Mimita, sentada entre Pandora e Damiana, a Índia cunhada da Pola, comia com
fome voraz. Não tinha reconhecido Fúria quando o viu na casa de Pola, apesar de
que vivia com sua lembrança, alimentado por Rafaela. Artemio notou que ainda
tinha o tato com os pingentes, meio gasto e descolorido.
Logo que chegaram a casa de Edwina, Rafaela a tinha tirado da mão e conduzido
a uma sala pequena e isolada onde se encontrava Fúria. Disse-lhe ao ouvido: "É
Artemio". As pestanas da menina se elevaram com rapidez, e seus olhos meio
estrábicos se fixaram no senhor de aspecto ameaçador. Inclinou a cabeça para,
um e outro lado, enquanto o estudava. Um sorriso se foi desenhando lentamente
em seus lábios até que lançou um chiado e se abraçou às pernas de Fúria. O
homem a levantou em braços e a beijou várias vezes no rosto.
—Mimita! Minha menina adorada!
***
Umas criadas ajudaram a Rafaela a tirá-la roupa e ficar a camisola. Fúria o teria
feito, mas Rafaela se negou. Não precisou perguntar o motivo; intuía que ainda
não estava pronta para reatar a intimidade; além disso, sentia-se feia e pouco
digna. Tinha-lhe expresso que ele estava mais formoso que antes, se isso era
possível, sem mencionar nem perguntar pelo emplastro negro.
Retornou ao dormitório quando Rafaela já havia deitado. Estava cômoda e a
gosto sentada entre os travesseiros. Colocou a bandeja com a comida sobre a
mesa de noite e estendeu um guardanapo sobre o regaço dela.
—Eu posso fazê-lo, Artemio —e tentou lhe tirar a colher com o caldo.
—Suplico-te que me permita te alimentar. Não o faço por ti. É um ato egoísta.
Faço-o por mim, para me liberar desta culpa que está me curvando. Atormento-me
ao pensar nas penúrias e misérias que suportaram por causa de meu abandono.
—Não nos abandonou! Acreditava que estávamos mortas.
—Não importa o que tenha acontecido em realidade, sinto culpa igualmente.
Permita-me te alimentar. Quero te alimentar, te banhar, te vestir, te cuidar, te
cobrir de jóias, te levar de viagem, comprar castelos e palácios, te comer a beijos,
te amar, te fazer o amor. Quero voltar a estar dentro de ti, Rafaela, e ouvir seus
gritos de prazer. Deus, quanto te tive saudades! Quanta falta me fez, meu amor! —
depositou a colher no prato e se levou a mão à frente.
—Não chore! —exclamou ela, e o abraçou—. Já não! Alimente-me, vista-me,

343
cuide-me! Faz o que queira comigo, só te peço que não te separe de mim nem de
nosso filho outra vez.
—Jamais. Jamais. Nunca mais —repetia com paixão, sobre seus lábios.
Rafaela bebeu uma infusão de valeriana e melisa, e dormiu ao arrulho das
palavras de amor de Fúria, que, como um jogo, começou a tratar a de você e a lhe
falar como se os anos não tivessem passado.
—Você é a coisa mais bonita da minha vida, Rafaela. E nada e nem ninguém
voltará a tirar-me. Que lindo filho me deu. Vai sei um valente, meu pequeno, e
meu anda parecendo que é muito inteligente.
—Como seu pai —referendou ela—. Tia Pola está lhe ensinando a ler e a escrever.
Estou tão orgulhosa dele, senhor Fúria! Aprende velozmente.
—A amo, senhorita Rafaela. A amo com todo meu coração, com toda minha. Para
meu sempre ouviu? Para sempre.
Rafaela ficou adormecida, e Fúria não conjurava a vontade para incorporar-se e
sair do quarto. Não queria apartar os olhos dela; temia que se lhe tirava a vista de
cima, a perderia. Pediu a Edwina que velasse seu sonho enquanto ele se
ausentava umas horas.
—Aonde irá, Sebastian?
—A falar com Elisabetta. Intui que algo está acontecendo. Merece minha
sinceridade.
—Seja suave com ela. Ama-te muito.
Na casa se localizada na rua de São Francisco, encontrou-se com que Elisabetta,
Sforza, William e Calvú Manque compartilhavam um jantar tardio. Elisabetta ficou
de pé e saiu a recebê-lo com um sorriso. Imediatamente, Fúria sentiu a ansiedade
e o nervosismo de sua prometida, e lhe teve lástima.
—Estivemos te esperando, Sebastiano —disse, sem recriminação—. Decidimos
começar. Sinto-o —se desculpou, e Manque advertiu como se endureciam as
expressões de Girolamo e de William.
—Elisabetta —disse Fúria—, poderíamos falar um momento a sós?
Ao momento, a conversação na mesa se interrompeu quando Elisabetta passou
correndo e chorando para os interiores. William e Girolamo ficaram de pé ao
mesmo tempo e, logo depois de seguir com o olhar a Elisabetta, voltaram-se para
Fúria.
—O que lhe há dito, caipira sem sentimentos? —enfureceu-se Girolamo.
—Estou me cansando de ti, Sforza. Um insulto mais e conhecerá minha ira —o
acautelou antes de evadir-se detrás a Elisabetta.
—Abra! —pediu-lhe frente à porta de seu dormitório—. Preciso te explicar, por
favor.
Elisabetta abriu e o abraçou. Fúria a arrastou ao interior e correu a tranca.
Sentou-se na cama, com ela sobre as pernas. Parecia que nunca cessaria o
pranto.
—Sei tudo a respeito de sua Rafaela —admitiu, enquanto secava as lágrimas—.
Calvú me contou isso. Sei que a amaste mais à frente do entendimento, amaste-a
como eu gostaria que me amasse. Sei que a amava mesmo que te comprometeu
comigo. Sebastiano, que grande embrulho!
—Sinto muito, querida. Não sabe quanto me dói te fazer sofrer.
—Sei, sei que não quer me fazer sofrer. Mas não pode evitá-lo. Se ela estiver viva,
eu não tenho uma só oportunidade de te reter.
Ficaram em silêncio. A frente de Artemio descansava na de Elisabetta, que lhe

344
acariciava o rosto.
—Está feliz, verdade?
—Elisabetta, por favor.
—Diga-me isso Sebastiano. Preciso saber. Está feliz?
—Sim, estou feliz. Sou feliz. Imensamente feliz. Rafaela está viva e tenho um filho
maravilhoso chamado Sebastián.
—OH! Um filho. Sebastiano, por amor de Deus, que impressão tão grande
deveste que receber. Não consigo imaginá-lo. Sinto-me mau, sinto-me suja e
indigna porque estou ciumenta quando deveria estar feliz por ti.
—Elisabetta, não é feita de pedra. É lógico que sinta pena e ciúmes.
Fúria chamou Mina e lhe indicou que trouxesse uma infusão para sua patroa e
que dormisse junto a ela essa noite. Refletiu a respeito da conveniência de
retornar a casa de Edwina. Temia seu descontrole quando Rafaela necessitava
descanso e serenidade. Não obstante, trocou de roupa e voltou para a rua da
Mercê. Edwina tinha ficado adormecida no sofá, perto de Rafaela. Despertou e lhe
indicou que ele se ocuparia. Apesar de seu costume de dormir nu, não tirou as
calças nem a camisa. Deslizou-se sob os lençóis com delicadeza para não
despertá-la. Passou a noite acordado, observando-a respirar.

345
Capítulo XXXIII

O poder do amor

Rafaela queria saber tudo a respeito de Fúria. Fúria queria saber tudo a respeito
de Rafaela. Se não estavam juntos, afligia-os uma necessidade premente de tocar-
se, cheirar-se, olhar-se, beijar-se, saber-se vivos, saber-se um. Temiam que as
circunstâncias os separassem de novo, por isso Fúria se ausentava o tempo
necessário para atender seus compromissos e a seus convidados e resolver as
questões pendentes de Rafaela, como pagar suas dívidas, esvaziar a casa de Pola e
lhe avisar a dom Boleslao que a professora perfumista não continuaria
trabalhando para ele, o que causou a reação violenta do farmacêutico, que exigiu
que, em consideração aos anos que a tinha ajudado, Rafaela lhe entregasse as
fórmulas. Artemio lhe fechou a mão em torno do pescoço e o levantou umas
polegadas do chão. Olhou-o fixo, sem emitir palavra. Boleslao cuspiu uma
desculpa e tossiu até gritar quando Fúria o soltou. Também se ocupou de Pancho
Sosa Loyola, o aristocrata cordovês que pretendia a Rafaela. Informado de que
vivia na casa de miss Eduarda Avendaño, foi visitá-lo. Calvú avisou a Fúria do
visitante. Apesar de que esse estrangeiro com traçado de pirata lhe levava uma
cabeça, Sosa Loyola apresentou briga e manifestou que correspondia a Rafaela
decidir com quem ficaria.
—Está parecendo, dom Pancho, que me está provocando. E, desde agora lhe
digo, nomá62, a você não convém. Não é assim, Calvú?
—É, dom Pancho, lhe asseguro, não lhe convém. Vê essas argolas de prata que
tem nas orelhas? São os Cristãos e infiéis que meu peñi despachou para o outro
lado. Com você, completaria a orelha. Não estaria mau, não é, peñi?
O homem deu meia volta com ar ofendido, resmungou algo a respeito de
cafajestes e ingratos e permitiu a Pandora que o guiasse até a saída.
Rafaela e Artemio falavam muito do passado. Ao princípio, como se
emocionavam, Fúria preferia adiar os bate-papos. Entretanto, ela tinha
necessidade de explicar e de receber explicações. Por isso, a primeira manhã na
casa de Edwina, quando despertou com Fúria a seu lado, contemplando-a, referiu-
lhe o acontecido caminho a Córdoba, nove anos atrás.
Chegados à paragem Pontas da Garganta Funda, o maioral lhes informou que
passariam a noite em uma estalagem. O proprietário, um homem de mau aspecto,
sujo e brusco, deu-lhes um quarto e água quente para lavar-se. Jantaram cedo e
para irem dormir. Levantaram-se a alvorada e subiram à diligência quando
começava a clarear. No interior, Rafaela deu um pulo ao descobrir, abaixadas no
piso, a jovem esposa do proprietário e a sua pequena filha.
—Boa senhora —lhe suplicou—, me ajude a fugir. Meu marido acabará me
matando se ficar.
Rafaela, que a noite anterior tinha notado os hematomas no rosto da jovem, até

62
Expressão de ênfase, como né em português.

346
na da menina, acessou a que viajassem com elas. A moça se chamava Ñusta e sua
filha, Rufina. A poucas léguas, o maioral e o chofer começaram a inquietar-se ao
vislumbrar uma nuvem de pó que avançava do sul. Uma hora mais tarde sabiam
que se tratava de um muito mau. A algazarra dos índios lhes causou terror. Os
gritos que lançavam pressagiavam as torturas que lhes esperariam se caíam em
mãos desses selvagens. O carro se deteve, e o maioral e o condutor começaram a
disparar suas pistolas. Rafaela se havia abraçado a Mimita e chorava e recitava
preces. Uma lança atravessou o couro da diligência e transpassou a cabeça de
Rufina como se trata-se de um melão. Enlouquecida, Ñusta abriu a portinhola e se
lançou fora, aos gritos. A poucas varas, uma lança a alcançou no peito, matou-a.
Pouco a pouco, o rugido dos índios, o som dos cascos e os disparos foram
sossegando-se. Rafaela, com o rosto oculto no cabelo de Mimita, aguardou seu
destino dentro do carro. Percebeu um aroma nauseante, e se lembrou de que
Calvú Manque lhe havia dito que seus irmãos estavam acostumados a cheirar mal
porque lubrificavam o corpo com sebo de égua. Um momento depois, sentiu-se
devorada para fora. Os semblantes desses índios a aterraram e, sem raciocinar,
prorrompeu em exclamações: "Sou a curé63 de Artemio Fúria! Sou a curé de
Artemio Fúria!", que aplacaram aos índios como por cura. Viu-os parlamentar com
a alma na expectativa. Um deles, que falava um pouco de castelhano, perguntou
aonde se dirigia. Ela mentiu: disse que Fúria a esperava em Córdoba. Ofereceram-
se a escoltá-la. Teria declinado a oferta; entretanto, nessa imensidão inóspita e
desconhecida, não ficava outro remédio. Viajou durante sete dias montada, junto
com Mimita, em um parelheiro do capitanejo do grupo. Ao princípio temeu que a
violentassem, embora em seguida se deu conta de que o nome Artemio Fúria
pesava sobre eles. Para provar a veracidade de sua declaração, faziam-lhe
perguntas a respeito de Fúria que, por fortuna, sabia responder. Ao chegar aos
subúrbios de Córdoba, explicaram-lhe que não entrariam por temor a que a tropa
os capturasse. Indicaram-lhe o caminho e lhe entregaram um assobie com água e
fatias de carne seca e bolachas. Horas mais tarde, um carreteiro que transportava
suas hortaliças ao mercado da cidade, levou-as até o Plaza Mayor. Alcançaram a
casa de tia Pola e dali foi fácil.
Fúria a abraçou e lhe beijou o alto da cabeça.
—Rafaela, podia ter morrido de verdade! Meu Deus, tenho a pele arrepiada de
pensá-lo. Você, minha menina decente e refinada, vivendo essas penúrias, e eu,
morrendo no navio que me levava a Irlanda.
Uma manhã, dias mais tarde, Rafaela elevou a mão e roçou o emplastro de
Artemio.
—Quero ver sua cicatriz —lhe pediu.
—Nunca a mostrei a ninguém.
—Não me mostraria isso?
—Sim, a ti sim!
—Porque é todo meu, verdade?
—Todo teu! Só teu!
Rafaela levantou o emplastro e, como se tinha preparado para uma cicatriz
desagradável, não ensaiou nenhum gesto, suas feições não se alteraram. Percebeu
que o corpo de Fúria se relaxava. Ergueu-se na cama e lhe beijou a óbita vazia e,

63
Mulher na língua nativa.

347
com a ponta da língua, lambeu-lhe a pálpebra maltratada e os bordos toscos que
conformavam a cicatriz.
—A sua prometida a mostraste?
—Falei que a ninguém. Só meu avô a viu porque ele me praticava as curas
durante a viagem a Irlanda. Além disso, Elisabetta já não é minha prometida.
Rafaela assentiu, sem olhá-lo. De maneira irracional, tinha-a zangado inteirar-se
de que Fúria tinha planejado contrair matrimônio. Foi tia Pola a que lhe fez
compreender que Fúria, depois de nove anos de luto, tinha tido direito a pensar
em uma família de novo. Quando permitiu que Fúria se aproximasse de novo, este
caiu de joelhos junto à cama e lhe beijou com ardor a mão. Pediu-lhe:
—Senhor Fúria, me sussurre palavras de amor.
—Amo-te, Rafaela. Amo-te desta maneira inefável que é difícil de compreender.
Durante estes nove anos, jamais se esqueci. Estava em minha cabeça em cada
maldito minuto de cada maldito dia. Sua lembrança era uma maldição. Confesso-
te que queria me desfazer dela porque estava me enlouquecendo. A noite em que
Elisabetta e eu nos comprometemos, seu rosto me perseguia como um fantasma e
sua voz me repetia: Não me esqueça, senhor Fúria. Não me esqueça, senhor Fúria.
Rafaela, nunca volte a me deixar! Já não poderia suportá-lo.
—Nunca, meu amor! Prometa que morreremos juntos.
—Prometo-o.
Depois de vários dias de repouso e de grandes quantidades de comida, Rafaela
começava a cansar-se de guardar cama. Fúria não lhe permitia caminhar e a
levava em anda até a tina, ao pátio para tomar sol, até atrás do biombo para que
fizesse suas necessidades; e, enquanto trocavam os lençóis, ele a sentava sobre
seus joelhos e a sustentava como a um bebê. Não negaria que, depois de trabalhar
anos sem descanso, esses dias nos que a tratavam como a uma rainha obravam
maravilhas em seu corpo e em seu coração. Pela manhã, enquanto Pandora a
penteava e arrumava, Rafaela analisava seu semblante no espelho e advertia que
as olheiras desapareciam, que a pele cobrava elasticidade e brilho e que seu
cabelo estava volumoso e são.
—Por que permitia que esse filho da puta do Boleslao te explorasse? —quis saber
Fúria—. Poderia ter fabricado os cosméticos e perfumes na casa de sua tia Pola.
—Sem alambiques nem redomas nem nada? Sem essências nem flores? Não
esqueça que tudo ficou no campo de Morón quando viajamos a Buenos Aires. Ao
chegar a Córdoba, eu trazia dinheiro que Juvenal Romano me tinha dado.
Inclusive me tinha prometido que me enviaria um pouco todos os meses. A
situação de tia Pola era se desesperadora. Seu marido, Leónidas, um índio
imaginário, tinha morrido meses atrás deixando um toldo de dívidas. Os últimos
meses não tinha podido trabalhar a madeira devido a uma infecção nos ossos que
lhe deformou as mãos. Sem ganhos e com grandes gastos em remédios e médicos,
o dinheiro de tia Pola logo se esgotou. Eu paguei as dívidas confiada em que
Juvenal Romano me enviaria dinheiro ao mês seguinte. O dinheiro nunca chegou.
Muito tempo depois, inteirei-me de que tinha morrido.
—Dispararam-lhe. Não sentiria saudades que, ao igual a seu pai, morresse à
mãos de Aarón Romano.
—Morreu por minha culpa, por me proteger e me esconder de Aarón.
—Esqueçamos o passado! —insistiu-a—. Já passou. Quando chegarmos a
Irlanda, te comprarei o melhor alambique de cobre e todas as redomas, pipetas e
demais utensílios que precisas para fabricar perfumes. Terá um batalhão de

348
jardineiros a suas ordens e te converterá na proprietária do jardim mais
exuberante da Europa.
—OH, Artemio! Seriamente?
—Viajaremos pelo mundo procurando espécies exóticas. O primeiro que quero
que faça quando te comprar o alambique é fabricar nosso perfume, esse que
batizou Amor e que me tem encadeado a ti dos tempos de La Larga.
—Se nos podemos permitir isso eu gostaria de fabricá-lo com rosas da Bulgaria.
Sempre sonhei tendo a essência dessas rosas.
—Tudo para ti, Rafaela. As rosas da Bulgaria, os muguetes da Inglaterra e os
jasmins de onde sejam. Tudo.
Assim como Fúria consentia a Rafaela, fazia outro tanto com o Sebastián, e isso
suscitava discussões entre eles.
—Não quero que pense que viverá a mesa posta, Artemio. Quero lhe ensinar o
valor do dinheiro, quero que aprenda a ganhar o não faremos dele um malcriado.
—Meu amor, me deixe lhe dar uma porção do que lhe teria dado desde seu
nascimento. Prometo que, uma vez na Irlanda, serei mais austero com ele.
Sebastián se afeiçoava ao senhor Fúria dia a dia. Ninguém era mais inteligente
que esse bravo senhor, nem generoso, nem bom, nem divertido, nem melhor
cavaleiro. Quando lhe permitiam visitar sua mãe, subia-se na cama e lhe
enumerava os presentes que o senhor Fúria lhe tinha comprado e as atividades
que tinham compartilhado.
—Hoje o senhor Fúria comprou uma argola de prata e a pôs na outra orelha, em
que estava vazia. E sabe por que o fez, mamãe? —Rafaela disse que não—. Porque
acaba de descobrir que tem um filho. Pendurará uma argola por cada filho que
Deus lhe dê, assim disse. Quando lhe perguntei por que pendurou as argolas na
outra orelha, respondeu-me que algum dia me contaria isso.
Tinham acordado que correspondia a Rafaela lhe revelar ao menino a identidade
de seu pai. Apesar de que Rafaela assegurava que Sebastián o aceitaria sem
duvidar —desde muito pequeno vivia na esperança de conhecer seu pai—, Fúria
lhe tinha pedido uns dias para ganhar sua confiança e seu carinho. Sem dúvida,
estava obtendo-o. Até o dia em que Sebastián entrou sem chamar no quarto de
Rafaela e surpreendeu a Fúria beijando-a. equilibrou-se sobre ele e lhe atirou
murros ao tempo que exclamava: "Deixe-a! Minha mamãe é minha e de meu
papai. Solte-a!". Fúria conseguiu reduzi-lo. O menino seguiu debatendo-se e lhe
lançou batidas os dentes quando seus braços e pernas ficaram inutilizados. Fúria
olhou a Rafaela e lhe disse, com um meio sorriso:
—Poderíamos apelidá-lo Pichín-Ülleún, não crê? —depositou-o sobre o regaço da
mãe e abandonou o dormitório.
Sebastián chorou até molhar a camisola de Rafaela.
—Meu filhinho, não sofra. Por que chora tanto?
—Porque o senhor Fúria te estava beijando.
—Acreditei que o apreciava, que sentia um grande carinho por ele.
—Sim, mas ele não pode te beijar. Porque você é de meu papai.
—Crê que o teria beijado se ele não fora seu pai?
Sebastián levantou a cabeça e a olhou em aberta confusão. Rafaela o obrigou a
assuar o nariz e lhe secou as bochechas.
—Sebastián, eu jamais trairia a seu pai beijando a outro homem. Eu beijei ao
senhor Fúria porque ele é seu pai.
—Meu pai? —Rafaela assentiu—. De verdade?

349
—Filho, alguma vez te menti? —Sebastián agitou a cabeça—. Não te deste conta
de que tem sua mesma cor de cabelo? Não te deste conta de quão parecido é a ele?
—Não se chama Sebastián. chama-se Artemio.
—O chamam Artemio Fúria, mas seu verdadeiro nome é Sebastian de Lacy.
Sebastian não Sebastián, porque é em inglês, que é outro idioma, que seu pai fala
com miss Eduarda.
Rafaela riu ante a expressão de sobressalto de seu filho. O menino se sorveu os
mucos, passou-se o dorso da mão pelos olhos e saiu correndo do quarto. Voltou
para momento em braços de seu pai, com o rosto oculto e obstinado a seu
pescoço. Fúria e Rafaela se contemplaram através do espaço do dormitório.
Rafaela sorriu com lábios trementes. Artemio foi incapaz de lhe devolver o gesto; o
queixo lhe sacudia de reprimir o pranto. Sentou-se no bordo da cama e colocou
Sebastián sobre seus joelhos.
—Sempre tem que proteger a sua mãe como o fez hoje.
—Sim, papai.
***
Fúria visitava diariamente a casa na rua de São Francisco e evitava encontrar-se
com Girolamo Sforza. Quanto a William, surpreendia-se de suas mudanças
bruscas de caráter; em ocasiões estava exultante; outras, deprimido. Uma tarde,
Sforza o encarou no vestíbulo e lhe pediu umas palavras em privado.
—De Lacy, esta situação é insustentável. Elisabetta se sente humilhada e está
sofrendo.
Embora lhe custasse admiti-lo, Sforza tinha razão. Embora Elisabetta o recebia
de bom humor, ele advertia sua deterioração; estava deprimida e pálida.
—Eu não sou culpado de como aconteceram as coisas. Jamais teria machucado
sua prima com intenção, e sabe. Além disso, deveria estar contente. Sei que nosso
matrimônio não contava com sua aprovação.
—Estou contente por que suas bodas se frustraram, mas não estou contente com
esta situação. Elisabetta e eu deveríamos viajar a Buenos Aires para retornar à
Itália.
—Em nenhum navio viajarão tão cômodos e bem atendidos como no Smarag.
Além disso, não quero que lhes aventurem sozinhos até Buenos Aires. Os
caminhos deste país estão infestados de perigos.
—Então, se um pouco de nobreza corre por suas veias, empreendamos a viagem
logo, para evitar que Elisabetta siga sofrendo e humilhando-se.
—Não poderei fazê-lo até que o médico me indique que minha mulher pode
confrontar uma viagem dessa envergadura. Quando a encontrei, sua saúde não
era boa.
Elisabetta irrompeu no comilão.
—Não fale por mim, Girolamo. Voltarei para a Europa no Smarag e em nenhum
outro. Se o desejar, retorna você a Itália. Não conte com meu dinheiro para pagar
a passagem.
Fúria desejava retornar a Irlanda para começar uma nova vida com a Rafaela.
Sua constituição e seu semblante melhoravam a olhos vista, e não havia modo de
mantê-la na cama; inclusive, em ocasiões, ouvia missa na Mercê.
—Pediria-te que case comigo aqui, em Córdoba —admitiu Fúria uma noite— se
não desejasse que fora o padre Ciríaco quem o fizesse.
—Está bem para mim. Eu adorarei conhecer por fim a seu padre Ciríaco. Embora
não o conhecesse, quero-o com todo meu coração, por te haver resgatado quando

350
menino e por te haver amado sempre —Fúria se ergueu no colchão onde dormia, a
um lado da cama de Rafaela, e a beijou—. Por que dorme aí abaixo? Tão feia estou
que não quer compartilhar a cama comigo?
Fúria ensaiou uma careta eloqüente e soltou o ar com impaciência.
—Rafaela, ninguém imagina a tortura que significa para mim me abster contigo.
Surpreendo-me de mim mesmo, do controle que estou conseguindo, e é só por ti,
porque o doutor Além de Pinto assegurou que necessita descanso e nada de
emoção.
—O doutor Allende Pinto —replicou, ao tempo que se deslizava de sua cama e
caía escarranchado sobre Fúria— não sabe o que eu necessito. Necessito a meu
homem dentro de mim. Necessitei-o ao longo de nove anos, o tive saudades até as
lágrimas, em ocasiões acreditei que enlouqueceria por desejá-lo tanto. Resisto a
prolongar a espera. por que treme? —lhe perguntou, com fingida inocência.
—Por favor, Rafaela, não te mova assim sobre meu membro. Não me faça isto.
Estou muito quente para me conter.
—Não te contenha —lhe sugeriu, enquanto lhe desabotoava a camisa e lhe
acariciava os peitorais e lhe abria sulcos no arbusto espesso de pêlo com os dedos
estirados—. Por que dorme vestido? Lembro quanto me custou me acostumar no
campo de Morón a que o fizesse nu —Baixou o decote da camisola e liberou seus
seios—. Toque-me, Artemio.
Rafaela se inclinou para lhe oferecer os mamilos e gemeu e se sacudiu e gritou
quando a boca dele se fechou em torno de um deles, e sua língua o lambeu e seus
lábios o sugaram, e suas mãos lhe apertaram as nádegas como se amassasse pão.
Os sons que brotavam sem moderação de Rafaela provavelmente despertassem a
Sebastián no quarto contigüo. Ninguém reparou nisso. Rafaela se ocupou das
calças de Fúria e de seus próprios calções.
Artemio parecia ter esquecido os escrúpulos quanto à fragilidade de sua mulher.
Tomou-a pelos braços e, com um movimento impaciente, acomodou-a de costas
sobre o colchão. Imobilizou-a com os joelhos e lhe arrancou novos gemidos
quando sua boca voltou a cevar-se nos mamilos dela.
—Teria gostado de beber do leite que dava a meu filho.
—Teria gostado que o fizesse.
—Diga-me que foste só minha, que nenhum outro te possuiu nestes anos.
—Como pode pensar que fui que outro? Nunca ninguém me possuiu exceto você,
Artemio. Ninguém, exceto você. Meu Deus, Artemio, voltar a estar sob seu peso!
Voltar a sentir sua carne dentro de mim! É como um sonho! —Custava-lhe falar,
custava-lhe respirar.
Fúria tinha quebrado sua couraça de vontade e a abraçava com frenesi. Suas
carícias cheias de fogo lhe marcavam a pele e imprimiam rastros quentes. Sua
boca a mordia, lambia-a e a beijava. Como cega, estirou o braço até dar com seu
pênis. Estava duro, quente e suave. Pulsava em sua mão.
—OH, Deus! —Fúria se arqueou e ficou suspenso em um uivo silencioso, a boca
aberta e uma careta de dor no rosto; a sua jugular sobressaía no pescoço
vermelho.
Enterrou-se nela com um impulso pouco gentil, ao tempo que com sua língua lhe
invadia a boca. As fossas nasais de Fúria se dilatavam para inspirar. O fazia de
um modo superficial e agitado, e o ar quente golpeava o rosto de Rafaela. Começou
a lhe sussurrar com voz rouca ao ouvido, com acento desesperado, com
ansiedade.

351
—Caralho, Rafaela, não posso me conter! Sinto muito, meu amor.
A vagina de Rafaela, que se contraía e afrouxava em torno do membro de Fúria
que o enlouquecia. Ela iniciou um movimento similar à cadência das ondas que
lambem a praia, para diante, para trás, enquanto suas unhas se enterravam nas
nádegas de Artemio incitando-o a penetrar dentro de sua carne até lhe roçar as
vísceras.
Ao dia seguinte, todos, exceto Sebastián, jogavam olhadas entre irônicos,
descarados e tímidos. Os rugidos de Fúria no alívio tinham atravessado a casa e
alagado o terceiro pátio.
***
Rafaela se mostrou inflexível com o novo presente de Fúria para o Sebastián.
—Artemio, ele jamais montou. Não quero que o faça, não nesse cavalo que lhe
deste. É enorme e luz indomável.
—Crê que lhe daria um cavalo manhoso a meu filho? Diomed é um hannoveriano
tranqüilo, meu amor.
—Rafaela, meu mallé —Calvú Manque queria dizer "sobrinho"— tem aos dois
melhores professores para aprender a montar. Artemio e eu —esclareceu, com um
amplo sorriso.
—Calvú, não nego que vocês são dois dos melhores cavaleiros que povoam os
pampas porque virtualmente nasceram sobre o lombo de um cavalo. Sebastián,
em troca, não tem habilidade nem destreza. É um menino de cidade.
—Queremos pôr remédio a isso, Rafaela —teimou Fúria—. Em Grossvenor Manor
e nas outras propriedades, viverá sobre o lombo de um cavalo, me acompanhando
a visitar os arrendatários.
—Não nesse cavalo, Artemio! Não pode comprar um menor? E nem te ocorra
fazê-lo montar nesse gigante branco teu! Faz-me sentir do tamanho de uma pulga.
O entusiasmo de Sebastián por Diomed e a pressão de Fúria e de Manque
conseguiram rachar a firme decisão de Rafaela. Fúria prometeu que Sebastián
montaria em locais despovoados onde o clima da cidade não espantasse aos
animais. Estavam acostumados a passear na hora da sesta e se afastavam em
direção ao rio. Cavalgavam sobre a restinga e, pelo general, acompanhavam-nos
Elisabetta e William. A Rafaela a punha de mau humor que Sebastián chegasse,
todo alvoroçado, falando da formosa italiana amiga de papai.
***
O doutor Allende Pinto encontrou muito restabelecida a Rafaela, e admitiu que a
breve convalescença o surpreendia. Em opinião do médico, se viajassem em várias
etapas, poderiam partir a Buenos Aires quando o julgassem oportuno. Fúria
iniciou os preparativos da viagem imediatamente. Alugaria outro carro pois não
bastava a sua carruagem; além disso, não podia imaginar Elisabetta e Rafaela
confinadas no mesmo carro durante dias. Não resultariam fáceis os meses no
Smarag.
Atrasariam-se pouco em Buenos Aires, o suficiente para que o pai Ciriaco
benzera seu matrimônio, para carregar o mate e a água, e para que Rafaela
visitasse seus amigas, Lupe Moreno, viúva desde ano onze, e Pilar Montes.
—Moreno morreu em alta mar —lhe contou Fúria—. Estive em Londres com seu
irmão Manuel e com Tomás Guido. Ambos o acompanhavam no navio. Eles
sustentam que Moreno morreu envenenado. Quão mesmos intrigaram em meu
contrário para me tirar do jogo, ocuparam-se de afastá-lo de Buenos Aires e matá-
lo.

352
—Pobre Lupe! —compadeceu-se Rafaela—. Recordo quanto amava a seu Moreno.
—Ajudo-a faz tempo. Economicamente —esclareceu—. O faço porque Moreno me
pediu que a cuidasse se algo mau lhe ocorria, mas também porque tinha sido sua
amiga e muito boa contigo quando todos lhe davam as costas por causa de mim.
—Obrigado. Durante todos estes anos não me atrevi a lhes escrever, nem a ela
nem a Pilar, porque Juvenal me acautelou que se violavam as cartas no Correio. E
eu temia que Aarón de algum modo se inteirasse onde me escondia e viesse por
mim.
—Seu primo não pode ir atrás de ninguém. Já te contei que é uma pelanca, um
despojo. Possivelmente já esteja morto.
—Não sinto pena por ele, Artemio. Quando penso que pôde te haver
assassinado...
Fúria a envolveu em seu abraço e lhe vaiou ao ouvido para sossegar as más
lembranças.
—Não te detenha nessas tristes memórias —lhe pediu—. Sou tão feliz desde que
te recuperei que as penas do passado se desvaneceram. Tudo parece insignificante
agora que te tenho comigo.
Um meio-dia a princípios de setembro, depois do almoço, enquanto sorviam café
e bebidas digestivas, Calvú Manque e Edwina anunciaram sua intenção de
contrair matrimônio. Para ninguém resultou uma surpresa. Rafaela, inclusive,
tinha-os visto beijando-se no pátio, ocultos sob as glicinas; tinha-lhe resultado um
quadro perfeito, ele, alto e escuro, ela, miúda e diáfana. Manque lhe tinha solto o
cabelo que caiu sobre as costas de Edwina como um manto com brilhos vermelhos
e dourado. A Rafaela a tinha excitado a intensidade do beijo. Ninguém sabia como
reagiriam Martín e Eduardo; depois de tudo, Avendaño tinha morrido tão somente
um ano atrás. Edwina, entretanto, mostrou a atitude firme e decidida que a tinha
caracterizado desde sua viuvez e expressou que nada nem ninguém lhe
impediriam de começar a viver.
Com os ânimos elevados e sorrisos nos lábios, saíram a montar. As lições de
Sebastián estavam dando seus frutos, e Rafaela se enchia de orgulho quando a
Fúria lhe iluminavam os olhos enquanto lhe assegurava que nunca tinha
conhecido um menino tão inteligente e valente como Sebastián. "É um cavaleiro
nato", assegurava. De noite, quando foram juntos a agasalhar ao menino e lhe dar
o beijo de boa noite, Rafaela ficava olhando-os conversar a respeito de Diomed, de
Zeus e das estupendas cavalariças que o avô Horatio tinha em Grossvenor Manor,
e experimentava a forte necessidade de que esses dois homens habitassem em seu
ventre para que fossem só dela e para que nada os danificasse.
Essa tarde, acompanhava-os Elisabetta. Enfiaram para a zona do rio e, ao
alcançá-lo, galoparam pela restinga. Fúria e Manque se mantinham ao lado de
Sebastián, que ria e falava com gritos. Um momento depois, diminuíram a marcha
até alcançar um passo ligeiro. A quietude do lugar, somada à benignidade do
clima —corria um vento suave e fresco que arrastava o aroma das ervas e as
flores— e ao trilar dos pássaros, apaziguaram a cavaleiros e montavam por igual.
Fúria, que sabia a seu filho próximo e a Calvú atento, distraiu-se evocando a noite
de tórrida paixão compartilhada com sua mulher. Às vezes, quando a tinha
saciada entre seus braços, observava-a e temia que se tratasse de um sonho, que
se desvanecesse sob seu corpo. Despertava pela manhã e girava a cabeça no
travesseiro só para comprovar que estava a seu lado. Se não a via, tornava-se em
cima uma bata e, assim, em panos menores, saía ao pátio e a chamava.

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Fúria percebeu as duas coisas ao mesmo tempo: a queimação no braço direito e
o trovão que rasgou o véu de paz do entorno. Bastou-lhe um instante para
compreender que se tratava de um disparo. Ao tempo que tentava subjugar a um
Zeus encabritado, via Calvú Manque galopar depois de um cavaleiro,
provavelmente o que tinha disparado, Elisabetta lutar com sua égua para
tranqüilizá-la e Diomed elevar-se em seus quartos. Seu coração cessou de
palpitar, o sangue lhe voltou gelo e os pulmões se converteram em pedras
incapazes de ventilar seu organismo. Com aterradora certeza soube que Sebastián
não conseguiria submeter a seu cavalo e que ele não chegaria a tempo para
sujeitá-lo. Gritou seu nome, afligido pela impotência, enquanto seu filho caía de
cabeça. Perdeu a voz quando Sebastián tocou o chão e um som como de um ramo
que se quebra se propagou no vazio que o envolvia.
Jogou-se de Zeus e correu a seu lado. Ajoelhou-se junto a seu corpo e tomou
entre seus braços. A cabeça do menino caiu para trás, como um peso inerte.
Estudou-o com uma careta de horror impressa no gesto. Começou a sacudi-lo e a
chamá-lo, com voz débil e trêmula ao princípio, com mais ardor depois, aos gritos
quando se convenceu de que jamais despertaria. Apertou-o contra seu peito e o
embalou com violência, enquanto elevava o rosto desfigurado pela angústia e o
terror, e clamava:
—OH, não, Meu Deus, não! Por piedade, não! Imploro-lhe isso! Não!
Não se deu conta de que Elisabetta o abraçava e lhe sussurrava palavras de
consolo.
Calvú Manque desatou as boleadoras da montaria, agitou-as sobre sua cabeça e
as lançou às patas do cavalo de que tinha efetuado o disparo. O animal perdeu o
equilíbrio e caiu como um saco pesado. O cavaleiro saiu despedido e acabou de
costas, sobre umas pedras. Manque empunhou seu facão e se aproximou com
cautela. Sob o lenço de seda que lhe cobria o rosto, o homem acezaba como um
animal apanhado. Manque o despojou do lenço e se tornou para trás por causa da
impressão: era William de Lacy.
—William! Que merda!
—Não posso me mover —balbuciou de Lacy—. Não posso mover os braços nem
as pernas.
Manque deduziu que se quebrou o espinhaço ao ricochetear contra o fio da
pedra.
—Por que disparaste? Por que!
—Ajude-me —lhe suplicou.
Manque se girou de súbito quando um grito estremecedor, que dominou o local e
sossegou às aves, arrepiou-lhe a pele. Encarapitou-se na pedra e se fez sombra
com a mão. Por que seu peñi sacudia o corpo do Sebastián e clamava para o céu?
"OH, não, outra vez não. Meu deus, outra vez não."
***
—Senhora Rafaela! Senhora Rafaela!
A voz da Pandora a arrancou de sua concentração. Depositou o livro sobre a
mesa e correu ao pátio. Por alguma razão inexplicável, pensou em seu filho.
Todos se congregavam no pátio essa tarde, até a cozinheira e as domésticas, e
não terminava de acertar se o bulício comunicava alegria ou tragédia. Ficou quieta
sob o dintel de seu dormitório, indecisa. Não queria que lhe dissessem o que
acontecia; não queria saber por que Pandora a chamava com alaridos histéricos;
desejava dar meia volta e refugiar-se em seu quarto e na leitura. Caminhou

354
devagar.
Ao vê-la, Fúria avançou para o centro do pátio com Sebastián em braços. Rafaela
viu a manga de sua camisa empapada em sangue; alguém lhe tinha praticado um
torniquete sobre o gênero. Sebastián estava adormecido? Que mal o sujeitava
Artemio! Seu cabeça loira caía como sem vida.
—Sebastián?
—Rafaela… —soluçou Fúria, e o estendeu—. Diomed... arrojou-o...
Rafaela caminhou dois passos para trás e se deteve, sem apartar a vista de seu
filho. Alguém colocou um braço pelos ombros e a sustentou: Edwina. Não quis
olhá-la por temor a que lhe dissesse o que já sabia.
—Desperta-o, Artemio —lhe pediu.
—Não… —murmurou ele, e caiu de joelhos sobre o revestido, onde rompeu a
chorar amargamente, cobrindo com o torso o corpo de seu filho. Um momento
depois, alguém tentava arrebatar-lhe Elevou a vista e distinguiu o semblante
pálido de Rafaela, que se tinha ajoelhado frente a ele.
—Filhinho —a escutou pronunciar, enquanto o acomodava no regaço—, meu
filhinho. Aqui está mamãe. Acordada. Acordada, meu tesouro.
—Rafaela, por favor. Sebastián...
—Cale-te! —Levantou a cabeça, com a velocidade de uma serpente—. Não me
diga isso! Não te atreva a me dizer que não despertará jamais! Sai de minha vista!
Edwina se agachou junto à Rafaela e voltou a sujeitá-la pelos ombros. Beijou-a
na têmpora e lhe sussurrou:
—Rafaela, não posso imaginar quanto dói, mas tem que aceitar que Sebastián se
foi.
—Não! —Seu alarido crispou os ânimos e arrancou um soluço a Fúria, que tocou
o piso com a frente e pôs-se a chorar a muco tendido, os braços estendidos para
roçar o corpo do Sebastián.
—Rafaela —falou Calvú Manque—, me entregue Sebastián. Levaremo-lo a seu
quarto para prepará-lo.
—Não o toque, Calvú! Ninguém ouse tocar a meu filho! —O pranto de Fúria
aumentava em tanto a violência de Rafaela aumentava—. Ele é meu! Meu! Filho de
minhas vísceras! Não me deixe! Aqui está mamãe! Não me deixe!
—Rafaela, por favor —insistiu Manque, enquanto a obrigava a incorporar-se e
Edwina lhe tirava ao menino.
Rafaela sofreu um ataque de nervos. Fúria a olhava sem respirar.
Sobressaltavam-no seus alaridos, recordavam aos de sua mãe ao ver degolado a
seu pai. equilibrou-se sobre ela e a circundou com os braços e a apertou contra
seu peito. Ela lutou por liberar-se; debatia-se com um vigor que a Fúria custava
subjugar. E todo o tempo Rafaela exclamava: "Por sua culpa! Meu filho está morto
por sua culpa!". Não demorou para desvanecer-se.
***
Haviam transcorrido cinco dias do enterro de Sebastián, e Elisabetta desejava
esquecer a cerimônia no campo santo de São Francisco. Rafaela, flanqueada por
sua tia Pola e pela Edwina, manteve-se em silêncio, sua expressão como uma
máscara de pedra branca, sem matizes; parecia morta. Até que os coveiros
esticaram as cordas e iniciaram a descida do pequeno féretro; então, a jovem mãe
atuou como se acabasse de cair na conta do definitivo do acontecimento. Gritou o
nome de seu filho e tentou jogar-se no fosso. Fúria, que se mantinha afastado,
sujeitou-a por detrás e lhe pegou o peito a suas costas e lhe sussurrou com voz

355
ardente algo que ninguém ouviu. Durante o velório na casa de Edwina, a
Elisabetta tinha dado um tombo o coração ao descobrir os olhos de Artemio fixos
em Rafaela; queria esquecer essa expressão de amor infinito, sem fronteiras, sem
condições, sem limites. Os sentimentos que incitou nela, ciúmes e raiva,
envergonhavam-na.
Subiu pelas escadas do pátio para a zona das habitações e se deteve frente ao
quarto de Fúria. Enclausurou-se depois do enterro, e nem sequer admitia Calvú
Manque; tampouco permitia que lhe curassem a ferida do braço. Só abria para
vociferar às domésticas que o provessem de bebidas espirituosas. Embora tivesse
uma chave para entrar, Elisabetta não se atreveu. Mostrou-se muito violento com
seu amigo, nem o que dizer com Girolamo, a quem quase lhe fatiou a garganta
quando este o pressionou com a viagem a Buenos Aires; os rápidos reflexos do
índio conseguiram que o fio do facão se desviasse e infligisse um corte superficial
no pescoço da Sforza.
Elisabetta sacudiu a cabeça e se afastou com um suspiro. Amava profundamente
Sebastian de Lacy e não tolerava sua dor. A impotência a inquietava, não sabia
como ajudá-lo. Na sala se topou com Manque. O índio não estava melhor que seu
amigo. Estava jogado em uma poltrona, com o antebraço sobre o rosto. Elisabetta
pigarreou para anunciar-se.
—Segue encerrado? —perguntou o homem, desnecessariamente.
—Sim —respondeu a italiana— e não me atrevo a entrar.
—Só se mantém com vida para vingar a morte de seu filho. Com o rechaço de
Rafaela e a culpa que o curva pela queda de Sebastián, já se abria arrombado um
tiro nos miolos se não fosse pela vingança.
—Por que William fez algo tão desatinado?
—Antes de morrer confessou que o fez por uma soma muito avultada de dinheiro.
Jacob Burke, o velho administrador dos de Lacy, entregou-lhe cinco mil libras
antes de partir para cá. E lhe prometeu outro tanto se, durante a viagem à
América do Sul, acabava com o Artemio.
—Burke! De onde terá tirado tanto dinheiro esse homem? Lembrança que tio
Horatio sempre se queixava porque, como conseqüência de suas apostas, estava
permanentemente endividado.
—Burke é só um intermediário. Nosso verdadeiro inimigo não mostrou ainda a
face.
De noite, Elisabetta bateu na porta de Fúria e lhe perguntou se gostaria de
jantar. Ninguém respondeu. Apoiou a orelha sobre a folha de madeira. O silêncio
era sepulcral. Teve medo. Tremeu-lhe a mão ao colocar a chave na fechadura.
Entreabriu a porta com precaução, como se esperasse que uma matilha fugisse
pela fresta. Afogou um lamento ao descobri-lo sentado no chão, com as costas
apoiada na parede.
Fúria levantou a cabeça que descansava sobre seus joelhos e a observou com
uma intensidade que lhe roubou o fôlego. Não lhe conhecia esse olhar sinistro. O
turquesa da íris resplandecia em seu olho injetado de sangue; de seguro, não
tinha dormido nenhuma hora seguida. Tinha o cabelo mais escuro por causa da
sujeira, e o buço, coberto de uma espessa barba. Levava a mesma camisa da
manhã do enterro, e na manga se advertia a auréola de sangue seca.
—Sal daqui —lhe ordenou, e sua voz lhe causou um repelús—. Não quero te fazer
dano, mas o farei se tiver que me levantar para te tirar fora, Elisabetta saiu e
fechou com chave. Encaminhou-se a seu dormitório e pediu a Mina que a

356
ajudasse a colocar a manta. Cobriu a cabeça com o capuz e calçou as luvas.
—Mina, lhe diga ao Juan que prepare a carruagem. Iremos a casa de miss
Eduarda.
***
Tinha-lhes permitido que a narcotizassem porque, quando caía nesse sonho
negro e profundo, esquecia-se de Sebastián. Ao voltar para a consciência, com o
coração mortalmente ferido, desejava morrer. A dor, originado em suas vísceras,
ascendia e se transformava em espetadas que, embora nasciam no estômago,
deslocavam-se como ondas até as axilas e as costas. Sempre ocorria o mesmo:
abria as pálpebras com dificuldade e em seguida pensava em que Sebastián estava
vivo. À compreensão da realidade lhe seguia uma brutal quebra de onda de dor. A
amargura a envolvia e lhe oprimia o peito como se lhe tivessem colocado uma
bigorna.
A manhã do quinto dia despertou e descobriu Mimita em seu dormitório. A
menina estava sentada no sofá, muito quieta, com todas as bonecas que Fúria lhe
tinha comprado sobre a saia. Olhava-a sem pestanejar. Chamou-a agitando a
mão. Sorriu ao ver o cuidado que empregava para acomodar às bonecas antes de
responder a seu chamado. Mimita se acomodou no bordo da cama e lhe acariciou
a face com rastros de lágrimas da noite anterior.
—Batián?
—Converteu-se em anjo e se foi ao céu —lhe explicou, com bastante aprumo—.
Não voltaremos a vê-lo.
—Atiemo?
—Está em sua casa.
—Atiemo.
—Quer vê-lo? —a menina assentiu—. Amanhã —mentiu.
Pediu a Pandora que não seguisse vertendo em sua infusão o ópio que Allende
tinha receitado. Queria que os eflúvios da droga se diluíssem em seu sangue para
recuperar o controle sobre si. Passou o dia em seu dormitório. Sorveu umas
colheradas de caldo e comeu umas partes de frango e arroz. Visitaram-na Edwina
e, pela tarde, sua tia Pola. Conversar com elas lhe fez bem. Edwina, em especial,
mostrou-se carinhosa e não lhe reprovou as crueldades que lhe tinha espetado a
seu irmão. Embora acreditou que poderia compartilhar a mesa a hora de jantar,
ao ficar o sol, decaiu seu ânimo e se meteu na cama. Não dormia quando Pola
chamou a sua porta.
—A senhorita d'Adda está aqui e pede verte.
Tomou uns segundos entender de quem se tratava. Tinha obtido olhares da
mulher durante o velório e no enterro. Tia Pola lhe tinha contado que chegou com
Fúria quando este trouxe o corpo de Sebastián, por isso a d'Adda tinha estado
com seu filho quando morreu, um direito que a ela lhe tinha negado.
—Não quero vê-la.
—Fará. Sairá da cama e a receberá. É importante. É a respeito de Fúria.
A beleza da Elisabetta d'Adda não se discutia. Era magnífica, e ponto. Sem
enguiço, sem defeito. Uma condessa nata. Uma criatura de fábula que atraía os
olhares de homens e mulheres por igual. Limitou-se a inclinar a cabeça ao entrar
na sala e lhe indicou, ao estender a mão, que tomasse assento.
—Posso chamá-la por seu apelido? —Elisabetta lhe falou em um castelhano
fluido, de boa pronúncia. Rafaela assentiu—. Rafaela, não me teria atrevido a
incomodá-la se o que me trouxesse até aqui não fosse de natureza urgente e grave.

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Trata-se de Sebastiano, ou de Artemio, como vós o chamam —ante o silêncio e a
imperturbabilidade de Rafaela, Elisabetta duvidou, fez um silêncio, pigarreou—.
Acredito que decidiu morrer. Faz cinco dias que não sai de seu quarto, não come,
não dorme, não se higieniza, só bebe conhaque e outras bebidas fortes, e chora. A
culpa está matando-o, mas, sobre tudo, Rafaela, está matando-o seu desprezo.
Asseguro-lhe que me custa lhe pedir o que lhe pedirei. Necessito que venha comigo
e o salve. Você é quão única pode fazê-lo. Só você. Nem Calvú nem eu acessamos a
ele. Encerrou-se em sua dor e decidiu esperar a que a morte o surpreenda. Por
favor, imploro-lhe, salve-o.
Olharam-se, uma de um verde esmeralda, a outra de um celeste claro, cruzaram-
se e ficaram suspensas no tenso mutismo. Rafaela ficou de pé. Elisabetta a imitou.
—Espere-me aqui. Vou por meu xale e minhas luvas.
Na carruagem, Rafaela estudou o perfil da Elisabetta. Não conseguia apartar os
olhos de seus traços. Sua perfeição a pasmava.
—Por que faz isto? —pensou em voz alta—. Por que foi para me buscar?
—Porque o amo profundamente e desejo voltar a vê-lo feliz.
—Você é uma mulher digna dele.
—Mas ele não me quer . Só quer a sua Rafaela.
Na casa da rua de São Francisco, Manque e Elisabetta a escoltaram escada
acima. Quinto caminhava a seu lado e lhe lambia a mão. Rafaela se deteve frente à
porta e a olhou sem vê-la. Em realidade, estava lhe falando com o Sebastián pela
primeira vez desde sua morte: "me ajude a resgatar a seu pai", pediu-lhe. Calvú
Manque lhe pôs as mãos sobre os ombros e a obrigou a voltar-se.
—Rafaela, meu peñi está muito mal; meu anda parecendo que não vai escapar.
Não te vai gostar do que vais encontrar aí dentro. Já vi esta cena muitas vezes.
Artemio Fúria é o homem mais forte que conheço, mas você é seu debilidade.
Come o vi quebrar-se até que você apareceu em sua vida. Quando se trata de ti,
desmorona-se, como se lhe dessem um golpe na cabeça. Passou-lhe o mesmo
depois daquela noite na pensão de dona Clara e também quando lhe disse que lhe
tinha morrido. Peço-te que lhe tenha paciência e que o tranqüilize.
Rafaela assentiu e entrou cheia de paz e segurança.
Artemio disparou a cabeça para soltar um latido e, ao ver quem era, ficou de pé
com dificuldade, ajudando-se com as palmas e o traseiro a subir pela parede. Seu
gesto feroz ia suavizando-se até reduzir-se a uma careta lastimosa. Rafaela se
aproximava, e Fúria se perguntou se trataria de uma alucinação causada pela
bebedeira. A jovem se plantou a umas varas dele e se desfez das luvas e do xale;
jogou-os sobre a cama. Apesar de que estava séria, não parecia zangada. De igual
modo, não lhe importava se o buscava para insultá-lo. Que o flagelasse também.
Qualquer castigo que Rafaela queria lhe impor seria bem-vindo pois indicaria que
não o tinha esquecido. Porque era sua indiferença o que estava matando-o.
Rafaela lhe falou com doçura.
—Tem a mesma expressão de seu filho quando tinha cometido uma travessura e
sabia que o repreenderia.
Seu sorriso era real. Não alucinava. Seus lábios foram desvelando esses dentes
brancos e harmônicos, e sua ternura o sacudiu. Os primeiros soluços emergiram
com sons estranhos, como espasmos convulsos, porque se mesclavam com as
ânsias de falar e de rir.
Rafaela correu para o Artemio e o abraçou. Ele se deslizou ao chão como se
perdesse vigor; aferrou-se à cintura dela e a apertou com ferocidade. Ela não

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esperava o que seguiu: Fúria proferiu um grito estremecedor, comprido e enfermo,
que lhe fez tremer as vísceras e lhe cortou o fôlego. Apertou os olhos; não se
atrevia a olhá-lo nesse instante em que a dor o teria transfigurado.
Terminou sentada com as pernas recolhidas para um lado servindo de
travesseiro à cabeça de Fúria. Inclinou-se para lhe falar com ouvido.
—Shhh. Não chore, meu amor. Não chore. Aqui estou para ti e não voltarei a me
apartar de seu lado. Perdoe-me por ter sido tão cruel. Perdoe-me por te fazer sofrer
em um momento tão doloroso para ambos. Não senti nada do que te disse.
Enlouqueci por causa da raiva e da dor, juro-te que não sentia.Perdoe-me.
Fúria se aconchegou como um feto e aferrou ainda mais as pernas de Rafaela.
Empapou-lhe a saia com lágrimas e saliva. Quando girou a cabeça e a olhou aos
olhos, passou as mãos pelo rosto para acabar com tanto dor e culpa. Atraiu-o para
seus lábios e o beijou. O quase não podia falar, mas ela compreendeu o que
tentava expressar.
—Dói tanto. Dói tanto. Não suporto... a dor.
—Sim, suportaremos. Nosso amor o suportará, se estivermos juntos, Artemio,
sinto-me capaz de suportar algo. Meu amor —lhe sussurrou—, amor de minha
vida, não sofra. Acalme-te, por mim. Vamos, inspira profundamente e busca te
serenar.
Rafaela o balançou e cantou as canções de berço que tinha empregado primeiro
com Mimita, com Sebastián depois. Não sabia se Fúria estava dormindo; respirava
como se o estivesse.
—Morreu por minha culpa —sua voz a surpreendeu—. Não quis te ouvir quando
me advertiu do perigo e o perdemos por minha culpa. Por minha culpa! —repetiu,
e se golpeou o peito com sanha.
Rafaela lhe deteve a mão e vaiou para apaziguá-lo.
—Artemio, tem que saber que, para uma mãe, tudo constitui um perigo. Às vezes
teria querido que Sebastián voltasse para meu ventre para o preservar de qualquer
mal. Isso não era possível porque ele tinha direito a viver, e a fazê-lo
intensamente. Nunca tinha sido tão feliz como desde que soube que você foi seu
pai. Dizia-me que era o melhor, o mais valente —Artemio riu sem força—, o
melhor, o melhor cavaleiro, que sabia tudo e o que lhe dava os melhores
presentes. Lembra-te de sua expressão quando entregou ao Diomed? —Artemio
assentiu sobre sua perna—. Em seus oito anos de vida, asseguro-lhe isso, jamais
o vi tão emocionado. Foi feliz nosso Sebastián, e agora está com o Senhor.
—Além de sua perda, o que me destroça —lhe confessou—, é te haver causado
uma dor que nunca te abandonará.
—Artemio, você não me causou nenhuma dor. Se o Senhor decidiu levar-lhe e
nos deixar a nós aqui, não questionemos seu intuito e tratemos de ser felizes.
Jamais esqueceremos a nosso filho amado, isso é verdade.
—Muitas vezes, ao longo de minha vida, perguntei-me por que Deus me tinha
preservado a noite em que morreram meus pais. Estava zangado com Ele por não
me haver levado também. Depois de que te conheci, entendi por que.
—Meu amor! —Rafaela lhe beijou a têmpora e, sem apartar os lábios, prometeu-
lhe—: Darei-lhe mais filhos, senhor Fúria. O juro. E seremos felizes outra vez —
seguiu balançando-o e acariciando-o—. Agora quero te ajudar a tomar um banho.
—Cheiro a diabos, não?
—Para mim cheira a glória —o escutou rir quedamente—. Você gostaria que
depois do banho te desse uma massagem com meus bálsamos como aquele dia em

359
La Larga antes de te suturar a ferida que te causou Gabino? —a afirmação soou
como um ronrono—. Calvú —chamou, e o índio apareceu imediatamente, com a
Elisabetta por detrás.
Os dois puseram os olhos como pratos ante o quadro que compunham Rafaela
sentada no chão e Artemio encolhido, os joelhos ao peito e a cabeça sobre as
pernas dela. Fúria não se incomodou em olhá-los. Quinto se introduziu com sigilo
e se tornou junto a seu dono.
—Elisabetta, se não for inconveniente, eu gostaria de passar a noite aqui.
—É obvio —assegurou.
—Obrigado. Calvú, envia Juan para pegar em Edwina minha caixa com azeites
essenciais e a outra com os elementos para realizar curas. Ah, e uma muda de
roupa. Tia Pola saberá onde encontrar tudo —se dirigiu a Elisabetta para
perguntar—: Poderia ordenar que preparassem uma tina de água quente? Seria
melhor levar ao quarto de Calvú assim as domésticas trocam os lençóis aqui e
ordenam este quarto.
—Assim se fará.
—Enquanto preparam o banho —expressou Rafaela—, eu gostaria que Artemio
comesse algo.
—Não tenho fome.
—Comerá um pouco.
Depois de um jantar frugal e um demorado banho, Fúria caminhou como ébrio
até seu quarto, tirou a bata e se deitou de barriga para baixo na cama. Estava nu
exceto pela atadura no braço. Rafaela admirou seu corpo magro e fibroso, e deteve
os olhos em suas nádegas pequenas, brancas, enpinadas e com depressões dos
lados. Tinha acreditado que, depois de enterrar Sebastián, não se excitaria de
novo nem sentiria desejo. Empapou-se as mãos com azeite essencial de lavanda e
começou a massagem.
Mais tarde, Fúria se moveu para um lado para dar espaço a Rafaela na cama, e
desprendeu um intenso aroma a lavanda. Para lhe agradar, deitou-se nua, de
barriga para baixo. Ele se acomodou sobre seu lado e lhe falou com ouvido:
—Rafaela —pronunciou seu nome de maneira reverencial, enquanto movia a mão
sobre as nádegas dela.
—Senhor Fúria?
—Conte-me anedotas de Sebastián. Deus me concedeu tão pouco tempo para
conhecê-lo...
Em que pese a estar muito cansada, Rafaela se concentrou para saciar a
curiosidade de Fúria, Julgou um bom sintoma que falassem do filho que
acabavam de perder. Contou-lhe situações divertidas desde que Sebastián era
pequeno até suas últimas maldades. Terminaram rendamos-se pois, como se
queixava tia Pola, o menino tinha sido uma fonte inesgotável de travessuras e
saídas ocorrentes.
—Sempre foi um menino feliz, nosso Sebastián —disse Rafaela—, e vivia na
ilusão de conhecer seu pai. Deus lhe concedeu seu desejo mais desejado antes de
levar-lhe.

360
Capítulo XXXIV

Dark Boys

Londres, Blackraven, residência dos condes de Stoneville. Abril de 1821.


Melody Blackraven, condessa de Stoneville, passeou o olhar pelos comensais
reunidos em torno da mesa presidida por Roger. Ali se congregavam seu sogro, o
duque de Guermeaux; Horatio de Lacy, conde de Grossvenor; sua sogra, Isabella
di Bravante; o marido desta, o capitão Malagrida; seu primo irmão, Sebastian de
Lacy; Rafaela, sua esposa, e a tia desta, a quem chamavam Pola.
Melody fixou o olhar em Rafaela de Lacy, por quem professava um grande
carinho e admiração, e se perguntou de onde obtinha a fortaleza para sorrir e
comer —muito pouco, isso sim— quando tinha enterrado a seu único filho meses
atrás. Arrepiou-lhe a pele dos braços ao pensar que um acidente ou algum mal
caísse sobre os seus; já tinha quatro, Alexander, Rosie, Arthur e Isabella.
Artemio —Melody não se acostumava a chamá-lo Sebastian— e Rafaela,
chegados a Londres semanas atrás, converteram-se imediatamente em parte do
elenco estável de Blackraven Hall. Durante a primeira visita, em tanto os homens
conversavam e bebiam madeira, Melody, com a desculpa de lhe mostrar a casa,
apartou a Rafaela. Tomaram assento em seu gabinete e falaram com franqueza.
—Ver-me-á sorridente e otimista porque assim quero que me veja Artemio, para
que esteja tranqüilo e não sofra. Foi especialmente duro para ele. Culpava-se,
ainda o faz, sei. Deu de presente Diomed contra meus desejos —Rafaela se secou
as lágrimas e se forçou a sorrir—. Mas estou disposta a ser feliz em que pese a
tudo. Depois de nove anos, ter recuperado Artemio foi um milagre que não quero
desperdiçar.
—Sim, sim! Isso, tem que ser feliz em que pese a este duro golpe. Não é o mesmo,
sei, mas quando perdi a meu adorado Jimmy —Melody falava de seu pequeno
irmão—, a vida deixou de ter sentido para mim. Mas Roger, que sempre irrompe
em mim como um vendaval, devolveu-me as vontades de viver. Suponho que nisso
te converteste para mim, prima, um vendaval de energia.
—Ele é tão forte, Melody, que, ao vê-lo quebrado depois da morte de Sebastián,
assustei-me. Acreditei que não seria capaz de ajudá-lo.
—E quem ia fazer o se não era sua Rafaela das flores? Adora-te, vejo-o no modo
em que lhe olhe. Devora-te, zela-te, absorve-te. É o ar que necessita para viver.
—E ele, o meu.
—Sabe, querida prima? Nossos homens são parecidos em alguns aspectos.
Ambos tiveram infâncias difíceis e saíram adiante forjando uma couraça de ferro
para proteger-se. Mas chegamos nós e desbaratamos sua esplêndida estrutura e
os desconcertamos o bastante. Somos sua debilidade, voltamo-los vulneráveis, e
isso os enfurece.
—Sim, sei. Calvú me disse um pouco parecido.
Melody voltou para presente à voz de seu marido, que anunciava que os homens
se retirariam a fumar charutos e a beber digestivos. Como precisava falar a sós
com Artemio, Roger lhe pediu que o acompanhasse a seu escritório antes de unir-

361
se ao resto.
—Decidi te acompanhar a Irlanda —anunciou Blackraven—. Quero te ajudar a
levar a cabo sua vingança. Não conheci seu filho, mas era o sobrinho de minha
mulher e sinto um dever moral para com sua memória
Artemio não ocultou seu estupor.
—Não tem por que fazê-lo —atinou a manifestar—. Não quero que te
comprometa. Tem uma família a seu cargo e não me perdoaria se algo te
acontecesse.
Blackraven riu com soberba antes de expressar:
—Você não me conhece, Artemio, não sabe nada de mim. Asseguro-te que sairei
ileso e que minha ajuda te será muito valiosa. Tenho contatos na Irlanda que se
converterão em peças chave para descobrir quem se esconde depois do ataque que
provocou a morte de Sebastián. Permita-me te ajudar.
—Contava contigo para que velasse pela Rafaela enquanto me ausento. Tinha
pensado te pedir que a recebesse aqui, em Blackraven Hall. Não quero deixá-la
sozinha, em Grossvenor Mansão —Artemio falava da residência de sua família em
Londres—. Meu avô viajará comigo a Irlanda, e essa casa lhe resultará muito
grande e solitária. Embora a vê muito inteira, sofre terrivelmente pela perda de
nosso filho. E a companhia de minha prima e de seus filhos é um bálsamo para
ela. Teria que receber Mimita e Pola também.
—É obvio que ficarão para aqui, em Blackraven Hall. Somar se ocupará da
segurança de nossas mulheres. Asseguro-te, Artemio, que ele as cuidará melhor
que você e eu juntos, Quando partimos?
—O antes possível. Quero acabar com este assunto. Decidi entrar de incógnito na
Irlanda para não alertar a meu inimigo.
—Isso não é um problema. Deixa-o em minhas mãos. Conseguirei passaportes
falsos e viajaremos em um de meus navios. Suspeitas de alguém, verdade?
—Sim, do ilegítimo de meu avô, John Joe Fitzgerald. Sonhou herdando o
condado desde que se inteirou de que era seu filho. Estou seguro de que tentou
assassinar a meu pai e de que matou Andrew de Lacy, o sobrinho de meu avô que
se converteria em conde de Grossvenor a sua morte. Logo apareci eu e voltei a lhe
aguar o guisado.
—Como te disse, conto com espiões e contatos e Dublín que nos serão de grande
utilidade.
—Eu também. Meu amigo, o político Daniel O’Connell...
—Ouvi falar dele. É o que luta para que os católicos possam acessar ao
Parlamento irlandês, verdade?
—O mesmo. Com minha ajuda, anos atrás, formou um grupo de rebeldes,
chamados os Dark Boys, como força de choque para minar o poderio inglês e
protestante na Irlanda. Eles nos ajudarão.
—Mãos à obra, então.
Essa noite, de retorno na mansão do conde de Grossvenor, no aristocrático
bairro de Belgravia, Fúria anunciou a sua esposa a iminência da viagem a Irlanda.
—Diz-me isso agora —se zangou ela—, depois de que acaba de me fazer o amor,
porque crê que me toma com a guarda baixa e pensa que te permitirei ir.
—Não serviu muito —se burlou ele—, posto que está furiosa igualmente.
—Não quero que me deixe! Não tolerarei outra separação. Leve-me contigo!
—Rafaela, preciso me adiantar para prepará-lo tudo para sua chegada.
—Não minta, Artemio! Esta viagem tem que a ver com o Sebastián —o silêncio de

362
Fúria resultou eloqüente—. Não vá, imploro-te. Não quero que te separe de mim.
Algo ocorrerá para nos separar, sei!
—Rafaela, me escute! —tomou pelos ombros e lhe cravou os dedos na carne—.
Juro pela memória de nosso filho que voltarei para ti, são e salvo, e que
começaremos uma nova vida e alcançaremos a paz e a felicidade.
A solenidade do voto a emudeceu. Abraçou-se a ele.
—Volta para mim, Artemio! Não me deixe. Uma vez te assegurei que suportaria
qualquer pena a seu lado. Não falava por falar. Se não voltar para mim, morrerei.
—Voltarei! —pronunciou ele, com acento feroz—. Voltarei para ti! Juro-o.
—Mais vale que volte, senhor Fúria, porque vou lhe dar um filho! —Rafaela
sorriu ante a careta de seu marido, que a contemplava sem pestanejar, entre
pasmado e emocionado—. Não dirá nada? Sempre guardará silêncio quando te
disser que será pai?
—OH, Deus, Rafaela! Está segura? —Rafaela assentiu, e Fúria se deitou na cama
para lhe beijar o ventre com devoção—. Bendito seja, meu filho —sussurrou.

Artemio Fúria, Roger Blackraven e Daniel O’Connell sorviam cerveja em uma


hospedaria da cidade portuária do Dún Laoghaire, localizada-se a sete milhas ao
sul de Dublín. Os três se vestiam como marinheiros.
—Alguém alertou a nosso pássaro de que está vivo e pisando em chão irlandês —
informou O’Connell a Fúria— e nosso pássaro pôs-se a voar. Ninguém sabe onde
se esconde.
—Há um mexeriqueiro entre nós —opinou Blackraven.
—Sua atitude —falou Fúria—, a de esconder, fala de sua culpabilidade. De todos
os modos, antes quero apanhar Burke e ratificar a identidade do cérebro de tudo
isto —girou para olhar Roger—. Refere a um mexeriqueiro entre os Dark Boys?
—Não sei, poderia ser. Confio em minha gente. Hei trabalho com eles da época da
Revolução na França. Não me trairiam, por isso, ao descartá-los, não ficam muitas
possibilidades exceto os Dark Boys.
—Blackraven poderia ter razão, Sebastian. Há um membro novo, Kieran.
—Sim, conheci-o na última reunião —assegurou Fúria.
—Nos uniu recentemente, antes de que você partisse para a América do Sul. A
verdade é que não me inspira confiança. Poderíamos apartá-lo e depois nos ocupar
dele.
—Melhor seria utilizá-lo —sugeriu Roger—. Poderia nos guiar até nosso pássaro.
Se, como suspeitamos, este tal Kieran é o que alertou ao Fitzgerald para que se
oculte, resulta evidente que há trato entre eles.
—Talvez —conjeturou O’Connell—, o próprio Fitzgerald o tenha infiltrado para
nos atirar um golpe. É um conhecido aliado dos ingleses, esse mal parido —
resmungou.
—Pois bem —disse Fúria—, vigiemo-lo e vejamos aonde nos conduz.
—Se descobrir que é um traidor—jurou O’Connell—, desejará não ter nascido.
Um quarto de hora mais tarde, um moço entrou assobiando e caminhou até a
mesa de Fúria. Tirou a boina e tomou assento.
—Que notícias nos traz, Aidan?

363
—Já o localizamos, senhor O’Connell. A pista que seguíamos era boa. Esconde-
se aqui, no Dún Laoghaire —Pronunciou dêem lere, com um pesado acento
irlandês—. Aluga umas habitações perto da Prefeitura. Sejam e Liam ficaram de
guarda. Até que fui, não tinha chegado.
—Em marcha —disse Fúria, ao tempo que arrojava uns peñiques sobre a mesa.
Disfarçaram-se em largas capas negras, com golas que lhes cobriam até as
orelhas, e colocaram chapéus de asa larga que arrumaram sobre suas testas.
Caminharam lado a lado pelos escuros e úmidos atalhos do porto. Os transeuntes
os fugiam pois suas figuras negras e altas inspiravam terror; semelhavam um
paredão que avançava com a intenção de enrolar tudo a seu passo. Subiram ao
carro e se afastaram a grande velocidade. Aidan, que acompanhava Brian, o chofer
—outro dos Dark Boys—, na boléia lhe indicou onde deter-se. Partiam por uma
rua tranqüila e mau iluminada.
—Esta é a pensão —informou Aidan, e assobiou.
Na outra esquina, apareceram Liam e Sejam e elevaram suas mãos para indicar
que se encontravam bem. Fúria e outros se infiltraram nas sombras de um beco.
Menos de meia hora depois, um homem parou frente à porta da pensão e pinçou
no bolso até tirar uma chave.
—Burke —a voz enrouquecida de Fúria alagou a ruela e afetou até a seus
amigos—. Recorda?
Burke não duvidou: pôs-se a correr. Fúria desenredou as boleadoras de seu cinto
e as jogou nas pernas de seu antigo administrador, que caiu de bruços com um
gemido. Liam e Sejam lhe ataram as mãos e o jogaram no interior do carro.
Não precisaram aplicar muita violência para que Burke falasse. Uns quantos
murros e a visão da faca de Fúria bastaram para confirmar as suspeitas: John Joe
Fitzgerald tinha mandado matar Artemio aproveitando o ciúme e o rancor do
William. Parecia sincero ao assegurar que desconhecia o paradeiro do ilegítimo do
conde de Grossvenor.
—Enviou-me mensagem me ordenando que me escondesse porque você havia
tornado com vida da América do Sul. Depois disso, não soube nada mais dele.
—Como se chama o infiltrado que colocou Fitzgerald entre minha gente? Deve
sabê-lo! —intimidou-o O’Connell.
—Kieran —balbuciou Burke—. Chama-se Kieran, mas desconheço seu
sobrenome.
—Fora, todos! —rugiu Fúria.
O portão da cavalariça onde estava Burke se fechou depois do último Dark Boy, e
o administrador pôs-se a tremer e a balbuciar desculpas.
—Burke —disse Artemio, aprofundando sua voz a propósito—, lembra-te de que
te disse que não queria voltar ou seja de ti ou te degolaria? —o homem não
respondeu; em troca, pôs-se a chorar—. Pois bem —prosseguiu, e se localizou
atrás dele.
Burke tentou girar sobre a cadeira onde o tinham maniatado. Não pôde. Fúria o
sujeitou pelo pescoço e o obrigou a jogar a cabeça para trás. Olharam-se aos
olhos.
—Quão último aprenderá antes de partir para o inferno, Burke, será que
Sebastian de Lacy sempre cumpre suas promessas.
Passou-lhe o fio do facão pelo pescoço e o abriu de lado a lado. O sangue brotou
como de uma fonte, e o homem se convulsionou com os olhos em branco. Artemio
se colocou diante de sua vítima e o observou sangrar-se. Seus companheiros o

364
aguardavam no exterior. Viram-no limpar o fio da arma com minunciosidade.
Surpreendia-os seu sangue-frio e audácia.
—Liam, Brian, lhes faça cargo do cadáver dessa animália. Já sabem como
proceder.
Que Burke não soubesse onde se escondia Fitzgerald significou uma demora que
impacientou Fúria. Fazia dois meses que havia partido de Londres e a saudade
estava minando seus nervos. Queria acabar e logo.
Usaram Kieran para enganar Fitzgerald. Graças aos seguimentos, descobriram
que o mexeriqueiro entregava mensagens a um dono de cantina no Dublín quem,
a sua vez, enviava-os a uma cabana nos subúrbios da cidade de Trim: a casa de
Devona Fitzgerald, a mãe de John Joe. Embora Fúria teria preferido manter à
margem à antiga amante de seu avô, terminou por convencer-se de que qualquer
meio se justificava para aniquilar a esse monstro.
—Ao conde de Grossvenor —disse Blackraven—, não lhe surpreenderá seu relato,
Artemio. Não é nenhum estúpido e, se não nomeou como seu herdeiro ao
Fitzgerald, é porque sabia que, uma vez que lhe anunciasse sua intenção de
convertê-lo no futuro conde, a morte não demoraria para cair sobre ele, já fosse
por causa de uma repentina complicação gástrica ou de uma bala perdida na
reserva de caça.
Ao vê-lo com o semblante decomposto, Fúria se arrependeu de lhe haver exposto
a verdadeira índole do Fitzgerald a Horatio de Lacy; depois de tudo, tratava-se de
seu filho. Temeu que sofresse um colapso; o homem tinha quase oitenta e sete
anos.
—Não se preocupe, Sebastian, estou bem —assegurou, e deu um sorvo ao uísque
que lhe estendeu Blackraven—. Sempre soube que algo funcionava mal com o
John Joe. Sempre suspeitei que ele. Mas não queria ver a realidade porque me
resultava muito dolorosa. Penso em sua mãe, que é uma boa mulher e que adora a
seu filho. Sofrerá.
—Alguém tem que deter esse filho da puta, avô. Quase acaba com a vida de
minha mãe, assassinou Andrew e causou a morte de meu filho.
Ante esta última parte da declaração, o gesto do conde se contraiu como se uma
dor o tivesse atacado de repente. Embora não tinha conhecido ao pequeno
Sebastián, chorou ao inteirar-se de sua morte.
—Ajudarei-te, meu filho. Poremo-lhe um fim a este pesadelo. Desejo que você e
sua esposa vivam em paz e sejam felizes. Não quero que o título se converta em
uma maldição para ti.
Dias mais tarde, Horatio de Lacy bateu na porta da casa de Devona. A mulher
não ocultou seu assombro. Fazia tempo que o conde não se dignava a visitá-la;
limitava-se a lhe enviar a mesada com um empregado de Grossvenor Manor sem
se preocupar de lhe escrever umas linhas. O conde disfarçou os nervos fingindo
irritação.
—O que te ocorre? —perguntou-lhe Devona.
—Estou furioso com meu neto Sebastian. O muito imbecil jogou pela amurada os
planos que tinha para ele. Acaba de retornar de uma viagem a América do Sul
desposado com uma nativa dessas terras selvagens. Sangue índio corre pelas veias
da moça! Causou-me horror quando a conheci. Pele escura, olhos rasgados,
maneiras ásperos. Não entendo o que lhe passou pela mente a meu neto quando
decidiu desposá-la. Para pior, é papista.
—Sinto-o —sussurrou a mulher.

365
—Decidi que Sebastian não se converterá no conde a minha morte. Não posso
permitir que uma mulher de semelhante estirpe seja chamada condessa de
Grossvenor e presida a mesa que por séculos presidiram damas da mais refinada
linhagem, algumas aparentadas com reis e príncipes. Tampouco admitirei que o
filho dessa mulher, um mestiço, converta-se no décimo segundo conde de
Grossvenor. Onde está John Joe?
—Não sei, Horatio. Está de viagem, no continente, conforme me informou.
—De viagem? No continente? Justo quando mais o necessito? É imperioso que
fale com ele. Preciso falar com ele. Não viverei para sempre, Devona, e
ultimamente não me hei sentido bem —seu olhar se suavizou e a tirou da mão
para confessar —:nomearei a seu filho como meu herdeiro.
—OH! Seriamente, Horatio?
—Sim. Depois de tudo, ele se manteve a meu lado toda a vida. Abriu caminho por
si só e alcançou as mais altas esferas. É meu orgulho —as lágrimas de Devona o
machucaram—. Não chore, mulher! Não há por que chorar. Acaso a notícia não te
causa alegria?
—Uma imensa alegria! John Joe estará feliz quando o disser.
—Faz-o logo, Devona, e lhe peça que vá ver-me. Preciso arrumar certas questões
com ele. Não farei mudança algum em meu testamento até não vê-lo.
—OH, sim! Farei-o. Apenas me visite, contarei-lhe esta maravilhosa notícia.
***
Fitzgerald leu a nota de sua mãe uma segunda vez. O conde de Grossvenor
decidiu te nomear seu herdeiro. Ao princípio não acreditou e farejou uma
armadilha. Entretanto, o que motivava a mudança no conde não carecia de
verossimilhança. Seus informantes lhe asseguravam que de Lacy tinha chegado a
Londres em companhia de uma jovem com evidentes rasgos espanhóis que,
conforme se fofocava, era sua esposa. Sorriu ao imaginar a impressão de Horatio
ao ver a aristocrática Elisabetta d'Adda trocada por uma plebéia daquelas terras
perdidas da mão de Deus. Sim, a motivação do conde era plausível.
John Joe não queria perder tempo, embora tampouco desejava arriscar-se a
aparecer a cabeça de sua toca. Se o inútil do William não tivesse falhado,
Sebastian de Lacy não estaria caçando-o como a uma raposa. Supunha-se que
William era famoso por sua pontaria. Deveu supor que, por muito bom que fosse
com as armas de fogo, esse covarde o jogaria tudo a perder.
Antes de enviar uma resposta a Devona, John Joe decidiu esperar. O instinto,
que tantas vezes lhe tinha salvado a pele, dizia-lhe que não se aventurasse ainda.
Poucos dias mais tarde, o alcoviteiro que Burke tinha infiltrado entre as filas dos
Dark Boys lhe enviou uma mensagem lhe comunicando que Sebastian de Lacy
tinha recebido uma carta de Londres na qual sua prima, a condessa de Stoneville,
insistia-o a retornar já que sua esposa estava gravemente doente. Sebastian de
Lacy está como louco e decidiu empreender a viagem a Londres hoje mesmo. Dois
dias depois, chegou a confirmação de seu espião no porto do Cork: de Lacy e
Blackraven haviam zarpado rumo a Londres.
Mãe, informe a sua excelência que me apresentarei em Grossvenor Manor na
quarta-feira 20 de junho pela manhã.
***
Despediria Winthorp, o mordomo de Grossvenor Manor, quando se fizesse com o
título. Esse velho enrijecido sempre o tinha considerado um bastardo e tratado
como tal.

366
—Adiante, senhor Fitzgerald —lhe indicou o servente—. Sua excelência lhe unirá
em um momento. Posso lhe oferecer algo de beber enquanto o aguarda?
—Não.
Winthorp fechou a porta e o deixou sozinho. Passeou o olhar pela majestosa
biblioteca, que se continuava na planta superior e que continha milhares de
volumes, muitos deles incunábulos64. "E pensar que serei dono de tudo isto",
desfrutou-se. Um zumbido lhe causou cócegas na orelha. Caminhou para trás ao
ver a faca que ainda vibrava parecido na coluna da biblioteca. Deu um giro
brusco. Reconheceu-o pelo emplastro negro, e se estremeceu. Sebastian de Lacy o
apontava com uma pistola.
—Que diabo?
—Tem que pagar pela morte de meu filho —avançou e lhe apoiou o canhão na
frente—. Dá meia volta e caminha.
Ao alcançar o pórtico da entrada, vários moços —os Dark Boys, conjeturou— o
ataram de pés e mãos e o deitaram no interior de um carro. Fúria saltou sobre a
boléia e ordenou empreender a marcha. Não o assassinariam em Grossvenor
Manor, essa tinha sido a condição de Horatio de Lacy.
Detiveram-se uma hora mais tarde, na frondosidade de um bosque. Baixaram
Fitzgerald, que se debateu inclusive com os dentes, e o jogaram no pé de um
carvalho.
—Pagará por tantas mortes —lhe anunciou Fúria—, pela de meu filho, pela de
meu primo Andrew e pela de quão irlandeses pereceram por causa de sua traição.
—Do que está falando? A que diabo te refere? Não assassinei a ninguém!
Um moço lhe atou o extremo de uma corda nos tornozelos. Fúria saltou sobre os
arreios de um cavalo branco de elevada imponente e, de pé sobre o lombo do
animal, lançou o outro extremo da corda sobre um ramo que se achava a
aproximadamente doze pés de altura. Entre dois moços começaram a devorar.
—O que fazem! Baixem-me! Baixem-me! Estão cometendo um engano!
O sangue lhe abandonava o corpo e lhe acumulava na cabeça. Sentiu as pernas
frias, e o atacaram náuseas e um batimento do coração feroz nas têmporas. As
imagens dos homens que o circundavam se deixavam em tanto o subiam;
começavam a apagar-se.
—Assim morreu meu filho: desnucado.
Girou o rosto com grande esforço e viu Sebastian de Lacy, ainda de pé sobre o
cavalo, que empunhava uma faca de grandes dimensões e movia o braço para
cortar a corda.
—Não! —alcançou a exclamar antes de iniciar a queda livre cabeça abaixo.
Todos, inclusive Fitzgerald, escutaram o som como de um ramo que se partia
quando a cabeça deu contra a pedra plaina colocada aos pés da árvore.
***
Rafaela tomou assento frente ao espelho da penteadeira e contemplou sua
imagem. Melody tinha razão: seu semblante tinha recuperado o aspecto viçoso; as
linhas enxutas se arredondaram e as olheiras, desaparecido; o contorno de seus
olhos tinham uma tonalidade esbranquiçada que ressaltava o verde da íris e o
negro das pestanas. Tinha aumentado umas quantas libras, e seus seios
transbordavam do decote da camisola bastante escandalosa que Melody a tinha

64
Livros impressos.

367
convencido de comprar. Desejou que Artemio a visse nesse instante em que se
sentia formosa. Embora sempre lhe dizia que era bonita, depois de conhecer
Elisabetta d'Adda, Rafaela perdeu a confiança, julgava-se feia e se perguntava se
ele as compararia.
Tomou a escova de marfim adquirido dias atrás em uma loja da rua Bond e o
passou por sua larga cabeleira escura, aplicando força sobre o couro cabeludo que
estava tenso. Ela estava tensa. Face aos dias maravilhosos que compartilhava
junto com Melody e sua família e a seu bom estado de saúde —não tinha náuseas
matinais nem se cansava—, uma e outra vez voltava para tema de sua
preocupação: Artemio e a viagem à a Irlanda. Tinham transcorrido quase três
meses da partida, e não sabiam nada deles; nem Blackraven nem Fúria tinham
dado sinais de vida. Melody não parecia ansiosa.
—Tive que controlar a ansiedade no que se refere a Roger —lhe confiou—. É
muito livre e independente para lhe pedir que fique em casa todo o dia a bom
resguardo. Suponho que terá que fazer o mesmo com meu primo, querida Rafaela.
Rafaela suspeitou que nunca conseguiria permanecer tranqüila se Fúria não se
achava a seu lado, a bom resguardo. Já tinham padecido muitas separações e
tinham bebido muitos goles amargos. Embora devesse admitir que, durante esses
meses como hóspede em Blackraven Hall, tinham existido momentos em que
havia se esquecido de tudo e desfrutado como uma menina.
Melody era uma excelente anfitriã além de uma íntima amiga. Conhecia Londres
como a palma de sua mão e, desde que despertavam, não muito cedo, até que se
retiravam a descansar, dedicavam-se a percorrê-la, das zonas mais conhecidos e
aristocratas até as mais populares e pitorescas, e a divertir-se. A Rafaela a
escandalizava gastar tanto dinheiro. Melody a obrigava a confeccionar-se vestidos
de festa, trajes de amanhã, de montar, de tomar o chá, roupa interior, luvas de
encaixe, de raso e de veludo, e chapéus, no de uma costureira francesa que, dizia-
se, tinha servido à imperatriz Josefina e por isso cobrava um olho do rosto; um
vestido de drogue floreado com laço manchego e decote e mangas, lhe havia
custado trezentas e sessenta libras; e uma camisola em seda rosada com bordado
em pérolas, cento e oitenta. Também mandaram confeccionar batas e vestidos
soltos para quando a gravidez não lhe permitisse usar os trajes entalhados.
—Rafaela —se impacientava Melody—, tem que te acostumar à idéia de que
Artemio Fúria já não é o gaúcho que conheceu. Agora é um nobre irlandês de
imensa fortuna que poderia viver três vidas amplamente e assim ter suficiente
para que lhe herdem seus filhos. Esquece que não hesitou em estender a carte
blanche que lhe pedi para ti?
A carte blanche (carta branca, em francês) de Rafaela, o documento que toda
mulher pretendia lhe arrancar ao marido ou ao amante, rezava que as faturas em
nome de Rafaela de Lacy se cursariam aos bancos N. M. Rothschild & Sons no
edifício New Court situado no St. Swithin's Lañe, onde procederiam às liquidações.
Continuando, no lado direito, achava-se a assinatura de Fúria e, mais abaixo,
sobre uma gota de lacre, seu anel, o do dragão confaloniero. Artemio lhe tinha
explicado o significado das seções do escudo, e ela experimentava um profundo
orgulho da origem de seu marido. Pensou em Rómulo, em quanto teria presumido
de uma filha condessa, aparentada com uma das casas mais antigas da Inglaterra.
Sorriu ante a ironia de que seu pai tivesse rechaçado a um gaúcho que, em
realidade, escondia a um nobre irlandês. De todos os modos, disse-se, para ela
seu marido sempre seria Artemio Fúria, um gaúcho. Bastava apreciar seu aspecto

368
e lhe olhar com fixidez o único olho para saber que um substrato primitivo,
carente de regras e códigos, bulia sob o traçado elegante. Ela conhecia essa
essência selvagem; ele sempre a liberava enquanto faziam amor.
Suspirou e depositou a escova sobre a penteadeira. Na verdade, estava gastando
muitíssimo dinheiro e, sem dúvida, divertindo-se; entretanto, nada a satisfazia de
tudo porque se achava inquieta. Não queria pensar em que Fúria corria perigo; era
um homem curtido, criado nas tolderías dos ranqueles, avisado e inteligente, dono
de um instinto que em ocasiões a Rafaela a fazia pensar no de um animal; seus
sentidos, em especial o do olfato e o da visão, pareciam os de Quinto. Deus o
protegeria e o preservaria, ela o tinha suplicado. Fúria retornaria a seus braços em
pouco tempo.
"Sim, em pouco tempo", animou-se. Estava impaciente por conhecer seu novo
lar, na Irlanda. Já não lhe resultavam atrativos os bailes no Almack's Assembly
Rooms nem as reuniões nas mansões dos aristocratas, que a recebiam por haver
aparentado com a condessa de Stoneville, o duque do Guermeaux e o conde de
Grossvenor. Ninguém lhe perdoava não ter nascido inglesa nem nobre. Rafaela o
ignorava, mas era o tema de conversação da sociedade londrina. Como se tinha
esperado a uma mulher de pele morena traços de nativa, sobressaltavam a
qualidade alabastrina de sua pele e a cor de seus olhos, aos que alguns senhores
qualificavam de "exóticos". As senhoras lhe invejavam seu matrimônio com o
enigmático futuro conde de Grossvenor, de quem se murmurava que conhecia
práticas sexuais aprendidas entre os nativos do sul que chegavam a provocar
vários orgasmos a uma mulher no mesmo coito. Se os cavalheiros se mostravam
dispostos a admitir à intrusa sul-americana, as damas, para desprestigiá-la,
começavam a imitá-la falar em inglês ou a dançar. Na verdade, a pronúncia de
Rafaela não era boa e ainda não dominava os passos da equipe nem do
schottische.
Rafaela estava cansada de simular alegria e forçar sorrisos, de visitar o British
Museum, os jardins Vauxhall, passear pelo Hyde Park ou a rua Piccadilly, gastar
fortunas em lojas, tomar o chá no Fortnum & Manson e pensar todo o tempo em
Sebastián e em Artemio. Queria a seu marido de volta. Ele conjuraria a tristeza.
Como cada noite, trançou o cabelo e orvalhou o pescoço e o decote com seu
perfume Amor porque dessa maneira tinha a impressão de que dormia entre os
braços de Fúria. Meteu-se sob os lençóis e fechou os olhos.

O pajem de guarda se sobressaltou para ouvir vozes no vestíbulo. Em seguida


reconheceu a de seu senhor, o conde de Stoneville, e se apressou a lhe iluminar o
caminho.
—Boa noite, Peter —saudou Roger.
—Bem-vindo a casa, sua excelência. Boa noite, senhor de Lacy.
—Boa noite, Peter.
—A senhora condessa se encontra em casa —perguntou Roger—, assistiu a
algum evento?
Artemio sentiu um apertão no estômago ante a possibilidade de que Rafaela não
se achasse em Blackraven Hall para recebê-lo. O alívio o reconfortou como uma
quebra de onda de ar fresco quando o servente disse que tanto a senhora

369
condessa como a senhora de Lacy se retiraram cedo a dormir. Blackraven o olhou
no rosto e sorriu.
—Acompanha-me à cozinha por um bocado ou a impaciência te tirou até a fome?
—por causa da hesitação de Fúria, Roger acrescentou—: Querido Artemio, vamos
comer algo. De igual modo terá que esperar até manhã para exercer seus direitos
de marido. A menos que pense interromper o sonho de sua jovem esposa...
—Até parece! —burlou-se Fúria—. Como se não planejasse despertar a minha
prima assim que tenha cruzado a soleira de seu dormitório.
Blackraven se limitou a rir e lhe indicou o caminho à cozinha, onde Peter lhes
esquentou as sobras do jantar e lhes serviu um calva do65.
—No que pensa? —interessou-se Roger.
—No padre Ciríaco. Ele condena a vingança.
Blackraven se sacudiu de ombros e empregou um acento pragmático ao dizer:
—Sei que estima ao padre Ciríaco, mas o que sabem os padres do mundo real?
Além disso, vingança ou não, Artemio, tinha que acabar com esse filho de puta
antes de que ele acabasse contigo.
—Não lamento nada, Roger. Não estou arrependido de ter acabado com esse par
de filhos da mãe. É um sensação boa. Quer dizer, sinto-me bem por havê-lo feito, e
isso é o que o padre Ciríaco condenaria especialmente. Mas o devia a meu filho, e
me importa uma merda se for ao inferno por isso. Ele morreu por minha causa e
eu o devia —insistiu.
Peter iluminou as escadas enquanto se dirigiam a seus dormitórios e indicou a
Fúria onde se encontrava o da senhora de Lacy. Abriu a porta com delicadeza e
entrou. O quarto se achava às escuras. Usou o isqueiro para se localizar-se. Viu
um castiçal sobre a penteadeira e a acendeu. Aproximou-se da cama. A garganta
lhe fechou e uma intensa emoção lhe arrepiou a pele das pernas quando descobriu
a Rafaela. Dormia. Sua placidez o apaziguou, sua fragrância o envolveu. Deixou
cair as pálpebras e inspirou profundamente. O perfume Amor se suspendia sobre
ela, e o seduzia, tentava-o como uma onda, arrastava-o para a cama. Estirou a
mão e a sustentou a uma polegada do ventre de Rafaela, onde dormia seu filho.
Ficou prendado do suave movimento de ascensão e descida de seu peito. Acaso
seus seios tinham crescido? Aproximou as palmas da mão. Estavam enormes.
Franziu o sobrecenho quando o assaltou a ereção. Não despertaria para saciar sua
concupiscência, não quando estava sossegada. Sabia que, da morte de Sebastián,
a Rafaela havia dificuldades de conciliar o sonho. Deixá-la-ia em paz. "Amanhã",
pensou.
Tirou a roupa, exceto as calças, e se afastou em direção ao móvel onde se
achavam a bacia e o aguamanil. Lavou os dentes e realizou as abluções. Em tanto
se secava o torso, escutou que Rafaela se reanimava na cama. Viu-a incorporar-se,
meio dormida, passar uma mão pelos olhos e fixar a vista em sua direção.
—Quem está aí?
—Seu homem, senhora Fúria.
A voz de contrabaixo de Artemio encheu o dormitório. Rafaela soltou um gemido
entre angustiado e feliz. Apartou o cobertor, saltou da cama e correu para ele,

65
Um tipo de bebida alcoólica.

370
cambaleando-se como um ébrio. Artemio a aguardou junto à cômoda e a recebeu
em seus braços, e a esmagou contra seu peito. Seus lábios descenderam sobre os
dela e os devoraram; sua língua lhe encheu a cavidade da boca com uma
destemperança que falava do império de sua necessidade; tremia e respirava de
modo agitado. Apartou-se para lhe permitir inspirar; escutou-a ofegar, e não
soube se o fazia por prazer ou por que quase a tinha afogado com seu frenesi.
Afundou o nariz detrás da orelha de Rafaela, enlouquecido pelo aroma de seu
perfume, enquanto lhe baixava o decote para despir seus seios. Com a língua,
imprimiu-lhe uma carícia quente, molhada e lenta, que nasceu no oco formado na
base do pescoço e acabou em seu mamilo; sobre o outro trabalhavam seus dedos,
apertando-o, fazendo-o girar. Rafaela ofegava e se retorcia, afligida por um prazer
que também encerrava um pouco de dor.
—Adoro-te, Rafaela —o escutou sussurrar, e, quando seus lábios voltaram a
encontrar-se, ele repetiu, com uma ansiedade que a transpassou como uma
flecha—: Amo-te, amo-te, amo-te.
As mãos de Rafaela se moveram com destreza sobre a braguilha dos calções de
Artemio. Inclinou-se para baixar-lhe. Ao subir, deteve-se frente a sua ereção. O
sangue tinha inflado o membro de seu marido até convertê-lo em um órgão
enorme, atrativo e lhe atemorizem de uma vez; sua cabeça, da cor das amoras,
pulsava e secretava umas gotas brilhantes. Introduziu-a em sua boca e a sugou. O
estremecimento de Fúria fez tremer a cômoda. Rafaela escutou o ruído da bacia ao
entrechocar com o ferro. O gemido grave e áspero dele, como se sofresse, esticou-
lhe os músculos e lhe arrepiou a pele. Os dedos de Fúria se enredaram em seu
cabelo, e a empurraram para obrigá-la a engolir seu pênis por completo.
—OH, sim, meu amor, sim! Não te detenha!
Com movimentos rudes, pô-la de pé e lhe tirou a camisola e os calções.
Levantou-a pelas axilas e a sentou no bordo da cômoda. Separou-lhe as pernas e
se deslizou dentro dela. Existiu um instante em que pensou que acabaria logo que
entrasse. Rafaela vislumbrou a amarga careta e a expressão distorcida antes que
Fúria jogasse a cabeça para trás e se congelasse nessa postura. Pouco a pouco,
ganhou domínio, e soltou o ar ao tempo que sua cabeça descendia. Olharam-se
fixamente durante um longo momento. Nenhum falou. Rafaela enterrou a mão
dentro dos fartos cabelos de Fúria e o buscou para beijá-lo. Ele a aproximou do
bordo da cômoda e entrou e saiu dela, entrou e saiu, uma e outra vez; isso parecia
lhe agradar. Quase sem fôlego, tragando-as sílabas, Artemio lhe perguntou:
—Está bem? Pode me sentir dentro de ti?
Rafaela não pôde responder. A maré de gozo que se originava em algum ponto
entre suas pernas subiu até transformar-se em uma explosão de luz. Aferrou-se a
Fúria com ardor. Pasmada de prazer, alcançou a perceber a risada de seu marido,
até que se cortou abruptamente quando lhe sobreveio o orgasmo. Sentiu-o
afundar-se ainda mais nela, e tremer e sacudir-se como se o atacassem severas
convulsões. Por fim, descansou a frente em seu ombro.
—Rafaela... Por Deus.
Os dois permaneceram em uma estranha paralisia, contemplando-se aos olhos.
Embora tivesse imaginado que seria assim depois da angústia e a saudade desses
três meses, Fúria não saía de seu assombro. Sustentou-a pelas nádegas, ordenou-
lhe que lhe rodeasse a cintura com as pernas e a levou a cama.

371
Artemio a observava, emocionado. Tinham seguido amando-se até a extenuação,
de um modo brusco ao princípio, quando ele a depositou sobre o colchão e, de pé
junto ao bordo, acomodou as panturrilhas dela sobre os ombros, levantou-a pelas
nádegas e se inclinou para penetrá-la com uma lenta investida. Rafaela terminou
com o joelho perto do rosto, uma mão obstinada à nuca de seu marido e a outra,
ao lençol. Houve curtos intervalos de sonho para recomeçar depois. Ela percebia
uma necessidade em Fúria que ia mais à frente do desejo sexual, e lhe permitia
que seguisse tomando-a até que encontrasse a paz. Esta chegou ao amanhecer.
Ele se tinha recostado junto a ela e, enquanto lhe acariciava o ventre, estudava-a.
—Tranqüilize-me —sussurrou Rafaela—. Diga-me algo que acabe com a sede
destes três meses sem ti.
—Seu novo lar te espera na Irlanda. Em poucos dias, partiremos para lá.
Cobriu-lhe o rosto com ambas as mãos e lhe suplicou:
—Artemio, me diga que seremos felizes.
—Juro-lhe isso. Tudo acabou, meu amor. Nosso filho descansa em paz.
Rafaela chorou quedamente entre os braços de seu marido. Ao serenar-se, falou-
lhe com firmeza.
—Permiti-te partir porque sabia que, enquanto não vingasse a morte de
Sebastián, não viveria em paz. Agora quero que me prometa que não voltaremos a
nos separar. Imagina o que foram estes três meses longe de ti, sem notícias,
sabendo que sua vida corria perigo? Revivi a desolação e a angústia dos nove anos
em que despertava pensando: "Hoje possivelmente seja o dia em que Artemio
venha por mim".
—Rafaela —suplicou ele, com os lábios sobre sua testa—. Basta, não diga mais,
destroça-me. Juro-te pela memória de Sebastián que jamais te separarei de meu
lado, que não voltarei a consentir uma separação.
—Sempre juntos, Artemio.
—Sempre juntos, minha Rafaela.

372
Epílogo

Irlanda, Grossvenor Manor. Verão de 1826

O silêncio da grande mansão não o perturbava; não se relacionava com a solidão


a não ser com a noite, com o descanso de sua família, com o momento de paz que
compartilhava com a Rafaela. Ao dia seguinte, as habitações cobrariam vida e as
vozes de seus seres amados o alcançariam no escritório, onde trabalharia grande
parte do dia, sorrindo cada tanto ao escutar à pequena Emerald cantar ou a
Mimita tratar de imitá-la ou ao Horatio chorar para que sua mãe o higienizasse ou
alimentasse.
Como cada noite, caminhou pelo comprido corredor da planta onde se achavam
as habitações de seus filhos e de Mimita. Não negava que esse hábito tinha
matizes de paranóia. Embora Rafaela, a instrutora e a babá lhe assegurassem que
seus filhos dormiam em paz, ele precisava comprová-lo para conciliar o sonho.
Temia que nunca superaria do todo a perda do Sebastián, e que Emerald e Horatio
deveriam lutar com um pai obcecado pela segurança de seus filhos. Rafaela se
mostrava mais proprietária de si.
Entrou no quarto de Mimita. Dormia com sua boneca sob o rosto. Sempre seria
uma menina apesar de que já tinha a regra. Sua doce menina. Roçou-lhe a frente
e pensou que sua felicidade a devia a essa criatura imperfeita por fora e perfeita
por dentro, que tinha chamado sua atenção aquele dia da mercearia de
Caricaburu. Cobriu-a com o lençol somente; era uma noite calorosa.
Caminhou em pontas de pé para não despertar à babá de Horatio. Sorriu ao ver
seu filho no berço, o décimo segundo conde de Grossvenor. Tinha uma estranha
maneira de dormir: com o buxo66 para baixo, com os joelhos flexionados sob o
peito e o bumbum67 parado. Beijou-lhe a face gordinha e saiu.
Deixava para o final a revisão Emerald; Emmie, como a chamavam. Apoiou o
candelabro sobre uma mesa e se aproximou do leito de sua filha. Não pôde conter-
se; apartou o lençol e tomou entre seus braços. A menina se queixou, dormida, e,
quando Fúria lhe disse ao ouvido: "It's daddy", tranqüilizou-se em seguida.
Artemio se acomodou em um sofá e sustentou Emmíe como a um bebê. Tinha
amado intensamente Sebastián e adorava a seu pequeno Horatio; entretanto,
resultava-lhe difícil explicar o que essa menina lhe inspirava ou o vínculo que os
unia. Não tinha acreditado que pudesse experimentar por alguém um sentimento
tão incomensurável.

66
A autora menciona boja – bucho.
67
A autora menciona colita – cauda. Penso que é o bumbum do neném.

373
Sorriu. Resultava incomum vê-la tranqüila. Possuía uma energia inesgotável; era
alegre e acordada; ávida e simpática. Apesar de contar com cinco anos, dirigia a
Mimita melhor que ninguém, e tratava a seu irmão como a suas bonecas. Quinto,
que a tinha venerado, tinha-lhe servido de cavalo e de companheiro de quarto até
uma manhã do ano anterior, quando, vencido pelos anos, o puma decidiu não
despertar. Rafaela dispôs que o enterrassem no jardim de Grossvenor Manor, ao
pé de sua árvore favorita, o ocozol. Uma lápide de madeira rezava: A ti devo a vida
de meu amor. Nunca te esquecerei, velho amigo. Sempre estará comigo, em meu
jardim.
Fúria tocou o cabelo de sua filha, tão similar ao de sua avó, da sua tia Edwina, e,
embora tentasse cancelar as imagens que ameaçavam perturbar a serenidade, não
o obteve. Apertou-a contra seu peito esperando que o tremor cedesse. Ocorria-lhe
cada vez que evocava o momento em que quase tinha perdido a sua Emmie, seis
meses atrás.

Roger, Melody e seus dois filhos menores passavam uma temporada em


Grossvenor Manor. Como Dugan, o chefe de jardineiros, assegurava que o lago se
congelou e o gelo estava firme, decidiram levar aos meninos a patinar. Tia Pola e
Rafaela, grávida de Horatio, tinham preferido permanecer junto ao lar no
escritório.
—Não te afaste Emmie - lhe pediu Fúria.
Mimita, sempre medrosa, não lhe soltava a mão. Sua filha, em troca, que
patinava com destreza apesar de sua curta idade, distanciava-se para o centro do
lago.
Melody soltou um alarido, Roger gritou o nome de Emerald e Artemio cessou de
respirar quando a viram desaparecer em um oco. Deu-lhe a impressão de que
tomava horas alcançar o local aonde tinha cansado sua filha. Não sabia o que
fazia, nem sequer se dava conta de que a chamava de contínuo. Colocava o braço
até o ombro tratando de encontrá-la. A água estava turva e lotada de plantas
aquáticas, e resultava impossível ver. O gelo se tingiu de vermelho enquanto seus
punhos atiravam golpes para parti-lo, alargar o oco e poder inundar-se. Não a
perderia. Não a ela. "Meu Deus, por favor, devolva-me isso. Depois, Melody lhe
disse que tinha rezado em voz alta e que repetia "Devolva-me, várias vezes. Nesse
instante, no qual seu coração e seus pulmões pareciam que se detivera, ele só
pensava em que não retornaria a casa com o corpo de Emmie para pô-la nos
braços de sua mãe. Não retornaria. Arrebatar-lhe-ia a pistola que, sabia, Roger
sempre escondia em seu barragán e se voaria a tampa dos miolos.
Emmie emergiu do oco e caiu em seus braços como se o lago mesmo a tivesse
expulso. Estava gelada e não respirava. Pegou-a a seu peito e correu em direção ao
parque; nunca soube como conseguiu cruzar a superfície de gelo sem escorregar e
cair de bruços. Durante essa carreira se desesperada, em que sua filha deitada
entre seus braços meio morta, lhe apresentou o rosto do padre Ciríaco, falecido no
ano vinte e quatro. "Recorda, filho." Sua voz soou tão clara como se o tivesse em
frente. "Recorda o capítulo quatro, do Segundo Livro de Reis, versículos trinta e dois
a trinta e cinco." A claridade o cegou. Suas pernas seguiram correndo de maneira
mecânica; sua mente, em troca, tinha-o conduzido de retorno ao convento da

374
Mercê, ao momento em que dois sacerdotes tiravam Serapio, médio afogado, da
cisterna. "Não respira!", horrorizou-se o pai Cosme. Ciríaco, que conservava a
calma, recostou-se sobre o corpo do negro e lhe soprou sete vezes na boca, como o
tinha feito o profeta Elíseo para ressuscitar a um bebê morto.
Blackraven estendeu seu enorme capote na grama, e Artemio acomodou ao Emmie
sobre ele. Tirou a jaqueta empapada, em tanto Melody, ajudada por seu filho
Arthur, tirava-lhe o casaco à menina. Fúria se recostou sobre sua filha. Sentiu que
alguém o cobria com algo. Abriu-lhe a boca azulada e soprou dentro dela sete
vezes, enquanto, com a mão sob as roupas molhadas, friccionava-lhe o peito
porque acabava de recordar que desse modo Rafaela havia trazido para a vida
Mimita.
Emmie tossiu e cuspiu água. Fúria a envolveu no casaco de Blackraven e correu
a casa. Dugan já tinha enviado pelo médico.
—Tem que fazê-la entrar em calor pouco a pouco-lhe explicou Roger, em tanto
subiam de três em três os degraus do pórtico—. Espera para inundá-la em água
quente!
Irromperam na casa como um furacão. Artemio chamou gritos ao mordomo,
pediu que preparassem a tina, mantas, tijolos quentes. Rafaela e tia Pola correram
ao vestíbulo e ficaram de uma peça ao ver o Roger, Melody e Artemio dirigir-se à
planta alta com Emmie em braços. Rafaela se precipitou atrás deles.
—Caiu no lago-explicou Melody, chorando.
—Dispa-se, Rafaela! —exigiu-lhe Artemio—. Emmie necessita seu calor.
Blackraven e Melody saíram do quarto. Artemio, Rafaela e a menina ficaram
sozinhos.
—Procura meu ungüento de cânfora! Na primeira gaveta do boudoir.
Fúria o entregou, e Rafaela tomou uma porção do linimento. Com a menina
debaixo dela, cobrindo-a com as pernas e o torso, sovou-lhe a pele com enérgicas
fricções, melando-se ela no processo de tão pega que se mantinha ao corpo do
Emmie. Fúria envolveu a cabeça de sua filha com uma toalha seca e lhe
massageou as mãos até lhes imprimir uma cor vermelha. Winthorp bateu na
porta. Quatro domésticas entraram com o solicitado. Várias mantas caíram sobre
a Rafaela e a pequena, e três tijolos ao vermelho, envoltos em grosas panos de
chão, foram localizados ao pé da cama. Avivaram-se as chamas moribundas no lar
e se arrastou a enorme tina de cobre do quarto contiguo. Pouco a pouco, a face de
Emmie se tingiu de rubor, seus lábios abandonaram a tonalidade azulada e
cessou de tremer; sua respiração já não era curta nem superficial a não ser mais
regular e profunda.
O alívio afrouxou as pernas, e Fúria caiu de joelhos junto à cabeceira e
descansou a frente no braço de sua mulher.
—Não sei como está viva-admitiu—. Esteve vários minutos sob a água.
—Artemio, te tire essas roupas frias e molhadas. Por favor, não quero que
adoeça.
Fúria voltou meio nu à cama ao escutar Rafaela saudar a menina.
—Olá, meu tesouro.
Emmie abria seus olhos turquesa de modo desmesurado, como se não
reconhecesse os rostos que a circundavam.
—Olá, carinho-disse Fúria, e se recostou junto a ela, por fora da pilha de
cobertores. Beijou-a na testa, uma e outra vez, e nas bochechas gordinhas e nas
mãozinhas.

375
Emmie se pôs a chorar com um som estranho, como áspero, e se aferrou ao
pescoço de seu pai.
—Shhh, carinho-a apaziguou Fúria—. Não chore, meu amor. Já passou. Já está
bem, com mamãe e papai. Por que chora? O que te angustia, meu amor? —a
menina não respondeu.
Bateram na porta. Fúria se levantou e foi ver de quem se tratava. O doutor
Merryweather acabava de chegar. O médico esperou uns minutos no corredor até
que Rafaela e Fúria se arrumassem. Depois da revisão, Merryweather admitiu seu
desconcerto: a menina tinha transcorrido muitos minutos sob a água gelada para
estar viva. Ainda restava esperar que não se revelassem danos cerebrais.
Recomendou um banho de água quente, sorvos de caldo e descanso. Retornaria ao
dia seguinte para estudar a evolução da paciente.
Emmie ainda seguia chocada e silenciosa quando sua mamãe e sua tia Melody a
acomodaram na tina e começaram a lhe acariciar o corpo com umas esponjas
marinhas; falavam-lhe em voz baixa; a menina só as olhava, às vezes jogava
olhadas a seu pai e a seu tio Roger, que, apartados, analisavam a estranha
maneira em que Emmie tinha emerso pelo buraco.
Depois do banho e embainhada em uma camisola e em largas meias de lã,
Emmie retornou à cama de seus pais.
—Está cômoda, carinho? —perguntou-lhe Melody, e a menina assentiu.
Tratava-se do primeiro signo de compreensão. Os semblantes tensos dos adultos
se relaxaram.
—Emmie, recorda que passou? —perguntou-lhe Artemio, e a menina voltou a
assentir—. Anda, sabe o que te ocorreu.
—Caí-me no lago-falou com fluidez, sem duvidar.
—Como saiu da água, carinho?
—Meu irmão Sebastián me tirou.
Rafaela levou uma mão à boca e caminhou para trás. Melody afogou um soluço e
sujeitou o antebraço de Roger. O rosto de Fúria empalideceu de maneira súbita.
Ninguém tinha falado com Emmie a respeito de Sebastián, ela desconhecia a
existência de seu irmão mais velho. Por outra parte, como o serviço doméstico não
estava a par da história do primogênito do conde, resultava impossível que a
menina o tivesse sabido por meio de algum servente indiscreto.
—Sebastián te tirou? —a voz de Roger quebrou o mutismo.
—Sim, tirou-me da mão e me disse: "por aqui, Emmie".
—Como sabe que era seu irmão Sebastián? —insistiu Roger.
—Porque ele me disse isso. Parece-se com papai. Mamãe, por que chora papai?
Fúria varreu suas lágrimas com o dorso da mão e sorriu a sua filha.
—Não choro, carinho. Estou bem.
—Antes de me ajudar a sair, Sebastián me disse: "lhe diga a papai que o quero".
Fúria deu meia volta e abandonou o quarto. Emmie ficou a cargo de Roger e do
Melody quando Rafaela saiu atrás de seu marido. Achou-o no corredor, apoiado
contra a parede, mordendo o punho machucado para não romper em gritos
amargos e assustar a menina. Rafaela o abraçou, e a contenção não foi possível.
Fúria afrouxou o abraço em torno de sua filha e a observou dormir. Não a tinham
perdido, e, embora sempre ficasse o mistério sem resolver, a Artemio gostava de
pensar que um anjo chamado Sebastián a tinha salvado pelo bem da pequena e,
sobre tudo, o de seus pais. Também gostava de pensar que Sebastián ainda
permanecia entre eles.

376
Ao outro dia do acidente, resolveu o mistério do oco no lago. Fúria, Blackraven e
Dugan comprovaram que tinha sido aberto pela mão do homem.
—Bom dia, excelência-o velho Dugan entrou no escritório esmagando a boina e
sem levantar a vista—. Como amanheceu a menina Emerald?
—Muito bem, Dugan. O que averiguaste?
—Ontem, Eamonn e Gael viram o Eoin, o novo cavalariço, assando umas trutas
no bosque. Supomos que foi ele quem, durante a noite anterior, abriu o buraco no
gelo para pescá-las.
O lago de Grossvenor Manor adquiriu fama na região pelas excelentes trutas que
ali se criavam. Fúria tinha introduzido sua cria tempo atrás, com grande êxito, e
penava com severidade a pesca furtiva pois atentava contra o ciclo de reprodução
dos peixes. Aos arrendatários de Grossvenor Manor lhes entregavam várias trutas
por família ao começo da época de pesca.
—Onde se encontra o novo cavalariço?
—Está em sua hora de descanso, excelência. Dorme.
Fúria abandonou seu escritório e caminhou para um armário onde guardava as
armas. Tomou uma escopeta de dois canhões.
—Leve-me com o tal Eoin.
Eoin levantou as pálpebras e descobriu algo escuro sobre a ponte de seu nariz.
Tentou apartá-lo, como se tratasse de uma mosca, e a coisa se enterrou até lhe
arrancar lágrimas. Em meio da confusão, pareceu-lhe reconhecer as feições de
Dugan e do conde de Grossvenor suspensas sobre ele.
—Minha filha quase morre ontem a causa do buraco que abriu no lago. Quero
que recolha seus pertences e te largue de minha propriedade agora. Agradece que
esteja viva, do contrário, já ninguém poderia te reconhecer. Vá embora. Se voltar a
ver você perto de alguma de minhas propriedades, arrancarei a sua cabeça fora -
girou o rosto para falar com Dugan—: Assegure-se que ele que saia de Grossvenor
Manor em meia hora.
Fúria devolveu Emmie à cama e a beijou na frente antes de abandonar seu
dormitório. Caminhou com ansiedade devorando o comprido do corredor; Rafaela
o esperava para tomar um banho.
A diferença dos anteriores condes de Grossvenor, os atuais não dormiam em
habitações separadas. A da condessa, conectada a de seu marido através de um
amplo vestidor, funcionava como sala de banho e laboratório para a fabricação de
perfumes e cosméticos. Os aromas que emergiam dali alagavam a asa dos
dormitórios.
Artemio encontrou a Rafaela em bata, inclinada sobre a tina, vertendo umas
gotas de azeite na água.
—Do que é?
—De melisa, para nos apaziguar.
Cruzou a estadia e entrou no vestidor. Despiu-se e se cobriu com um salto de
cama antes de retornar ao quarto contiguo. Rafaela já se achava dentro da tina de
cobre, forrada com tecidos de seda branca. Seus braços e sua cabeça
descansavam sobre o bordo, em lânguido abandono. Fúria se introduziu e
permaneceu de pé frente a ela. Suas pálpebras se elevaram com lentidão e um
sorriso tenro despontou pouco a pouco em seus lábios.
—Vem, meu marido. Tive saudades o dia inteiro-se ergueu para lhe acariciar o
pênis e os testículo—. Sentiste falta de mim?
—Essa pergunta ofende, senhora Fúria.

377
Acomodaram-se como de costume, ele apoiado na parede da tina, ela sobre o
peito dele. Falaram em voz baixa sobre as trivialidades da jornada: as ocorrências
de Emerald, o resfriado da Mimita, os avanços de Horatio, os problemas dos
arrendatários, as notícias de Buenos Aires-esse dia tinham recebido carta do Lupe
Moreno—, a gota de Winthorp, até cair em um cômodo silêncio. Amavam a noite
porque os reencontrava. Voltavam a ser um.
Rafaela fixou a vista no escudo da casa de Lacy desenhado em engessa sobre o
marco da veneziana. O mote se distinguia claramente na base e no estandarte que
levava o dragão.
—Quis seu ipse sis memento. Lembre-se de quem você é-traduziu, sem
necessidade—. Meu amor, quem é? Artemio Fúria ou Sebastian de Lacy?
—Por nascimento, sou Sebastian de Lacy, embora em meu foro íntimo me sinto
mais Artemio Fúria. De todos os modos, se quer acertar com minha identidade,
pensa em mim como no homem de Rafaela das flores. Esse sou eu, porque sem ti,
Rafaela, não sou nada.

Fim

378
Florência Bonelli, escritora latino-
americana,nasceu em 5 de maio de 1971 na
cidade de Córdoba, Argentina. Desde pequena,
seu pai fomentou o interesse pelos livros e a
leitura, que com o tempo se converteram em
sua grande paixão. Florência sustenta que cada
livro é como um arca em cujo interior pode ou
não encontrar um tesouro, mas a possibilidade
de encontrá-lo é o que a leva incansavelmente
a levantar uma e outra vez a tampa. Ao
terminar a escola secundária apareceu a
possibilidade de seguir a carreira de Filosofia e Letras dado seu amor
pela literatura, idéia que desprezou. Aos vinte e dois anos conseguiu seu
título de Contadora. Sua carreira como contadora pública seguiu em
franca ascensão até chegar a ocupar um posto de certa hierarquia em um
orgão estatal onde, conforme afirma, passou anos muito felizes.
Até que chegou a suas mãos um livro que se converteria em um ponto de
inflexão em sua vida: O árabe, da novelista inglesa Edith Hull. A novela
romântica não só constituía o gênero literário que mais a entretinha e
comovia, mas também aquele que expressava suas próprias fantasias, e
terminou por perceber que ela também imaginava histórias de amor.“E
por que não as escrever?”, foi a sugestão de seu marido. E por que não?
Assim começou com sua primeira novela.
O entusiasmo pela escrita a levou a expor-se e deixar de lado sua
carreira como contadora pública. Em 1998 renunciou a seu trabalho e se
dedicou a escrever. No princípio de 2000, por razões trabalhistas de seu
marido, Florência partiu para Gênova, Itália, onde terminou de escrever
seu terceiro livro. Logo depois de Gênova, viveram em Bruxelas e em
Londres, seu último destino na Europa.
De retorno em Buenos Aires, em 2004, terminou de escrever sua quarta
novela.

379
GRH
Grupo de Romances Históricos

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