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Rodomilhos lilases

Lourenço Diaféria

Alice sempre diz que quer ser professora quando crescer. O pai de Alice duvida. Acha que com
o tempo a filha acaba mudando de ideia, se Deus quiser. Professora de quê? Uma hora Alice diz que
quer ser professora de português. Outra hora diz que quer ser professora de matemática. No primeiro
semestre, Alice queria ser professora de inglês. Estava encantada com as primeiras lições de inglês. O
pai de Alice percebeu logo que a preferência da filha varia de acordo com as notas na caderneta escolar.
Na semana em que as coisas não correm bem em determinada matéria, Alice trata de mudar de cadeira
com a mesma facilidade com que troca de bonecas.

As bonecas também andam preocupando um pouco o pai de Alice. Recentemente Alice teve de
aprender a conjugação e os tempos dos verbos auxiliares. Os verbos auxiliares deviam auxiliar, mas
costumam atrapalhar a cabecinha das meninas do tamanho de Alice. E, da mesma forma, a cabecinha
das bonecas. Nesses dias de verbos auxiliares duas bonecas ficaram de castigo depois das aulas.
Marocas foi a que se comportou pior. Além de errar a terceira pessoa do plural do futuro do verbo
haver, deixou cair tinta no caderno. Alice ficou uma fera. Mandou Marocas para a diretoria. É a terceira
vez neste ano que Marocas apronta uma dessas. Está com nota vermelha na caderneta.

Outra que também não está nada bem na escola é Gina, uma velha boneca desbotada que
pertenceu à irmã de Alice. Alice acha que ela é preguiçosa. Talvez seja reprovada, ou fique de
recuperação.

Fofinha é a primeira da classe, mas um pouco desmazelada. Não consegue manter presa a fita
amarela aos poucos fios de cabelo que lhe restam. Tem um defeito num dos olhos: ele não fecha. A
pálpebra de plástico quebrou faz tempo, numa brincadeira com as amigas. Cada boneca tem um boletim
e uma história. E um temperamento. Alice conhece todas as manhas delas. Na hora de estudar, não
admite brincadeiras ou estripulias. Passa a lição no quadro-negro – que, por sinal, é verde – ensina
contas de somar, diminuir, dividir e fração, exige a tabuada de cor sem contar nos dedos.

Lá embaixo, o pai de Alice a ouve dar sentidas broncas em seus alunos. Nem o Fofinho escapa.
Apesar de ele ser muito pequeno, molenga, não sabendo nem sentar-se na cadeira, Alice o obriga a
permanecer na sala (que na verdade é o quarto de dormir) acompanhando as lições. Mas há momentos
em que Alice, talvez sensibilizada pela fragilidade do boneco, o segura no colo e o faz adormecer
encostado a seu peito infantil. Nessas ocasiões, é possível que Fofinho perceba que o peito infantil de
Alice começa a desabrochar como um botão delicado e misterioso. E assim adormeça na paz dos
bonecos recheados de paina.

Outro dia, a professora Alice recebeu da boneca Sandra um ramalhete de flores. Ao menos é o
que está escrito no diário de classe, um pequeno caderno que Alice mantém em segredo sob o colchão
de sua cama. O pai de Alice cometeu uma falha imperdoável, e teve a curiosidade de bisbilhotar as
páginas secretas. Nelas, entre recados aos pais das bonecas e recomendações a seus alunos, Alice revela
que gosta muito de flores – principalmente rodomilhos lilases – mas pede que ninguém mais traga flores
para ela. Acha que a maior parte dos alunos não tem dinheiro para dar presentes. E sugere que quem
tiver dinheiro que compre balas e sorvetes para os irmãozinhos menores.

O pai de Alice coçou a cabeça. Está com vontade de procurar uma psicóloga, para que lhe
explique se isso significa alguma carência afetiva. E também está preocupado com rodomilhos lilases. O
pai de Alice descobriu que não existem rodomilhos lilases. Onde é que a filha foi descobrir uma coisa
dessas? E o pior é que ninguém sabe o que Alice inventará na sua cabeça se um dia, quando crescer,
resolver mesmo ser professora, se Deus quiser (RIOS, 2002, p. 37).

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