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Política (br/categorias/politica)

A contrarreforma psiquiátrica
O movimento antimanicomial no Brasil é um dos mais ativos no mundo,
mas as conquistas são lentas e os percalços, constantes

Melissa de Oliveira Pereira



07h14 (01mai2022 07h37)
(br/autores/melissa-de-oliveira-pereira)
01mai2022

Protesto contra a política de saúde mental no Dia Nacional da Luta Antimanicomial, no Rio de Janeiro,
em 2018
Fernando Frazão/Agência Brasil

O eixo monumental do Distrito Federal amanheceu avisando em seu asfalto:


“Manicômios ainda existem”. A longa faixa cinza que atravessava a pista central era
acompanhada pelo tecido branco pendurado em uma das passarelas de Campinas
(SP), que reivindicava: “Por um sus sem manicômios”. Na Zona Leste da capital
paulista, os bairros de Itaquera e São Mateus acordavam com o grito de “Contra todas
as formas de manicômios”, firmado em letras vermelhas e pretas que contrastavam
com o pano amarelo que servia de fundo. As manifestações de 18 de maio de 2021
marcavam mais um Dia Nacional de Luta Antimanicomial. 
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O movimento que dá nome às lutas aglutina, desde a década de 80, coletivos que se
organizam em torno de denúncias de torturas e maus-tratos vivenciados em hospitais
psiquiátricos e asilos manicomiais, no passado e no presente. Eles apresentam
proposições e novas alternativas para o cuidado em saúde mental voltado para
pessoas com transtornos mentais e sofrimento psíquico, expandindo proposições de
ações que garantam o bem-estar coletivo e a democratização das cidades, dos serviços
e das instituições.

Ao longo de décadas, o movimento antimanicomial no Brasil construiu um dos mais


importantes processos de Reforma Psiquiátrica do mundo, reunindo forças na
produção de documentários, livros, exposições, blocos de Carnaval e grupos musicais
que aproximaram a sociedade da loucura a partir de uma relação não mais vinculada
ao perigo e à desrazão, mas à beleza e à arte. Essas iniciativas se conjugaram com
inúmeros projetos de cooperativas e geração de trabalho que possibilitaram a
formação de profissionais e garantiram a renda de pessoas que antes eram excluídas
dos mercados formal e informal. 

Frantz Fanon na encruzilhada


(https://www.quatrocincoum.com.br/br/entrevistas/politica/fanon-na-encruzilhada)

No âmbito institucional, o país vivenciou a implantação de serviços como os Centros


de Atenção Psicossocial, dispositivos territoriais voltados para a atenção psicossocial
grupal e comunitária, de base interdisciplinar. A esses serviços — em diferentes
modalidades (adulto, infantojuvenil e voltado para as demandas de álcool e outras
drogas) — somaram-se o Programa de Volta para Casa, os Serviços Residenciais
Terapêuticos, os Leitos de Atenção Integral em Hospitais Gerais, as Unidades de
Saúde da Família, os Consultórios na Rua, os Centros de Convivência, o SAMU e
outras estruturas sanitárias públicas que passaram a se qualificar e se articular em
torno de uma assistência em saúde mental estruturada a partir da construção de
recursos para os indivíduos e suas famílias. 

Contradições
São conquistas importantes, mas vêm acompanhadas de contradições. Entre elas, nos
anos 2000, a chegada das Organizações Sociais, que concretizaram arranjos
contratuais com o setor privado e que prontamente representaram uma série de
assédios trabalhistas. Nos anos seguintes, houve o financiamento público das
Comunidades Terapêuticas, espaços majoritariamente religiosos e que, baseados na
promessa da “cura das drogas”, foram alvo de uma série de denúncias de tortura,
excesso medicamentoso, retirada de bebês, desrespeito à identidade de gênero e
liberdade religiosa, trabalho forçado e violência física.
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Leia também: Arte de Aurora Cursino dos Santos, que foi internada em um hospício, narra a
violência e a interdição da sexualidade vividas pelas mulheres
(https://www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/politica/gritos-e-sussurros)

O golpe institucional que assolou o país alcançou o setor como um tsunâmi, fazendo
com que movimentos sociais e intelectuais chamassem de Contrarreforma
Psiquiátrica o completo redirecionamento da política de saúde mental até então em
curso, especialmente por meio de medidas já apresentadas pelo governo de Michel
Temer e que se aprofundaram após a eleição de Jair Bolsonaro. Nesse cenário
(acompanhando a invisibilização de números de outras áreas), os dados oficiais
deixaram de ser publicizados, como antes era garantido pelo documento Saúde
Mental em Dados, informativo do Ministério da Saúde ausente desde 2015. Apesar
disso, o Painel Saúde Mental — publicado em 2021 pela organização Desinstitute a
partir de uma série histórica de gastos federais — comprova o aumento do
financiamento de espaços asilares e o desinvestimento na rede de serviços
territoriais. Entre elas, especialmente as ações voltadas para a geração de trabalho e
renda e aquelas que se direcionavam à arte e à cultura passaram a se esvaziar,
juntamente com a tentativa de descaracterização dos serviços residenciais.

Em 2019, 77% dos espaços psiquiátricos utilizavam


contenção mecânica sem justificativa clínica

Após a suspensão da avaliação de espaços psiquiátricos asilares em 2014, quando


cessou o Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares em Psiquiatria
(PNASH/Psiquiatria), uma inspeção realizada em 2019 pelo Conselho Federal de
Psicologia, em parceria com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à
Tortura, o Ministério Público do Trabalho e o Conselho Nacional do Ministério
Público, fez achados alarmantes: 62% dos espaços visitados não garantiam
alimentação suficiente e 77% dos locais utilizavam contenção mecânica sem
justificativa clínica, que vinha acompanhada de impedimentos aos pacientes, como
banhos de sol e comunicação com familiares.

No momento de fechamento deste texto, em um cenário de tantas perdas e


precariedades, encontramo-nos também na semana de comemoração dos 21 anos da
Lei 10.216 — conhecida por reformular a antiga legislação de saúde mental brasileira e Privacidade - Termos
abrir caminho para portarias e programas de desinstitucionalização. Neste 2022, o Dia
Nacional da Luta Antimanicomial lança o desafio da retomada das ruas, dos atos, das
passeatas e do reavivamento das faixas e dizeres nos espaços públicos. 

É neste instante também que me lembro de uma manifestante, em uma ação de 2014,
com um cartaz:  SOU A FAVOR DO CAPS, PERDI MINHA JUVENTUDE EM
MANICÔMIOS. Sua memória também não deixa de nos reavivar o atual
fortalecimento de associações de usuários e familiares, as iniciativas inovadoras que
tomam os serviços e o renascimento das conferências populares de saúde mental, que
estão ampliando a pauta da saúde mental por meio de conferências de mulheres, da
população negra, dos povos indígenas e da população em situação de rua, entre tantas
outras. Na Reforma Psiquiátrica brasileira, ainda há muitos e muitas que seguem
firmes se organizando a partir da palavra de ordem que, há anos, se aglutina em:
“Nenhum passo atrás, manicômio nunca mais”.

Leia também: A poeta Bruna Beber apresenta um estudo digno das camadas proféticas do
falatório de Stella do Patrocínio (https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/politica/a-voz-
da-estrela)

Veja todo o conteúdo da edição #57 (br/current_new/57)

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