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CUIABÁ – MT
2022
HEIDY YILIBETH BELLO MEDINA
CUIABÁ – MT
2022
Dedicatória
A minha mãe. Grata pelo amor, a sabedoria e a força.
“Las ciudades, en su esencia, son secretas. Al menos para el turista. Al extranjero la ciudad se
le presenta de una manera diferente al nativo. Quizás mejor, más proteica. Tiene varios rostros.
Varias metamorfosis. Cada ciudad presenta a sus visitantes una diferente faceta. Para el
extranjero la ciudad es como un enigma. Al menos en un principio. No olvidemos que una ciudad
no se da con facilidad. Hay que convivir con ella: habitarla. Hay que descifrar sus oráculos.
Valdría la pena aclarar que si uno no se mantiene atento a su ciudad —si no la recorre o no la
camina, si no la “reconoce día a día”—termina por convertirse en extranjero de su propio
territorio. Y es muy probable que sea así en las megápolis, en las grandes urbes. Lo proteico de
la ciudad reside en su movilidad. A cada hora, a cada día las ciudades se moldean de manera
diferente.”
Vásquez Velásquez, 2002, p. 200.
"As cidades, em sua essência, são secretas. Ao menos para o turista. Ao estrangeiro a cidade se
apresenta de uma maneira diferente ao nativo. Talvez melhor, mais proteica. Tem vários rostos.
Várias metamorfoses. Cada cidade apresenta aos seus visitantes uma faceta diferente. Para o
estrangeiro a cidade é como um enigma. Pelo menos no início. Não se esqueça que uma cidade
não é fácil de encontrar. Há que conviver com ela: habitá-la. Há que decifrar seus oráculos.
Valeria a pena esclarecer que se não se mantém atento a sua cidade -se não a percorre ou não a
caminha, se não a "reconhece dia a dia"- acaba por converter-se em estrangeiro de seu próprio
território. E é muito provável que seja assim nas megalópoles, nas grandes urbes. O proteico da
cidade reside na sua mobilidade. A cada hora, a cada dia as cidades se moldam de maneira
diferente."
Vásquez Velásquez, 2002, p. 200.
AGRADECIMENTOS
A minha mãe Merceditas e minha tia Carmencita por sempre me apoiarem e quererem o
melhor para mim. A meu pai, pelo apoio. A minha avó Cecilia, pelas orações. A Catalina,
por me aconselhar sempre. A meu tio Serafín (in memoriam), pelo amor de pai. A minha
família, gratidão pelo suporte e o amor que me permitiram abraçar a experiência
inesquecível da pós-graduação no Brasil. Àqueles seres que me mostram que os amigos
são casa e abrigo.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Yuji Gushiken, gratidão pelo carinho para me guiar e por
estar sempre prestes a mostrar que aquilo mais banal é relevante na construção dos
lugares. Minha profunda admiração.
Ao Prof. Dr. Helsio Amiro Motany de Albuquerque Azevedo, Profa. Dra. Rachel Tegon
de Pinho, Prof. Dr. Carlos Eduardo Pereira dos Santos, Profa. Dra. Lucia Helena
Vendrúsculo Possari, Profa. Dra. Aline Wendpap Nunes de Siqueira e Profa. Dra. Kátia
Terezinha Pereira Ormond, pelas relevantes contribuições e pela participação na banca
de defesa desta tese.
Às pessoas que abriram as portas e me permitiram entrar nos seus quintais para conhecer
as profundidades de uma paisagem singular, múltipla e afetiva.
Aos meus professores e professoras do PPG - ECCO pelo carinho e pela construção de
espaços de conhecimento nos quais percebi o mundo desde a sombra, mas principalmente
da luz, vocês são parte da beleza de estar no mundo.
A Marcelo Velasco, pela contribuição e o carinho para me orientar sobre textos, artistas
e histórias sobre os quintais. A Jhon Velásquez e Nadya Serrano, por me ajudarem
sempre.
Ao pessoal do Arquivo Público de Mato Grosso por me ajudar nessa busca de fontes e
imagens, sempre com muita amabilidade.
Aos cuiabanos e imigrantes por me mostrarem os universos mais sensíveis desta cidade
maravilhosa. Especialmente a Diana Martínez Sánchez por me indicar vários quintais.
Aos estudantes estrangeiros da UFMT que percorreram esse caminho comigo,
compartilhando vivências inesquecíveis. À “Casa Gorgona” que simbolizou nosso hábitat
e foi nosso território intersubjetivo em Cuiabá.
À Cuiabá dos ipês, das araras, dos peixes, do pequi, da farofa de banana, do lambadão,
das mangas, de São Benedito, do mais lindo pôr do sol, da alegria que me inspirou a
encontrar suas singularidades.
Gratidão!
RESUMO
Backyards are elements of the landscape linked to the home space of some Brazilian cities
as part of the cultural mixing produced after the Portuguese intervention in the country.
Besides being vegetation reserves, along the urban transformation in Cuiabá, these spaces
have acquired distinct forms, diverse functions and various meanings for the population
and for the city itself. When being considered a space next to house, backyards have been
undervalued, giving more importance to the built areas, being a more lived space, than
communicated. The thesis aims to understand the importance of backyards in the cultural
landscape of Cuiabá, Mato Grosso, Brazil, taking into account three interrelated
dimensions: the city, the house and people. Of qualitative character and in
interdisciplinary approach, the research was established in the interface between cultural
geography, urban communication and urban anthropology, taking as a reference also the
works developed in other disciplines as ethnobotanical and architecture and urbanism, to
interpret backyard as constituent place of the cultural landscape in Cuiabá. In this regard,
the understanding of backyards as a social construction involving material and symbolic
dimensions was considered. Several methodological procedures were performed, such as
direct observation, semi-structured interview in ten backyards in nine neighborhoods of
the city. Reinforcing communicational dimension of backyards in the cultural landscape
of the city, technical procedures were used to record and reconstruct imagery of the
backyards such as photographs, producing maps and drawing sketches. Research allowed
organizing cuiabano backyard in three categories: domestic, collective and commercial,
denoting the transformations of the urban spatiality itself. In the expansion of the urban
perimeter and verticalization of the city, presence of the backyards represents, even today,
a singularity in a tricentenary city and mining origin as Cuiabá. Yards are living
collections of the city that favor the maintenance of biodiversity, but also socialization
activities and multiple knowledge favorable in the cultural inventory of the city. We
observed the need, nowadays, of backyards as places of care and mental and physical
health, as evidenced by the pandemic generated by Covid-19.
Keywords: Cultural landscape. Urban communication. Urban backyards. Cuiabá.
RESUMEN
Los patios son elementos del paisaje ligados al espacio domiciliario de algunas ciudades
brasileñas como parte del mestizaje cultural producido tras la intervención portuguesa en
el país. Además de ser reservas de vegetación, a lo largo de la transformación urbana en
Cuiabá, esos espacios han adquirido formas distintas, funciones diversas y varios
significados para la población y para la propia ciudad. Al ser considerado un espacio
anexo de la casa, los patios han sido poco valorados, otorgando más importancia a las
áreas construidas, siendo un espacio más vivido, que comunicado. La tesis tiene como
objetivo comprender la importancia de los patios en el paisaje cultural de Cuiabá, Mato
Grosso, Brasil, teniendo en cuenta tres dimensiones interrelacionadas: la ciudad, la casa
y las personas. De carácter cualitativo y en enfoque interdisciplinario, la investigación
estableció una relación entre la geografía cultural, la comunicación urbana y la
antropología urbana, tomando como referencia también los trabajos desarrollados en otras
disciplinas como la etnobotánica y la arquitectura y urbanismo, para interpretar el patio
como lugar constitutivo del paisaje cultural en Cuiabá. En este sentido, se consideró la
comprensión de los patios como una construcción social que involucra dimensiones
materiales y simbólicas. Se realizaron varios procedimientos metodológicos como
observación directa, entrevista semiestructurada en diez patios en nueve barrios de la
ciudad. Reforzando la dimensión comunicacional del patio en el paisaje cultural de la
ciudad, se utilizaron procedimientos técnicos de registro y reconstitución de imágenes de
los patios como fotografías, producción de mapas y elaboración de croquis. La
investigación permitió organizar el patio cuiabano en tres categorías: domésticos,
colectivos y comerciales, denotando las transformaciones de la propia espacialidad
urbana. En la expansión del perímetro urbano y la verticalización de la ciudad, la
presencia de los quintales representa, aún hoy, una singularidad en una ciudad
tricentenaria y de origen minera como Cuiabá. Los patios son acervos vivos de la ciudad
que favorecen el mantenimiento de la biodiversidad, pero también de actividades de
socialización y saberes múltiples favorables en el inventario cultural de la ciudad. Se
observó la necesidad, en la actualidad, de los patios como lugares de cuidado y de la salud
mental y física, como fue evidenciado a partir de la pandemia generada por la Covid-19.
Palabras clave: Paisaje cultural. Comunicación urbana. Patios urbanos. Cuiabá.
LISTA DE FIGURAS
Introdução
Figura 1: Poda de árvores em Cuiabá...............................................................................22
Figura 2: Vista panorâmica de Cuiabá.............................................................................23
Figura 3: Vista panorâmica de Cajicá...............................................................................25
Figura 4: Bananeira e outras árvores frutíferas próximas ao muro de um espaço
doméstico.........................................................................................................................34
Figura 5: Mapa de distribuição dos quintais da pesquisa.................................................37
Capítulo I
Figura 1: Mapa colorido da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, elaborado a mão
pelo português José Manoel de Siqueira, por volta de 1770............................................55
Figura 2. Vista do morro da luz e da torre da Embratel, a partir do Centro Histórico de
Cuiabá..............................................................................................................................67
Figura 3. Desenho de Hércules Florence durante a Expedição Langsdorf (1825-1829)...69
Figura 4: “Prospecto da Villa do Bom Jesus de Cuiabá” de 1790, desenhado por Joaquim
José Freire ou por José Joaquim Codina. A obra faz parte do Acervo do Museu Botânico
Bocage em Lisboa............................................................................................................69
Figura 5: “Vista panorâmica da cidade de Cuyabá” ........................................................70
Figura 6: Telhados de Cuiabá na década de 1930............................................................70
Figura 7: Vista parcial do centro de Cuiabá do alto do Clube Dom Bosco. Década de
1960.................................................................................................................................71
Figura 8: Vista parcial do centro de Cuiabá depois da construção da nova catedral.
Destaque da verticalização da cidade aos fundos.............................................................71
Figura 9: Fotomontagem de vista de Cuiabá a partir da torre Embratel, localizada no
morro da luz, 2002............................................................................................................72
Figura 10: Obra “A casa de Lulu Cuiabano” ....................................................................74
Figura 11: Obra “Morro da luz (com a “Casa de Luz” e a escola do professor Avelino
Ribeiro” ...........................................................................................................................75
Capítulo II
Figura 1. A. Foto panorâmica da cidade do Cusco (Peru). B e C. Foto do pátio da casa
Museu Botero, localizada no centro histórico de Bogotá (Colômbia)..............................81
Figura 2: Esquema da casa colonial brasileira.................................................................83
Figura 3: Esquema de reconstituição de rua com modelos arquitetônicos de diversas
algumas tendências estilísticas do Brasil.........................................................................86
Figura 4: Obra “Abacaxi, Melancias e Outras Frutas” de Albert Eckhout......................90
Figura 5: Vista aérea de bairro CPA-1.............................................................................92
Figura 6: Quintal do Centro Cultural Casa Cuiabana.......................................................93
Capítulo III
Figura 1: Mapa de distribuição dos cinco quintais domésticos da pesquisa em Cuiabá,
Mato Grosso...................................................................................................................100
Figura 2: Manejo de plântulas para a plantação de espécies no quintal do B. Boa
Esperança.......................................................................................................................104
Figura 3: Imagem de satélite no espaço correspondente ao quintal do B. Cidade Alta...105
Figura 4: Imagem de satélite do espaço doméstico B. Lixeira.......................................106
Figura 5: Criação de galos e galinhas no quintal B. Lixeira............................................107
Figura 6. Sagui em mangueira no quintal do B. Jardim Imperial II...............................108
Figura 7: Cão no quintal do B. Cidade Alta....................................................................109
Figura 8. Quintal e suas funções de área de serviço quintal do B. Jardim
Universitário..................................................................................................................110
Figura 9: A senhora Sol no quintal do B. Boa Esperança..............................................111
Figura 10: Quintal do B. Cidade Alta com decoração permanente do arraial de
junho..............................................................................................................................112
Figura 11: Imagem de satélite do entorno do espaço doméstico do quintal do B. Jardim
Universitário..................................................................................................................113
Figura 12. A - Cacau no quintal do B. Cidade Alta. B – Banana e abacaxi no quintal do
B. Jardim Universitário. C – Feijão guandu e mexerica no quintal do B. Jardim Imperial
II.....................................................................................................................................114
Figura 13: Cará-roxo do quintal do B. Jardim Imperial II..............................................114
Figura 14: Licor de jenipapo e jabuticaba produzidos no lar do B. Cidade Alta............115
Figura 15: Doce de Caju artesanal com a produção do quintal do B. Lixeira................115
Figura 16: Couve, cenoura e outras espécies do quintal do B. Jardim Imperial
II.....................................................................................................................................116
Figura 17: Armazenamento de feijão guandu no quintal do B. Jardim Imperial II..........117
Figura 18: Frutas apodrecendo no chão do quintal do B. Jardim Universitário...............117
Figura 19: Mapa de distribuição dos três quintais comerciais da pesquisa em Cuiabá, Mato
Grosso............................................................................................................................119
Figura 20: Quintal do restaurante do B. Boa Esperança..................................................121
Figura 21: Ambiente da mangueira no quintal do restaurante do B. Duque de Caxias....122
Figura 22: Quintal do restaurante do B. Quilombo........................................................123
Figura 23: Sistema cachepot para as árvores do quintal do B. Quilombo........................123
Figura 24: Mapa de distribuição dos dois quintais coletivos da pesquisa em Cuiabá, Mato
Grosso............................................................................................................................125
Figura 25. Cozinha disposta para a preparação da feijoada no quintal do B. Santa Rosa
II.....................................................................................................................................127
Figura 26. Mesa servida com a feijoada e outros acompanhamentos no quintal do B. Santa
Rosa II............................................................................................................................128
Figura 27. Dança de lambadão cuiabano durante evento beneficente.............................129
Figura 28. Ensaio de siriri para crianças no quintal do B. Coophema............................130
Figura 29. Dança de siriri do Grupo Flor Ribeirinha no quintal do B. Coophema...........130
Figura 30. Forno de queima para cerâmicas no quintal do B. Coophema.......................131
Capítulo IV
Figura 1: Desenho da cidade autossustentável apresentada pelo escritório Guallart
Architects para a construção da nova área de Xiong'an a partir da perspectiva de Pós-
COVID-19.....................................................................................................................144
Figura 2: Produção de feijão guandu no quintal do bairro Jardim Imperial
II.....................................................................................................................................150
Figura 3: Coleta de frutas como mamão e banana no quintal do bairro Cidade
Alta................................................................................................................................152
Figura 4. Croqui do espaço doméstico localizado no bairro Boa Esperança.................154
Figura 5. Croqui do espaço doméstico localizado no bairro Lixeira..............................155
Figura 6. Croqui do espaço doméstico localizado no bairro Cidade Alta......................156
Figura 7. Croqui do espaço doméstico localizado no bairro Jardim Universitário........157
Figura 8. Croqui do espaço doméstico localizado no bairro Jardim Imperial II............158
Figura 9: Croqui do espaço comercial (Restaurante) localizado no bairro Quilombo...160
Figura 10: Croquis do espaço comercial (Restaurante) localizado no bairro Boa
Esperança.......................................................................................................................161
Figura 11: Croquis do espaço comercial (Restaurante) localizado no bairro Duque de
Caxias............................................................................................................................162
Figura 12: Croquis do espaço de caráter coletivo localizado no bairro Santa Rosa II...163
Figura 13: Croquis do espaço de caráter coletivo localizado no bairro Coophema.......164
LISTA DE TABELAS
INTRODUÇÃO.............................................................................................................17
A caminho do quintal, uma metodologia interdisciplinar...............................................29
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................165
REFERÊNCIAS...........................................................................................................170
APÊNDICES................................................................................................................178
APÊNDICE A - ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA..................178
APÊNDICE B - TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E
DEPOIMENTOS...........................................................................................................180
17
INTRODUÇÃO
Olhar para os quintais de Cuiabá e sua importância como elemento da paisagem através
da presente tese é uma ideia que foi se formando durante um longo processo que partiu da
experiência como estrangeira, se centrou no rol como pesquisadora e finalmente adquiriu mais
vigor a partir da vivência da pandemia provocada pela COVID-19, que permitiu pensar os
espaços habitados em tempos de crise sanitária, social e econômica.
No caso da casa dos avôs, o espaço domiciliar foi se modificando após mudanças da
própria estrutura familiar, derivadas do matrimônio das filhas e do filho, que, conforme se
casavam, recebiam dos pais a oportunidade de construir um “puxadinho” no espaço do lote
onde estava localizado o quintal. Esse costume de cessão de bens familiares foi aos poucos
gerando a remoção das árvores e logo a concretagem desse espaço, sobrando uma pequena área
aberta onde foram colocados varais para a secagem das roupas e onde foram dispostos vasos
1
Conforme estatísticas publicadas pelo jornal La República, Cajicá teve um crescimento populacional de um
78,67% nos últimos anos, passando de ter 45.391 habitantes no ano de 2005 para registrar 81.099 moradores no
ano de 2018. Fonte: La República. El nuevo censo poblacional del Dane consolida a las "ciudades dormitorio"
del país. 17 jul. 2019. Disponível em: <https://www.larepublica.co/economia/el-nuevo-censo-poblacional-del-
dane-consolida-a-las-ciudades-dormitorio-del-pais-2885537>. Acesso em: 21 de ago. 2021.
19
com diversas plantas ornamentais e temperos que evocam vagamente o hábito familiar de
plantar e decoram os muros com flores de várias cores e tamanhos.
Ainda assim, reconhece Canevacci (1997) que aquele novo habitante estrangeiro,
mesmo se introduzindo em uma cultura divergente da sua, será conduzido por uma espécie de
critério derivado da educação recebida para interpretar os signos emitidos nesse novo contexto
pela comunicação que tem sido tecnicamente reprodutível. No entanto, ele sugere que o
observador pode refinar o olhar urbano para absorver aquilo que não é capaz de decifrar sobre
o sentido dessa cultura diferente, a partir da atenção nos valores, crenças e nos comportamentos
dos sujeitos que habitam a cidade.
Canevacci (1997) reconhece a comunicação urbana como uma forma que se expressa,
igual à mass mídia, relações de poder entre quem controla as comunicações e quem recebe a
informação reduzido ao seu rol de espectador passivo. Apesar disso, o teórico italiano pondera
que existem rupturas, sendo uma delas o olhar do estrangeiro que responde à vontade de
perceber as diferenças que o olhar habituado não reconhece devido ao excesso de familiaridade.
20
Por isso, é possível contribuir na criação de novas vozes para compeender a cidade que se
integrem à multiplicidade de vozes autônomas que conformam uma polifonia.
O Festival seria realizado durante 24 horas, no dia 03 de abril de 2016, como um modo
de presentear a Cuiabá com cem ações de arte e cidadania espalhadas na cidade. Não obstante,
a efêmera comemoração, realizada em vésperas do aniversário de Cuiabá, seria resultado de um
processo de aproximadamente um ano, durante 2015 e 2016, no qual me envolveria como
pesquisadora já no mestrado. Através de uma observação participante, a experiência me
aproximaria de maneira mais profunda com a cidade e as diversas percepções sobre Cuiabá
como resultado da convivência com os habitantes e agentes.
Como parte das dinâmicas próprias do Festival, se organizaram reuniões para que as
pessoas conhecessem o projeto e se gerasse uma rede de participantes. Durante os diversos
encontros, em vários cenários da cidade, os diálogos entre os atores eram ricos em ideias porque
a multiplicidade de interesses gerava longas conversas com respeito à cidade para conhecer as
percepções das pessoas e criar, em conjunto e pensando no bem coletivo, iniciativas para mudar
situações que as preocupavam sobre a mobilidade urbana, o meio ambiente, a corrupção, a
ocupação dos espaços e outras inquietações coletivas do dia-a-dia (MEDINA, 2017; MEDINA,
AZEVEDO e GUSHIKEN, 2017).
Durante o processo de pesquisa do festival, várias questões haviam sido observadas com
respeito à percepção das pessoas sobre a cidade. Um dos temas de discussão mais recorrentes,
e enunciados pelos participantes, era com relação à arborização urbana, que remetia à ideia de
Cuiabá como Cidade Verde, que, conforme aos discursos dos participantes do projeto “não
existia mais”.
Poderia então se refletir sobre uma cultura dominante das formas materiais e simbólicas
ao considerar as paisagens europeias como sustentáveis antes de olhar para a própria cidade,
especificamente, para o modelo de moradia casa-quintal? Poderia ser o quintal também um
espaço outro, no sentido de Foucault (2013), uma heterotopia?
22
Foucault (2013) define as heterotopias como lugares reais, lugares efetivos dentro da
cultura que podem ser uma espécie de utopias realizadas. Podem ser lugares que estão fora dos
padrões de todos os lugares. Embora esses espaços outros estejam em contraposição com as
utopias apresentam uma experiência mista com elas. O conceito orientaria a busca desse sentido
existencial do quintal para as pessoas.
Deste modo, desconhecendo uma relação profunda dos quintais e a ideia da cidade
verde, me remeti às contribuições de Michel De Certeau (2012) sobre as práticas espaciais que
formam o cotidiano e especificamente possibilitam ver a cidade a partir de duas perspectivas
divergentes, segundo a proposta do autor: o caminhar e a altitude. Apesar da relação quase
antagónica das duas posições, existe uma espécie de complemento na sua consideração, na
medida em que as duas perspectivas oferecem informações intengrantes sobre a cidade nesta
pesquisa.
Por outro lado, em perspectiva vista do alto, a experiência era diferente, porque a altitude
permitia conhecer outra perspectiva mais ampla, na qual, como alude De Certeau (2012), é
possível “ver o conjunto”. Deste modo, conforme a figura 2, foto panorâmica tirada em um alto
prédio lozalicado no bairro Goiabeiras, há, a partir da altitude, do ver do alto, outras
informações relevantes.
A imagem, registrada com visão do alto, evidencia uma mancha verde, contudo essa
proporcão de vegetação, em detalhe, não provém das vias públicas, pois, nas vias por onde
transitam automóveis, a presença de árvores é mínima com relação ao interior dos quarteirões,
especificamente dos espaços anexos às casas.
Desse modo, a arborização urbana, em Cuiabá, apresentava uma notória diferença entre
os espaços públicos e os privados como duas dimensões a serem pensadas na construção
coletiva da Cidade Verde e os quintais adquiriam um valor a ser considerado na pesquisa sobre
esses espaços na paisagem de Cuiabá.
24
Em primeiro lugar, uma questão: se era ainda visível a existência da mancha urbana
verde, por que as pessoas negavam a existência desses atributos? Qual era a importância da
pesrpectiva da qual se produz a visão sobre o que era visto e percebido?
Portanto, qual a importância deste modo de ver a cidade sobre a paisagem que ponderava
aquele discurso, em grande medida no âmbito do senso comum, de a Cidade Verde não ser,
propriamente, uma cidade com cobertura verde? A cobertura verde não existe porque não o
vejo ou porque não o habito? A visão, então, com que foi possível identificar os quintais como
contribuidores significativos da vegetação urbana poderia ser também limitadora para que esse
espaço não fosse reconhecido dentro da ordem visual da cidade?
Segundo: por que meu olhar estrangeiro conseguia validar a existência desses modos de
habitar, embora não tivesse uma história em comum de vivenciar esses espaços domésticos?
Tal percepção, então, poderia derivar do conhecimento com base em minha procedência do
cenário semirural de Cajicá, um município localizado na Região Andina da Colômbia, mas que
por sua proximidade com Bogotá (17 km), capital do país, me permitia conhecer as dinâmicas
e contrastes entre a megalópole latino-americana e uma pequena cidade agrícola.
2
Termo para definir uma cidade usada para a habitação, enquanto seus moradores realizam suas atividades laborais
em outra cidade.
25
O viés dessas produções acadêmicas reflete sobre o papel dos quintais rurais e urbanos
na manutenção da agricultura de pequena escala, a preservação da biodiversidade, a regulação
microclimática, o uso de plantas medicinais, os saberes locais, entre outros.
Nordeste do país. Salientam-se os aportes das pesquisas realizadas no estado de Mato Grosso
sobre os quintais, de ampla difusão académica, graças ao trabalho de autores como Brito e
Coelho (2000); Guarim Neto e Carniello (2008); Amaral e Guarim Neto (2008), entre outros
autores.
Partindo da geografia cultural, que a partir de sua transversalidade tem sido considerada
como uma heterotopia, por permitir a construção de caminhos oriundos de diversas matrizes, o
trabalho se apoia em autores inscritos nesse campo como Denis Cosgrove (1998, 2002, 2008)
e Augustin Berque (2012), que pensam a paisagem e sua significação a partir dos modos de
percepção e modos de relação, em palavras de Berque (2012), pensando-a como plurimodal e
salientando sua capacidade de comunicar, ideias, valores e poder.
Sendo assim, com o intuito de analisar o quintal como lugar de construção epistêmica
na singularidade da paisagem cultural em Cuiabá, a partir da concepção da cidade como um
28
Pessoas estabelecem modos de relação com o quintal que gera afetos ímpares com
outros espaços do ambiente doméstico. Nesse sentido, salientamos algumas formas afetivas
reconhecidas nestes lugares ao longo da pesquisa como: 1) a relação do quintal como espaço
de brincadeira, praticado por crianças como lugar da imaginação, 2) o desenvolvimento da vida
familiar cria conexões íntimas com memórias afetivas, 3) lugar de rituais como festas juninas,
festas de santo e outras comemorações, 4) local de socialização, 5) espaço de contemplação da
natureza e descanso, onde se passam as horas vagas, e 6) espaço verde para atenuar o estresse
gerado pela crise sanitária global da Covid-19.
29
Nesse viés, foram pensadas várias estratégias que correspondessem a diversas epistemes
comunicacionais para produzir a visualidade: fotografar, desenhar, mapear, entre outras, como
um aporte à constituição de uma multiplicidade de perspectivas que nos levasse a perceber o
quintal como recurso comunicacional da paisagem da cidade.
Assim, é possível reunir material para a própria pesquisa, e ainda propor o conteúdo
para próximas pesquisas relacionadas com o tema. Sobre os aspectos formais da pesquisa, é
relevante constatar que os informantes assinaram um termo de uso da imagem (APÊNDICE B),
motivo pelo qual são compartilhadas algumas fotos que tem a finalidade de humanizar o quintal.
3
Para a elaboração das tabelas foram consultadas as bases de dados World Flora Online (worldfloraonline.org),
Reflora Brasil (floradobrasil.jbrj.gov.b), Flora Brasiliensis (florabrasiliensis.cria.org.br) e o Sistema de Informação
sobre a Biodiversidade Brasileira (https://ferramentas.sibbr.gov.br/ficha/bin/view/especie)
32
conseguindo também uma aproximação da imagem com uma boa qualidade visual para
conhecer os detalhes do entorno do espaço doméstico.
Os croquis são propostos como uma espécie de “carta náutica” que mostra a localização
dos quintais no espaço urbano de Cuiabá, a partir de detalhes que funcionam como coordenadas
para o registro espacial. O exercício mental da criação dos croquis reforça a ideia de comunicar
os quintais como espaços polivocais/polissêmicos da cidade, a partir da exposição de suas
formas e funções.
Além das técnicas citadas, outras estratégias foram necessárias para pensar o espaço do
quintal cuiabano, os sujeitos, as atribuições de significado e as práticas imersas no contexto da
cidade de Cuiabá. Ao se pensar o quintal em um habitat residencial, a aproximação aos
informantes para conhecer esse espaço não poderia se limitar à construção de um questionário
de perguntas e uma rápida observação direta.
quintal, o que incluí a distribuição espacial de seus componentes (objetos, plantas, animais) e
lógicas criadas para esses espaços.
A primeira abordagem para a compreensão da cidade e a análise inicial dos quintais foi
através da caminhada como uma forma de apreensão do espaço urbano proposta por De Certeau
(2012). Como complemento dessa estratégia, foi pensada a implementação da técnica de
antropologia urbana (observação flutuante), sugerida por Colette Petonnet (2008) como uma
maneira de flanar, de permanecer disponível ao que o espaço urbano tem para nos mostrar, sem
colocar atenção a um objeto particular. Deste modo, mantendo-se disponível às paisagens, às
formas, aos modos do ato de caminhar, tentávamos fazer um mapeamento preliminar dos
quintais, sobre sua localização, modos de acesso e de abordagem dos sujeitos participantes a
pesquisa.
Ao se olhar o quintal a partir da rua, uma imagem chamou a atenção: a aparência das
fachadas das residências, protegidas por muros e cercas elétricas, dentre os quais aparecia, ainda
que de maneira tímida, alguns galhos de bananeiras, cajueiros e mangueiras. Em alguns casos
foi possível perceber que as frutas podiam cair na rua, devido às frondosas árvores que
superavam os limites do espaço doméstico para fazer presença no território das calçadas.
Outra situação foi dada a partir da observação dos quintais quando, nessas caminhadas,
era possível visualizar os espaços verdes que se anunciavam por trás dos portões, muros e
grades. Em alguns desses momentos, precisamente no momento de passagem por uma
determinada rua, os portões se abriam para revelar o que, em geral, escondem: o espaço
doméstico. Ocultar a casa é uma forma de proteção ao olhar do estranho. O espaço doméstico
é revestido de equipamentos de segurança: muros, cercas, câmeras etc., como se pôde registrar
34
na figura 4, onde a bananeira supera o muro e a cerca para florescer no ambiente exterior do
espaço doméstico.
4
Durante a apresentação de uma comunicação no VII Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e
Humanidades (Coninter) onde foram expostas as preliminares da pesquisa, uma participante mencionou: “As
visitas são geralmente recebidas na sala, mas não é todo mundo que entra no quintal”. O que confirmaria a
necessidade de elaborar uma rede de contatos que recomendassem a visita da pesquisadora no espaço doméstico.
35
Destaca-se que, ainda com fins académicos, não é fácil ingressar nas casas e obter tempo
e atenção dos moradores, dados os ritmos da vida na cidade contemporânea, onde o tempo é
limitado. A situação seria ainda mais crítica a partir de 2020, sendo declarada a pandemia por
causa da Covid-19, uma conjuntura inesperada que interrompeu a realização de diversas
atividades de pesquisa, especificamente o trabalho de campo.5
5
Com a rápida disseminação do vírus e o período de confinamento para frear os contágios, os encontros entre
participantes e pesquisadores foram estagnados para cuidar da saúde de todos, a partir da declaração da pandemia
em 2020.
36
O registro desses eventos “banais” que se situam nos quintais representa a vida mais
íntima e desperta um olhar mais cuidadoso para as singularidades da cidade que oferecem outras
perspectivas dos quintais no que se refere aos seus usos e formas de ocupação, mas também à
visualidade e organização espacial. A realização de atividades coletivas nesses espaços permitiu
ligar os quintais a atividades culturais conhecendo a importância que esses espaços têm na
cidade ao se constituírem como palcos para as diversas manifestações locais.
Comer no quintal
região sul: Coophema, que como registrado na Figura 5, representam um valor sobre a
superfície da cidade.
39
CAPÍTULO I
O olho vê,
a lembrança revê,
a imaginação transvê;
é preciso transver o mundo.
Quintais são terrenos anexos à casa, caracterizados por albergar cultivos de plantas e
criação de animais, para cumprir funções de abastecimento, sombreamento, usos medicinais,
ornamentais e de lazer. Os quintais tem sido considerados como relevantes para a conservação
da diversidade de espécies (vegetais e animais), a reprodução de saberes, manutenção da
cobertura verde urbana e a prática cotidiana de múltiplas atividades familiares e sociais.
A perspectiva da paisagem cultural permite expor o quintal e refletir sobre ele a partir
de uma abordagem cultural. Este procedimento permite apresentar o quintal como fragmento
de paisagem, a partir de múltiplas perspectivas, ponderando também as qualidades
comunicativas da cidade. A perspectiva e a abordagem proporcionam uma ideia sobre a cidade
e sua organização espacial, permitindo também pensar nesses discursos dados a partir de
diferentes leituras, tanto dos moradores quanto dos estrangeiros.
Pensar a cidade exige uma abrangência de posições sobre o lugar e os seres que nela
interagem. No entanto, é importante refletir sobre a forma como se olha a cidade e as mediações
que constituem esse olhar. Como menciona Reguillo (2007), esse olhar demanda a abordagem
da cultura, o que nos situa na análise da presença de instituições, agências, discursos e práticas
sociais.
40
Existem múltiplas tensões sobre os olhares das paisagens que configuram o espaço a
partir das diversas atividades humanas, o que inclui a relação entre homem e natureza. No
tocante à cultura, esta interação, especificamente dada a partir das formas de moradia, pode
mostrar as singularidades da experiência urbana a partir das banalidades do cotidiano.
Para Santos (2002), cada cidade nasce com características próprias, dadas a partir de
suas necessidades e das possibilidades da época, que constituem um presente no presente,
conforme se forma o espaço, a partir da materialidade e das relações sociais.
Como adição do passado e o presente através das formas das cidades, Santos (2002)
pondera que a materialidade é toda do passado porque mostra elementos que já foram
construídos. Ele considera que, mesmo estando no presente, estes elementos trazem o passado
a partir da representação de suas formas. Nesse sentido, não existiriam como tempo, mas como
espaço (SANTOS, 2012).
A justaposição dos tempos mostra como cada sociedade designa seu tempo a partir de
suas técnicas, de seu espaço, das relações sociais que construía e de sua linguagem. Mas a
mudança para os tempos superpostos, enaltecidos pelo capitalismo, expõem uma tendência à
internacionalização geral, salienta Santos (2002).
Entre outros aspectos, Koolhaas (2014) salienta que a cidade genérica tenta controlar os
climas extremos e gerar um ambiente mais tropical, onde o vegetal se torna um resíduo edênico,
mas também o principal portador veículo de identidade, que apresenta um híbrido entre política
e paisagem.
A cidade genérica e outras iniciativas do urbanismo são debatidas dia-a-dia nas cidades
latino-americanas, onde a importação de tendências europeias e estadunidenses mostra que
historicamente o design dos espaços continua correspondendo, em sua grande maioria, a
padrões urbanísticos estrangeiros, descartando a consideração das próprias cidades para pensar,
representar e construir os lugares, como tem mencionado pensadores como Arturo Escobar
(2016). Espaços banais, como os quintais, possibilitam refletir sobre esses dois possíveis
inimigos, apontados por Santos (2001): os modelos universais e a semantização universal, e sua
relação sobre o que concebemos da paisagem.
A interpretação não é uma tarefa fácil. Pensar um espaço como o quintal a partir do viés
comunicacional e cultural conduz a nos orientarmos na abordagem de duas categorias espaciais,
que predominantemente tem sido assumidas pelo campo disciplinar da geografia, mas que do
seu modo tem sido caracterizadas por serem tratadas a partir de uma visão interdisciplinar: o
lugar e a paisagem.
Incialmente, será exposta a necessidade de pensar o quintal como lugar que permite
expor a ligação entre categorias e linhas de pensamento. Embora o lugar tenha sido
desenvolvido a partir da geografia humanista, principalmente, tem apresentado uma estreita
relação com a geografia cultural, proposta para a abordagem da paisagem cultural.
42
Sobre tempo e experiência, por exemplo, Tuan (1983) pondera que permanecer durante
um tempo prolongado em um lugar é determinante para atribuir valor a um lugar, sendo o
resultado de um uso habitual e adquirindo densidade de significado, e menciona que “sentir”
um lugar requer tempo, até nos familiarizarmos, para que o lugar que se torne confortável e
discreto, e deixe de chamar nossa atenção:
“Sentir” um lugar leva mais tempo. Se faz de experiências, em sua maior parte fugazes
e pouco dramáticas, repetidas dia após dia e através dos anos. É uma mistura singular
de vistas, sons, cheiros, uma harmonia ímpar de ritmos naturais e artificiais, como a
hora do sol nascer e se pôr, de trabalhar e brincar. Sentir um lugar é registrado pelos
nossos músculos e ossos.” (TUAN, 1983, p. 203)
Desse modo, embora Tuan (1983) reconheça que dificilmente o afeto por um local seja
gerado de passagem, o geógrafo considera que a intensidade é o que faz que os acontecimentos
adquiram relevância para os seres humanos, pois, mesmo tendo uma curta duração, uma
experiência intensa pode modificar a vida dos sujeitos.
43
Por outro lado, existem outros fatores de percepção temporal que afetam a sensação de
lugar, colocados por Tuan (1983), tal como a idade, exemplificando que a percepção de uma
criança pequena difere da experiência de lugar de um adulto, pela compreensão do tempo. A
percepção do passado não apresenta semelhanças entre eles, por exemplo, porque o tempo
humano está demarcado por etapas.
Os valores e percepções sobre os lugares dependem então do vivido pela pessoa, da sua
experiência concreta, mas também dos valores espaciais determinados pelas estruturas sociais.
Tuan (1980) salienta como algumas categorias espaciais significativas, como frente e trás, não
representam o mesmo valor social. Nesse viés, por exemplo, a agorafobia e a claustrofobia são
sentimentos relacionados aos espaços abertos e fechados.
Tuan (1980) enfatiza que, para os seres humanos, as paisagens despertam emoções e, à
vista desta experiência, desenvolveu o termo “topofilia”, que define em um amplo sentido os
vínculos afetivos criados entre as pessoas e o meio ambiente material.
Esse elo afetivo, menciona Tuan (1980), se manifesta de diversas maneiras, como a
apreciação visual e estética, que se expressa quando o olhar fica surpreso ante uma paisagem
criando uma experiência estética intensa. “A beleza é sentida como o contato repentino com
um aspecto da realidade até então desconhecido; é antítese do gosto desenvolvido por certas
paisagens ou o sentimento afetivo por lugares que se conhecem bem”. (TUAN, 1980, p. 108).
Exploradores e viajantes, exemplifica Tuan (1980), registraram em seus diários aquele
sentimento de encanto por paisagens fascinantes.
No entanto, o prazer visual muda em intensidade e tipo, para além das convenções
sociais, respondendo às motivações humanas quando estão misturadas com lembranças de
acontecimentos pessoais, indica Tuan (1980). Há contatos com a paisagem natural que, mesmo
simples, podem despertar atração, experimentando outro tipo de beleza para quem pode apreciar
o ritmo lento da vida, por exemplo as crianças: “A natureza produz sensações deleitáveis à
criança, que tem mente aberta, indiferença por si mesma e falta de preocupação pelas regras de
beleza definidas” (TUAN, 1980, p. 111).
A relação de afeto pelo meio ambiente também está mediada pelas transformações
culturais. Segundo Tuan (1980, 2015), a urbanização provocou um impacto na relação cidade-
natureza, visto que se gerou uma contraposição com a natureza, tentando ter o controle sobre
os fenômenos que nela podem acontecer, inclusive afetando a conexão da cidade com a
44
Nesse sentido, existe uma apreciação estética e uma sensação de bem-estar, mas não é
expressada. Apesar disso, o lugar permite fazer uma análise da vida, como aponta Carlos
(2007), que tem que passar pelas relações de poder tecidas sobre as conceições da paisagem.
O geógrafo francês Paul Claval (2012) fez o percurso da evolução do termo e aludiu que
a locução paisagem surgiu no século XV, sob a forma landskip, nos Países Baixos, entendida
como a apresentação de um pedaço de natureza. Claval (2012) explicitou que os termos
landschaft, em alemão, e landscape, em inglês, foram concebidos para traduzir o landskip e
empregados com o intuito de difundir um novo gênero pictural. Porém, foi através da
transcrição no italiano da ideia de extensão do francês pays, também procedente da raiz land,
que se produz o termo paesaggio, que empregado a partir de 1549, pondera a paisagem como
forma de pintura (CLAVAL, 2012).
Ligado à ideia inicial da paisagem, Claval (2012) comenta os quadros que mostravam
fragmentos de natureza na representação plástica, com o intuito de substituir uma janela da qual
se observava. Esta perspectiva artística, segundo o autor francês, foi uma invenção de grande
importância na história da paisagem ocidental.
que os viajantes utilizaram a geografia para capturar a natureza das regiões que percorriam
(COSGROVE, 2002).
Assim, por exemplo, Claval (2012) aponta a importância de obras como Vues des
cordillères et monuments des peuples indigènes de l’Amérique6, na qual, após o périplo pela
América Latina, Alexander von Humboldt apresenta 69 pranchas comentadas, que oferecem
uma ideia reveladora do continente.
6
Traducido ao português como “Vista das cordilheiras e monumentos dos povos indígenas de América”.
47
as transformações desencadeadas no meio ambiente a partir das atividades humanas, o que não
implicava ponderar os jogos de forças nem os mecanismos econômicos.
A criação e a difusão de imagens, que ponderam a vista como privilegiada para enxergar
a paisagem, é um assunto que exige uma constante reflexão, levando em consideração que não
é neutra nem na perspectiva moral, nem política, segundo Cosgrove (2002), que considera as
imagens como agentes relevantes na configuração da realidade.
No tocante aos parques e praças, por exemplo, Cosgrove (2012) menciona que foram
criados para impor formas de conduta, sendo regulados desde a construção da própria paisagem,
que envolve a distribuição e a organização espacial, a escolha de plantas, o estilo, as cores e
outros aspectos para manter esses espaços imutáveis.
Cosgrove (2012) aponta que a disposição de parques como uma forma de diversão para
substituir passatempos tradicionais da classe trabalhadora inglesa, como as brigas de galo, beber
em tavernas ou a feiras locais, se mantém para simbolizar ideais de decência. Desse modo, o
autor coloca que todas as paisagens têm significados simbólicos ao serem produto de alterações
do meio ambiente pelo homem.
48
Na visão de Sauer (2012), era necessário pensar a paisagem como resultado das relações
entre um grupo cultural (agente), que é força ativa sobre uma área natural (meio), que muda a
paisagem através do tempo em aspectos como as formas de habitação, produção, comunicação
e população.
Sobre esse quesito, Denis Cosgrove (2002), geógrafo inglês, menciona que a paisagem
como conceito organizativo e analítico passou de ser uma referência do concreto, de um
conjunto dimensionável de formas materiais de uma área geográfica definida, de uma
representação dessas formas em uma diversidade de expressões (quadros, fotografias, textos
etc.), para se converter em espaços lembrados, desejados e que dão corpo à imaginação e os
sentidos.
50
Como exposto em seu texto “A geografia está em toda parte”, publicado em 1989,
Cosgrove menciona que limitar a geografia à materialidade reduz sua potencialidade de se
maravilhar com o mundo humano, “com a alegria de ver e refletir sobre o mosaico ricamente
variado da vida humana e de compreender a elegância de suas expressões na paisagem humana”
(COSGROVE, 2012).
A geografia como junção das humanidades e da ciência social, proposta por Cosgrove
(2012), adquire um maior sentido ao se focar na interface entre paisagem, cultura e simbolismo.
A discussão adiantada pelo geógrafo sugere outra perspectiva de paisagem que a considera
como uma forma de ver, compor e harmonizar o mundo, como uma unidade visual.
Assim a paisagem está intimamente ligada a uma nova maneira de ver o mundo como
uma criação racionalmente ordenada, designada e harmoniosa, cuja estrutura e cujo
mecanismo são acessíveis à mente humana, assim como ao olho, e agem como guias
para os seres humanos em suas ações de alterar o meio ambiente. Nesse sentido,
paisagem é um conceito complexo de cujas implicações desejo especificar três: 1) um
foco nas formas visíveis do nosso mundo, sua composição e estrutura espacial; 2)
unidade, coerência e ordem ou concepção racional do meio ambiente; 3) a ideia de
intervenção humana e controle das forças que modelam e remodelam nosso mundo.
Na relação entre cultura e poder, retomamos a Cosgrove (2012). Ele aponta que o poder
é expresso e mantido através da reprodução da cultura. Considerando que a paisagem como
forma de expressão cultural poderia ser reflexo desse tipo de relações hegemônicas,
51
Augusto Berque (2012), por sua parte, propôs conceituar a paisagem como marca e
matriz. Marca, devido ao fato de expressar uma civilização, e matriz, ao considerar que
correspondia aos esquemas de percepção, concepção e ação, ou seja, da cultura. Berque pondera
que é através da paisagem que é canalizado o vínculo de uma sociedade com o espaço e a
natureza.
Salientando que, assim como na cultura, na paisagem o dinamismo é uma constante que
a dota de sentido e permite a abordagem de múltiplos caminhos a percorrer, propomos
direcionar a seguinte tese para a compreensão dos modos de percepção e modos de relação de
um espaço comum como o quintal, que atravessa diversas modulações que se inter-relacionam
para lhe encher de sentido em três escalas (a cidade, a casa e as pessoas) e três dimensões
(material, simbólico e afetivo).
Pensar o quintal estabelece uma relação com a cultura ao se pensar na paisagem como
conjunto de fatores de um olhar construído que adquire uma função comunicativa. Considera-
se que, ao partir da análise sobre a construção do conceito de paisagem, ligada ao pensamento
geográfico, estabelecemos conexões para pensar os espaços da cidade como meio e conteúdo,
ou seja, exprimindo a dimensão comunicativa da paisagem cultural.
Em sua obra “Por uma poética popular na arquitetura”, publicada em 1997, Freire
ponderou três ciclos de produção do espaço em Cuiabá: ciclo da mineração, ciclo da
sedimentação administrativa e ciclo da modernização. As três fases marcadas por
acontecimentos notáveis na história da cidade que tiveram um impacto sobre a cultura material
e imaterial da cidade, e que seriam de grande importância no desenvolvimento da arquitetura e
da constituição da paisagem material.
Ciclo da mineração
Segundo documentos oficiais, Cuiabá seria fundada por meio da ata assinada no dia 8
de abril de 1719 no lugar conhecido como Forquilha, às margens do rio Coxipó, através da
convocatória de Pascoal Moreira Cabral, tempo depois que os bandeirantes paulistas tivessem
atravessado esse território, que, segundo o Tratado de Tordesilhas, correspondia à propriedade
dos espanhóis.
Próximo do córrego da Prainha, num lugar plano que apresentava elevação, foi
construída a Igreja Matriz dedicada ao Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Os escravos, por sua parte,
construiriam também uma capela em dedicação a São Benedito nas proximidades das minas.
No ano de 1727, Cuiabá seria elevada à Vila, recebendo o nome de Vila Real do Senhor
Bom Jesus de Cuiabá. Após a mudança de categoria se deu início à construção dos primeiros
prédios públicos para a administração portuguesa ao redor do Largo da Matriz. A figura 1
mostra, através de um mapa da época, a perspectiva da dimensão do território caracterizado por
uma baixa densidade habitacional.
Figura 1. Mapa colorido da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, elaborado a mão pelo português José
Manoel de Siqueira, por volta de 1770.
Durante o século XVIII, as diversas crises que enfrentou a vila reverberaram no aumento
e diminuição da população, não obtendo um crescimento definido do espaço urbano. Apesar da
descontinuidade, a área central da então nascente cidade já havia sido definida, por volta de
1775. O crescimento da vila se dava às margens do córrego da Prainha. “A primeira área
povoada estendia-se ao longo do córrego da Prainha, entre as minas e seu entorno, de um lado,
e a foz do córrego Cruz das Almas, doutro lado, local este último onde hoje a Avenida Isaac
Póvoas encontra a Praça Ipiranga” (CUIABÁ, 2014).
Segundo Freire (1997), o segundo ciclo de produção do espaço em Cuiabá vai desde
1820 até 1968, quando foi dinamitada a Catedral do Bom Jesus. Durante este período, o autor
identifica três etapas da transformação urbana. A primeira, caracterizada por uma espécie de
“euforia”, quando Cuiabá é nomeada capital, o que finalizaria com o século XIX com a
decadência da mineração. A segunda, como produto do breve surto açucareiro de finais do
século XIX e da extração da borracha de início do século XX. A terceira etapa seria iniciada
com a Interventoria no Estado Novo e teria continuidade até finais da década de 60.
Devido às alterações no status político da cidade, esse ciclo foi caracterizado pelas ações
o poder público com o intuito de construir edificações que proporcionassem, a partir de
elementos como as fachadas, um maior “bom gosto”.
Neste período, as praças, que atraiam os habitantes com seus desenhos, também eram
pontos que ligavam vias paralelas e transversais. A mancha urbana, segundo o registro público
(CUIABÁ, 2014), se concentrou entre o Largo da Mandioca e as redondezas da Igreja Matriz.
57
Freire (1997) menciona que ainda nessa situação de crise, a relevância desse momento
foi a retomada das tradições. Durante esse período, devido à redução da navegação do rio e a
falta de estradas, se revitalizaram as práticas de reciprocidade e interação social, e a cuiabania
foi cultivada, segundo Freire (1997). O autor expõe que a atenção para a própria cidade gerou
a descoberta do seu carácter, desenhando um modo de vida cuiabano.
Outra obra que marcou as transformações da época foi a construção da primeira ponte
de concreto sobre o rio Cuiabá, que ligou a cidade ao município vizinho de Várzea Grande. A
edificação apresentou uma mudança no sistema de comunicação conectando Cuiabá com
cidades do Norte e do Oeste mato-grossenses (CUIABÁ, 2014).
Em 1966, como produto das migrações massivas, o governo estadual criou a Companhia
de Habitação Popular do Estado de Mato Grosso (Cohab), que construiria o Núcleo Residencial
Cidade Verde, conhecido como Cohab Velha, em adjacências do rio Cuiabá. Esse primeiro
núcleo residencial que transformaria o espaço da cidade a partir da construção dos primeiros
“arranha-céus”, incidiria também no adensamento de bairros como Goiabeiras e Cidade Alta,
marcando o lado oeste da cidade como um polo de atração (CUIABÁ, 2014).
Ciclo da modernização
Cuiabá teve uma grande transformação com a criação da nova sede do governo de
Estado após a construção do Centro Político Administrativo (CPA), que modificou o desenho
da cidade e o traçado urbanístico, descentralizando a disposição urbana. Para conectar essa nova
zona da cidade, foi necessária a abertura de uma nova avenida, denominada Avenida
Historiador Rubens de Mendonça, que estendeu a Avenida Tenente Coronel Duarte (mais
conhecida pela população da cidade como Avenida da Prainha).
Com a expansão da cidade para outras áreas, a infraestrutura das vias seria transformada
com o asfaltamento da Avenida Miguel Sutil e a posterior construção dos viadutos nos
cruzamentos da mesma via com as avenidas Historiador Rubens de Mendonça e Fernando
Corrêa. Nos anos 1990, o córrego da Prainha, canalizado anteriormente, foi coberto sendo
ampliada a Avenida Tenente Coronel Duarte.
Durante essa época seria edificado o bairro Cidade Alta, construído o Estádio de Futebol
Governador José Fragelli, conhecido como Verdão, e inaugurado o Terminal Rodoviário
Engenheiro Cássio Veiga de Sá.
Brandão (1997) salienta que em contraste com a construção de obras públicas na cidade,
também ocorreu o processo de ocupação e “estabelecimento de favelas como a do Santa Isabel,
Barbado, Praeiro, Pedregal, Canjica, Planalto A e B, Jardim Bela Vista” (BRANDÃO, 1997, p.
106). A conformação dessas comunidades periféricas geraria outros modos de vida na realidade
de Cuiabá, cuja expansão intensificaria a experiência urbana. Durante esse período, iniciou-se
também o processo de verticalização.
Contudo, essas leis seriam revogadas em maio de 2009, com a proclamação da Lei
Complementar Estadual n.º 359, através da qual se daria a criação da Região Metropolitana do
Vale do Rio Cuiabá (RMVRC), que, junto com Cuiabá e Várzea Grande na condição de núcleo
urbano principal, reúne ainda os municípios de Santo Antônio de Leverger e de Nossa Senhora
do Livramento.
Em 2010, foi inaugurada a Avenida Prof.ª Edna Affi (Avenida das Torres), aberta
parcialmente ao trânsito desde 2009. A avenida, projetada para desobstruir o tráfego na Avenida
Fernando Corrêa, conectou a região do bairro Pedra 90 à do bairro Pedregal.
62
Ciclo financeiro
A obra inicial sofreria um considerável deterioro, sendo ainda alvo de críticas sobre a
construção que apresentou descolagem de pisos e rachaduras e posteriormente teve risco queda
da estrutura. Em 2021, as fachadas seriam reconstruídas em materiais de alvenaria, ainda
mantendo a ideia de representar uma “vila cuiabana”, ainda mantendo as discussões no tocante
aos recursos públicos destinados à obra.
O ciclo que foi caracterizado pelas funções de marketing da cidade ao fim de ser
considerada como dentro do fluxo do turismo, teve na comemoração dos 300 anos da cidade a
concepção de outras intervenções voltadas para acentuar os atributos da cidade e a mobilidade
urbana.
Atualmente, após completar três séculos de fundação (302 anos), Cuiabá conta com uma
população estimada de 623.614 pessoas (IBGE, 2021) e atravessa um processo de
transformação, conforme De Paula e Neto (2020), com a finalidade de fortificar uma nova
imagem utilizando os megaeventos como ferramentas para justificar diversas intervenções na
cidade.
Vivenciar essa última fase como estrangeira e pesquisadora da cidade, desde 2015, após
à realização da Copa do Mundo, me permitiu conhecer várias transformações do espaço em
Cuiabá:
64
1.) as pegadas de obras que deixaram marcas indeléveis na paisagem da cidade, como
lembrança da corrupção, o caso mais visível seria o VLT que deixou uma grande “cicatriz” na
cidade;
2.) a abertura de novas vias, que embora demorassem na construção, geraram expansão
na cidade como a avenida Parque do Barbado;
3) o vazio provocado pela derrubada das árvores para diversas obras, especialmente na
avenida Historiador Rubéns de Mendonça para a construção do VLT, que resultou na posterior
rearborização de alguns trechos da via, para simular o a ausência das obras propostas para o
“progresso da cidade”;
4). a construção de parques da cidade, como opções de lazer, cuja maior frequência é
registrada durante as horas da noite como o Parque Tia Nair, o Parque das Águas e o Parque da
Família;
5). a transformação dos viadutos, cuja construção foi polêmica devido aos erros na
execução das obras, em “galerias de arte” ao céu aberto que proporcionaram através do grafite
diferentes representações da cultura regional, exemplificando o viaduto jornalista Clóvis
Roberto Balsalobre de Queiroz (conhecido como viaduto da UFMT) e o Viaduto Jamil Boutros
Nadaf;
6). a mudança no paisagismo da cidade, por meio da plantação de ipês nas vias, assim
como de espécies ornamentais em canteiros e rotatórias;
Prestar atenção às transformações da cidade e suas tensões abre os caminhos para pensar
nas visões sobre a paisagem e pensar os quintais a partir das dimensões material, simbólica e
afetiva. Olhar para os quintais pondera que a paisagem da cidade possui dimensões
comunicativas dinâmicas, ao considerar a cidade como uma obra inacabada. No entanto,
também mostra que a relação entre a paisagem e a interpretação dela não é um assunto neutro.
7
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
66
As transformações do morro, que nos primórdios era caracterizado por uma vegetação
remanescente do cerrado, foram se adaptando tanto ao plantio de árvores de maior porte que
caracterizam atualmente o espaço como uma das notáveis áreas verdes da cidade, embora
obnubilada visualmente pela construção de prédios ao longo da Avenida Tenente Coronel
Duarte (Avenida da Prainha). Contudo, o abandono do poder público e os problemas de
insegurança, por causa principalmente dos usuários de drogas, privam, atualmente, à população
de desfrutar dessa área.
Figura 2. Vista do morro da luz e da torre da Embratel, a partir do Centro Histórico de Cuiabá.
67
No topo da colina foi adaptada uma torre de telecomunicações, onde fotógrafos subiam
para lograr imagens que conseguiam enxergar o espaço, conforme a cidade se expandia.
Posteriormente, os avanços da fotografia aérea lograriam criar a representação mais fidedigna,
ainda mantendo o morro e a área central como referência na observação.
Assim, as imagens construídas a partir da visão do alto do Morro da Luz criaram uma
visão panorâmica da cidade, que colocou os elementos do Centro Histórico como
preponderantes na representação imagética de Cuiabá. A partir do alto do Morro da luz, gerou-
se uma construção da cidade em plano geral, marcando como referências centrais da paisagem
urbana, como o Palácio da Instrução e a Igreja Matriz, cuja polêmica transformação também
marcou uma faceta da modernidade na cidade.
vegetação para a cidade foram as praças, com grandes palmeiras e árvores, e ruas e avenidas,
como a Avenida Getúlio Vargas, enfeitadas com pés de flamboyant.
No início do século XX, Cuiabá foi denominada “Cidade Verde”, através de um poema
de Dom Aquino Corrêa. Na primeira estrofe, ele escreve: “Sob os flabelos reais de mil
palmeiras, Tão verdes, sobranceiras. E lindas como alhures não as há, Sobre alcatifas da mais
verde relva, Em meio a verde selva, Eis a ´cidade verde´: Cuiabá.”. (CORRÊA, 1985 apud
ROMANCINI, 2005, p. 45).
Notáveis na paisagem da cidade, porém de forma mais tímida, estão os quintais. Esses
espaços, além de mangueiras, cajueiros e outras espécies, formam densas manchas verdes,
visíveis nas pinturas, fotos e outras manifestações visuais. Porém, nesses registros imagéticos,
ao tentar apreender a panorâmica de Cuiabá, essas manchas verdes não são explicitamente e
especificamente exaltadas como recursos visuais relevantes na morfologia da paisagem.
A vegetação presente nos quintais, vista como mancha nas imagens panorâmicas,
oferece informações sobre a mudança nas formas de ocupação (de horizontal para vertical com
a construção de prédios com mais de quinze andares) e também na preservação dos espaços
abertos e dos espaços construídos. A ocupação do espaço evidenciou a gradual desaparição
desses espaços abertos que são os quintais e sua vegetação na região central da cidade, hoje
Centro Histórico e seu entorno, na medida em que Cuiabá adquiria uma maior densidade
populacional.
Iniciando pelas missões científicas dos séculos XVIII e XIX (Figuras 3 e 4), as obras,
desenho em lápis e pintura a cor, mostram a característica rural de Cuiabá através de elementos
como a densa vegetação, os espaços abertos e os animais ruminantes no centro da vila. Na figura
4, é possível apreciar os quintais, observando que esse modelo de moradia é recorrente na
paisagem de Cuiabá desde as primeiras casas até aquelas que se localizam em zonas mais
distantes do Centro.
Figura 4. “Prospecto da Villa do Bom Jesus de Cuiabá” de 1790, desenhado por Joaquim José Freire ou por José
Joaquim Codina. A obra faz parte do Acervo do Museu Botânico Bocage em Lisboa.
Fonte: Album Graphico do Estado de Matto Grosso (EEUU do Brazil), 1914, p. 34-35.
Figura 6. Telhados de Cuiabá na década de 1930.
Figura 7. Vista parcial do centro de Cuiabá do alto do Clube Dom Bosco. Década de 1960.
Figura 9. Fotomontagem de vista de Cuiabá a partir da torre Embratel, localizada no morro da luz, 2002.
Por outro lado, a importância da cobertura verde em Cuiabá tinha sido atribuída, nos
registros visuais e na percepção de viajantes e exploradores, aos quintais cuiabanos. Como
sugere Pesavento (1995), há alguns “espectadores da urbe” aos quais poderíamos denominar
“leitores especiais da cidade”, entre eles fotógrafos, poetas, romancistas, cronistas e pintores da
cidade. Reconhece a autora que neles há uma variação na apreciação e na sensibilidade para
olhar a cidade. Por conseguinte, esses leitores especiais adquirem um olhar apurado, graças a
habilidades culturais, estéticas ou profissionais, alude Pesavento (1995).
Mato Grosso, nos séculos XVIII e XIX, chamou a atenção pela riqueza da fauna e da
flora e do subsolo do território (SIQUEIRA, 2009). Deste modo, diversas expedições científicas
foram realizadas no território, registrando, ainda que de maneira pejorativa, aspectos da
paisagem, notadamente pelos aspectos da natureza do cerrado, que causava desconforto na
percepção dos viajantes. Cuiabá, capital distante dos centros metropolitanos, foi registrada nos
seus descompassos com o que se entendia como a experiência urbana.
73
Como consta nos relatos dos viajantes, os quintais pressupõem um valor especial no que
diz respeito à paisagem da cidade, sendo relevantes tanto entre os espaços de vegetação quanto
nas formas de moradia singulares de Cuiabá.
Deu-se à descrição de Florence grande valor, pois o relato, que aparece em múltiplas
publicações editoriais, mostra não só uma apreciação da materialidade do quintal e sua
biodiversidade, mas a alusão a esse espaço como singular da cidade e sua paisagem cultural,
em termos de identidade.
Outra apreciação sob o olhar da vegetação e dos quintais foi dada em fins de 1938, pelo
engenheiro Cássio Veiga de Sá, encarregado de projetar o primeiro prédio de condomínio
vertical de Mato Grosso, conhecido como Edifício Maria Joaquina, no Centro da cidade.
Naquela época, durante sua visita a Cuiabá, Sá relatou: “No trajeto para o hotel compreendi por
que chamavam Cuiabá, Cidade Verde. Embora as ruas não apresentassem arborização, os
quintais, os espaços vazios, eram cobertos de vegetação” (SÁ, 1980, p. 49, como citado em
DUARTE, 2000, p. 136).
A difusão de valores culturais regionais foi um dos distintivos das artes visuais
cuiabanas. Guimarães (2003) aponta o meio ambiente, como forte elemento inspirador dos
artistas na cidade, visível em diversos cenários cotidianos, como viadutos, muros, fachadas de
prédios, entre outros, nos quais alguns elementos como o caju, a manga, o pequi e os peixes são
expostos como parte do acervo iconográfico.
74
8
As referências das obras foram obtidas a partir da revisão do site Visual Virtual MT que reúne um importante
acervo das obras de arte do Mato Grosso. Disponível em: https://setec.ufmt.br/visualvirtualmt/.
75
Em alusão aos quintais, a figura 11 mostra os fundos dos lotes com especial atenção,
detalhando esse espaço aberto como um espaço de vegetação, também ligado às atividades
domésticas como a secagem de roupas.
Figura 11. Obra “Morro da luz (com a “Casa de Luz” e a escola do professor Avelino Ribeiro”.
Um olhar sobre os quadros em óleo sobre tela do artista visual Marcelo Velasco
possibilita a distinção do verde das casas com relação a um espaço verde mais amplo, como o
Morro da Luz, ao fundo. A pintura também evidencia as proporções de altura e a densidade da
vegetação doméstica com relação aos muros dos lotes e das próprias casas. A obra mostra um
ângulo de baixo para cima, na perspectiva das casas para o morro, diferente de outras
representações que mostram o ângulo contrário.
Embora a vegetação tenha sido um dos aspectos mais relevantes e que impactam as
percepções e imaginários sobre o Brasil, Mato Grosso e Cuiabá, as referências do epíteto da
cidade não referenciam amplas áreas verdes como poderia ser percebido em termos
comunicacionais, com projeções visuais ou skyline como o Central Park em Nova Iorque ou do
Parque Ibirapuera em São Paulo, que criam noções de poder com respeito a relação natureza-
cidade.
A inauguração, nos anos 2000, do parque urbano Mãe Bonifácia permitiu a criação de
outro skyline para a cidade que reforça a ideia de metropolização, criando uma imagem que
comunica a cidade a partir da composição da verticalização do bairro Quilombo e da densa
presença de vegetação da área do parque, que ocupa 77 hectares.
76
A relação dos quintais com a paisagem da cidade apresenta um tecido de fibras finas
que se tecem em relação ao afetivo, o material e o simbólico. A referência dessas novas
construções que marcam relações de poder motiva o presente estudo da paisagem ordinária e
não padronizada dos quintais, visando conhecer essas paisagens ordinárias e íntimas como
marcadores sociais da moradia brasileira e cuiabana.
77
CAPÍTULO II
Compreender o quintal como paisagem requer uma análise sobre o marco onde se
localiza. O quintal perpassa a ligação com a natureza pura para se adaptar ao espaço doméstico,
sendo uma paisagem cultural do cotidiano da cidade de Cuiabá. A abordagem desse espaço
doméstico permeia a compressão arquitetônica e coloca o quintal no cenário social e cultural
da vida privada inicialmente brasileira e logo cuiabana, onde assume uma singularidade.
Como parte suplementar da casa, o quintal adquire lógicas e sentidos quanto à sua
função utilitária (serviço, abastecimento alimentar, sombreamento, medicinal, ornamental),
mas também de forma simbólica e afetiva, ao considerar que a casa é um universo de
significados do homem. Ao se encontrar no cenário da vida cotidiana e ligado aos modos de
habitat humano, o quintal forma parte de uma experiência individual, familiar e coletiva.
como menciona José Carlos Rodrigues: “Existe como espaço simbólico e imaginário, antes de
existir como realização arquitetônica em pedras ou tijolos” (1999, p. 101).
Considerando sua relevância, podemos pensar nos quintais a partir do conceito de lugar
do geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan, que define os lugares como “centros aos quais
80
atribuímos valor e onde são satisfeitas as necessidades biológicas de comida, água, descanso e
procriação” (TUAN, 1983, p.4).
Ao contemplar o quintal, como elemento do habitat humano e como uma forma de ser
e estar no mundo, percebemos que ele se apresenta como uma tecelagem de significações. Essa
tecelagem não unicamente revela uma intervenção humana para a transformação da natureza
com a finalidade de ser usufruída. Mostra também o tecido de afetos que fazem do quintal um
ponto de intersecções que só pode ser compreendido a partir de uma visão interdisciplinar.
O arquiteto espanhol Antón Capitel (2005) pondera os pátios9 como arquétipos versáteis
e sistêmicos, capazes de abrigar formas, tamanhos, estilos e características diversas. Conforme
o autor, a manutenção dos pátios pode remeter a climas quentes e ensolarados de antigas
civilizações que transcenderam tanto para as moradias modestas quanto para os palácios.
9
E também poderia se incluir os quintais.
81
um espaço aberto imprescindível que, localizado no centro das edificações, é ponderado como
conjunto com a parte construída.
Silva (2004) acentua que a densidade entre os lotes era um diferencial, pois aqueles
localizados na América espanhola era mais intensiva, sem deixar espaço livre atrás. A figura
12 exemplifica a distribuição das construções da América espanhola: A). Na parte inferior da
imagem panorâmica de Cusco, no Peru, mostra-se o centro histórico da cidade, do lado
esquerdo da catedral e da praça principal, que está iluminada, aparecem várias construções
quadradas que se caracterizam por ter um espaço aberto no interior, denominados pátios; as
imagens inferiores (B e C) correspondem as perspectivas de cima e de baixo do pátio de uma
casa colonial de Bogotá, na Colômbia, através da qual é possível reconhecer o pátio como uma
parte pensada para complementar a casa. No pátio são visíveis quatro canteiros próximos das
esquinas, cada um deles com uma árvore de porte médio no centro e ornamentado com flores
ao redor; também no meio do pátio há um chafariz. Todos os elementos apresentam simetria.
Figura 1. A. Foto panorâmica da cidade do Cusco (Peru). B e C. Foto do pátio da casa Museu Botero, localizada
no centro histórico de Bogotá (Colômbia)
No que concerne ao quintal da casa brasileira, ele foi caracterizado por adquirir uma
composição e posição anexa, sendo velado ao olhar público, particularidades que diferençaram
a moradia brasileira de outras construções ocidentais. O traço de casas com jardins, que
caracteriza a arquitetura urbana e que dá forma as cidades brasileiras coloniais, corresponde a
diversos processos culturais da mestiçagem cultural entre povos originários, portugueses e
82
Essa forma de ocupação era, conforme Silva (2004), baseada na mão-de-obra escrava
que fazia uso de técnicas limitadas e materiais locais como a terra. Os muros eram construídos
em adobe ou taipa, que precisavam ser protegidos da água para o qual se adotavam soluções a
partir de recursos reduzidos. O telhado de duas águas com beirais, proporcionava cobertura para
a fachada frontal e a fachada dos fundos. A ausência de recuos laterais com respeito aos lotes
vizinhos, resguardava as paredes laterais.
83
Durante a época colonial, o fato de a terra ser objeto de concessão e não produto da
venda do terreno, definia a metragem linear em relação à fachada e do acesso à rua, para além
da metragem quadrada definitiva do terreno (Ver figura 2). Desse modo, poderia se observar
que o resultante desse tecido parcelar era conformado por lotes altamente estreitos, profundos
e frequentemente geometricamente irregulares (MARX, 1991 apud SILVA, 2004).
Silva (2014) aponta ainda que a observação iconográfica do período colonial oferece
indícios de que a área aberta era superior à área construída do lote, evidenciando também a
grandeza dos quintais que, ao se olhar de cima, mostrava ares de meio rural, ainda nas áreas
centrais das cidades.
A diferença de outros fundos de lotes da arquitetura ocidental, Silva (2014) observa que
o quintal brasileiro abrigava práticas singulares como o fornecimento de alimentos. Conforme
Reis Filho (1978), o abastecimento era o principal problema doméstico da época colonial,
10
A obra “Equipamentos, usos e costumes da casa brasileira” de Ernani Silva Bruno e o Museu da Casa Brasileira
reúne um grande acervo de registros sobre quintais das casas do Brasil presentes em relatos de cronistas e viajantes,
testamentos e outros documentos. BRUNO, Ernani Silva. Equipamentos, usos e costumes da casa brasileira. São
Paulo: EdUSP, 2000.
84
devido ao sistema de exportação e monocultura do mundo rural, que gerava uma crise de
abastecimento nas cidades.
Naquele contexto, as casas tentavam ser unidades de produção e o quintal era o centro
onde se localizavam muitas atividades que cumpriam esse propósito, tornando-se o coração da
vida doméstica. No quintal eram plantados diversos alimentos e o espaço também possibilitava
a criação de aves e porcos (REIS FILHO, 1978). No entanto, a importância do quintal começava
pela prática de labores domésticos ligados à cozinha e a outros serviços domésticos cotidianos.
A percepção lusa quase imediata quanto ao novo clima colocou-a nos fundos, num
puxado, deixando a última parede para apoiar a chaminé do fogão, liberando a casa
para uma satisfatória ventilação. Esse espaço subdivide-se num setor de limpeza,
abate e antepreparo, e outro como área de preparo propriamente dita. Cozinha suja e
cozinha limpa, respectivamente, funcionando à custa da mão-de-obra escrava.
(VERÍSSIMO; BITTAR, 1999, p. 109)
A relação entre quintal e escravos é uma história muito próxima. Silva (2014) aponta
que os quintais de casas mais abastadas eram lugares de alojamento dos escravos. Conforme
Veríssimo e Bittar (1999), o desempenho dos escravos nas tarefas domésticas e, sobretudo, na
alimentação, derivaria em mestiçagens da própria culinária que se apresentaria como uma
mistura portuguesa, africana e indígena, e que dialogava com outros ingredientes de
procedências diversas para formar pratos, como a feijoada.
O quintal era um espaço amplo sem demarcações e nele, além da produção de alimentos,
realizavam-se outras tarefas como lavar, quarar e secar as roupas, tingir fios para tecidos, entre
outras atividades (VERÍSSIMO; BITTAR, 1999; DOURADO, 2004).
Em 1850 foi substituído o regime de concessão de terras por um novo sistema que
institucionalizava a propriedade privada do solo, através da Lei de Terras do Decreto n° 1318
do ano de 1854. A nova orientação mudaria a forma de medir as parcelas vendidas por metro
quadrado, trocando a antiga forma que considerava o acesso à rua como parâmetro que,
conforme Silva (2004), apesar de manter a forma retangular dos lotes, foi menos acentuada,
tendo implicações sobre os quintais.
Veríssimo e Bittar (1999) expõem que a partir dessas condições as residências urbanas
ocupam lotes menores e os quintais foram reduzidos demarcando uma área de serviços, com
tanque adicionado a um banheiro, ainda localizados fora do corpo da casa. Essas novas
ocupações foram resultantes do desmembramento de velhas propriedades, que foram divididas
e transformadas.
86
Figura 3: Esquema de reconstituição de rua com modelos arquitetônicos de diversas algumas tendências
estilísticas do Brasil.
A vegetação do quintal
Graças aos descobrimentos marítimos foi possível o primeiro grande trânsito de plantas
intercontinental que o mundo conheceu. Os portugueses, participantes dessa empreitada,
buscavam assegurar o monopólio de espécies valorizadas no mercado europeu, e procederam a
estabelecer um sistema de troca de plantas úteis entre suas colônias no Oriente e no Ocidente
(DOURADO, 2004).
Também uma das mais importantes contribuições foi a do senhor do engenho da Bahia,
Gabriel Soares de Sousa (1540 – 1591), que em 1587 explanava no “Tratado Descriptivo do
Brasil” sua fascinação pela natureza do Brasil. Hoehne (1937) elogia o trabalho de Sousa por
oferecer uma documentação preciosa sobre o cultivo de uma grande listagem de vegetação.
89
Em seu registro sobre as árvores frutíferas, Soares (1587) observou a existência na Bahia
de romãzeiras, mamoeiros, coqueiros, mangabeiras, araçazeiros, entre outras espécies. Também
salientou a ampla presença dos cajueiros e a boa estima que os habitantes sentiam pela planta.
Mencionou que a fruta tinha variedades de formas e cores e que lhes eram atribuídas funções
medicinais, como curar a febre e melhorar a digestão, e proporcionou detalhes sobre as formas
de consumo do caju:
Os cajús silvestres travam junto do olho que se lhes bota fora, mas os que se criam
nas roças e nos quintaes comem-se todos sem terem que lançar fora por não travarem.
Fazem-se estes cajus de conserva, que é muito suave, e para se comerem logo cozidos
no assucar cobertos de canella não tem preço. Do sumo d’esta fruta faz o gentio vinho,
com que se embebeda que é de bom cheiro e saboroso. E para notar que no olho d’este
pomo tão formoso cria a natureza outra fruta parda, a que chamamos castanha, que é
da feição e tamanho de um rim de cabrito, a qual castanha tem a casca muito dura e
de natureza quentíssima e o miolo que tem dentro; deita esta casca um óleo tão forte,
que tão forte, que aonde toca na carne faz empola, o qual óleo é da côr de azeite e tem
o cheiro mui forte. Tem esta castanha o miolo branco, tamanho como o de amendoà
grande, a qual é muito saborosa, e quer arremedar no sabor aos pinhões, mas é de
muita vantagem. D'estas castanhas fazem as mulheres todas as conservas doces que
costumam fazer com as amendoas, o que tem, graça na suavidade do sabor; o miolo
d'estas castanhas, se está muitos dias fóra da casca, cria ranço do azeite que tem em
si; quando se quebram estas castanhas para lhes tirarem o miolo, faz o azeite que tem
a casca pellar as mãos a quem as quebra. (apud HOEHNE, 1937, p. 219-220)
Os escritos citados oferecem uma visão da integração de produtos na dieta alimentar dos
brasileiros que remete a diversas conexões marcadas pelas relações de colonizador e
colonizado. Ditas trocas e intervenções permitem analisar a profundidade de uma paisagem que
foi naturalizada ao longo do tempo.
No quintal existem outros elementos adaptados que fazem parte dessa paisagem
construída como as bananeiras, originárias do Sudeste asiático e aclimatadas em São Tomé e
Cabo Verde; os mamoeiros, originários da América Central; os coqueiros, originários da
Polinésia e do Sudeste asiático; romãzeiras, trazidas da Europa. Parte desse grupo, também são
as excepcionais árvores da Índia que foram transferidas para o Brasil no século XVII e que
tiveram uma grande distribuição nos quintais: as mangueiras e as jaqueiras.
Fonte: ECKHOUT, Albert. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo:
Itaú Cultural, 2020.
perceptíveis a partir da implantação de casas sobre o alinhamento das ruas e limites laterais do
terreno, onde apareciam umas seguidas de outras, o que criou certa monotonia das paisagens
das ruas, apontou o autor.
Durante o século XIX, ainda era possível registrar a estrutura casa-quintal, de acordo
com a historiadora Luiza Volpato (1993), que aponta que naquele período as casas dos mais
poderosos na sociedade da época eram feitas de adobe e taipa, e o corpo da casa estava
composto de sala, alcova, varanda, loja e cozinha. No espaço doméstico havia quintais
espaçosos cuja extensão era até a outra rua e se caracterizavam pela plantação de árvores
frutíferas.
que ainda nesse contexto o morador pensou sua casa desejada, considerando os referentes de
espaços de suas vivências.
A figura 5 mostra uma foto aérea do bairro CPA feita no ano de 1994. No conjunto da
paisagem apreciada do alto é possível ver a estruturação do núcleo habitacional, através das
demarcações dos quarteirões que indica um planejamento urbanístico. A imagem panorâmica
mostra a construção do conjunto habitacional como uma composição horizontal de grande
porte.
Nesse novo tipo de moradia, o quintal foi proposto, em várias ocasiões, como espaço
natural ou artificial, dado o confronto na linguagem arquitetônica entre o construído e o não-
construído. Freire (1997) expõe que o redesenho de resistência cultural manteve o quintal mais
amplo e plantado, enquanto o modelo hegemônico de redesenho da casa, que privilegiava a
visão de modernização, rejeitou o quintal.
Apesar de não ter outras referências sobre à transformação desse tipo de moradia na
cidade, a importância do modelo arquitetônico da casa-quintal é projetada ainda como um
elemento da cultura da cidade através da Casa Cuiabana, localizada na região central da cidade
e tombada como patrimônio histórico do Estado de Mato Grosso, por meio da Portaria n° 27/83,
de 13/6/1983. A construção, que abriga atualmente um Centro Cultural do Estado de Mato
Grosso, data do século XVIII.
93
A casa em estilo colonial, construída em taipa e adobe sobre alicerces de pedra canga,
era antigamente a “Chácara de Deidâmia” e foi adquirida em 1901 por Mariano Campos
Borralho. Depois de pertencer à família, passou a formar parte dos equipamentos culturais do
Estado, sendo destinada à realização de diversas atividades que promovem o desenvolvimento
da música e das artes plásticas e cênicas locais, mas também representando um equipamento
turístico de Cuiabá.
O imóvel, em seu caráter simbólico de uma experiência urbana, ainda mantém grandes
mangueiras para representar resquícios do antigo quintal, onde também havia um poço
construído com pedra canga. As árvores, que dão sombra à casa, formam parte do espaço aberto,
que foi adaptado para apresentação de obras de teatro, montagem de feiras e outras exposições
de caráter cultural.
O quintal como parte da vida doméstica, desde o período colonial, constitui um acervo
vivo, onde tem se especializado manifestações como a gastronomia, para a qual teve uma
grande importância ao permitir o desenvolvimento de costumes alimentares singulares.
atividades familiares e outras práticas coletivas de cunho religioso, como as festas de santo,
manifestações de ampla distribuição no território da Grande Cuiabá, conforme o comunicador
e pesquisador em cultura Yuji Gushiken (2012). A organização de ditas atividades de veneração
são complementadas por demonstrações gastronômicas e danças.
A historiadora Kátia Ormond (2018) pondera a importância dos quintais de Cuiabá para
o estudo da formação do cardápio local. A pesquisadora menciona que o entendimento da
formação dos hábitos alimentares precisa da consideração, em primeiro lugar, do valor dado
pelos indígenas da região às espécies dos três biomas encontrados no território de Mato Grosso
(Cerrado, Pantanal e Amazônia) como: caju, buriti, araticum, jatobá, baru, mangaba, pequi,
pitomba, maracujá, entre outras. Em segundo lugar, aos bandeirantes paulistas, disseminadores
de espécies da colônia portuguesa, e em terceiro lugar, aos africanos que foram escravizados
para trabalhar nas minas da cidade e que ao se assentar no território traspassaram seus saberes
e fazeres.
A cozinha eu conheci ficava lá fora, ao lado da casa. Era um puxado coberto de telhas,
apoiado num muro de terra socada, que dava para a rua, ao lado da casa. O chão era
de terra batida, e suas paredes não tinham revestimento nenhum. Não havia
fechamento para o quintal, mas ninguém se preocupava com isso. Não havia ladrões!
O fogão de adobes ficava ao fundo. Sobre ele, algumas grosas velhas, apoiadas em
duas filas de tijolos, separavam o fundo das panelas pretas de ferro e das de barro do
fogo que as aquecia. Pouca coisa ficava ali na cozinha: dois pilões, um de socar milho
para fazer fubá e outro para pilar café torrado; um armário simples sobre uma mesa
rústica encostada na parede suportava pratos, latas e outras coisas mais. Num dos
cantos, o pote de barro com seu tampo de madeira e junto dele, pendurado num fio, a
pedra hume para purificar a água. O monte de lenha, um ninho de galinha com seu
indez dentro (casa de caramujo) ocupavam outros cantos. Esta cozinha foi, certo dia,
ampliada pelo mestre Elisiário, velho amigo lá de casa. Uma cobertura de zinco
permitia então irmos lá, sem que apanhássemos
chuva. (1995 apud ORMOND, 2018)
Souza e Osorio (2019) expõem o caso de uma mulher que em devoção a São Benedito,
santo padroeiro de Cuiabá, realizou a inícios do século XX um festejo religioso no quintal de
sua própria casa. O acontecimento posicionou o quintal como lugar do sagrado, a partir da
celebração da missa no altar disposto ao santo, e envolveu outras atividades como música, baile,
comida e bebida. A festa, de acordo com um fiel era necessária para agradecer ao santo, mas ao
não ser realizada na igreja, obrigou os devotos a dispor o espaço doméstico também com a
finalidade de regozijo.
Para o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard (2008), a casa é um corpo de imagens
que outorga ao homem motivos para se sentir estável. Assim, ao se reimaginar frequentemente
a realidade da casa, ao se apontar todas as imagens, poderia se revelar a alma da casa. A poesia
e a crônica, através da descrição e da narração, permitem recriar os lugares e produzir sensações
diversas, viver, experimentar, ser e estar no quintal.
A nossa (casa) tem um quintal enorme, que sai na rua do Campo, quintal repleto de
mangueiras de tipo Bourbon, assim chamadas por terem sido as sementes trazidas pela
corte dos Bourbon e Bragança, quando se mudou para o Brasil. E a jabuticabeira?
Resiste. Está na 5ª geração. Os tataranetos estão chupando jabuticaba no pé!
Centenária como o ‘tamarineiro’ (tamarindo, fica um pouco pedante, não acha?). Este
em agosto e setembro, estala e joga as bagas no chão, que fica repleto delas para delírio
da criançada, que faz ali um verdadeiro ‘pizeiro’ (Aliás, por falar em ‘pizeiro’, esta é
uma das palavras-chaves de nossa gíria antiga. Você quer explicar o tumulto, a
anarquia, a algazarra, o vozeiro, a avacalhação e não tem palavras, diga ‘pizeiro’ que
todo mundo entende e faz ideia).
Goiabas? Muitas!... tanto das brancas como das vermelhas. Com cascas amarelas ou
‘verdolengas’ (o cuiabano não gosta de verdoengas). Pés de ata, 2 cajueiros, do tipo
amarelos e raquíticos.
O abacateiro... só um pé está dando. E muito. O outro, há muito poderia ter trazido os
frutos. Já furei o tronco, em três lugares distintos, com três pregos velhos,
enferrujados..., mas, ele resiste. Continua estéril.
Os pés de figo estão desafiando os donos da casa. Pretendem ao grupo contestatário.
Não dão nada... Pena!... nada mais bonito que doce de figo ou de limão, em compoteira
bem clara, de cristal liso.
A graviola, ah! Essa está sempre sendo requisitada para o sorvete!...
As bananeiras, de três tipos, fornecem cachos que derrubam os pés e dão à área em
que estão, um ar de umidade ambiental, fresco e gostoso. (BORGES, 2013)
cabaceira, entre outras, possibilita estabelecer uma relação íntima sobre a compreensão das
plantas e os processos da natureza como as safras e mostra a diversidade dos quintais. O autor
também menciona que o cuidado do quintal não é só individual, mas possibilita práticas
comunitárias, como o intercâmbio de mudas de plantas.
As diversas evocações do quintal como recurso para compor seus poemas mostra a
relação estreita do homem com a casa como seu primeiro mundo a ser explorado. A experiência
de ficar em um espaço como quintal, especialmente durante a infância, cria uma intimidade que
transcende as várias etapas da vida, porque gera uma espécie de encantamento. Como o poeta
Barros expõe, é uma relevância que não pode ser medida, mas vivida:
Destarte, a proposta de Barros é criar uma fissura no olhar cotidiano incapaz de perceber
a grandeza do quintal. Por isso, sua forma de pensá-lo é um incentivo para ver como o quintal
é capaz de dar sentido à vida. Assim como, é necessário admirar como o quintal se adapta às
diversas construções afetivas das pessoas com os quintais presentes em Cuiabá, dependendo
dos usos que eles dão a esse espaço.
99
CAPÍTULO III
As aproximações com o objeto de estudos que se vai construindo têm permitido uma
classificação dos quintais em algumas categorias mais perceptíveis: domésticos, coletivos e
comerciais, de acordo com os modos de acesso aos quintais. A primeira categoria (domésticos)
mostra que o quintal mantém uma relação direta com a casa, porque abastece a casa ou porque
nele são desenvolvidas as tarefas domésticas, mas também porque para sua visitação é preciso
conhecer os habitantes da residência.
O segundo, denominado quintal coletivo, não apresenta dependência da casa, ainda que
a produção de alimentos seja aproveitada para o consumo local. O quintal coletivo permite uma
visitação moderada, sem necessidade de ingressar nos espaços da casa e pode albergar uma
quantidade de pessoas maior do que a dos quintais domésticos.
Considerando a composição do espaço para fins residenciais, este tipo apresenta uma
coesão entre o espaço construído (casa) e o quintal, como espaço aberto ou não construído. As
100
funções que o quintal cumpre são conectadas diretamente ao lar, sendo só acessível aos
moradores e restringindo sua visibilidade a partir de muros e portões, como foi evidenciado em
quatro dos cinco quintais visitados.
Figura 1. Mapa de distribuição dos cinco quintais domésticos da pesquisa em Cuiabá, Mato Grosso.
O perfil encontrado dos moradores foi diverso. Encontrou-se que a maioria dos espaços
domésticos abrigava casais de jovens adultos (Q. Boa Esperança, Q. Jardim Universitário e Q.
101
Jardim Imperial II), e apenas um deles com duas crianças pequenas. Esse grupo é constituído
por moradores que provêm do interior de Mato Grosso, São Paulo, Recife, Minas Gerais e uma
pessoa de Lemans (França). Os outros dois espaços domésticos, localizados nos bairros Lixeira
e Cidade Alta, são habitados por idosos11. Esses últimos, naturais de Cuiabá.
11
No Brasil, o termo idoso denomina a população com 60 anos ou mais.
12
O ipê é a flor nacional do Brasil, reconhecido em 1978 mediante a lei 6.507. Contraditoriamente, a espécie faz
parte do mercado internacional de madeira ilegal, que afeta principalmente espécies da Amazônia brasileira.
102
Tabela 1. Demonstrativo do Inventário de espécies alimentares botânicas na área dos cinco quintais domésticos
distribuídos no município de Cuiabá – MT, no ano de 2020.
ESPÉCIES QUINTAIS
60 anos, menciona que tem recebido e oferecido sementes e bulbos, situação que se repete nos
outros quintais onde os informantes confirmaram a troca desses elementos com amigos e
vizinhos.
Conforme a figura 3, o quintal localizado no bairro Cidade Alta, apresenta uma alta
densidade de vegetação, formando em conjunto com casas vizinhas que compartilham modelos
de ocupação similares uma grande quantidade de elementos que aportam à cobertura verde
urbana.
105
13
A origem do nome do bairro deve-se à presença da árvore de nome científico Curatella Americana L.,
popularmente conhecida como Lixeira, pau-de-lixa, caimbé ou sambaíba. A denominação comum dessa espécie
do cerrado brasileiro é dada pela particularidade das folhas que servem arear superficies de madeira e metais.
Fonte: ÁRVORES DO BIOMA CERRADO. Curatella Americana L. [s.d]. Disponível em:
<http://www.arvoresdobiomacerrado.com.br/site/2017/06/06/curatella-americana-l/>. Acesso: 17 de jun. 2021.
106
Aos poucos, a senhora Joana foi plantando pé de manga, mamão, acerola, laranja, entre
outras árvores frutíferas, para fazer sombra e abastecer o lar formado por ela, seu esposo e seus
oito filhos. Ela lembra que na década dos anos 1960 havia uma grande dificuldade de acesso a
alimentos deste tipo em Cuiabá.
Na figura 5, é possível apreciar o quintal como o lugar onde são colocados diversos
objetos de consumo, como latas, madeira e fragmentos de telhas. A disposição de elementos
107
materiais distintos não apresenta uma ordem estabelecida. O que se observa ali naquele espaço,
no registro fotográfico: árvores, resíduos, um galo e um pintinho, o muro, a sombra, a luz, folhas
secas. Este conjunto de objetos e seres vivos conforma uma imagem comum do quintal
tradicional da senhora Joana.
Durante uma visita ao quintal de Mônica e Ricardo, sua filha Flora, de dez meses,
observava um joão-de-barro e mostrava ao pai onde estava a ave. Autores como Sal, García e
Doña (2014) mencionam que a diversidade de fauna que aparece nos quintais é elevada e
algumas espécies de aves utilizam estes espaços como habitat próprio, na medida em que
oferece segurança para a reprodução das espécies.
14
Durante 2021, em Cuiabá, tive a oportunidade de ficar vários dias em um apartamento localizado na região
centro sul da cidade. Próximo ao prédio, localizava-se uma casa com um grande quintal aos fundos. Nele havia
uma frondosa mangueira que dava abrigo a centenas de passarinhos que cantavam juntos, provocando um barulho
ensurdecedor que alegrava as manhas na cozinha do apartamento. Também, em outros quintais das proximidades
era possível acordar com o som das araras.
108
Ainda com a delimitação dos quintais dada através de muros e cercas elétricas, em
quatro dos cinco quintais são criados cães de guarda, encarregados da proteção e do cuidado do
lar. A confiança relacionada à segurança não é depositada unicamente na tecnologia, mas
também em formas tradicionais de proteção, o que inclui a criação destes animais domésticos.
a amplitude do espaço de sombra do quintal, que é disposto tanto para as funções de serviço,
quanto para fins de socialização.
também são penduradas redes de descanso, onde participantes da pesquisa disseram que têm o
costume de deitar-se para repousar.
A senhora Sol afirma que o quintal é um lugar especial por ser um espaço que não existe
nas residências da França, seu país de origem. Quando ela e seu companheiro Leonardo, natural
do estado de São Paulo, começaram a morar na casa foram caracterizando o quintal na
constituição visual da vegetação, visando a criação de um lugar para descansar e compartilhar
momentos especiais com amigos e família.
Em três quintais, as práticas sociais também são dadas a partir da organização das festas
juninas, em que os moradores adaptam o espaço para a realização dessas manifestações
culturais brasileiras, realizadas em comemoração aos santos católicos do mês de junho: São
João, São Pedro e Santo Antônio. O local da festa é chamado de arraial e é caracterizado pela
decoração com bandeirinhas coloridas (em geral feitas de papel de seda), espalhadas pelo local,
onde são dispostos outros elementos culturais como a comida à base principalmente de milho,
que, segundo os informantes, é colocada em mesas no espaço de sociabilidade.
No quintal localizado no bairro Jardim Imperial II, por ser um espaço localizado com
pouca densidade habitacional, é feita a fogueira de São João, conforme a tradição da
comemoração dos festejos juninos. Também no quintal do bairro Cidade Alta, o senhor Jonildo
disse que todo ano realiza o arraial para reunir a família e os amigos, razão pela qual mantém
de forma permanente a placa “Arraiá Jéco 70” na porta de entrada do seu quintal.
Figura 10. Quintal do B. Cidade Alta com decoração permanente do arraial de junho.
A configuração diversa dos quintais tem sido resultado da adaptação, de acordo com as
necessidades de cada habitante. Distinguiu-se que em alguns quintais foram instalados
chuveiros, que permitem aos moradores se refrescar nos dias de intenso calor. A existência
desses elementos apresenta contrastes com o entorno dos quintais, pois, a partir das imagens de
satélite, é possível registrar a aparição reiterada de piscinas em outras áreas não construídas das
residências próximas aos quintais do estudo, conforme a figura 11. No quintal do bairro Jardim
Imperial II apresenta-se uma exceção.
113
Figura 11. Imagem de satélite do entorno do espaço doméstico do quintal do B. Jardim Universitário.
Como exposto, a zona aberta do espaço doméstico é utilizada para inúmeras atividades
sociais, familiares e de lazer, que, segundo os participantes da pesquisa, está relacionada com
uma ideia de bem-estar. Por exemplo, o quintal da senhora Joana é centro de reuniões da
família. Ela menciona que, em todo final de semana, a família se reúne para assar carne na
churrasqueira, fazer um bolo ou comemorar os aniversários dos parentes. O quintal, para ela, é
o lugar da união familiar.
A produção familiar de alimentos em pequena escala nos quintais apresenta uma grande
diversidade de sabores, aromas, formas e cores ao longo do ano. A fartura garantida pelo quintal
favorece o desenvolvimento de saberes gastronômicos dos moradores, que contribuem ao
repertório culinário local.
Figura 12. A - Cacau no quintal do B. Cidade Alta. B – Banana e abacaxi no quintal do B. Jardim Universitário.
C – Feijão guandu e mexerica no quintal do B. Jardim Imperial II.
Figura 16. Couve, cenoura e outras espécies do quintal do B. Jardim Imperial II.
Ter o quintal tem sido favorável para o abastecimento do lar, segundo a senhora Juliana,
durante um ano ela não comprou tomates no mercado ou no supermercado, pois a produção
doméstica provia o consumo da família. O casal também aproveita seus conhecimentos da
formação profissional na área agrícola para realizar processos de conservação artesanal de
alimentos, como o feijão guandu, que após colheita e secagem é armazenado em garrafas pet
para uma longa duração, como é exposto na figura 17.
117
Por sua parte, no quintal do senhor Jonildo, as ventanias da época de chuva derrubaram
vários pés de mamão. Ele disse que fez uma publicação em suas redes sociais ofertando para
quem quiser buscá-los, mas nesse momento ninguém tinha ido ao seu domicílio para buscar as
frutas. Ele alude que o trabalho no quintal demanda tempo, amor e disposição e que entristece
quando acontecem esses contratempos da mesma natureza. No entanto, para ele, a manutenção
do quintal representa um grande valor afetivo.
Figura 19. Mapa de distribuição dos três quintais comerciais da pesquisa em Cuiabá, Mato Grosso.
Sobre a reprodução do quintal foi possível apreciar que remetem às formas de habitação
dos avôs. Para a senhora Soelma, locatária no bairro Boa Esperança, onde funciona seu
restaurante, o quintal é relevante porque foi a tradição que aprendeu de sua avó no estado de
Goiás, que faz divisa com Mato Grosso.
120
Por sua parte, o senhor Fernando menciona que o quintal da casa localizada no bairro
Duque de Caxias, onde funciona o restaurante, é o espaço mais relevante, pois o conceito de
cozinha deriva da experiência do avô, que aos domingos assava costela no quintal da casa no
estado do Paraná, e por isso o conceito do seu restaurante é de uma costelaria com quintal.
Também o senhor Rafael disse que a ideia de aproveitar o quintal do bairro Quilombo
para estabelecer o restaurante foi da mãe, que herdou a casa da mãe dela. Segundo o senhor
Rafael, as características do quintal da avó ainda mantêm alguma vigência no espaço atual,
onde foi adaptado o restaurante:
Esse quintal já existia, já era propriedade da família, mas aqui era literalmente um
quintal mesmo, com poleiro, com galinha, com ganso. Era a vegetação, algumas
árvores já tinha, outras foram construídas ao longo do tempo. E já existe há 13 anos o
restaurante, mas a casa ela já tem mais de 40 anos. Eu brincava bastante aqui,
fazíamos churrasquinhos, então já era um lugar bem frequentado pela família pelo
fato de ser grande, ser espaçoso. O lugar era só familiar. (Herane, 2019)15
Tabela 2. Demonstrativo do Inventário de espécies alimentares botânicas na área dos três quintais comerciais
distribuídos no município de Cuiabá – MT, no ano de 2020.
ESPÉCIES QUINTAIS
NOME COMUM NOME A B C
(DIALETO LOCAL) CIENTÍFICO
Acerola Malpighia •
emarginata DC.
Ata Annona squamosa •
L.
Bocaiuva Acrocomia aculeata •
(Jacq.) Lodd. ex
Mart.
Cajá-manga Spondias dulcis G. •
Forst
Caju Anacardium • • •
occidentale L.
Cebolinha Allium fistulosum L. •
Coentro Coriandrum •
sativum L.
Gengibre Zingiber officinale •
Roscoe
Goiaba Psidium guajava L. •
Hortelã Mentha piperita L. •
Jabuticaba Myrciaria cauliflora • •
(Mart.) O. Berg
15
Entrevista de Rafael Herane realizada em novembro/2019.
121
Por exemplo, em um dos quintais que funciona aos sábados e domingos no horário de
almoço, a mangueira de grande porte cobre quase todo a área destinada aos comensais,
cumprindo uma função de sombreamento (Ver figura 20). Levando em consideração o tamanho
e a localização na esquina de uma via movimentada, a mangueira é visualmente o elemento
mais relevante na paisagem desse quintal.
No restaurante do bairro Duque de Caxias, caracterizado por ter quatro ambientes: o ‘do
caju’, onde dois cajueiros decoram na frente; dois climatizados no espaço construído; e o da
mangueira, no fundo, onde também há uma piscina e a iluminação das árvores, no período
noturno, é preponderante e valoriza a vegetação. Nesse local, as duas espécies de árvores
122
Os cuidados dos quintais têm um aspecto relevante, pois sua manutenção é primordial
para as marcas destes pequenos empreendimentos comerciais, ante a necessidade de uma
paisagem mantida, cultivada e produzida para os sentidos. Portanto, dois dos entrevistados
mencionam que há contratação de serviços de jardinagem. Inclusive no quintal do bairro
Quilombo foi adaptado um sistema de cachepot, um sistema de jardinagem onde um recipiente
decorativo foi colocado na árvore permitindo uma forma de compostagem onde as folhas que
caem das árvores são transformadas, elas próprias, em adubo.
Figura 24. Mapa de distribuição dos dois quintais coletivos da pesquisa em Cuiabá, Mato Grosso.
125
Tabela 3. Demonstrativo do Inventário de espécies alimentares botânicas na área dos dois quintais coletivos
distribuídos no município de Cuiabá – MT, no ano de 2020.
ESPÉCIES QUINTAIS
O quintal localizado no bairro Santa Rosa II foi aberto para visitação durante um dia
domingo, para a realização de uma feijoada, atividade de comensalidade coletiva, proposta em
âmbito familiar e comunitário com fins de arrecadar recursos para o tratamento de pessoa
diagnosticada com câncer.
A figura 25 mostra o espaço disposto para a cozinha, onde várias pessoas realizam suas
atividades. A foto mostra uma área que inclui uma parte coberta, mantendo uma grande zona
aberta, onde a arborização, representada por uma laranjeira (Citrus sinensis), mangueiras
(Mangifera indica) e uma aceroleira (Malpighia glabra), proporciona sombra. Ainda neste
caso, a configuração deste espaço coletivo reitera a associação das mangueiras à paisagem dos
quintais da cidade.
Figura 25. Cozinha disposta para a preparação da feijoada no quintal do B. Santa Rosa II.
Na mesa principal (Figura 26), coberta por um toldo piramidal que protegia a comida
da exposição ao sol, foram servidos os seguintes pratos na composição do almoço: vinagrete,
couve picada, farofa, arroz, rodelas de laranja e cebolinha cortada, acompanhados de pimenta
natural e artesanal e a própria feijoada como prato principal.
128
Figura 26. Mesa servida com a feijoada e outros acompanhamentos no quintal do B. Santa Rosa II.
O sentimento expressa não só uma situação isolada, mas reflete sobre a precariedade
dos sistemas de saúde dos países latino-americanos, que apresentam trâmites burocráticos e
financeiros que acrescentam a dificuldade do tratamento de doenças graves para as camadas
populares. Por isso, da necessidade de espaços como os grandes quintais como plataforma
dessas causas sociais.
O quintal de Dona Domingas, caracterizado por ser um espaço aberto pela presença de
árvores de grande porte, como mangueiras e seriguelas, tornou-se um centro cultural, adaptado
como um grande palco, neste caso para usufruto das crianças. A figura 28 mostra também as
frondosas árvores do quintal. A vegetação constitui o ambiente com a produção artística dos
murais, pintados por artistas locais que retrataram a história da comunidade e da cidade, na
medida como arraial que deu origem à cidade.
130
Próximo à barra do rio Coxipó, o quintal é representativo da cultura ribeirinha, que, para
além das danças de siriri e cururu, possui na cerâmica artesanal um elemento de sua identidade,
131
A foto (Figura 30) mostra o caráter coletivo dos quintais quando colocadas perto do
forno várias cadeiras de plástico indicam uma possível reunião de pessoas em torno das
atividades da cerâmica, mas também a necessidade de manter essa prática notável graças a
manutenção do forno, que foi coberto por um telhado duas águas enfeitado com objetos
coloridos.
132
CAPÍTULO IV
16
A OMS e alguns governos ainda adiantam investigações para determinar qual foi a origem do SARS-CoV-2.
134
O novo coronavírus apresenta semelhanças com outros sete coronavírus (CoV) que já
afetaram os humanos. Segundo Limongi e Oliveira (2020), ao longo do século XXI foram
identificados três episódios de transferência zoonótica envolvendo coronavírus (CoV): O
primeiro foi o Sars-CoV-1, em 2002, registrado inicialmente na cidade chinesa de Guangzhou;
posteriormente, em 2012, apareceu outro patogênico nos países de Oriente Médio que foi
conhecido como Síndrome Respiratória de Oriente Médio; por último, em dezembro de 2019,
foi identificado o novo coronavírus SARS-CoV-2.
A partir do marco da One Health, tem sido adiantadas estratégias baseadas na relação
saúde-adoecimento-cuidado no âmbito global dos serviços de saúde com a finalidade de
enfrentar a pandemia da Covid-19. A perspectiva interdisciplinar permite pensarmos a
pandemia não unicamente desde a prevenção das doenças, mas também no tocante à saúde
como uma série de consequências da interação humana e animal no ambiente em outras
dimensões, inclusive culturais.
A perspectiva One Health pondera que a saúde deve ser pensada a partir de múltiplos
ângulos. Assim, também a pandemia vivenciada desde 2020 despertou no mundo diversas
135
preocupações não apenas no que se refere ao vírus e à doença, mas, entre outros, ao panorama
social, entornos familiares, saúde mental dos indivíduos, qualidade das moradias e impacto
econômico da crise sanitária global.
17
Algumas diretrizes da Organização Mundial da Saúde dirigidas ao público sobre a Covid-19 estão disponíveis
em:<https://www.paho.org/pt/covid19#:~:text=Ao%20comparecer%20ao%20servi%C3%A7o%20de,a%20a%2
0seguir%20esta%20orienta%C3%A7%C3%A3o>.
137
A situação de isolamento gerou uma rasura no tecido social. Encontros entre familiares
e amigos foram abdicados, com a finalidade de evitar a distribuição do vírus e foi recomendado,
especialmente, o isolamento dos idosos, ao serem considerados o grupo de mais alto risco de
morte por serem mais vulneráveis às complicações clínicas desencadeadas pelo vírus.
Nesse cenário, foi preciso pensar a adaptação das práticas sociais e econômicas perante
o contexto da pandemia o que determinou o início de uma denominada “nova normalidade”,
onde o lar foi o lugar mais importante.
Após ser declarada a pandemia, o lar virou o espaço mais relevante para a proteção das
pessoas, sendo também o ambiente onde diversas atividades foram concentradas. Com a família
138
reunida em uma única atmosfera, o trabalho, a escola, a academia, entre outros, foram adaptados
no espaço doméstico. Para a família, o costume de frequentar determinados lugares teve que
ser refreado e muitas atividades deslocaram-se para o lar como lugar existencial. Esta
transformação nos hábitos, provocada pela pandemia, gerou múltiplos questionamentos sobre
os modos de habitar e a conformação das cidades para abrigar os habitantes e oferecer sensação
de bem-estar.
A terceira conferência, conhecida como Habitat III, foi realizada em Quito, no Equador,
em 2016, para abordar a temática de moradia e desenvolvimento sustentável. Para dar
continuidade ao tratamento de um fenômeno complexo como a urbanização, em 2002, através
139
da resolução A/56/206 da Assembleia Geral, foi criado o Programa das Nações Unidas para os
Assentamentos Urbanos (UN Habitat).
Conforme a relatora especial das Nações Unidas sobre o direito a uma moradia
adequada18, Leilani Farha, a moradia é parte da primeira linha de defesa no combate contra o
coronavírus, razão pela qual, nesse momento de pandemia da Covid-19, a moradia pode ser
considerada uma condição de vida ou morte (UN-HABITAT, 2020a).
18
Em 2000 foi criada a Relatoria Especial para o Direito à Moradia Adequada da ONU com a finalidade de
analisar, monitorar e relatar o direito à moradia no mundo. Ver informação em:
http://www.direitoamoradia.fau.usp.br/?page_id=48&lang=pt
140
19
Ver informação em: https://veja.abril.com.br/mundo/as-casas-gaiola-de-hong-kong-cubiculos-do-tamanho-de-
uma-vaga-de-garagem/
20
Ver informação em: https://www.idealista.pt/news/imobiliario/habitacao/2018/09/05/37276-as-casas-colmeia-
chegaram-a-espanha-capsulas-de-3-m2-em-barcelona-por-250-euros-ao
141
Ficar o dia inteiro no próprio espaço doméstico, só conseguir sair na rua à procura de
serviços essenciais como comprar alimentos, pensar as incertezas geradas sobre a distribuição
do vírus que gerava colapsos nos sistemas de saúde mundial, conhecer sobre o sofrimento das
famílias sendo desintegradas ao perderem seus integrantes por serem vítimas mortais do vírus,
foram situações que se repetiam dia-a-dia gerando uma espécie de loop no cotidiano.
A Covid-19, como assunto de saúde pública, deve integrar diversas esferas para garantir
a saúde da população, entre elas os determinantes da saúde mental (FARO et al., 2020), levando
em consideração as repercussões das medidas adotadas para lidar com o vírus. Especificamente,
as diversas perspectivas da relação entre moradia e saúde pública estão intimamente
relacionadas e direcionam os debates a uma forma interdisciplinar de tratar os espaços,
prestando especial importância às desigualdades e aos problemas sanitários ainda mais visíveis
nas cidades contemporâneas.
A questão dos quintais, diretamente ligada ao tema do habitar a cidade, adquire outro
sentido no atual momento de pandemia, considerando especialmente as dinâmicas de moradia
de uma cidade como Cuiabá, que passa por uma verticalização muito valorizada nos últimos 30
anos, por questão de segurança e também status social. Nesse contexto, em que a verticalização
se impôs como modelo de habitação que gerou a desconsideração dos quintais, a pandemia
permitiu ter uma releitura destes espaços na cidade contemporânea.
Desse modo, o modelo urbano apresentado pelo arquiteto espanhol para a construção de
moradias em Xiong'an marcaria algumas pautas da construção dos ambientes, levando em
consideração as novas necessidades dos moradores em tempos de pandemia. Conforme
Guallart:
Não podemos continuar a projetar cidades e edifícios como se nada tivesse acontecido.
Nos últimos tempos existem fenômenos em escala mundial que nos obrigam a
143
O projeto de cidade apresentado pelo escritório Guallart Architects, eleito entre 300
propostas dos mais renomados arquitetos do mundo, mantém uma visão de priorizar as questões
de saúde e do clima no cenário atual de crise, mantendo como foco o uso residencial.
21
A economia circular pondera-se como um sistema onde é minimizada a poluição através do aproveitamento e
proteção dos recursos. Através dos fluxos circulares de reutilização, restauração e renovação se procura um
gerenciamento de materiais e energia para substituir o modelo econômico linear. Fonte: ECO.NOMIA. O que é a
economia circular. [s.d]. Disponível em: <https://eco.nomia.pt/pt/economia-circular/estrategias>. Acesso: 17 de
mar. 2021.
144
Figura 1: Desenho da cidade autossustentável apresentada pelo escritório Guallart Architects para a construção
da nova área de Xiong'an a partir da perspectiva de pós-COVID-19
Las medidas de control del COVID-19 en ciudades y áreas urbanas y la falta de acceso
a espacios exteriores pueden tener un efecto perjudicial en la salud mental y física de
los residentes. El ambiente estresante de la estadía en el hogar, especialmente en
viviendas pequeñas y abarrotadas en asentamientos informales, la interrupción de las
redes sociales y de protección y la disminución del acceso a los servicios exacerban
el riesgo de violencia para mujeres y niños.22 (UN-HABITAT, 2020a)
22
“As medidas de controle do COVID-19 em cidades e áreas urbanas e a falta de acesso a espaços exteriores podem
ter um efeito prejudicial na saúde mental e física dos residentes. O ambiente estressante da estadia no lar,
especialmente em residências pequenas e lotadas em assentamentos informais, a interrupção das redes sociais e de
proteção e a diminuição do acesso aos serviços exacerbam o risco de violência para mulheres e crianças.”.
Tradução da autora.
23
Notícia: “Covid-19 aumenta busca por imóveis com quintal ou varanda”. 20 jun. 2020. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-brasil/2020/06/20/covid-19-aumenta-busca-por-imoveis-
com-quintal-ou-varanda.htm>. Acesso em: 21 de fev. 2021.
24
Notícia: “Com a pandemia, brasileiros sonham com casa maior e com quintal”. 17 jul. 2020. Disponível em: <
https://exame.com/minhas-financas/com-a-pandemia-brasileiros-sonham-com-casa-maior-e-com-quintal/>.
Acesso em: 21 de fev. 2021.
25
Notícia: “Quintal, varanda, escritório: os sonhos de consumo na busca por imóveis na pandemia”. 20 maio.
2020. Disponível em: < https://6minutos.uol.com.br/economia/quintal-varanda-escritorio-os-sonhos-de-
consumo-na-busca-por-imoveis-na-pandemia/>. Acesso em: 22 de fev. de 2021.
146
preferência dos brasileiros pela busca de casas mais espaçosas, em comparação com anos
anteriores, em que os compradores procuravam apartamentos.
Em janeiro deste ano [2020], antes da crise estourar, 64% das buscas feitas no
comparador eram por apartamentos, e apenas 36% por casas. No mês passado [abril
de 2020], a procura por casas aumentou para 44% do total, o que reflete o desejo do
brasileiro por mais espaço em meio ao confinamento. [...] Segundo o levantamento,
as buscas que incluem filtros pedindo quintal cresceram 82% entre abril deste ano e o
mesmo período do ano passado; no caso de varandas, a alta foi de 72%, e de escritório,
de 71%. (PRADO, 2020)
Ainda que o destaque na mídia a paisagem do quintal seja generalizado para o Brasil e
não apresente referências aos quintais de Cuiabá, as informações validam a importância de
estabelecer relações entre a procura de espaços para melhorar a qualidade de vida e o modelo
casa-quintal como uma representação de boa moradia.
Esta busca por espaços abertos junto à casa que se habita aparece como uma demanda
num contexto marcado pelo confinamento, produto pandemia provocada pela Covid-19. As
considerações de buscas e enunciados discursivos mostram implicitamente a valorização dos
quintais no tempo presente, como parte da reconfiguração urbana do mundo e do Brasil.
Portanto, abrem um leque de possibilidades para projetar a funcionalidade dos quintais
cuiabanos e coloca a cidade como exemplo, embora esta nunca tenha sido sua ambição, na
forma de organização espacial doméstica.
Durante a coleta de dados, anterior à pandemia, foi possível identificar vários aspectos.
O perfil etário dos cuidadores dos quintais variava entre adultos e idosos, sendo estes últimos
parte do grupo de risco da covid-19. Nesse caso, a continuidade das atividades do quintal
poderia mantê-los mentalmente ativos, atenuando o estresse psicológico derivado da pandemia.
Como registrado no caso dos informantes da pesquisa em Cuiabá, existe um gosto por
plantar, ato espontâneo que em vários casos não era derivado de um conhecimento ou profissão,
mas de um hábito herdado pela tradição familiar, em ocasiões para suprir uma necessidade de
alimento.
No quintal a experiência de plantar, germinar, cuidar, regar, expressam atividades do
dia-a-dia, mas também implicitamente mostram o afeto do ser humano de respeito pelo tempo
148
em que uma planta cresce e pode dar fruto, além das dificuldades que podem se apresentar no
caso das fortes tempestades, da seca e outros fenômenos.
Ademais, o ato de plantar, a partir do período derivado da pandemia atual, adquire outras
motivações, conforme o especialista em solos e agricultura da Universidade do Estado de Ohio,
Rattan Lal. Ele considera que a jardinagem doméstica e a agricultura urbana cumprem um papel
importante no que diz respeito à soberania alimentar durante e depois da pandemia:
Grandes perturbações no abastecimento alimentar a cadeia causada pela pandemia da COVID-
19 agravou os graves problemas de fome já existentes e desnutrição, juntamente com o
desperdício de alimentos. Urbanização não planejada ou adhoc também tem impactos drásticos
sobre o meio ambiente (ou seja, o efeito ilha de calor, escoamento alto, inundação), e estes
problemas são agravados pela mudança do clima. Um grande desafio criado pela pandemia
COVID-19 é interromper o acesso a alimentos frescos e nutritivos em preços acessíveis para a
grande e crescente população urbana. (LAL, 2020, p. 873)26
Tabela 4. Demonstrativo do Inventário de espécies alimentares botânicas na área dos quintais distribuídos no
município de Cuiabá – MT, no ano de 2020
ESPÉCIES QUINTAIS (TIPOS)
26
Texto original em inglês: “Major disruptions in food supply chain caused by the COVID-19 pandemic have
aggravated the already existing severe problems of hunger and malnutrition along with food wastage. Unplanned
or adhoc urbanization also has drastic impacts on the environment (i.e., the heat island effect, high runoff,
inundation), and these problems are aggravated by the changing climate. A major challenge created by the COVID-
19 pandemic is disrupting access to fresh and nutritious food at affordable prices to large and growing urban
population.”. (LAL, 2020, p. 873).
149
Alecrim Rosmarinus •
officinalis L.
Alface Lactuca sativa L. •
Ata Annona squamosa • • • • •
L.
Babosa Aloe vera (L.) Burm. • •
f.
Banana Musa × paradisiaca • • • • • •
L.
Berinjela Solanum •
melongena L.
Bocaiuva Acrocomia aculeata •
(Jacq.) Lodd. ex
Mart.
Cacau Theobroma cacao •
L.
Cajá-manga Spondias dulcis G. •
Forst
Caju Anacardium • • • • • • • •
occidentale L.
Cana de açúcar Saccharum •
officinarum L.
Capim cidreira Cymbopogon • •
citratus (DC.) Stapf
Cará-roxo Dioscorea trifida L.f. •
Carambola Averrhoa carambola •
L.
Cebolinha Allium fistulosum L. • • • •
Cenoura Daucus carota L. •
Citronela Cymbopogon • •
winterianus Jowitt
ex Bor
Coco Cocos nucifera L. •
Coentro Coriandrum sativum •
L.
Couve Brassica oleracea •
var. acephala DC.
Cupuaçu Theobroma •
grandiflorum (Willd.
ex Spreng.) K.
Schum.
Feijão guandu Cajanus cajan (L.) •
Millsp
Fruta-pão •
Artocarpus altilis
(Parkinson)
Fosberg
Gengibre Zingiber officinale •
Roscoe
Goiaba Psidium guajava L. • • •
Graviola Annona muricata L. •
Hortelã Mentha piperita L. • • •
Ipê Tabebuia sp. •
Jabuticaba Myrciaria cauliflora • • • • •
(Mart.) O. Berg
Jaca Artocarpus •
heterophyllus Lam.
Jenipapo Genipa americana •
L.
Laranja Citrus × sinensis • •
(L.) Osbeck
Limão Citrus × limonum • •
Risso
Mamão Carica papaya L. • • • • •
Mandioca Manihot esculenta • • • •
Crantz
Manga Mangifera indica L. • • • • • • • •
Manjericão Ocimum L. • •
Menta Mentha spicata L. •
Mexerica Citrus reticulata •
Blanco
Milho Zea mays L. •
Pepino Cucumis sativus L. •
150
Pimenta Capsicum L. • •
Pitanga Eugenia uniflora L. • • •
Pitomba Talisia esculenta (A. • •
St.-Hil.) Radlk.
Pupunha Bactris gasipaes •
Kunth
Quiabo Abelmoschus •
esculentus (L.)
Moench
Romã Punica granatum • •
L.
Rúcula Eruca sativa Mill. • •
Seriguela Spondias purpurea • •
L.
Tomate Solanum • •
lycopersicum L.
DOMÉSTICOS: A – BOA ESPERANÇA; B – JARDIM UNIVERSITÁRIO; C – LIXEIRA; D – CIDADE ALTA; E – JARDIM IMPERIAL
II; COMERCIAIS: F – QUILOMBO; G – BOA ESPERANÇA; H – DUQUE DE CAXIAS; COLETIVOS: I – SANTA ROSA II; J –
COOPHEMA
O feijão é suplemento alimentar com o arroz. Junto, o conhecido arroz com feijão
constituem elementos fundamentais na dieta dos brasileiros. Os profissionais em nutrição e
outras áreas da saúde, Sichieri et al. (2000), indicam que algumas recomendações de
alimentação e nutrição saudável para a população brasileira sugerem que, além do arroz e feijão,
é necessário incluir o consumo de frutas ao alcance da sociedade, uma vez que os nutrientes das
frutas têm a capacidade de prevenir doenças crônicas.
27
Reportagem: “Clima e pandemia elevam preços de hortifrúti em mais de 80%” . 06 set. 2020. Disponível em:
<https://www.gazetadigital.com.br/editorias/economia/clima-e-pandemia-elevam-preos-de-hortifrti-em-mais-de-
80/628424>. Acesso em: 22 de fev. 2021.
28
“Levantamento aponta que hortifruti teve alta de até 110% em Cuiabá”. 04 fev. 2020. Disponível em:
<http://www.mt.gov.br/rss/-/asset_publisher/Hf4xlehM0Iwr/content/id/16415260>. Acesso em: 22 de fev. 2021.
152
Figura 3. Coleta de frutas como mamão e banana no quintal do bairro Cidade Alta.
Conforme foi registrado, nos quintais cuiabanos desta pesquisa foram identificadas uma
ampla variedade de frutas, tanto para o consumo da própria fruta, quanto para a elaboração de
sucos e doces. Encontraram-se algumas frutas como as mais recorrentes, fazendo parte do
inventário de espécies em cinco ou mais quintais entre os dez registrados: acerola (Malpighia
emarginata DC), banana (Musa × paradisiaca L.), caju (Anacardium occidentale L.),
jabuticaba (Myrciaria cauliflora (Mart.) O. Berg), mamão (Carica papaya L.), manga
(Mangifera indica L.).
29
O termo faz referência às características determinadas a partir de factores do meio tais como o clima, a humidade
do ar, a radiação, o relevo, a temperatura, a litologia, o tipo de solo, o vento, a composição atmosférica e a
precipitação pluvial. “As condições edafoclimáticas são relativas à influência dos solos nos seres vivos, em
particular nos organismos do reino vegetal, incluindo o uso da terra pelo homem, a fim de estimular o crescimento
das plantas.” Fonte: Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Condições edafoclimáticas. 27 jun. 2007. Disponível em:
<https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/condicoes-edafoclimaticas/21084>. Acesso: 21 de maio.
2021.
153
O tempo dedicado ao quintal teve um valor adicional ao simples ato de cuidar do espaço
no cotidiano: regar e podar as plantas, varrer as folhas, plantar mudas, colher frutos, cozinhar,
caminhar pelo quintal, tomar Sol, sentar-se à sombra das árvores. Estas práticas banais
adquiriram um significado de cuidado de si, do cuidado da saúde mental em tempos de
confinamento. No quintal também podem ser realizadas atividades físicas, que favorecem a
saúde mental como tem sido sugerido pela Organização Mundial da Saúde (WORLD HEALTH
ORGANIZATION, 2020);
Fonte: Velásquez e Medina (2021). Elaborados a partir dos registros audiovisuais e observação in situ.
155
No bairro Lixeira, área mais antiga, no entorno do Centro Histórico de Cuiabá, o lote
apresenta outra configuração, não sendo os lotes homogêneos nem na forma nem no tamanho.
De maior tamanho, o espaçamento é maior, possibilitando mais espaço livre tanto na área
frontal quanto no quintal localizado aos fundos. Árvores frondosas dão sombra à casa,
evidenciando, através do tamanho, sua longevidade. Mangueira, pitombeira, laranjeira e
cajueiro fazem parte do inventário desta casa, junto com outras espécies. Na lateral encontra-se
uma churrasqueira de tijolo e uma mesa grande de madeira com muitas cadeiras, disponível
para os encontros de uma família numerosa.
Fonte: Velásquez e Medina (2021). Elaborados a partir dos registros audiovisuais e observação in situ.
Na Cidade Alta, bairro de renda mais baixa, é perceptível que há mais espaços
construídos, na medida em que a família precisa ocupar mais espaço. Há construções com vários
propósitos: quartos para alugar, a casa familiar, o banheiro que fica fora da casa mais antiga e
o quarto de ferramentas. Mangueiras, coqueiros, mamoeiros, um pé de cacau e outras espécies
compõem a vegetação do local, mas também há lugar para uma horta onde são plantadas
mandioca e outras espécies.
156
Para a segurança do local foram construídos altos muros e adaptadas cercas elétricas.
Para incrementar as medidas de segurança, os habitantes também criam cães que protegem o
espaço. Pode-se evidenciar que, apesar das diversas construções, as áreas ao ar livre constituem
a maior parte do lote. Em uma área próxima à casa se encontra uma mesa redonda de cimento
com quatro cadeiras, onde o proprietário da moradia costuma tomar café.
Fonte: Velásquez e Medina (2021). Elaborados a partir dos registros audiovisuais e observação in situ.
mangueiras, serigueleiras e jaqueiras, se dispôs um varal para secagem de roupas. Nessa área
foi construída uma casa pequena para armazenar ferramentas e outros objetos.
Fonte: Velásquez e Medina (2021). Elaborados a partir dos registros audiovisuais e observação in situ.
No bairro Jardim Imperial II, o lote está inserido em um ambiente semirrural, perceptível
pelo tamanho. O quintal está localizado aos fundos, mas o aproveitamento para plantar
alimentos também acontece nas áreas laterais, onde inclusive há uma plantação de hortaliças e
temperos como couve, alface, manjericão, entre outros.
158
Na zona dos fundos há uma grande diversidade de espécies como abacaxi, laranjeiras e
uma grande mangueira que dá sombra a atividades dos proprietários. Entre as atividades mais
importantes que acontecem no quintal registra-se, além da prática de assar carne, a organização
da festa junina para a qual são colocadas mesas com comidas e bebidas e os participantes
acendem uma fogueira no chão, conforme a tradição da festa.
Figura 8. Croqui do espaço doméstico localizado no bairro Jardim Imperial II.
Fonte: Velásquez e Medina (2021). Elaborados a partir dos registros audiovisuais e observação in situ.
Nesse sentido, pondera-se que a manutenção dos quintais nesses ambientes comerciais
fornece à cidade não unicamente os serviços ambientais, mas também é favorável para o
cuidado da população com relação aos serviços sanitários. Como apresentado nas figuras 9, 10
e 11, a distribuição dos espaços mostra que os quintais, como áreas abertas e arejadas,
conformam uma grande área com respeito às áreas construídas, marcadas em laranja, e que
podem ser fechados ou climatizados.
Fonte: Velásquez e Medina (2021). Elaborados a partir dos registros audiovisuais e observação in situ.
Figura 10: Croquis do espaço comercial (Restaurante) localizado no bairro Boa Esperança.
Fonte: Velásquez e Medina (2021). Elaborados a partir dos registros audiovisuais e observação in situ.
Figura 11: Croquis do espaço comercial (Restaurante) localizado no bairro Duque de Caxias.
Fonte: Velásquez e Medina (2021). Elaborados a partir dos registros audiovisuais e observação in situ
No Santa Rosa II, bairro humilde cercado por prédios de apartamentos de luxo, um lote
de grandes proporções é usado para o encontro da comunidade. O lote é distribuído para
diversos usos: a cozinha, em maior parte coberta, onde também há fogões a lenha; outras
construções nas beiradas para uso habitacional; um bar; os serviços sanitários; uma espécie de
palco bandas musicais e outra área para a dança.
Figura 12: Croquis do espaço de caráter coletivo localizado no bairro Santa Rosa II.
Fonte: Velásquez e Medina (2021). Elaborados a partir dos registros audiovisuais e observação in situ.
No setor de São Gonçalo Beira Rio, no bairro Coophema, está localizado o espaço
denominado “O quintal do siriri”, um grande lote com algumas construções, onde o conhecido
grupo folclórico “Flor Ribeirinha” foi criado e onde funciona sua sede. O lote, além de ser palco
da dança popular da comunidade ribeirinha, funciona como uma escola de danças populares,
onde crianças de várias idades se familiarizam com a tradição folclórica.
Fonte: Velásquez e Medina (2021). Elaborados a partir dos registros audiovisuais e observação in situ
A pandemia gerada pela Covid-19 nos conduz a traduzir a vida, a repensar os sentidos,
a mudar as condutas. Este fenômeno de saúde pública mundial exerceu uma força que
desacelerou, deslocou e demonstrou que nossa forma de habitar o mundo é primordial para
garantir nossa própria existência como espécie.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
b) o quintal como um espaço suplementar da casa, na medida que exerce funções domésticas
importantes relacionadas com serviço e abastecimento;
d) a necessidade ainda hoje dos quintais como espaços do cuidado e da saúde mental e física,
como foi evidenciado a partir da pandemia gerada pela covid-19.
Estes quatro aspectos orientam a discussão sobre o valor de uso, no âmbito do valor
simbólico, no cotidiano da paisagem cultural de Cuiabá na presente tese, reafirmando a
importância de pensar esses espaços a partir de diversas perspectivas que favorecem uma
discussão interdisciplinar da cidade e dos modos de habitá-la.
Todavia, ao ser considerado uma área velada ao olhar público ou inclusive de visitantes
da casa, a visualidade do quintal é restrita. A relação tão íntima das pessoas com este espaço
faz com que a divulgação dele tenha pouco alcance e seja mais frequente sua referência oral,
do que visual. Deste modo, o quintal é vivido, praticado, mais do que comunicado.
166
Nesse sentido, a abordagem dos quintais a partir das categorias espaciais de paisagem
cultural e lugar adquirem sentido, sendo necessário refletir sobre os quintais na atualidade para
criar outras visualidades e refletir sobre como a configuração espacial desses lugares apresenta
contrastes nas formas e usos. Assim, o quintal pode ser considerado como um espaço que reúne
um mosaico de lugares social e culturalmente constituídos na paisagem cuiabana.
Por outro lado, o mapeamento dos quintais a partir dos usos permitiu pensar nas
variações do quintal e a adaptação deles no inventário cultural da cidade, considerando o acesso
aos quintais para o uso comercial ou coletivo, que proporcionam uma visão mais ampla das
formas de interação homem-natureza e modificando os valores atribuídos as categorias “frente
e trás” (Tuan, 1980), que privilegia a importância das fachadas das casas, como tem sido
percebido em Cuiabá, através da disposição dessa paisagem, de contorno kitsch, na Orla do
Porto.
A disposição dos quintais para fins de encontro coletivo, por meio da realização de
eventos, ou a disposição dos quintais como espaços suplementares de restaurantes, proporciona
outra perspectiva, ao possibilitar que o quintal seja uma paisagem apreciada e comunicada
publicamente. Embora o espaço seja adaptado para parecer mais atraente e seja habilitado para
o convívio social, o quintal pode ser ponderado no seu sentido estético a partir do que
afetivamente representa: memórias familiares, lar, brincadeiras de infância etc.
e doméstica, sendo a vegetação seu atributo mais valorizado. Também salientamos que um
olhar mais apurado para os quintais poderia favorecer a visualização e manutenção de
manifestações culturais locais, pois é no quintal onde são praticadas a gastronomia, a dança, os
bailes, as festas juninas, a cerâmica, a agricultura, a fitoterapia, entre outras.
Conforme é exposto na tabela 4, os quintais para uso doméstico apresentam uma maior
diversidade de espécies vegetais, inclusive se sustentado pela prática de atividades como a troca
de sementes ou mudas. Por sua parte, nos quintais de uso comercial e de coletivo, existe um
menor percentual de vegetação, devido à habilitação dos espaços para o uso coletivo, que
demanda espaços com menor densidade vegetativa. Ainda assim a caracterização desses
espaços é dada pela presença de árvores, como mangueiras e cajueiros, principalmente, em
áreas abertas.
Topofilia do quintal
A partir da pesquisa foi possível constatar o valor afetivo dos quintais para os
moradores, no caso, os informantes desta pesquisa. Essa relação afetiva, como se nota, é
baseado na experiência concreta de se viver o quintal. Para algumas pessoas, a ligação com o
quintal como lugar era resultado da memória familiar e especialmente de sua experiência de
infância. Para outras pessoas, o quintal é um projeto pessoal, cujo cuidado representa, por
extensão, o cuidado do lar, a manutenção de uma despesa natural e diversa, um lugar para
receber amigos e familiares, um lugar onde se manter ativo, vivo.
168
A categorização dos quintais a partir de seus usos ilustra como os modos de relação com
esse espaço o transformam em lugar, de acordo com o vínculo dos moradores com a paisagem.
Uma paisagem doméstica revela relações íntimas, duradouras, familiares, múltiplas; uma
paisagem para o encontro coletivo ou para fins comerciais revelam um desejo, mas nem sempre
uma realidade.
Existem valores do quintal que se expressam na relação das pessoas com o espaço. Estar
no quintal nem sempre valida a mesma experiência, pois depende da intimidade e da
aproximação, não unicamente física, mas também afetiva. Estar no quintal como parte do
cotidiano doméstico pode demandar cuidado e apropriação. No entanto, estar no quintal para
fazer uma refeição (tomar café, almoçar, jantar) ou assistir um espetáculo cultural gera outro
sentido: o quintal vira cenário, possibilita um vínculo afetivo efêmero, instantâneo, evocador
de sensações e memórias.
Destarte, no caso dos quintais domésticos, eles oferecem informações relevantes sobre
os modos de vida urbana em convivência com a natureza. Os quintais domésticos são
considerados a partir da particularidade do cuidado, modo de relação que atribui sentido a estes
espaços. A produção de sentido, no caso, fica condicionada pela percepção social do tempo que
pondera como relevantes outras atividades dentro do sistema de produção do capital.
Salienta-se que a cidade deve aos quintais, em parte, o epíteto de Cidade Verde, mas
também deve mais atenção, mais afeto, mais visibilidade a partir de vários discursos, entre eles
o acadêmico, através de mais pesquisas sobre diversas abordagens. Por isso, ponderar os
quintais na presente tese pode ser uma iniciativa para atingir o propósito de visualizar a
importância desses espaços, mas também considerar que são as pessoas que atribuem
significados que mantém essa paisagem cultural, outorgando à cidade uma especial
caracterização que, mesmo de modo inconsciente, pode ser exemplar no mundo.
170
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APÊNDICES
APÊNDICE A - ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA
Proposição geral:
A partir das seguintes perguntas, adaptadas para cada tipo de quintal (doméstico ou
comercial), poderá se iniciar uma conversa com os informantes a fim de conhecer a relação
íntima de cada um deles com o espaço do quintal:
Atividades no quintal:
Relação afetiva:
Eu____________________________________,CPF__________________,
RG_________________, depois de conhecer e entender os objetivos, procedimentos
metodológicos, riscos e benefícios da pesquisa, bem como de estar ciente da necessidade do
uso de minha imagem e/ou depoimento, especificados no Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), AUTORIZO, através do presente termo, os pesquisadores (Heidy
Yilibeth Bello Medina e Yuji Gushiken) do projeto de pesquisa intitulado “(“QUINTAIS
URBANOS: LUGARES NA PAISAGEM CULTURAL EM CUIABÁ”)” a realizar as fotos
que se façam necessárias e/ou a colher meu depoimento sem quaisquer ônus financeiros a
nenhuma das partes.
Ao mesmo tempo, libero a utilização destas fotos (seus respectivos negativos) e/ou depoimentos
para fins científicos e de estudos (livros, artigos, slides e transparências), em favor dos
pesquisadores da pesquisa, acima especificados, obedecendo ao que está previsto nas Leis que
resguardam os direitos das crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e do Adolescente –
ECA, Lei N.º 8.069/ 1990), dos idosos (Estatuto do Idoso, Lei N.° 10.741/2003) e das pessoas
com deficiência (Decreto Nº 3.298/1999, alterado pelo Decreto Nº 5.296/2004).
_____________________________
Pesquisador responsável pelo projeto
_______________________________
Sujeito da Pesquisa