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CONSELHO EDITORIAL, CONSULTIVO E CIENTÍFICO

Conselho Editorial do IHGMT


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Anna Maria Ribeiro Fernandes Moreira da Costa (UNIVAG/IHGMT)
Fernando Tadeu de Miranda Borges (UFMT/IHGMT)
Nileide Souza Dourado (UFMT/IHGMT)
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Cristina Teobaldo (UFMT)
ERNESTO CERVEIRA DE SENA
ELIZABETH MADUREIRA SIQUEIRA
(ORGS.)

300
ANOS
DE CUIABÁ
MÚLTIPLOS OLHARES

CUIABÁ, MT - 2019
 Ernesto Cerveira de Sena e Elizabeth Madureira Siqueira, 2019.

Todos os direitos reservados.


Proibida a reprodução de partes ou do todo desta obra sem autorização expressa do autor (art. 184 do Código Penal e
Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998).
A editora não se responsabiliza por conceitos, opiniões e imagens inseridos nesta publicação, estes são de inteira
responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Douglas Rios – Bibliotecário – CRB1/1610)

S474t
Sena, Ernesto Cerveira (org.).
300 anos de Cuiabá: múltiplos olhares/ Organizadores:
Ernesto Cerveira Sena e Elizabeth Madureira Siqueira.
1ª edição. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato Editorial, 2019.
200p.

ISBN 978-85-8009-294-3

1. Cuiabá - História. 2. Cuiabá 300 anos. 3. Cuiabá


cultural. 4. Etnias. 5. Política. 6. Cuiabá contemporânea.
I. Siqueira, Elizabeth Madureira (org.).
CDU 94(817.2)

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura - 82
2. Poesia - 82
3. Poemas - 82

Editores
Elaine Caniato
Ramon Carlini
Rommel Kunze

Revisão Textual
Elizabeth Madureira Siqueira

Capa
Elaine Caniato

Foto de capa
Raimundo Bastos (Vista parcial de Cuiabá, anos 20).
Fonte: RAMOS, M. de Lourdes Silva. Um olhar para Cuiabá,
1920-1940, p. 58.

Carlini & Caniato Editorial (nome fantasia da Editora TantaTinta Ltda.)


Rua Nossa Senhora de Santana, 139 – sl. 03 – Goiabeira
Cuiabá-MT – (65) 3023-5714
carliniecaniatoeditorial.wordpress.com - contato@tantatinta.com.br
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO___________________________________________________________________________________ 7

CUIABÁ CULTURAL
AS REPRESENTAÇÕES TEATRAIS ENQUANTO PRÁTICAS EDUCATIVAS E CULTURAIS NO
COTIDIANO DA VILA REAL DO SENHOR BOM JESUS DE CUIABÁ (XVIII E XIX)___________________ 13
Nileide Souza Dourado

ENTRE HISTÓRIAS, TRAMAS E BRUXARIAS – MARIA OZÉBIA – EM DUNGA RODRIGUES_______ 29


Viviane Gonçalves da Silva Costa

O PAPEL DO IHGMT NAS FESTIVIDADES DO SEU CENTENÁRIO E DOS 300 ANOS DE


FUNDAÇÃO DE CUIABÁ________________________________________________________________________________ 43
Elizabeth Madureira Siqueira

À LA CUIABANA: GRUPO MUSICAL SARÃ E SUAS PUBLICAÇÕES SONORAS_____________________ 65


Dorit Kolling

ETNIAS E POLÍTICA
ALÉM DOS GRILHÕES: A CUIABÁ ESCRAVISTA E A FUGA DE CATIVOS___________________________ 89
Bruno Pinheiro Rodrigues

A FACE INDÍGENA DE CUIABÁ______________________________________________________________________ 107


Verone Cristina da Silva

MANUEL ALVES RIBEIRO E O PREDOMÍNIO POCONEANO EM CUIABÁ:


RELAÇÕES LOCAIS, NACIONAIS E INTERNACIONAIS_____________________________________________ 127
Ernesto Cerveira de Sena

CUIABÁ NA CONTEMPORANEIDADE
O IMPACTO DO NOVO: CUIABÁ 1970-1980_______________________________________________________ 153
Luiza Rios Ricci Volpato

PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO, ALAGAMENTOS E ENCHENTES EM CUIABÁ______________ 159


Cleusa Aparecida Gonçalves Pereira Zamparoni

TUMULTO NAS TRINCHEIRAS: A CUIABÁ QUE EMERGE NAS NARRATIVAS DE


PRISIONEIROS DA PENITENCIÁRIA CENTRAL DO ESTADO______________________________________ 179
Priscila de Oliveira Xavier Scudder
CIDADE VERDE

Cidade vende

vende meus olhos


pra que eu veja
(com outros olhos)
os teus quintais cimentados
de esquecimentos

BEHER, Nicolas. “O menino do mato que engoliu Brasília”


(Cuiabá: Entrelinhas, 2019, p. 183).
APRESENTAÇÃO

300 ANOS DE CUIABÁ: MÚLTIPLOS OLHARES

O “8 de abril” é uma data já consagrada para o aniversário de Cuiabá,


logo, não seria de se estranhar as comemorações de seus 300 anos de sua
“fundação”. Certamente, a data específica é contestada por historiadores no
que tange à criação oficial da vila por autoridades portuguesas. Ao mesmo
tempo, sabemos que o local onde Cuiabá foi fixada é muito mais rico do
que os atos de bandeirantes, pois aí já existiam povos indígenas, cujo aflu-
xo não terminou com a presença lusa. Também foram escravizados aqueles
vindos da África, os quais ajudaram a complexificar as relações sociais. De
toda forma, não é só Cuiabá cujo ato fundacional é discutível, quando o
próprio “7 de setembro” que, na época do Império, não tinha o significado
de hoje, perdendo, então, para o “12 de outubro” como a data comemora-
tiva por excelência das festividades que rememoravam um evento iniciador
de uma era.
Sem uma perspectiva atual de que se possa substituir o “8 de abril”, é vá-
lido homenagearmos a cidade, a qual escolhemos para viver, com capítulos
sobre partes de sua história. A Coletânea está dividida em três seções, sendo
a primeira Cuiabá Cultural, englobando temáticas concernentes às ações
culturais manifestas no cenário cuiabano; a segunda, Etnias e política, na
qual índios e negros são atores na cidade, mas também objetivos de ações
governamentais os quais, de alguma maneira, referendavam as elites da so-
ciedade envolvente em suas disputas pelo reconhecimento político institu-
cionalizado. A parte final, porém não menos relevante, versa sobre Cuiabá
na contemporaneidade, abordando, inicialmente, uma sobre as transforma-
ções do cotidiano de Cuiabá, seguida do tratamento de duas questões vitais
para a Capital, as enchentes, tão recorrentes no passado remoto e que se
manifestam ainda atualmente, e a questão da segurança e do confinamento
nas prisões, a qual afeta não somente a população carcerária, mas, sobretudo
suas famílias e a sociedade em geral.
Assim, Nileide Souza Dourado abre a primeira seção, Cuiabá Cultural,
tratando especificamente da sociedade cuiabana colonial, mostrando que as
representações teatrais eram também práticas educativas. Se Cuiabá se re-
vestia de uma localização estratégia para os interesses portugueses, atraindo
expressivo contingente populacional devido à existência de minas auríferas
e diamantíferas, ela também foi palco de numerosas encenações teatrais, en-

7
volvendo atores das mais diversas procedências, procurando aliar o entrete-
nimento das peças ao ideário educativo e civilizatório, assentado no padrão
lusitano, particularmente no europeu urbano.
Já o trabalho de Viviane Gonçalves da Silva Costa foca a ficção de Dunga
Rodrigues em sua representação de Ozébia, personagem e ao mesmo tempo
narradora de algumas das estórias da poeta, ensaísta, folclorista, jornalista, te-
atróloga e historiadora cuiabana. Pelo fio narrativo relacionado à Ozébia, são
problematizados aspectos ligados às mulheres da sociedade contemporânea e
pretérita, das representações do “bem” e do “mal”, enfim, do vivido humano
no “depósito de lendas”, tal como Dunga classificava sua cidade.
Objetivando apresentar a ancestralidade da cultura e a memória cuiaba-
na, Elizabeth Madureira Siqueira privilegia a análise da instituição cultural
privada mais antiga de Mato Grosso e devotada primitivamente ao resgate da
memória regional, o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, criado
em 1919. Instituição cultural sem fins lucrativos, contando com escassos e
intermitentes apoios governamentais, e de seus sócios. Por gerações, vem
acumulando um acervo indispensável para quem quer melhor desvendar
Cuiabá e Mato Grosso, colaborando também para as pesquisas sobre a região
Centro-Oeste. Instalada desde 1930 na Casa Barão de Melgaço, um solar que
pertenceu a Augusto Leverger, a instituição vem recolhendo, catalogando e
digitalizando acervos que pertenceram aos seus associados, o que subsidia
trabalhos em diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais, especialmente
no âmbito da pós-graduação. Chegando ao seu centenário, o IHGMT reava-
lia seu papel originário, trazendo seu contributo até a contemporaneidade,
seja através de suas produções intelectuais – Revista e Publicações Avulsas
– seja no desenvolvimento de projetos institucionais capazes de estabelecer
a necessária articulação entre comunidade e sociedade.
É tomando uma singularidade local, que o texto de Dorit Koling realça
o rasqueado, forma específica da cultura em Cuiabá que, aliada a outros
gêneros locais, foi responsável por atrair a autora a se fixar na cidade, no
final da década de 1980. Especial atenção presta ao Grupo Musical Sarã,
liderado por Zuleica Arruda e Vera Baggetti que, após décadas de apre-
sentações sem qualquer registro em suporte sonoro, puderam colocar suas
músicas, “À La Cuiabana: Grupo Musical Sarã e suas Publicações So-
noras”, à disposição de um público mais ampliado, além possibilitar seu
acesso às gerações vindouras. Assim, seus LPs e CDs tornaram-se docu-
mentos históricos valiosos para os que estudam a musicalidade da região.
Numa releitura constante, o Grupo Sarã, além de continuar a convidar os
ouvintes a bailar ou escutar o som que animava e anima a sociedade local,

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causa admiração aos moradores da cidade pela dinâmica imprimida a esse
tipo de som, que preserva tempos já distantes.
Se Cuiabá atraia muitas pessoas, aquelas que foram levadas coercitiva-
mente, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, procuraram romper com os gri-
lhões que as prendiam a sua condição, é o que caracteriza a segunda seção
Etnias e política. Assim Bruno Pinheiro Rodrigues aborda, além das fugas
de escravizados, os caminhos pelos quais chegaram, apontando como Cuia-
bá guarda as marcas da presença africana. Os estudos sobre a escravidão
fornecem subsídio para o debate sobre as desigualdades socioeconômicas
e raciais ainda presentes em Mato Grosso e no Brasil. Desse modo, aponta
para a urgência necessária de reflexões sobre o assunto.
Outro grande grupo étnico com bastante presença na história de Cuia-
bá é o indígena. Dessa maneira, Verone Cristina da Silva revela sua par-
ticipação em muitas tarefas do dia-a-dia da vila, depois cidade e capital
mato-grossense. Fontes históricas apontam que nos Oitocentos aumentou
consideravelmente a quantidade de indígenas que passaram a circular pelas
ruas cuiabanas, com destaque especial para os Guaná, aldeados por missio-
nários nas imediações do Porto Geral. As relações desses indígenas com os
cuiabanos eram sustentadas por interesses recíprocos.
Cuiabá se consolidou como o principal entroncamento comercial da re-
gião, tornando-se capital em 1835. O governante, na nova sede de governo,
teria de continuar lidando com questões atinentes à região por ser também
fronteira do Império do Brasil. Temas transnacionais, como escravos e indí-
genas faziam parte de sua pauta. No entanto, com a proeminência de Cuiabá
na região não queria dizer que os nascidos na terra estabeleceriam predo-
mínio político sem contestação. Assim, Ernesto Cerveira de Sena trata da
ascensão e queda de um homem público da Vila de Poconé que ocupou
os principais postos justamente em oposição aos cuiabanos. Não somente
relações locais, mas também nacionais e internacionais contavam para a ma-
nutenção do predomínio poconeano e de seu grupo político.
A terceira seção da coletânea é inaugurada com uma crônica de Luiza Rios
Ricci Volpato, que reflete sobre o anseio pelo novo e o modo tradicional de
vida em Cuiabá, não necessariamente de maneira excludente. Historiadora e
moradora da cidade desde 1974, imprime em sua narrativa as ondas moderni-
zadoras, sobretudo das décadas de 1970 e 1980, a forma de vida e as constru-
ções que identificavam e identificam a cidade. Com a crescente especulação
imobiliária, especialmente com as inovadoras diretrizes governamentais, den-
tre outros vetores, ocorreram perdas e ganhos, nota a autora, mas Cuiabá se
tornou parecida com tantas outras cidades submetida ao crescimento desme-

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dido, cedendo a hábitos padronizados e colhendo problemas urbanos em meio
a shopping centers e condomínios fechados. Entre essa tendência homogenei-
zadora, não deixam de existir alguns registros “refratários”, como “pedaços”
arquitetônicos, que ainda resistem, a mostrar o vivido em determinado tempo.
Também não deixamos de ter calor, sol e rios, seja qual for o estado deles, uma
vez que são referências da cidade.
Já tratando das consequências da ocupação do solo em Cuiabá, ocorrida
principalmente a partir da década de 1960, Cleusa Aparecida Gonçalves Pe-
reira Zamparoni analisa os alagamentos e enchentes que ainda penalizam a
cidade, tendo por base os problemas levantados por estudiosos sobre a mu-
dança climática no planeta, pelas políticas atrativas de migração para a região e
o planejamento (ou falta dele) quanto à drenagem, vazão e controle das águas.
A autora aponta para a urgência de políticas públicas que levem em considera-
ção os estudos rigorosos que fornecem subsídio para um planejamento efetivo
para tais situações, no lugar de se continuar remediando paliativamente.
É nessa mesma cidade que Priscila de Oliveira Xavier Scudder reto-
ma as ‘histórias de si’, tendo por base os detentos, estabelecendo profícuo
e contundente diálogo com Frantz Fanon. A cidade cindida pela metáfora
colonizador/colonizado reserva lugares para seu engenho mortífero. A parte
mais precária dela, em relação aos atendimentos básicos, é ocupada por mo-
radores desprovidos de maiores recursos, e é onde o “colonizador” construiu
espaços-depósitos para os indesejáveis. Dois deles, um para menores de ida-
de e outro para adultos, foram edificados em bairro específico da cidade, o
que imprime a sua população à constante remissão aos espaços de inclusão
e de exclusão. De outro, a autora trata da superlotação dos estabelecimentos
prisionais, onde ‘reeducandos” e ‘ressocializandos’, não raro, vislumbram a
perspectiva de saírem dos cubículos e da vida degradada somente em cai-
xões. Isso não furta que nas localidades cuiabanas, inclusive nos lugares
acentuadamente reservados aos “colonos” e aos “colonizadores”, haja gente
com disposição para derrubar o muro entre “duas cidades”, conferindo a hu-
manidade necessária aos habitantes de uma mesma urbe.
Cabe ressaltar ao leitor que esta apresentação, como qualquer outra, está
longe de substituir a leitura integral dos textos, mas buscou estimula-la. As-
sim, esperamos que percorram alguns “trechos” (que é só o que se podem
pretender os escritos) da história de uma cidade que vai se tornando tricente-
nária, e por isso tem muito a revelar.

Os Organizadores

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CUIABÁ
CULTURAL
AS REPRESENTAÇÕES TEATRAIS ENQUANTO
PRÁTICAS EDUCATIVAS E CULTURAIS NO
COTIDIANO DA VILA REAL DO SENHOR BOM
JESUS DE CUIABÁ (XVIII E XIX)

Nileide Souza Dourado1

INTRODUÇÃO

Na Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, nos séculos XVIII e XIX,
o cotidiano das camadas sociais, compostas pelas diferentes categorias, de-
senha um cruzamento de histórias e memórias que abrem possibilidade de
reflexões sobre a trama da vida comum de indivíduos e grupos sociais, suas
relações com as coisas e com os objetos da cultura material e imaterial, como
os folhetins, a literatura, a poesia, a música e as representações teatrais in-
terpretadas, versadas, cantadas e bailadas pelos próprios moradores da vila,
incorporando um conjunto de aprendizagens e circularidades culturais, en-
tendidas no presente estudo como práticas educativas e culturais.
As práticas educativas e culturais podem ser compreendidas e identifica-
das pelas práticas transplantadas pelos europeus, como o aprendizado formal
da leitura e da escrita, ou da gramática, que aqui contracenam com o saber
indígena, o fazer do negro, os valores e conhecimentos adquiridos através do
aprendizado e desempenho de ofícios mecânicos, as artes, a educação do-
méstica e com aquelas objetivadas de substituir os antigos primitivos hábitos
e costumes por aqueles revestidos de civilidade, tendo por base o compor-
tamento, o exemplo, a imitação, o refinamento de hábitos e outras moda-
lidades de incorporação do ideário de civilização introduzidas no interior do
mundo colonial pelos europeus.
Nesse sentido, a noção de práticas educativas e culturais, utilizada
no presente texto é concebida no contexto do processo de prover indiví-
duos ou grupos sociais, cotidianamente, em conhecimentos diversos, seja
de caráter religioso, moral, artístico, técnico ou de escolarização. Deriva
da interpretação dada por Thais de Nívia de Lima e Fonseca (2009) do
conceito de “práticas culturais”, elaborado pelos culturalistas Michel de
Certeau, Roger Chartier e Pierre Bourdieu:

1 Doutora em Educação. Historiadora da área Técnica e Cientifica do NDIHR/IGHD/UFMT e


Professora do PROFHISTÓRIA / IGHD/UFMT - Mestrado Profissional em Ensino de História.
nileide@terra.com.br

13
[...] “maneiras de fazer” cotidianas dos sujeitos históricos, relacionadas
social e culturalmente, na construção de seus espaços, suas posições e suas
identidades. Analisadas como práticas culturais, as práticas educativas
também implicam o estabelecimento de estratégias, entendidas de forma
genérica como os movimentos de elaboração/execução das práticas [...]
e a ideia de estratégia para qualificar práticas educativas como ações de
grupos ou de indivíduos, de diferentes segmentos, relacionadas com as
diversas esferas diferenciadas de poder, institucionalizado ou não [...].
(FONSECA, 2009, p. 10-11).

Desse modo, os registros contidos na documentação que compõem a tra-


ma de acontecimentos, revelam práticas educativas e culturais, cotidianas e co-
muns, que mostram fragmentos de hábitos, costumes, crenças e festas públicas
que não ficaram de lado, mas se materializaram no cotidiano da Vila Real do
Senhor Bom Jesus de Cuiabá e demais localidades da capitania de Mato Grosso,
nos séculos XVIII e XIX. Tais celebrações coloniais são ricos objetos de estudos
cênicos, ao adotar a perspectiva de que são fenômenos da teatralidade.
Sendo assim, buscou-se nos espaços de sociabilidade, especialmente em
Cuiabá, onde, no ano de 1729, ocorreu a representação das primeiras peças
teatrais, conforme notícias contidas na obra Relação das Povoaçoens do
Cuyabá e Mato Grosso: De seos princípios thé os Prezentes Tempos, de au-
toria do primeiro cronista, Joseph Barboza de Sá. As representações teatrais
que antecederam a criação da capitania de Mato Grosso (1748) se intensifica-
ram, fazendo-se recorrentes por todo o século XVIII e início do XIX.
Assim, dentro do processo do aprender e ensinar, a presença do teatro
em Mato Grosso, de acordo com as pistas reveladas pela documentação, é
assinalada, portanto, desde 1729, ocasião em que “o Senado da Câmara da
Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá mandou buscar a ‘venerável ima-
gem do Senhor Bom Jesus’, que hoje veneramos na Igreja Matriz desta vila”.
(SÁ, J. B. de, 1975, p. 26).
Logo, os devotos do Senhor Bom Jesus constituíram uma expedição - com-
posta por vinte e cinco homens distribuídos em três canoas - sob o comando do
capitão Domingos Barbosa Leme e formada por Caetano de Brito e Menezes,
Pantaleão Martins, Joaquim Soares, homens pardos forros, índios e negros, para
buscar, em Camapuã, a imagem do Senhor Bom Jesus, que, segundo os Anais do
Senado da Câmara do ano de 1729:
[...] Foi esta imagem fabricada na Vila de Sorocaba por mãos de
uma mulher, trouxe-a consigo um Pedro de Moraes, natural da mesma
Vila, nos primeiros anos que se descobriram estes sertões [...] trouxeram-
na em um caixão. Fez-lhe festa de Missa cantada, e sermão, que pregou

14
o Padre Mestre Fr. José Angola, religioso Franciscano. Houve banquetes
e fogos, durou o aplauso quatro dias, tudo a custa das pessoas principais
[...] (ANAIS DO SENADO DA CAMARA DE CUIABÁ, 2007, p. 61)

Destaca o mesmo cronista que a imagem do Senhor Bom Jesus chegou ao


porto geral da Vila de Cuiabá, colocada num altar e conduzida em procissão
até a Igreja Matriz. A partir daí, em sua homenagem foram realizadas festas,
missas cantadas, representações teatrais de duas comédias, banquetes públi-
cos e regozijo de fogos. Esclarece Barbosa de Sá (1975, p. 26) que “[...] durou
o aplauso três dias tudo a custa de pessoas principais [...] que liberalmente
despenderam de suas fazendas para estas festividades”.
Essas indicações acima descritas são vistas no presente estudo como mar-
co primeiro do teatro cuiabano e, sobretudo, como forma de manifestação de
práticas educativas culturais de indivíduos e grupos da Vila. Desses eventos
participaram membros das elites e das camadas populares que, dentro de um di-
namismo urbano e religioso, se envolveram em operações comuns, passando a
cultura a ser celebrada como motivadora de significativas transformações sociais.
No entanto, a prática cultural de representações teatrais, no século XVIII,
passou a ser uma constante após a criação da capitania de Mato Grosso, o
que ensejou um pesquisador lusitano a reuni-las em uma coleção, engloban-
do O Saloyo Cidadão; As Preciosas Ridículas; O Velho Namorado; Guer-
ra do Alecrim e da Mangerona; Aspasia na Syria; Eurene Perseguida, e
Triunfante; Zenóbia no Oriente; Tragédia de D. Ignez de Castro; Amor
e Perseguição; O Conde Alarcos; Tamerlão na Pérsia; Zaira; O Tutor
Enamorado; Ezio em Roma; Tragédia de Focas; Entremez dos Sgnarellos;
Emira em Suza e, por último a peça Osmia (MOURA, 1979, p. VI)2.
De acordo com Mariana Soutto Mayor (2015), esses espetáculos eram
apresentados em tablados de madeira em praça pública, no mesmo lugar
onde ocorriam as touradas, jogos de argolinhas e cavalhadas. Revela a autora
que os artistas que se apresentavam eram formados dentro das irmandades
religiosas, assumindo várias funções como músicos, atores e dançarinos, ou
eram moradores da capitania/província que trabalhavam como pequenos co-
merciantes, profissionais liberais, talvez até escravos, que poderiam atuar nas
horas vagas como artistas de uma peça. Muitos desses artistas, fossem eles
profissionais ou amadores, participavam de vários momentos da festividade,
além do teatro, representando mascarados e alegorias nos cortejos, dançando
em apresentações, tocando instrumentos ou participando do coro nas missas.

2 (DOURADO 2014). Práticas Educativas Culturais e Escolarização na Capitania de Mato


Grosso/1748-1822. Tese (Doutorado em Educação) – Instituto de Educação – Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT). Cuiabá, 2014.

15
Nenhuma capitania da América Portuguesa, segundo Alcides Moura Lott
(1987, p. 18), aderiu de forma tão intensa ao teatro como Mato Grosso. Argu-
menta o autor que os documentos catalogados na pesquisa indicam no período
de 1719 (data da fundação da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá) até
1822, ocorreram representações de pelo menos uma centena de peças teatrais.
Nesse sentido, de acordo com a literatura, a origem do teatro brasileiro
está toda no teatro português. E o teatro português é caudal do teatro espa-
nhol, do teatro italiano e do francês. Para Lott (1987, p. 26) “Tanto o índio
como o africano foram engajados pelo branco ao seu teatro: o primeiro pelo
teatro catequético, o segundo pelo teatro profano. E, a vertente do teatro em
Mato Grosso está no teatro português”.
Portanto, as representações teatrais exibidas na capitania de Mato Grosso
no século XVIII/XIX foram aquelas que representavam as últimas novida-
des teatrais portuguesas, trazidas pelos reinóis em suas malas ou mochilas
de viagem, muitas delas sob o formato de folhetos de cordel, a exemplo da
peça O Saloyo Cidadão. Segundo Moura (1979, p. VII), esta peça foi “[...]
evidentemente inspirada no Burgeois Gentilhomme 3, de Molière, ela é uma
sátira dos citadinos aos costumes rústicos dos camponeses”. Destarte, a docu-
mentação revela que, em Mato Grosso do século XVIII, até a “arraia miúda”
era receptiva ao teatro. Em face do enriquecimento rápido dos mineradores,
a região tornou-se um excelente mercado de trabalho, inclusive para os artí-
fices da metrópole.
Ainda para Lott (1987, p.18), “[...] o gosto português pelo teatro chegou à
capitania como um dos principais produtos da dominação. Argumenta que,
para dominar economicamente, era também preciso dominar culturalmente”.
Assim, nos estudos de Antonio Coimbra Martins (1982, p. 305-306), a
peça “Saloyo cidadão” é datada de 1773 e denominada “comédia nova”,
tratando de “uma obra de autor anônimo. Ao contrário do que se tem afirma-
do, também não foi tradução, nem imitação de Molière, mas não deixa de se
relacionar estreitamente com o Bourgeois gentilhomme”. Sublinha Martins

3 Le Bourgeois gentilhomme (traduzido para o português como O Burguês Fidalgo, O Cavalheiro


Burguês, O Burguês Gentil-Homem e O Burguês Ridículo) é uma comédia-balé - uma peça
de teatro com diálogo falado, entremeada com música e dança - em cinco atos, de autoria
de Molière e encenada pela primeira vez em 14 de outubro de 1670, diante da corte do rei
francês Luís XIV, no Castelo de Chambord, pela trupe de atores do próprio dramaturgo. A
música da comédie-ballet foi composta por Jean-Baptiste Lully, e sua coreografia é de autoria
de Pierre Beauchamp; a cenografia ficou a cargo de Carlo Vigarani, e as roupas a cargo do
chevalier d’Arvieux. Le Bourgeois gentilhomme satiriza as tentativas de alpinismo social e a
personalidade burguesa, ridicularizando tanto a classe média vulgar e pretensiosa quanto a
esnobe e vaidosa aristocracia. O título é um oxímoro; na França de Molière, um “gentilhomme”
(“cavalheiro”) era, por definição, nascido nobre, e como tal não era possível a existência de um
cavalheiro burguês. O texto da peça está em prosa, com exceção das aberturas do balé, feitas
em verso. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Le_Bourgeois_gentilhomme>. Acesso
em 10 set.2012.

16
(1982, p. 306) que “[...] o ‘Saloyo cidadão’ explora a situação do campônio
na cidade. Mas é verdade que o campônio na cidade aparece várias vezes
como equivalente português do burguês entre aristocratas [...].”
Em Cuiabá, no mês de agosto de 1790, por ocasião do programa dos feste-
jos de aniversário do Ouvidor Diogo de Toledo Lara Ordonhes4, a peça Saloyo
Cidadão figura como uma das atrações. A lista Programa para o evento em
questão, o entremez ou comédia cita o nome dos atores e seus respectivos pa-
péis: José Francisco – Saloyo Cidadão; Victor Modesto – Saloya, sua mulher;
Silvério José da Silva – Saloya, criada.
Para Moura (1979, p. VIII), “[...] o ator que fez o papel de criada do Sa-
loyo era certamente um dos melhores da temporada, especializado em papéis
femininos – Silvério José da Silva”. Destaca o autor, que, “[...] na época, os
papéis femininos eram desempenhados por homens, pois uma determinação
da rainha D. Maria I proibia as mulheres de representar em teatro”.
Portanto, a comédia nova o Saloyo cidadão, segundo a empiria, possi-
bilitou plausíveis comentários, risos e identidades, vez que fazia uma sátira
tanto dos costumes citadinos como dos rústicos. Segundo Moura (1979), o
Saloyo é rico em informações sobre o século XVIII. Nele, encontram ricos
filões, exemplos aferidos diretamente à cultura regional que se plasmou neste
século, estabelecendo um contraste entre a vida rústica e a vida polida:
[...] a peça inicia com o ‘Saloio’ descalçando as botas camponesas e
calçando desajeitadamente meias de seda e sapatos à francesa. Meias

4 “[...] Descendente das mais ilustres e antigas famílias da capitania de São Paulo. Em 1772, foi
para Portugal estudar Leis na Universidade de Coimbra, onde se bacharelou em meados de
1777. Começou a advogar em Lisboa. A 20 de março de 1784, foi nomeado juiz de fora da Vila
do Cuiabá [...] Na condição de juiz de fora, assumiu necessariamente o cargo de presidente do
Senado da Câmara de Cuiabá. Desempenhou com muito zelo, prudência e bondade os cargos
que exerceu, sendo estimado por toda a população. A 6 de julho de 1798, assumiu o cargo de
ouvidor-geral interino da capitania de Mato Grosso. Em agosto de 1790, a população de Cuiabá
ofereceu-lhe grandiosa festa, com recitais, missas, danças, touradas, fogos, peças teatrais, e que
a história profusamente registrou [...] A 29 de janeiro de 1792, entregou o cargo de juiz de fora
de Cuiabá [...] partiu para São Paulo, seguindo posteriormente para Lisboa. Em 1795, advogando
nessa cidade, foi admitido como sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa. [...] A partir de
1800 ocupou os cargos de: Intendente do Ouro no Rio de Janeiro; Desembargador do Tribunal
das da Relação do Rio de Janeiro (1805); Conselheiro da Fazenda (1814). Eleito para a Assembleia
Geral (mas não tomou posse). [...] A sua vida foi totalmente dedicada aos livros e aos estudos [...]
Doou em 1824 a sua fazenda, herança de família, situada em São Paulo, para a Santa Casa de
são Paulo, cujo imóvel, vendido em hasta pública, pode proporcionar os recursos necessários
para construção do prédio principal [...] Doou todos os seus livros para a Biblioteca do Rio de
Janeiro [...] Deixou escrito uma Carta de Um Passageiro de Monção, título esse dado por
Taunay; as notas históricas inseridas nos originais dos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá,
em que corrigiu muito das histórias mato-grossenses e cuiabanas de forma geral; Críticas de
Festas e Peças Teatrais, tornando-se assim o primeiro crítico teatral do país; Notas a Epistola de
Anchieta, em latim, abordando vários assuntos, como história, geografia e ciências naturais; um
Tratado de Ornitologia, que chegou até nossos dias fragmentados. Por outro lado, conseguiu
salvar os originais da Nobiliarquia Paulistana, de Pedro Taques. Faleceu solteiro no Rio de
Janeiro em 1826, aos 74 anos de idade.” (SILVA, 2005, p. 176-177).

17
e sapatos eram indispensáveis à indumentária das pessoas de bom tom
nesse século que primou pelo bem vestir e pela elegância. Foi a essa
elegância inusitada nos sertões que os reinóis recém-chegados às minas
no início do século XVIII deveram a alcunha de emboabas, dadas pelos
bandeirantes, como se depreende da referência do primeiro cronista de
Cuiabá, José Barbosa de Sá, aos primeiros exploradores e povoadores
de Mato Grosso. Os que, na época, exageravam na elegância, tornando-
se afetados nos modos e trajes, eram chamados peraltas. [...]. (MOURA,
1979, p. XI)

O Saloyo Cidadão, no Ato I da peça, reporta à seguinte passagem:


[...] O Saloyo Jordão herda os bens do sogro e resolve mudar-se para a
cidade, e trajar-se e tratar-se como nobre gema quem gemer. Para isso
decide desconhecer e negar os parentes. Descalça as rústicas botas
camponesas e as substitui por meias de seda e sapatos à francesa.
Contrata um mestre alfaiate para fazer-lhe uma roupa da última
moda, em substituição ao traje de saloio que usava. Para tomar lições
de polidez, e filigranas da Corte, manda chamar um mestre filósofo.
Promove o seu moço (criado rústico) a criado e depois a lacaio e
promete conseguir lhe o hábito de uma ordem. Chega o mestre alfaiate,
que o ensina a calçar as meias e lhe veste o traje, que é espalhafatoso
e ridículo. O alfaiate, ao pedir-lhe a molhadura (gorjeta pelo término
do serviço), chama-o de meu fidalgo, e Jordão, lisonjeado, dá-lhe boa
soma de dinheiro. O alfaiate trata-o a seguir por Vossa Senhoria, e
ele, envaidecido, dá-lhe mais dinheiro. Aproveitando o fraco do saloio,
o alfaiate trata-o por Vossa Excelência, e Jordão, não cabendo em
si, pede-lhe que repita a expressão, e dá-lhe ainda mais dinheiro,
observando, entretanto, que se o chamasse de Alteza, ficaria sem um
ceitil na bolsa [...] Chega o mestre filósofo falando latim e pergunta
a Jordão o que deseja aprender. Tudo o que puder, seja o que for,
porque todo o meu desejo é saber alguma coisa – responde o
saloio. O filósofo quer dar-lhe lições de Lógicas: fala nas Universais,
na categórica e nas figuras de silogismo, mas nada disso interessa a
Jordão [...] o que ele quer é aprender a escrever certo e ler a folhinha
(calendário), para saber quando há lua e quando não há. Sendo assim,
diz o filósofo, a primeira coisa a aprender é a ortografia, o exato
conhecimento das letras vogais e consoante, e sua pronúncia. Jordão
fica entusiasmado com as explicações sobre a pronúncia, A, E, I, O, U
e das consoantes: - “que bela cousa é saber alguma cousa”... “viva,
viva quem sabe, viva a ciência”. [...]. (MOURA, 1979, p. XVI).

18
As representações teatrais na temporalidade em questão, além de propi-
ciar o entretenimento das camadas sociais da capitania, possibilitava também
o aprendizado em várias perspectivas, tanto nas expressões correlatas, como
nas de cunho humorísticos e zombeteiros, comuns no teatro de cordel do
século XVIII, que, segundo Moura (1979, p. XII), “Fizeram escolas na tradição
popular mato-grossense”.
Abre-se aqui um parêntese para elucidar, ainda mais, sobre as comemo-
rações do aniversário do ilustre Ouvidor de Cuiabá que, conforme os estudos
de Budasz (2008, p. 14), durante as várias noites que duraram os festejos do
aniversário de “Diogo de Lara Ordonhes”, nos meses de agosto e setembro de
1790, as funções teatrais em um tablado ao ar livre incluíram, entre outros,
uma comédia (Eurene) entremeada de danças (11 de agosto); uma comédia
ou tragédia (Zenóbia), com um entremez em um dos seus intervalos (16 de
agosto); uma tragédia (Zaíra), com algumas árias e duetos em português, in-
troduzida e concluída com números corais, em homenagem a Diego de Lara,
e na sequência, apresentando o entremez O tutor namorado (provavelmen-
te a zarzuela de Ramón de la Cruz, de 1764). Esta função foi encerrada com
uma dança popular luso-brasileira.
Ainda, para Budasz (2008), o próprio Diogo de Lara descreveu com
entusiasmo tal programação e festejo, ao revelar importantes detalhes so-
bre algumas práticas teatrais brasileiras, especialmente no que diz respei-
to à tragédia Zaira, por ser muito terna e comover muitos afetos, apontar
o asseio e o adorno das damas, destacar ainda a propriedade, asseio e
riqueza dos vestidos dos otomanos e o asseio dos que vestiam à francesa,
a abundância de árias recitadas e cantadas com feliz execução, alguns
duetos com letras própria da tragédia, as belas sonatas executadas pela
orquestra, a boa iluminação, a bem executada ação das duas mortes e,
finalmente, o sobredito entremez, que não fez um instante a toda plateia
cessar de rir e bater palmas, tudo isso deu um lustre e gosto muito grande
a esta função.
A peça teatral Zaira foi bem representada em Cuiabá, no ano de 1790, e,
segundo Moura (1976, p. 83), “[...] foi uma noite certamente muito plausível,
a tragédia boa de si mesma por ser muito terna e comover os affectos [...] os
heróis escolhidos, pois representou o papel de Osman, o incomparável João
Francisco, e o de Zaira, Silverio José da Silva”. A versão Zaira deu nome à
tragédia francesa de muito sucesso escrita por François Marie Arouet, mais
conhecida como Voltaire, em 1732. Baseado nessa obra, Vincenzo Bellini
criou a ópera trágica intitulada “Zaira”, em 1829.

19
Figura 1 – Tragédia Zaira, de Voltaire. Traduzida por Pedro Antonio.

Fonte: Carlos Moura. O Teatro em Mato Grosso no século XVIII/1976.

Então, essas atividades culturais permitiam que práticas educativas fossem


desenvolvidas, onde usos e costumes eram apreendidos e ensinados, como os
relacionados com a forma de falar, se portar, andar, sonhar com o uso das indu-
mentárias e adereços. As mensagens nelas contidas direcionavam a população
para a possibilidade de mudança de posição na sociedade, pois ensinavam que
um homem do campo poderia conseguir alçar um status na cidade e, para tan-
to, deveria se despir dos antigos hábitos campesinos e assumir novas atitudes
e valores. Esse discurso tinha endereço certo para a população de Cuiabá, que
via nesta peça a possibilidade de deixar de lado os antigos valores e hábitos
para assumir aqueles veiculados pelas elites urbanas.
Depreende-se que a apropriação de expressões/linguajar regional contidas
nas peças tenha sido eficiente, vez que os atores e expectadores provinham de
diferentes localidades, e as circularidades de linguagens, expressões e costumes
poderiam ser vistos como significativos nesta região. Até porque se tratava de um
espaço de mineração, onde a circulação de pessoas era frequente, tanto de aven-
tureiros, atraídos pelo ouro, como de ‘homens rústicos’ sem traquejo cultural, nem
escolarização, mas também de altos funcionários, militares, engenheiros, religio-
sos e homens de ciência que acompanhavam cada governante de Mato Grosso.
Nesse emaranhado social, têm destaque os portugueses imigrados das
zonas rurais de Portugal, que viam, nas minas cuiabanas e guaporeanas, pos-
sibilidade de enriquecimento, via extração do ouro ou pela propriedade de
terras e escravos. Muitos outros eram de origem predominantemente urbana
e traziam suas expressões culturais de “homens cultos”, contrastando com os
rudes sertanistas e nativos do sertão e da fronteira, o que propiciou uma ri-
queza cultural ao “linguajar cuiabano”, além, evidentemente, da participação

20
e do envolvimento cultural estabelecido pelas categorias de indígena, africa-
na e os de cultura espanhola, fugitivos e radicados na região.
As Crônicas do Cuiabá, assim descreve, de forma precisa o bandeirante
Pascoal Moreira Cabral, fundador de Cuiabá, sobre todas as condições de
pessoas que buscavam pelas minas do lugar:

[...] era paulista dos bons, homem chão, sem letras, pouco polido, de agudo
entendimento, sem maldade, sincero, caritativo por extremo, servia e
remediava a todos com o que tinha e no que podia, espertos nas milícias
dos sertões, e no exercicio de minerar pelo ter já exercitado nas Minas
Gerais, valoroso e constante no trabalho.5

Portanto, as crônicas atestam a participação de reinóis e citadinos, os po-


voadores que acorreram à miragem do ouro, segundo Moura (1976, p. 22),
para onde afluía toda condição de pessoas “[...] homens, mulheres, moços e
velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares, clérigos e religiosos de
diversos institutos, muitos dos quais não tem no Brasil convento nem casa”.6
Compreende-se que tais congraçamentos culturais de cunho artístico, fes-
tivo e religioso, auxiliaram na congregação da população para a consolidação
da capitania, frente às constantes ameaças fronteiriças e ao baixo nível cultu-
ral da população das vilas.
Desse modo, no que tange ao envolvimento com as representações cul-
turais, em especial a teatral, no diálogo dos atores da peça Saloyo cidadão,
percebe-se também um discurso favorável à educação, na ocasião em que se
veiculou em Mato Grosso a defesa da importância e da necessidade de as pes-
soas saberem ler, escrever e contar. Esses elementos, segundo a citada peça,
eram considerados facilitadores da comunicação, pois a possibilidade de dia-
logar com todos fazia as pessoas se sentir inseridas no cotidiano dos grupos a
que pertenciam, ou poderiam, inclusive, conviver com elementos da camada
superior, como foi o caso do Saloyo. Afinal, ser cidadão na modernidade era
não só usufruir do direito de votar e ser votado, mas exigia que ele se mostrasse
e aparentasse ser digno da honraria de ser homem livre, e não de escravo.
A peça Saloyo cidadão também apresenta informações e ensinamentos
sobre a indumentária, o que acabava possibilitando aos expectadores des-
cobrir coisas novas, como, por exemplo, o uso da ‘meia de seda’, das luvas,
perucas e outros adereços até então pouco usuais no cotidiano na região

5 (MOURA,1976). Chronicas do Cuyabá publ. Por A. de Toledo Piza. Rev. Instituto Histórico
e Geográfico de S. Paulo, vol. IV 1898/1899, p.36. É o necrológio do famoso bandeirante,
transcrito, com algumas modificações, da Relação de José Barbosa de Sá.
6 (MOURA, 1976). André João Antonil, Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e
Minas, Conselho Nacional de Geografia, Rio de Janeiro, 1963, p. 72.

21
oestina. Portanto, esse novo design estético, exibido especialmente pelos
personagens que representavam os papéis ‘femininos’, colaboravam no pro-
cesso de construção de inovadoras representações.
Os tecidos representavam um distintivo social, pois quanto mais sofisticados
mais representativos eram da escala social dos seus usuários. Segundo Daniel
Roche (2000, p. 258-259), “[...] o vestuário, por si próprio, fala de muitas coisas
ao mesmo tempo, ainda que, seja por um detalhe.” Argumenta ainda o mesmo
autor que: “[...] há nele uma função comunicativa, além de revelar a vincula-
ção a um sexo, sendo normal, entretanto, a adoção do traje supostamente co-
mum ao outro sexo quando nos deslocamos para diferentes temporalidades”.
Figura 2 – Comédia Nova: O Saloio Cidadão

Fonte: Carlos Moura. Coleção Memória Social da Cuiabania – Série Teatro do século Volume I.
XVIII/1979.

Logo, as peças litero-teatrais, os folhetins originários de Portugal com


adaptações e reproduções, encenadas por atores mato-grossenses na Cuiabá
antiga, são por este estudo considerados enquanto recursos pedagógicos de
educação da rude população das minas, uma vez que faziam circular valores
significativos que provocavam efeitos positivos na sociedade que os encena-
vam, os acolhia e os aplaudia.
No entanto, outras peças foram representadas na Vila, como O Tutor
Namorado ou As Indústrias das Mulheres - entremez77, um dos tipos de
peças mais representados e de grande sucesso em virtude da sua encenação
em Cuiabá, no ano de 1790, a qual oportunizou que a população exercitasse

7 Segundo Moura (1982), “O Dicionário de Caldas Aulete define o entremez como breve
composição dramática, burlesca ou simplesmente jocosa, que serve de entre ato da comédia
ou da tragédia numa recitá teatral, farsa”.

22
diferentes práticas educativas e culturais. De acordo com a historiografia em
Portugal, a representação de entremezes é documentada pelo menos desde
o século XV e, em Mato Grosso, no século XVIII.
Os entremezes O Tutor Namorado ou As Indústrias das Mulheres tive-
ram a sua circulação em Lisboa no século XVIII, pelo menos em três edições,
onde o texto era o mesmo, apresentavam poucas variações, em todas as edi-
ções de 15 páginas foram impressas em duas colunas e nenhuma tinha folha
de rosto especial. Também não traziam o nome do autor (MOURA 1982).
A representação dos dois entremezes citados foi encenada no dia 29 de
agosto de 1790, durante os festejos realizados em comemoração ao aniver-
sário do Ouvidor Dr. Diogo de Toledo Lara Ordonhez, e, segundo Moura
(1982), “[...] foi um grande sucesso de público e de crítica”. Em resumo, eram
esses os atos/tramas:

[...] onde duas órfãs, Aldonça e Brites sem conhecimento do Tutor


Ambrósio, estão namorando D. Bazófio e o Licenciado Valério, e
pretendem-se casar com eles. No entanto, o tutor descobre o namoro,
desse modo a discussão entre eles é intensa e, por conta disso, os
pretendentes são expulsos da moradia do Tutor e de suas pupilas.
Argumentam as jovens junto ao tutor que precisam casar cada uma
com o seu pretendente. Contudo, são surpreendidas com a proposta
do Tutor que não concorda com elas e ao mesmo tempo, revela que
pretende casar com as duas, sendo primeiro com uma e, se falecesse,
depois com a outra. Preocupado em estabelecer o plano e evitar que
os namorados voltem, o tutor resolve mudar de casa às escondidas,
na noite desse dia [...] ao saberem do plano do velho D. Bazófio diz
que vai matá-lo com sua espada de aço, e o licenciado diz que, com o
seu boticão, vai arrancar-lhe aos pedaços, dentes gengivas e queixos.
As jovens tentam enganá-lo, pregando-lhe algum logro. As duas moças
durante a mudança, escodem os namorados dentro de saco e esteira, os
quais acabam fazendo parte do material de mudança. Ambas fazem as
pazes com o tutor, finge que querem de fato casar com ele disputando
qual seria a primeira. Após a retirada da mudança, saem depois o tutor
e as duas moças, levando D. Brites uma vela acesa. Nesse entrerregue,
ela apaga a vela e, no escuro são substituídas pelos pretendentes,
vestidos de mulher que, de braços dados com o tutor que sorrindo sai
pensando ter enganado a todos. Os três vão pela rua e defronta-se com
dois embuçados que interpelam o tutor e desafiando-o para brigar. O
tutor argumenta que as duas moças são suas filhas, e os embuçados
respondem que são solteiros e as querem para noivas. O tutor

23
argumenta que as moças já estão comprometidas, mas os embuçados
reforçam que o compromisso primeiro seria com eles. Discutem e vem
a furo que o velho as quer para esposas. Enfurecidos os embuçados
ameaçam espancar o velho. Atemorizado, o tutor pede que o não mate
e, entrega-lhes as duas moças. Assim, obtendo a confirmação do Tutor
que as dava em casamento, os embuçados dão a conhecer – eram
Aldonça e Brites vestidas de homem, e ao mesmo tempo as órfãs - não
eram senão D. Bazófio e o Licenciado, vestidos de mulher. Revoltado o
Tutor avança para os quatros, mas D. Bazófio chama outros embuçados
para espancá-lo. Pede então o Tutor que não o espanquem e diz que
vai para o resto da vida, tornar público que todo velho que quer esposa
nova, se não for enganado, será por milagre, mas sempre fica sujeito a
ter dores de cabeça se a mulher não for mui virtuosa. Abraçam-se os dois
pares de namorado, prometem três dias de festas, e terminam dançando
um minuete em louvor do auditório. (MOURA, 1982)

Figura 3 – Entremez: O Tutor Namorado ou As Indústrias das Mulheres

Fonte: Carlos Moura. Coleção Memória Social da Cuiabania. Série Teatro do século XVIII – Vol.
I. 1982

“A crítica das Festas”, escrita na Cuiabá setecentista, o mais antigo texto


de crítica teatral do Brasil, não deixou a menor dúvida quanto à importância
que O Tutor Namorado ou As Indústrias das Mulheres possuem para a
nossa literatura. A este respeito, Moura (1982), revela que a crítica considerou

24
“[...] ter sido o entremez mais jocoso que jamais vira representado.” Assim diz
o texto de crítica:
DOMINGO, 29 – Representou-se a tragédia de Zaira acompanhada com o
mais jocoso entremez que jamais vi representado. (MOURA, 1976, p. 64);

E, mais adiante, confirma e reforça o sucesso dessa representação: o pú-


blico não parou um instante de rir e de bater palmas:

[...] e, finalmente, o sobredito entremez, que não fez um instante a toda a


plateia acessar de rir e bater palmas (porque ali estava João Francisco de
velho enamorado), tudo isto deu um lustre e gosto muito grande a esta
função. (MOURA, 1976, p. 64)

Argumenta que, a dança do final da peça fechou com chave de ouro a


representação, conforme segue: “[...] fim do entremez dançaram a tirana em
meu louvor, como dizia o velho, o qual fez maravilhas na mesma dança”
(MOURA, 1976, p. 65).
Segundo Moura (1982), um importante testemunho do apego dos colo-
nos de Mato Grosso aos espetáculos teatrais foi dado pelo 1º governador da
capitania, Antônio Rolim de Moura, registrado na correspondência dirigida
a Tomé Joaquim da Costa Corte Real (Secretário de Estado da Repartição do
Ultramar), em Vila Bela, aos 29 de novembro de 1759: “[...] para diminuir des-
pesas, procurou evitar que eles fizessem festas e cavalhadas, mas verificando
que se ressentiam, consentiu cavalhadas e como também alguns anos comé-
dias ou bailes”. É interessante notar que, conforme revela o autor “[...] O fato
de as festas contribuírem para polir os homens por meio da comunicação
e da assistência na Capital era um dos motivos pelos quais consentia nelas
[...]”. (MOURA, 1982). Tanto que, parte da correspondência, o governante An-
tônio Rolim de Moura expunha seu ponto de vista com relação às festividades
promovidas e seus benefícios aos colonos:

[...] além de que os mineiros assistem distantes da Vila, lidando e


trabalhando continuamente com os seus negros, e assim estas festas
que veem uma vez no ano não deixam de ser úteis, não só como
refrigério ao trabalho de todo o ano, mas ainda para conciliar as
amizades e polir os homens por meio da comunicação e da assistência
na Capital [...]. Estas são as causas por que consinto nelas; pois
sinceramente confesso a V. Exa, que me custa muito dispender cousa
alguma fora do preciso, nem concorrer para que outros a dispendam
seja que, sem que seja com utilidade do serviço de S. Majestade ou
do Bem Comum [...]. (MOURA, 1982).

25
Ainda que pesem todas as considerações e razões estratégicas de ordem
econômicas perseguidas pelo governante, o teatro, enquanto recurso edu-
cativo e pedagógico era adicionado à simpatia e ao gosto dos colonos por
festas e representações teatrais. Até porque as festas, bailes e encenações
teatrais, com base nos folhetins vindos de Portugal e no envolvimento dos
atores locais, comparecem como um dos meios pelos quais o aprendizado de
valores se dava através da circularidade cultural entre os indivíduos e grupos
distintos, colonizador e pessoas locais.
Esses espaços de convivências, como praças, tablados públicos, salões e
palácios, constituíam-se como lugares de desenvolvimento de práticas educa-
tivas e culturais. Essa disposição da população para o lúdico e para o festivo
não foi introduzida na região de Vila Bela pelo primeiro governador – data
de anterior à sua chegada – e ali permaneceu depois de sua volta a Portugal.
Portanto, sempre foi uma prática educativa e cultural da sociedade mato-
-grossense colonial. Podemos deduzir que os locais de encenação fizeram o
papel de verdadeiras salas de aula e os textos, de livros didáticos.
Sabe-se que as atividades culturais e festivas eram intensas pela região,
promovidas tanto pelo governo quanto pela Igreja Católica, adicionando-se
a elas as de iniciativa espontânea da população índia, negra, branca e mes-
tiça, mediante suas práticas religiosas, comunitárias, manifestas através das
irmandades, como as de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e pe-
las festividades revestidas de tradições africanas. Mesmo condenadas, as re-
presentações das diversas camadas sociais deveriam ser permitidas algumas
vezes, pois, fixar essa população no solo, garantindo a guarda e defesa da
fronteira, se sobrepunha às convenções de ordem social, funcionando como
elementos de sociabilidade, civilidade e inserção social.
Vale ressaltar que durante os longos anos do governo de Luís de Albuquer-
que à frente da capitania de Mato Grosso, tanto em Cuiabá, como em Vila Bela
(Vila Capital), promoveu ele várias festividades culturais e de sociabilidade.
Gilberto Freyre (1978, p. 59) revela que este governador “[...] foi promotor e
animador dessas expansões de alegria portuguesa e dessas exibições de arte
europeia quase no meio de matos tropicais do Brasil”. Tanto que, cioso da
pragmática, celebrava as datas importantes da Corte portuguesa e da igreja,
como registrado nos Anais de Vila Bela (1734-1789), pelo vereador e alferes
Gregório Pereira:
[...] No dia 17 de dezembro, que é o do aniversário da Rainha Fidelíssima,
Nossa Senhora, foi Sua Excelência, ministros, oficiais militares e nobreza
assistir ao Te Deum laudamus, que em ação de graça se cantou na
igreja matriz [...] Houve no palácio, à noite, um baile de bem disfarçadas

26
ricas máscaras, que a quase não cabiam em três ordens de brincos
(dança) por toda a sala grande, que estava muito iluminada e vistosa.
Deu Sua Excelência uma suntuosa e magnífica ceia, na alta noite, em
diversas salas, assistindo os ministros e senhoras da terra. Depois da ceia
se repetiram algumas poesias sobre o assunto tão feliz e alegre daquele
dia [...]. (ANZAI; AMADO, 2006, p. 234-235)

Avalia-se ainda que, na capitania de Mato Grosso, os atos públicos pra-


ticados em memória da pessoa real ou dos seus representantes tinham um
grande significado, vez que essas lembranças e homenagens, materializadas
através das ações de graças, de alegria ou luto deveriam ficar marcadas na
memória da população do lugar, devendo ser avivadas e rememoradas sem-
pre que adentrassem aos espaços demarcados pelos emblemas e sinais dis-
poníveis ou marcados pelos moradores nos diferentes locais das cerimônias
que envolvessem a vida do soberano, seus familiares e os representantes da
Coroa.
Nessa mesma perspectiva, também, restaurar a trama da vida social e cul-
tural de diferentes sujeitos históricos, cujas expressões se encontravam enco-
bertas e silenciadas, visto que considerados em boa parte da documentação
oficial como “selvagens” “bárbaros” e “incultos”, dentre outras denomina-
ções. Nesse sentido, procurou-se desfiar e desconfigurar essa teia de relações
cotidianas, na busca de aclarar os diferentes sujeitos e seus saberes e fazeres e
as experiências educativas culturais realizadas nessas relações. E, por último,
possibilitou enxergar o caráter pedagógico das práticas educativas, escolares
ou não, centrado na formação do indivíduo e no modo como ele se apropria
dos objetos culturais e bens simbólicos nos espaços de sociabilidades.
Portanto, ao abordar a educação na América portuguesa, em especial
a manifesta na capitania de Mato Grosso, em particular na Vila de Cuiabá,
na segunda metade do século XVIII e XIX, há de se romper as fronteiras da
educação escolar e buscar também nas práticas educativas realizadas fora
das escolas, os saberes que foram constituídos na interação e movimenta-
ção cotidiana da população lusitana, indígena, africana e aquelas advindas
da miscigenação. Sobretudo aquelas práticas educativas majoritariamente
constituídas por indivíduos que, em sua maioria, se encontravam alheios à
herança cultural do Velho Mundo e vivendo na oralidade. Porém, tais práti-
cas educativas eram manifestas pelos vínculos de sociabilidade e de dimen-
são cultural, com destaque, nesse estudo, para as representações teatrais
estabelecidas no envolvimento dos diferentes universos culturais que se
entrecruzavam nessas territorialidades, fruto do legado dos colonizadores
e dos colonizados.

27
REFERÊNCIAS

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casas de ópera. Revista Aspas, Brasil, v. 5, n. 2, p. 103-110,
Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/aspas/article/view/102335/107749>. Acesso
em: 04 jul. 2018.

28
ENTRE HISTÓRIAS, TRAMAS E BRUXARIAS –
MARIA OZÉBIA – EM DUNGA RODRIGUES

Viviane Gonçalves da Silva Costa8

APRESENTAÇÃO

Lendas de Mato Grosso (1997), uma das publicações da cuiabana Maria


Benedita Deschamps Rodrigues – Dunga Rodrigues9, reúne um conjunto de
narrativas que representam os costumes, os valores, as crenças e tradições de
uma Cuiabania, somam cento e vinte e oito (128) lendas10 “[...] que registrei
em Cuiabá e localidades da periferia”11. Quatorze (14) delas são atribuídas
a Maria Ozébia ou Ozébia e as demais, cento e quatorze, são de autoria do
padre José Maria de Macerata. O livro possui capa, folha de rosto com os
“Sinceros agradecimentos, Dunga Rodrigues”. Ilustrações de Antonio João de
Jesus12, perpassadas por toda a obra. Ficha catalográfica (Mato Grosso, Len-
das, Literatura). Uma lista contendo nove (9) publicações da escritora. Três
páginas dedicadas aos agradecimentos. Uma carta do professor Dr. Júlio De-
lamônica Freire, apresentando a autora e obra13. Índice, parte I – “Estórias de

8 Licenciatura e bacharelado em História/UFMT (2000-2004) e Mestrado pelo Programa de Pós-


Graduação em História/PPGhis/UFMT (2005-2007). Aluna especial do PPGhis – Doutorado –
Universidade Federal de Mato Grosso (2018). Docente da Faculdade Católica de Mato Grosso.
9 Maria Benedita Deschamps Rodrigues – Dunga Rodrigues (1908-2001), escritora e professora
de Língua Portuguesa, de Língua Francesa, de Piano e Harmonia. Obras publicadas:
Reminiscências nos 250 anos de Cuiabá (1969), Os Vizinhos (1977); Marphysa: romance
de costumes (ou o cotidiano de Cuiabá nos tempos do Candimba, das touradas do
Campo d’Ourique e das esmolas do senhor Divino) (1981); Cuiabá: roteiro de lendas
(1984); Roteiro Musical da Cuiabania: a arte em Cuiabá (1978); Antônio Simaringo:
vida e composições (1978); José Mamede da Silva Rondon: vida e composições (1978); Dr.
Antonio Pedro de Figueiredo: vida e composições (1979); Lendas de Mato Grosso (1997); e
Movimento Musical em Cuiabá (2g000). Membro do IHGMT e da ALMT.
10 Lendas - [Do lat. legenda, “coisas que devem ser lidas”.] Originalmente, a palavra designava
histórias de santos, mas o sentido estendeu-se para significar uma história ou tradição oriunda
de tempos imemoriais e popularmente aceite como verdade. É aplicada hodiernamente a
histórias fantasiosas ligadas a pessoas verdadeiras, acontecimentos ou lugares. Lenda e mito são
relacionados, mas a lenda tem menos a ver com o sobrenatural. A lenda frequentemente diz
respeito a personagens famosas, populares, revolucionárias, santas, que vivem na imaginação
popular. A lenda é sustentada oralmente, cantada em versos tradicionais ou em baladas, e
posteriormente  escrita. A literatura de cordel inclui muitas histórias lendárias em torno de
figuras populares ou da vida política. Na lenda, facto e fantasia são interligados. (E-dicionário
de termos literários/http://edtl.fcsh.unl.pt/acesso em 07 de julho de 2018.)
11 RODRIGUES, Maria Benedita Deschamps (Dunga Rodrigues). Lendas de Mato Grosso. Cuiabá:
Ed. da Autora/Gráfica Print Express, 1997, p. 4.
12 Os desenhos com assinatura ele os fez aos treze anos de idade, os outros foram produzidos no
ano de publicação do livro.
13 Roger Chartier analisa ao longo da história as distintas maneiras pelas quais foi acionada a
‘função autor’ no tempo. Ou seja, o funcionamento da ‘função autor’ não se inscreve no

29
Ozébia”, parte II – “Lendas atribuídas ao padre José Maria de Macerata”. No
corpo do texto, as lendas são distribuídas e organizadas por uma sequência
numérica e em algumas, ao final da narrativa, consta nota explicativa, indi-
cando as fontes de pesquisa. O livro termina com um glossário e uma errata.
Na seção “Agradecimentos”, a autora apresenta seus objetivos em relação
à publicação de Lendas de Mato Grosso, um “Livro tão sonhado para perpe-
tuar e preservar a nossa memória”. Além disso, Dunga Rodrigues evidencia
nas frases seguintes suas reais intenções: “Comecei a temer pelas nossas coi-
sas genuínas” em detrimento “[...] de uma provável maciça invasão forasteira
nessa região”, “Outras gentes, apesar de irmãos, viriam com as culturas, as
suas tradições, seu folclore”.
Os anseios e temores da literata podem iluminar e ajudar na compreensão
das aspirações de uma elite letrada ao forjar uma identidade e as tradições de
uma cuiabania14, visto que, para Dunga Rodrigues, “Cuiabá, foi o grande
mote de sua produção intelectual, pois temia que a riqueza da cultura her-
dada por mais de dois séculos pudesse ser esquecida [...] frente ao intenso
e vigoroso movimento migratório desencadeado em direção a Mato Grosso,
[...] pós-1970”15.
Em Dunga Rodrigues, os relatos e as memórias podem ser chave para o
entendimento de seus escritos literários e indicativo para análise da inven-
ção de uma cuiabania (tradição), do eu cuiabano de “chapa e cruz” e do
outro “pau rodado”. E, assim, coloca-nos uma problemática pautada entre:
identidade, cuiabania e cuiabanidade. O que é ser cuiabano? Como é o seu
estilo de vida? Como a escritora constrói, interpreta e transmite a sua Cuiabá?
Que experiências do vivido foram articuladas nesse lugar? Nesse sentido, o
jeito de ser do cuiabano e as impressões da escritora podem ser aventados
por meio do livro Lendas de Mato Grosso, em que se articulam identidade
e tradição; oralidade e memória como necessidade de preservar e tecer uma
cultura genuína intimamente vinculada aos empreendimentos de uma elite
letrada de Cuiabá, Mato Grosso, Brasil.

momento de uma prática de escrita, mas se insere dentro de uma ordem do discurso especifica
que a engloba. O papel desempenhado pelo autor migrou de mero eco para a concepção
romântica de gênio criador. Portanto, “autor”, “obra” e “comentário”, governam a relação com
os textos. (CHARTIER, Roger. À beira da falésia. A história entre certezas e inquietude.
Porto Alegre: EdUFGRS, 2002).
14 Ver: GUIMARÃES, Suzana Cristina Souza. Arte na rua: o imperativo da natureza. Cuiabá:
EdUFMT, 2007. Pesquisadora discute tradição, identidade do cuiabano e a invenção de uma
cuiabania nas décadas de 1970-80 do século XX.
15 SIQUEIRA, Elizabeth M. A portentosa e inesquecível Dunga Rodrigues e sua contribuição para
o resgate cultural de Mato Grosso. In: SIQUEIRA, Elizabeth Madureira de (Org.). Tributo a
Dunga Rodrigues: gratidão e saudade. Cuiabá: Secretaria de Estado de Cultura; Carrión e
Carracedo, 2002, p. 22.

30
O objetivo desse artigo é compreender, por meios dos relatos em Lendas
de Mato Grosso, aspectos gerais que caracterizam a produção intelectual e o
fazer literário de Dunga Rodrigues – mulher, defensora dos símbolos da cuia-
bania16 – articulando História e Literatura. Uma atenção especial será dada à
figura de Ozébia e a lenda “03. A bruxa 1”, que possibilita pensar as fronteiras
entre história e literatura e o sentido que se procura encontrar no passado.
A temática que compõe a primeira parte do livro é a história de Cuiabá,
seus medos, anseios e sua perspectiva de futuro. O formato das lendas é
bastante variado. As lendas dessa seção compõem um panorama dos prin-
cipais eventos da história de Mato Grosso: descoberta do ouro, a guerra do
Paraguai, os índios, a varíola, os personagens caricatos e suas crendices.
Com ênfase na figura de Ozébia, transparecendo o olhar de Dunga Rodri-
gues acerca das mulheres cuiabanas delineadas como transgressoras, ambi-
ciosas, dotadas de poderes sobrenaturais (bruxa, benzedeiras e feiticeiras),
loucas e donas de casa.

O LIVRO, O TEXTO E O CONTEXTO HISTÓRICO NAS


COMPOSIÇÕES LITERÁRIAS DE DUNGA RODRIGUES

Da parte I – “Estórias de Ozébia”, listamos as seguintes lendas: 01. A


porca dos sete leitões, 02. A pedra de cevar, 03. A bruxa 1, 04. A figueira,
05. Procissão das almas, 06. O negrinho da desavença, 07. O jabuti e a fruta
desconhecida, 08. Pé de garrafa, 09. O toicinho, 10. O feitiço, 11. A carroça
mal-assombrada, 12. O minhocão do Pari, 13. A pedra do 21 e 14. A Custódia.
Em Ozébia, a oralidade é “palavra viva”, onde Dunga Rodrigues retém e cap-
tura, tornando-se “autoridade pelo uso da escrita”, a incorporação da autora
de uma obra e de uma produção extensa e variada, compilada em livros. A
seguir, faremos um breve resumo das lendas descritas por Ozébia.
“01. A porca de sete leitões”17, versão popular. Narrativa acerca de práti-
cas abortivas e/ou abandono de nascituros por mulheres “regateiras”, “sirigai-
tas”, “lambisgóias” que repudiavam o papel de mãe. Melhor dizendo, quando
“essa mulherada que mata filho antes de nascer ou injeita anjinho”, depois de
mortas, recebem sua sentença, um castigo de Deus, sendo transformadas em
porcas e vagueiam pela rua 13 de Junho, dando origem à porca dos sete lei-

16 Lylia da Silva Guedes Galetti em Sertão, Fronteira, Brasil leva-nos a uma viagem pelo Mato
Grosso do século XVIII ao XX por meios de narrativas de viajantes que criam e recriam
imagens sobre esse território, ora como lugar da barbárie ou ora como um Eldorado. Ver:
GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Sertão, fronteira, Brasil. Imagens de Mato Grosso no mapa
da civilização. Cuiabá: EdUFMT/Entrelinhas, 2012.
17 RODRIGUES, Maria Benedita Deschamps (Dunga Rodrigues). 1997, p. 14.

31
tões: “A noite, diziam os que por ali passavam, era comum, à proximidade do
local, serem seguidos por uma porca feroz acompanhada de sete reluzentes
leitõezinhos, perseguidores também dos retardatários.”18
“02. A pedra de cevar”19, lenda atribuída a Ozébia, narrativa sobre as fa-
çanhas de Sinhá Bila, mulher sedutora e de sorte, “fornida de corpo, com cin-
tura de retrós”, ambiciosa e que “enfeitiçava com os seus encantos”. Antônio
Polidoro da Cacimba foi o primeiro que se encantou por Sinhá Bila e casou-se
com ela em bodas solenes e festejos para gente de posses. Ele era de uma fa-
mília portuguesa, teve seus pais perseguidos e mortos durante a Rusga20. Pas-
sado algum tempo, Nhá Bila enfastiou-se do esposo e passou “atirar dengos”
a um alferes guapo de olhos azuis. Totó Cacimba começou a definhar e veio
a óbito. Nhá Bila não guardou luto por mais de um ano e o alferes já estava
no laço. Nhá Bila esbaldava vestidos, criadagem, viagens à vapor, vivendo
com fartura. Mas o alferes também caiu em desânimo, mais um pé na cova. E,
Nhá Bila foi espairecer no Rio de Janeiro. Os comerciantes sentiam a falta da
maior consumidora de agulhas. Não é por falar mal, dizia Ozébia, como tem
sorte Nhá Bila, “[...], em sigilo abria a gaveta dos segredos na cômoda de Jaca-
randá, retirando de uma caixinha uma pedra de cor cinza reluzente, que era
alimentada com agulhas de topos os tipos”21, uma pedra de cevar milagrosa,
que tinha solução para tudo: felicidade no casamento, dinheiro, uma corte de
admiradores, prestigio social e realização pessoal.
“03. A bruxa 1”22. Conta a história do enlace matrimonial da própria
Ozébia com Zé Monqüeba. Um casal de pouca beleza. Ainda assim, todos
diziam que Zé Monqüeba caiu nas malhas de Ozébia. Ela tinha cara de
assombração, alta, magra e trigueira. Ele era carinhosamente chamado de
Monqüeba, o engenho de cana fatalmente levou-lhe um pedaço do braço.
Casaram-se. Viviam felizes. Zé Monqüeba trabalhava e Maria Ozébia cui-
dava da casa. Entretanto, contaremos o desfecho dessa história de amor ao
final da última sessão.
“04. A figueira”23. Conta-nos Nhá Ozébia que havia uma grande figueira
nas proximidades Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, Rua 13

18 Ibidem., p. 14.
19 Ibidem., p. 15-17.
20 Ler sobre: SIQUEIRA, Elizabeth M. A Rusga em Mato Grosso: edição crítica dos documentos
históricos. 1992. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, Vol I. e SENA, Ernesto Cerveira de; PERARO,
Maria Adenir (Orgs). Rusga uma rebelião no sertão: Mato Grosso no Período Regencial (1831-
1840). Cuiabá, EdUFMT, 2014, 212 p.
21 Ibidem., p. 16.
22 RODRIGUES, Maria Benedita Deschamps (Dunga Rodrigues). 1997, p. 17-21.
23 Ibidem., p. 20.

32
de Junho. “No tempo em que a iluminação era a lampião de querosene, ou
ainda não havia luz de uma vez, e poucos se atreviam a se aproximar de uma
figueira a desoras. Teriam o cabelo eriçado e as pernas bambas”.24 Os senho-
res donos de engenho, patrões de casas coloniais, escolhiam a figueira para
corrigir os negros fujões, ali mesmo era o pelourinho dos escravos fustigados
até o findar dos castigos.
“05. Procissão das almas”25. Trata-se de uma lenda conhecida da minha
família, ouvi muitas vezes minha mãe verbalizá-la, dizendo que meu avô “era
novidadeiro” e foi comtemplado com a vela da procissão das almas. Mas, a
lenda é de Ozébia, vamos aos fatos. Conta-nos Ozébia que havia uma moça
abiúda e novidadeira “má das muié”, que acordou durante a noite e ao ouvir
passos, reza e cantoria, saiu na janela e espiou a procissão. Uma mulher,
horripilante vestida de branco, deu sorriso triste e entregou à moça abiúda
uma vela e desapareceu misteriosamente. A moça voltou a dormir e apagou
a vela e colocou-a debaixo do travesseiro. No dia seguinte acordou aos ber-
ros. Após o ocorrido, a novidadeira enlouqueceu e passou a acompanhar a
procissão das almas. Minha mãe acrescenta, “depois da meia noite são horas
mortas, não olhe pelas janelas ou buraco das portas”. Fica a dica!
“06. Em O negrinho da desavença”26, nas palavras de Nhá Zébia, o bairro
do porto em Cuiabá, era um lugar povoado por crianças com suas peraltices,
correndo e pulando entre os quintais das casas, aventurando-se pelas ruas
arborizadas com muitas mangueiras e goiabeiras. Para completar esse cená-
rio, Ozébia e seu filho mudam-se para Beco do Sovaco, atrás da Igreja de São
Gonçalo, no referido bairro. O negrinho da desavença, como era chamado,
era fruto de um casamento malogrado. O tal era “danado”, subversor da or-
dem e dotado de um espírito de perversidade. “O malévolo” passou a “soprar
malvadezas”, era certeiro ao apedrejar telhados, incomodar a vizinhança e
atiçar um bando de gurizada “a fazer daninhezas”, preferencialmente com o
cabo Gregório e Maria Onça.
“07. O jabuti e a fruta desconhecida”27, contada por Ozébia, lenda prova-
velmente de origem tupi, rezava que Nosso Sinhô caminhava sobre a terra, a
bicharada, sem cerimônia resolvia tudo com Jesus, o filho de Deus “que não
errava nunca”. Um dia, a bicharada avistou uma árvore frondosa e desco-
nhecida, carregada de frutos belíssimos e “todos ficaram com água na boca,
mas com medo de ser fruta venenosa” e, então, resolveram consultar Nosso

24 Ibidem., p. 20.
25 Ibidem., p. 21-22.
26 Ibidem., 22-24.
27 RODRIGUES, Maria Benedita Deschamps (Dunga Rodrigues). 1997, p. 22-24.

33
Sinhô “se come?”, “é fruta mansa?”, “é fruta braba?”. A anta prestativa, a onça
comilona e o veado veloz receberam a tarefa de perguntar a Nosso Sinhô, se
os frutos da árvore eram comestíveis. Porém, a anta, a onça e o veado foram
incapazes de cumprir a missão. Apenas o jabuti, o vagaroso, com sua flauti-
nha, foi capaz de realizar tal empreita: ouvir e transmitir direitinho recado de
Nosso Sinhô “Rei dos bichos e dos homens”, se come, é fruta mansa.
“08. Pé de garrafa” 28, Ozébia, nossa contadora de estórias, era dotada de
atributos milagrosos, curandeira, benzedeira, advinha, mulher de fé, rezava o
creio e estava sempre com o rosário nas mãos. Outro dia, batera à sua porta de
madrugadinha, era um recado da vila para uma benzeção contra mau olhado.
Ozébia, acompanhada de seu filho caçula, saiu apressadamente pelo trieiro que
os levaria à vila, quando avistaram um rastro esquisito, “por Deus do céu, com
estes olhos que a terra há de comer, juro pela alma de minha mãe que nunca
mais quero ver aquilo que vi nesse dia”, um vento repentino e um cheiro de en-
xofre encheu o ar “era o Pé-de-garrafa em corpo e alma”, um ser horripilante,
“O corpo de pelo eriçado e duro, dentuça de caititu, olho cor-de-fogo e braços
de orangotango, equilibrando-se num só pé”. Com a cruz do rosário, Ozé-
bia apontou em direção ao bicho-gente e esse gemeu e meteu-se no matagal.
“09. O toicinho”29, por Leonídia Maria de Assunção, narrativa que trata
da relação entre um homem velho “enjoado de ser ladrão”, um garoto “que
sabia malemazinho roubar” e um compadre, também “ex-ladrão”. Uma lição:
“quem vê cara, não vê coração”. Uma relação de poder, onde um pode indu-
zir o outro e vice-versa. Um velho ladrão resolveu viver honestamente. Um
garoto buscava trabalho. Suas vidas entrecruzaram-se. O ex-ladrão pergun-
tou ao garoto o que ele sabia fazer, ele respondeu: “que sabia malemazinho
roubar”. O ex-ladrão aproveitando-se “da arte do menino”, mandou-o roubar
o toicinho na casa do seu compadre, ex-ladrão. O menino chega na casa do
compadre, pede comida, entra e passa a observar a casa. O compadre tam-
bém o observa e logo conclui, ele é ladrão. Então, o garoto rouba o toicinho.
Mas, o compadre o alcança e dá-lhe uma surra. Contudo, o garoto muito de-
terminado cumpriu a difícil tarefa. No dia seguinte, o compadre foi até a casa
do amigo, conta-lhe o aborrecimento. Depara-se com o menino, que ganha a
admiração dos ex-ladrões, “Esse é mais ladrão do que eu”,e ambos resolvem
valer-se das artimanhas e do talento do menino.
“10. O feitiço”30, lenda atribuída a Ozébia narra os horrores da escravidão.
Nesse tempo, o Senhor podia fazer “orgias na senzala”, mas o negro que pu-

28 Ibidem., p. 26-27.
29 Ibidem., p. 28-29.
30 RODRIGUES, Maria Benedita Deschamps (Dunga Rodrigues). 1997, p. 30-32.

34
sesse olhos na Sinhá era tronco na certa. Benedito de Jesus, “Ditão Gorgúio”,
batizado, cristão, “gabava ter o corpo fechado”. Moço bonito e cobiçado, “os
seus chamegos” voltaram-se para a moça bonita, pele de cetim, cabelos de seda
e olhos azuis, da casa grande. Os rumores dessa paixão chegaram aos ouvidos
do Sinhô, que tratou logo de arranjar um pretendente para a Sinhá Moça. O
primo, doutor Eduardo, moço da corte, médico foi o indicado para genro. Di-
tão Gorgúio, tomado de tristeza, resolveu dar a última cartada. Saiu a procura
de Tião Benzedô, um feiticeiro afamado, que receitou uma mandiga poderosa
“conseguir fios loiros da cabeça da moça branca”. Mancomunado com uma
negrinha, conseguiu os cabelos, “que ele estranhou pela cor meio russa e meio
ásperos”. Resultado da mandinga, “Ditão não teve mais sossego”, os cabelos
eram os pelos de uma vaca amarela.
“11. A carroça mal-assombrada”31, dizia Ozébia, “a desgraça nunca vem
só. A guerra e a peste andam de mãos dadas. T’esconjuro”. Refere-se à
guerra de Solano Lopes e a peste da bexiga negra. “Nunca se viu tamanha
mortandade!”. “Como não se vencia fabricar tantos caixões em prazo ace-
lerado”, os moribundos “eram empilhados dentro das casas e uma carroça
descomunal os levava, na boquinha da noite, para não chamar atenção”. A
peste passou deixando suas marcas, pois em cada casa havia um defunto.
Até hoje, atravessa as ruas, a horas, o carroção dos bexiguentos, deixando
o eco de gemidos e exalando mau cheiro, da Cândido Mariano ao Cemitério
do Cai-Cai.
“12. O minhocão do Pari”32, uma história do Rio Cuiabá. O que poderí-
amos dizer sobre o Rio Cuiabá, abastece-nos com água, alimenta-nos com
pescado, refresca-nos dias de sol a pino, além disso, deu nome à capital
mato-grossense. Visto de outro modo, o Cuiabá quando se zanga, engole,
inunda, afoga e mata. Nas águas caudalosas desse rio, nos deparamos com
muitos personagens que o penetram: pescadores, banhistas, lavadeiras, mas
também o rio é habitat de uma variedade de vida vegetal e animal. Caso
curioso sobre o rio foi relatado por Ozébia, “eu me arrepio só de lembrar do
caso”, uma espécie de serpente, longa e cabeçuda, Minhocão do Pari, assim
era chamada, quando o bicho se zangava e dava violenta rabanadas, devo-
rava pescadores, virava canoas, embarcações pesadas. Ecoava-se um ruído,
seguido de uma laçada de negra em oito no ar, afundando e carregando para
as profundezas do rio canoeiro, remos, canoa, respingando água a metros de
distância, era o minhocão, não resta dúvida.

31 Ibidem., p. 32-33.
32 RODRIGUES, Maria Bene dita Deschamps (Dunga Rodrigues). 1997, p. 34-35.

35
“13. A pedra do 21”33, uma história de pescador. “Se vocês escutassem
o que os marujos da lanchinha Rosa Bororo contam, ficariam doidos”. Dizia
Ozébia que o rio tem cada uma, onde era costume lavar roupas e tomar ba-
nho existia um jaú descomunal, que atraia para as profundezas do rio moças
e moços descuidados.
“14. A Custódia”34, versão de Maria Ozébia. O relato passa-se entre os anos
de 1722-1725, considerados tempos difíceis, de guerra, de peste e de fome. “No
começo nadamos em ouro”, mas a ambição carrega a desgraça. O povo endu-
receu o coração, deixando de fazer obras de caridade. Uma falta de humanida-
de. E Deus mandou a correção: houve escassez de alimentos, o peixe tornou-se
arisco e escasso. Os Paiaguá atacavam as moções, impediam a navegação pelo
rio. Cuiabá, passou por chuva de gafanhotos, proliferação de ratos, “parecia
o cumprimento das escrituras”. Depois as três desgraças: a guerra, a peste e a
fome. Graças ao Senhor Bom Jesus de Cuiabá, a cidade voltou a prosperar. Um
dia, estava destinado, Cuiabá, seria o celeiro do Brasil.

OZÉBIA, ENTRE SABERES, PODERES E DISSABORES

Estreitando nosso olhar sobre Ozébia e a lenda “03. A bruxa 1”, que com-
põe a Parte I “Estórias de Ozébia” do referido livro, encontraremos, no mínimo,
duas figuras femininas: uma que se destina ao cuidado, preservação e transmis-
são de valores e colabora para a construção de uma cuiabania, seja através da
oralidade e/ou da tradição, e a outra, cuja conduta e comportamento cotidiano
são intermediados pelo universo do sobrenatural, permitiu-nos aventar pelo
imaginário: medos, convicções e inseguranças. Trata-se de uma articulação en-
tre História, Literatura e Mulher nas composições literárias de Dunga Rodrigues.
Nesse sentido, privilegiamos a análise da personagem Ozébia, ora apresentada
como “contadora de história”, guardiã da memória, ora, como “a bruxa”, com-
pondo uma trama, de contadora a bruxa das noites de sexta-feira treze (13).
Num primeiro momento, nas recordações de Dunga Rodrigues, Cuiabá e
Ozébia35 são pensadas como:

Cuiabá era um depositório de lendas e Maria Euzébia ou Ozébia, o


“anjo bom”, que se sentada ao batente da janela do meu quarto, pois

33 Ibidem., p. 36-37.
34 Ibidem., p. 37-39.
35 Maria Euzébia, negra, parteira, benzedeira, popularmente chamada de Ozébia. Moradora do
Barcelo, bairro junto à Várzea Ana Poupina. Era “solitária e misteriosa”; “criativa e bondosa”.
Conhecedora de benzeções, feitiços e simpatias, povoando o imaginário das pessoas a seu
respeito. RODRIGUES, Dunga. Lendas de Mato Grosso. Cuiabá: Ed. da Autora/Gráfica Print
Express, 1997, p. 13 e 20.

36
não havia forças que a fizesse aceitar cadeiras. Contava histórias e mais
lendas, das quais muitas vezes ela própria era também personagem, pois
repetia convicta: “vi com estes olhos que a terra irá comer”.36

Dunga Rodrigues referencia Cuiabá como depositório de lendas, fazen-


do-nos imaginar a Cuiabá da sua infância, próximo à Igreja de São Gonçalo,
no Bairro do Porto, dos estudos primários no Asilo Santa Rita (escola para
meninas), das aulas de piano com a Soeur Marie Vicent, diplomada pelo
Conservatório de Paris. Cuiabá das lendas que tem Ozébia, “anjo bom”, mu-
lher que cuida, preserva e transmite valores, “traços culturais que compõem
o imaginário da tradição cuiabana”.37
A Ozébia, “a bruxa”, é a imagem de uma mulher desprovida de beleza,
feia, que causava medos e arrepios, distanciando-se da natureza erótica e fe-
cundante: “Não é por falar mal”, pois: “Mulher, com aquela cara de assombra-
ção, alta, magra e trigueira, nem um tico de beleza, achar marido pra casar, só
à custa de bruxaria, no duro!”38. Mulher intrigante, que produz enigma – que
ocupa o espaço da casa e o papel de esposa e podendo ser, ao mesmo tem-
po, uma bruxa, cujo poder não se encontra na sensualidade do corpo, mas
no poder encantatório de seus feitiços e mandingas.

UM ACONTECIMENTO - O CASAMENTO DE OZÉBIA E ZÉ MONQÜEBA

Nos relatos de Dunga Rodrigues, Ozébia não foi pedida em casamento,


tão pouco foi cortejada, não se sabe a respeito de trocas de cartas, se houve
ou não a mediação por parte da família da noiva. Mas, “À boca pequena, to-
dos diziam que foi a peso de coisa-feita, e bem feita, que Zé Monqüeba caiu
nas malhas de Maria Ozébia”39.
Tal façanha deu-se em Várzea Grande, na Capelinha do Piçarrão, num sá-
bado qualquer. Zé Monqüeba, vestido de um terno de brim e botina rena. So-
bre o vestido de Ozébia, não sabemos se fora encomendado em Paris, porém,
seu vestido era da mais fina seda reluzente, “[...] Siá Ozébia casou, de véu e
grinalda, como qualquer outra noiva”40. Havia muita gente na porta da igreji-
nha, bisbilhotando, “pois todos queriam ver com seus próprios olhos o fato que
parecia um sonho”41, a cerimônia religiosa que uniria Zé Monqüeba e Ozébia.

36 RODRIGUES, Maria Benedita Deschamps (Dunga Rodrigues). 1997, p. 13.


37 FREIRE, Júlio Delamônica. Carta. In: RODRIGUES, Dunga. Lendas de Mato Grosso. Cuiabá: Ed.
da Autora/Gráfica Print, 1997, p. 7.
38 Ibidem., p.17.
39 RODRIGUES, Maria Benedita Deschamps (Dunga Rodrigues). 1997, p. 17.
40 Ibidem., p. 17.
41 Ibidem., p. 17.

37
Mas, o povo estava desejoso por ver Ozébia, desfigurada e o fuxico to-
mou conta do vilarejo, “Muitos comentavam que, na hora de entrar na igreja,
o santo viraria as costas e a noiva sairia voando pela janelinha lateral, quando
o padre juntasse as mãos dos noivos e fizesse uma cruz sobre eles, asper-
gindo-as com água benta”.42 Para tristeza de muitos e nos dizeres da Dunga
Rodrigues, a cerimônia do casamento realizou-se com toda a pompa, “com
todos os riquefoques”, como casório de gente fina, rica e nada de anormal
aconteceu.
Nesses termos, é possível fazermos algumas constatações. Nanci Leonzo
em O casamento e a Moral doméstica, atesta que em fins do século XIX era
usual a prática de uniões em duas cerimônias consecutivas, a religiosa e a ci-
vil. Um banquete selava o enlace. O casamento civil, instituído no Brasil após
a proclamação da República, foi fruto de discussões acerca de sua natureza e
precedência. Nem todos os casamentos eram arranjados. As noivas usavam
vestidos de cetim, de seda, de renda finíssima e muito bordado. Preparavam
uma lingerie para as primeiras núpcias. Os exemplos acima relacionam-se a
pessoas e famílias que alcançaram projeção social. Como seriam os casamen-
tos das pessoas mais simples?
Os noivos se vestiam com requinte e elegância, Ozébia, de vestido de
seda, véu e grinalda “E o véu, que embelezava toda noiva, dava-lhe um as-
pecto caricato, acentuando-lhe mais a feiura”43. Zé Monqüeba, de terno de
brim. Cabe aqui registar que Zé Monqüeba era assim chamado por não ter um
pedaço do braço, arrancado acidentalmente num engenho de cana.
Ao analisarmos as especificidades históricas de Cuiabá no século XIX,
por meio da obra Bastardos do Império, de Maria Adenir Peraro, ao tratar
sobre o tema da ilegitimidade, casos de homens e de mulheres unidos sem
os laços do matrimônio religioso, atestou a reprodução da bastardia no
contingente mais amplo da população, extrapolando a população escrava
e instalando-se entre a população livre, tanto composta de pobres como
da elite, concluindo que os tratos ilícitos confrontavam a moral da Igreja
Católica e eram socialmente legitimados.
Os casos analisados em Bastardos do Império não correspondem ao
nosso casal, Ozébia e Zé Monqüeba, que casaram-se na Igreja e viveram feli-
zes para sempre. Melhor dizendo, no começo era um mar de rosas. Um amor
para a vida toda. Um conto de fadas.
Maria Angela D’Incao, em Amor e Família no Brasil, ao analisar aspec-
tos sociais do Brasil, especialmente o cotidiano das famílias, o amor român-

42 Ibidem., p. 17.
43 RODRIGUES, Maria Benedita Deschamps (Dunga Rodrigues). 1997, p. 18.

38
tico e a qualidade da relação entre mães, pais e filhos, da chamada família
nuclear atual, observou que em alguns estudos o amor romântico passou a
ocupar um papel central nas relações familiares. A despeito disso, os estudos
da família contribuem para três direções importantes:
[...] que o amor passa a ser referenciado na família [...] e generalizado a
partir de meados século XVIII, na Europa; [...] que o casamento por amor
passa a ser possível [...] e, [...], que grupos familiares, assim constituídos,
passam a se auto definir e a agir com base nas obrigações, deveres e
direitos do amor que é realizado de uma maneira individual.44

Com papeis bem definidos socialmente, Zé Monqüeba saía todos os


dias para o trabalho, no espaço da rua. Ozébia, corriqueiramente saía para
as benzeções e pontualmente cuidava da casa, preparava os alimentos, la-
vava roupas, cuidava das plantas e da limpeza do quintal, tudo realizdo no
espaço doméstico, privado. Uma exímia dona de casa.
Nas primeiras décadas do século XX, conforme análises de Marina Maluf
e Maria Lúcia Mott, em Recônditos do mundo feminino, os discursos, as
representações e os papeis que homens e mulheres deveriam desempenhar
estavam assim colocados:

[...] o lugar da mulher é o lar, e sua função é gerar filhos para a pátria
e plasmar o caráter dos cidadãos de amanhã. Dentro desta ótica, não
existiria realização possível para as mulheres fora do lar; nem para os
homens dentro de casa, já que a eles pertenceria a rua e o mundo do
trabalho45.

Todavia, Ozébia era uma mulher cheia de artimanhas e muito misteriosa.


Uma benzedeira atuante e reconhecida pela vizinhança local e arredores. Devi-
do sua atuação pública, não tinha dia e não tinha hora para acudir um doente,
despertando desconfiança e ciúme em Zé Monqüeba. Ele a observava coti-
dianamente, constatando que todas as sextas-feiras a esposa ausentava-se de
casa. Zé Monqüeba “[...] procurou pela casa e pelo terreiro; não viu viva alma.
[...]. Nenhum sinal humano! [...]. Para onde teria ido, àquelas horas mortas, a
misteriosa Maria Ozébia?”46. O marido ficou à espreita. Vigiava Ozébia, e nada.
Zé Monqüeba ansiosamente esperou pela próxima sexta-feira. Rapida-
mente seguiu os passos de Ozébia e a viu:

44 D’INCAO, Maria Angela (Org.) Amor e Família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989, p. 10.
45 MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando
A. (Coord.) e SEVCENKO, Nicolau (Orgs.). História da vida privada no Brasil República: da
Belle époque a era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras. 1998, p. 374.
46 RODRIGUES, Maria Benedita Deschamps (Dunga Rodrigues). 1997, p. 18.

39
[...] apanhando num canto uma vassoura velha, nela montou e saiu pela
janela em disparada, cortando os ares como um corisco. Zé Monqüeba
tremendo de medo, nem se movia, como se as pernas estivessem fincadas
no chão [...]. A custo voltou ao quarto, mas não dormiu o resto da noite.47

Os dias se passaram e um não dizia nada ao outro. Ela cuidava da casa,


preparava a mesa para as refeições do casal. Ele não dizia uma só palavra. Até
que um dia ele resolveu buscar ajuda com a comadre Sidônia, uma mulher
dotada de atributos mágicos, que logo foi dizendo sobre Ozébia “Ela sempre
foi misteriosa, desde menina. Nós pensamos que com o casamento, quebrasse
o encanto”.
Então, Comadre Sidônia recomendou: “ponha no terreiro um mocho de
pernas viradas para o ar. E, na janela da cozinha, coloque uma tesoura aberta
e espere o resultado”.48 Ozébia foi violentamente surpreendida! Com as mãos
atadas e com o dedo decepado, o encantamento foi quebrado. Ozébia pas-
sou o resto da vida envergonhada, constrangida, “escondia o dedo decepado
no bolso da saia de chita, não o retirando para nada”.49
O casamento foi para Ozébia um remédio para curar o feitiço? Ou, uma
espécie de freio? Uma punição? Ozébia tornou-se infeliz e sem vida, ainda
mais misteriosa, fechada em si mesma. O ato insano, violento e covarde de Zé
Monqüeba, decepou as virtudes e os talentos mágicos de Ozébia. Ela perdeu
o encantamento. Simplesmente, faltou diálogo! Qual é o verdadeiro sentido
do matrimônio?
O que é ser uma bruxa? Ser bruxa é o mesmo que feiticeira? As bruxas
adoram o diabo? Em A história da bruxaria, de Jeffrey B. Russell & Brooks
Alexander, ambos os autores buscam responder tais questionamentos, afir-
mando que as bruxas existem e podem ser historicamente compreendidas:

[...]. Uma das respostas pode ser obtida nas raízes semânticas e no
desenvolvimento dos variados termos ligados à sua definição. A
palavra “witch” “bruxa”, em inglês deriva de wicca (pronuncia-se
“uítcha”, que significa “bruxo”, um praticante masculino da bruxaria)
e de wicce (“uitchê”, que é “bruxa”); ambos os termos pertencentes
ao inglês antigo (Old English). Os dois substantivos derivam do verbo
wiccian (“uítchan”, que quer dizer “jogar um feitiço” ou “lançar um
encantamento”).50

47 Ibidem., p. 19.
48 Ibidem., p. 19.
49 Ibidem., p. 20.
50 RUSSELL. Jeffrey B. & ALEXANDER, Brooks. História da Bruxaria. São Paulo: Aleph, 2008, p. 13.

40
A partir da obra de Jeffrey B. Russell & Brooks Alexander, a bruxa em Dun-
ga Rodrigues é a representação de uma velha horrorosa, com verrugas no nariz,
chapéu comprido e preto, em formato de cone, montada em cabo de vassoura,
correspondendo a um estereótipo, que foi fixado em nosso imaginário por
meio de longa tradição artística que se estende do século XIII a Goya.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Maria Ozébia emerge inicialmente como uma mulher comum, “um anjo
bom”, que nunca demostrou dualidade de caráter. Em seguida, aflora seu com-
portamento não visível, voltado para a bruxaria – uma mudança brusca, meta-
morfoseando-se de boa (benzedeira) em má (bruxaria).
Uma figura feminina bastante mística, fechada sobre si mesma, velando
segredos. Ao mesmo tempo, a representação de uma tragédia. Uma mulher
que exercia seu papel de maneira satisfatória, dedicada ao lar e ao esposo,
realizava atividades de benzeção e bruxaria na esfera pública. Suas saídas
nas sextas-feiras treze representam indício de forte desejo de liberdade e de
realização pessoal como mulher dotada de poderes e de saberes.
Maria Ozébia parece impor a si própria um distanciamento da vida priva-
da, doméstica e uma aproximação com voos para espaços públicos, dona de
uma profunda determinação. Zé Monqüeba, um homem, violento, inseguro
e medroso, não soube lidar com as aspirações de liberdade e de realização
fora do lar de Ozébia. Usou de violência para mantê-la sob o seu jugo, podou
suas assas (vassoura), deixando-a mutilada e ferida.
Enfim, nos deparamos com uma mulher fronteiriça, que não está total-
mente voltada para o mal nem para o bem, cujos opostos são complementa-
res, dois princípios antagônicos. Talvez seja esse o traço próprio da condição
humana, e, no caso específico, da condição do “ser feminino”.
Portanto, compreender Dunga Rodrigues e a sua obra, uma figura definida
socialmente no cenário das letras, uma memorialista que de fato possui uma vas-
ta e extensa obra entre prosas, lendas, contos, crônicas e poesia, é um desafio,
uma articulação entre duas áreas distintas do conhecimento, História e Literatura.
Em suma, para finalizar nossas considerações sobre os relatos de Ozébia
em Lendas de Mato Grosso, afirmamos que Dunga Rodrigues produz sua
narrativa pelo viés da história linear de Mato Grosso, rememorando o auge,
a decadência e evolução da sua Cuiabá – “repositório de lendas” – sobrevive
pela graça do Senhor Bom Jesus, o patrono da cidade. Autora e obra – “guar-
diãs da memória” – projetam-se por meio de uma cultura escrita, fixando suas
representações sobre Cuiabá, Mato Grosso, Brasil.

41
REFERÊNCIAS

FONTES

RODRIGUES, Maria Benedita Deschamps (Dunga Rodrigues). Lendas de Mato


Grosso. Cuiabá: Ed. da Autora/Gráfica Print Express, 1997.

BIBLIOGRAFIA

CHARTIER, Roger. À beira da falésia. A história entre certezas e inquietude. Porto


Alegre: Editora Universidade/UFGRS, 2002.
D’INCAO, Maria Angela (Org.) Amor e Família no Brasil. São Paulo: Contexto,
1989.
FREIRE, Júlio Delamônica. Carta. In: RODRIGUES, Dunga. Lendas de Mato Grosso.
Cuiabá: Ed. da Autora, 1997.
GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Sertão, fronteira, Brasil. Imagens de Mato Grosso
no mapa da civilização. Cuiabá: EdUFMT/Entrelinhas, 2012.
GUIMARÃES, Suzana Cristina Souza. Arte na rua: o imperativo da natureza. Cuiabá:
EdUFMT, 2007.
LEONZO, Nanci. O casamento e a moral doméstica. In: PERARO, Maria Adenir e
BORGES, Fernando Tadeu de Miranda. Mulheres e famílias no Brasil. Cuiabá:
Carlini & Caniato, 2005.
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS,
Fernando A. (Coord.) e SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no
Brasil República: da Belle époque a era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras.
1998.
PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: família e sociedade em Mato Grosso
no século XIX. São Paulo: Contexto, 2001.
RUSSELL. Jeffrey B. & ALEXANDER, Brooks. História da Bruxaria. São Paulo:
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SENA, Ernesto Cerveira de; PERARO, Maria Adenir (Orgs). Rusga uma rebelião no
sertão: Mato Grosso no Período Regencial (1831-1840). Cuiabá, EdUFMT, 2014.
SIQUEIRA, Elizabeth M. A portentosa e inesquecível Dunga Rodrigues e sua
contribuição para o resgate cultural de Mato Grosso. In: SIQUEIRA, Elizabeth
Madureira de (Org.). Tributo a Dunga Rodrigues: gratidão e saudade. Cuiabá:
Secretaria de Estado de Cultura; Carrión e Carracedo, 2002.
SIQUEIRA, Elizabeth M. A Rusga em Mato Grosso: edição crítica dos documentos
históricos. 1992. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, Vol I.

42
O PAPEL DO IHGMT NAS FESTIVIDADES DO SEU
CENTENÁRIO E DOS 300 ANOS DE FUNDAÇÃO
DE CUIABÁ

Elizabeth Madureira Siqueira51

Sócios Fundadores do IHGMT

Fonte: RIHMT, Cuiabá, ano 1, n. 2, p. 3, 1919.

Relevante é o papel desempenhado pelo Instituto Histórico e Geográfi-


co de Mato Grosso ao longo dos cem anos de existência, seja no campo da
História, da Geografia ou no da preservação da memória e da cultura mato-
-grossense. Reportemos a 1º de janeiro de 1919, quando das comemorações
do bicentenário de fundação de Cuiabá, ocasião em que a Instituição foi cria-
da sob o título de Instituto Histórico de Mato Grosso, tendo à frente o então
Presidente do Estado e Arcebispo Metropolitano de Cuiabá, D. Francisco de
Aquino Corrêa, que, tendo ao seu lado de uma plêiade de doze intelectuais,
se responsabilizou pela instalação, aos 8 de abril do mesmo ano, daquela
que, hoje, é a Instituição cultural viva, mais antiga de Mato Grosso. Foram
eles Antônio Fernandes de Souza, Carlos Gomes Borralho, Emílio Amarante

51 Dra. em Educação, Mestre em História, Presidente do IHGMT, Curadora do Arquivo da Casa


Barão de Melgaço. E-mail: bethmsiqueira@gmail.com

43
Peixoto de Azevedo, Estevão de Mendonça, João Cunha, Joaquim Pereira
Ferreira Mendes, José Barnabé de Mesquita, Luiz da Costa Ribeiro, Ovídio de
Paula Corrêa, Philogonio de Paula Corrêa e Virgílio Alves Corrêa Filho, todos
sob a liderança de D. Francisco de Aquino Corrêa, que presidiu o Instituto
Histórico durante os primeiros 50 anos.
A cerimônia de instalação do IHGMT foi muito significativa e divulgada
na imprensa, através do jornal Gazeta Official do dia seguinte:

Em homenagem à data Bicentenária do nosso Estado52, realizou o Instituto


Histórico e Geográfico de Mato Grosso a sua sessão magna de instalação, às
19 horas do dia 8 do corrente, no vasto salão nobre do Palácio da Instrução,
assistindo a esse ato, que revestiu-se de grande solenidade, a mais numerosa
concorrência que podia comportar o local escolhido.
Às 19 horas precisamente deu entrada no edifício S. Excia. Revma. o
Presidente do Estado, acompanhado por seus Secretários de Estado,
ajudantes de ordens, autoridades e membros do Instituto, e, depois de
ocupados os devidos lugares, o Exmo. Sr. D. Aquino Corrêa, que é também
o Presidente do Instituto, abriu a sessão, proferindo substanciosa oração,
tendo por temas as palavras Pro Patria cognita atque immortali (pela
pátria conhecida e imortal), arrebatando por vezes o auditório e recebendo,
ao terminar, calorosas palmas e aplausos de toda seleta assistência.
Foi ato contínuo cantado, por um grupo de 12 alunas da Escola Normal, o
mavioso e bem ensaiado Hino de Mato Grosso, letra do Exmo. Sr. D. Aquino
e música do maestro Emílio Haydée, cujos últimos acordes foram seguidos
de inânime aplauso.
Após a leitura da ata da fundação do Instituto e do expediente, o Sr. 1º
Secretário Bel. Philogonio Corrêa, na ausência do orador, Dr. José Barnabé
de Mesquita, passou a proferir o discurso oficial, em que teve ocasião de se
referir aos pontos culminantes da história mato-grossense, assim como aos
caracteres predominantes do nosso povo e da nossa raça e terminou num
belo apelo aos membros do novel instituto e ao nosso governo para que
amparem como merece a utilíssima instituição que vinha ser criada sob tão
promissores auspícios.
Entusiasticamente aplaudido o talentoso orador, passou a ter execução a
2ª parte do esplêndido programa organizado para esta festa, tendo o mais
completo e satisfatório desempenho por parte das distintas alunas das
Escolas Normal e Modelo que concorreram para o seu brilhantismo.
Às 20 horas era cantado, com galharda precisão de sempre, o Hino Nacional,

52 O bicentenário, a que se referiu o jornalista, dizia respeito a Cuiabá, e não a Mato Grosso.

44
o qual foi ouvido em pé por todos os presentes e freneticamente aplaudido,
encerrando assim a magnífica festa inicial do nosso Instituto Histórico.
Após a sessão foram distribuídos, aos membros do Instituto presentes, um
exemplar do Estatuto impresso e o 1º tomo da Revista do Instituto Histórico
de Mato Grosso, editado na Tipografia Oficial do Estado”.
(RIHMT, Cuiabá, ano 1, n. 2, 1919).

Dístico original do IHMT D. Francisco de Aquino Corrêa

Fonte: Acervo fotográfico da Casa Barão de Melgaço

Foi nesse momento fundador que o lema institucional foi criado pelo
seu Presidente, sendo perseguido até a atualidade: Pro Patria cognita
atque immortali (Pela Pátria conhecida e imortal). Relembrando a ins-
tituição inspiradora primeira do Instituto Histórico mato-grossense, ele
assim se pronunciou:

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que tem por símbolo a


árvore do Pau Brasil, a cesalpina triumphal, de Eurico de Góes, alargara
a majestosa ramalhada por todos os Estados, onde abrolham, em rápida
floração luminosa, as sociedades congêneres. [...] Mato Grosso, porém,
ainda não aproveitara, até hoje, a benéfica sombra, já quase secular, daquela
veneranda árvore da ciência. (RIHMT, Cuiabá, ano 1, n. 2, p. 4-6, 1919).

Vejamos como D. Francisco de Aquino Corrêa compreendeu a missão


do Instituto Histórico. Partindo do pressuposto de que “Não se ama se-
não o que se conhece”, o mesmo reforçou: “Terra como esta não pode
ser desamada, senão porque desconhecida. Quanto mais conhecida, tanto
mais rica, atraente, encantadora” (RIHMT, Cuiabá, ano 1, n. 2, p. 5, 1919).
O profundo sentido atribuído por ele estava bem acima das propagandas

45
mercantis ou industriais do Estado, pois preconizava o início dos estudos
profundos sobre a realidade de Mato Grosso, os quais deveriam ser coloca-
dos acima dos interesses escusos:
Pela Pátria - Santo e senha dos sócios do nosso Instituto, divisa ideal
que se eleva sempre acima do escacho soturno de todas as paixões
subalternas, como um belo pássaro branco a pairar sobre as nossas
cachoeiras estuantes, bandeira bendita de paz e de amor, a cuja sombra
não vinguem partidarismos extremados, nem incompatibilidades
dissolventes! (RIHMT, Cuiabá, ano 1, n. 2, p. 5, 1919).
Ao final de seu pronunciamento, o primeiro Presidente do IHMT relem-
brou as diretrizes traçadas pela Comissão do Bicentenário de fundação de
Cuiabá: “Com que entusiasmo, pois não devemos saudar o aparecimento de
uma instituição que visa peculiarmente ‘publicar os documentos concernen-
tes à história, à geografia e à arqueologia de Mato Grosso, bem como à et-
nografia dos seus indígenas e à biografia dos seus homens ilustres’” (RIHMT,
Cuiabá, ano 1, n. 2, p. 5, 1919).
Nessa medida, o Instituto Histórico de Mato Grosso assumiu, na primeira
metade do século XX, o protagonismo na recuperação, escrita e divulgação
da memória e da história de Mato Grosso, tendo cada membro contribuído
com seus talentos. Composto por intelectuais das mais diversas formações,
sua escrita revelou essa heterogeneidade, porém, cumpriu o papel para o
qual fora criado: ser um dos guardiões da memória de Mato Grosso. Atual-
mente, os quadros institucionais congregam historiadores, geógrafos, jorna-
listas, arqueólogos e formadores do Direito, muitos com pós-graduação em
nível de mestrado e doutorado. Foi esse congregar de esforços o responsável
pelas pesquisas e desenvolvimento de sua produção intelectual.

A REVISTA DO IHGMT

O Instituto Histórico de Mato Grosso, ao ser instalado, aos 8 de abril de


1919, já tinha impresso o primeiro número de seu periódico que, graças à
ação cívica de seus colaboradores, se encontra ativo até os dias atuais. Na
concepção de D. Francisco de Aquino Corrêa:

Era inadiável, a publicação desta Revista. Urgia que essa ave da


imprensa alargasse por aqui o ninho luminoso em que se refugiam e
salvam para o futuro as glórias do passado. Não há Pátria sem tradições.
Cultiva-las é mais do que guarnecer e ouriçar, de baionetas faiscantes,
a orla bruta das fronteiras. Ai! do povo para quem as tradições do

46
seu passado se tornaram hieroglifas e mudas, como esse letreiro do
Guaíba, misteriosa Itacoatiara da nossa terra, que as águas cobrem e
descobrem na solidão imensa da lagoa. Seja essa Revista um sacrário,
em que vivam e nos falem as tradições gloriosas do nosso povo”.
(RIHMT, Cuiabá, ano 1, n. 1, p. 1-3, 1919).

Ao longo dos seus 100 anos de existência, o IHGMT, graças à contribui-


ção dos associados e colaboradores, se esforçou por dar continuidade ao pe-
riódico que, hoje, perfaz número 80, cumprindo o seu papel primacial, qual
seja, o de ser o repositório de parte da produção intelectual da Instituição,
sempre perseguindo a meta primacial, a de tornar mais conhecida, investiga-
da e ampliada a história, a geografia, a etnologia e etnografia de Mato Grosso,
ao lado dos trabalhos de reconstituição da memória e da cultura regional.
A partir do ano de 2010, a Revista do IHGMT passou a incluir Dossiês
temáticos norteadores de um eixo comum, visando concentrar a produção
intelectual em torno de temáticas específicas. Com isso, os artigos ganharam
maior profundidade e organicidade, visto o avanço substantivo da produção
intelectual de seus colaboradores.

47
REVISTA N. 81 – COMEMORATIVA AOS 300 ANOS DE CUIABÁ

De outro, os Dossiês passaram a incorporar, além da produção regio-


nal, também os avanços de pesquisa a cargo de investigadores nacionais,
ligados às mais diversas instituições de ensino e pesquisa, o que lhe con-
feriu um caráter nacional. Entre 2010 e 2019, os Dossiês versaram sobre
Pantanal (2010), Patrimônio (2011/12), Identidades (2013), Cartografias
(2014), Construções sobre o Brasil/Mato Grosso (2015), Sesquicentenário
do nascimento de Cândido Mariano da Silva Rondon (2016), 130 anos
de nascimento de Virgílio Alves Corrêa Filho (2017), Três décadas da
Constituição de 1988 e os 70 anos dos Direitos Humanos (1918) e, futu-
ramente, IHGMT 100 anos (2019).
Com o número 50, datado de 2001, a Revista incorporou o ISSN, nú-
mero internacional fornecido pelo IBICT, assim como, a partir de 2010,
foi a mesma submetida à avaliação da CAPES, Todo esse esforço objetivou
inserir o periódico no conjunto da produção nacional, conferindo-lhe o
cunho de cientificidade e atraindo autores de todo Brasil, os quais tinham
pontuados e qualificados seus artigos. Considerando o caráter institucional
da produção, essa classificação tornou mais conhecido e divulgado o perió-
dico. Ao lado do Dossiê anual, o IHGMT faz editar números comemorativos
aos Centenários de seus associados, ou a datas específicas do calendário
regional.

48
AS PUBLICAÇÕES AVULSAS

Objetivando tornar públicos documentos históricos raros e referentes


a Mato Grosso, assim como divulgar pesquisas inéditas contemporâneas
que possam subsidiar novas pesquisas, o IHGMT criou, em 1997, essa
série que, ao lado da Revista, constitui um único núcleo de divulgação.
Trata-se de documentos históricos e publicações referentes aos períodos
colonial, imperial e republicano, sob a coordenação do sócio efetivo Pau-
lo Pitaluga Costa e Silva. Seu conjunto perfez, até 2017, 81 publicações,
sendo 27 relativas ao período colonial, 22 do período imperial, 26 do
período republicano e 2 relativos a catálogo de documentos do Arquivo
da Casa Barão de Melgaço, porém, para o centenário, o IHGMT pretende
chegar ao número de 100.

49
AÇÕES NO CAMPO DA PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA

Diversos foram os projetos elaborados contemporaneamente para garan-


tir a continuidade dos trabalhos de preservação do acervo documental e bi-
bliográfico.

Acondicionamento dos jornais Acondicionamento da documentação


privada e institucional

50
Acondicionamento do Expositoras de documentos vistas
acervo fotográfico pelos visitantes

Fonte: Acervo fotográfico da Casa Barão de Melgaço

Em 2010/2011, o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso pleiteou e


conseguiu se transformar em Ponto de Cultura, através de um convênio com o
MinC e IPHAN, o que possibilitou à Instituição desenvolver projetos relevantes
no que concerne à dinamização do Arquivo da Casa Barão de Melgaço, que
teve seu acervo organizado, catalogado e parte dele digitalizado. No bojo desse
projeto, repasses financeiros anuais injetaram novo ânimo à Instituição, que
pode contratar bolsistas, devidamente treinados para a organização dos acer-
vos, assim como adquiriu equipamentos de informática capazes de subsidiar
os trabalhos institucionais. Nessa medida, toda documentação concernente ao
IHGMT e à AML foram digitalizados, compreendendo as atas das sessões or-
dinárias e extraordinárias, correspondências, diplomas, processo de admissão,
currículos, produção intelectual e recortes de jornais e panfletos e convites.
Outro importante acervo, pertencente à Cúria Metropolitana de Cuiabá – Ins-
tituto de Pesquisas D. Aquino Corrêa – IPDAC, foi devidamente catalogado e
digitalizado. Trata-se de importantes documentos históricos produzidos pela
Igreja Católica ao longo dos períodos colonial, imperial e republicano, hoje dis-
ponibilizado aos consulentes através dos sites ihgmt.org.br/casabarao.com.br.
Preparação e higienização dos Máquina e computador para Scaner para digitalização
documentos para digitalização digitalização de documentos A3

Fonte: Acervo fotográfico do Arquivo da Casa Barão de Melgaço

51
OS ACERVOS PRIVADOS

O Arquivo da Casa Barão de Melgaço constitui um dos poucos, se-


não o único, a acumular acervos privados. De outro lado, o estímulo do
Ponto de Cultura proporcionou a incorporação de papéis, livros e objetos
pertencentes aos associados falecidos, a exemplo do acervo da Família
Mendonça – Estevão e Rubens de Mendonça –, da Família Rodrigues
– Firmo José e Maria Benedita Deschamps (Dunga Rodrigues) –, o pre-
ciosíssimo conjunto documental que pertenceu a Ramiro Noronha – in-
cumbido por Rondon nos trabalhos de abertura dos Postos Indígenas,
pelo SPI –, dos papéis que pertenceram aos sócios Corsíndio Monteiro
da Silva, jurisconsulto, João Alberto Novis Gomes Monteiro, médico,
Ubaldo Monteiro da Silva, militar de carreira, político e fundados da Es-
cola de Cadetes, Clóvis Pitaluga de Moura, também médico, Newton
Alfredo Aguiar, poeta e literato, Luis-Philippe Pereira Leite, historiador
e cartorário, e Amidicis Diogo Tocantins, cronista e poeta, além de uma
coleção de correspondências trocadas entre Filinto e Gastão Müller, na
década de 1960.

Profa. Therezinha de Jesus Arruda no momento da doação e inauguração do acervo, 2017

Fonte: Casa Barão de Melgaço

52
Recentemente, o Arquivo da Casa Barão de Melgaço incorporou mais
dois acervos preciosos, a Biblioteca da Profa. Therezinha de Jesus Arruda,
em fase final de catalogação. Trata-se de coleção bibliográfica muito especial,
uma vez que retrata as leituras e predileções da titular ao longo de sua vida
de estudiosa. A Biblioteca está dividida em quatro grandes áreas: História de
Mato Grosso, História do Brasil, História da América e História Geral. Cada
um deles contendo mais de 400 títulos.
Outro acervo incorporado foi aquele que pertenceu ao jornalista Rai-
mundo Maranhão Ayres, sócio efetivo da Academia Mato-Grossense de
Letras e correspondente do IHGMT. Quanto a esse último acervo, a Família,
através de seus filhos Aimée Maranhão Ayres Ferreira e Humberto Maranhão
Ayres, os quais, de forma espontânea, escolheram a Casa Barão para guar-
da, organização, preservação e divulgação do acervo que pertenceu ao seu
progenitor. Um filão especial desse acervo está sendo digitalizado, qual seja,
o jornal Novo Mundo, periódico editado na cidade mato-grossense de Gui-
ratinga, que circulou entre 1945 e 1953, o qual congraçava, através da litera-
tura e da cultura, muitos países da América Latina, da Europa e até da Ásia.
Repositório de extensa produção, o Novo Mundo se prestará para o avanço
das pesquisas sobre Mato Grosso, podendo gerar novos trabalhos científicos.
No conjunto do acervo está inserto um outro periódico dirigido por Rai-
mundo Maranhão Aires, Correio do Oeste, jornal que circulou entre 1945 e
1947, repositório de comentários políticos, especialmente relativos ao Estado
Novo e a política nacional e regional. O jornal noticiava muitos eventos do
Leste de Mato Grosso, com especialidade para Guiratinga.
Capa do Jornal novo Mundo
Raimundo Maranhão Ayres
(março 1949)

Fonte: Acervo Família Maranhão Ayres Fonte: http://www.overmundo.com.br/


overblog/admiravel-novo-mundo

53
Diversas tipologias documentais estão distribuídas no interior desses
acervos: documentos manuscritos, impressos, fotográficos e até mobiliário e
objetos, o que lhes imprime uma característica especialíssima, visto de tratar
de coleções privadas, raras em Mato Grosso. Para seu arranjo, a orientação
metodológica teve o timbre da Universidade de São Paulo e do Arquivo Pú-
blico de São Paulo, que ofereceu cursos específicos para arranjo de docu-
mentos dessa natureza.

Acervo Família Mendonça (Rubens e Estevão de Mendonça)


Adélia Maria Mendonça de Deus, Exposição dos documentos da Família e
compulsando o acervo do pai e do avô fotos de seus titulares

Fonte: Acervo Arquivo da Casa Barão de Melgaço

Acervo Família Rodrigues


- Titulares do acervo

Firmo José Rodrigues Dunga Rodrigues

Fonte: Acervo Arquivo da Casa Barão de Fonte: Acervo Arquivo da Casa Barão de
Melgaço Melgaço

54
- Móveis e Objetos da Família Rodrigues

55
- Fotografias da Família Rodrigues
A Família Benedicta Rodrigues (centro), Maria Rita Deschamps Rodrigues (dir.) e
Firmo Rodrigues (esq.). Atrás os 6 filhos. Dunda é a terceira da esquerda para a direita

Prof. Leowegildo Martins de Mello


e amigas no coreto do Porto. Igreja matriz de Cuiabá, década de 1950
Década de 1920

Fonte: Acervo Arquivo da Casa


Fonte: Acervo Arquivo da Casa Barão de Melgaço
Barão de Melgaço

56
Liceu Cuiabano em 1942 Ponte ligando Cuiabá a Várzea Grande-MT

Fonte: Acervo Arquivo da Casa Barão de Fonte: Acervo Arquivo da Casa Barão
Melgaço de Melgaço

Destaque especial, nos acervos privados é o conjunto fotográfico, hoje


raro e precioso.

Alunas e Profas. da Escola Alunas, profs. e Diretor da Escola


Modelo de Cuiabá Normal de Cuiabá

Fonte: Acervo fotográfico do Arquivo da Casa Barão de Melgaço

Acervo e Medalhas de Luis-Philippe Pereira Leite

Fonte: Acervo Arquivo da Casa Fonte: Acervo Arquivo da Casa Barão de


Barão de Melgaço Melgaço

57
Acervo Ramiro Noronha

Armário onde está acondicionada a documentação de Ramiro Noronha.


Arquivo da Casa Barão de Melgaço

Fonte: Acervo Arquivo da Casa Barão de Melgaço

Obras Digitalizadas

Fonte: Acervo Arquivo da Casa Barão de Melgaço

Esse trabalho de arranjo e digitalização dos acervos esteve a cargo da


Curadoria do Arquivo da Casa Barão, ocupado pela historiadora Elizabeth
Madureira Siqueira, membro do IHGMT e da AML. Foi a mesma escolhida por
ser uma historiadora capacitada na área documental.
58
A Biblioteca e a Hemeroteca da Casa Barão de Melgaço foram to-
talmente catalogadas, podendo o consulente deles se apropriar selecio-
nando os títulos de maior interesse, devendo ir à Instituição para obter
acesso físico aos livros, revistas, boletins e jornais. Hoje, o raro conjunto
documental, composto de livros e periódicos se encontra organizado, ca-
talogado, podendo o pesquisador acessar seus catálogos, através do site
www//ihgmt.com.br. Até o momento, a Biblioteca conta com, aproxima-
damente, 10 mil exemplares, e seu acervo foi constituído por doações e
compras. A Hemeroteca incorpora 138 títulos que remontam à produção
jornalística do Mato Grosso uno, desde 1871, a exemplo de A Situação,
editado em Cuiabá, até a segunda metade do século XIX, incorporando
periódicos, avulsos e seriados, editados em diversas cidades dos atuais
Mato Grosso do Sul (Campo Grande, Corumbá, Três Lagoas, Dourados),
sendo que, do atual Mato Grosso, a maioria foi impressa na Capital, Cuia-
bá, mas também de Cáceres e outras cidades, além de alguns exemplares
avulsos publicados no Rio de Janeiro. A maioria dos jornais tem caráter
político e serviu de meio para veiculação dos ideários partidários. Neles,
estão estampados artigos escritos por intelectuais vinculados ao Instituto
Histórico e ao antigo Centro, atual Academia Mato-Grossense de Letras,
assim como incorporam a produção independente de jornalistas, cronistas
e políticos regionais. Esses periódicos estão no aguardo da sua digitaliza-
ção, para serem disponibilizados aos pesquisadores.
Ao lado do Ponto de Cultura, a curadoria da Casa Barão de Melgaço plei-
teou, junto ao Projeto Norte, CNPq, verba para compra de estantes e armários
de aço para acomodação da documentação e da biblioteca e hemeroteca.

Estantes de 3m para acondicionamento dos


Sala de consulta ao acervo da Biblioteca
livros da biblioteca

Fonte: Acervo fotográfico do Arquivo da Casa Barão de Melgaço

59
O SITE DO IHGMT – IHGMT.COM.BR

O IHMT inaugurou seu site ainda em 2018, uma vez que sua elaboração
está a demandar muito trabalho. De lá até o ano de 2019, o consulenjte pode-
rá obter as informações básicas sobre a instituição, associados, publicações e
catálogos alusivos aos inúmeros acervos.

SIMBOLIZANDO E ETERNIZANDO A INSTITUIÇÃO NO SEU CENTENÁRIO

Durante 100 anos, o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, cria-


do em 1919, tomou para si a incumbência de preservar e divulgar a memória
de Mato Grosso. Ao longo desse período, não só cumpriu esse desiderato,
visto a vasta produção intelectual de seus associados estampada na sua Re-
vista, que hoje se encontra no número 80, ou nas Publicações Avulsas, que
perfazem 81. De outro, o conjunto dos sócios foi responsável por expressiva
produção, impressa em periódicos regionais e nacionais, assim como em edi-
ções patrocinadas pelos próprios autores.

60
Nessa medida, o IHGMT deve ser tratado à altura de sua dignidade e do
seu relevante papel na construção originária da História de Mato Grosso, e
sua produção tida enquanto distintiva de diversas épocas, uma vez que, nos
seus primórdios, a maioria dos sócios era composta por engenheiros, advo-
gados e professores, sendo que com sua evolução, principalmente a partir
da década de 2000, a instituição incorporou diversos pesquisadores ligados a
instituições de ensino superior mas áreas das Ciências Humanas e Sociais, o
que determinou sua inovadora produção contemporânea.
Para comemorar condignamente o seu Centenário, o IHGMT elaborou
um estudo para constituição da Medalha Centenária em primeiro plano,
tendo no verso a medalha dos 300 anos de fundação de Cuiabá. Comemora-
ção conjunta, o IHGMT e a Prefeitura Municipal de Cuiabá se irmanarão no
ano de 1919, sendo o centenário e o tricentenário de convivência harmonio-
sa e complementar. A concepção da Medalha (frente e verso) contou com
estudos realizados por uma Comissão, formada pelo arquiteto José Afonso
Botura Portocarrero, de Maria Teresa Carrión Carracedo, de Mike Vanni e de
Elizabeth Madureira Siqueira, os quais fizeram um estudo minucioso sobre as
diversas simbologias, tanto do IHGMT quando de Cuiabá, cabendo ao IHG-
MT a explicação da simbologia heráldica.

ETERNIZANDO CUIABÁ: MEDALHA E BRASÃO

O Brasão Oficial de Cuiabá foi criado em Lisboa, no ano de 1726/7, quan-


do o Arraial do Cuiabá, que à época integrava a capitania de São Paulo, foi
elevado à categoria de Vila, sob a denominação de Vila Real do Senhor Bom
Jesus do Cuiabá. De acordo com as orientações da Coroa Portuguesa, seria o
mesmo representado por um escudo dentro de um campo verde e nele um
morro ou monte todo salpicado com folhetos e gravetos de ouro. Em cima do
escudo, uma fênix.
O campo verde, bastante alongado, representava a fertilidade do solo, as-
sim como remetia à distância que a Vila se colocava com relação ao litoral. O
morrete de ouro significava a vocação primeira da região, a mineração aurífera.
Já a fênix, símbolo da infinitude, consagrava os propósitos da Coroa por-
tuguesa em efetivar, para sempre, sua presença nessa então máxima fronteira
oeste colonial, uma vez que, à época, ainda se encontrava em vigor o Tratado
de Tordesilhas, que tinha por base demarcatória uma linha imaginária.
A criação da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá coube ao capitão-
-general da capitania de São Paulo, Rodrigo César de Menezes que, no ano
de 1726, saiu da Vila de São Paulo de Piratininga em direitura a Cuiabá, numa
viagem que durou quatro meses, tendo como roteiro o caminho das mon-

61
ções. Aportou no arraial de Cuiabá em novembro de 1726. Como essas minas
abrigariam a sede do governo de São Paulo, Rodrigo César resolveu criar
a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, evento ocorrido no dia 1º de
janeiro de 1727. Para ali foram transferidos diversos cargos administrativos,
nomeados ouvidor, juízes ordinários, criado e instalado o Senado da Câmara
de Cuiabá, com a nomeação de seus vereadores, assim como erguido o pe-
lourinho, símbolo do poder metropolitano na região.
Esse brasão foi utilizado desde aquele período sem qualquer regulamen-
tação posterior, o que só veio a ocorrer em 13 de setembro de 1961, por
força da Lei Municipal n. 592, assinada pelo Prefeito Municipal de Cuiabá
Aecim Tocantins, declarando que “[...] sejam as Armas, de que usasse, um
escudo dentro com campo verde e nele um morro ou monte todo salpicado
com folhetos e granetos de ouro e, por timbre, em cima do escudo, uma fê-
nix”, ave mitológica nascida do fogo e que ressurge de suas próprias cinzas,
representando a imortalidade”.
O brasão de Cuiabá é um dos 19 mais antigos do Brasil (Almanaque
Cuyabá, n. 39)

O SÍMBOLO DO IHGMT

O Símbolo do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso foi inspi-


rado no dístico criado pelo seu primeiro presidente, D. Francisco de Aquino
Corrêa: Pro Patria Cognita Atque Immortali, que traduzido significa Pela
Pátria Conhecida e Imortal. Essa criação data do dia 8 de abril de 1919,
quando D. Aquino proferiu o discurso de instalação do então denominado
Instituto Histórico. O acréscimo do Geográfico ocorreu anos mais tarde.
Três anos mais tarde, o sócio fundador Antônio Fernandes de Souza, pro-
pôs, na sessão de 15 de janeiro de 1922, a alteração do nome original para
Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, sob a alegação de que a
amplitude dos trabalhos do instituto mato-grossense abrangia diversas áreas
de conhecimento, ali representadas pela palavra geográfico, uma vez que o
tempo e o espaço caminhavam sempre juntos e eram indissociáveis. Nessa
mesma reunião, a propositura foi objeto de discussão, porém não foi aprova-
da, uma vez que implicava na modificação do Estatuto original de 1919.
Essa propositura esmoreceu e só foi retomada aos 5 de setembro de
1974, através de um abaixo-assinado de Rubens de Mendonça e Ernesto Pe-
reira Borges, sob a alegação de que deveria acompanhar a nomenclatura do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e que desde há muito, o nosso
Instituto era referenciado como Histórico e Geográfico, o que foi aprovado
por unanimidade.

62
Para timbrar a papelaria e personificar os eventos e ações do IHGMT no
ano centenário, 2019, foi elaborada, pela mesma equipe, uma logomarca co-
lorida, estampando os 100 anos da instituição.

REFERÊNCIAS

ARQUIVO DA CASA BARÃO DE MELGAÇO. Acervos privados e institucionais.


Cuiabá, 2018. In: www//ihgmt.com.br. Acesso setembro 2018.
IHGMT. Revista 1919-1018. Cuiabá: IHGMT, diversas datas.
IHGMT. Jubileu dos 90 Anos do IHGMT (Jubileu de Álamo) - 1919-2009. Cuiabá:
IHGMT, 2009.

Sites:
www//ihgmt.com.br
www//aml.com.br

63
À LA CUIABANA: GRUPO MUSICAL SARÃ E SUAS
PUBLICAÇÕES SONORAS

Dorit Kolling53

INTRODUÇÃO

Desde que cheguei à Cuiabá, lá pelos idos de 1988, ouvi muitas histórias
sobre esta terra, sobre a cultura mato-grossense, seus artistas e suas obras.
Tive a oportunidade também de ter contato direto com algumas ações de
cultura que aqui se fazia e era mostrada. Conheci e dancei o siriri e o rasque-
ado, frequentei festas de santos, shows musicais diversos, exposições de artes
visuais, espetáculos de dança, entre outras atividades artístico-culturais.
Numa destas vivências e encontros, conheci a Vera e Zuleica, protagonis-
tas de um importante grupo musical cuiabano do período, o Grupo Musical
Sarã, o qual era referenciado por suas composições, canções que cantam,
desenham e pintam Cuiabá e Mato Grosso. Tive presente em alguns shows
do grupo, além de ter tido a oportunidade de dividir o palco com elas, além
de cantar e reger algumas de suas músicas.
Por todo este contato, estabeleci uma afinidade com a temática e a música
que Vera e Zuleica produziam, e passei a pesquisar um pouco mais sobre
elas. Tal pesquisa transformou-se em minha monografia de especialização -
“Tà Gira? - uma história de Sarã e Cuiabania”54 e minha dissertação de
mestrado em História - “Grupo Musical Sarã: a canção cuiabana como
documento histórico (1971 - 2001)”.
Vários foram os olhares frente à temática, assim como os caminhos per-
corridos, buscando sempre uma abordagem interdisciplinar que abarcasse,
conforme preconiza Napolitano (2005, p. 7), “[...] a música, sobretudo a cha-
mada ‘música popular’, ocupa no Brasil um lugar privilegiado na história
cultural, lugar de mediações, fusões, encontros de diversas etnias, classes e
regiões que formam o nosso grande mosaico nacional”.
O texto que apresento, assim, é fruto de um recorte de minha dissertação
de mestrado, onde abordei aspectos da trajetória musical do grupo acima
citado. Tal escolha deu-se por entender que o grupo possui uma obra com
produção musical significativa para Cuiabá e região. As balizas temporais
se concentraram, na pesquisa, em grande parte, entre o ano de início das
53 Dorit Kolling - Docente do Departamento de Artes da UFMT e Regente do Coral UFMT. Mestre
em História.
54 Expressão utilizada no vocabulário cuiabano, que significa Está Louca?

65
atividades do grupo - 1971 - e o ano de 2001, que marca o lançamento do
segundo CD produzido por Zuleica e Vera, e concentrarei-me aqui em narrar
aspectos acerca das publicações sonoras produzidas pelo grupo.
Para a construção da narrativa, busquei articular as fontes e materiais co-
lhidos ao longo da pesquisa, com uma questão que a história tem abordado
principalmente a partir do século XX, a qual diz respeito a uma abordagem
interdisciplinar entre História e Música, no sentido de abordar a canção popu-
lar enquanto documento histórico que articula o texto musical e texto verbal,
inseridos num contexto de criação, produção e performance.

SURGE O GRUPO MUSICAL SARÃ…

Antes, porém, de escrever especificamente sobre as publicações sonoras


do Grupo Musical Sarã, abordo alguns aspectos acerca do surgimento e obje-
tivos de trabalho do referido grupo.
O Grupo Musical Sarã coloca o início de suas atividades como sendo em
1971, quando Zuleica Arruda, uma de suas integrantes, começa a se interes-
sar, de forma mais profunda e consistente, pelo som e pelas raízes culturais
cuiabanas, num trabalho de observação e de pesquisa musical, partindo das
festas típicas da região e do canto indígena.
Segundo o Contrato de Sociedade Civil55, registrado em 1989, o Grupo
Musical Sarã:

[...] tem por objetivo social, desde 1971, pesquisar, catalogar e divulgar a
Cultura Matogrossense e seus diversos ritmos musicais, bem como sensibili-
zar o homem para o seu papel de herdeiro e criador dos aspectos culturais¸
visando despertá-lo para os reais valores espirituais de sua formação como
ser humano; estimular o propósito de preservação do ecossistema, especi-
ficamente do Pantanal Matogrossense e da Floresta Amazônica; e despertar
nos indivíduos a busca do seu auto-conhecimento. (1989, cláusula terceira).

O grupo, no início, tinha como objetivos principais, como o próprio con-


trato mostra, a pesquisa e a observação dos aspectos da cultura e música
mato-grossense. No entanto, aproximadamente por volta de 1976, seus in-
tegrantes sentem a necessidade de divulgar o trabalho e, assim, passaram a
realizar diversos shows e apresentações em Cuiabá, em cidades do interior do
estado de Mato Grosso e, conforme registro de Benedito Pinheiro de Campos
55 Contrato de Sociedade Civil onde as signatárias Zuleika Cunha de Arruda e Vera Regina
Magalhães Baggetti formalizam a sociedade sob a denominação social de Grupo Musical Sarã
S/C Ltda. O documento é datado de 20 de maio de 1989 e está registrado no Cartório do 2º
Ofício de Cuiabá-Mato Grosso.

66
(1999, p. 92-93) e depoimentos das próprias artistas, também em cidades de
outros estados.
Pessoa central do grupo, Zuleica, além de fundadora, era a pessoa que
tomava iniciativa dos trabalhos realizados. Após ingresso da Vera no grupo,
conforme citado, as mesmas iniciam uma parceria, visto a identificação mútua
com a proposta do trabalho musical. O Grupo Musical Sarã se consolidou, en-
tão, na referida dupla. As músicas, entretanto, por mais um tempo continuaram,
em sua maioria, sendo compostas por Zuleica, enquanto Vera passou a ser a
principal intérprete.
Em entrevista, tanto Zuleica quanto Vera afirmam que, apesar de sempre
tratarem o grupo como “Grupo Musical Sarã”, o mesmo veio a se consolidar
algum tempo depois. Cabe mencionar que não há registros e/ou menções
acerca de algum outro nome para o grupo.
A busca pelo nome deu-se no decorrer do trabalho, à medida que o gru-
po iniciava seu processo de divulgação. As artistas narram que não se lem-
bram, não têm registro acerca da data exata e tampouco do período no qual
foi dado o nome ao grupo. Entretanto, há menções em documentos no que
tange à escolha do nome: “[…] começamos a pesquisar. Viola de Cocho era
para ser o primeiro nome. Porém, Sandra Coelho do Vale56 sugeriu que fosse
Sarã57, que é uma árvore ribeirinha, que segura os barrancos dos rios” (AR-
RUDA, 1996, p. 21).
Segundo relato de Zuleica, foi essa ideia de transformação - madeira
virar viola - utilizando-se de um simbolismo, que se tornou o ponto chave
para a decisão definitiva da escolha do nome, inclusive vindo a ser tema de
duas das várias composições do grupo, Mutação e Sarã, cujas músicas en-
contram-se gravadas no primeiro LP do grupo, intitulado “Raízes Sarã”. As-
sim, a partir da década de 1980, o nome Grupo Musical Sarã ficou instituído.
Como citado, trata-se um grupo independente, liderado por Zuleica e
Vera e as mesmas constituem, desde então, os “elementos fixos” dele, convi-
dando, eventualmente, pessoas de diferentes linguagens artísticas, para fazer
parte de sua composição que, segundo as líderes, varia de acordo com a
época, o repertório, o local e os espetáculos.
Assinam, como narrado em depoimento e citado no livro “O que é ras-
queado cuiabano?” (ARRUDA, 2007, p. 44), “[...] a composição de mais de
300 músicas que expressam as suas vivências, através de uma leitura poética e
filosófica da cultura experimentada em seu cotidiano”.
56 Sandra Coelho do Vale - arquiteta capixaba, compositora, radicada em Cuiabá desde a década
de 1970, foi uma das integrantes do grupo.
57 Pouca referência escrita se tem acerca do Sarã, mas sabe-se que se trata de uma árvore
ribeirinha, típica de Mato Grosso, e que de sua madeira faz-se a viola de cocho.

67
Para todo artista, além das músicas que compõem, a produção de shows e
espetáculos é muito importante em sua carreira, como resultante do trabalho
realizado. Com o Grupo Musical Sarã, não foi diferente. Assim, realizaram de
inúmeros shows em sua carreira, atuaram em vários espetáculos, dividindo o
palco com outros artistas e participaram diversos festivais de música.

AS “PUBLICAÇÕES SONORAS” DO GRUPO MUSICAL SARÃ

Outra forma de divulgar sua obra foi a produção de publicações sonoras


ao longo da existência e atividade do grupo. Assim, o Grupo Musical Sarã
produziu e lançou um LP (Long Play), o “Raízes Sarã”, em 1983; uma fita
K-7 (cassete), intitulada “Pelas Ruas de Cuiabá”, em 1995, cujo material não
consegui ter acesso e maiores referências, a não ser quanto ao ano de sua gra-
vação e a informação de tratar-se de uma produção independente; e dois CDs
(Compact Disc), o “Só Rasqueado Cuiabano…”, em 1997, e o “Em Cantos
de Mulher”, lançado em 2001; além do CD que é encarte do livro “O que é
Rasqueado Cuiabano?”, de autoria de Zuleica Arruda, publicado em 2007,
que reúne seis rasqueados gravados anteriormente. Quanto a esta última pu-
blicação, considero importante frisar que, como não há uma descrição espe-
cificando detalhes da ficha técnica, bem como dos músicos que participaram
da confecção deste CD, penso que foram utilizadas matrizes das gravações
“oficiais” do LP “Raízes Sarã” e do CD “Só Rasqueado Cuiabano…”.
Para melhor compreensão destes trabalhos, descrevo, a seguir, alguns
dados acerca de cada “publicação sonora”, como as músicas, a ficha técnica,
além de tecer alguns apontamentos sobre cada uma delas.
Ao final, teço ainda alguns comentários gerais acerca das temáticas das
canções gravadas, o que possibilita entendermos melhor a produção e con-
textualização das mesmas na cena musical cuiabana do período abarcado por
esta pesquisa.

SURGE O LP “RAÍZES SARÔ

Essa gente do Raízes Sarã, desde 1971, num processo de resgate das raízes
populares mato-grossenses, integrado-as à universalidade, geme a moeda,
em uníssona melodia com o cantar do galo ao som do pilão e do monjolo
na grosa do guaraná, no chuá da cachoeira, sola a climática sariema…
Psssilêncio! Adormece a mãe do morro, assobia o vento no Mato Grosso,
e ao longe o soar dos chocalhos, as flautas de jacuí e à luz da lua, leva
sua magia para o Reino de Tataí.

68
São Beneditos das escuras! Clareia os mistérios da cuia que saravá no
batuque o molejo da bateia. Bate bateia! No tronco do Sarã, que faz a
viola, que canta a toada, que enfeita os barrancos dos rios, lá vai a canoa
no Rio Paraguai. Borbulha no dedilhar da harpa o lamento profundo do
povo cantador, que dança, geme e sussurra. Essa gente, tá gira?58

Apesar de existir um movimento musical de grande intensidade em Mato


Grosso, quase nenhuma produção musical da época encontra-se registrada,
quer em forma de fita K759, quer em forma de LP. Não havia ali estúdios de
gravação, o que dificultava a produção local de artefatos resultantes “[...] de
um tratamento técnico, lastreado por uma tecnologia de registro e suporte
sonoro historicamente determinada”, para utilizar o linguajar proposto por
Napolitano (2005, p. 101), ao abordar as instâncias de análise contextual.
Apesar dessa dificuldade, e com aproximadamente doze anos de ativida-
des, aliado à necessidade de documentar parte de sua obra musical, o Gru-
po Musical Sarã resolve gravar um disco, impulsionado também pelo amigo
Cícero Cavalcanti, que se tornou, inclusive, o coordenador de produção da
nova proposta. O grupo, conforme relato, selecionou músicas que retratam a
região, buscando diferentes ritmos e sonoridades. (BAGGETTI, Vera. Depoi-
mento. Cuiabá, 17 de março de 2015.)
“Raízes Sarã” foi o nome dado ao disco gravado em Goiânia, durante
todo mês de agosto de 1983. Na época, o grupo teve a opção de gravar no
Rio de Janeiro, com melhores equipamentos e custo total de produção infe-
rior ao de Goiânia. Entretanto, conforme entrevista com as autoras, o LP foi
gravado em uma mesa de som de quatro canais, em função da opção pelo
selo “Araguaia Gravadora Independente”, cuja proposta de trabalho se iden-
tificou melhor com as compositoras, além do nome se relacionar à “natureza
da região Centro-Oeste”.
Na mesma intenção de “integração do Centro-Oeste”, segundo relato,
o grupo gravou tendo a participação de músicos de Mato Grosso e Goi-
ás. Os músicos de Goiás foram sugeridos por Cícero Cavalcanti, que se
utilizou do critério de qualidade técnico-musical para sua escolha, sendo
referendados por Zuleica e Vera. Os músicos de Mato Grosso, que na épo-
ca integravam o Grupo Musical Sarã, como convidados, participaram da
gravação do disco, inclusive com algumas canções próprias, na tentativa
de fomentar o movimento mato-grossense, oportunizando a projeção de
outros compositores.

58 Texto constante na capa do LP “Raízes Sarã”, de autoria de Ciro, Zuleica, Vera, Luis Carlos,
Tote e Teodoro.
59 Fita K7 - Abreviatura de fita cassete, é um padrão de fita magnética para gravação de áudio.

69
Os arranjos foram feitos em conjunto. Arruda e Baggetti “idealizaram” o
arranjo e os músicos instrumentistas, numa espécie de laboratório, explora-
ram efeitos sonoros-instrumentos, harmonias, ritmos, timbres, até chegarem
ao resultado desejado pelas compositoras.
“Raízes Sarã” é uma produção independente, com tiragem de 999 (nove-
centos e noventa e nove) cópias60. O LP foi lançado no dia 20 de dezembro de
1983, em solenidade ocorrida no saguão da TV Centro América, em Cuiabá.
Sua circulação (comercialização) se deu informalmente, pois, segundo
Vera, as lojas não aceitavam vender discos de produção independente, na
época. Porém, por terem seu trabalho reconhecido, diversas pessoas ligadas
e/ou interessadas na área artístico-cultural, procuraram-nas para adquirir o
disco. Por ocasião da ida das compositoras ao Rio de Janeiro, as mesmas
foram à FUNARTE (Fundação Nacional de Arte) para divulgar o trabalho e
principalmente o disco. Um dos resultados dessa visita foi a aquisição de 250
(duzentos e cinquenta) exemplares, por parte da FUNARTE.
Numa produção de Zuleica Arruda, Vera Baggetti, conforme consta no
citado LP, a ficha técnica conta ainda com Cícero Cavalcanti na coordenação
de produção; Álvaro Martins como técnico de gravação e as duas pessoas an-
teriormente citadas, na mixagem. A capa ficou a cargo de Vera Baggetti, com
desenho feito por Cacá e Júnior. “Raízes Sarã” contou ainda com Pio Toledo
e Amauri Lobo, dois autores cuiabanos especialmente convidados.
No encarte do LP, há alguns textos escritos, de autoria de Zuleica Arru-
da, Marilza Ribeiro, Ciro Gomes de Freitas, Vera Baggetti, Luis Carlos Ribeiro,
Tote e Teodoro Irigaray. Conta ainda, no encarte, com a tradução das letras
e texto para o esperanto, feitas pelo Dr. Carlos Lima Mello e por Ciro Gomes
de Freitas. Os músicos participantes da gravação do LP são: Vera Baggetti, no
vocal, chocalho e palmas; Zuleica Arruda, no vocal e palmas; Napa, no teclado,
efeitos, piano e acordeão; Bororó, no baixo e violão; Cabeção, na percussão e
vocal; Washington, na percussão e bateria; Pio Toledo, no vocal; Ricardo Leão,
no piano e teclado; Fátima, nos efeitos de risadas; e Amauri Lobo, também no
vocal.
Apresentam-se sendo citadas, no LP, pessoas com nomes completos, ou-
tras apenas com o primeiro nome e outras, acredito, apenas identificadas
pelo seu apelido ou “nome artístico”, principalmente quando são citados os
músicos participantes da gravação. Dentre eles, temos Ricardo Leão, Bororó,
Washington e Napa que são músicos de Goiânia; e Pio Toledo, Amauri Lobo
e Cabeção que são músicos de Cuiabá.

60 Cf. Nota Fiscal no 006, serie C-1, da Discos Araguaia Ltda, datado de 23 de novembro de 1983,
financiado por Arruda e Baggetti.

70
As músicas e respectivos compositores que compõem o LP “Raízes Sarã”
estão organizadas da seguinte forma:

LADO A:
Moreninha Cuiabana - Zuleica Arruda
Liberto Estoy - Zuleica Arruda, Vera Baggetti e Luis Carlos Ribeiro
Setenta X Sete Vezes - Zuleica Arruda
Índia Poty - Zuleica Arruda
À La Cuiabana - Zuleica Arruda
Prece ao Luar - Zuleica Arruda
LADO B:
Joio e o Trigo - Zuleica Arruda, Vera Baggetti
Aroma Guardado - Zuleica Arruda, Vera Baggetti
Tropecio - Pio Toledo, Amauri Lobo e Antônio Carlos Lima
Cabelhos Molhados - Zuleica Arruda, Vera Baggetti
Balanço de Rede - Pio Toledo e Marilza Ribeiro

Coincidência ou não, percebe-se que todas as músicas constantes no lado


A do disco são de autoria de Zuleica Arruda - organizadora e líder do Grupo
Musical Sarã, sendo apenas uma delas - Liberto Estoy - composta em parceria
com Vera Baggetti e Luís Carlos Ribeiro (trio que por muito tempo fez parte
da formação básica do grupo) e que, por sua vez, é a única escrita em Língua
Espanhola.
No lado B, das cinco músicas gravadas, três são de Zuleica e Vera e outras
duas composições de músicos e letristas de Mato Grosso, numa demonstra-
ção de desprendimento e confiança no trabalho artístico de seus colegas,
segundo Zuleica Arruda.
Tamanha é a criatividade e a arte, encontrada tanto na capa quanto na
contracapa, assim como no encarte, uma análise e descrição da mesma seria
de grande valia. No entanto, deixo registrado, sem adentrar em muitos deta-
lhes. Aparecem na capa do disco alguns desenhos, como um ramo, um galho
de Sarã, o contorno do mapa da América do Sul e um pequeno pedaço da
América Central. Nos escritos, temos a palavra Sarã, as músicas e respectivos
autores, utilizando-se, no meu entender, de fontes gráficas que buscam re-
presentar a sombra, as ranhuras e o contorno das folhas.
Há ainda duas citações escritas por pessoas envolvidas de alguma forma
com o “Grupo Musical Sarã” e/ou, mais especificamente, com o LP “Raízes
Sarã”. Essas citações falam da linguagem cultural dos povos da América do Sul

71
e América Latina, da natureza e necessidade de preservação, do simbolismo e
misticismo. Falam também do “processo de resgate das raízes populares mato-
-grossense, integrando-as à universalidade”. Uma dessas citações diz que:

Linguagem cultural - origem e mistério onde se transborda o riso, a dor


e o canto de um povo - gestos que riscam na carne no acontecer a
própria história. Ecos da presença sul-americana por entre os traços e
sabor da canção. Heróis e sonhadores. Incas. Maias. Astecas. Kadiweus.
Kamaiurás, Tupi-Guaranis. Caboclos. Negros. Brancos. Mestiços. Elas,
nós… Onde nos tempos das ameaças, a resistência do sentir e do fazer.
Cavalgada sonora transpondo os séculos na hora das estrelas.

Nesse caminhar, andarilhos das rotas incertas, enquanto o olhar descobre,


chora e ri. Sobre as noites e os dias desta América Latina, as mãos
machucadas recolhem os frutos da vida e da paixão - e, no instante mágico
da criação, torna-os sons, grito, música.

É bem aí onde as mãos se tocam, os olhares se entendem, os corpos


se incendeiam as ideias se iluminam e a nossa gente escreve a própria
história. (MARILZA RIBEIRO, 1993).

Na citação, Marilza Ribeiro, escritora e poeta cuiabana, nascida em 1934,


deixa transparecer, conforme afirma Célia Maria Domingues da Rocha Reis
em sua tese de doutorado, todo seu desejo de “[...] transcrever as histórias que
conhecia”, e que, por meio da palavra escrita, “poderia registrar as emoções,
ocorrências e sofrimentos cotidianos” (2001, p. 190-208).

“SÓ RASQUEADO CUIABANO…” - O PRIMEIRO CD

Há trinta anos, eu já tinha consciência da minha ligação espiritual com


Mato Grosso. Foi quando, em meados da década de 80, conheci Vera
e Zuleica, recém chegadas da Áustria/Viena, (onde moraram por dois
anos), que me informaram sobre a história de TEREZA DE BENGUELA -
Vila Bela da Santíssima Trindade.
No carnaval 94, levei para a Avenida Marques de Sapucaí o enredo
“TEREZA DE BENGUELA, UMA RAINHA NEGRA NO PANTANAL”. E,
é claro, para me auxiliarem nas pesquisas histórico-culturais, convidei
Vera e Zuleica, que passaram a fazer parte da equipe de produção, no
barracão da Viradouro.
Foi através de suas informações que tomei conhecimento das riquezas
culturais desse lugar: o cururu, o siriri, a dança do congo, o licor de

72
pequi, suas histórias, seus “causos”, mitos e lendas. Fiquei sabendo
sobre a importância, no contexto sócio-cultural mato-grossense, da
tão querida VIOLA-DE-COCHO - símbolo carregado de tanta energia
milenar - hoje com a cara de Mato Grosso. E o que me deixou mais
inebriado foi a cadência do ritmo musical RASQUEADO CUIABANO.
Vera e Zuleica são experts no assunto.
Nas asas do rasqueado cuiabano, Zuleica e Vera viajam, se apresentando
em vários lugares do Brasil, da Europa e da América Latina (recentemente
estiveram se apresentando em Cuba).
Quando elas me falaram que estavam gravando um CD com rasqueados
cuiabanos, eu percebi que, neste momento, o Estado de Mato Grosso e
o Brasil estavam sendo presenteados com um fino e burilado material.
A musicalidade de Vera e Zuleica flui como a correnteza dos rios e
córregos cristalinos do PANTANAL e da CHAPADA DOS GUIMARÃES.
Vão em frente. Vocês já são um sucesso! (JOÃOSINHO TRINTA -
carnavalesco - Setembro/97).

Em 1997, o Grupo Musical Sarã lançou seu primeiro CD com título “Só
Rasqueado Cuiabano…” A citação acima, de autoria de Joãosinho Trinta,
parceiro de trabalho de Zuleica e Vera, como citado, consta no encarte deste
CD. Nesse depoimento, Joãosinho tece sua opinião acerca destas artistas e
do trabalho desenvolvido por elas. Coloca Zuleica e Vera no cenário cultural
de Cuiabá da década de 1980, não somente como artistas e musicistas, mas
também como pesquisadoras da cultura mato-grossense.
Diferentemente do LP “Raízes Sarã”, o CD “Só Rasqueado Cuiabano…”
foi gravado em Cuiabá, no estúdio Terra Produções, com a participação de
músicos locais e arranjos de Zuleica, Vera e do músico Roberto Lucialdo.
Produzido e lançado em 1997, o CD contou com o apoio da Prefeitu-
ra Municipal de Cuiabá, por meio da então Secretaria Municipal de Cultura,
tendo uma tiragem de 2.000 (duas mil) cópias e, conforme relato de Vera
e Zuleica, foi lançado em várias escolas e espaços culturais da cidade, sem
especificar os nomes.
Sua circulação e comercialização se deram também, conforme as artistas,
a partir da visão comercial das mesmas, “não tão capitalista”. Diz Vera:
Optamos pelo mercado alternativo. Deixamos nas casas de cultura
do Estado, tipo “Casa do Artesão”, pontos turísticos, rede de hotéis e
sempre deixamos uma porcentagem para os devidos comerciantes.
(BAGGETTI, Vera. Depoimento. Cuiabá, 17 de março de 2015).

73
A produção do “Só Rasqueado Cuiabano….” é de Zuleica Arruda e Vera
Baggetti, conforme consta no CD, e a ficha técnica conta também com a Di-
reção Musical do compositor e músico Roberto Lucialdo, que divide a função
com Zuleica e Vera; com o técnico de som Alcemar Matos e Júlio Cesar como
auxiliar; com mixagem a cargo de Alcemar, Vera e Zuleica; e a masterização
por conta da NAE representações/SP. A criação da capa ficou a cargo de
Vera e Zuleica, que utilizaram fotos pertencentes ao arquivo particular das
compositoras/cantoras, e outras que foram feitas por Sandra Narezzi e Fanny
Tavares. A revisão de texto ficou a cargo, conforme consta no encarte do CD,
da professora Marluce Badre.
Os músicos participantes da gravação do CD são: voz - Vera e Zuleica;
trompete - Wesley Bigode; Baixo (contrabaixo) - Júlio Cesar; Bateria - Ney
Batera; Teclado - Dionísio; Violão - Roberto Lucialdo; Guitarra - Alcemar; Pal-
mas - Vera, Zuleica e Gislaine; Ganzá - Vera e Roberto Lucialdo; Bandoneon
- Marques Caraí. Assim como no LP, na ficha técnica deste CD também apa-
recem pessoas com nomes completos, outras apenas com o primeiro nome
e outras, acredito, apenas identificadas pelo seu apelido ou “nome artístico”,
principalmente quando são citados os músicos participantes da gravação. A
escolha dos músicos foi feita, segundo Vera, por meio da “[...] qualidade téc-
nica e do sentimento que eles nutriam pelo nosso rasqueado” (BAGGETTI,
Vera. Depoimento. Cuiabá, 17 de março de 2015).
Conforme relato, o “Só Rasqueado Cuiabano…” é fruto de pesquisas
feitas pelo grupo e, diferentemente do LP, que contou com composições de
gêneros e ritmos diversos, o CD foi destinado a divulgar composições de
rasqueados. Dos doze gravados, um é de domínio público, outro de autoria
de Zuleica Arruda, e um terceiro é uma parceria entre Zuleica, Vera e Guapo
(músico local). Os demais são composições de Zuleica e Vera.
Sempre focadas no pensamento que permeia o trabalho e posicionamen-
to político e cultural que possuem, agregado a uma grande dose de sensibi-
lidade, as artistas responderam à questão feita por mim acerca do como se
deu a escolha das canções gravadas, da seguinte forma: “Através do conceito
que conduziu nosso trabalho naquele momento! Valorizar e divulgar
a cultura mato-grossense e seu ritmo musical carregado de histórias e
emoções” (BAGGETTI, Vera. Depoimento. Cuiabá, 17 de março de 2015 e
ARRUDA, Zuleica. Depoimento. Cuiabá, 17 de março de 2015).
As músicas e respectivos compositores que compõem o CD “Só Rasque-
ado Cuiabano…” estão organizadas da seguinte forma:

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1. Moreninha Cuiabana - Zuleica Arruda
2. Menina, Vou te Contar! - Domínio Popular
3. É tão bom Sentir! - Zuleica Arruda e Vera Baggetti
4. Casa de Bembém (Chapa-e-Cruz) - Zuleica Arruda e Vera Baggetti
5. Pau Fincado - Vera Baggetti e Zuleica Arruda
6. A La Cuiabana (Oxi…) - (Réquiem à Natureza) - Zuleica Arruda
e Vera Baggetti
7. Coração-Cuiabano - Zuleica Arruda e Vera Baggetti
8. Aquarela Matogrossense - Zuleica Arruda, Vera Baggetti e Guapo
9. Domingas - Zuleica Arruda e Vera Baggetti
10. Pantanal Bem Temperado - Zuleica Arruda e Vera Baggetti
11. Pelas Ruas de Cuiabá - Zuleica Arruda e Vera Baggetti
12. Rasqueando “in Blues” - Zuleica Arruda e Vera Baggetti

Cabe citar que duas das músicas do CD fizeram parte do LP já mencio-


nado, quais sejam: Moreninha Cuiabana e À La Cuiabana. Esta segunda,
no entanto, apresenta versos que não estão presentes no LP “Raízes Sarã”
e o título também foi “modificado”. Conforme descrito no encarte do CD,
após o título, À La Cuiabana, é inclusa a palavra Oxi…, entre parênteses,
numa referência à palavra oxigênio, além de um segundo título, Réquiem à
Natureza.61
Diferentemente do LP, na capa deste CD, que nesse caso é também um
dos lados do encarte, encontramos as fotos dos rostos de Vera e Zuleica, em
posição paralela, sugerindo, de maneira metafórica, a parceria, a amizade, a
cumplicidade que há entre elas em todos os aspectos de suas vidas. O parale-
lo, por si só, representa a individualidade das retas, porém com a necessidade
de caminharem sempre juntas. Junto às fotos, apresentam-se os nomes das
cantoras, o do Grupo Musical Sarã, bem como o nome do referido CD, “Só
Rasqueado Cuiabano…”. Todos os escritos encontrados na capa estão na
cor vermelha, também. Ao fundo, encontramos referência a flores e folhas,
que apresentam uma textura de “ponto simples em um bordado em tela”, que
nos remete diretamente ao artesanato regional.

61 Requiém. A missa pelos mortos da igreja católica romana, cujo nome vem da palavra de seu
intróito, Requiem aeternam dona eis, Domine (“Dai-lhes repouso eterno, Senhor”) (GROVE,
1994, p. 777).

75
Já no verso, assim como na encontramos na maioria dos CDs, temos a
relação das músicas constantes no CD e respectivos autores, além das logo-
marcas dos apoiadores. Novamente ao fundo, assim como na capa, aparece
a flor e suas folhas.
Neste CD, dedicado às canções escritas a partir do rasqueado cuiabano, é
possível identificar, assim como no LP “Raízes Sarã”, diversos temas abarcados
e que resumem a proposta de trabalho de Zuleica e Vera.

“EM CANTOS DE MULHER” - O SEGUNDO CD

Vera e Zuleica são dois talentos unos, ligados não só pela ciência do gosto,
a Estética, uma vez que a primeira é formada em Arquitetura e a segunda e
Artes mas, principalmente, pelo amor à Música e a Mato Grosso.

Mato Grosso que Vera, carioca, escolheu como seu espaço, sponte sua,
para viver, amar, versejar e cantar com Zuleica, mato-grossense, de
“chapa e cruz”.

Uma dupla luminosa capaz de transmitir, através de voz, versos e ritmos,


o calor e a luz deste Estado; a corporalidade do Homem que aqui vive;
as mensagens e o sentido do que é dito pelo povo; a água que aqui flui
como flui a própria Música.

O movimento temporal da música, de Vera, Zuleica e seus instrumentistas,


nos permitem ver, ouvir, apalpar, cheirar e saborear os en-cantos de
Mato Grosso.

Que cantem… as vozes da terra. (HANG, Martha Johanna - Dra. em


Comunicação, Cuiabá, 2001)

“Em Cantos de Mulher” é o segundo CD do Grupo Musical Sarã, lançado


em 2001, que contou também com o apoio da Prefeitura Municipal de Cuia-
bá, por meio da Secretaria de Cultura. Numa produção de Zuleica Arruda e
Vera Baggetti, com arranjos e direção musical das artistas citadas e do violo-
nista Gilson Arruda, o CD foi gravado em Cuiabá, no 312 Stúdio/MT e contou
com onze canções autorais, todas de Zuleica e Vera.
Assim como na análise e descrição do CD anterior, apresento um texto,
que pode ser encontrado no encarte, de autoria de Martha Johanna Hang,
que faz menção ao trabalho de Zuleica e Vera. Penso que, apesar de não es-
tar escrito com versos de forma simétrica, pode ser considerada uma “Ode à
Vera e Zuleica”. Como “ode”, temos como significados ou definições:

76
[...] composição poética do gênero lírico que se divide em estrofes
simétricas. O termo tem origem no grego “odés” que significa “canto”.
Na Grécia Antiga, “ode” era um poema sobre algo sublime composto para
ser cantado individualmente ou em coro, e com acompanhamento musical
(http://www.significados.com.br/ode/)

É uma composição poética, às vezes nem tanto, para ser cantada ou


declamada, em homenagem a pessoa amada ou para enaltecer uma
personalidade, seja numa solenidade festiva ou num funeral. Teve origem
na antiga Grécia, cultivada por Horácio e outros, depois adotada em
Roma, com Horácio, principalmente, e a forma latina, mais tarde, se
estendeu a Portugal. tendo Bocage como maior divulgador. Usa estrofes
simétricas, com mesmo número de versos (Aluisio, Ode, Rio de Janeiro,
2010. In: http://www.dicionarioinformal.com.br/ode/).

Assim, temos, no meu entender, no texto de Martha, como citado,


uma “Ode à Vera e Zuleica”, pois nele encontramos um texto poético
escrito para enaltecer essas duas mulheres, compositoras e cantoras, por
ocasião de uma “solenidade”, qual seja, o lançamento do CD “Em Cantos
de Mulher”.
Assim como o CD anterior, “Em Cantos de Mulher” teve uma tiragem de
2.000 (duas mil) cópias, e foi lançado, segundo Zuleica e Vera, em um evento
no Hotel Deville Prime, também sem especificar a data. A circulação (comer-
cialização) se deu da mesma forma que o CD anterior.
O “Em Cantos de Mulher”, diferentemente do anterior, apresenta as
datas de composição das músicas, que gira em torno de 1983 a 2000, e
possui canções de gêneros musicais diversos, passando pelo rasqueado,
pela toada, pelo bolero e pela guarânia, além de outros como “chamalanto”
(uma “junção de chamamé com acalanto”) e um rap-bolero, segundo citado
no encarte do CD.
A ficha técnica, conforme descrito no CD, conta com arranjos de Vera,
Zuleica e Gilson, com os técnicos de som Capilé Charbel e Carlão Katayama
(Carlos Hagime Katayama); com mixagem a cargo de Capilé, Gilson, Vera e
Zuleica; e a masterização por conta de Carlos Savalla/RJ. A criação da capa
ficou a cargo de Douglas Aguiar, Vera e Zuleica e o artista plástico Adir Sodré;
as fotos utilizadas pertencem, algumas, ao arquivo particular das composito-
ras/cantoras, e outras que foram tiradas por Ivan, Wesler e Floriano. A revisão
de texto, assim como no CD anterior, ficou a cargo da professora Marluce
Badre e a identificação das flores foi feita pelas professoras Dra. Ermelinda
De Lamônica Freire e Dra. Miramy Macedo.

77
Os músicos participantes da gravação do CD, como nas gravações ante-
riores, também a partir da busca de qualidade técnica, sentimento e carinho
dos mesmos pelas questões da música regional, são: voz - Vera e Zuleica; vio-
lão, guitarra e baixo - Gilson Brito; teclado - Zulma D’Arruda Castro (irmã de
Zuleica); Bandoneon - Marques Caraí; percussão Franklin e Zuleica; bombo
leguero - Júlio Herez; bongô e maracas - Dirceu; bateria - Vinícius; Sax - Marí-
lia Ortiz; cerâmica São Gonçalo (usado também para efeito de instrumento de
percussão), farol e violão - Capilé; viola de cocho - Sr. Luiz Marques; berrante
- Sr. Chico do Berrante (de Cáceres/MT).
Novamente temos aqui, tanto na ficha técnica quanto na lista dos músicos
participantes, alguns nomes completos, outros apenas com o primeiro nome
e outros, penso, apenas identificados pelo “apelido” ou “nome artístico”.
As músicas que compõem o CD “Em Cantos de Mulher”, todas de auto-
ria de Zuleica e Vera, estão organizadas da seguinte forma:

1. Rasqueado do Dengo - Zuleica Arruda e Vera Baggetti (rasqueado


cuiabano, 1984);
2. Jururu - Zuleica Arruda e Vera Baggetti (toada, 1984);
3. Na Casa do Seu Luiz - Zuleica Arruda e Vera Baggetti (rasqueado
cuiabano, 2000);
4. Vieja Menina - Zuleica Arruda e Vera Baggetti (toada/joropo,
1985);
5. Erorão - Zuleica Arruda e Vera Baggetti (rasqueado cuiabano,
1983);
6. Cocar - Zuleica Arruda e Vera Baggetti (toada /pantanal-beat, 1997);
7. Pantanal Solidão - Zuleica Arruda e Vera Baggetti (rasqueado
cuiabano, 1990);
8. Lilith, em Cantos de Mulher… - Zuleica Arruda e Vera Baggetti
(chamalanto /chamamé acalanto, 1988);
9. Cavaleiro do Ventre - Zuleica Arruda e Vera Baggetti (bolero, 1988);
10. Bem Brasileiro - Zuleica Arruda e Vera Baggetti (guarânia, 1984);
11. Enlouqueci - Zuleica Arruda e Vera Baggetti (rap-bolero, 1993);

Como citado, neste CD, há uma busca por composições de gêneros musicais
diversos, tendo ainda algumas canções compostas a partir da fusão entre dois
gêneros, como é o caso do toada/joropo, do toada/pantanal beat, do chamalanto
(mistura do chamamé e do acalanto) e do rap-bolero. Questionadas acerca des-
sas fusões, as mesmas responderam:

78
Essa criação se deu devido às propostas de diversidade cultural
discutidas por todos os pensadores contemporâneos, nos encontros
de cultura que sempre frequentamos, promovidos pela ONU,
Ministério da Cultura Brasileira e também por comungarmos com
essa visão multicultural no mundo atual. E ainda não existem
fronteiras!!! (BAGGETTI, Vera. Depoimento. Cuiabá, 17 de março de
2015 e ARRUDA, Zuleica. Depoimento. Cuiabá, 17 de março de 2015).

Novamente vemos, nas palavras das artistas postura definida frente às


questões da cultura mencionadas anteriormente, sempre com um forte víncu-
lo com o regional, com as tradições e apego ao passado, mas buscando uma
visão global e contemporânea. Envolvem-se em atividades de cunho político-
-cultural, participando de cursos, palestras, Fóruns de Cultura, tanto regional
quanto nacional. Acerca dos diferentes ritmos que pode ser encontrado em
Cuiabá e que corroboram com os pensamentos escritos acima, Heloisa Ariano
(2002, p. 29) afirma:

A presença destes diferentes ritmos mostra que, além da preocupação


com o fortalecimento dos vínculos regionais, há também espaço para o
reforço dos laços nacionais, através dos gêneros musicais alçados como
expressões desse nível.

A capa do CD, nesse caso, assim como no primeiro CD, integra também
um dos lados do encarte, onde estão estampadas as fotos dos rostos de Vera
e de Zuleica, juntamente com algumas flores, que estão identificadas em ou-
tro momento. Temos ainda na capa, o nome delas referenciados da seguinte
forma - Vera - Zuleika - e logo abaixo, em letra de fonte menor, os dizeres
“Neotrovadorasdo Pantanal”62.
Juntamente com as fotos e flores, é apresentado o título do CD “Em Can-
tos de Mulher” que, se pensarmos na fonética, há uma dupla significação:
em cantos de mulher ou encantos de mulher. Penso que essa duplicidade de
significações faça sentido, ainda mais se levarmos em conta a fala das artistas,
sempre de forma poética e idílica.
Quanto ao significado para o nome dado ao CD, Vera considera que o
conceito do mesmo vem ao encontro do artigo 5o da Constituição Federal

62 Neotrovadoras - Na Europa medieval, ao aparecer a poesia lírica, em latim ou em línguas


romanas, já a voz feminina se fazia ouvir através de autoras em Langue d’ic […] No século
XX vamos assistir a uma tendência poética chamada de Neotrovadorismo, ligado, na Galiza,
aos movimentos autonomistas anteriores ao franquismo, e em Portugal, com repercussões no
Brasil, ao Saudosismo lusitano, entendido como busca da alma original do povo, das suas
tradições. […] < http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/ANPOLL_2002/arquivos/
pdf/001_mulher_literatura/maria_maleval.pdf> Acesso em: 26 jan. 2016.

79
Brasileira63, principalmente no que tange às questões relativas à Mulher
Brasileira que “[...] passa a ter seus direitos constituídos e a luta conti-
nuada” (BAGGETTI, Vera. Depoimento. Cuiabá, 17 de março de 2015). Di-
versos outros princípios relacionados aos direitos e garantias fundamentais
são abordados e esmiuçados dentro desse artigo 5o, cabendo aqui destacar
o fato de o mesmo garantir o princípio da igualdade, um dos pontos po-
lêmicos e importantes, que é o mais diretamente destacado pelas artistas,
principalmente se levarmos em conta a preocupação e atuação das mesmas
frente às questões ligadas à mulher.
Cabe citar que neste CD o nome de Zuleica está escrito com a letra k
(Zuleika). Além disso, a partir desse CD, grande parte dos demais docu-
mentos que encontrei e tive acesso também passaram a nominá-las como
Vera-Zuleika. Quando perguntadas sobre a escrita do nome utilizando a
letra K, e não a letra C, como nome de batismo, Zuleica informou que isso
se deu em função de estudo feito a partir da numerologia, por indicação de
Joãosinho Trinta.
Referente aos dizeres Neotrovadoras do Pantanal, elas falaram que tal
denominação se deu devido a uma “visão poética dos renascentistas” que, na
opinião da dupla, encontra-se:

[…] muito próxima da nossa cultura matogrossense, conforme livro


da folclorista Dra. Julieta de Andrade - ‘Cocho Matogrossense, um
Alaúde Brasileiro’, que registrou a sua emoção ao ouvir os acordes
da nossa viola-de-cocho, que a remeteu aos salões parisienses, da
renascença, com seus trovadores. (ARRUDA, Zuleica. Depoimento.
Cuiabá, 17 de março de 2015).

Sem entrar numa discussão mais aprofundada acerca da questão, o que


considero importante é enfatizar o fato de que essa denominação - Neotrova-
doras, existe, conforme pode ser visto na nota de rodapé, e que penso fazer
sentido à ligação da palavra à Zuleica e Vera, principalmente se levarmos em
consideração os aspectos apontados no conceito no que tange ao “[...] sau-
dosismo lusitano, entendido como busca da alma original do povo, das suas
tradições” (MALEVAL, 2002).
Novamente aqui temos, no verso, a relação das músicas constantes no CD
e duração de cada uma delas, dispostas na parte de cima do CD. Há ainda
a logomarca do estúdio responsável pela gravação e produção do CD, bem

63 Artigo 5o - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à prosperidade. <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constituicao.htm> Acesso em: 04 fev. 2016.

80
como a logomarca da Prefeitura Municipal de Cuiabá/Secretaria de Municipal
de Cultura, com a seguinte informação postada logo abaixo, “Este CD foi pro-
duzido através da Lei de Incentivo à Cultura” (Cuiabá, 2001).
Quanto ao encarte, lá constam dedicatórias feitas a vários artistas, ami-
gos/as, familiares, fazendo referência a cada final de letra de música colocada
no encarte, numa postura, por parte das compositoras, de reconhecimento às
mesmas, o que imprime um significado importante na vida delas, seja pes-
soal, familiar, social e profissional. Além disso, percebo também esse viés
tão presente na fala e no trabalho de Vera e Zuleica, no que diz respeito às
questões voltadas para a ecologia e aos direitos humanos.
Assim como “Só Rasqueado Cuiabano…”, em “Em Cantos de Mulher”
também temos presente um glossário com palavras constantes das letras das
canções, representativo dos aspectos da cultura cuiabana e mato-grossense.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas observações acerca das temáticas e letras das canções:


O Soar de uma Canção
Que pulsão é essa que nos leva a cantar, que nos une com outras pessoas,
que nos induz a lembranças, que nos identifica como povo? Uma canção.
Às vezes um hino, ou um acalanto. Muitas vezes nem soa, murmura em
nossa cabeça. Outras vezes, soa na voz de um passante que, de estranho,
passa a ser cúmplice. Emerge da multidão nas passeatas, nos jogos,
nas comunidades, identificando condutas, embalando ideias, soando
segundo a busca invisível de um ideal, de um gesto. A canção, como
consequência de um gesto, ou o gesto, consequência de uma canção,
um justificando a existência do outro. A canção oportuna, revelada pelo
gesto que se tornou necessário. A canção necessária, revelada pelo gesto
oportuno. (KERR, 2006, p. 202).

Canção:
Designação comum a diversos tipos de composição musical popular ou
erudita para ser cantada. (NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO DA LÍNGUA
PORTUGUESA, 1986)

Gesto:
Movimento do corpo, em especial da cabeça e dos braços, ou para
expressar ideias ou sentimentos, ou para realçar a expressão. (NOVO
DICIONÁRIO AURÉLIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, 1986)

81
Essas duas definições, embora venham de um Dicionário, alicerçam
meus pensamentos aqui. A canção faz parte do universo sonoro que
nos rodeia, é a música da nossa ancestralidade. E a voz é o instrumento
que a faz soar, às vezes em solo, às vezes a muitas gargantas. O gesto é
toda atitude. Antes mesmo de induzir à canção, já foi motivo fundante
da pesquisa que a descobriu. […] (KERR, 2006, p. 202).

A citação acima, de autoria de Samuel Kerr, músico, professor, maestro e


arranjador, está em um texto denominado “Carta canto coral” (2006), uma
vez que o trabalho do mesmo está vinculado a esta atividade. No entanto,
apesar de atrelar o gesto ao que é identificado, utilizando a terminologia ado-
tada pelo autor para definir Regência e/ou Regência Coral, entendo que suas
palavras alcançam uma interpretação maior. Esse gesto e essa canção, tão
carregados de intenções e emoções, me moveram a utilizá-los neste momen-
to, pois considero que o ato de compor e de cantar canções perpassa pelo
universo sonoro que nos rodeia, parafraseando Kerr.
Como citado, as três “publicações sonoras” abarcadas aqui sintetizam
a proposta de trabalho de Zuleica e Vera, já referenciado no Contrato de
Sociedade Civil do Grupo Musical Sarã. Baseando-me principalmente nas
letras das canções gravadas por elas e na dissertação de mestrado de He-
loisa Afonso Ariano (2002), teço, a seguir, alguns comentários acerca das
temáticas utilizadas nas referidas composições, bem como as letras dessas
canções.
Inicio com uma citação feita por Ariano (2002, p. 107), numa alusão ao
“modelo de construção em torno do qual gira a identidade cuiabana” e que
pode ser vista nas letras de alguns rasqueados:

O modelo em torno do qual gira a identidade cuiabana, diferentemente


do gauchismo - que tem na figura do gaúcho e seu modo de vida
específico de um tempo e de uma região do Rio Grande do Sul, o eixo
ordenador de onde parte todo o universo simbólico desta identidade -
não é calcado em um tipo humano exclusivo. É uma identidade que se
constrói na celebração da diversidade humana, biológica e cultural da
região. Ela parece querer abarcar a diversidade cultural a partir da qual
o estado vem se construindo. A especificidade do gaúcho deve-se a que,
segundo Oliven (1992), o Rio Grande do Sul é o estado da federação do
qual mais gente emigrou. Com o Mato Grosso sucede o contrário. Isso
ensejou o sentimento de preservação da cultura local, mas obrigou a que
essa identidade se construísse de maneira negociada, considerando pelo
menos uma parcela da diversidade.

82
No meu entender, e trazendo para o caso específico desta pesquisa, é
possível fazer relação da citação com as letras e músicas das canções compos-
tas por Zuleica e Vera, mesmo levando em consideração que as mesmas não
escreveram, cantaram e gravaram “apenas” rasqueados.
Como mencionado, a dupla compõe suas canções a partir de outros rit-
mos, além do rasqueado. Entre eles, muitos são de influência platina, como
guarânias, chamamés, bolero, carnavalito; outras são toadas e serestas. Há
ainda algumas incursões em ritmos e-ou efeitos brasileiros, indígenas e afros.
Por vezes, em suas composições e gravações, a dupla apresenta mistura entre
alguns ritmos e-ou gêneros musicais, originando novas roupagens rítmicas às
suas músicas. Conforme Ariano (2002, p. 32):

Vera Bagetti e Zuleica Arruda, mais ecléticas, fizeram uma mistura do


rasqueado com o blues norte-americano. Novamente se percebe como
expressões da música global lança raízes no cotidiano e como essas duas
vertentes, apesar de algumas resistências, mesclam-se dando origem a
algo novo.

Ao finalizar, algumas observações são relevantes citar, a exemplo dos vín-


culos entre as canções gravadas por Zuleica e Vera e o contexto no qual estão
inseridas. Início com uma fala da Vera que afirma que “[...] os nossos CDs
[e o primeiro LP] representam o sentimento, o amor e a poesia com que
olhamos a comunidade cultural matogrossense e a extensão da nossa
gratidão por estarmos inseridas nesse estado tão rico de possibilidades
culturais” (BAGGETTI, Vera. Depoimento. Cuiabá, 17 de março de 2015).
Tal fala aponta para um sentimento de pertencimento e de identificação
com as questões locais, mesmo que, como visto, as artistas se colocam tam-
bém frente à questões globais. Conforme Ariano (2002, p. 2), as “narrativas”
dos rasqueados baseiam-se, uns,

[…] em relações que se dão em um espaço concreto e outros, cujo


espaço é simbólico. São manifestações que exaltam ao mesmo tempo
a singularidade de seu território e vinculam-se ao movimento global
de defesa do meio ambiente. O culto das tradições locais articula-se a
padrões de outros tipos de música em voga nos meios de comunicação
de massa de expressão nacional. […]

A citação acima, apesar de se referir exclusivamente às letras dos rasque-


ados, mantém estreita relação com o contexto de produção das composições
de Zuleica e Vera, que, além do rasqueado, se apropriam, como já visto, de
outros ritmos e gêneros musicais. As canções tornam-se, assim, importante

83
espaço no qual as representações e formas de se conceber o que vem a ser
cuiabano são veiculados.
Temos presente nas canções de Zuleica e Vera - letra e música - possibili-
dades de contextos onde essa identidade cuiabana é encenada e construída
por meio das “particularidades do lugar”, conforme denomina Ariano (2002,
p. 100), cuja fonte é, via de regra, a cultura. Em busca das “particularidades
do lugar”, temos como temáticas principais das canções de Zuleica e Vera, as
que buscam “exaltar a região: situações ou pessoas, as frutas mais comuns,
a culinária típica, figuras antológicas da cidade, os becos que caracterizam
Cuiabá como colonial, costumes e tradições locais” (ARIANO, p. 102).
Isto posto, sem pretender esgotar a temática na intenção de minimizar
ou “enaltecer” a produção musical de Zuleica e Vera, pude observar que as
protagonistas são integrantes ativas do cotidiano de Cuiabá e Mato Grosso,
principalmente nas últimas três décadas do século XX e início do século
XXI. O Grupo Musical Sarã, que se “confunde” com as artistas menciona-
das, é um grupo conhecido e citado em livros, jornais e revistas e possui
uma produção musical intensa, fruto de suas vivências e posturas e, even-
tualmente, de parcerias.

REFERÊNCIAS

ARIANO, Heloisa Afonso. “Vozes da Cuiabania: identidade e globalização no


rasqueado cuiabano.” 2002. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social)
Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2002.
ARRUDA, Zuleica. O que é rasqueado cuiabano? Cuiabá, MT: Entrelinhas, 2007. 84 p.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em: 04 fev. 2016.
CAMPOS, Benedito Pinheiro de. O idealista: documentário histórico cultural. Cuiabá:
Instituto Cultural e Artístico “Cuiabália”, 1999.
DICIONÁRIO INFORMAL. Disponível em: <https://www.dicionarioinformal.com.br/>.
KERR, Samuel. Carta Canto Coral. In: FIGUEIREDO, Carlos Alberto et. al. Ensaios:
olhares sobre a música coral brasileira. Eduardo Lakschevitz (Org.). Rio de Janeiro:
Centro de Estudos de Música Coral, 2006.
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Neotrovadoras de hoje, trovadorismo de sempre.
Anais do XV Encontro da ANPOLL, Porto Alegre, 2002. Disponível em: <http://www.
leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/ANPOLL_2002/arquivos/pdf/001_mulher_
literatura/maria_maleval.pdf> Acesso em: 26 jan. 2016.
NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular. 3a
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
OLIVEIRA, Dorit Kolling de. “Tá Gira?” - uma história de Sarã e Cuiabania.
1997. Monografia (Especialização em Música Brasileira) - Instituto de Linguagens,
Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT, Cuiabá, 1997.

84
_____. Grupo Musical Sarã: a canção cuiabana como documento histórico (1971-
2001). 2016. Dissertação (Mestrado em Histórica) - Instituto de Geografia, História e
Documentação, Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT, Cuiabá, 2016.
SADIE, Stanley (Ed.). Dicionário Grove de música: edição concisa. Tradução de
Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. Significados: Disponível
em: <significados.com.br>.

DEPOIMENTOS ORAIS:

BAGGETTI, Vera. Depoimento. Cuiabá, 17 de março de 2015.


ARRUDA, Zuleica. Depoimento. Cuiabá, 17 de março de 2015.

REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS - GRUPO MUSICAL SARÃ64:

Documento de proposta de venda do disco “Raízes Sarã” para revenda na livraria


Ver e Ler do Instituto Nacional de Artes Cênicas (INACEN). Rio de Janeiro, 24 de jan.
1984.
Contrato de Sociedade Civil do Grupo Musical Sarã S/C Ltda. Cartório do 2º Ofício.
Cuiabá, 20 de maio de 1989.
ARRUDA, Zuleica. Cuiabanos, sim!...por que não??? Contato. Cuiabá: maio de 1996.
Ano 17, nº 135. Cultura. p. 21.

REFERÊNCIAS SONORAS: DISCOGRAFIA DO GRUPO MUSICAL SARÃ

BAGGETTI, Vera; ARRUDA, Zuleica. Em Cantos de Mulher. Cuiabá: 312 Studios,


2001. Compact Disc, digital audio, CD - 312MT025.
______. O que é Rasqueado Cuiabano. Cuiabá: 312 Studios, 2007. Compact Disc,
digital audio, CD - 312MT032.65
GRUPO MUSICAL SARÃ. Raízes Sarã. Goiânia: Araguaia Discos, 1993. Microsulco,
stereo, LP - 0122.
______. Só Rasqueado Cuiabano… Cuiabá: Estúdio Terra Produções, 1997. Compact
Disc, digital audio, CD - 312MT002.

64 As referências documentais relativas ao Grupo Musical Sarã estão organizadas por ano. São
documentos relativos ao grupo propriamente dito, recortes de jornais, convites, programas,
flyers e cartazes de shows, apresentações e participações de Zuleica e Vera ao longo dos anos.
Todos os documentos foram consultados no Acervo Particular de Zuleica Arruda e Vera Baggetti.
65 Este CD é parte integrante do livro O que é Rasqueado Cuiabano, de Zuleica Arruda, obra
citada na Bibliografia.

85
ETNIAS E
POLÍTICA
ALÉM DOS GRILHÕES: A CUIABÁ ESCRAVISTA E
A FUGA DE CATIVOS

Bruno Pinheiro Rodrigues

- Não sou cativo!


A minha alma é livre, é livre
enfim!
Liberto, liberto, vivo...
Mais... porque esperas?
Ah! Mata, mata no teu sangue
o pressagio da sombra das galeras!
(Alexandre Dáskalos, poeta angolano)

O grito de liberdade e ruptura dos grilhões são as páginas mais fascinan-


tes da história da escravidão negra. Fora dado onde quer que ela tenha sido
instaurada, fosse na América do Norte, do Sul ou na África. Dáskalos, poeta
angola, ao escrever o poema “A sombra das galeras” em 1961,66 verbalizara
não somente a memória daqueles que foram o sustentáculo do colonialismo
no Novo Mundo, mas também o sofrimento e intensa força de vontade pela
vida longe do cativeiro, especialmente quando se colocavam em fuga ou
formavam quilombos.
A Cuiabá dos 300 anos é profundamente marcada pela presença e memó-
ria da população escravizada que nela habitou entre os séculos XVIII e XIX.
As marcas da população africana e afrodescendente não somente são visíveis

66 Segue o poema completo: “Ah! Angola, Angola, os teus filhos escravos/nas galeras correram as
rotas do Mundo./Sangrentos os pés, por pedregosos trilhos/vinham do sertão, lá do sertão, lá bem
do fundo vergados ao peso das cargas enormes.../Chegavam às praias de areias argênteas/que se
dão ao Sol ao abraço do mar.../... Que longa noite se perde na distância!/As cargas enormes/os
corpos disformes./Na praia, a febre, a sede, a morte, a ânsia/de ali descansar/Ah! As galeras! As
galeras!/Espreitam o teu sono tão pesado/prostrado do torpor em que mal te arqueias./Depois,
apenas pestanejam as estrelas,/o suplício de arrastar dessas correias./Escravo! Escravo!/O mar
irado, a morte, a fome,/A vida... a terra... o lar... tudo distante./De tão distante, tudo tão presente,
presente/como na floresta à noite, ao longe, o brilho/duma fogueira acesa, ardendo no teu corpo/
que de tão sentido, já não sente./A América é bem teu filho/arrancado à força do teu ventre./
Depois outros destinos dos homens, outros/rumos.../Angola vais na sede da conquista./Hoje
no entrechoque das civilizações antigas/essa figura primitiva se levanta/simples e altiva./O seu
cãntico vem de longe e canta/ausências tristes de gerações passadas e/cativas./E onde vão seus
rumos? Onde vão seus/passos?/Ah! Vem, vem numa força hercúlea/gritar para os espaços/como
os dardos do Sol ao Sol da vida/no vigor que em ti próprio reverberas:/- Não sou cativo!/A minha
alma é livre, é livre/enfim!/Liberto, liberto, vivo.../Mais... porque esperas?/Ah! Mata, mata no teu
sangue/o pressagio da sombra das galeras!” (DÁSKALOS, 1961).

89
nas manifestações religiosas, culturais, culinárias ou linguísticas, mas até mes-
mo em nomes que, por vezes, passam desapercebidos às novas gerações. É o
caso de Mãe Bonifácia, que atualmente dá nome a um dos principais parques
da cidade, fundado em 2000.
Embora ainda não tenham sido encontrados registros escritos, de ge-
ração em geração fora transmitida oralmente a história de que havia uma
mulher cujo nome era Bonifácia, que, por alimentar e guiar cativos que
fugiam da escravidão, recebera a alcunha de “mãe”. Negra liberta e mora-
dora das imediações onde hoje se localiza o parque orientava os fugitivos
a seguir para uma área de floresta densa, onde atualmente existe um bairro
intitulado “Quilombo”.67
Não deixa de ser significativo também que uma das principais figuras histó-
ricas do estado de Mato Grosso seja Tereza de Benguela, conhecida por liderar
o Quilombo do Quariterê, o maior e mais duradouro refúgio de cativos fugidos
da escravidão. Tereza, antes de mais nada, também rompera os grilhões da
escravidão, fugiu e liderou outras dezenas de fugitivos. Se haviam ou não no
interior do Quariterê evadidos de Cuiabá, a documentação histórica disponível
não informa. Contudo, a liderança de Tereza e a memória do quilombo per-
maneceram e inspiraram outros tantos a romperem os grilhões da escravidão.
O texto, portanto, trata-se de um esforço para delinear, em primeiro lu-
gar, as singularidades da escravidão em Cuiabá. Posteriormente, apreciare-
mos os atos de fuga e as diferentes perspectivas que se abriam ao horizonte
do fugitivo. Esperamos que este breve ensaio possa inspirar novas pesquisas
e, principalmente, o olhar para esses homens e mulheres que, com suas his-
tórias de vida, igualmente formaram a Cuiabá que completa três séculos.

ESCRAVIDÃO EM CUIABÁ, UM BREVE RETRATO

Em linhas gerais, a população escravizada ao longo dos séculos XVIII


e XIX esteve distribuída nos mais diferentes setores da economia e espa-
cialidades. Embora tenha sido mais concentrada em atividades mineradoras,
nos anos setecentos, em função das descobertas e busca do ouro, também
desenvolveu outras atividades, como trabalhos domésticos, venda de água,
comércio ambulante e lavoura.
A propósito dessa última, vale ressaltar que na virada do século XVIII
para o século XIX, com a “crise da mineração”, passou a ser a tônica o que
Aleixo chamou de “economia mercantil”, praticada na então capitania de
Mato Grosso, uma vez que o fornecimento de produtos às minas permitiu aos
67 Sobre a possível existência de Mãe Bonifácia e memória oral, ver Aníbal Alencastro (2003).

90
proprietários relativa acumulação, capaz de “rearranjar” as forças produtivas
com a crise mineira.68
Destarte, os cativos que estavam empregados, em sua maioria, na extração do
ouro, foram deslocados para diferentes atividades, como os serviços domésticos,
o comércio ambulante na cidade e o trabalho nas lavouras.69 Ocorreu a chamada
“reorganização da economia”, com a intensificação das atividades pastoris volta-
das à criação de gado nas fazendas da cabeceira do Pantanal, e intensificação das
atividades econômicas nos engenhos de açúcar, localizados na “Serra Acima” (atu-
al Chapada dos Guimarães) e ao longo do Rio Cuiabá (VOLPATO, 1993, p. 15).
Apesar do desenvolvimento das lavouras ter se dado com mais intensi-
dade após a decadência mineira, os engenhos de açúcar estiveram presentes
desde os momentos iniciais, em 1727, quando a produção de cana-de-açúcar
e seus derivados se prestavam ao suprimento das minas. Porém, a partir do
século XIX, sobretudo, com a abertura temporária da navegação no Rio Para-
guai, em 1858, quando a produção passou a ser organizada para exportação
e produção em larga escala, o cativo passou a ser indispensável (peça funda-
mental) para produção e desenvolvimento da economia açucareira.
Quatro são os fatores contribuíram para o desenvolvimento da economia
dos engenhos de açúcar: (1) disponibilidade de terras; (2) existência de mão
de obra escrava, que anteriormente estava empregada em massa nas minas;
(3) existência de um mercado consumidor objetivando absorver a produção
açucareira; (4) presença de vias de comunicação para escoar a produção –
vias fluviais e a estrada que ligava Cuiabá a Goiás (ALEIXO, 1980, p. 39).
Sobre o papel da mão de obra escrava nos engenhos de açúcar, cabe desta-
car a existência do “tempo marginal”, o tempo que o cativo usava para cultivar as
suas próprias roças, a fim de garantir sua própria subsistência, já que essa função
não cabia ao proprietário (ALEIXO, 1980, p. 41).
Ao mesmo tempo que a economia açucareira se desenvolvia com base na
mão de obra escrava, as atividades pastoris passaram a ter grande relevância
para a economia da província de Mato Grosso a partir do século XIX; prin-
cipalmente, após a “emancipação política” do Brasil, com a criação de gado
e produção de seus derivados – couro, carne etc. –, destinados ao abasteci-

68 A referida autora defende a existência de uma economia mercantil na província de Mato


Grosso, baseada na exportação e importação, e, consequentemente, na acumulação de capital
comercial, que deu condições econômicas, posteriormente, para a transição do trabalho escravo
para o trabalho livre e o deslocamento do capital acumulado para as atividades extrativistas,
pastoris, além da intensificação das atividades agrícolas (ALEIXO, 1980, p. 20).
69 Cabe ressaltar que a escassez das minas, tanto em Cuiabá como na província de Mato Grosso,
ocorreu de forma gradual. Aleixo menciona um ciclo de exploração mineira que se deu com
a descoberta de novas jazidas de diamantes, por volta de 1850, impulsionando um certo surto
econômico (ALEIXO, 1980, p. 18).

91
mento tanto dos mercados de São Paulo e Minas Gerais, como do Paraguai e
Bolívia. Em 1839, o então presidente de província Estevão Ribeiro de Rezen-
de destacava a importância da atividade:

Cabe aqui falar da indústria rural... embora não tenha recebido benefício
algum ela apresenta em face agradável, devida só à prosperidade do
país e das belas pastagens e recursos naturais que oferece: a criação
de gado vacum à anos a esta parte tem progressivamente aumentado.
(REZENDE, 1939. In: ALEIXO, 1980, p. 16).

Entretanto, ao contrário das lavouras, a economia pastoril na província de


Mato Grosso era movimentada por trabalhadores livres.
No que tange ao emprego da mão de obra nos ambientes urbanos, sobre-
tudo a partir do século XIX, vale destacar sua incorporação aos afazeres do-
mésticos, nas oficinas e no comércio ambulante. Nessa última atividade, assim
como nas minas, era obrigado a repassar diariamente ao seu proprietário de-
terminada quantia estabelecida e era responsável pelo sustento de sua família.
Nesse contexto, vale destacar a figura dos “escravos de ganho”, os que
perambulavam nas ruas de Cuiabá vendendo quitutes, frutas, cumprindo al-
guma tarefa determinada, carregando ou mesmo vendendo água. Essa mo-
vimentação nas ruas, apesar de não ter merecido atenção mais apurada nos
relatos do período, foi registrada pelo viajante Karl von den Steinen, que
ficara impressionado com o vaivém das ruas, não só de “escravos de ganho”,
mas também de livres pobres e de vários animais, como cachorros, vacas e
porcos (STEINEN, 1969. In: VOLPATO, 1993, p. 33; 115).
A venda de água em Cuiabá, sem dúvida, poderia ser considerada um im-
portante setor de atuação para os cativos, visto que, ainda na segunda metade
do século XIX, a cidade não dispunha de um sistema de água encanada. Isso
impunha aos seus habitantes o uso das cisternas particulares, e ao governo da
província de Mato Grosso a construção de chafarizes e bicas, para o abasteci-
mento da população – como os construídos na região do Mundéu, no Largo
da Conceição, e na região da Prainha (MACHADO FILHO, 2006, p. 26).70
Além do comércio ambulante praticado pelos escravos de ganho, os ca-
tivos, especificamente em ambientes urbanos, também estavam empregados
em afazeres domésticos, que englobavam diversas atividades: arrumação da
casa, cozinha, em lavar roupas, cuidado com as crianças e quintais, entre ou-
tras (VOLPATO, 1993, p. 115).

70 Volpato constatou, em meados do século XIX, em Cuiabá, na Freguesia da Sé, a existência


de sete bicas, que, ainda assim, eram insuficientes para suprir as necessidades da população
(VOLPATO, 1993, p. 31).

92
Existiam ainda as chácaras e sítios localizados nos arredores da cidade
e que não se prestavam apenas como área de lazer dos proprietários, mas
também enquanto locais onde se desenvolviam atividades produtivas. As
chácaras estavam situadas geralmente às margens dos rios Cuiabá e Coxipó
e envolviam tanto a mão de obra escrava como a livre nas atividades de pas-
toreio, agricultura e fabricação de açúcar. Os sítios, por sua vez, produziam
gêneros de primeira necessidade, como mandioca, feijão e milho, com o ex-
cedente destinado ao mercado interno. Assim como nas chácaras, nos sítios
também era utilizada a mão de obra escrava, associada à livre e, em alguns
casos, eles pertenciam a ex-escravos (VOLPATO, 1993, p. 13-14).
Ademais, a escravidão em Cuiabá, assim como em outros centros urbanos
do território luso-brasileiro, definiu-se pela coerção física e coisificação do
indivíduo.71 Porém, o mundo do trabalho escravo não foi escrito unicamente
pelo protagonismo dos senhores, mas também pela atuação e intervenção
constantes dos cativos, tanto com atos violentos, suicídios e nas rebeliões,
mas também enquanto simples gestos de receptação e venda de objetos rou-
bados, ações na justiça perpetradas por cativos, sabotagens e, especialmente,
as fugas, que é o tema que explanaremos adiante.

FUGAS: A VIDA PARA ALÉM DOS GRILHÕES

A consulta à documentação relativa à escravidão de negros em Cuiabá


e Mato Grosso, ao longo do século XVIII e início do XIX, elucida a fuga de
cativos como o principal problema da instituição escravista na região, pois,
não somente poderia originar quilombos, fontes de transtornos onde quer
que estivessem instalados, mas também pelo desfalque da mão de obra já
escassa nas minas e lavouras. Apesar das várias estratégias adotadas, como a
incorporação de indígenas,72 a fuga de cativos, em última instância, significou
prejuízo financeiro, considerando o elevado preço de cativos no período.73

71 Frequentemente, nos anúncios de jornais do século XIX, escravos eram oferecidos para aluguel
ou postos à venda, como o seguinte caso: “Vende-se uma escrava de 34 anos de idade, a
qual sabe cozinhar e sabe lidar com a lavoura, quem pretender, tratar na typografia do
jornal” (TÍTULO DO JORNAL E ANO. In: OLIVEIRA, 2007, p. 28).
72 Sobre a utilização de indígenas enquanto cativos, ver Vilela (2005) e Bruno Rodrigues (2015).
É preciso entender tal “incorporação” de modo que se considere também a agência indígena,
que também negociava o aldeamento ou alianças com as coroas ibéricas na região. Lembramos
o caso do convencimento para que indígenas chiquitanos, que haviam migrado dos domínios
castelhanos, permanecessem em Vila Maria (Cáceres). De acordo com Seckinger, com as
guerras de independência, entraram nos domínios brasileiros 603 chiquitanos, na altura do
ano 1835. Ver SENA (2013a, p. 9).
73 Em meados do século XVIII, por exemplo, a provedoria da capitania de Mato Grosso avaliava
que cada cativo custava em torno de 130 a 150 oitavas de ouro, ou seja, de 157$000 a 225$000
réis, o que já poderia ser considerado um preço elevado (SILVA, 1995, p. 237).

93
A fuga colocava no horizonte do cativo quatro possibilidades: (1) for-
mação de quilombo; (2) busca de incorporação à população indígena; (3)
tentativa de fuga para os domínios espanhóis; (4) e, por fim, a tentativa de
vida nas matas. Nesta seção, especificamente, nos concentraremos na ter-
ceira possibilidade, em vista do lugar estratégico em que se posicionaram
os povoados de não indígenas nesta parte da América portuguesa e da
fuga de cativos que acabava por articular relações não somente entre as
capitanias da coroa portuguesa, mas também entre as duas coroas ibéricas
na América.
De partida, chamamos a atenção para a existência de duas fronteiras a
serem cruzadas junto às quatro possibilidades mencionadas acima: a interna
e aquela que dividia os domínios portugueses e espanhóis. A primeira, de
acordo com Ernesto Cerveira de Sena (2013b, p. 85), era, no período, o ter-
mo que se utilizava para demarcar até onde a “civilização” havia chegado.
Deve ser compreendida à luz da própria característica de povoamento luso
do território, que se dava em “arquipélagos”, uma vez que entre um núcleo
de povoamento e outro, existiam vastas áreas com ausência da presença lusi-
tana. O território do Mato Grosso é emblemático nesse sentido, notadamente
no período imperial: possuía uma vasta extensão territorial de limites a serem
definidos e considerável área não ocupada por cidades, vilas e povoados. A
fuga de um cativo, certamente, visava o cruzamento e distanciamento de tal
fronteira interna.
A segunda fronteira, a linha limítrofe que dividia os domínios espanhóis
e portugueses, passou a ganhar contornos após o tratado de Madri (1755).
Todavia, ainda no século XIX, período de formação dos Estados Nacionais,
caracterizava-se por uma imensa área de imprecisões. Segundo Sena, apesar
do pretendido consenso entre as autoridades nacionais – Brasil e Bolívia –
sobre os limites territoriais, a prática de descendentes portugueses e espa-
nhóis transformava a “região” numa imensa área demarcada por justaposição
de várias fronteiras, fluidez e não fixação efetiva (SENA, 2013b, p. 86). No
interior dessa imprecisão, de acordo com os documentos do período, havia
índios, ribeirinhos, desertores e, principalmente, cativos evadidos dos domí-
nios luso-brasileiros, sobretudo no que se refere àqueles refugiados do lado
castelhano, que demarcavam a própria “fronteira”.
Além disso, ao consultarmos a documentação brasileira pertinente à fuga
de escravos para os domínios espanhóis, desde o estabelecimento das minas
do Cuiabá até as primeiras décadas do século XIX, verificamos os principais
destinos: as missões dos Mojos e Chiquitos, as províncias de Santa Cruz de La
Sierra, Assunção, Buenos Aires, Cordoba, Tucumán e, em algumas situações,
as imediações de Lima. De maneira geral, pelo Vale do Guaporé, cativos se

94
evadiam para Mojos e Santa Cruz de La Sierra, e, pelo Vale do Paraguai, para
as demais localidades.74
É importante observar que essas rotas passaram a ser utilizadas de acordo
com a chegada e expansão do povoamento não indígena na região, de modo
que as fugas ocorridas desde as descobertas das minas no Coxipó-Mirim
(afluente do Rio Cuiabá), até finais da década de 1740, passam, de maneira
geral, pelo Vale do Paraguai. A partir de 1748, com a fundação da capitania
do Mato Grosso, as mesmas também passam a se dar via vale do Rio Guaporé.
A documentação do período analisado demonstra não somente um cru-
zamento constante das fronteiras com os domínios castelhanos, por livre e
espontânea vontade de cativos que buscavam a fuga, até situações em que
eram forçados ao cruzamento dos limites fronteiriços ambicionado pelas co-
roas e depois pelos Estados nacionais.75 Nesse sentido, chamamos a atenção
para uma celeuma entre o português Antonio França Sylva e a Provedoria dos
Ausentes, registrada nos arquivos dispostos no Arquivo Histórico Ultramari-
no, ao longo das décadas de 1750 a 1760.76 Ela envolveu, ao mesmo tempo,
portugueses, espanhóis, instituições e autoridades, circulação em territórios
diversos de cativos africanos provenientes de diferentes lugares.
Consta na documentação que Antonio França Sylva, ex-Provedor dos Au-
sentes, 77fugira às escondidas do Cuiabá, em 1756, levando consigo dezenas
de cativos. Por dever 20 mil réis à Provedoria dos Ausentes e acusado de be-
neficiar a si, enquanto ocupara o cargo de Provedor, tivera os seus bens pe-
nhorados (AHU, Mato Grosso, Cx. 11, doc. 709 (rolo 11), de 15 de setembro
de 1763), incluindo 31 cativos. Embora o caso tivesse se passado em 1756,
ele ainda continuaria a ser mencionado em ofícios até 1763, e parecia não ser
solucionável, pois Antonio conseguira se evadir aos domínios castelhanos.
O caso, em si era repleto de fatos notáveis, a começar pela própria popu-
lação escrava que tecnicamente pertencia a Antonio de França, declarada no
ofício que pedia a penhora:

74 Sobre fugas do Mato Grosso para América espanhola, ver Mapa 1. Acerca da trajetória fluvial-
terrestre de Cuiabá até Santa Cruz de la Sierra, ver Mapa 2.
75 Para uma problematização acerca das tentativas de estabelecimento de limites fronteiriços, no
período colonial e pós-independência, ver Ernesto Cerveira de Sena (2013a).
76 O primeiro registro que localizamos foi uma carta encaminhada pelo então capitão-general de
Mato Grosso, Dom Rolim de Moura, aos capitães-generais do Rio de Janeiro e Minas Gerais,
discorrendo sobre Antonio de França, que era fugitivo e os seus escravos estavam penhorados
à Provedoria dos Ausentes (AHU, Mato Grosso, Cx. 11, doc. 658, de 17 de novembro de 1761).
77 Vale ressaltar que a Provedoria dos Ausentes, que integrava a administração do mundo lusitano,
foi uma instituição criada em 1613, cuja função consistia em arrecadar e administrar bens de
ausentes ou defuntos que não deixassem procuradores nomeados em seus testamentos, assim
como de pessoas coletivas, tais como conventos, capelas, hospitais, entre outros (HESPANHA,
1994, p. 206-209).

95
[...] Francisco de Nação Angola = Sylvestre de nação mina = Manoel de
nação mina = André de nação mina = Francisco de nação mina = Amaro
de nação Mina= Joaquim de nação Mina = André de nação Mina = Feliz de
nação Mina = Thimotio de nação mina = Ponsato de nação Mina = António
de nação Angola = João de nação Angola = João de nação Mina = Antonio
de nação Benguela = Francisco de nação Mina = Anastacio de nação Mina
= Miguel de nação Mina = Domingo de nasçam Mina = Miguel de nasçao
Mina = `Pedro de nasçao Mina = Agostinho de nasção Mina = Paschoal
de nasçao Mina = Benedito de nação mina = Thimotio de nasçao Mina
= Joseph de nasçao Mina = hThomé de nasçao Mina = André de nasção
Mina = Apolónia Mulata com duas filhas, huma chamada Rita, e outra
chamada Marte [...] (AHU, Mato Grosso, Cx. 11, Doc. 660, 1761 (rolo 11).

A citação chama a atenção não somente a predominância masculina sobre


as mulheres – 28 homens para 3 mulheres –, mas também pelo fato de a po-
pulação masculina de Antonio ser totalmente africana e a única mulher com
as suas duas filhas serem mulatas, certamente, todas nascidas no Brasil. Tudo
indica que tais cativos foram trazidos para o trabalho nas minas do Cuiabá, que
demandava mais força masculina.
A predominância Mina, nesse momento, pode ser tomada como um fator
dissonante, em vista do progressivo avanço da presença de cativos Congo-
-Angolanos na região, durante o século XVIII e primeiras décadas do século
XIX, o que pode ser observado no Gráfico 1.
Precisamente, na década de 1730 observamos a baixa das importações de
cativos da Costa da Mina e uma alta nas importações dos portos angolanos,
sobretudo de Luanda. A explicação para essa redução drástica do comércio
na Costa da Mina acaba por combinar numerosos fatores, a começar pelos
constantes conflitos políticos desencadeados entre os reinos africanos que
habitavam ou se relacionavam com a Costa da Mina.78 A estes fatores deve-
-se acrescentar a atuação holandesa na região, com saques e apreensões de
embarcações, o que contribuiu para que se esfriassem as atividades.79 Como
a Costa da Mina era a principal fornecedora dos traficantes baianos, o forne-
cimento para região, nesse quadro, ficava comprometido.
78 Em primeiro lugar, na década de 1720 a região enfrentava um período turbulento, com disputas
políticas entre diversos reinos africanos. Destaca-se nesse contexto a invasão do porto de
“Ajudá”, pelo rei do Daomé, Agaja; a intervenção do Reino do Óio, que dominava as rotas
de tráfico no interior da Costa da Mina, entre os anos de 1726 a 1730; a tomada do porto
de “Jaquim”, pelo rei do Daomé; e, finalmente, a destruição do porto de Jaquim e do forte
português do Ajudá. Sobre tal assunto ver Manolo Florentino, Alexandre Ribeiro e Daniel
Domingues (2014, p. 2016). Sobre conflitos na África Ocidental e o impacto no fluxo comercial
de escravos para o Novo Mundo, ver também Alexandre V. Ribeiro (2002).
79 Se antes o tempo de viagem para Costa da Mina poderia equivaler a 6 meses, na década de
1730, chegaria até a 18 meses (FLORENTINO; RIBEIRO; SILVA, 2004, p. 86).

96
Analogamente, na América portuguesa os traficantes do Rio de Janeiro
vivenciavam outra situação, sobretudo após a abertura da “nova rota”, que
ligava a região a Minas Gerais, com duração de 10 a 12 dias – fato que di-
minuía as taxas de mortalidade, fugas, tornando o negócio mais lucrativo e
abrindo vantagem sobre os comerciantes de Salvador.80 Devemos observar
que o aumento das taxas de importação de escravos no Rio de Janeiro e a
crescente alta de exportações dos portos nos Reinos de Angola e Benguela
acabaram por coincidir no período. Portanto, uma vez que o Rio de Janeiro
fora o principal fornecedor de cativos,81 a despeito das outras rotas que leva-
ram escravos para as Minas do Cuiabá e Mato Grosso,82 podemos sustentar a
dissonância da superioridade de africanos Mina junto a Antonio de França,
em meados do século XVIII.
Em todo caso, logo ao sair do Cuiabá, Antonio de França seria surpreendi-
do por um fator inesperado: dentro da própria fuga que já perpetrara, 7 entre
os seus 31 escravos também conseguiram fugir – todos da nação Mina – e
retornaram à vila. O sertanejo, então, prosseguiu sua partida e, pelo que nos
informa a documentação, Antonio de França pretendia encontrar-se com o
espanhol D. Francisco França Sanches, que o esperava em um sítio chamado
Corumbati. Em função das inundações dos rios, atracou no Porto de Ararita-
guaba (capitania de São Paulo). Na sequência, encontrou uma nova maneira
de chegar ao sítio inicialmente combinado, aonde conseguiu finalmente efe-
tuar a venda de 21 escravos para o português Francisco Jubas Americano,
que, posteriormente, deveria encaminhá-los ao espanhol D. Francisco. 83
Com o negócio concluído, Antonio, juntamente com o espanhol D. Francis-
co, uma moça com quem se casara e alguns escravos, decidiram rumar, em 1760,
para os domínios castelhanos, porém acabaram detidos pelas patrulhas de cava-
laria militar da fronteira, junto ao Rio Paraguai, e levados aprisionados. Esperava-
80 De acordo com Florentino, Ribeiro e Silva (2004, p. 87), até as primeiras décadas do século
XVIII os comerciantes escravistas eram os principais fornecedores de escravos para Minas
Gerais. Com a abertura do novo caminho, e as dificuldades de abastecimento na Costa da
Mina, tal função passou a ser suprida por traficantes do Rio de Janeiro. Vale salientar que a rota
que ligava a Bahia a Minas Gerais era de 1.200 quilômetros, ao passo que a nova rota, do Rio
de Janeiro as Minas Gerais, percorria apenas 480 quilômetros.
81 O atual acervo do Arquivo Histórico Ultramarino, seção Mato Grosso, dispõe de uma tabela
referente ao fluxo de cativos na região entre 1720 a 1772 e suas rotas, apresentada no ano de
1773. Nela se observa em todos os períodos a superioridade da rota que partia do porto do Rio
de Janeiro, passando pelo porto de Santos e seguindo para Cuiabá pelos vales dos rios Tietê e
Paraguai. Sobre tal rota, ver capítulo 3 da tese de Bruno Rodrigues (2015).
82 Florentino, Silva e Ribeiro (2004, p. 91) salientam que, apesar do declínio do comércio escravista
em Salvador, os navios ainda continuaram a aportar na cidade e esta acabou por assumir a
função de abastecimento de escravos no interior do Brasil, do fim do século XVIII e início do
XIX, o que incluía as vilas de Goiás e Mato Grosso.
83 O documento não especifica detalhes desse trâmite, mas, aparentemente a estratégia de
vender primeiro ao português, para depois o mesmo repassar ao espanhol poderia servir como
estratégia para burlar a fiscalização (AHU, Mato Grosso, Cx. 11, Doc. 660, 1761, rolo 11).

97
-se, consta o ofício, que lá fosse comprovado o “contrabando” em que estivera
envolvido o espanhol D. Francisco, o que aparentemente não o foi, em vista das
reclamações de 1763, em que a Provedoria dos Ausentes ainda reinvindicava o
prejuízo e prisão de Antonio de França. Quanto ao destino dos demais, de Anto-
nio de França e dos seus cativos, só é informado o paradeiro da mulata Rita, filha
de Apolônia, levada para Córdova, nos domínios castelhanos.84
O caso tem potencial para uma análise em várias dimensões, mas aqui
destacamos a presença espanhola em território brasileiro, o que denota uma
movimentação castelhana ilegal em “território português”, na transferência de
mão de obra para o outro lado da fronteira. Tal fato nos leva a crer que no pe-
ríodo analisado também existia demanda de mão de obra cativa do outro lado
da fronteira. Ou seja, o cativo africano que poderia ser transportado por meses,
desde a sua terra natal, provavelmente no hinterland das cidades costeiras,85
para chegar ao Novo Mundo, e, após vendido, enfrentava uma nova viagem
que tomava outros meses, podendo ainda ser submetido a novos trajetos a
oeste da América, se envolvidos em operações como a de Antonio de França.
No tocante às fugas, vale frisar que poderiam tanto ser individuais como
planejadas coletivamente. No conjunto da documentação referente ao período
colonial, encontramos diversas situações, como a de 1772, junto aos Anais do
Senado da Câmara de Cuiabá, em que é narrada a fuga coletiva e bem su-
cedida de cativos que, após assassinarem o seu senhor e pilotarem uma canoa,
cruzaram para os domínios de “Castella”:
Logo depois da partida do General sucedeo o horrorozo cazo da morte
cruel mente dada ao Thenente de Auxiliares desta Villa Manoel Jozé
Pinto no seo Ingenho chamado da Itapeva, sitio a margem do Rio
Cuyabá abaixo, por huns seos escravos, que depois de executado o
delicto, se retirarão furtiva mente em huma canoa levando consigo,
e a força mais alguns escravos da caza, e mantimento necessário, e
se passarão a salvo para Castella, pois não tiverão na caza quem lhes
fizesse resistência, por que tudo erão lagrimas, confuzões, e sustos da
mulher, e filho do disgraçado, defunto que todos herão menores, e sem
capacidade, nem forças para se oporem, e prizionarem os facinorozos.
Deusse parte do sucesso ao General que ainda estava em distancia de
dezaseis legoas desta Villa, mandou, que logo logo se expedice a custa

84 Cordova está atualmente localizada no território que conhecemos por Argentina. A partir de
1776 passa a compor o Vice-Reinado do Prata, se tratando de uma das maiores cidades da
América Espanhola.
85 Comumente, o cativo que era embarcado, por exemplo, em Benguela, provindo de regiões ao
interior daquela cidade, às vezes levava meses para ser transportado para a cidade costeira.
Sobre a trajetória de um cativo dos portos litorâneos da África Central Ocidental e o extremo
oeste luso-brasileiro, ver Bruno Rodrigues (2015).

98
da Real Fazenda huma escolta sobre os asasinos, assim se fés porem
sem fruto, por haverem passado dias, e levarem vantagem grande na
marcha que fazião de dia, e de noite sem parar (ANAIS DO SENADO DA
CÂMARA DE CUIABÁ. In: SUZUKI, 2007, p. 101).

O episódio, além de sugerir relativo planejamento – afinal, sem ele não


conseguiriam navegar pelo vale do Paraguai e obter o êxito na fuga para os
domínios castelhanos –, apontava justamente para o outro lado da fronteira
como uma terra que representava, ao menos, alguma liberdade para popula-
ção escrava do Cuiabá e de Mato Grosso. A partir desta imagem é que as ce-
nas de fuga se repetirão constantemente pelo vale do Paraguai ou Guaporé,
conforme o povoamento luso-paulista fosse se estabelecendo gradualmente
na região, desde as primeiras décadas do século XVIII.
A tabela elaborada durante o governo de Luís Pinto de Sousa Coutinho, no
ano de 1771, vem confirmar essa tendência. Além de informar rotas por onde
adentrava, na Capitania, a população escravizada, o documento ainda apre-
senta um levantamento da quantidade de cativos capturados em quilombos
e restituídos da Espanha, mortos por indígenas e fugidos sem especificação
da localidade. É significativo o fato de que 67 cativos tenham sido trazidos de
quilombos estabelecidos nas imediações de Vila Bela de Santíssima Trindade
(leia-se, Mato Grosso), e 17 levados à Cuiabá. Infelizmente o documento não
especifica como esse montante de pessoas fora distribuído posteriormente à
captura, mas o certo é que uma grande parte poderia ter fugido de Cuiabá e
suas imediações (ver Tabela 1).
Outrossim, também chama atenção a restituição, pela Espanha, de 40 ca-
tivos, apenas em 1771. Ao consultarmos os manuscritos luso-brasileiros, tanto
do século XVIII como do XIX, possivelmente os documentos mais comuns
sejam as constantes solicitações de governantes de Cuiabá e capitania/pro-
víncia de Mato Grosso às autoridades espanholas para identificação e devo-
lução de cativos evadidos. A mesma constatação vale para os manuscritos
redigidos pelas autoridades espanholas acerca dos assuntos fronteiriços. O
combate aos “quilombos” no território castelhano exemplifica essa questão.
Em carta escrita em 1786, por exemplo, autoridades da região de “Vallegran-
de” e “Chilon”86 conclamam ao Vice-Reinado do Peru a tomada de providências
contra os acampamentos formados por escravizados fugidos, semelhantes aos
“quilombos” da América portuguesa. Argumentavam que os cativos fugidos e
que se encontravam na área já haviam construído fortes, praticado desordens
nas fazendas e chácaras vizinhas, além de seduzirem escravos dos povoamen-

86 A referida localidade estaria localizada entre as cidades de Santa Cruz de la Sierra e Cochabamba,
na atual Bolívia.

99
tos vizinhos para a fuga: “[...] ellos no solo lhe huyen, sino que seducienlo a
otros esclavos y esclvas y roband lãs atajas mais floridas de suas amos, recon-
ducen para aquelles lugares, em donde hallan La acolhida y amparo que esta
visto” (ABNB, MyCh 195-10, 11, 11v. – sobre escravos Minas na Bolívia, 1786).
A carta ainda alertava que, se não fossem tomadas providências imedia-
tas, dia após dia o ajuntamento de escravos fugidos aumentaria. Era preciso
não somente desfazer a reunião e capturá-los, mas punir todos os “vizinhos
protetores”, que amparavam e prestavam solidariedades aos negros fugidos. A
liderança das fugas cabia a “negros portugueses”:
[...] em orden ala exterminacion de baxios negros portugueses que son
los que aun biniendo a esta ciuidad los condusen y los llevan quellos
donde existen ya formado su poblacion. Segun noticias pocitibas que
Sean tomado se baxias perzonas, desuerse que para fomentarse y man-
tenerse saquean y roban las sementeras y panados e las haciendas ca-
benzias, prejudicando de este modo a tanto a Republica que lamentan
este estrago (...) [grifo nosso] (ABNB, MyCh 195-10, 11, 11v. – sobre
escravos minas na Bolívia, 1786).

Fugidos dos domínios portugueses, agora negros – crioulos ou africanos


–, estavam à frente da formação de ajuntamentos que, no território português,
eram denominamos “quilombos”. Curiosamente, a estratégia de manutenção
de tais espaços mencionada nas cartas guardava estreita semelhança com
os espaços formados em território luso-brasileiro: incursões às vizinhanças,
sedução de negros que ainda se mantinham em cativeiro e, principalmente,
alianças externas com outros moradores – aqueles que prestavam “solidarie-
dade” aos negros. Sobre estas últimas, as cartas não informam em que medida
se davam as alianças, mas, certamente deveriam envolver produtos agrícolas,
em vista da conhecida alcunha de bons agricultores que possuíam negros
provenientes das terras lusitanas.
Uma bandeira, então, fora autorizada por autoridades de La Plata e final-
mente foram enviados soldados à região. Entre os capturados, vários apare-
ceram identificados como “emigrados de Portugal”, como os irmãos Lorenzo
Chavez e Ignacio. Ao proceder ao interrogatório, constataram que eles, afri-
canos da costa da Mina, haviam fugido das minas do Cuiabá e que eram
escravos de Manuel Diablo. Adentraram os domínios da Espanha pelos Chi-
quitos e, posteriormente, passaram ao Vallegrande (ver Mapa 2). Ignacio de-
clarou que exerciam o ofício de peões nas fazendas da região. Na descrição
dos irmãos, apontava-se que aparentavam uma idade em torno de 25 anos,
com características físicas “robustas” e que Ignácio provavelmente estava en-
fermo, pois apresentava febre.

100
Segundo consta no inquérito, vários apreendidos se declararam “livres”.
Assim, para procederem à soltura de quem fosse legalmente livre, as autori-
dades começaram por escrever cartas à capitania de Mato Grosso, a fim de
identificarem os fugitivos, os quais seriam devolvidos à América portuguesa.
Algumas décadas mais tarde, especificamente no ano de 1809, os cativos
fugitivos de Cuiabá e Mato Grosso voltaram a causar preocupação às autori-
dades castelhanas. Naquele ano, face à forte instabilidade política decorrente
das guerras napoleônicas na Europa, fora descoberto um plano de tomada de
Santa Cruz de la Sierra, a qual contaria com a participação de negros fugidos
dos domínios lusitanos, escravizados e indígenas chiriguanaes. A conspiração
contava com dezenas de envolvidos e, dias antes da sua execução, fora dela-
tado. A repressão se seguiu com mortes, aprisionamentos e a organização de
um inquérito investigativo pelo Cabildo da cidade,87 onde foi apurado que
uma parte significativa dos participantes da conjura era formada por negros
fugitivos da capitania de Mato Grosso (ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos
de Santa Cruz”, 1809, fl. 5). Foi o caso de Antonio Gomes, Manuel Francisco
Martin Claro e Mateo Apósteles.
Em requerimento de liberdade, Antonio argumentou que recebera tratamento
intolerável e cruel durante a prisão, afirmando que constantemente recebia açoites,
assim como os demais prisioneiros. Declarava ter “emigrado” do reino de Portugal
e desde então vivia na região na condição de livre, servindo ao rei da Espanha como
soldado. Antonio dizia ser um “absurdo” ameaçarem-no de devolução a Portugal,
uma vez que já até havia combatido Portugal em ações militares. Em suas palavras:

[...] es intolerable La hostilidad  y crueldad con que ami y ami conpaneros


nos trata el indicado panadero contipundonas com asotes como a
presidiários. Y senor, vine a buscar La protecion e (sic) para que en Sta
Crus imputando tumulto, huivimos noticia que nos aphicienron remitir
al Brasi, e donde emigramos al Servicio y amparo del nosostro monarca
El Rey de La España, aquien siempre hemos servido de soldados contra
los bárbaros, y aun contra nuestra mesma nacion [...]. (ABNB, EC1809-8,
“Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl.5).

É interessante observar, em Antonio Gomes, não somente a ausência de


qualquer apego às estruturas políticas do reino de Portugal, mas também pelo
fato de até já tê-lo combatido. Certamente, em solos dominados por portugueses,
não conseguira vislumbrar possibilidade de uma vida com autodeterminação.
Continuou a sua representação reafirmando a sua lealdade ao rei da Espanha e
suplicando que fosse posto em liberdade, pois havia deixado mulher e filhos em

87 O Cabildo se tratava de uma unidade administrativa municipal da estrutura colonial portuguesa.

101
Santa Cruz de la Sierra. Colocava-se à disposição e, para se ver livre da prisão, se
fosse preciso pagaria fiança, que “daria como muita satisfação”.
O processo dos conjurados de Santa Cruz de la Sierra de 1809 segue com vá-
rios depoimentos que demonstram, além da sede de liberdade dessa população
cativa que se evadia de Cuiabá e entornos, à visão de que a América espanhola
pudesse representar uma terra livre do grilhões.88
***
A história da escravidão em Cuiabá, a despeito das grandes contribuições
nas últimas décadas, ainda carece de maior aprofundamento. Percebemos
que quando os estudos acerca da temática não ficam encastelados nos cír-
culos universitários, pouco são exitosos no despertar de interesse às novas
gerações para o conhecimento da história da população afrodescendente. Os
desafios são grandes, especialmente aos historiadores, pois é preciso mais
do que nunca debater as desigualdades socioeconômicas e raciais no Brasil
e, estudos que versam sobre a escravidão fornecem, por excelência, dados
para essa reflexão. Ao fim deste breve artigo, desejamos ter contribuído para
percepção da história da Cuiabá dos 300 anos a partir do ponto de vista dos
sujeitos, homens e mulheres, que romperam os grilhões da escravidão.

REFERÊNCIAS

DOCUMENTAIS

DOC.1 – AHU, Mato Grosso, Cx. 11, doc. 658, de 17 de novembro de 1761.
DOC. 2 – AHU, Mato Grosso, Cx. 11, doc. 709, rolo 11, de 15 de setembro de 1763.
DOC. 3 - AHU, Mato Grosso, Cx. 11, Doc. 660, 1761, rolo 11.
DOC.4 - ABNB, MyCh 195-10, 11, 11v. – sobre escravos minas na Bolívia, 1786
DOC. 5 - ABNB, EC1809-8, “Sobre los sucesos de Santa Cruz”, 1809, fl. 5.

BIBLIOGRÁFICAS

ALENCASTRO, Aníbal. Cuyabá: Histórias, Crônicas e Lendas. Cuiabá: Yangraf, 2003.


DÁSKALOS, Alexandre. Poesia. Lisboa: Editorial Minerva, 1961.
FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO, Alexandre Vieira; SILVA, Daniel Domingues.
Aspectos comparativos do tráfico de africanos no Brasil (séculos XVIII e XIX).
Salvador. Afro-Ásia, n. 31, 2004.
HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder
político, Portugal (século XVII). Coimbra: Almedina, 1994

88 Na tese de Rodrigues (2015), especialmente no sexto capítulo, consta a análise da conspiração


de 1809 e um debate acerca da errónea ideia da América espanhola enquanto terra de liberdade.

102
OLIVEIRA, Paulo Humberto de. Escravos nos anúncios dos jornais cuiabanos
(1870-1888). Monografia (Conclusão do curso de graduação em História –
Universidade Federal de Mato Grosso; Instituto de Ciências Humanas e Sociais;
Departamento de História, 2007.
RODRIGUES, Bruno Pinheiro. Homens de Ferro, Mulheres de Pedra: resistências
e readaptações identitárias de africanos escravizados. Do hinterland de Benguela
aos vales dos rios Paraguai-Guaporé e América espanhola – fugas, quilombos e
conspirações urbanas (1720-1809). Tese (Doutorado em História) – Universidade
Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2015.
RIBEIRO, Alexandre. O tráfico atlântico entre a Bahia e a Costa da Mina: flutuações
e conjunturas (1683-1815). LOCAL. Estudos de História, vol. 9, nº 2, p. ____, 2002.
SENA, Ernesto Cerveira de. Representantes de governo, povos indígenas e outros
atores na zona fronteiriça de Bolívia e Brasil ? 1825-1879. LOCAL. Revista Eletrônica
da ANPHLAC, v. 15, p. 5-36, 2013a.
______. Fugas e reescravizações em região fronteiriça – Bolívia e Brasil nas primeiras
décadas dos Estados nacionais. Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 39, n. 1, p.
82-89, jan/jun. 2013b.
SILVA, Jovam Vilela da. Mistura de cores: políticas de povoamento e população na
Capitania de Mato Grosso (século XVIII). Cuiabá: EdUFMT, 1995.

Mapa 1 – fluxo de fugas da Capitania de Mato Grosso para as Missões dos Mojos
e Chiquitos e Paraguai

Fonte: LORDELO, Monique Cristina de Souza. Escravos Negros na fronteira oeste da Capitania de
Mato Grosso: Fugas, capturas e formação de quilombos (1748-1796). Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal de Mato Grosso – Programa de Pós-Graduação em História, 2010

103
Mapa 2 – Cuiabá, os povos Chiquitos e Santa Cruz de la Sierra (1778)

Fonte: Autor desconhecido. “Mappa de Cuiaba, Matogrosso y pueblos delos indios Chiquitos y
Santa Cruz” (1778). Disponíel em <http://bndigital.bn.br/acervo-digital>. Acessado no dia 15 de
janeiro de 2015.

Gráfico 2 – Estimativa de importação de escravos provenientes da África Central


Atlântica e da Costa da Mina pelo Brasil, 1700-1810.

Fonte: CURTIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade: a census. Madison: Wisconsin University
Press, 1969, p. 207.

104
Tabela 1 – Mapa dos adventícios e escravos fugidos da Capitania de Mato Grosso
(1771)

Fonte: Disponível em <www.cmd.unb.br>. Acessado no dia 25/03/2015. Disponível também


em LORDELO, Op. Cit., p. 113.

105
A FACE INDÍGENA DE CUIABÁ

Verone Cristina da Silva89

Este artigo propõe analisar a participação indígena na configuração so-


cioeconômica e cultural de Cuiabá, Mato Grosso, ao longo do século XIX. As
fontes de pesquisa são os relatos escritos de cronistas e viajantes do século
XIX e XX, Relatórios de Presidentes de Província e da Diretoria Geral dos
Índios, os Processos-Crime, o material cartográfico e ainda um relato oral 90.
Desde sua fundação como Vila Real do Bom Jesus, em 1º de janeiro de
1727, Cuiabá se consolidou como um núcleo de povoamento, tendo sido
influenciada pela política do Diretório Pombalino da década de 1750. No
século 19, os indígenas da província foram reunidos em novos aldeamentos
administrados pelo Estado, em atendimento à política imperial para a civiliza-
ção, povoamento e ordenamento das terras do Brasil.
A documentação pesquisada registra a atuação indígena em diferentes
acontecimentos sociais e políticos na capital de Mato Grosso, reivindican-
do serviços de saúde, na Santa Casa de Misericórdia, aprisionados na cadeia
pública, tripulando embarcações de viajantes estrangeiros e expedicionários
pelo rio Cuiabá e rio Paraguai, comercializando produtos pelas ruas, traba-
lhando em casas de particulares, participando de festejos, intervindo nas po-
líticas públicas e fixando moradias nas imediações da cidade. É importante
considerar que a população de Cuiabá se formou, predominantemente, por
índios, negros escravizados, libertos e seus descendentes.
O governo metropolitano, em disputa com a América Espanhola, instalou
a sede do governo, em 1752, em Vila Bela da Santíssima Trindade e somente
em 1835 a capital foi transferida para Cuiabá. Entre os anos de 1818 e 1821,
Cuiabá recebeu de Vila Bela da Santíssima Trindade, através de transferência,
a junta da Fazenda, o Desembargo do Paço e a Casa da Fundição do Ouro.
Em 1828 já possuía a maior densidade demográfica em relação aos demais
núcleos populacionais, assim como reunia requisitos de maior liderança eco-
nômica e militar de Mato Grosso. Em 1833, passou a sediar o Bispado da
província de Mato Grosso, criado pelo Bispo Dom José Antônio dos Reis no

89 Mestre em História e Doutora em Antropologia. E-mail: veronecristinadasilva@gmail.com


90 As citações esboçadas neste artigo estão transcritas na escrita portuguesa, de acordo com a
grafia do período e da documentação pesquisada. Em relação à grafia dos povos indígenas,
sigo a regra da Associação Brasileira de Antropologia, de escrever o etnônimo e nomes dos
povos indígenas com letra maiúscula, facultando-se o uso de minúscula em seu uso adjetival e
a de não flexioná-los em número e gênero.

107
ano de 1826 e, em 1835, pela Lei Provincial nº 19, de 28 de agosto, Cuiabá foi
declarada capital da província (PERARO, 1998, p. 4).
A configuração espacial de Cuiabá, em meados do século XIX, estava
constituída pela freguesia da Sé e pela freguesia de São Gonçalo. A Sé era
o seu núcleo central, e ali foram edificados os principais prédios públicos,
igrejas, logradouros e o largo da Matriz. À sua frente encontrava-se a casa da
Câmara, com cadeia no andar térreo. Ao lado esquerdo da Matriz estava o
largo do Palácio, de frente ao prédio que abrigava a residência do presidente
de província e a sede do governo. Nesses largos situavam-se os prédios da
Tesouraria, do Correio e do Comando das Armas.
A freguesia de São Gonçalo de Pedro II incluía o Porto Geral que, jun-
tamente com o rio Cuiabá, servia para trânsito, comunicação com as demais
províncias e fora responsável pelo comércio, cuja dinâmica possibilitou o
surgimento de aglomerados de casas em suas imediações. Esta freguesia era
ligada ao largo da Matriz pela rua conhecida como Caminho do Porto, mas
que recebeu o nome de Rua Bela do Juiz (atual Treze de Junho), onde as
construções eram mais nobres.
A área de abrangência de Cuiabá incorporava também as freguesias rurais
de Nossa Senhora das Brotas (transferida para Nossa Senhora do Rosário do
Rio Acima em 1864), Santo Antônio do Rio Abaixo, Nossa Senhora da Guia,
Nossa Senhora do Livramento e Santana da Chapada dos Guimarães (FREIRE,
1998, p. 23-24).
A partir da década de 1840, os povos indígenas serão classificados pelo
Governo Imperial segundo a capacidade para sua catequese e civilização,
por meio de aldeamentos administrados pelo Estado e missionários da Or-
dem Menor dos Frades Capuchinhos Italianos, conforme o “Regulamento da
catequese e civilização dos índios”, Decreto n. 426.
A catequese tinha como propósito a modificação dos hábitos indígenas
mediante práticas e ensinamentos cristãos, entre eles o batismo, o matrimô-
nio, os exercícios de piedade; a educação regular nas escolas, com aulas de
latim e português; atividades orientadas para homens, entre elas a agricultura,
a sapataria e alfaiataria e, para as mulheres, a costura e o artesanato.91 Havia
um recurso anual destinado à distribuição de foice, machado, facão e enxada,
mas também de gêneros alimentícios e material escolar, como lápis, tinta,
papel, tecidos e instrumentos musicais.
No ano de 1846 foi criada a Diretoria Geral dos Índios de Mato Grosso,
com sede em Cuiabá, para efetivar o Regulamento Imperial de 1845, que
previa a implantação, o financiamento e controle dos aldeamentos indígenas,

91 APMT. Livro de Registro da Diretoria Geral dos Índios. Ano 1848 – 1860.

108
com apoio do Presidente da Província, da Chefatura de Polícia e da Tesoura-
ria da Fazenda.
A Tesouraria da Fazenda era responsável pelos recursos financeiros des-
tinados aos aldeamentos e à civilização dos indígenas, entre eles, cotas e
despesas dos materiais encaminhados aos aldeamentos, para suprimento de
alimentação e diárias concedidas aos indígenas que se deslocavam à Cuiabá,
pagamentos dos empregados dos aldeamentos e dos indígenas que presta-
vam serviços públicos à Província.
A Chefatura da Polícia, criada pela Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841,
atuava no controle e fiscalização dos aldeamentos indígenas. Através do Re-
gulamento nº 120, de 1842, os chefes de polícia, juízes municipais, delegados
e subdelegados executavam ações relacionadas com os processos criminais.
Este Regulamento já previa que o Chefe de Polícia de cada província deveria
residir na capital, ser nomeado pelo imperador e escolhido dentre os desem-
bargadores ou juízes de direito.
As questões relativas aos povos indígenas, aldeados ou não, se formaliza-
ram como assunto militar e de responsabilidade da polícia, especialmente nas
infrações às normas legais e morais, ou ainda diante de atitudes resistentes à
formação de aldeamentos administrados por leigos contratados pelo Estado;
a polícia agia atemorizando os indígenas, obrigando-os a trabalhos forçados
e penas de reclusão92, sendo que as reclamações eram encaminhadas pelo
diretor de aldeia ao diretor geral e, deste, ao chefe de polícia, através de ofí-
cios e relatórios.
A polícia detinha o controle dos registros de batizados, recrutamento
e fugas, agressões, mortes, contratos de trabalho, passaportes de desloca-
mentos de indígenas para outras províncias e daqueles que se dirigiam à
Cuiabá.
A Chefatura de Polícia, a Diretoria Geral dos Índios, a Tesouraria da Fa-
zenda e o Presidente da Província trabalhavam conjuntamente para assegurar
a civilização dos índios e na garantia da ordem na Província. Desse modo, a
formação de um Estado Imperial supervisor, burocrático e militar se instaurou
fortemente na capital de Mato Grosso.
As fontes históricas deste estudo registram um aumento importante de
indígenas pelas ruas de Cuiabá, no século XIX, sendo possível considerar a
presença de Guaná (Aruak), Chamacoco (Zamuco), Paresi (Aruak), Bakairi
(Karib), Kadiwéu (Guaikuru), Guató (Guató), Apiaká (Tupi-Guarani), Tere-

92 APMT. Código do Processo Criminal de primeira instância. Regulamento n. 120 de 31 de janeiro


de 1842. Regula as partes policial e criminal da Lei n. 261 de 3 de Dezembro de 1841.Araujo
Filgueiras Junior - Bacharel em Direito. Tomo II. Rio de Janeiro. Eduardo & Henrique Laemmert
Rua Ouvidor, 66, 1874.

109
na (Guaná/aruak), Laiana (Guaná/Aruak), Kinikináo (Guaná/aruak), Kaiapó/
Mebêngôkre (Jê), Bororo (Macro-Jê). Contudo, os Guaná tiveram uma carac-
terística diferenciada, pois estabeleceram um aldeamento nas imediações do
Porto Geral da capital93.
O viajante francês Francis Castelnau, em sua obra Expedição as Regiões
Centrais da América do Sul, expressou curiosidade em razão da imensa
quantidade de indígenas pelas ruas de Cuiabá, pertencentes a várias etnias,
sendo a maioria procedente das margens do rio Paraguai (CASTELNAU, 1949,
p. 164). Registrou o deslocamento do subgrupo Laiana e quatorze Terena
de Miranda para a capital, acompanhados de dez Guaikurú. Esses indígenas
foram identificados pelo delegado de Polícia que, após cadastrar um deles e
seu pertencimento étnico, encaminhou-os ao Comandante das Armas, para
ações militares94.
Ainda nesse mesmo período, cinco Chamacoco residentes na margem do
rio Paraguai se dirigiram a Cuiabá, considerados os primeiros daquele povo
a conhecer a capital. Segundo a documentação pesquisada, esses indígenas
solicitaram proteção ao Diretor Geral dos Índios contra os Kadiwéu (Guai-
kurú). A solução determinada foi o aldeamento de duzentos Chamacoco nas
imediações da freguesia de Albuquerque (Mato Grosso do Sul), para onde
seguiram, portando dois ofícios: um deles seria entregue ao diretor da aldeia,
Manoel José de Carvalho, e o outro ao missionário capuchinho, Frei Antonio
de Molineto, para a formação de um aldeamento. Além dos ofícios, o diretor
geral de Cuiabá apetrechou com doze machados, doze facões, dez enxadas,
trinta anzóis, vinte espelhos, oitenta e cinco panos de algodão e vinte fuzis
para o início do aldeamento.95
A presença dos Kaiapó em Cuiabá também foi registrada nos documentos
oficiais de 1858; as famílias já estavam aldeadas, mas alguns indivíduos foram
mantidos no Arsenal de Guerra (atual SESC Arsenal), por descumprimento de

93 Os Guaná que examino neste estudo são conhecidos na documentação histórica por Exoaladi,
Chooronó, Chualas e pertencem à família lingüística Aruak. No século XVIII, esses índios
migraram do Chaco Paraguaio para a margem esquerda do rio Paraguai, Mato Grosso do
Sul, influenciados pelo processo de colonização espanhola e pelas relações interétnicas com
outros povos indígenas. O etnólogo Roberto Cardoso de Oliveira observa que foram quatro
os subgrupos Guaná que atravessaram o rio Paraguai: Terena, Laiana, Kinikináo e Exoaladi
- este último também conhecido por Guaná, o que, segundo o autor, provoca confusões
por coincidir com a denominação do conjunto dos subgrupos Guaná. Os Terena e Laiana
ocuparam a margem direita do rio Paraguai, no sul de Mato Grosso e construíram suas
habitações em Miranda. Os Kinikináo e Guaná, em sua maioria, habitaram Albuquerque.
Quanto à denominação “Guaná”, Oliveira observa: “não era o nome pelo qual aqueles índios a
si mesmos se chamavam senão uma designação especial, dada pelos conquistadores espanhóis
aos grupos Txané da bacia do Paraguai”.
94 APMT. LATA 1858 D. Ofício do subdelegado Caetano da Silva Albuquerque a João Baptista,
Capitão Secretario. Miranda, 1º de julho de 1858.
95 APMT. Ano: 1848-1860, p. 41. Livro de Registro da Diretoria Geral dos Índios.

110
um contrato de prestação de serviço, fato que resultou na punição do indíge-
na através de trabalhos forçados.96
Os Paresi de Diamantino também percorriam as ruas da capital e no ano
de 1871 foram recebidos na Diretoria Geral dos Índios com alimento, pólvora
e espingardas para caça.97 Os Bakairi receberam o mesmo tratamento dado
aos Paresi, pois, além de alimentos e objetos, o Diretor Geral dos Índios
ordenou que a eles fossem entregues outros suprimentos por intermédio da
Tesouraria da Província.98
O povo indígena Terena já realizava incursões a Cuiabá, mas, a partir do
final do século XIX intensificou o seu deslocamento com diferentes objetivos:
reivindicar alimentos, buscar tratamento de saúde e outras necessidades junto
à Diretoria Geral dos Índios. O povo Terena participou de forma mais direta na
Guerra da Tríplice Aliança (1864 -1870), tendo sido requisitados pelas tropas
brasileiras para atuar no conflito integrados à Guarda Nacional. Os comandan-
tes convocaram aproximadamente sessenta Terena atiradores que, juntamente
com trinta Kinikináo, formaram um batalhão (TAUNAY, 1929, p. 120).
Visconde de Taunay relata que a vila de Miranda foi saqueada e incen-
diada e os habitantes de dez aldeamentos dos Guaná armaram-se na região,
portando lanças, chuços, espadas, espingardas e clavinas para enfrentar a
ocupação paraguaia. O cronista narra que vários aldeamentos foram destru-
ídos e a Serra de Maracaju foi abrigo dos indígenas foragidos. Afirmou que
muitos deles passaram por privações e após sentirem a carência de sal ini-
ciaram a exploração dos “barreiros” e outros terrenos salitrosos que por lá
abundavam. Os paraguaios tomaram a vila de Miranda em janeiro de 1865, e
a abandonaram em fevereiro do mesmo ano (TAUNAY, 1931, p. 19-36).
Durante a década de 1870, os Terena que residiam em Miranda se deslo-
caram para Cuiabá, com o seu capitão, o qual reivindicou junto à Diretoria dos
Índios, medicamentos, gêneros alimentícios e dinheiro. Onze Terena teriam che-
gado à Cuiabá no dia cinco de novembro; mais seis no dia nove de novembro;
quatorze em trinta de novembro de 1871 e finalmente três Terena migraram para
a capital em junho de 1878. Os documentos versam sobre despesas com diárias e
rolo de fumo, concedidos aos índios da comitiva do Capitão Alexandre Bueno.99

96 APMT. Ano: 1848-1860, p. 41. Livro de Registro da Diretoria Geral dos Índios.
97 APMT. LATA 1871 A. Ofício. Illmo. e Exmo. Senr. Tene. Corel. Francisco José Cardoso Junior, Dig-
mo. Presidente desta Província. Antonio Luiz Brandão – Director Geral dos Índios. Dois meses após
este registro retornam mais oito Paresi em Cuiabá aos é recomendada a distribuição de brindes e
gêneros alimentícios. Ver em, Directoria Geral dos Indios em Cuiabá, 21 de setembro de 1871.
98 APMT. LATA 1871 A. Directoria Geral dos Indios, 11 de junho de 1871 ao Illmo. e Exmo. Corel.
Antonio de Cirqueira Caldas ao Vice Presidente presidente da província Antonio Luiz Brandão
e Inspetor da Tesour. De Fazenda.
99 APMT. LATA 1878 A .Todos estes dados encontram-se no Livro de Registros da Diretoria Geral

111
A presença do subgrupo Terena destinava-se à formação de expedições
para o aldeamento de índios classificados de “selvagens”. O capitão Alexan-
dre Bueno, com mais setenta indígenas Terena de Miranda, teriam participa-
do do aldeamento dos Bororo Coroado.100
Em toda a Província foram adotadas estratégias contra os índios “bravos
e selvagens”, especialmente em Cuiabá e seus distritos. Os relatórios pro-
vinciais apresentam mapas e indicações de lugares potenciais de passagem
desses indígenas pelo rio Cuiabá e na foz do rio Coxipó-Açú para baixo, no
Curralinho e Bom Jardim, Chapada dos Guimarães, Nossa Senhora da Guia,
Brotas, Santo Antônio Rio Abaixo e Diamantino. O relatório registra também
o número de mortos, distribuição de armas e organizações das expedições. A
Diretoria Geral dos Índios buscava municiar e orientar os moradores não in-
dígenas, os indígenas aldeados e os integrantes dos destacamentos militares
para que participassem voluntariamente das expedições.
Ao mesmo tempo em que a administração provincial planejava e finan-
ciava expedições para o aldeamento dos índios classificados como selvagens,
lançava mão, de outros procedimentos com os índios mansos instalados em
Cuiabá, com fins comerciais. Foi o caso dos Kadiwéu de Albuquerque, que
frequentavam constantemente a capital e ali permaneciam durante meses no
Porto. O Presidente da Província determinou a edificação de um galpão para
seu abrigo, argumentando que prestavam serviços ao comércio e que perma-
neceriam meses no porto, sujeito às intempéries.101
As edificações e intervenções na cidade constavam nos códigos de pos-
tura que regulamentavam as práticas tidas como nocivas, especialmente as
oriundas de coletivos pobres, indígenas e negros, cujo comportamento, clas-
sificado de patogênico, deveria ser modificado por meio de normas técnicas e
sanitárias, evitando, desse modo, contaminações. Com este propósito, novas
estradas foram abertas, aterramento de quintais e canalização de cursos de
água empreendidos, fixação de lugares apropriados para cemitérios, hospi-
tais, comércio, moradias, mercado, entre outros102.
O espaço público de Cuiabá foi descrito, no ano 1827, pelo desenhis-
ta Hércules Florence, integrante da expedição russa Langsdorff, da seguinte
maneira:

dos Índios 1860-1873, p. 79, 81 a 82.


100 Relatório do Presidente da Província Sr. João José Pedrosa. Nº 11 em 1 de outubro de 1879, p.185
101 APMT. Fala com que o Exmo. Sr. Vice-Presidente Tenente Coronel José Leite Galvão abrio a 2
sessão da 23 Legislatura d’Assemblea desta Provincia de Mato Grosso . Cuyabá, 1881, p. 18.
102 APMT. Registro das falas Presidenciais apresentadas à Assembléia Legislativa Provincial. Assunto:
Culto Público. Relatório de Presidente da Província de Mato Grosso nº 2, 1841 a 1852. p. 4 .

112
O único passeio que tem a cidade é o meio quarto de legua de extensão
que vai ter ao porto. Ahi so se vêm 15 ou 20 casas, algumas canoas, Guanás,
Caburés; negros e mulatos (FLORENCE, 1929:90).

O rio Cuiabá é farto de pescado, sobretudo de junho até fins de dezembro.


Então é o alimento principal do povo. Pesca-se muito pacú, dourado,
piraputanga, piau, piracaxiara, giripoca, palmito, cabeçúdo, corimbatá, peixe-
rei, etc. Apanham-se tantos que os bois, cavalos e pretos ou Guanás que vão
curvados ao seu peso vendel-os pela cidade. (FLORENCE, 1929, p. 94-95).

O Porto Geral era lugar de chegada e partida de muitos indígenas, habi-


tantes das margens do rio Paraguai, tendo sido descrito pelo sargento-mor
Luís D’Alincourt, com as seguintes características:

Junto a este porto acha-se um largo rectangular ornado de casas, e


vizinho ao barranco, da parte direita, olhando para o rio, um armazem
pertencente a fazenda publica, que serve de deposito geral aos viveres,
para d’ali se fornecerem a legião de linha, pedestres, hospital e presidios
da fronteira do Paraguay; á testa d’elle existe um almoxarife, subordinado
ao entendente dos armazens [...] (D’ALINCOURT, 1826, p. 346).

Segundo este último autor, seguindo do porto para a área central da cida-
de avistava-se a capela de São Gonçalo e, em frente a ela, do outro lado da
rua, a casa de pólvora. Na margem direita do rio Cuiabá havia algumas casas
e dali percorria-se uma estrada para Vila Maria (Cáceres), S. Pedro d’El Rey
(Poconé) e Mato Grosso (Vila Bela da Santíssima Trindade).
Em 1844, o viajante Francis Castelnau relatou que a população de Cuia-
bá era de sete mil habitantes, enquanto a paróquia – que incluía a Fregue-
sia do Porto – possuía ao todo de dez a doze mil habitantes. Só no Porto
havia, aproximadamente, seiscentos habitantes (CASTELNAU, 1949, p. 162).
O rio Cuiabá servia para o trânsito de pessoas e embarcações, mas
também das boiadas, tocadas a grito por homens, em suas pequenas ca-
noas. As suas margens eram ocupadas por famílias de agricultores que
cultivavam milho, arroz e feijão para consumo próprio e, ainda, para os mo-
radores da freguesia da Sé e de Diamantino (D’ALINCOURT, 1826, p. 225).
Os cultivos poderiam ser vistos nas margens dos rios, nas matas, nas serras,
nos capões e nas capoeiras, tanto em Cuiabá quanto no restante da província.
Nos meses de junho e julho, as matas escolhidas para o plantio eram derruba-
das com foice, machado e enxada. Já nos meses de agosto e setembro ocorriam
as queimadas, para beneficiar a terra, sendo que as cinzas serviam como adubo
(D’ALINCOURT, 1826, p. 348).

113
Os habitantes de Cuiabá secavam a carne bovina ao sol, antes de ser con-
sumida, o que garantia sua conservação. A criação do gado bovino era feita por
particulares residentes em Vila Bela, Diamantino, Cuiabá, Vila Maria (Cáceres),
Fazenda São Lourenço, Miranda, Caiçara e demais Freguesias do Sul da Provín-
cia. Os porcos eram criados soltos, até que completassem um ano, sendo em
seguida recolhidos ao chiqueiro, onde se alimentavam de abóboras e sobras de
alimentos, e por fim eram abatidos para o consumo da população, sendo sua
banha utilizada no preparo de alimentos (D’ALINCOURT, 1826, p. 258).
Os principais produtos comercializados em Cuiabá eram a aguardente, o al-
godão descaroçado e em ramas, o arroz em casca e pilado, o açúcar branco e o
mascavo, o azeite de mamona e o de peixes; a carne de boi, o café, a carne seca, a
farinha de mandioca, a farinha de milho, o fumo enrolado, a ipecacuanha e o fei-
jão.103 Os produtos de exportação consistiam no gado, panos de algodão, couros de
boi, peles de onça e de veado, ouro em pó, diamante e ipecacuanha, os quais eram
enviados preferencialmente para o Rio de Janeiro (CASTELNAU, 1949, p. 168).
Até a década de 1870, os produtos encaminhados para a província de São
Paulo seguiam pelos rios Taquari, Coxim, Pardo, Paraná e Tietê, passando por
Camapuã, e aqueles que se deslocavam para o Pará ou de lá vinham para o Mato
Grosso seguiam a rota dos rios Guaporé e Madeira, Arinos e Tapajós.104 Um dos
produtos oriundos do Pará e que muito agradava os habitantes de Cuiabá, era o
guaraná, encontrado às margens do Tapajós. Francis Castelnau descreveu o gua-
raná consumido como chá e utilizado em Cuiabá na cura da diarreia e disenteria.
O óleo dos peixes piquiri e lambari era um produto muito importante
na iluminação das moradias e ruas da capital. Sua fabricação ocorria no pe-
ríodo da seca, especialmente no mês de setembro, quando os pescadores
ocupavam as praias do rio Cuiabá e armavam suas barracas temporárias; ali
aguardavam o anoitecer para se dispersarem pelo rio em canoas utilizadas na
captura das espécies. Os pescadores batiam nas bordas das canoas um movi-
mento ritmado que atraia os peixes desejados e, em seguida, os levavam para
terra firme, a fim de serem cozidos em grandes panelas. Após o cozimento,
o óleo concentrado na água fervida era armazenado. Outro recurso utilizado
pelos moradores de Cuiabá era o couro da jiboia, indispensável na confecção
de bolsas e botas (CASTELNAU 1949, p. 224-286).
Alguns hábitos da população de Cuiabá foram descritos por Francis Cas-
telnau (1949, p. 165) como dignos de nota, entre eles, o “[...] batuque e as
vergonhosas orgias”. Para Karl Von Den Steinen (1942, p. 68), o jogo seria

103 APMT. LATA 1871. A. Pauta dos preços correntes dos gêneros sujeitos a dizimo nos Mercados
desta Capital, e que vigorara nos dias que decorrerem de 12 a 18 do corrente mês. Cuiabá, 1871.
104 APMT. Relatório de Presidente da Província de Mato Grosso nº 2, 1841 a 1852, p. 56.

114
um “[...] vício generalizado e motivo de desavenças, brigas e mortes”. Este
viajante comentou desconhecer outra cidade onde a prática de tocar música,
dançar e jogar baralho fossem tão intensos quanto em Cuiabá. Lembrou que
a população levantava estandartes nas procissões e misturava os rituais das
missas com os prazeres sociais.
Certamente, Cuiabá possuía um estilo particular que atraía a curiosidade
dos viajantes e ao mesmo tempo o estranhamento daqueles que a visitavam.
As narrativas apresentam concepções de um grupo em relação a outro, em
muitos casos, preconceituosas e etnocêntricas.

O ALDEAMENTO DOS GUANÁ EM CUIABÁ E SUA INFLUÊNCIA NA


FORMAÇÃO DA CIDADE

Procuramos demonstrar que o espaço social de Cuiabá se organizou a par-


tir das práticas e relações de seus habitantes indígenas e não indígenas. Nesta
parte, farei breves considerações sobre o povo indígena Guaná, tendo em vista
que formaram um aldeamento no entorno do Porto de Cuiabá, promovido pelo
missionário José Maria Macerata, com apoio do Presidente da Província.
As descrições do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira sobre os Guaná
já os identificavam como agricultores que cultivavam milho, feijão, batata,
cana, mamão, banana, abóbora, melancia e ainda colhiam arroz bravo, em
excursões pelos lagos e pantanais, além de criarem cavalos, à semelhança
dos Guaikurú, estabelecendo trocas e intercâmbios junto a outros povos, es-
pecialmente com os últimos citados, cuja relação foi designada pelo natura-
lista como “reciprocidade”.105
O engenheiro Luiz D’Alincourt descreveu os Guaná como povos merece-
dores de atenção, cujas práticas seriam economicamente viáveis à província,
o que com que recomendasse mudança nas formas de tratamento desses
índios, através de métodos menos guerreiros e mais políticos. Advertiu às
autoridades que mantivessem boas relações com os chefes principais, con-
siderando importante resguardar a amizade desses índios. Tais procedimen-
tos garantiriam os provimentos necessários às guarnições, o que asseguraria
aumento da produção e possivelmente lucro sobre as plantações dos Gua-
ná, que permaneceriam nos lugares das suas habitações; reforçou sobre a
necessidade de sempre lembrar dos sofrimentos vividos por essa etnia no
confronto com os Guaikurú, a fim de tornarem-se seus inimigos e atuarem
menos a seu favor.

105 Alexandre Rodrigues Ferreira. Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro,
Mato Grosso e Cuiabá. Memórias Antropológicas. 1974, p. 78.

115
Nesse mesmo período, G. I. von Langsdorff caracterizou os Guaná como
agricultores, tecelões e fabricantes de mantas de algodão – conhecidos por
“panões” – com os quais se vestiam. Além de belos e resistentes, eram im-
permeáveis à chuva, servindo muitas vezes para cobrir os acampamentos da
expedição. Numa conversa entre Langsdorff e um Guaná, o viajante observou
que os panos não eram trocados por nada: nem por facas, nem por macha-
dos, tampouco por tecidos finos de algodão, se reportando às “relações de
vizinhança” dos Guaná com os Guaikurú, algumas consideradas mais con-
flituosas e outras menos. Comentou, também que, embora falassem dialetos
distintas, esses dois povos entendiam-se mutuamente.
O segundo desenhista da expedição Langsdorff, Hércules Florence, se
referiu aos Guaná como pescadores, prestadores de serviços na província
de Mato Grosso e possuidores de alguns engenhos de moer cana. O dese-
nhista lembrou que os produtos fabricados por eles eram comercializados
em diferentes localidades, dentre elas Albuquerque, Miranda, Coimbra,
Corumbá, Cuiabá e circunvizinhanças; que estes índios realizavam cons-
tantes viagens individuais ou em grupo para Cuiabá, a fim de estabele-
cerem algum tipo de troca. O deslocamento para a capital era feito em
15 dias, e os Guaná iam e vinham em suas próprias canoas, realizando
paradas em alguns lugares.
Florence descreveu em seu diário a arte e a trama do tecido dos Guaná106,
chegando, inclusive, a traçá-lo em papel com o seguinte comentário:

As mulheres usam o pano enrolado à cinta e caindo até os joelhos;


qualquer que seja o tempo usam do panão ou para se resguardarem
dos pés à cabeça ou então preso muito apertado por cima dos seios,
mostrando-se assim menos nuas que os homens. As vezes também
cobrem com ele os ombros e deixam-no cair até meia canela. Já as
roupas dos homens cifram-se, num pano que enrolam como tanga e
atado à cintura, caindo, quando muito, até aos joelhos e num pedaço
de fazenda quadrado regular ou puxando mais para o comprido,
o qual tem no meio uma abertura por onde enfiam a cabeça e que
não lhes resguarda mais que os ombros, peitos e espáduas. Quando
sentem frio, cobrem-se com um panão que, sendo grande, pode dar
duas voltas inteiras ao redor do corpo.107

106 Em alguns desenhos traçados por Hércules Florence é possível ter uma clara ideia da tecelagem
dos Guaná. E aqui vale lembrar as valiosas observações de Thekla Hartmann sobre os desenhos
de índios realizados por Florence - raros documentos sobre os índios brasileiros do século XIX,
nos quais se pode confiar.
107 Hércules Florence. 1977, p. 106.

116
O desenhista observou que o procedimento, a técnica e os utensílios das
mulheres Guaná na fabricação dos panões eram os mesmos das mulheres
cuiabanas no tecer redes: “As mulheres de Cuiabá que fazem redes seguem
o mesmo sistema. Para concluírem uma de duas varas em largura e compri-
mento, consomem seis ou mais dias”.108
O relatório manuscrito do missionário José Maria Macerata, que trabalhou
na catequese dos Guaná, afirma que teria sido na década de 1840 que Guanitá,
o capitão dos Guaná, e Miguel Vaapú, o capitão dos Kinikináo, reivindicaram
apoio do religioso para solucionar os problemas ocorridos em suas aldeias,
como a decadência da missão, a demolição da igreja, o abandono das ativida-
des escolares pelos setenta meninos que recebiam a catequese109 e os ataques
constantes dos Guaikuru.

Figura de Hércules Florence, ca. 1827.

Fonte: Mario Carelli, 1992, p.44

108 Ibidem.
109 APMT. Lata 1832 A. Missão de Albuquerque, 27 de setembro de 1832.

117
Diante destes acontecimentos, o missionário procurou o Presidente da
Província e solicitou providências para os Guaná, por considerá-los “úteis
ao governo”, argumentando que suas atividades110 seriam importantes para a
economia da capital e da província. A solução encontrada foi a concessão de
terras localizadas de frente ao Porto Geral de Cuiabá, a fim de que ali fundas-
sem uma aldeia com segurança e proteção. Os Guaná e os Kinikináo de Albu-
querque111 ocuparam as terras dispostas na margem direita do rio Cuiabá, um
pouco abaixo do Porto Geral, na Freguesia de Pedro II, atualmente o lugar é
denominado Alameda Júlio Müller, pertence ao município de Várzea Grande.
Augusto Leverger localizou a aldeia dos Guaná em Cuiabá e relatou que
ela ocupava um espaço próximo à cidade, constituída pela maioria dos indí-
genas que viviam em Albuquerque e aqueles que se encontravam pela cidade
empregando-se em diferentes atividades, bem como pelos distritos de Cuia-
bá, trabalhando em pequenas propriedades – “sítios” 112.
A política de aldeamento dos Guaná teve como principal resultado a plu-
ralidade das atividades profissionais desses índios e o aumento da prestação
de serviços remunerados. Vejamos no quadro seguinte as atividades realiza-
das pelos Guaná em Cuiabá e na província de Mato Grosso:

110 IHGB. Lata 763, Pasta 19. Ofício de José Maria Macerata ao Cel. Zeferino Pimentel Moreira
Freire, Presidente da Província de Mato Grosso, enviando o seu trabalho: Descrição das diversas
Nações de Indios. Relação das diversas nações de índios que presentemente habitam a diocese
de Mato Grosso pelo Bispo de Cuiabá, José Antonio dos Reis. Cuiabá 5 – 12 e 24 – 8 de 1843 –
34 p.. Arquivo. Coleção: Virgílio Corrêa Filho.
111 Até o ano de 1810, Albuquerque foi ocupada por uma Fazenda Pública formada de pastagem
para a criação de gado e pelas habitações dos índios Guaná. Em 1819, esses índios foram
reunidos pelo capuchinho José Maria de Macerata, na Missão de Nossa Senhora da Misericórdia,
conhecida por “Missão de Albuquerque”, ou a “Albuquerque dos índios”, onde a agricultura
foi incentivada para o fornecimento de alimentos aos demais habitantes da fronteira. Em
1826, passou a Povoado e no ano de 1827 foi escolhida para o estabelecimento do primeiro
Comando Geral da Fronteira do Paraguai. Em 1850, Albuquerque passou à categoria de Vila, e
os documentos oficiais a identificam de “Albuquerque Nova”, para que não fosse confundida
com “Albuquerque Velha”, a antiga Povoação de Albuquerque, localizada ao norte, atualmente
município de Corumbá. (APMT. Lata 1825).
112 Augusto Leverger. Roteiro da navegação do rio Paraquay desde a foz do S. Lourenço até o
Parana. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Tomo XXV.
Ano 1862. Roteiro da Navegação do Rio Paraguay. Desde a Foz do S. Lourenço até o Paraná.
Pelo capitão da armada nacional a imperial Augusto Leverger. Cuyabá, 21 de Outubro de 1847:
219 a 223.

118
Quadro 1 – Atividades realizadas pelos Guaná em Cuiabá e na Província de
Mato Grosso

Atividades realizadas pelos Guaná Ano Fontes de Pesquisa


Possuem engenhos, são fabricantes de
peças de roupa, cintas, suspensórios, cilhas
de cetim, costuras e tabaco e vendedores 1825 a Hércules Florence
em Cuiabá, onde se empregavam nas 1829 (1997)
plantações ou moendas e pescadores que
comercializam o pescado
Produzem tecidos de algodão e panelas
de barro, compram alimentos em Cuiabá, Barão de Langsdorff
como toucinho, carne-seca, sebo e solas de 1826
couro, vivem da pesca e da venda dos seus (1997)
produtos e artefatos
Negociantes de gêneros alimentícios 1831 APMT. LATA 1831 A
Trabalham em medição do nível da água do
1833 APMT. LATA 1833 B
rio Paraguai para o comando militar
Tripulantes de canoa e batelão, serviços de
correio através do rio Paraguai até o Cuiabá.
1834 APMT. LATA 1834 A
Trabalham em batelão, transportando
pessoas até Cuiabá a serviço do Quartel.
Remam canoas dos negociantes que se
dirigem para a província de São Paulo,
trabalham nos engenhos Serra Acima, 1843 MACERATA (1843)
transportam cargas, caixas e canoas do porto
geral para o centro da cidade de Cuiabá.
Remadores e trabalhadores de engenhos de
1845 CASTELNAU (1949)
açúcar nas margens do Cuiabá.
São jornaleiros, tripulantes de canoas e
servem na navegação da Província para o 1847 LEVERGER (1862)
seu interior e para São Paulo.
Trabalham na extração da poaia e nos
1851 APMT. LATA 1851
ajustes da navegação
Participam de expedições contra outros APMT. Diretoria
índios e estão vinculados à Companhia de 1857 Geral dos Índios 1848
pedestres e ao Arsenal de Guerra 1860 e Avulsos
Empregam-se como trilhadores de estradas 1857 APMT. LATA 1857 D
Trabalham no corte de lenha, carpintaria, APMT. LATA 1858 C
serviços da Estação Naval e descargas de navios 1858

Camaradas e tripulantes de canoas da capital APMT


1862
até o Baixo Paraguai. Correspondências

119
Prestam-se a toda classe de serviços,
agricultura, outras necessidades e pequenas 1863 BOSSI (1863)
indústrias
Realizam atividades de caça, pesca e criação
1869 MOUTINHO (1869)
de galinhas
Realizam serviços de marcenaria em Cuiabá 1901 SCHMIDT (1903)
Fonte: SILVA. Verone Cristina. Missão, aldeamento e cidade: os Guaná entre os Albuquerque e
Cuiabá. Dissertação (Mestrado em História) – Cuiabá: Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
UFMT. 2001, p. 111.

Entre os anos de 1900 e 1901, o etnólogo alemão Max Schmidt encontrou


os Guaná na margem direita do rio Cuiabá, colheu o vocabulário dos velhos
que falavam a língua nativa e observou que entre os jovens predominava a
língua portuguesa, embora compreendessem termos e variações nativas:

Do porto de Cuiabá, capital do Mato Grosso, se avista na margem oposta


um pouco abaixo algumas pequenas cabanas sobressaindo do verde da
margem, que estão habitadas por índios Guaná. Em cerca de 20 minutos
a pequena povoação pode ser alcançada com uma canoa. O material
lingüístico da língua guaná a seguir é resultado de uma visita, que eu fiz
nos últimos dias de agosto do ano de 1901 a estes índios de Cuiabá113.

Do ponto de vista da sociedade envolvente, os Guaná se constituíam


enquanto grupo diferenciado e suas experiências consideradas importantes
para o desenvolvimento da capital de Mato Grosso. Do ponto de vista dessa
etnia, estabelecer relações e trocas com diferentes grupos étnicos, em posi-
ções sociais distintas era, aparentemente, uma de suas particularidades, rea-
firmada no princípio da reciprocidade e da hierarquia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do aldeamento dos Guaná em Cuiabá, intensificou-se sua presen-


ça na cidade, compondo uma parcela específica da população. Suas ativida-
des estiveram vinculadas aos serviços considerados necessários no espaço
citadino. Para tanto, desempenharam trabalhos especializados no ramo da
navegação, marcenaria, sapataria, pescaria, fabricantes de redes e panelas,
prestando serviços remunerados aos demais habitantes da capital.
Os Guaná interagiram no interior da cidade através de diferentes formas de
sociabilidade com a população da capital e arredores de Cuiabá. Identificados

113 Max Schmidt. Guaná. In: “Zeitschrif fuer Ethnologie”, 1903, apresentado numa Reunião na
Alemanha em 15 de novembro de 1902. Tradução: Ivo Schroeder.

120
como índios, receberam tratamento semelhante ao dado à população pobre, com
atributos negativos. Os deslocamentos realizados pelos Guaná levaram famílias
inteiras para vários distritos de Cuiabá, quase sempre nas proximidades de rios
e córregos. Nesse sentido, tais movimentos podem ser considerados tanto como
rupturas, mas também manifestações de permanência de saberes e práticas.
Muitas famílias foram identificadas por Francis Castelnau trabalhando em en-
genhos de cana-de-açúcar, às margens do Coxipó-Mirim e no Município de Barão
de Melgaço, até o rio Piraim. Os processos-crime registraram famílias de Guaná
vivendo no Município de Santo Antônio do Leverger, distante 30 km a jusante de
Cuiabá, em moradias próprias e participando de festejos públicos. Os Guaná fo-
ram também para Chapada dos Guimarães e para as margens do rio Aricá-Açú.114
O mapa de Cândido Mariano da Silva Rondon localizou moradia dos Gua-
ná nas proximidades dos rios Pari, Espinheiro e Bandeira – todos afluentes
do Cuiabá – provavelmente transitando e vivendo em lugares como Nossa
Senhora da Guia, Passagem da Conceição, Nossa Senhora do Livramento e
no denominado Olaria.115 No mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendajú, eles
foram localizados próximos ao Coxipó.116
As terras ocupadas pelos Guaná foram diversas vezes invadidas por particu-
lares, tendo seus habitantes expulsos e a posse contestada, porém assegurada
por ordem do Presidente da Província. No ano de 1901, quando Max Schmidt
visitou os Guaná em Cuiabá e colheu o seu vocabulário, havia muitas famílias
e descendentes que permaneceram nas terras, identificados como indígenas.
E, ainda ano de 1997, entrevistei ribeirinhos e pescadores nativos das mar-
gens do rio Cuiabá e um homem chamado Boamorte Manoel de Campos, consi-
derado um dos mais velhos da Alameda Júlio Müller, em Várzea Grande, afirmou
ser filho de índios Guaná, e que o lugar onde residia teria sido uma aldeia. Expli-
cou que sua família era de Albuquerque – hoje localizada no Pantanal de Mato
Grosso do Sul – e havia migrado para Cuiabá acompanhado por outros indíge-
nas; com o apoio do governo, instalou-se na margem direita do rio Cuiabá, atual
município de Várzea Grande, antigo Terceiro Distrito da Capital.117

114 APMT. Ofício do Director Geral dos Índios General Alexandre Manoel Ambino de Carvalho, ao
Illmo.e Exmo. Snr. Presidente da Província, Alexandre José Leite. Registro da Correspondência
Oficial da Diretoria Geral dos Índios. Ano 1860-1873, 29 de julho de 1865, p. 59 v., nº 191.
115 Cândido Mariano da Silva Rondon. Carta do Estado de Mato Grosso e Regiões Circunvizinhas,
organizada e desenhada no Serviço de Conclusão de Carta de Mato Grosso (Ministério da
Guerra, Estado maior do Exército), sob a direção geral de S. Exa. Sr. Gen. de Div. Cândido
Mariano da Silva Rondon e Direcção Grafica Executiva do Ge. Francisco Jaguaribe Gomes de
Mattos, de acôrdo com as circunstâncias e os elementos abaixo indicados. Projecção policônica
Americana. Escala – 1:1.000.000, 1952.
116 IBGE. Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendaju. Rio de Janeiro: Fundação Nacional Pró-
Memória, 1981.
117 Entrevista com Boamorte Manoel de Campos, Alameda Júlio Muller, Várzea Grande, 20/07/1997.

121
O exemplo dos Guaná mostra como foi necessário que aprendessem a
conviver com forças controladoras, de pessoas e de espaços, incorporando-as
na sua cosmovisão, em suas práticas e saberes. No momento em que se deu o
esfacelamento dos povos indígenas, através dos aldeamentos administrados
pela Província e pela Diretoria Geral dos Índios, mas também das expedições
punitivas aos índios selvagens e da apropriação das terras indígenas, os Gua-
ná souberam lidar com os poderes constituídos, negociando, fugindo, trocan-
do, reivindicando, deslocando-se, reinventando saberes e práticas e tecendo,
a partir das próprias experiências, a sua história.

Fonte: SILVA, Verone Cristina. Missão, aldeamento e cidade: os Guaná entre os Albuquerque e
Cuiabá (2011, p.132).

122
REFERÊNCIAS

ENTREVISTA

Fonte oral e manuscrita:


Entrevista com Boamorte Manoel de Campos, Alameda Júlio Muller, Várzea Grande,
20/07/90.

DOCUMENTAÇÃO

APMT Lata 1832 A. Ofício de Nuno Anastacio Monteiro de Mendonça para o


Presidente da Província Antônio Corrêa da Costa. Quartel do Commando Militar
em Albuquerque, 27 de setembro de 1832.
APMT Lata 1833 B. Ofício de Joze Rufo de P. Capm. Comme. Militar ao Illmo. e
Exmo. Senr. Vice-Prezidente Andre Gaudie Ley. Quartel de Albuquerque, 15 de
julho de 1833.
APMT. LATA 1832 A. Missão de Albuquerque, 27 de setembro de 1832.
APMT. Relatório de Presidente da Província de Mato Grosso nº 2, ano 1841 a 1852: 56.
APMT. LATA 1858 D. Ofício do subdelegado Caetano da Silva Albuquerque a
João Baptista, Capitão Secretario. Miranda, 1º de julho de 1858.
APMT. Livro de Registro da Diretoria Geral dos Índios. Anos 1848-1860.
APMT. LATA 1871 A. Pauta dos preços correntes dos gêneros sujeitos a dízimo nos
Mercados desta Capital, e que vigorara nos dias que decorrerem de 12 a 18 do
corrente mês.
APMT. LATA 1871 A. Ofício. Illmo. e Exmo. Senr. Tene. Corel. Francisco José
Cardoso Junior, Digmo. Presidente desta Província. Antonio Luiz Brandão –
Director Geral dos Índios. Dois meses após este registro retornam mais oito Paresi
em Cuiabá aos é recomendada a distribuição de brindes e gêneros alimentícios.
APMT. Código do Processo Criminal de primeira instância. Regulamento N. 120
de 31 de janeiro de 1842. Regula as partes policial e criminal da Lei n. 261 de 3 de
Dezembro de 1841. Araujo Filgueiras Junior - Bacharel em Direito. Tomo II. Rio de
Janeiro. Eduardo & Henrique Laemmert Rua Ouvidor, 66, 1874.
APMT. Ofício do Director Geral dos Índios General Alexandre Manoel Ambino
de Carvalho, ao Illmo. e Exmo. Snr. Presidente da Província, Alexandre José
Leite. Registro da Correspondência Oficial da Diretoria Geral dos Índios. Ano 1860-
1873, 29 de julho de 1865., p. 59 nº 191.
APMT. LATA 1871 A. Ofício da Directoria Geral dos Indios, 11 de junho de 1871 ao
Illmo. e Exmo. Corel. Antonio de Cirqueira Caldas ao Vice Presidente da província
Antonio Luiz Brandão e Inspetor da Tesour. da Fazenda.
APMT. LATA 1878 A. Livro de Registros da Diretoria Geral dos Índios 1860-1873,
p. 79, 81 a 82.

123
APMT. Fala com que o Exmo. Sr. Vice-Presidente Tenente Coronel José Leite Galvão
abrio a 2 sessão da 23 Legislatura d’Assemblea desta Provincia de Mato Grosso.
Travessa dos voluntarios da Patris nº 14. Cuyabá, 1881, p. 18.
APMT. Cândido Mariano da Silva Rondon. Carta do Estado de Mato Grosso e
Regiões Circunvizinhas, organizada e desenhada no Serviço de Conclusão
de Carta de Mato Grosso (Ministério da Guerra, Estado maior do Exército),
sob a direção geral de S. Ex. Sr. Gen. De Div. Cândido Mariano da
Silva Rondon e Direcção Grafica Executiva do Ge. Francisco Jaguaribe
Gomes de Mattos de acôrdo com as circunstâncias e os elementos abaixo
indicados. Projecção policônica Americana. Escala – 1:1.000.000, 1952.
APMT. Registro das falas Presidenciais apresentadas à Assembleia Legislativa
Provincial. Assunto: Culto Público. Relatório de Presidente da Província de Mato
Grosso nº 2, ano 1841 a 1852, p. 4.
IHGB. LATA 763. PASTA 19. Ofício de José Maria Macerata ao Cel. Zeferino
Pimentel Moreira Freire, Presidente da Província de Mato Grosso, enviando o
seu trabalho: Descrição das diversas Nações de Índios. Relação das diversas
nações de índios que presentemente habitam a diocese de Mato Grosso pelo
Bispo de Cuiabá, José Antonio dos Reis. Cuiabá 5-12 e 24-8 de 1843, 34 p.. Arquivo.
Coleção: Virgílio Corrêa Filho.
REIS, José Antonio dos. Descrição das diversas Nações de Indios. Relação das
diversas nações de índios que presentemente habitam a diocese de Mato Grosso
pelo Bispo de Cuiabá, José Antonio dos Reis. Cuiabá 5 – 12 e 24 – 8 de 1843 – 34 p.
Arquivo. Coleção: Virgílio Corrêa Filho.

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Separata do Tomo XVI da Revista do Museu Paulista, São Paulo, Diário Official,
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Dissertação (Mestrado em Comunicação e Artes). Universidade de São Paulo, 1998.
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LEVERGER Augusto Roteiro da navegação do rio Paraquay desde a foz do S. Lourenço
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Komissarov e outros. Campinas; Associação Internacional de Estudos Langsdorff; Rio
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IBGE. Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendaju. Rio de Janeiro: Fundação
Nacional Pró-Memória, 1981.
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Capitania de Mato Grosso - Século XVIII). Cuiabá: EdUFMT, 1995.
SILVA. Verone Cristina. Missão, aldeamento e cidade: os Guaná entre os
Albuquerque e Cuiabá. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências
Humanas e Sociais, UFMT, 2001.
TAUNAY, Alfredo D’Escragnolle de. Em Mato Grosso invadido (1866- 1867). São
Paulo: Melhoramentos, 1929.
____. Entre Nossos Indios 1864 – 1865. São Paulo: Melhoramentos, 1931.

125
MANUEL ALVES RIBEIRO E O PREDOMÍNIO
POCONEANO EM CUIABÁ: RELAÇÕES LOCAIS,
NACIONAIS E INTERNACIONAIS

Ernesto Cerveira de Sena118

Logo depois de assumir como governante de Mato Grosso, em agosto de


1843, o vice-presidente Manuel Alves Ribeiro escreveu para o ministro dos
Negócios Estrangeiros e membro do Conselho de Estado, Hermeto Carneiro
Leão, com o principal intuito de comunicar-lhe sua recente posse, além de
confirmar sua lealdade ao Império. Tal comunicação, dizia, era o seu “mais
vigoroso e sagrado dever”, e acrescentava, substituíra o Silva Guimarães, re-
cém-exonerado da presidência pelo governo central119.
Esse momento (1843), essa atitude (escrever para o Ministério dos Negó-
cios Estrangeiros) e esse evento (a posse de Manuel Alves Ribeiro), depois
da queda de Silva Guimarães, desfecharam numerosos acontecimentos e ten-
dências político-sociais que vinham ocorrendo na província de Mato Grosso
desde quando houve uma cisão intraelites, em 1834. Tal movimento, de certa
forma, se solidificou em 1843, prolongando-se até fins dessa década e inícios
da de 1850, quando o poconeano Manuel Alves Ribeiro e seus seguidores fo-
ram fragorosamente derrotados nas urnas e na predileção do governo central
sobre quem ocuparia as principais instituições sediadas em Cuiabá. Assim,
este texto, ao tratar do exercício político desse personagem, a partir da ca-
pital, Cuiabá, ou visando a ela, pretende contribuir para tornar perceptíveis
aspectos essenciais da formação dos estados nacionais na América Ibérica
em meados do século XIX, procurando mostrar como a construção partidária
foi operada nessa região, e também analisar as relações periferias/centro e
regionais/nacionais, além de tratar de algumas especificidades da província
fronteiriça o que a vinculava à política internacional do Império, tal como a
escravidão negra e o trânsito pela bacia platina.
Seguramente, nos últimos anos muito foi publicado sobre a escrita bio-
gráfica enquanto recurso de narrativa histórica para entendimento de proces-
sos sociais. Aqui, ao se buscar a trajetória de Manuel Alves Ribeiro, sobretudo

118 Professor de História da América na Universidade Federal de Mato Grosso. Doutor em História
Social e das Ideias pela UnB.
119 APMT. Vice-presidente da província de Mato Grosso, Manuel Alves Ribeiro, para o Ministro dos
Negócios Estrangeiros, Hermeto Carneiro Leão. Cuiabá, 2 de janeiro de 1843.

127
em dado período, não necessariamente procura-se exemplificar categorias
sócio-históricas específicas, tais como caudilhos ou elites políticas, já bas-
tante tratadas. Embora úteis para se perceber uma configuração social e cor-
roborar para observar uma trajetória, se atenta principalmente para os vários
graus de jogos políticos e a determinados processos de subjetivação, focando
em uma pessoa que passou a se postar frequentemente de maneira desafia-
dora, tanto em relação aos governos provinciais e instituições locais quanto
ao governo central, mesmo que dentro de certa margem de ação. Ao mesmo
tempo, procuramos sua atuação frente às “demandas nacionais” junto aos
países vizinhos, considerando a extensa área de fronteira que, como o Impé-
rio, iniciavam suas reconfigurações políticas e territoriais pós-independência.
Pontua-se aqui, de muitas maneiras de se pesquisar e escrever sobre
História, a escolha de tratar parte das elites políticas, e, sobretudo, de um
de seus membros, está longe de defender ou de mostrar ser prescindíveis
outras visões ou maneiras de investigação, como “a História vista de baixo”,
caso ainda ocorra simplória divisão; ou ainda que, ao tratar de pessoal de
determinado grupo social, seria necessariamente o “apagamento” de outro,
como se uma abordagem fosse antagônica ou excludente à outra. Pelo con-
trário, de certa maneira, tratar da historicidade de qualquer pessoa de dado
grupo corrobora para o entendimento de outras esferas. É difícil conceber
que um dado indivíduo e seu agrupamento poderiam ter sua constituição
e dinâmica, apartados de outros, ou mesmo entender “indivíduo e socieda-
de” como se não se influíssem mutualmente, cujos graus de autonomia e
dependência são sempre desafiadores de se projetar, caso não impossíveis
de determina-los precisa e exatamente120.
De toda forma, ao tratarmos de Manuel Alves Ribeiro nos referimos a um
membro das elites políticas provinciais, as quais, frisamos, eram constituídas
pelos homens públicos que ocupavam cargos institucionais, ou neles pro-
curavam influir. Ao mesmo tempo, eram esses que faziam a representação
de que os destinos de sua região, ou mesmo de seu país, estavam atrelados
aos seus próprios. No caso aqui tratado, os diversos habitantes seriam seus
devedores, na medida em que a província seguiria os rumos da “ordem” e
da “civilização”, palavras caras no século XIX, que deveriam unir o “local”
ao “nacional”; sendo ao mesmo tempo os componentes de escol os merece-
dores de marcas de prestígio, como comendas, cargos de mando, enquanto
procuravam caracterizar seus adversários do espaço público (que ia se cir-
cunscrevendo, cada vez mais, aos grupos partidários instituídos) como su-
postos inimigos do projeto monárquico. O projeto era a empresa construtora

120 Ver, essencialmente, ELIAS (1994).

128
e consolidadora de um país que mantinha como seus os principais ativos
das próprias elites politicas, no caso de Mato Grosso: o acesso a terras, mão
de obra (tanto escrava quanto indígena, além de pobres livres), linhas de
comércio, e, notadamente, a reserva para ocupação de postos públicos nas
províncias. O “reconhecimento” social e político era a tônica possivelmen-
te ainda maior do que os ganhos financeiros, por vezes lembrando mais o
chamado “Antigo Regime” do que um sistema baseado nominalmente em
instâncias liberais.
Isso, no entanto, não queria dizer que não ocorreu uma participação con-
siderável dos habitantes na grande inovação, que eram as eleições para os
representantes legislativos provinciais e gerais, além de oficiais da Guarda
Nacional, indo além das votações municipais121. Isso acontecia ao lado de
nomeações exclusivas dos regentes ou do imperador para as localidades,
como os presidentes de província e determinados juízes. Por mais que fos-
sem fraudulentas ou viciadas as eleições, essas novidades políticas possibili-
taram a ascensão de novos homens públicos, como Manuel Alves Ribeiro, e a
“queda” de outros, sobre os quais as novas instituições e formas de disputas
partidárias tiveram grande peso.

UM POCONEANO EM CUIABÁ: INSERÇÃO POLÍTICA E


PARTIDÁRIA

Na década de 1830, quando Ribeiro começou sua vida pública, ainda não
havia partido político reconhecido como agrupamento institucionalizado.122
De toda forma, uma das possibilidades abertas para a inserção política no
novo país que se configurava era a eleição para juiz de paz, que se dava nas
paróquias das vilas. Tal forma de magistratura era prevista desde a Consti-
tuição de 1824 e foi regulamentada logo depois, em 1827. Era uma maneira
de exercício de poder local, em contraposição aos poderes centrais ou de
nomeação imperial. Esse tipo de magistrado julgaria pequenas causas, de-
vendo primordialmente promover a conciliação entre as partes. Não havendo
solução conciliatória, poderia processar e julgar as causas de pequena monta.
A ele também competiria, dentre outras coisas, “manter a ordem nos ajunta-
mentos”, colocando sob custódia os bêbados, interrogando os delinquentes e
enviando-os presos ao juiz competente, caso averiguada a culpa. Também ti-
nha como uma das funções expedir grupos armados para destruir quilombos,

121 Consultar DOLHNIKOFF (2017).


122 Embora houvessem sociedades políticas, inclusive algumas com abrangência nacional. (ver
GUIMARÃES (2001); e SIQUEIRA (2002).

129
depois de sua localização. Essa forma de juizado não era remunerada e não
necessitava de formação prévia, como curso de Direito.123 Por outro lado, era
uma ocupação que demandava ter contato com muitas pessoas da sociedade
na qual o juiz estava inserido. Assim, não era de se estranhar a escolha desse
juizado para iniciar a vida política.
Foi esse caminho que Ribeiro tomou para se integrar na política, ao se
candidatar a juiz de paz. No lugar de escolher a sua terra natal, Poconé, como
era de esperar, optou por Vila Bela, virtual capital, para iniciar a arbitragem
eletiva. Mudou-se dessa última para Cuiabá quando a mesma se tornou capi-
tal efetiva, em 1835, decorrente de lei aprovada pela Assembleia Legislativa
(MESQUITA, 1942). Vila Bela foi alçada à categoria de “Cidade”, sob a deno-
minação de Cidade de Mato Grosso (uma espécie de compensação por ter
deixado de ser, de uma vez por todas, cabeça de província).
No entanto, outro espaço de poder local surgia de maneira avassaladora
em termos de disputa eleitoral e representação política, deixando a magis-
tratura eletiva menos expressiva politicamente: era a Assembleia Provincial,
uma das pontas de lança das mudanças descentralizadoras promovidas
pela Regência, que assumiu a direção imperial depois da abdicação de D.
Pedro (1831). Ela abrigaria deputados eleitos (no caso de Mato Grosso, ini-
cialmente vinte) na própria província, em substituição aos Conselhos Provin-
ciais, tendo como prerrogativa legislar sobre uma série de assuntos, como
segurança, além de votar sobre as despesas e receitas da respectiva provín-
cia124, o que acabou sendo matéria de muita contenda entre os presidentes
da província, representante do Executivo, e os políticos eleitos localmente.
A assembleia provincial mato-grossense se configurou como o principal es-
paço para os homens públicos defenderem seus interesses sociais e econômicos,
tornando-se território por excelência para que as elites locais pudessem firmar
suas posições de destaque, e para o exercício político na região. No entanto, é
notável que 1.185 eleitores votaram em 161 pessoas diferentes para a deputa-
ção provincial.125 Já no ano 1862, por exemplo, quando a ideia de composição
partidária estava consolidada, foram votadas 32 pessoas para 22 vagas para a
câmara provincial126. Era uma diferença considerável que expressava, no mínimo,
o fortalecimento dos partidos institucionalizados em comparação aos meados da
década de 1830, quando os agrupamentos políticos eram, amiúde, chamados
de facções, termo não necessariamente pejorativo, como veio se tornar depois.

123 Ver RODYCZ, (2003) E SANTOS (2014).


124 TAPAJÓS (1984).
125 Pode ter contribuído para isso, como mostra Nicolau (2002) o fato de precisar oficializar uma
candidatura ou se filiar a um grupo político.
126 Instituto Memória do Poder Legislativo. Ata de Eleição para a Câmara Municipal de Cuiabá, 1861.

130
Manuel Alves Ribeiro não foi eleito para as duas primeiras legislaturas,
ainda marcadas fortemente pela rebelião do “30 de maio”. A partir da ter-
ceira, de 1838/39127, teve início sua atuação no parlamento provincial, pas-
sando a integrar o grupo que logo seria chamado de “liberal”. A partir daí,
foi consecutivamente eleito para a Assembleia Legislativa até 1849, quando
se aventurou à deputação nacional.

OS PARTIDOS PÓS-RUSGA

O início da formação partidária em Mato Grosso está relacionado à re-


belião do “30 maio” de 1834, também conhecida por “Rusga”, eclodida em
Cuiabá, e que se alastrou para outras partes da província. Ela aconteceu em
consequência de uma cisão intra-elites, quando muitos portugueses, estran-
geiros e pessoas ligadas a eles foram seviciadas e mortas.128 É notável que
nas duas primeiras legislaturas da Assembleia Provincial um dos principais
líderes do movimento que resultou no “30 de maio” se tornasse um dos lí-
deres da nova casa legislativa. Era o cuiabano João Poupino Caldas que, no
momento oportuno pré-rebelião, assumiu a presidência provincial (na qua-
lidade de vice) e em seguida perseguiu seus antigos aliados e acobertou ou-
tros. Quando o presidente efetivo, Antônio Pedro de Alencastro (1834-1836)
chegou a Cuiabá, encontrou nele proteção para os vários descontentes com
o episódio do “30 de maio”. A situação mudou completamente com a troca
de presidente designado pelo governo central. Era Antônio Pimenta Bueno
(1836-1838), futuro Visconde de São Vicente e diplomata destacado do Impé-
rio. Suas ações foram incisivas para que Poupino Caldas procurasse deixar a
capital. Quando este estava se preparando para sair, foi assassinado.129
A atuação de Pimenta Bueno junto aos outros moradores de Mato Gros-
so foi fundamental para formar um grupo que logo viria a ser nominado
Partido Liberal, o qual procurou aglutinar pessoas expressivas e que não
fossem ligadas diretamente aos antigos promotores da Rusga, nem aos anti-
gos líderes da política cuiabana, como os Corrêa da Costa e os Gaudie Ley.
Assim, foi formada uma associação com os moradores de Cuiabá e de ou-
tros lugares distantes da capital, como Poconé, a cerca de 180 quilômetros
de Cuiabá; Miranda e Diamantino, situados a aproximadamente 900 e 200
quilômetros, respectivamente, e em direções quase opostas, além de Vila
Bela e Vila Maria, a mais de 500 e 200 quilômetros, cada qual da casa de
governo cuiabana. Um dos fatores que deve ter contribuído para o sucesso

127 A segunda legislatura, em 1837, durou somente um ano, devido aos ajustes institucionais.
128 Entre outros, ver Siqueira (2014), Lima( 2014) e Aguiar (2014).
129 Corrêa Filho (1993)

131
posterior de Ribeiro foi justamente o de ter “parentela numerosa e rica” na
maioria destes lugares130.
Assim, homens públicos do interior, sobretudo (também existiam nascidos
em Cuiabá), se antepunham às lideranças cuiabanas, e que, mesmo se consti-
tuindo como tradicionais na província desposavam o título de Liberais, os pri-
meiros, e de Conservadores, os segundos, notadamente a partir da década de
1840. Essa partidarização se dava mais por motivos de antagonismo local do que
por qualquer tendência programática. Tal propensão ao bipartidarismo também
acontecia em boa parte da América Ibérica, inclusive com base nessas duas desig-
nações, “liberais” e “conservadores”. Como mostra Malamud (2005), não existia
uma definição clara que distinguisse os dois agrupamentos que se antepunham
nos novos países ibero-americanos que estavam em processo de formação. Se de
um lado, de certa maneira, os “liberais” tendiam às reivindicações localistas, e os
“conservadores” a um governo central mais forte, não eram poucas as vezes em
que as denominações representavam muito mais adesões locais a grupos e pes-
soas do que a programas. Acrescente-se a isso as variações regionais e temporais.
No caso do Império do Brasil, Carvalho (1996, p. 200-203), em estudo
fundamental, procurou uma distinção na composição entre ambos partidos:
faziam parte do Partido Conservador “[...] burocratas, principalmente magis-
trados, e setores de proprietários rurais, principalmente do Rio de Janeiro,
Bahia e Pernambuco, além de comerciantes das grandes cidades”. O Parti-
do Liberal, por usa vez, contava com a presença de proprietários, ou advo-
gados/proprietários e médicos/proprietários, sobretudo do Sul/Sudeste, em
“Minas, São Paulo, Rio Grande do Sul”. Para o autor, essa divisão, expres-
sada desde a década de 1830, se ilustraria, por exemplo, também em 1885,
quando o ministério liberal tentou aprovar a Lei dos Sexagenários (Ibidem,
p. 204). No entanto, em página anterior, o autor alerta sobre suas hipóteses:
“[...] os partidos políticos, em sua liderança nacional, compunham-se de in-
tricada combinação de grupos diversos em termos de ocupação e de origem
social e provincial” (Ibidem, p.198). A nosso ver, a composição partidária
era ajustada ou reconfigurada na própria dinâmica política, dependendo
das pautas e dos aspectos relacionais dos atores envolvidos. Assim, seria
difícil uma caracterização que perpassasse os vários momentos do Império,
não somente o das diversas regiões.
No caso de Mato Grosso, como já assinalado, os posicionamentos em
relação ao “30 de maio” e aos políticos mais experientes de Cuiabá tiveram
peso considerável na formação dos dois grupos. Tal disposição fazia real-

130 MESQUITA (1942). Este autor, escrevendo nas primeiras décadas do século XX, exalta a
genealogia “nobre”, ligando-o praticamente às casas medievais na Ibéria, procurando maneiras
de responder positivamente sobre suas características pessoais.

132
çar a base geográfica das freguesias eleitorais, embora houvesse pessoas do
“interior” e da “capital”, tanto no Partido Liberal quanto no Conservador. O
próprio líder dos liberais, no início da agremiação, tinha sua base em Cuiabá,
mas foi a articulação das vilas e freguesias do interior que forneceu, notada-
mente na década de 1840, a força desse agrupamento.

RECONHECIMENTOS INSTITUCIONAIS E PESSOAIS

Desde o seu início, com a saída de Pimenta Bueno da casa de governo


em Cuiabá, os liberais entraram em constante choque com o presidente
de província. Enviado, ainda pela Regência em 1838, Estevão Ribeiro de
Rezende, permaneceu no cargo até 1840,131 enquanto se firmava como a
primeira liderança do grupo o cônego Silva Guimarães, sobressaindo-se
em decorrência dos conflitos entre o executivo e o legislativo provinciais.
Os embates dessas duas instâncias se relacionaram, sobretudo, em torno
das dificuldades de reconhecimentos das novas instituições políticas, assim
como de seus usos a partir delas. Assim, foram notáveis os estranhamentos
sobre a ocupação do cargo de vice-presidente da província, cujo posto,
poucos anos mais tarde, se mostrará de grande valia para o exercício polí-
tico desafiador de Manuel Alves Ribeiro.
Era previsto em lei que cada província deveria ter seis vice-presidentes.
Eles seriam eleitos pelas respectivas assembleias, ou seja, eram escolhidos
localmente e geralmente elegiam-se os próprios deputados provinciais. A
substituição do presidente, particularmente em Mato Grosso, poderia signi-
ficar alguns ou muitos meses de governo por um parlamentar escolhido na
própria província, pois, dada a exoneração ou renúncia de algum daqueles
até a chegada de um novo designado pelo governo central, seriam muitas
semanas de viagem (sem contar a possibilidade de demora na própria es-
colha e nomeação imperial), ao passo que algum dos vices assumiria ime-
diatamente.
O presidente Estevão Ribeiro de Rezende, acusado de usar artifícios
para afastar deputados das votações, ao mandá-los para “missões” fora de
Cuiabá, ao tempo que enfrentava obstáculos para aprovar a lei orçamen-
tária, via a escolha de vices pelos deputados como um atentado à “ordem
pública”. Ele desconsiderava peremptoriamente a “qualidade” dos substitu-
tos escolhidos pela Assembleia. Assim, em carta para o ministro do Império
(espécie de “Casa Civil” com ministério do Interior), Bernardo Pereira de

131 Rezende era formado em Direito no Largo de São Francisco e filho do prestigiado marquês de
Valença.

133
Vasconcelos, observava que “Eu (...) receio [sair] deste Cuiabá sob o gover-
no de vice-presidentes.”132 O primeiro vice-presidente era o cônego Silva
Guimarães, que vinha se tornando o seu mais forte opositor. Dizia que a
escolha dele como o seu principal sucessor somente se dava devido à “fa-
libilidade das eleições”. Dizia que reunia a qualidade de uma “imbecilida-
de revoltante”, “escandalosa desafeição” à “ordem necessária”, uma “vida
eminentemente imoral”, com “precedentes desonrosos à sua reputação”.
Inclusive, dizia Rezende, pregava as “vantagens da província se juntar” à
Bolívia.133
Nessa legislatura, de 1838/40, Manuel Alves Ribeiro, em seu primeiro
mandato como deputado provincial já fazia parte da lista sêxtupla de subs-
titutos no Executivo, ao mesmo tempo em que logo fora repudiado pelo
presidente. Rezende afirmava que o poconeano partilhava com outros dos
“sentimentos anárquicos” e de “nenhuma capacidade intelectual”.134 Ele e os
outros do grupo de Silva, dizia o presidente, muito possivelmente continuan-
do a exagerar, que além de não possuírem “[...] meios para viverem com inde-
pendência, nem ao menos com decência”135. Enfim, o delegado do governo
imperial dizia que eram “[...] indignos da confiança do Governo imperial e
prejudiciais à ordem pública”.136
Nas disputas entre mandatário provincial e os políticos locais, o presi-
dente tentou criar o cargo de “delegados provinciais”, para assegurar o que
entendia por “ordem”. A maioria da Assembleia, em represália, conseguia
obstruir os trâmites deste e de outros projetos do Executivo. Para antepor-
-se a Rezende, o grupo escreveu carta formal para a Corte solicitando sua
exoneração. O mesmo fez a Câmara Municipal de Poconé, reduto de Manuel
Alves Ribeiro, ao apresentar uma representação contra o presidente junto ao
governo central.137

132 AN. IJJ (9). Estevão Ribeiro de Rezende para Ministério do Império. Cuiabá, 10 de março de
1840.
133 Ibidem.
134 Sobre esse início de vida legislativa de Ribeiro, 8 anos mais tarde o então presidente de
província Joaquim José de Oliveira acusou o poconeano de ter tentado assassinar Estevão
Ribeiro de Rezende. Não encontramos outra referência a isso. De toda forma, Oliveira foi o
principal opositor de Ribeiro.
135 Em suas formas típicas da primeira metade do XIX, o liberalismo previa a participação política
do cidadão virtuoso, na qual somente seria possível se a pessoa não fosse “dependente” ou
“serva” de outra. Isso pode ser percebido por muitas constituições das Américas e europeias.
136 AN. IJJ (9). Estevão Ribeiro de Rezende para Manoel Antônio de Miranda, ministro do Império.
Cuiabá, 3 de julho de 1840. Notar: tais desconsiderações, como será visto adiante, por vezes
servia para o contrário, ou seja, para “qualificar” o político regional.
137 Tal atitude da câmara de Poconé, de certa maneira, já contribuia para que Ribeiro fosse sendo
“conhecido” como força política no governo central, por mais que mudassem os partidos na
direção desse ultimo.

134
Com a assunção de ministério liberal, em consequência da antecipação da
maioridade de D. Pedro II (1840), o governo central nomeou novo presidente
para a província de Mato Grosso. A escolha recaiu justamente no cônego Sil-
va Guimarães. Parecia que as desqualificações feitas por Rezende somente o
credenciou para ser chefe do Executivo no momento em que o Partido Liberal
encerrava o período regencial.
Há vários estudos demonstrando ou sugerindo que o governo central
preferia nomear para os cargos de presidente de província pessoas que
vivessem e atuassem fora dela.138 Seria uma maneira de assegurar que o
delegado imperial não possuísse nem criasse vínculos significativos com
os moradores locais. No entanto, no caso de Mato Grosso, foram vários os
episódios em que os presidentes eram da própria região139. Nesse sentido,
muito menos estudados e referenciados são os cargos de vice-presiden-
tes, pois eles eram moradores quase sempre (se não sempre) da própria
província. Em meio às várias leis conhecidas como atinentes às reformas
centralizadoras, do início do Segundo Reinado, uma delas era referente
aos substitutos imediatos dos presidentes. Em 1840, eles deixariam de ser
escolhidos pela Assembleia Legislativa para serem nomeados pelo próprio
governo central. Tal dispositivo, à primeira vista, podia parecer mais uma
atitude intrusiva do governo nacional nas diferentes localidades. No entan-
to, tais nomeações acabaram sendo um canal expressivo de negociações,
pois continuaram eleitos os próprios habitantes da província para tal car-
go. Isso não eliminava tensões, tanto por parte das elites locais quanto do
governo central. No entanto, por um lado, aproximava os homens públi-
cos provinciais dos propósitos do Império e, por outro, fazia conhecer as
demandas desses grupos na Corte. Assim, a ocupação de tal cargo podia
refletir o reconhecimento político tanto dos grupos regionais em relação ao
governo central, quanto deste àquele.
A ascensão de Manuel Alves Ribeiro como principal líder dos liberais
é demonstrativo desse canal de comunicação, por ser a vice-presidência
instância que se colocava entre o governo central e os grupos provinciais.
O poconeano tornou-se o principal expoente político, justamente ao liderar
os liberais contra o presidente Silva Guimarães, até há pouco tempo correli-
gionário do Partido Liberal. Entre os principais pontos de divergência e atrito
estava a intensão do “delegado do Império” ser eleito para a Câmara dos De-
putados, na Corte, enquanto o grupo de Ribeiro também lançava concorrente
para a mesma deputação. O grupo chamado “liberal” acusou o presidente de

138 Ver URICOECHEA, Fernando. O Minotauro Imperial. R.J./S.P. : Difel, 1978.


139 Além de Silva Guimarães, Antônio Corrêa da Costa e o presidente que por mais tempo ocupou
o cargo, Augusto Leverger.

135
usar irregularmente suas prerrogativas governamentais na disputa eleitoral.
Como represália ao governo, barraram a votação do orçamento provincial,
além de fazerem um abaixo-assinado denunciando as “arbitrariedades” e des-
falques ao tesouro público, perpetrado pelo então presidente.140 Finalmente,
Silva Guimarães perdeu a eleição para o candidato liberal, mas ainda conti-
nuou na presidência até o final de 1842, e, ainda governando como vice, foi
nomeado pelo governo central até agosto de 1843141.
Como nos referido anteriormente, os vice-presidentes eram parte impor-
tante do jogo imperial. Assim, para a escolha dos seis substitutos não era in-
comum o governo central requisitar ao governante em exercício que listasse
as pessoas que poderiam ocupar o cargo. Destarte, Silva Guimarães nomeou
personalidades, como o bispo da cidade, José Antônio dos Reis, o capitão
André Gaudie Ley, anteriormente de grupo oponente, dentre outros, sem
mencionar qualquer liberal, como era de se esperar. No entanto, se as cor-
respondências eram exíguas, com periodicidade imprevisível, o presidente
se valia de suas poucas comunicações para desqualificar os seus opositores
e ex-aliados. Eles teriam, por exemplo, inutilizado o período de legislatura
por “dissenções fúteis” e, pior ainda, seriam seguidores não revelados das
rebeliões, já suplantadas, ocorridas em São Paulo e Minas em 1842. Seriam,
sobretudo, “irresponsáveis” e “anárquicos”142. Logo, jamais poderiam gerir a
província.
Quando a carta imperial chegou a Cuiabá, com predomínio de ministério
pelo Partido Conservador, nomeando os seis substitutos do presidente Silva
Guimarães, ao que parece, foi o mesmo pego de surpresa. Não somente foi
exonerado da presidência, mas, sobretudo, Manuel Alves Ribeiro foi designa-
do como seu substituto, visto ser o primeiro vice. Parecia que as reprovações
feitas por ele, e por seu antecessor, Estevão de Rezende, somente fizeram-no
credenciar, tal como aconteceu, em anos anteriores com o próprio cônego.
De fato, o governo central recompensava o poconeano por ser a principal
liderança. Não seria propriamente a afinidade partidária que interessava na-
quele momento. O traço político que demandava era, sem dúvida, aquele
que vislumbrasse a “manutenção da ordem”, sendo a melhor maneira de um
homem público e seu grupo local não parecessem temerários à construção
do Império em longínquos territórios, era delegá-los às credenciais da mo-
narquia.
140 AN (9). Abaixo-assinado dos deputados provinciais de Mato Grosso. Cuiabá, 13 de setembro de
1842.
141 Com breve intervalo de governo de Antônio Corrêa da Costa, entre o fim de 1842 e maio de
1843.
142 AN. IJJ(9);José da Silva Guimarães para José Antônio da Silva Maia, ministro do Império, Cuiabá,
1º de junho de 1843.

136
RELAÇÕES COM O EXTERIOR – ESPECIFICIDADE DA FRONTEIRA

Uma especificidade do chefe do Executivo em Mato Grosso, fosse ele presi-


dente de província ou o vice em exercício, era justamente a de tratar de assun-
tos internacionais, especialmente no momento em que as repúblicas vizinhas
do Império também passavam pelo processo de construção de seus estados
nacionais. Mato Grosso fazia divisa com as repúblicas do Paraguai e da Bolívia.
Assim, por vezes, cabia a quem a presidisse tomar medidas específicas com
relação à situação fronteiriça.
De maneira geral, a diretriz para a província bem lidar com os países
fronteiriços era guardar os limites, ainda que não definidos, e procurar evitar
a fuga de escravizados para o estrangeiro. Sem embargo e quando possível,
também deveria estreitar relações. No caso do Paraguai, o interesse era, so-
bretudo, conseguir navegar pelo Prata. Foi assim após a morte, em 1840, do
“ditador perpétuo do Paraguai”, José Gaspar Rodríguez de Francia. Como
cônsul do Brasil foi designado um morador de Cuiabá, capitão de fragata da
armada brasileira e bretão de nascimento, Augusto Leverger. Cabia à presi-
dência do momento, no caso exercido pelo vice, Manuel Alves Ribeiro, for-
necer suporte para a execução dos trabalhos consulares.
Os insucessos da tentativa de estabelecer relações de aproximação com o
país guarani são descritos no texto de Corrêa Filho sobre o “Bretão Cuiabano”.143
Cabe notar que esse serviço consular, além de apoiado pela presidência, era
por ela intermediado com o governo central. Assim, Leveger foi exonerado
desse serviço diplomático por carta enviada ao vice-presidente em exercício.
A ele, no caso, Manuel Alves Ribeiro, coube também reter, na presidência, a
numerosa documentação que estava com o navegador, a qual tinha lhe servido
para a função internacional. Ora, essas informações documentadas eram pre-
ciosas, no sentido que não era raro governantes e representantes diplomáticos
demostrarem desconhecimento sobre a variada e complexa geografia da zona
fronteiriça. Muitas vezes, representes do Império, já em plena missão em outros
países do continente americano, escreviam diretamente aos governantes de
Mato Grosso consultando-os sobre mapas, relatórios, corografias, dentre outros
documentos. Assim, podiam montar estratégias e se munir nas negociações
com os representantes dos novos Estados vizinhos. O cargo de governante de
Mato Grosso, portanto, não deixava de ser vinculado à política internacional
que, naquele momento, estava voltada principalmente para a bacia do Prata.
A área platina nos anos 1840, com seus principais afluentes, incorporava
projetos nacionais diferentes, que por vezes eram contundentemente confli-

143 Mais tarde, como já notamos, seria o mais longevo presidente de província. Sobre ele, ver
(CORRÊA FILHO 1941).

137
tantes.144 Em linhas gerais, Buenos Aires, com a figura do caudilho da Con-
federação Argentina, Juan Manuel Rosas, lutava por estabelecer hegemonia
na região, procurando estender seu poderio ao Uruguai e Paraguai (então,
considerada “província rebelde”), além do sul da Bolívia. O líder buenairense
e seus seguidores tinham por base o que teria sido o antigo Vice-Reinado do
Prata. Dessa maneira, procuravam uma centralização a partir da cidade por-
tenha, visando submeter também as províncias interioranas, como Corrientes
e Entre Rios (as quais, somente mais tarde, seriam efetivamente incorporadas
ao que veio ser a Argentina).145
A oposição brasileira a esse projeto se materializou com o deslocamen-
to de tropas e o envio de missões diplomáticas para áreas estratégicas. Os
representantes imperiais conseguiram estabelecer acordos com outros cau-
dilhos regionais, visando, sobretudo, a navegação no Prata, antepondo às
pretensões do controle de Buenos Aires. Com vistas ao fluxo fluvial, tornou-
-se fator primordial para o Império a garantia da independência do Uruguai
e do Paraguai. Seria pelos rios da Bacia Platina que se esperava integrar mais
eficientemente as províncias do interior do Império com a sua capital. Em
especial, poderia aproximar Mato Grosso do Rio de Janeiro, proporcionando
maior integração econômica e política à província possuidora de vasta área
de fronteira internacional (FERREIRA, 2009, p. 323). Desde então, até eclodir
a Guerra do Paraguai, também chamada de Tríplice Aliança (1864-1870), a
busca pela abertura da navegação platina, sem interrupções, tornou-se uma
das principais diretrizes imperiais.
Ao lado da orientação platina, outra grande diretriz da política externa im-
perial era defender a manutenção da escravidão. Enquanto os novos países
hispano-americanos acenavam para a gradativa abolição dos seus escravos
(claro, frustrando promessas de campanhas militares pró-independência), as
autoridades brasileiras incrementavam mais ainda o trabalho escravo, inclusive
desafiando a principal potência, a Grã-Bretanha, que se constituía também na
mais forte militante no Atlântico contra o tráfico negreiro (Ver TOMICH, 2011).
Desde o início da colonização Mato Grosso havia um contingente consi-
derável de escravizados oriundos da África, ou de seus descendentes. A situ-
ação de fronteira proporcionava a fuga de escravos para o “lado espanhol”,146
sem que necessariamente significasse liberdade garantida. O mesmo se deu
quando começaram os estados nacionais, pós-independência, quando, não
raro, escravizados negros de Mato Grosso tentaram a sorte no novo país ao

144 FERREIRA, Gabriela Nunes. Conflitos no Rio da Prata. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo
(Org.). O Brasil Imperial (1808-1831). V. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
145 Ver CERVO e RAPOPORT (2015).
146 Ver LORDELO (2012).

138
lado, no caso, a Bolívia, onde, em seu início, houve falsa propaganda de que
seria a “terra da liberdade”.147
Na verdade, tanto no Brasil quanto na América espanhola foram dissemina-
das promessas de alforria desde as guerras de independência, acenando com a
liberdade, ao fim do conflito, aos que combatessem (ver GRINBERG; PEABODY,
2013). No Império brasileiro, como se sabe, a escravidão durou até quase o fim
da monarquia. Já na América hispânica, o surgimento das repúblicas, nas primei-
ras décadas do XIX, não necessariamente aboliu o trabalho de negros cativos.
No caso específico da Bolívia, em 1826, seguindo os impulsos libertários das
guerras independentistas, chegou-se a sancionar constitucionalmente a “liberda-
de” dos escravizados negros, porém, outra lei complementar logo colocou obs-
táculo aos cativos (CRESPO, 1977), o que inviabilizou o fim do regime, de uma
vez por todas. A escravidão permaneceu reconhecida por autoridades internas
da República boliviana, mesmo depois de 1851, quando novamente uma carta
constitucional previa o fim da escravidão, o que ajuda a reforçar sua continui-
dade, mesmo após vários dispositivos legais anteriores. É certo que o trabalho
de negros escravizados estava longe de ser o tipo predominante. No entanto,
a República procurava se apresentar ao mundo como “solo livre” da escravi-
dão148. Essa aparente incoerência, na verdade, poupava internamente o governo
republicano de, pelo menos, se conflitar com proprietários locais. De outro, se
projetar para o exterior enquanto país que libertou a escravidão negra os apro-
ximaria da imagem de outros que seguiam os “princípios liberais”, em voga em
parte do mundo. Essa apresentação foi significativa nas relações com o Brasil,
haja vista que possuía mais de três mil quilômetros de fronteira com o Império
e muito do que era produzido em Mato Grosso estava vinculado à escravidão.
Na década de 1830, não era raro assistir os bolivianos “devolverem” es-
cravos fugidos em determinados pontos da fronteira. Também proprietários
mato-grossenses, com apoio do governo provincial, enviavam expedições
para o departamento de Santa Cruz, levando recompensas aos moradores da
República que entregassem cativos prófugos. Isso começou a mudar, acen-
tuadamente, quando, em 1841, os bolivianos deixaram de cooperar na extra-
dição de negros evadidos. Então, de um lado, passou a haver reclamações
sobre a invasão de território boliviano por expedições atrás de escravizados
evadidos; por outro, os dirigentes provinciais de Mato Grosso passaram a
reclamar veementemente o “direito” de sua propriedade.
Diante dos fracassos diplomáticos, tanto da Bolívia quanto do Império,
em estabelecer um acordo sobre limites (que nessa época, para o Império,

147 Ver SENA, (2013).


148 Ver SECRETO (2015) e REVILLA (2014), entre outros.

139
era relevante atrelá-lo às extradições, notadamente de escravizados prófugos),
em Mato Grosso, Manuel Alves Ribeiro agia, de um lado, fazendo requisições
para devolução de escravos a governantes bolivianos, e, de outro, promoven-
do “rondas” nos pontos considerados estratégicos de fuga. Assim, ao escrever
para o “chefe” da província de Chiquitos e ao prefeito do departamento de
Santa Cruz de La Sierra, como a outros dirigentes, procurava se embasar no
“Direito das Gentes”, no qual residiria “os mais sólidos princípios de justiça”,
na falta de um direito internacional que regulamentasse as relações entre pa-
íses. Seria nele que se expressaria o “sagrado direito à propriedade”149. Claro
era que o “direito das gentes” se apresentava de maneira fluida, visto conter
interesses específicos (Ver CHIARAMONTE, 2004). De tão genérico, não se
citavam nenhum de seus autores que embasavam esse tipo de código, mesmo
que amplamente incensado por dirigentes. Dessa maneira, não era raro repre-
sentantes bolivianos também recorrerem ao mesmo “direito” para deixar de
extraditar escravos.
De toda maneira, a comunicação entre o governante de Mato Grosso com
o Ministério dos Negócios Estrangeiros servia não só para informar o que se
passava na fronteira, mas também para pressionar o governo central na de-
fesa dos proprietários dessa região. Assim, recordava que devido às “[...] leis
promulgadas na República da Bolívia tiveram por fim a abolir totalmente a
escravidão”,150 com o “andar dos tempos”, elas tinham se tornado “danosas
aos moradores desta província”. Estes não teriam, segundo Ribeiro, maior
“riqueza que não fosse a escravatura”. Caso o governo central, por meio de
seus representantes internacionais, “[...] não [venha a] se esforçar para obter
[acordo diplomático sobre] a extradição dos escravos”, a república vizinha
iria continuar como atrativo às fugas. Assim, Manuel Alves Ribeiro fazia pre-
visões sombrias para pressionar o governo central: se não resolvesse esse
problema da fuga de escravos com os governantes bolivianos, o futuro da
província seria “[...] desastroso, e mui desastroso”.151
Acontecia que a Bolívia se apresentava fragilizada militarmente na sua
fronteira oriental. Então, procurou explorar o fato de o Império brasileiro se
apresentar alicerçado no trabalho escravo. Era uma carta na manga utilizada
nas relações internacionais. Como aludido, várias missões diplomáticas para
estabelecer “amizade” entre os dois países fracassaram, o que significaria, para
ambos, acordo de limites, navegação e comércio. No entanto, para o Império,
149 APMT. Correspondência de Manuel Alves Ribeiro para Prefeito do Departamento de Santa Cruz
de La Sierra. Cuiabá, 1º de setembro de 1843.
150 APMT. Manuel Alves Ribeiro de Souza ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulino José
Soares. Cuiabá, 3 de outubro de 1843. Como mostramos acima, a escravidão permanência na
Bolívia, apesar das Constituições, desde a década de 1820, preverem o seu fim.
151 Ibidem.

140
naquele momento, uma cláusula era essencial, o de extradição de escravos
prófugos. Ao mesmo tempo, ainda na época, observando a própria política na
província de Mato Grosso, o Brasil se apresentava irredutível em não abrir pos-
sibilidade de navegação platina para a Bolívia, passando por rios “brasileiros”.
Somente em 1867, quando foi assinado o primeiro acordo, a Bacia Platina,
além da Amazônica, passaram a ser franqueadas, pelo Brasil, aos bolivianos
somente depois de ter assegurada a posse dos dois lados do rio Jauru e do Pa-
raguai. Então, as fugas de escravizados já tinham saído da pauta do ministério
dos Negócios Exteriores, haja vista o fim do tráfico negreiro (novamente,
por Lei, em 1850) e a crescente impopularidade da instituição escravagista,
agravada tanto por insurreições negras quanto pelos desgastes nos conflitos
platinos. Nesse momento, ao definirem um acordo, Brasil e Bolívia,152 no
mínimo, evitaram outro ponto de tensão.
Na década de 1840, quando Ribeiro assumiu por duas vezes o comando
da província (a segunda em 1848), graças ao cargo de vice, escolhido pelo
governo central, o formato do território nacional não estava assegurado. An-
tes das conhecidas rebeliões regenciais, quando ocorreu, entre outros even-
tos, a proclamação da República Rio-grandense, o Império já tinha perdido a
Cisplatina no sul, o fantasma da secção existia e com ele se jogava na política
interna e externa. Daí, dentre as desqualificações sofridas pelos políticos de
Mato Grosso, como já visto, era a de “se juntar” a província ao país republi-
cano do lado. Outra, também relacionada à situação fronteiriça, feita por um
presidente a Manuel Alves Ribeiro, era a que pretendia “saquear a província,
e retirar-se para a Bolívia”.153
Independente de qualquer exagero ou deturpação feito por homens pú-
blicos em relação a outros, no que se tratava de assuntos internacionais, Ma-
nuel Ribeiro fez o esperado para quem ocupara o lugar que havia estado.
Procurou assegurar terrenos fronteiriços e principalmente atentou para o que
considerou a “principal riqueza” dos proprietários naquele momento, os es-
cravizados. Assim, inclusive era desgosto seu a não efetivação de um tratado
de extradição, o que se coadunava com as diretrizes imperiais. No entan-
to, se sua defesa da escravidão o credenciava para ser vice-presidente, foi
uma posterior “apropriação indevida” de negros que contribui para quebrar
sua hegemonia na província, quando um presidente nomeado pelo Império
conseguiu reunir forças, essencialmente centradas na capital, Cuiabá, para
suplantar- lhe.

152 Importante notar que a Bolívia tinha um porto no Pacífico, perdendo-o por decorrência de um
conflito com o Chile, entre as décadas de 1870 e 1880.
153 AN. IJJ(9) 507. Joaquim José de Oliveira para o Ministro da Justiça, Antônio Manoel de Campos
Mello, Cuiabá, 29 de novembro de 1848.

141
DO PREDOMÍNIO À DEBACLE

Quando assumiu o executivo provincial na categoria de vice-presi-


dente, não era difícil Ribeiro calcular que não seria por muito tempo, até
o titular ser nomeado e empreender viagem, o que demoraria de dois
a quatro meses. Assim, o grupo político do poconeano logo reuniu a
Assembleia e aprovou a lei orçamentária, cuja falta de aprovação havia
“paralisado” o presidente antecessor. Aproveitando-se da maioria no le-
gislativo, o poconeano também encaminhou lei sobre a Guarda Nacional,
que mais tarde geraria bastante controvérsia: caberia ao executivo provin-
cial nomear e demitir os milicianos. Então, Ribeiro retirou dos principais
postos aqueles ligados ao Partido Conservador, substituindo-os por seus
correligionários. Tal dispositivo, no entanto, se aumentava o poder do po-
coneado e de seu grupo, por um lado, fez com que outros presidentes, ao
chegarem a Mato Grosso, requeressem a sua anulação pela Assembleia,
mesmo os que iriam compor com o grupo liberal, a exemplo de Crispinia-
no Soares, pois a nova norma provincial era francamente contrária às leis
que regiam tal corporação. De fato, os dispositivos legais previam que os
oficias fossem eleitos nas municipalidades. Na historiografia, normalmen-
te, a década de 1850 foi o momento em que o governo central passou a
interferir na escolha do oficialato da Guarda Nacional, transformando-a
em elemento ativo do governo provincial154. No entanto, em Mato Grosso,
o presidente Pimenta Bueno, na década de 1830, já havia interferido na
Milícia Cidadã, ao afastar dos cargos principais que tiveram participa-
ção no “30 de maio” 155. De toda maneira, o cargo de comandante geral
da Guarda Nacional ficou com o próprio Manuel Alves Ribeiro, o qual
permaneceu no cargo até 1849, quando então já estava em Cuiabá um
“delegado do império” totalmente disposto (e preparado) a suplantar o
predomínio do Partido Liberal, o major Oliveira. Foi quando também esse
agrupamento passou a ser chamado de “Partido de Camapuã”.
O grupo que se identificava como “Liberal” ganhou a alcunha de “Partido
de Camapuã” devido à referência a um dos processos judiciais que Manuel
Alves Ribeiro enfrentava. Ele teria se apropriado irregularmente da Fazenda
Nacional de Camapuã, local que desde os tempos coloniais servira de entre-
posto para os que viajavam em monções até Cuiabá. Na época do Império,
morava nela mais de uma centena de descendentes de africanos e apenas al-
guns poucos escravos remanescentes. Ribeiro teria reduzido os livres à escra-

154 Notadamente, ver Castro (1977).


155 APMT. Discursos dos Presidentes de Província Antônio José Pimenta Bueno, 30 de novembro
de 1836, e de Antônio José Pimenta Bueno, 1º de março de 1837.

142
vidão e os vendido como se propriedade sua fosse, tanto as pessoas quanto
a fazenda em que habitavam. Reescravizar pessoa livre era considerado crime
inafiançável. O presidente Gomes Jardim (1844-1847) o teria processado por
tais irregulares, mas o poconeano valeu-se de imunidades parlamentares para
se esquivar de todos os processos.156
O predomínio liberal na província, particularmente na Assembleia, pos-
sibilitou outras vantagens particulares ao grupo de Ribeiro, como a venda
fraudulenta da tipografia provincial para um fazendeiro de Poconé. Detecta-
da a irregularidade, simplesmente não existia força armada sob o comando
de qualquer presidente que pudesse entrar em terras de pessoas ligadas a
Manuel Alves Ribeiro.
Por sinal, tendo o corpo policial, sediado em Cuiabá, sido extinto pela
Assembleia provincial, os outros corpos armados ganharam relevância, como
o dos Oficias da Força de Linha (Exército), além da Guarda Nacional. Todos
eles estavam ligados ao líder poconeano. O poderio físico desse grupo foi
demonstrado, dentre outras ocasiões, quando um dos líderes da Sabinada,
movimento ocorrido na Bahia, entre 1837 e 1838, contra a regência imperial,
foi sequestrado. Era o doutor Francisco Sabino, que tinha sido condenado à
prisão, primeiramente em Goiás, tendo sido depois enviado ao forte Príncipe
da Beira. Quando novamente expediu ordem para que voltasse a Goiás, foi
sequestrado no caminho e levado para Poconé. Os poconeanos argumen-
tavam que um médico seria imprescindível no município. O presidente da
província, Gomes Jardim, chegou a enviar o chefe de polícia para levá-lo pre-
so, mas não havia força capaz de enfrentar os senhores de Poconé. Logo, os
liberais resolveram enviar o médico Sabino para a fazenda Jacobina, em Vila
Maria, talvez a mais rica da região e de propriedade da família Pereira Leite
(CORRÊA FILHO, 1948), então aliada de Ribeiro. Continuou impossível uma
guarda, sob as ordens de um presidente, retirar o médico de domínios parti-
culares dos “camapuanistas”, tal qual aconteceu com a tipografia provincial.
O que parecia atrapalhar o controle por “completo” da província era a
maior presença dos chamados “conservadores” na câmara municipal cuiabana.
É certo, as mudanças jurisdicionais no período regencial teriam retirado vários
atributos dos municípios em prol da representação provincial. Mas a câmara
da capital ainda tinha funções importantes, como a apuração das eleições para
a deputação provincial ou geral, além da senatorial. A Corte enviava à câmara
avisos e circulares, ficando a seu cargo expedi-los para outros municípios, além
de divulgar na própria cidade. Ela também representava um passo considerável
na carreira política da província. Não era raro homens públicos de outros mu-
156 AN. IJJ(9) Chefe de Polícia, Manoel Pereira da Silva, para Presidente de Província, Major
Oliveira. Cuiabá, 7 de maio de 1849.

143
nicípios se “candidatarem” a vereador em Cuiabá, pois não era necessário ter
residência nos lugares de disputa eleitoral.
Em relação a outras localidades, pode-se perceber a força representativa de
Cuiabá no cenário de Mato Grosso, quando, muitas vezes, homens em cargos
de expressão se referiam aos moradores de toda a província como “cuiabanos”.
Assim, por exemplo, quando da abertura da Assembleia Provincial em 1835, o
presidente Alencastro referindo-se ao “júbilo” e à “glória” dos “cuiabanos”157,
ao se reportar à inauguração da casa legislativa, a qual representaria todo Mato
Grosso, visto não contar somente com os moradores da cidade sede. Em 1841,
Silva Guimarães, em carta do ministro do Império sobre o impacto da coroação
de D. Pedro II, se referiu aos “cuiabanos” e aos “irmãos de todos o Brasil” que
estavam em grande contentamento, paz e tranquilidade, desde a sua assun-
ção.158 O gentílico “cuiabano” somente passou a ser suplantado pelos “mato-
-grossenses”, mais efetivamente, no ano de 1850, na mesma ocasião que se
operou a “conciliação” provincial entre os dois grupos políticos, procurando
amainar os conflitos de líderes de lugares diferentes da capital.
De toda forma, no final da década de 1840 faltava aos liberais, articulados
entre Poconé, Vila Maria, Miranda e Diamantino, tomarem Cuiabá, o princi-
pal local de resistência “conservadora”. Para isso, aprovaram na Assembleia
um dispositivo que retirava a sede de votação das freguesias, da capital, para
Poconé. Estando “atados” a esse lugar, não houve votação nessas áreas. O
resultado foi, finalmente, vencerem também a vereança da capital.159
Quando chegou o presidente major Oliveira, em 1848, uma de suas pri-
meiras ações foi investir para a nulidade das eleições para a Câmara de Cuia-
bá. Conseguiu isso graças a certa interferência no governo central, que emitiu
parecer favorável à demanda do presidente. Com novas eleições, e a volta
dos “conservadores” à Câmara de Cuiabá, o presidente articulou um grupo
interno à província, com desafetos e ex-aliados de Manuel Alves Ribeiro, ao
mesmo tempo em que recebeu apoio do governo central em suas iniciativas
para enfraquecer o grupo liberal.
Destarte, o governo central mudou a lista dos vice-presidentes, excluindo
Manuel Alves Ribeiro e seus principais partidários. Argumentava o major Oli-
veira que poderia ser assassinado a qualquer momento e, então, a província
cairia em mãos dos “camapuanistas”. Nesse mesmo sentido, o poconeano foi

157 AN. IJJ(9) Antônio Pedro de Alencastro, para o ministro do Império, Joaquim Vieira da Silva e
Souza. Cuiabá, 15 de julho de 1835.
158 AN. IJJ(9).José da Silva Guimarães, para o ministro do Império, Cândido José de Araújo Viana.
Cuiabá, 17 de dezembro de 1841.
159 APMT. Relatório do Presidente da Província, Major Joaquim José de Oliveira, 3 de maio de 1849,
p. 4.

144
retirado também do comando da Guarda Nacional, via ordem do governo
central, que também promoveu mudanças no oficialato dessa corporação.
Da mesma maneira, houve trocas na tropa de linha, substituídas por pessoas
ligadas aos liberais. O major também conseguiu o envio de dois novos juízes
para as duas comarcas provinciais, através de atos do governo central.160
Internamente, foi formada uma “Guarda de Segurança” com “cidadãos
cuiabanos”, e o chefe de polícia foi substituído. Estabeleceu também um
correio “paralelo” ao existente, pois seus antigos membros poderiam obstruir
ou violar a correspondência. Aliado a isso, trocou a guarda do Arsenal de
Guerra, onde havia depósito de armas, além de incentivar o juizado a tentar
retomar a tipografia provincial, então de posse dos liberais.161
Todas essas medidas do presidente contra Ribeiro e seu grupo enseja-
ram vários abaixo-assinados dos moradores da província para o governo
central, de apoio ou repulsa.162 No entanto, dessa vez o governo central
apoiava o presidente conservador, major Oliveira, à frente de uma elite
provincial.
O poconeano não poderia deixar de estar incomodado com o grande
avanço de terreno pelo presidente, decidindo, ele próprio, viajar ao Rio de
Janeiro para pedir a exoneração do presidente, já que as cartas não resolviam.
Ao mesmo tempo, também se avizinhava a data das eleições para deputado
geral, a única vaga que existia em Mato Grosso, assim como também para
a Assembleia Legislativa. Essas eleições iriam ser determinantes na dispu-
ta entre “liberais” e “conservadores”, principalmente porque para a vaga de
parlamentar geral os candidatos eram os próprios, Manuel Ribeiro e o major
Oliveira.
De fato, Ribeiro conseguiu do governo central a troca do presidente.
Praticamente junto com a carta de exoneração chegou já o sucessor, Costa
Pimentel (1849-1851), não abrindo espaço para que algum vice pudesse
assumir.163 Mas isso não favoreceu o fazendeiro de Poconé, como seria de
se esperar.
O major Oliveira derrotou Ribeiro nas eleições para a Câmara dos depu-
tados, tendo ainda o Partido Conservador conseguido maioria na Assembleia
provincial. O malogro do poconeano não foi completo, pois o governo cen-

160 AN. IJJ(9). Joaquim Oliveira, para o Ministro da Justiça, Antônio Manoel de Campos Mello.
Cuiabá, 20 de novembro de 1848.
161 AN. IJJ(9). Joaquim Oliveira, para o Ministro da Justiça, Antônio Manoel de Campos Mello.
Cuiabá, 28 de novembro de 1848.
162 AN. IJJ(9). Abaixo-assinado promovido pela Câmara de Cuiabá, datado de 7 de maio de 1849.
163 AN. IJJ(9). Joaquim Oliveira, para o Ministro da Justiça, Antônio Manoel de Campos Mello.
Cuiabá, 8 de setembro de 1849

145
tral naquele momento resolveu abrir mais uma vaga para deputado geral,
sendo duas cadeiras, representação mínima de qualquer província na capital
do Império. Assim, foram os dois concorrentes para o Rio de Janeiro. A partir
daquele momento tem início a política de “Conciliação” em Mato Grosso,
aprofundada, momentos depois, sob a presidência de Leverger. No governo
central, somente em 1853 se instalou oficialmente um “Ministério da Conci-
liação”, procurando atender às elites de ambos os partidos.
Antes desse gabinete conciliatório, Euzébio de Queiroz, um dos prin-
cipais líderes dos saquaremas, escreveu para Leverger solicitando especial
proteção para um candidato do Partido Conservador à única vaga do Senado.
Ribeiro era candidato dos liberais e não foi o mais votado, mas constou na
lista tríplice164, lembrando que os senadores eram escolhidos pelo imperador
e embasada nos três mais votados. No entanto, Ribeiro morreu de febre ama-
rela antes da decisão final.

CONCLUSÕES

Seguir e perseguir esse personagem possibilita perceber uma trama en-


redada também por vários outros atores que atuavam no “espaço público”, o
que indicava também as disputas “por” e “de” lugares institucionais na pro-
víncia, nos municípios e mesmo em instituições da Corte. Os lugares preen-
chidos por eleições nas freguesias não estavam apartados da principal figura
enviada pelo governo central, o presidente de província. Apesar dos debates
entre, por exemplo, o visconde do Uruguai (que defendia a “autonomia”
política do presidente de província nos diferentes rincões do país em relação
às elites locais), e, de outro, Tavares Bastos (que propunha eleições para o
cargo por moradores das regiões), o desempenho no cargo - e mesmo sua
efetiva ocupação -, estava muito mais sujeito à “temperatura” local, ou seja, à
forma como os grupos políticos regionais estavam dispostos e exerciam seu
poderio em dado momento do que a fria letra normatizadora ou prescrita
como linha de atuação. Dessa maneira, não foi raro o governo central ter es-
colhido moradores da própria província como governante, embora a “regra”
fosse que os “delegados do Império” fossem de fora.
Nesse sentido, foi o que aconteceu quando o governo central tomou para si
a escolha exclusiva do cargo de vice-presidente, que, antes, era escolhida pela
Assembleia da província. As nomeações imperiais continuaram, sobretudo, a
cargo dos moradores locais. Mas, longe do ser estático com relação ao peso

164 IMPL. Caixa 1854. Acta da apuração geral dos votos para a eleição de hum Senador por
esta Província. Cuiabá, 17 de agosto de 1854.

146
político na região, a nomeação nem sempre agradava ao grupo dominante, ser-
vindo, inclusive, para quebrar sua predominância, embora com todo o cuidado
para que não se abrisse espaço para a eclosão de rebeliões na fronteira do país.
O caráter fronteiriço de Mato Grosso fazia com que o presidente ou o
vice em exercício fizessem as vezes de diplomatas. Tinham essencialmente
que defender a escravidão e fazer mobilizações militares quando avaliassem
necessárias. O vice-presidente Manuel Alves Ribeiro desempenhou bastante
a contento essa prerrogativa do cargo. Assim, sua ação individual poderia ser
considerada “ilustrativa” dessa posição, como a de outros que ocuparam o
mesmo cargo. No entanto, mais do que “ilustrar” configurações políticas, a
ação individual recriava situações que se sucediam. Ou seja, não existia um
plano definido, ou script, sobre como fazer uma hegemonia sobre outros ho-
mens públicos de Cuiabá, ou, por outro lado, como obter, por vários momen-
tos e circunstâncias, o apoio do governo central; embora, fosse inequívoco
que “tomar” a Câmara de Cuiabá seria, desde o início, o ápice de um grupo
que se formou justamente para se contrapor a essa cidade, ao mesmo tem-
po que um tropeço na política internacional poderia custar muito mais caro
do que afrontas às normas por uma pessoa ou grupo da província. Era com
chefes locais, no caso, Manuel Alves Ribeiro, que o governo central pretendia
construir o país e, por mais que não houvesse um roteiro detalhado de como
agir, em muitos momentos o poconeano decifrou as margens de atitudes nas
quais poderia investir. Por outro lado, o governo central, também longe de
ser estático, mas com diretrizes específicas, sobretudo na década de 1840, era
impelido a atender à demanda dos homens públicos que não tinham sua base
na principal capital da província, Cuiabá. Já apoiá-los, para gerir os negócios
e interesses do Império na região, seria um prêmio por vezes passível de ser
retirado, mesmo com o fantasma de fortes contestações nas bordas do país.

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149
CUIABÁ NA
CONTEMPORANEIDADE
O IMPACTO DO NOVO: CUIABÁ 1970-1980

Luiza Rios Ricci Volpato 165

O calor!
O Sol!
Os rios!
Características perenes de Cuiabá.
Os rios Cuiabá e Coxipó, durante anos, foram muito integrados à vida da
população!
Até a década de 1950, a navegação fluvial havia sido a mais importante
forma de comunicação da cidade de Cuiabá com outros núcleos urbanos do
País. Nas décadas seguintes, embora a navegação fosse perdendo importân-
cia, os rios continuaram tendo forte ligação com a população local, pontos
privilegiados de lazer, com suas águas piscosas, seus poços e suas praias.
As transformações desse cenário de cidade interiorana foram se amplian-
do desde o final dos anos 1960, quando as terras do Cerrado e da Região
Amazônica passaram a ser consideradas como áreas a serem conquistadas
por novas formas de ocupação. Promover a valorização dos espaços situados
no interior do País foi uma das metas do projeto desenvolvimentista implan-
tado durante o governo militar.
Para viabilizar tal projeto, investimentos foram feitos em Cuiabá, que de-
veria estar apta à nova função que lhe era imposta: ser o “portal da Amazô-
nia”. Autarquias, empresas públicas e a Universidade Federal (a primeira do
estado) foram implantadas para aparelhar Cuiabá e o estado de Mato Gros-
so para “ocupação” da Amazônia e valorização das terras do Cerrado. Esse
projeto de inovação criou inúmeros postos de trabalho para profissionais de
nível superior que demandaram rumo a Cuiabá.
A população cuiabana recebeu os migrantes com sua costumeira hospita-
lidade. Essa facilidade em acolher forasteiros, já registrada anteriormente nos
relatos de viajantes estrangeiros que passaram pela cidade no século anterior.
Para assimilar as instituições então criadas e os profissionais que nelas
iriam atuar, o espaço urbano sofreu diversas alterações: loteamentos foram
implantados, dando origem aos bairros que circundam a parte central da ci-
dade. E o governo estadual visando preservar prédios e traçados do centro,

165 LUIZA RIOS RICCI VOLPATO, historiadora, psicóloga, moradora em Cuiabá desde 1974.

153
que se originaram nos séculos XVIII e XIX, transferiu o palácio do governo
e algumas secretarias para fora do núcleo histórico. Assim, o centro político
foi instalado distante do núcleo central no sentido Norte, sendo o campus
universitário implantado fora do perímetro urbano no sentido Sul. Ambos
atuaram como polos de atração de investimentos, tanto públicos como priva-
dos, dando nova configuração ao espaço urbano.
O sentimento de que o progresso estava chegando promoveu a atração
de populações que demandavam à cidade em busca de novas oportunidades
e muitos, desprovidos de meios materiais para aquisição de moradia, ocu-
param espaços ao redor do núcleo central, dando origem a diversos bairros
provenientes de ocupações desordenadas. Também faziam parte desse con-
tingente os moradores tradicionais das áreas que estavam sofrendo processo
de valorização e se viam expulsos de suas terras, rimando para a periferia da
cidade, em busca de novas condições de vida.
Posteriormente, as ocupações foram regularizadas, mas esses bairros tra-
zem as marcas de suas histórias, como ruas estreitas e irregulares, próprias
das ações espontâneas de seus primeiros moradores.
Na década de 1970, o sentimento que pairava sobre a população era de
animação, crença no futuro, desejo de assimilar e incorporar as insígnias do
novo que chegava. Mesmo assim, os antigos hábitos de cidade interiorana
subsistiam. O costume dos piqueniques na beira dos rios, especialmente no
Coxipó, cujas águas nascem na serra da Chapada dos Guimarães e descem
geladas, até desaguar no rio Cuiabá. Também era costume ver homens e
meninos debruçados no guarda-corpo da ponte Júlio Müller empunhando
suas varas de pesca à espera que algum peixe fisgasse a isca. As ruas do
bairro do Porto chegavam até à margem esquerda do rio Cuiabá e, ao cami-
nhar por elas, se via meninos brincando em suas águas, carros estacionados
quase dentro do rio, para serem lavados, e até mesmo lavadeiras com suas
trouxas de roupas.
Também subsistiam as cadeiras nas calçadas nas noites quentes, as visitas
aos amigos sem prévio aviso, o uso das redes, cadeiras de balanço, do ladri-
lho hidráulico no revestimento do piso, da ausência de forro nas casas para
garantir a ventilação, o que proporcionava o “burrifo” em dias de chuva.
O novo e o tradicional conviviam ora em choque, ora em harmonia. A
transmissão de um canal de televisão tivera início em 1969, colocando a po-
pulação em contato mais direto com os eventos e hábitos do Centro-Sul do
País, estimulando o desejo de reprodução dos mesmos. Além disso, os mi-
grantes traziam seus costumes, concepções de moradia e lazer e os hábitos
cuiabanos, ora eram vistos por eles como diferentes, ora como inadequados
e retrógrados.

154
A antiga pergunta feita ao conhecer alguém:
- Filho de quem você é?
Passou a ser substituída por:
- De onde você é?
O gosto pelo novo, pelo elemento de fora, é um dado apontado pelos
viajantes que estiveram em Cuiabá no século XIX e deixaram seus relatos. A
queixa por não encontrar aqui os mesmos hábitos das regiões mais dinâmicas
do País, também estão presentes nos relatos, tanto nos dos viajantes, como
nos dos presidentes da província. Mas como a presença de migrantes se tor-
nou mais massiva no final da centúria passada, as comparações também se
fizeram mais contundentes.
Se de um lado o migrante criticava hábitos tradicionais e a ausência de
equipamentos que a cidade não oferecia, por outro, os moradores tradicio-
nais, através tanto da iniciativa privada como da pública, se preocupavam
em valorizar e preservar a cultura local. Foram criados nesse período, na
Universidade Federal de Mato Grosso, os Museus Rondon e o de Arte e Cul-
tura Popular, o Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional,
o Departamento e o Curso de História. O Ateliê Livre, criado com a função
de dar alternativas de vida para meninos da periferia da cidade, em especial
do bairro Pedregal, possibilitou o florescimento de talentos que se firmaram
como artistas plásticos. Estes, em sua maioria, se mantiveram ligados a temas
regionais. A Secretaria de Promoção Social do Estado de Mato Grosso criou a
Casa do Artesão. Houve uma revitalização do Instituto Histórico e Geográfico
de Mato Grosso e da Academia Mato-Grossense de Letras e, mais tarde, cria-
do o movimento Muxirum Cuiabano.
Durante a década de 1970, era contundente a competição entre as cida-
des de Cuiabá e Campo Grande. A criação desses equipamentos culturais,
de alguma forma, estava ligada ao clima de competição que também per-
meava o debate político. Em 1977, foi aprovada pelo Congresso Nacional a
lei de divisão de Mato Grosso, com a criação do estado de Mato Grosso do
Sul, cuja implantação se deu a partir de 1979.
Apesar dos esforços de resistência, a pressão dos novos padrões cul-
turais e da especulação imobiliária foi deixando suas marcas no espaço
urbano. O núcleo central da cidade, composto pelas praças Alencastro e da
República (anteriormente denominada largo da Matriz), fora sempre a sede
do poder. Desde o século XVIII, num ponto mais elevado da topografia,
fora construída a igreja matriz, a qual sofreu várias reformas e alterações
durante o passar dos anos. Até que, no final dos anos de 1960, teve sua
estrutura física condenada por peritos que a avaliaram e, por conseguinte,

155
foi demolida. Mas o seu local de implantação foi preservado: novo templo
foi ali construído.
As praças Alencastro e da República se mantiveram como espaços do
poder, tanto religioso como profano, e ao seu redor e nas ruas adjacentes
continuaram residindo as famílias de posses.
Na década de 1940, a cidade sofreu uma forte intervenção feita pelo poder
público, no sentido de moderniza-la. No período em questão, o governo do
Estado Novo promovia a Marcha par Oeste, com intuito de integrar de forma
mais efetiva o interior do País aos núcleos de decisão situados no Rio de Janeiro.
Dentro desse projeto, Cuiabá sofreu um processo de reforma, com a edificação
de novos prédios, abertura de ruas, instalação de novos equipamentos públi-
cos. Houve estímulo para a ocupação da nova avenida então aberta, a Getúlio
Vargas. Muitas famílias de posse se mudaram para esse logradouro, mas sem
se distanciar muito do núcleo central. O abandono dessa região como residên-
cia só se deu no final da década de 1970, quando novas e até mesmo suntuo-
sas casas foram construídas nas avenidas que demandavam os novos bairros.
Aconteceu em Cuiabá processo semelhante ao de várias cidades do Brasil,
em que a zona central da cidade, a melhor atendida pelos serviços urbanos,
foi paulatinamente deixando de abrigar residências, passando a ser ocupada
pelo comércio e prestadores de serviço, tanto do setor público como privado.
Na década de 1980, a residência dos governadores deixou o local onde
estava instalada desde que a capital da província fora transferida para Cuiabá,
em 1825. O antigo casarão, denominado palácio Alencastro, já não existia
mais. No processo de modernização da cidade promovido durante o Estado
Novo, quando Mato Grosso era governado pelo interventor Júlio Müller, fora
construída uma nova residência para os governadores. Um sobrado localiza-
do imediatamente aos fundos do palácio Alencastro, com sua frente voltada
para a rua Barão de Melgaço.
E, no final dos anos de 1950, teve início a construção do novo palácio Alen-
castro, para abrigar a sede do governo estadual e das secretarias de governo.
Com a criação do Centro Político e Administrativo, um novo palácio foi edifica-
do para sede do governo, o Palácio Paiaguás, e as secretarias de governo, sede
de empresas públicas e autarquias foram, paulatinamente, se transferindo para
esse novo polo do poder.
Os sobrados situados ao redor da praça Alencastro deixaram de ser resi-
dências, passando a abrigar atividades comerciais. E os lindos casarões da rua
Barão de Melgaço foram, em sua maioria, demolidos.
Construídos no final do século XIX, alinhados com a calçada e com suas
várias e grandes janelas abertas para a rua, com suas portas de entrada que

156
davam para um pequeno vestíbulo, mantinham semelhança com outros ca-
sarões construídos na mesma época no interior do País. Eram dotados de
quintais que iam até a outra rua. Grandes quintais, quase chácaras, onde eram
plantadas diversas árvores frutíferas, áreas que compunham a maior parte da
arborização do centro da cidade.
Na época da criação do primeiro canal de televisão, Cuiabá foi denomina-
da, pelos padrões midiáticos da época, “Cidade Verde”, diferenciando-se de
Campo Grande, denominada “Cidade Morena” e de Corumbá, “Cidade Bran-
ca”, as três cidades servidas pela mesma emissora. As áreas verdes da região
central de Cuiabá, no entanto, eram compostas por esses quintais, uma vez
que a mesma era pobre em praças e jardins. As modificações que a cidade
vivia não pouparam nem os casarões e muito menos os seus quintais. Um a
um foram sucumbindo diante da especulação imobiliária, restando, finalmen-
te, apenas alguns poucos exemplares.
Até a década de 1970, o comércio em Cuiabá fechava seu atendimento
por duas horas, entre onze e treze horas. Este e outros hábitos típicos de ci-
dade interiorana foram cedendo espaço ao estilo de vida adequado ao apro-
fundamento das relações capitalistas. Novos espaços foram incorporados ao
núcleo urbano, regiões foram valorizadas, outras degradadas, com ganhos e
perdas. Alguns dos córregos que cortavam a cidade se tornaram submersos,
cobertos por concreto e asfalto, desaparecendo da vista dos moradores. Entre
eles se destaca o córrego da Prainha, tão presente em relatos sobre a cidade,
mesmo assim não resistiu às exigências de um trânsito sempre sedento de
cada vez mais espaço para os veículos, em detrimento de transeuntes, de
construções e até mesmo dos cursos d’água naturais.
E os rios?
Os rios Cuiabá e seu afluente Coxipó, que conferiam à paisagem um as-
pecto bem peculiar?
Como os casarões, a vegetação, os córregos e os rios também sofreram o
impacto das transformações que a cidade vivia.
As intervenções urbanas executadas e as normas de ocupação do solo
aprovadas fizeram com que o rio Cuiabá fosse ficando cada vez mais distante
de sua população. Nas imediações do bairro do Porto, onde era possível ter
acesso à sua margem esquerda, a ampliação de avenidas, a construções de
balaustradas tornou o rio distante dos moradores da cidade.
O processo de homogeneização capitalista manteve seu avanço sobre
a cidade de Cuiabá nas décadas seguintes, mas o ritmo e a velocidade fo-
ram alterados. As mudanças continuam ocorrendo, sem, contudo, se repetir
o impacto das décadas de 1970 e 1980. Pós-divisão do estado, a valorização

157
das terras e alteração das formas de ocupação deu nova configuração a Mato
Grosso: novas cidades surgiram, remodelaram-se as formas de produção e,
consequentemente, novos interesses e forças em disputa de poder. Antigos
hábitos foram abandonados e, com seus shopping centers, condôminos fe-
chados e edifícios de dezenas de andares, a cidade se tornou semelhante
a inúmeras outras. Com confortos a mais, mas também com acréscimo de
problemas decorrentes do crescimento desenfreado, que pouco leva em con-
sideração o interesse da maioria da população.

158
PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO,
ALAGAMENTOS E ENCHENTES EM CUIABÁ

Cleusa Aparecida Gonçalves Pereira Zamparoni166

INTRODUÇÃO

A degradação socioambiental dos ecossistemas aumenta sua vulnerabili-


dade e suscetibilidade a episódios de desastres naturais, assim, eventos que
outrora eram considerados naturais, atualmente são de origem antrópica.
Uma das principais preocupações com as mudanças no clima é o aumen-
to que poderá ocorrer nos episódios de eventos extremos. A intensidade e
frequência dos eventos extremos como as cheias, as secas e os ciclones tro-
picais têm tido inúmeras repercussões no mundo atual, tornando-se cada vez
mais premente a prevenção e mitigação dos seus efeitos.
Geralmente, a mitigação dos riscos, associada aos desastres naturais favo-
rece a utilização de medidas técnicas de caráter corretivo, em detrimento de
medidas preventivas, de natureza não estrutural, tal como a regulação do uso
do solo ou a adoção de medidas de mitigação/prevenção pelas populações.
No Brasil e em muitas partes do mundo, a variável clima não faz parte das
políticas públicas elaboradas e praticadas pelos gestores responsáveis pelo
planejamento urbano, na escala de abordagem local. Entretanto, os desastres
naturais (inundações e alagamentos) derivados das chuvas e dos problemas
socioespaciais de ocupação e produção do uso do solo urbano estão postos e
anunciados anualmente, na mesma época do ano. Enquanto que o fenômeno
das ilhas de calor é “invisível”, as enchentes e os alagamentos são visíveis e
geram situações urbanas caóticas em todas as esferas.
A complexidade da produção e (re)produção do espaço urbano en-
contra-se no processo histórico de ocupação local. Assim sendo, a gênese
dos desastres naturais provavelmente está na drenagem urbana. Para Tucci
(2003), o ciclo hidrológico sofre fortes alterações nas áreas urbanas, devido,
principalmente, à alteração da superfície e à canalização do escoamento, o
aumento de poluição devido à contaminação do ar, das superfícies urbanas e
do material sólido disposto pela população.
Os desastres naturais, como as enchentes e os alagamentos urbanos, po-
dem ser estudados no âmbito das mudanças climáticas, no contexto das in-
certezas, pois constituem graves problemas que afetam a sociedade moderna,

166 Profa. Dra. POSGEO/UFMT cazamp@gmail.com

159
causando severos danos socioeconômicos e ambientais. Vários estudos mos-
tram o conceito de vulnerabilidade e de suscetibilidade como sinônimos face
aos eventos dos desastres naturais. Entretanto, a vulnerabilidade está mais
relacionada aos aspectos humanos e socioeconômicos e a susceptibilidade
aos aspectos estruturais e físicos (ZAMPARONI (2010); NUNES (2009).
Os desastres naturais e as áreas de risco encontram-se diretamente rela-
cionados ao processo de exclusão social produzido na construção histórica
dos espaços urbanos e expressam as condições de vulnerabilidade social.
Vários condicionantes podem ser responsabilizados pela exposição da po-
pulação em situações calamitosas, mas um dos mais relevantes é o crescimento
desordenado das cidades, que deriva de interesses especulativos imobiliários,
os quais geram ocupações espaciais divididas em classes sociais, revelando a
marginalização social de um sistema econômico perverso e excludente. Estes
indicativos estão em consonância com os índices de vulnerabilidade da popu-
lação aos desastres naturais, em termos de magnitude, resposta, mitigação e
resiliência.
Neste contexto, no âmbito das mudanças climáticas, na escala local, as
enchentes e alagamentos ganham visibilidade nas discussões nos meios aca-
dêmicos, mídia falada e escrita e nos órgãos de planejamento. A maior parte
da população despossuída de condições econômicas favoráveis fica sujeita a
habitar espaços físicos deteriorados e localizados em áreas consideradas de
risco aos alagamentos, enchentes e escorregamento de massas, quando ocu-
pam locais de encostas de morros.
A produção de conhecimento sobre as vulnerabilidades da população e a
suscetibilidade de um local em relação a condições atmosféricas, tem estreita
relação com a formulação e implementação de políticas públicas.
Enquanto que na escala local, as modificações geradas no comporta-
mento de variáveis climáticas, como a temperatura e umidade relativa do
ar, são derivadas da produção e (re)produção do uso do solo urbano, tanto
para as baixas como para as médias latitudes. Nas escalas global e regional
não ocorre essa convergência de opiniões entre os estudiosos do assunto.
As divergências são ainda maiores quando se trata da escala global e a sua
derivação antrópica e/ou natural.
Embora a história do homem sobre a terra, iniciada há 6 bilhões de anos,
seja coroada por grandes conquistas, como a descoberta do fogo, da roda até
as tecnologias modernas, uma de suas maiores proezas foi sua sobrevivência
frente aos desastres naturais.
Enquanto as mudanças climáticas naturais mostram ritmos semelhantes,
mais lentos e uniformes, as de derivação antrópicas apresentam ritmos di-

160
ferenciados de local para local, e estão condicionados ao desenvolvimento
histórico, político, social, técnico, científico e informacional de cada lugar.
Assim, o presente estudo analisou situações de risco a desastres naturais
hidrometeorológicos em Cuiabá/MT, cuja produção e (re) produção do espaço
urbano apresentam uma combinação de antigas desigualdades socioambien-
tais com novas formas adquiridas nas últimas décadas do século XX. O proces-
so de migração oficial e privada, dirigida pelo estado e apoiados em políticas
públicas federais, como o PIN (Programas de Integração Nacional), promo-
veu mudanças relevantes na cidade de Cuiabá a partir da década de 1970.

OS DESASTRES NATURAIS NO CONTEXTO DAS MUDANÇAS


CLIMÁTICAS

Desde o final da década de 1970 vem aumentando a preocupação com o


aumento de temperatura na Terra, após 30 anos de resfriamento, e a explica-
ção tem se voltado para as ações antrópicas.
Na década de 80 do século passado, alguns trabalhos científicos come-
çaram a indicar o aumento da concentração de gás carbônico na atmosfera,
associado a um aumento na temperatura terrestre. Desta forma, os temas das
mudanças climáticas e do aquecimento global começaram a fazer parte das
questões ambientais.
O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima – IPCC foi funda-
do em 1988 pela OMM (Organização Meteorológica Mundial) e o Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente, objetivando compreender os ris-
cos e os impactos potenciais das mudanças climáticas para estabelecer metas
de adaptação e mitigação.
O Primeiro Relatório de Avaliação do IPCC foi lançado em 1990 e afirmou
que as mudanças climáticas constituíam uma ameaça à sobrevivência do pla-
neta e que eram necessários acordos globais para tratar do problema.
O Segundo Relatório do IPCC foi apresentado em 1995, com um alerta
para um crescimento significativo das concentrações atmosféricas dos gases
de efeito estufa desde a era pré-industrial, sendo que para o CO² o aumento
foi de cerca de 280 partes por milhão (ppm), para 360 ppm. No tocante ao
aumento da temperatura global da superfície terrestre, o relatório mostrou
um aumentado entre 0,3 e 0,6º C desde o século XIX.
O Terceiro Relatório do IPCC, lançado em 2001, revelou um aumento na
temperatura média da superfície terrestre de 0,6 ºC. A década de 90 foi consi-
derada a mais quente, e 1998 foi o ano mais quente desde que as temperatu-
ras começaram a ser registradas em 1861.

161
Entre as contribuições do IPPC para o 4º Relatório de Avaliação, de 2 de
fevereiro de 2007, temos uma revisão da literatura sobre mitigação das mu-
danças climáticas desde 2001. O Relatório afirma que é inequívoco o aqueci-
mento global, evidencia o aumento na temperatura média global do ar e dos
oceanos, a ampliação do derretimento de gelo e neve e a elevação do nível
do mar.
No contexto das (in)certezas e falta de convergência de opiniões sobre a
existência e as causas das mudanças climáticas globais, Molion (2008) afirma
que a tendência dos próximos anos seria o esfriamento da Terra, e sendo as
mudanças climáticas fenômenos naturais que fazem parte da dinâmica do
planeta.
A Terra está passando por um processo natural de aquecimento (eras
geológicas) e se dirigindo para um processo de resfriamento. Como já fazem
15 mil anos que a última Era Glacial terminou, e os períodos interglaciais
normalmente são de 12 mil anos, é provável que nós já estejamos dentro de
uma nova era glacial. Obviamente, a temperatura não cai linearmente, mas a
tendência de longo prazo certamente será decrescer, portanto as afirmações
e conclusões dos Relatórios do IPCC são discutíveis. O autor alerta para mani-
pulação de dados de temperaturas e que os estudos científicos que afirmam o
suposto aquecimento global inexistem ou não são disponibilizados pelos que
participam da pesquisa (MOLION, 2008).
O próprio IPCC concorda que o primeiro período de aquecimento, entre
1920 e 1946, pode ter tido causas naturais, possivelmente o aumento da produ-
ção de energia solar e a redução de albedo planetário.
Antes do término da Segunda Guerra Mundial, as emissões decorrentes das
ações antrópicas eram cerca de 10% das atuais, tornando difícil argumentar que
os aumentos de temperatura naquela época tenham sido causados pela intensifi-
cação do efeito estufa provocados pelo homem.
Dessa forma, investigar se o clima está mudando na escala global, regional
e local tem se constituído em um grande desafio para o mundo técnico-cien-
tífico informacional da atualidade, fio condutor do processo de globalização e
mundialização do capital, fruto da modernidade.
A polêmica em torno da derivação antrópica e/ou natural tem pautado
as discussões sobre a temática. Quando o homem surgiu na história da terra,
no Quaternário, grandes eventos mostrando alterações climáticas com ritmos
e ciclos próprios, originando os períodos glaciais e interglaciais, que já eram
constantes ao longo das eras geológicas.
Assim sendo, neste contexto os desastres naturais têm como agravante
a interferência antrópica sobre o ambiente, colocando-o em desequilíbrio e

162
resultando em grandes impactos socioambientais negativos, principalmente
nas regiões tropicais e subtropicais da Terra. Entre as consequências mais
frequentes deixadas por esses episódios encontram-se o elevado número de
desabrigados e mortos, as doenças (leptospirose, traumas psicológicos etc.),
as perdas de bens materiais, os assoreamentos e solapamentos dos rios, as
quedas de pontes, os bloqueios de estradas, entre outros.
Os eventos naturais constituem manifestações próprias da dinâmica do
nosso planeta e podem ser de natureza atmosférica: meteóricas hídricas (chu-
va, granizo, neve, nevoeiro) ausência hídrica (seca); mecânicas (torna-
dos); elétricas (tempestades) ou de natureza geológica: geológico interno
(terremotos, vulcanismos e tsunami) e geológico externo (escorregamen-
tos, erosões, subsidências, enchente).
O conceito de risco (risk) corresponde à quantificação da circunstância
ou da situação de risco natural. Evento (events) corresponde ao processo at-
mosférico ou geológico que tenha ocorrido sem causar consequência socio-
econômica; Desastre (disaster) quando causa danos socioeconômicos, pois
é uma ruptura extrema de funcionamento de uma sociedade que gera perdas
de vidas humanas, materiais e danos ao meio ambiente em grande escala,
que superam a capacidade da sociedade afetada para fazer frente à situação,
utilizando unicamente seus próprios recursos; Perigo (hazard) refere-se a
circunstância ou situação de perigo, perda ou dano, social e econômico, de-
vido a uma condição geológica ou atmosférica, ou a uma probabilidade de
ocorrência de processos naturais, induzido ou não (CASTRO, 1998).
Eventos naturais, tais como inundações, secas e terremotos, fazem parte
dos ciclos naturais da Terra. No entanto, quando estes eventos têm repercus-
são em sociedades vulneráveis são considerados desastres naturais. A degra-
dação ambiental dos ecossistemas aumenta a vulnerabilidade dos mesmos a
desastres naturais. Assim, eventos que outrora eram considerados naturais,
atualmente são considerados desastres de origem antrópica.
Os desastres naturais podem ocorrer em grandes escalas, como deserti-
ficações ou secas decorrentes de mudanças climáticas, afetando extensas re-
giões, ou em pequenas escalas, como deslizamentos e inundações em áreas
urbanas. Quantificar essas modificações é um grande desafio, pois, ao dimen-
sionar o impacto provocado pela ação antrópica, se está limitando o cresci-
mento econômico que tem como base o uso e a ocupação do espaço. Esse
tipo de ocupação caracteriza o que Beck (2000) denomina de “Sociedade de
Risco”, onde os crescimentos econômico, tecnológico e social, definido por
políticas públicas, não são capazes de prever o impacto provocado sobre o
meio ambiente, gerando assim riscos para a sociedade.

163
O rápido crescimento da população aumenta a demanda de recursos na-
turais, ocasionando uma pressão no meio ambiente, o que leva a possibilida-
de de que um evento natural se transforme em um desastre, ou seja, aumenta
o risco, aumentando também a frequência com que estes desastres aconte-
cem (WILCHES, 1995).
A prevenção e mitigação de desastres naturais somente são possíveis
quando se tem um conhecimento sólido sobre a frequência e magnitude dos
eventos que geram riscos numa determinada área.
É necessário compreender a dinâmica dos eventos naturais e suas mani-
festações em diferentes contextos socioespaciais, para que se possa melhor
conciliar a forma de ocupação humana à ocorrência de tais eventos, que são
cíclicos e poderão voltar a ocorrer. Por isso, é tão importante analisá-los sob
o foco da relação sociedade/natureza, e não como um episódio de origem
natural.
Os impactos dos fenômenos naturais na sociedade tornam-se problemá-
ticos pelo modo de ocupação do solo, pela qualidade construtiva e pela pre-
sença ou ausência de infraestrutura adequada.
Eventos naturais somente se convertem em desastres quando seres hu-
manos vivem nas áreas de ocorrência.

BREVE HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO SÓCIOESPACIAL DE CUIABÁ


NO CONTEXTO DE MATO GROSSO

O estado de Mato Grosso localiza-se na região Centro-Oeste do Brasil e


possui localidades sujeitas a uma variedade de desastres naturais, tais como
tempestades severas, enxurradas, inundações, secas e estiagens, incêndios
florestais e vendavais, que afetam centenas de pessoas todos os anos.
A história da ocupação do espaço do Estado foi pautada por vários insuces-
sos até meados do ano de 1960. A materialização das estratégias de ocupação da
região concretizou-se com a transferência da capital federal para o Planalto Cen-
tral, nos anos 60 do século passado, fato que acarretou profundas modificações
espaciais e promoveu o seu desenvolvimento socioeconomico e sua inserção no
conjunto da economia nacional.
De acordo com Kaiser (1966), o surgimento de um polo ou centro polari-
zador está relacionado à disponibilidade de recursos naturais, acessibilidade
e favorecimento do momento histórico.
Ao estado de Mato Grosso, as respostas para essas necessidades foram
ofertadas, na medida em que possuía recursos naturais, e o momento his-
tórico era favorável e a construção de Brasília implicou na implantação de

164
um novo sistema rodoviário nacional, facilitando o fator acessibilidade com
a construção das rodovias Transamazônica (BR-230), Perimetral Norte (BR-
210), Cuiabá-Santarém (BR-163), Cuiabá-Porto Velho (BR-164), além de be-
neficiamentos nas já existentes, como a Belém-Brasília (BR-153), bem como
a construção de estradas nacionais, municipal e vicinal.
Para Coy (1992), o Estado possui um papel fundamental no desenvolvi-
mento das frentes pioneiras, no sentido de construir estradas para o acesso
e infraestruturas técnicas, financeiras e institucionais, pois possui interesses
políticos de ordem geoestratégicas, sociais e econômicas na planificação e
apoio à ocupação de suas periferias.
A ocupação do Mato Grosso pelas frentes pioneiras, por meio do processo
de colonização, refletiu esses interesses. Contribuindo com o fortalecimento
deste processo, foram sendo criados os PNDS – Planos Nacionais de Desen-
volvimento, objetivando a promoção do desenvolvimento de todos os setores
da economia nacional, de forma integrada. Foi neste contexto histórico que
efetivamente teve início o processo de organização do espaço de Mato Grosso,
constituindo-se numa grande fronteira agrícola em constante expansão.
Mato Grosso passou, em um espaço curto de tempo, portanto, da fase
de coleta dos recursos naturais para a Revolução Agrícola e Industrial, para
atender às demandas externas à realidade regional, onde o desenvolvimento
econômico não acompanha o social, além de gerar grandes problemas am-
bientais. Esse contexto propiciou o surgimento de cidades de pequeno porte
na Amazônia Mato-grossense.
Com o desmembramento do estado de Mato Grosso, em 1977, nos atu-
ais Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, o primeiro passou a contar com
38 municípios. Entretanto, 2 anos mais tarde, o estado já contabilizava 53
municípios, passando para 84, em 1986. Atualmente (IBGE, 2010), o estado
conta com 141 municípios. Neste contexto, Mato Grosso vem experimen-
tando nas últimas décadas um crescimento relevante no tocante à ocupação,
transformação, produção e (re)produção no arranjo espacial e na configu-
ração de sua paisagem natural, gerando territorialidades, em especial na
região da Pré-Amazônia Mato-Grossense, com a introdução da produção da
soja como commodities (mercadoria) no âmbito do agronegócio.
O crescimento acelerado e o ganho de produtividade dos produtos con-
siderados “modernos”, como a soja e o milho, ofuscaram o desenvolvimento
de culturas alimentares “tradicionais”, como o arroz, a mandioca e o feijão,
por exemplo.
Mato Grosso é o terceiro estado do país em dimensão territorial, com
901.420 km2. A densidade demográfica é de 2,76, portanto, baixa, se com-
parada com outros estados mais populosos do Brasil. A taxa de urbanização

165
em Mato Grosso segue o ritmo nacional, que é acentuado e reflete uma das
manifestações da concentração da terra.
Na década de 1970, no processo de “modernização do campo”, o Estado
estimulou também a colonização particular. Essa política de ocupação terri-
torial possibilitou a transferência em massa de significativos contingentes de
agricultores de outras regiões do país, principalmente do Sul e Centro-Sul,
que adquiriram seus lotes nas colonizadoras, após se desfazerem de suas
terras de trabalho em seus estados de origem.
A construção e pavimentação da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém/PA,
permitiu o surgimento de firmas de colonização particular, que passaram a
adquirir do estado, ou de particulares, ou mesmo sob a forma de grilagem,
grandes extensões de terra, ao longo da referida rodovia, para a colonização,
atraindo basicamente pequenos e médios agricultores da região Sul do país.
Assim, surgiram localidades, como Sinop, Colíder, Alta Floresta, Terra Nova,
Paranaíta, Sorriso, Nova Mutum, Tapurah, Lucas do Rio Verde, Trivelato, Pa-
coval, São Manuel, Vera, Juara, Nova Ubiratã, Novo Mato Grosso, Feliz Natal,
entre outras.

CUIABÁ NO CONTEXTO DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO DA


AMAZÔNIA MATOGROSSENSE A PARTIR DA DÉCADA DE 1970

Neste contexto histórico de produção e (re) produção do espaço mato-


-grossense, a cidade de Cuiabá, capital do estado, fundada em 1719, passou
por um processo de evolução urbana com a descentralização, mesclado com
o aumento de sua população.
Na década de 1980, a expansão urbana da cidade foi vinculada ao proces-
so de verticalização ao longo da Avenida Historiador Rubens de Mendonça
(ROMANCINI, 2011)
No final da década de 1980 e inicio da década de 1990, a expansão da
cidade está relacionada aos condomínios verticais e horizontais, principal-
mente próximos aos shoppings centers. As definições sobre a reestruturação
urbana mostram o processo desigual de ocupação da terra, com a população
de baixa renda habitando locais do entorno da cidade demonstrando um
processo perverso de criação de áreas de reserva de valor para a especulação
imobiliária destinada a atender a alocação do capital (ROMANCINI, 2009)
A cidade de Cuiabá está localizada no Centro Geodésico da América do Sul,
no estado de Mato Grosso, na mesorregião Centro-Sul Matogrossense e Micror-
região Cuiabá, ocupando uma área de 3.538 km2, e a macrozona urbana ocupa
254,57 m2, que foi regulamentada pela lei municipal nº 4.719/2004. A cidade se

166
divide nas regiões administrativas Norte (30,7 km²) , Sul (128,63 km²) , Leste
(46,01 km²) e Oeste (46,60 km²), com 118 bairros. Possuia, aproximadamente,
556.449 habitantes segundo estimativa do IBGE, 2010. Entretanto, a popula-
ção estimada de Cuiabá aumentou, entre os anos de 2017 e 2018, de 580.489
para 585.367 habitantes. Em Várzea Grande, na região metropolitana, também
houve aumento, sendo de 268.594 para 271.339. Os números fazem com que a
chamada Grande Cuiabá tenha 856.706 habitantes (IBGE,2018).
As divisões em regiões administrativas e respectivas áreas do município
de Cuiabá foram regulamentadas pela Lei Municipal nº 3.262, de 11/01/1994.
A maior parte das áreas de risco de enchentes localizam às margens do
rio Cuiabá e adjacências. Esta ocupação é formada por grilos, invasões, pro-
priedades, sem documentação legalizada junto aos órgãos de planejamento
do município. Grande parte da população de baixa renda vive nestas locali-
dades.
No início da urbanização de Cuiabá-MT, a população se instalou
nas várzeas de inundação, que constituem o leito maior do Rio Cuiabá, bem
como em locais como fundos de vales dos rios próximos àquele principal,
mas também em ribeirões e córregos, como os da Prainha, do Barbado, Gam-
bá, Mané Pinto e outros, tornando-se, assim, sujeita assim a eventos inespera-
dos e sofrendo as consequências, como perdas materiais e humanas.
Além das ocupações irregulares, a ocupação legal, dada pela expansão
do perímetro urbano nos anos 1970 até o período atual, favoreceu a imper-
meabilização do solo, gerando pressões sobre os serviços de infraestrutura,
incluindo a drenagem urbana e todos os seus impactos sobre o escoamento
superficial.
Outro fator contundente para atenuação dos problemas verificados na
área urbana relacionados às inundações são os resíduos sólidos lançados
na cidade, que obstruem as redes de drenagem, como as bocas de lobos e cór-
regos. Tanto a ausência de limpeza pública quanto a falta de conscientização
da população agravam esta situação.

ÁREAS DE RISCO ÀS ENCHENTES EM CUIABÁ/MT

A maior parte das áreas de risco às enchentes está localizada às margens


do rio Cuiabá e adjacências. Sua ocupação é formada por grilos, invasões,
propriedades sem documentação legalizada junto aos órgãos de planejamen-
to do município. Grande parte da população de baixa renda vive ali.
Em Cuiabá, a ocupação desordenada e a falta de políticas públicas de pre-
servação da rede hídrica, e de investimentos em saneamento e coleta de lixo

167
estão provocando aumento significativo de inundações em bairros situados
na área de inundação do rio Cuiabá. Diferentemente das enchentes do rio,
ocorridas em 1942, 1974, 1995 e 2001, em função de alto índice pluviométri-
co em todo o planalto da Bacia do Rio Cuiabá, as inundações recentes estão
mais relacionadas a erosões e entupimento das calhas dos 36 córregos que
cortam a capital e deságuam nos rios Cuiabá e Coxipó.
Segundo dados da Defesa Civil de Cuiabá (2009), existem 5,5 mil famílias
vivendo em áreas de risco às margens dos córregos e rios, situadas numa área
total de 136 hectares que, pelo Código Florestal Brasileiro, deveriam ter sido
respeitadas por serem Áreas de Preservação Permanente (APPs).
Os dados da instituição apontam que 2001 foi um dos anos em que ocor-
reram desastres ambientais nos meses de janeiro a março, período de chuvas,
em toda a Baixada Cuiabana. Naquele ano, as inundações se deram pela
dificuldade de vazão dos córregos da cidade. De lá para cá, as inundações na
capital não têm relação com o nível do rio Cuiabá.
Antes de 2001, as enchentes ocorreram devido às cheias do rio Cuia-
bá, como em 1942, 1974 e 1995. Nestas datas, inundações de proporções
lastimáveis encheram o rio, afetando toda região da Baixada Cuiabana e o
Pantanal.
Dados publicados pela Agência Nacional de Água (ANA) mostram que,
de 1967 até este ano, o comportamento de cheias no rio Cuiabá não apre-
senta comportamento anormal de cheia, sendo que na planície pantaneira a
média anual de precipitação tem sido de 1.100mm, e no Planalto (onde está
Cuiabá) a média anual é de 1.700mm.
Outro ponto importante é que desde 2002 tem funcionado a Usina Hidre-
létrica de Manso (Furnas), instalada no rio Manso, com potência instalada de
212 MW. A usina foi projetada para atender ao conceito de usos múltiplos do
reservatório e da água. Entre os benefícios do Aproveitamento Múltiplo de
Manso destaca-se o de regularizar os ciclos de cheias e secas do rio Cuiabá,
contribuindo para reduzir os danos socioeconômicos. Isso tem ocorrido, po-
rém, tem influenciado no pulso natural das águas do Pantanal, o que segundo
pesquisadores, pode estar causando danos à fauna pantaneira.
Como acontece no Brasil, a urbanização no estado de Mato Grosso
também é um fato consumado e encontra-se em um contexto de intenso
crescimento. Em Cuiabá, este processo pode ser vislumbrado pelo au-
mento do número dos bairros, que vão ocupando áreas de riscos a desas-
tres naturais, como as enchentes, por serem mais baratos e muitas vezes
nascem de processos de invasão e apropriação da área local por popula-
ções de baixa renda.

168
Cuiabá possui 36 córregos que deságuam nos rios Cuiabá e Coxipó. Cas-
tro (2009) detectou que, em 80% dos córregos, já não há vida.
Além das áreas localizadas no entorno do rio Cuiabá, na atualidade, os
36 córregos que fazem parte de Cuiabá estão contaminados com entulhos e
lixos de toda a espécie, contribuindo com entupimentos e servindo de barrei-
ra para o escoamento das águas pluviais. Nestes locais vive a população que
tem sido mais atingida pelos episódios de enchentes, na estação chuvosa.
Um dos projetos executados pela Defesa Civil de Cuiabá chama-se
“Chuva sim, pesadelo não”, elaborado logo após as enchentes de 2005,
para atender à necessidade dos desabrigados e prevenir futuros desastres.
Dentre as ações principais que constam deste projeto estão a limpeza das
‘bocas de lobo’ e córregos, que são consideradas responsáveis pelas inun-
dações urbanas. Entretanto, todos os anos, na época da estação chuvosa,
os episódios de alagamentos e enchentes continuam ocorrendo, apesar de
anunciados.
A Defesa Civil de Cuiabá contabilizou 1.377 hectares de área de risco
na cidade de Cuiabá, sendo que a maioria está ocupada de forma irregu-
lar. As construções estão em Áreas de Preservação Permanente (APP´s), às
margens dos córregos onde a mata ciliar praticamente desapareceu. Aliado
a esta situação, vários córregos foram aterrados. Foi constatado que, dos
208.439 km de extensão dos córregos da cidade, 172.357 km estão conta-
minados por esgoto e lixo.
Para Castro (1998), a pior alteração ambiental é a perturbação urbana,
e no caso de Cuiabá as consequências podem ter sido irreversíveis, pois al-
gumas nascentes foram extintas como, por exemplo, a do Córrego Canji-
ca, onde prédios na Avenida do CPA (Centro Político Administrativo) foram
construídos sobre os olhos d’água.
Embora as enchentes causadas pelo rio Cuiabá possam ser consideradas
naturais, devido às condições físicas do local - como características geológi-
cas, hidrogeológicas dos terrenos e declividade das vertentes -, por causa da
ocupação urbana irregular, a população estará sempre em situação de risco e
vulnerável às inundações.
No episódio de inundação ocorrido no ano de 2005 e causado pelas chu-
vas, a Defesa Civil retirou 63 famílias que residiam em área de risco do bairro
Parque Geórgia. Através de um programa habitacional do governo, estas fa-
mílias foram assentadas no bairro Novo Colorado.
Recentemente, em 2009, mais famílias foram retiradas das proximidades
do Córrego do Caixão, localizado no bairro Jardim Vitória, as quais recebe-
ram casa em outro ponto da cidade.

169
É importante registrar que a população que é obrigada a se mudar do
local originário de moradia, por conta dos riscos de enchentes, na maioria
das vezes não fica satisfeita com a situação vivenciada, e não raras vezes vol-
tam ao local de origem, mesmo correndo perigo de enfrentamento de novos
desastres naturais.
Assim, a situação pós-desastres naturais normalmente é traumática e traz
muitos episódios de intranquilidade para a população envolvida, Defesa Civil
e os órgãos de planejamento da cidade.
Os estudos realizados por servidores do Serviço Geológico do Brasil –
CPRM e da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT/Departamento de
Geologia/2004, mostram que o rio Cuiabá tem uma boa disponibilidade hídri-
ca anual, em torno de 1.400 mm/ano, sendo a vazão cerca de 360 m3/s. No
entanto, o período da estação chuvosa, que ocorre de outubro a março, é o
mais susceptível aos problemas com as enchentes e a erosão, devido à quan-
tidade e intensidade das chuvas, características geológicas, hidrogeológicas
dos terrenos e declividade das vertentes.
Santos (2002) utilizou dados de temperatura média mensal e de volume
mensal e médio anual de chuvas para realizar o balanço hídrico da cidade
de Cuiabá/MT no período de 1971 a 2000, bem como investigou as possíveis
causas das inundações através do uso do solo. O estudo foi realizado em três
etapas divididas, em um intervalo de 30 anos, e mostrou alterações conside-
ráveis nos totais médios de precipitação, com variações de 1.419 mm, de 1971
a 1980, para 1.612 mm, no intervalo de 1991 a 2000. Concluiu que a retirada
da vegetação altera o processo de evapotranspiração e provoca a redução da
capacidade de infiltração de água no solo. Esse fato altera o ciclo hidrológico,
favorecendo o aumento da precipitação, do escoamento superficial, mudan-
ça no nível do lençol freático e aumento da ocorrência de enchentes.
Assim, as enchentes verificadas em Cuiabá nas últimas décadas não são
provocadas por alterações de natureza atmosférica, pois as mesmas são
mínimas e os volumes dos excedentes de água no solo são de pequenas
proporções.
O Quadro 1 apresenta um resumo das ocorrências de enchentes em Cuia-
bá/MT, registrada no Perfil Socioeconômico do município de Cuiabá (2009).
Os dados evidenciam que, desde 1780, as enchentes fazem parte da trajetória
de Cuiabá. Episódios de mesma magnitude podem ter causado danos dife-
rentes, devido ao processo histórico de ocupação, produção e (re)produção
espacial em que ocorreram.
Entretanto, algumas informações nos parecem relevantes, dado o caráter
de recorrência. Trata-se dos episódios de 1942 e o ocorrido em 1974, que

170
apresentaram valores das cotas de água do rio Cuiabá semelhantes em um
espaço de 32 anos.
No contexto da estória dos eventos das enchentes de Cuiabá, a mais mar-
cante foi a de 1974, quando a cidade já passava por transformações profun-
das, tanto no aumento do seu número de habitantes como na sua posição
estratégica para a ocupação do espaço norte mato-grossense, a partir do pro-
cesso de colonização que começou em 1970.

Quadro 1 – Resumo das ocorrências de enchentes em Cuiabá/MT

Intervalo entre as
Data Descrição
Ocorrências

1780 Primeiro Registro de Enchente em Cuiabá -


1812 Destruiu a 1º Chácara 32 anos
Danos em edificações no 2º Distrito (atual
1865 53 anos
bairro Porto)
1895 Cheia de menor proporção que a anterior 30 anos
Assustou moradores e as casas foram
1905 10 anos
abandonadas
1906 Enchente de janeiro, só não excedeu a de 1865 1 ano
1942 O rio atingiu 10,57 m atingindo vários bairros 36 anos
1960 Atingiu a Av. XV de novembro 18 anos
Atingiu violentamente o bairro do Terceiro, a
1974 14 anos
cota do rio atingiu 10,87 m
Vários bairros foram atingidos, a cota foi de
1995 21 anos
10,38 m

Fonte: Perfil Socioeconômico do município de Cuiabá (2011). IPDU – Instituto de Planejamento


e Desenvolvimento Urbano (adaptado).

Tucci (2003) salienta que o aumento das áreas impermeáveis e a falta de


infraestrutura adequada para o escoamento da água acumulada são as prin-
cipais causas das enchentes pluviais. Além disso, o descontrole demonstrado
pelo poder público no tocante à ampliação das redes de drenagens são os
principais causadores das grandes inundações urbanas.
O Quadro 2 estampa os dados da situação de vulnerabilidade da po-
pulação cuiabana que vive nos bairros localizados em área de risco às en-
chentes.

171
Quadro 2 - Vulnerabilidade nos bairros localizados em área de risco às enchentes.

CUIABÁ/BAIRROS EM Área Pop


População DD Idosos %
ÁREA DE RISCO km² Idosa
Parque Atalaia 5,59 3442 616,27 159 4,60%
Parque Geórgia 1,84 668 363,04 26 3,90%
Praeirinho 0,41 2102 5126,82 73 3,47%
Terceiro (São Mateus) 0,86 2110 2453,48 87 4,12%
Porto 2,48 9335 3764,11 698 7,47%
Cophamil 1,89 6005 3177,24 335 5,57%
Novo Terceiro 0,35 3774 10782,85 240 6,36%
Cidade Verde 0,49 2757 5626,53 304 11,03%
Jardim Santa Izabel 1,4 9375 6696,42 559 5,96%
Bairro do Pari 2,36 6265 2654,66 232 3,71%
Ribeirão da Ponte 0,38 2287 6018,42 136 5,95%
Ribeirão do Lipa 3,7 2244 565,23 111 4,95%
Três Barras 1,27 6495 5114,12 225 3,47%
Jardim dos Ipês 0,45 2042 4537,77 67 3,28%
Bela Marina 1,11 473 430 9 1,89%
São Gonçalo 1,07 290 170,58 30 7,34%
Fonte: Adaptado IBGE, 2000

O PROBLEMA DOS CÓRREGOS EM CUIABÁ

Dos 36 córregos de Cuiabá, o Barbado é que mais provoca dano a popu-


lação. Em 2001, o motivo das enchentes foi a cheia do Rio Cuiabá, onde um
temporal atingiu especificamente os córregos da capital. O Rio Cuiabá subiu
3,22 metros em 24 horas, saltando de 0,34m, numa terça-feira (04/2001), para
3,56m, na quarta, de acordo com a régua da Defesa Civil instalada nas proxi-
midades do Museu do Rio, no Porto.
A pressão da enxurrada sobre o córrego do Barbado distribuiu a calamidade
por pelo menos sete bairros localizados em seu percurso. Os maiores estragos
foram nos bairros Pedregal, Barbado, Itamarati e Praeirinho, onde a correnteza
tragou casas, árvores, carros e pessoas. Naquele ano, no mês de abril, 15 pes-
soas morreram e 5,5 mil ficaram desabrigadas. Evento parecido em menor in-
tensidade ocorreu nos últimos anos nos mesmos bairros, sempre com perdas
materiais e humanos. O bairro Praieirinho surgiu há 30 anos, nas margens do
rio Cuiabá, e por ter declividade muito baixa sempre sofrem as ações deriva-
das das enchentes do córrego Barbado. Possui cerca de 700 famílias que vi-
vem sem rede de esgoto e em condições urbanas precárias (A GAZETA, 2009).

172
ALAGAMENTOS EM CUIABÁ/MT

No Brasil, a concepção higienista que prevaleceu na década de 70 do


século passado (SILVEIRA, 1998) fez da canalização e retificação dos cór-
regos urbanos, juntamente com a execução das galerias de águas pluviais
a única solução aos problemas urbanos de alagamentos e inundações. O
intuito desta concepção foi transferir a jusante para longe da população, a
fim de que o volume gerado pelas águas das chuvas, sem a devida preocu-
pação dos impactos causados ao ciclo hidrológico, seja pelo aumento dos
picos das vazões, ou ainda a diminuição da recarga das águas subterrâneas
(MENEZES FILHO et al., 2014).
As críticas aos projetos de drenagem urbana baseiam-se no fato de os
mesmos terem como princípio escoar a água precipitada, o mais rapidamente
possível, para jusante. Para a engenharia moderna tal critério aumenta em
várias ordens de magnitude a vazão máxima, a frequência e o nível de inun-
dação de jusante. As áreas ribeirinhas, que o rio utiliza durante os períodos
chuvosos como zona de passagem da inundação, têm sido ocupadas pela po-
pulação com construções e aterros, reduzindo a capacidade de escoamento.
A ocupação destas áreas de risco resulta em prejuízos evidentes quando o rio
inunda seu leito maior.
Para alterar esta tendência é necessário adotar princípios de controle de en-
chentes para que o aumento de vazão, devido à urbanização, não seja transferi-
do para jusante; Deve-se priorizar a recuperação da infiltração natural da bacia,
visando a redução dos impactos ambientais; A bacia hidrográfica deve ser o do-
mínio físico de avaliação dos impactos resultantes de novos empreendimentos,
visto que a água não respeita limites políticos; O horizonte de avaliação deve
contemplar futuras ocupações urbanas; As áreas ribeirinhas somente poderão
ser ocupadas a partir de um zoneamento que contemple as condições de en-
chentes; As medidas de controle devem ser preferencialmente não estruturais.
Para a implementação de padrões de controle que busquem uma visão
de desenvolvimento sustentável no ambiente urbano, é necessário um Plano
Diretor de Drenagem Urbana.
A expansão do perímetro urbano de Cuiabá no início dos anos 1960 fa-
voreceu a ocupação de forma desordenada do uso do solo e o incremento
das inundações urbanas, seja pela intensa impermeabilização, como tam-
bém pela retificação e canalização dos córregos urbanos como os Córregos
da Prainha e o do Barbado. As avaliações revelam que a urbanização da
capital de Mato Grosso influenciou no aumento da frequência de inunda-
ções, e os seus impactos repercutiram em prejuízos de natureza material e
humana.

173
Entretanto, após as obras para a Copa do Mundo de 2014, as modificações
no uso do solo urbano implicaram em episódios de alagamentos em vários
pontos da cidade, em especial na Avenida da Prainha e no Viaduto Clóvis de
Melo, nas imediações da Universidade Federal de Mato Grosso, devido aos
problemas de drenagem provocados pelos resíduos sólidos que entopem as
bocas de lobo nos locais.
No Quadro 3 podem ser visualizados exemplos de alguns episódios de
alagamentos na área urbana de Cuiabá/MT, bem como o total diário de chuvas
para cada episódio. É importante frisar que estes dados diários de chuvas ocor-
rem em tempos curtos e isso pode gerar alagamentos e até inundações, devido
à força da água e os problemas de vazão e percolação. No dia 26/10/2017
choveu 96,5 mm, em pouco mais de uma hora e meia, gerando grandes pre-
juízos à população local. Os alagamentos na Avenida da Prainha derivam do
escoamento da água vinda das Avenidas Getúlio Vargas, Isác Póvoas e Rua
Clóvis Hugueney.

Quadro 3 - Episódios de Alagamentos na área urbana de Cuiabá/MT

Total diário
de chuvas
Data Locais atingidos Prejuízos Materiais
(mm) -
INMET
Av. Fernando Correia
Alagamentos de
da Costa, Tijucal,
residências, ruas e
Bosque da Saúde II,
28/05/2009 avenidas. Não foram
Dom Aquino, Av. 21,6
registradas perdas
CPA e Av.Miguel
humanas.
Sutil.
Quedas de muros,
Bosque da Saúde, de energia e painéis
Consil, Boa publicitários,
5/12/2010 Esperança, Avenida destelhamentos de
24,3
do CPA, Avenida residência e postos de
Miguel Sutil e região gasolina, entre outros mais.
do Coxipó. Não houve registro de
perdas de vidas.
Região do viaduto Congestionamento,
10/02/2017 Clóvis Roberto e impedimento e tumulto do 43,1
Córrego do Barbado. trânsito no local.
Bairro Santa Isabel
Alagamentos das ruas e
07/01/2014 nas proximidades da 21,2
algumas residências locais.
Arena Pantanal

174
Transtorno no trânsito.
Ruas e Avenidas de
26/10/2016  Quedas de árvores 96,5
Cuiabá.
ocorrências de inundações.
Alagamentos em
Trânsito lento. Em pouco
trechos das avenidas
06/03/2017 mais de uma hora choveu
do CPA, Tenente
aproximadamente 35
Coronel Duarte e 35,2
milímetros, apontou a
Fernando Corrêa
defesa civil.
(Viaduto da UFMT).
Fonte: Defesa Civil de Cuiabá, Semob, Corpo de Bombeiros e INMET.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os desastres naturais acompanham a humanidade desde seus primór-


dios. A inserção dos desastres naturais no âmbito das incertezas que per-
meiam as mudanças climáticas tem sido uma constante em vários estudos
sobre a temática.
Os registros de enchentes e de inundações ocorridas em Cuiabá mostram
que estas estão concentradas em áreas de riscos localizadas às margens do rio
Cuiabá. A situação dos córregos e da infraestrutura da rede de drenagem e lim-
peza de boca de lobo dos bairros de Cuiabá atingidos pelas enchentes da época
chuvosa necessita de cuidados e olhares diferenciados pelo poder público, obje-
tivando amenizar ou sanar o problema.
Os órgãos de planejamento e execução das políticas públicas municipal ne-
cessitam de instrumentos de análise, como os mapeamentos geotécnicos e de
áreas de riscos, contendo a situação de suscetibilidade física e vulnerabilidade
da população e sua utilização no plano diretor do município. Apenas oito mu-
nicípios em Mato Grosso possuem mapas de riscos múltiplos, ou seja, apenas
6% do total de 141, o que evidencia dificuldades para ações de prevenção e ge-
renciamento de tragédias no Estado. O objetivo é conhecer a morfologia da re-
gião para contribuir no trabalho de prevenção de acidentes e desastres naturais.
Estudos sobre o problema são necessários e urgentes, pois auxiliam a
proposição e execução de ações preventivas, em detrimentos das curativas,
como medidas para retirar as pessoas que vivem em ocupações irregulares
em locais de riscos o que redunda em problemas para realocar essa popula-
ção, além do trabalho de conscientização, pois em geral as pessoas aceitam
a mudança enquanto estão em perigo e voltam quando cessa a turbulência.
Apesar de Cuiabá nunca ter sido declarado em estado de calamidade pú-
blica, a ocupação desordenada de APPs potencializa risco ligados às enchen-
tes e inundações na capital mato-grossense.

175
Na estação seca as tragédias estão relacionadas às queimadas urbanas e
rurais no estado, deixando grande parte do tempo Cuiabá coberta por fuma-
ça. Esta situação deriva das queimadas que ocorrem no entorno da cidade e
em outras localidades do estado, e são levadas pela ação do vento na circula-
ção atmosférica regional, pois Cuiabá se constitui em área de baixa pressão.
A prática brasileira tem mostrado a inexistência de políticas para gerenciar
os riscos aos desastres naturais, e Mato Grosso está entre os três estados que
menos focam em prevenção com ações integradas com a sociedade para se
chegar a uma solução aceitável, de acordo com o Sistema Integrado de Admi-
nistração Financeira do Governo Federal (Siafi).
Enfim, para reduzir a suscetibilidade local e a vulnerabilidade da popu-
lação são necessárias ações efetivas, sérias e comprometidas para a gestão
sistemática dos riscos aos desastres naturais que incluem as fases do salva-
mento e reconstrução, mas, acima de tudo, medidas de resiliência e respostas
antecipadas aos desastres.
As ocorrências dos desastres naturais severos poderão contribuir para
agravar ainda mais, no futuro, mudanças climáticas em curso no planeta.

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178
TUMULTO NAS TRINCHEIRAS: A CUIABÁ QUE
EMERGE NAS NARRATIVAS DE PRISIONEIROS
DA PENITENCIÁRIA CENTRAL DO ESTADO
Priscila de Oliveira Xavier Scudder167

O mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória,


a fronteira, é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. (…). Nas
regiões coloniais, o gendarme e o soldado, por sua presença imediata,
por suas intervenções diretas e freqüentes, mantêm contacto com
o colonizado e o aconselham, a coronhadas ou com explosões de
napalm, a não se mexer. Vê-se que o intermediário do poder utiliza
uma linguagem de pura violência. O intermediário não torna mais leve a
opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa
consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência à casa
e ao cérebro do colonizado.
Frantz Fanon (1968)

Todo território colonizado tem a violência como mito fundador. As estra-


tégias de dominação, exploração e tomada de posse de regiões localizadas
ao Sul do planeta, por parte da empresa colonizadora europeia, foram ar-
quitetadas a partir do desenvolvimento de técnicas de matar e extrair lucro
de corpos não brancos e da elaboração de teses científicas e religiosas de
desumanização das populações nativas africanas e ameríndias submetidas à
escravidão.
Grande período da história do Brasil transcorreu sob a égide do colonia-
lismo, e observando o modo como a história política brasileira se desenvol-
veu após os adventos da Independência e da República, é possível concordar
com Walsh (2007, p. 29), que De hecho, la colonialidad no terminó con la
colonia, sino que aún continúa.
A colonialidade continua, por exemplo, no modo violento como o Estado
Nacional – vale observar que o próprio conceito de Estado-Nação se constitui
em herança colonial –, “aprecia”, classifica, aplica a lei, organiza o mercado,
destina lugares e instituições da cidade para os cidadãos, baseado em crité-
rios racistas.

167 Profa. Dra. Priscila de Oliveira Xavier Scudder. Departamento de História/ICHS/UFMT/CUR.


Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGedu/UFMT. apriscilaxavier@gmail.com

179
Pensamos ser deveras pertinente, grifar que Cuiabá, como espaço inte-
grante do território brasileiro e, por conseguinte, dos países subalternizados,
não escapou à lógica colonial. A mentalidade colonial é algo que se instituiu
ao longo do tempo e do espaço, avançando por cada canto do planeta, im-
pondo a tríade da colonialidade, a dizer: a colonialidade do poder, a colo-
nialidade do saber e a colonialidade do ser, e isto tem sido algo que homens,
mulheres e crianças não brancos enfrentam em seus corpos ainda hoje.
A onda conservadora a que temos assistido: tráfico de pessoas, leilões
on-line de refugiados negros como escravos, ataque aos governos de países
latino-americanos, africanos e árabes; avanço de discursos políticos e parti-
dos de extrema direita na Europa e nos Estados Unidos; a caça a intelectuais
de esquerda, o desrespeito às diferenças de gênero e étnicas, o genocídio dos
jovens negros de periferia, o extermínio dos povos indígenas, atestam para
o que Grosfoguel (2009), denomina de “segunda colonização do planeta”.
O encarceramento em massa, a força repressiva com que o Estado se lança
sobre as populações de periferia das metrópoles e do interior são instigantes
indicadores desse movimento.
O atual cenário político brasileiro, que tem na cassação do mandato da
presidenta legitimamente eleita, Dilma Vanna Roussef, em 31 de agosto de
2016, o marco e o ponto de partida de implantação de uma política econômi-
ca de atendimento integral aos interesses do mercado global, de suspensão
dos direitos trabalhistas, de aumento do desemprego, de ataque aos povos
tradicionais indígenas e quilombolas, de anulação de políticas públicas, de
pauperização da população, de desindustrialização, de privilégio aos grupos
financeiros, parece demonstrar a assertividade da análise de Grosfoguel.
Diante deste quadro, não parece sensato ou justificável pensar o lugar do
colonizado exclusivamente a partir da ótica do colonizador, de seus conceitos
e pressupostos considerados universais. Assim que, escolhemos pensar Cuia-
bá a partir de autores que experimentaram e/ou experimentam a condição
de colonizado. O filósofo, médico e ensaísta da Martinica, Frantz Fanon, junto
com Albert Camus, filósofo, escritor, jornalista, romancista e dramaturgo arge-
lino, são nossos principais interlocutores para pensar o lugar do colonizado,
a periferia, os guetos e as prisões da capital de Mato Grosso.
Se Fanon e Camus são nossos principais interlocutores, isso não significa
que descartamos todo saber produzido na Europa, ou que desejamos subs-
tituir um eurocentrismo, por um afrocentrismo ou americocentrismo, como
poderiam deduzir os mais apressados. O que almejamos, ao menos neste
texto, é que a perspectiva ou tradução europeia do mundo, não tenha o
poder de impor uma palavra final sobre as coisas, a fim de não reforçar uni-
versalismos. Primamos pelo estabelecimento de um diálogo de saberes com

180
as epistemologias do Sul, pela construção de uma linguagem inteligível ao
nosso povo, ao povo colonizado.
Além dos autores reconhecidos pela academia, decidimos pensar Cuia-
bá com as narrativas de personagens aprisionados na capital. Consideramos
suas experiências como portadoras de ensinamento e os reconhecemos, ao
modo de Primo Levi (2004), como “historiadores de si mesmos”. Desse modo,
nesta escrita, os prisioneiros são autores. Seus relatos e vivências não estão
localizados em um lugar subalterno, em um degrau inferior em uma fictícia e
presunçosa hierarquia de saberes. É com sua vida e morte que travamos diá-
logo e refletimos sobre lugares turvos, imperceptíveis, quiçá incorpóreos da
cidade, no sentido mesmo de que pareçam não possuir corpo, sangue, gente,
pessoas que “mereçam” bem-viver.
Apesar de serem fragmentos de um conjunto de escritas de si, composto
entre os anos de 2004 a 2013, para elaboração de teses, naquele momento
ensinaram outras coisas. Poder retornar às narrativas e descobrir algo que
não havíamos percebido, como a cidade vista pelo olhar de quem vive sob
a sentença de privação de liberdade, de quem não possui direito de circular
por suas vielas, becos e ruas, e que por essa razão guarda cuidadosamente
retalhos de sua própria vida, histórias que podem impedir que o esquecimen-
to seja também uma outra forma de estar aprisionado às grades. É também
reconhecer que existe nestes escritos algo capaz de “reter o sublime” (NIET-
ZSCHE, 2005). Por sua vez, a liturgia de rememoração é a ferramenta que
permite que conheçamos um território que, via de regra, somos impedidos
ou temos medo de conhecer: quebradas, aberturas, cubículos por onde ape-
nas os prisioneiros se movem.
Desde o ano de 2004, prisioneiros confinados no Centro Socioeducativo
Pomeri e na Penitenciária Central do Estado revelaram168 uma Cuiabá que se
articula e se organiza tendo a violência como cenário. O peixe, a manga e o
cajú, o Cururu, o Siriri, o Rio Cuiabá, o rasqueado, o lambadão, o calor es-
caldante, não sufocam os gritos, os tiros, a violência policial, as chacinas, o
sumiço de moradores de rua, as mortes que espreitam a periferia e as celas.
168 Através de pesquisas realizadas nestas instituições e das narrativas de seus “moradores”, que
resultaram em dissertação e tese, respectivamente intituladas “Pomeri: Espaço de Reclusão
Máquina de Guerra: O Cotidiano de uma Instituição de Fechamento: Mato Grosso nos Auspícios
do Século XXI” (Programa de Pós-Graduação em História/UFMT, 2007) e “A ARTE DE VIVER
EM CUBÍCULOS: um diagrama auto/otobiográfico com Nietzsche e prisioneiros sobre a prisão”
(Programa de Pós-Graduação em Educação/UFMT, 2013). À época da escuta das narrativas dos
prisioneiros (adolescentes e adultos), e da transformação destas em dissertação e tese, minhas
vivências e os autores com quem dialogava me permitiram “olhar” e “escutar” de determinada
maneira. No transcurso do tempo as vivências se avolumaram, novos diálogos foram travados,
e se recupero as narrativas dos prisioneiros para pensar a cidade de Cuiabá, é de um lado, por
saber que guardam ensinamentos que naquele momento não pude reconhecer, e por outro,
pelo fato das leituras e dos autores com quem me encontrei posteriormente permitirem que
outras possibilidades fossem percebidas.

181
A geografia e a arquitetura da cidade de Cuiabá escondem de um visitan-
te apressado e desatento que circula apenas pelo centro e seu entorno, os
bairros de onde saem os prisioneiros que ouvimos. Neste artigo, recorremos
a Fanon, e com ele nomeamos os bairros da periferia como lugar, cidade ou
Cuiabá do colonizado, e o centro e os bairros “nobres” enquanto lugar, cida-
de ou Cuiabá do colono. Fanon informa que,

A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada


pelos colonos. Estas duas zonas se opõem, mas não em função de
uma unidade superior. Regidas por uma lógica puramente aristotélica,
obedecem ao principio da exclusão recíproca: não há conciliação possível,
um dos termos é demais. A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de
pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixotes do lixo
regurgitam de sobras desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sondadas.
Os pés do colono nunca estão à mostra, salvo talvez no mar, mas nunca
ninguém está bastante próximo deles. Pés protegidos por calçados fortes,
enquanto que as ruas de sua cidade são limpas, lisas, sem buracos, sem
seixos. A cidade do colono é uma cidade saciada, indolente, cujo ventre
está permanentemente repleto de boas coisas. A cidade do colono é uma
cidade de brancos, de estrangeiros. (FANON, 1968, p. 28-29).

A Cuiabá dos colonos é de pouco acesso. Os muros, a parafernália eletrôni-


ca, os carros de vigilância, os seguranças, as catracas, roletas, os portões e car-
tões digitais, mas também tudo que reveste seus habitantes, toda cerimônia que
marca o ritmo de suas vidas indica que, de fato, não há conciliação possível.
No ano de 2004, o adolescente S., confinado no Centro Socioeducativo
Pomeri, contou que quando escolhia uma casa para assaltar, observava se ela
estava em uma área de bonita paisagem, e citava o Jardim das Américas e o
Alphaville como lugares de bela paisagem, por possuírem dois ou três carros
na garagem, motos, jet ski, etc. Por sua vez, S. habitava uma paragem desérti-
ca, construída e mantida sobre ruínas, um local onde faltavam, tanto os bens
materiais que para ele definiam a beleza de um lugar, como os lagos, a grama,
o asfalto, as guaritas, os carros de segurança privada e a polícia educada (qua-
se subserviente), o respeito e o cuidado para com a vida. Seu lugar, de onde
sabia que não sairia, era a periferia, ou recorrendo à nomeação de Fanon, a
cidade do colonizado, assim apresentada pelo pensador:

A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade


negra, a médina, a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de
homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa
como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo

182
sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas
sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta
de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado
é uma cidade acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É
uma cidade de negros, uma cidade de árabes. (Ibid.).

“O mundo colonial é um mundo dividido em compartimentos” (Ibid., p.


27), e as cidades deste mundo são erguidas obedecendo a mesma lógica. Uma
breve mirada para as inscrições nas paredes das prisões faz emergir mapas,
possibilidades de percurso por cada repartição, por cada favela, por cada boca,
por cada vala. É possível constatar que na cidade do colonizado a vigilância
é ininterrupta, o que não se traduz em segurança. O que o Estado assegura é
que nessas regiões abandonadas, nestes aterros humanos, a violência seja a
linguagem corrente e exercida em benefício da manutenção da ordem e do
acertamento de que não se expanda para além dos limites, de que não atinja os
bairros dos colonos; lá, sim, as práticas das forças repressivas visam garantir a
segurança, fortalecer as fronteiras, impedir o acesso dos mais pobres.
Apesar do aparato de vigilância e controle da população, do olhar panóptico
que recai sobre as periferias, uma vez que, vez por outra, alguns de seus mora-
dores ignoram as divisas e ultrapassam a linha fronteiriça, nestes casos a prisão
se assoma como destino provável. Os homens cujas narrativas registramos são
do tipo que se rebelam e assumem riscos. São homens que desde “[...] seu nasci-
mento percebem claramente que êste mundo estreito, semeado de interdições,
não pode ser reformulado senão pela violência absoluta”. (FANON, 1968, p. 27).
O censo de 2010 classificou três bairros da capital de Mato Grosso como
favelas, a saber, Dr. Fábio, Três Poderes e Altos da Boa Vista, todos três oriun-
dos de “grilagem”. Apesar de eles registrarem situação preocupante, do ponto
de vista das profundas desigualdades sociais, a jornalista Keka Verneck refletia,
em matéria publicada em 2006, que haviam “[...] 23 comunidades em Cuiabá
que podiam ser consideradas favelas, de acordo com indicadores sociais levan-
tados pelo Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Urbano (IPDU)”.169
Dentre estes vinte e três bairros, destacamos o Pascoal Ramos. Oliveira
(2017), problematizando a organização do espaço urbano de Cuiabá, infor-
mava que por volta de 1980,

[...] novos loteamentos, até então irregulares, foram inseridos no


perímetro urbano, dentre eles: Três Barras, Jardim Fortaleza, Pascoal

169 VERNECK, Keka. “100 mil pessoas moram em 23 bairros que hoje são favelas em Cuiabá”.
Gazeta Digital. Cuiabá, 23 de abril de 2006. Disponível em http://www.gazetadigital.com.br/
conteudo/show/secao/9/materia/108456/t/100-mil-pessoas-moram-em-23-bairros-que-hoje-
sao-favelas-em-cuiaba . Acessado em 27 de maio de 2018.

183
Ramos, São Sebastião, Tijucal e de inseridos no perímetro urbano, estes
bairros – juridicamente ilegais – constituem Pedra 90 por meio da Lei
Complementar no 003/1992 (Lei do Plano Diretor). Apesar produtos
do processo de periferização da cidade de Cuiabá, muito comum nas
cidades brasileiras. (OLIVEIRA, 2016, p. 64).

Distante 15 km do centro da cidade de Cuiabá, com população estimada,


pelo censo de 2010, em 3.165 habitantes, o bairro do Pascoal Ramos registra
problemas comuns a tantas outras periferias do país, como exemplo, a sus-
pensão frequente de abastecimento de água, ausência de unidades de pronto
atendimento (UPAs), de locais de lazer, em especial para a população mais
jovem, carência de iluminação pública etc. A Penitenciária Central do Estado
(PCE), popularmente conhecida como Penitenciária do Pascoal Ramos, é a
instituição associada, no nível da representação e da imagética, a esta região
da cidade. Sua edificação, com as costas voltadas para as margens da BR-364,
e com a lateral para a Alameda B, que dá acesso ao bairro, parece funcionar
como portão de entrada e enquanto marca da gente do lugar.
Observa-se, na imagem a seguir, que em frente à Penitenciária Central do
Estado encontra-se a Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto, May. Nela,
encontram-se aprisionadas avós (especialmente bolivianas), mães e esposas,
cujos filhos e maridos estão confinados no prédio que conseguem avistar,
mas cujo contato e proximidade física não podem manter. Além de estar
trancafiados em uma instituição localizada em um bairro periférico, a proce-
dência dos homens e mulheres encarcerados, seus locais de proveniência,
são igualmente subalternizados.
O fato de as duas prisões se posicionarem no mesmo espaço geográfico
de aprisionamento de famílias, faz com que seja criada, no imaginário coleti-
vo, a ideia de que as famílias dos prisioneiros e seus descendentes são natu-
ralmente maus, fazendo com que realizem o papel de lembrar a todos que:

[...] o mundo colonial é um mundo maniqueísta, não basta ao colono


limitar fisicamente com o auxílio de sua polícia e gendarmaría, o espaço
do colonizado, como que para ilustrar o caráter totalitário da exploração
colonial, o colono faz do colonizado, uma espécie de quintessência do mal.
A sociedade colonizada não é apenas descrita como uma sociedade sem
valôres. (…) O colonizado é: ousemos confessá-lo, o inimigo dos valôres.
Neste sentido, é o mal absoluto. Elemento corrosivo, que destrói tudo o
que dêle se aproxima, elemento deformador, que desfigura tudo o que se
refere à estética ou à moral, depositário de fôrças maléficas, instrumento
inconsciente e irrecuperável de fôrças cegas. (FANON, 1968, p. 31).

184
De fato, a distribuição destas penitenciárias no mesmo espaço alimenta
a ideia de sua origem maligna, deformada, inimiga dos valores e perigosa.

Figura 1 – Vista aérea da Penitenciária Central do Estado de Mato Grosso/


Cuiabá/MT

Fonte: Google Maps [Central State Penitentiary]. [2018]. Disponível em: https://www.google.
com/maps/place/Central+State+Penitentiary/@-15.6530098.Acessado em: 03/06/2018.

Figura 2 – Imagem da Alameda B e do muro lateral da Penitenciária Central do


Estado de Mato Grosso/Cuiabá/MT

Fonte: Mídia News. Foto de: Tony Ribeiro/Mídia News. Disponível em: http://www.midianews.
com.br/conteudo.php?sid=3&cid=215871. Acessado em: 06/06/2018.

185
Sobre as prisões mato-grossenses, os dados do INFOPEN, de 2014, es-
clarecem que no Estado há um número de 10.357 pessoas aprisionadas. Essa
população encontra-se distribuída em 41 cadeias públicas masculinas e duas
femininas, 4 Centros de Detenção Provisória, 1colônia penal e 4 penitenci-
árias masculinas e 1 feminina. Segundo informações de servidores, na PCE
estão confinados aproximadamente 2.500 homens, em maioria absoluta de
negros, situação recorrente nas prisões espalhadas pelo país, conforme con-
firma o Mapa do Encarceramento de 2015. Estes homens nos ensinam sobre
o modo como o racismo estrutura o sistema-mundo capitalista e sobre o fun-
cionamento do poder panóptico, do poder punitivo que seleciona seus alvos
recorrendo a critérios racistas e classistas. Suas narrativas revelam pedaços
de Cuiabá geralmente invisibilizados, os bairros da periferia, e os próprios
territórios das maquinarias violentas prisionais.
Se voltarmos à afirmação de Oliveira (2017), de que o bairro Pascoal Ra-
mos era considerado, na década de 80, como um assentamento irregular,
lembrando que ele figura no mapa e no imaginário dos cuiabanos como pe-
riferia da cidade, por apresentar toda precariedade característica destes espa-
ços urbanos, podemos, sem muita hesitação, inferir que as condições de vida
no interior dos muros da instituição são ainda mais marcadas pelo sofrimento.
A PCE possui 93.380,62 m2, área que abriga cinco raios ou alas, um con-
teiner ou seguro, uma unidade de saúde, os prédios da administração, con-
tando ainda com considerável área aberta, sem construção. No ano de 2010,
o Mutirão Carcerário, movimento desenvolvido em todo país pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), relatou que a maior unidade prisional do estado
abrigava 1.800 detentos, dentre provisórios e condenados, sendo que sua
capacidade é limitada a 700 presos. Registrou ainda que, apesar da Lei de
Execução Penal estabelecer que uma cela de 15 metros quadrados é indicada
para confinar no máximo três pessoas, as celas da PCE confinavam em média
25 presos. Considerando que o número atual de homens aprisionados na PCE
beira a 2.500, segundo informação de servidores da unidade, a situação pode
ser considerada, sem risco de erro, como caótica.
O número de prisioneiros por si só é suficiente para adjetivarmos as pri-
sões enquanto maquinarias de adoecimento e enfraquecimento da vida e
produtoras incansáveis de violências. É preocupante o fato de que, apesar
de as unidades prisionais de Mato Grosso abrigar um número de prisioneiros
78% acima de sua capacidade, Mato Grosso figure como o que apresenta os
melhores índices da região Centro-Oeste.
A decadência da arquitetura, somada à insalubridade do ambiente, sen-
tida no cheiro de esgoto, suor, no amontoado de gente e à docilidade dos
corpos dos agentes da lei, sempre dispostos a responder com prontidão e

186
com uso da força a qualquer comando, favorecem o desenvolvimento de
um protocolo de violência cotidiana de todos os tipos e graduações, que de
tão corriqueiros, naturalizados e banalizados, se tornam um padrão aceito e
assumido quase que pela totalidade dos servidores.
Em 2009, em conversa com um agente penitenciário durante plantão,
ouvimos o seguinte relato:

[...] fui levar o C. pro Raio V. Ele levou tanta taca, taca. Ainda era a
turma do sargento JB, ele é sanguinário. No V é assim, é regra levar
taca. Ainda que chegou sete presos bem na hora, apanhou todo
mundo. Até os agentes bateram. Foi W., A., aquele negão da Saúde
II. Todo mundo encapuzado. Eu nunca tinha visto isso! Os agentes
já chegaram lá tirando os capuz do bolso. Já foram preparados.
Eu vi lá que eles mandaram fazer aqueles paus redondos. Tá
novinho! Bateram com aquilo! Quando eu vi a taca falei: me dá
minha algema que eu vou embora. Os caras ficaram lá levando
taca! (Agente Penitenciário AP. Cuiabá, maio de 2008. In: SCUDDER,
2013, p. 70)

Esta violência ritualística sem freios, que se expande sob a tutela do Esta-
do, violência ministrada nos cursos de formação, e que transforma o corpo do
“soldado” em ferramenta automática de coerção, é narrada pelo prisioneiro
FJ da seguinte maneira:

Você sabe que o A ficou louco desse jeito por trauma que ele viveu
aqui? No dia do grande encontro ele tava aqui. No grande encontro
a polícia do estado pegou o pessoal que tinha bronca da Mata
Grande, Carumbé, Pascoal, as cadeias dos interior aí, e empurrou
tudo aqui no Pascoal Ramos. Amigo e inimigo. Aí deu o grande
atrito. Os inimigos se encontraram. Cada um quis cobrar o seu
passado. Aí teve o grande encontro. Foram doze para o barro. E
ainda continua assim, uns matando os outros, se encontrando nas
cadeias. Eu estava no Carumbé. Aí depois que eu explodi lá foi
que eu entrei para a lista. A lista dos caras que fizeram algo que o
sistema não aceita. Aí que eu fiquei conhecido como o marujo katy
Jone, tripulante da nave. Mandando na droga, roupa boa, com
dinheiro, antes eu tivesse continuado assim. (Prisioneiro FJ. Cuiabá,
julho de 2009. In: SCUDDER, 2013, p. 70)

A Cuiabá que emerge das narrativas dos prisioneiros é uma Cuiabá dos
colonizados, de homens e mulheres revoltados, de uma gente que, jogada
para fora dos lugares aceitáveis do sistema-mundo capitalista e tratada como

187
refugo ou como matável, insiste em dar provas da condição em que vive, em
deixar rastros e pistas que interroguem e ponham sob suspeita os discursos
políticos, midiáticos, jurídicos, jornalísticos, pegadas deixadas em boletins de
ocorrência, planos diretores, relatórios etc., que, autoritariamente, os classifi-
ca. Os indícios deixados pelos prisioneiros podem ser encontrados também
nas paredes das celas, nos bilhetes encaminhados para as famílias, nos reca-
dos, denúncias e pedidos de ajuda aos assistentes sociais e até mesmo para
pesquisadores, e, em algumas situações, apenas seus corpos são portadores
dessas inscrições. O prisioneiro PCM (hoje confinado na Penitenciária Major
Eldo de Sá Correia em Rondonópolis), a quem entrevistamos durante pesqui-
sa de doutorado, relatou:
Fizeram tudo isso prá rapá minha cabeça.... Aconteceu assim:
Entraram no cubículo com a história de que iam arrumar a câmera, aí
me tiraram aqui prá frente, me deram um monte de bicuda, queriam
que eu ajoelhasse, me enforcaram com o braço, eu tava algemado
com a mão prá trás, me jogaram no chão, pisaram no meu pescoço.
Aí falaram prá eu falar pro diretor que eles tinham batido em mim
de novo. Nisso eles não tinham rapado minha Cabeça ainda. Aí me
trancaram de novo, uns dez minutos depois para rapá minha cabeça,
aí mandaram eu ficar de joelho e raparam, tinhas uns sete, oito PM,
sargento pagando que se eu não ajoelhasse quebrava o outro braço. Aí
raparam minha cabeça e me levaram prá enfermaria. Aí a enfermeira
mandou tirar radiografia, mas eles não me levaram, vão me levar
como? Vão dizer o que? Que eu escorreguei? Aí no Pronto-Socorro que
eles iam fazer? Exame de corpo-delito, IML. Hoje faz seis dias que eu tô
em greve de fome. A greve de fome é para o diretor me ouvir. (Prisioneiro
PCM. Cuiabá, novembro de 2008. In: SCUDDER, 2013, p. 35).

A passagem por várias unidades de aprisionamento, adicionadas às di-


versas tentativas de fuga, fizeram de PCM um prisioneiro famoso no sistema
prisional, mas também fizeram recair sobre si toda sorte de retaliação. Sobre
as fugas, é possível pensar que constituíam instrumentos de defesa e prote-
ção de sua integridade. Afinal, permanecer em silêncio, à espera do cumpri-
mento da pena, não expressa o temperamento de um homem revoltado, de
um homem que “[...] não busca conquistar, mas impor”. Afinal, “a revolta [...]
aceita inclusive o sofrimento para si mesmo, desde que sua integridade seja
respeitada”. (CAMUS, 2017, p. 28)
A integridade, nesse caso, não se restringe ao corpo, mas ao modo como
a pessoa se percebe e se refere à recusa da sujeição, da perda da humanida-
de, do rebaixamento moral, do impedimento de se rebelar contra o carrasco,

188
de fugir de uma situação que leva à morte ou à detenção sem perspectiva
de liberdade no horizonte. E não se trata do ideal de liberdade da Revolu-
ção Francesa, ideal despido de realização prática para os colonizados, mas
da liberdade de organizar o dia, de planejar a atividade, de realizar alguma
coisa sem a administração alheia, de não repetir sim senhor aos algozes, de
manter em cena um personagem não subserviente, cabisbaixo, que precisa
de autorização para as “pequenas coisas” (NIETZSCHE, 2005), como utilizar
o sanitário, escovar os dentes, pequenas ações do dia à dia, em tudo contro-
ladas na prisão.
Semelhante submissão, o dever de solicitar consentimento para todos os
passos, gera revolta, e a revolta que “[...] não elege um ideal abstrato […],
exige que seja levado em conta aquilo que, no homem, não pode ficar limi-
tado a uma ideia, esta parte ardorosa que não serve para nada a não ser para
existir”. (CAMUS, 2017, p. 28-29). No caso dos prisioneiros, expressões, como
liberdade, integridade física, direitos individuais, se assemelham, via de regra,
a uma ideia e não a uma experiência com sentido prático para a vida, e estes
termos, quando figuram como coisas limitadas à retórica, põem os homens
em movimento.
Os rituais de mortificação do eu (GOFFMAN, 1974) encenados nas pri-
sões, tornam o próprio prédio e todo artefato relativo às pequenas coisas
desta arquitetura, inomináveis e falsificáveis. Por exemplo, durante os anos
de 2009 a 2013, as celas da PCE foram chamadas de cubículos, descrição que
correspondia adequadamente ao lugar. Por outro lado, no Centro Socioedu-
cativo Pomeri, quando as celas passaram a ser chamadas de quartos, os ado-
lescentes, percebendo a impostura, passaram a chama-las de kitnets, suítes,
apartamento. Da mesma forma, ao nomear o isolamento como reflexão e os
prisioneiros por reeducandos, recuperandos, ressocializandos, realocandos,
a própria instituição estimula os prisioneiros a duvidar de que possuam uma
finalidade, algum resquício de propósito, e de que nela permanecendo se
alcançará a liberdade.
As fugas narradas por PCM, por vezes por meio de uma linguagem oral
e corporal orgulhosa e raivosa, confirmavam que estávamos diante de um
homem revoltado. A este respeito, Camus reflete que:

Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do


movimento de revolta, ele ganha a consciência de ser coletivo, é a
aventura de todos. [...]. O mal que apenas um homem sentia torna-
se peste coletiva. [...]. Ela é um território comum que fundamenta o
primeiro valor dos homens. Eu me revolto, logo existimos. (CAMUS,
2017, p. 33).

189
Emerge nas narrativas dos prisioneiros uma Cuiabá do colonizado, uma
Cuiabá de onde é preciso fugir. Uma Cuiabá revivida e mantida na memória
como algo que se deve temer, uma região por onde não se deve circular,
com uma população com a qual é prudente manter distância. Uma Cuiabá
que desperta o desejo de vingança, uma Cuiabá paralela, subterrânea, cheia
de homens, mulheres e jovens revoltados. Uma Cuiabá pouco vista por estu-
diosos, mal registrada nos livros, uma Cuiabá sem nome, que quando muita
figura nas matérias jornalistas, e tem suas imagens capturadas pelas câmeras
de programas policialescos, que, usualmente, tratam de parcela da população
como suspeita, inimiga, selvagem. A Cuiabá do colono, aquela que se dife-
rencia em tudo desta, não parece atenta para o fato de que “O colonizado
sabe de tudo isso e dá uma gargalhada cada vez que aparece como animal
nas palavras do outro. Pois sabe que não é um animal. E justamente, no ins-
tante mesmo em que descobre sua humanidade, começa a polir as armas,
para fazê-la triunfar”. (FANON, 1968, p. 32).
Os colonizados, essa gente revoltada, que organiza suas vidas nos bairros
da periferia, que atravessa as mesmas ruas esburacadas, frequentam os mes-
mos estabelecimentos, partilham dramas, histórias e necessidades, não são
indiferentes aos homens, mulheres e crianças aprisionados, pois, em alguns
casos, mantêm com estes laços sanguíneos, de amizade, de simpatia e de
vizinhança. Ao moverem-se pela cidade, ao perceberem o contraste entre os
bairros, ao atentarem para as profundas desigualdades que caracterizam as
condições de vida dos mais pobres, constatam o disparate, o funcionamento
do Estado em benefício dos colonos:
Mas o colonizado, que apreende o projeto do colono, o processo preciso
que se instaura, sabe imediatamente o que o outro pensa. Essa demografia
galopante, essas massas histéricas, êsses rostos de onde fugiu qualquer
traço de humanidade, êsses corpos obesos que não se assemelham mais
a nada, esta coorte sem cabeça nem cauda, essas crianças que dão a
impressão de não pertencerem a ninguém, essa preguiça estendida ao sol,
êsse: ritmo vegetal, tudo isso faz parte do vocabulário colonial. (FANON,
1968, p. 32).

Faz parte da mentalidade e das práticas coloniais, pensar e “preparar” as


cidades de modo a fazer com que os limites das fronteiras sejam apreendi-
dos, sentidos e introjetados ao longo da vida. Para isso concorrem, tanto os
monumentos: praças, jardins, parques, cinemas, teatros, jardins, as “grandes”
escolas e hospitais, os prédios bonitos, que marcam o lugar dos colonos,
mas também a falta d’água, de saneamento, escolas, postos de saúde com
estrutura física e humana deficiente, o lixo acumulado, as ruas sem asfalto, a

190
paisagem desterrada, parecem pertencer naturalmente ao lugar dos coloni-
zados. Todas as edificações, de um lado e de outro da fronteira, funcionam
como documentos, como uma pedagogia que ensina, institui os privilégios e
naturaliza as desigualdades, a miséria e o racismo.
Na Cuiabá do colonizado espalham-se também outros símbolos, outros
documentos-monumentos (LE GOFF, 2003) que reforçam o fosso abissal en-
tre o mundo do colonizado e o do colono. Além das prisões serem instaladas,
na maioria das vezes e estrategicamente, nas regiões mais empobrecidas da
cidade, em seu entorno são firmadas outras instituições que guardam um po-
der simbólico e pedagógico que parece reforçar a ideia de que as vagas para
participar da sociedade do progresso são limitadas (BAUMAN, 2012).

Figura 3 – Imagem aérea da Região do Presídio do Carumbé, Cuiabá/MT.

Fonte: Google Maps [Presídio do Carumbé]. [2018]. Disponível em: https://www.google.


com/maps/place/Pres%C3%ADdio+Carumb%C3%A9/@-15.581552,-56.0539552,17z/
data=!4m6!3m5!1s0x939db05d3e0c3777:0x6a5cc21c1f8346c6!4b1!8m2!3d-
15.581552!4d-56.0517665. Acessado em: 11/06/2018.

Na região do Carumbé podemos encontrar um intrincado complexo


arquitetônico. O Presídio do Carumbé, atualmente denominado Centro de
Ressocialização do Carumbé (CRC), tem como vizinho o Complexo Pomeri,
composto pelo Centro Socioeducativo Pomeri – Lar do Adolescente e Lar
Menina Moça, Delegacia Especializada do Adolescente, Justiça da Infância e
Adolescência, a Polícia Técnica e o Instituto Médico Legal (IML).
A proximidade entre estas instituições tem funcionado como limitador de
possibilidades de vida, de horizontes, de sonhos, de força. No ano de 2004,
durante plantão no Pomeri, três adolescentes haviam amarrado lençóis na
grade das janelas para se pendurarem e avistarem a paisagem além dos mu-
ros. Enquanto olhavam, viram caixões de aço serem retirados dos rabecões

191
e colocados naquele prédio. De pronto, comentaram: “[...] qualquer dia vai
ser nós”. Estes prédios, ao alcance da vista dos meninos e das famílias que
os visitam, são portadores de um poder simbólico produtor de efeitos que
marcam, e parecem condicionar a vida dos adolescentes, apontando cons-
tantemente para uma morte precoce e anônima, não lhes permitindo criar,
vislumbrar ou mesmo fantasiar, uma outra existência. Eles funcionam como
se selassem seus destinos.
Na população que vive nos arredores da Penitenciária do Carumbé, a
configuração circular das instituições solidifica esta mesma noção de que o
rumo da vida dos prisioneiros não pode ser alterado, reafirmando o estigma
de que são inimigos naturais da sociedade, de que ali, entre os muros das
prisões, vivem monstros. O cuidado em fazer com que tais instituições fun-
cionem no mesmo espaço, parece indicar para uma economia do descarte,
uma lógica de redução de custos, um aterro sanitário para o lixo humano.
Se os adolescentes confinados no Pomeri permanecerem, têm a vista do
IML e dos rabecões a assombrar-lhes. Por sua vez, a sociedade cuiabana pa-
rece não ter atentado, ou percebido a relevância de semelhante proximidade
entre as instituições, provocando no imaginário dos adolescentes a sensação
de “beco sem saída”, e gerando ainda uma impossibilidade desta “geração re-
fugada” construir qualquer relação de respeito com uma sociedade, deixando
evidente seus dispositivos e desejos de eliminá-la (BAUMAN, 2005).
Trata-se aqui da manutenção de uma estrutura simbólica de dominação
que reproduz uma divisão de classes. Mesmo silenciosamente, a disposição
dessas instituições, informa o lugar que cada grupo, no caso a população apri-
sionada, deve ocupar na hierarquia social. De outro modo, o desenho cria uma
representação, um não dito, uma figura impregnada na forma com que os ado-
lescentes pensam suas vidas. Talvez a frase “Vida Loka, só Deus sabe a minha
hora!” seja emblemática desta certeza da brevidade da vida e da improbabilida-
de de escapar do circuito das instituições de aprisionamento e morte.
O modo com que a disposição de tais instituições no espaço de Cuiabá
ressoa nos corpos dos adolescentes e de outros prisioneiros soma-se às
tragédias vivenciadas no interior das prisões. Este conjunto arquitetônico,
composto por instituições punitivas e de morte, se constitui em instrumento
pedagógico, porque ensinam sobre uma Cuiabá por onde a maioria da po-
pulação não transita, nem supõe as práticas absurdas que caracterizam seu
interior. Certo dia, no ano de 2009, após ter sido chamado pela psicóloga
da PCE para colher dados para elaboração de exame psicossocial, o prisio-
neiro Fábio Jone, observou: “Como uma psicóloga pode querer que um
preso seja normal? A gente vê muita coisa que vocês nem imaginam”.
E prosseguiu:

192
Sabe de uma coisa que pouca gente sabe? Não tem vezes que
vocês abrem as celas de manhã e não encontra um preso?
Então.... Nem sempre eles fugiram. Teve um tempo cabuloso lá no
Carumbé. As vezes a comissão decidia que um preso ia morrer por
desentendimento, por mancada, quando um cara era rato, essas
coisas de cadeia, aí matavam ele. Você sabe, se você é roubado
por um preso e a comissão discute e se sair a decisão que ele deve
morrer, eles dão o direito de você matar. Mas que que vai fazer
com o defunto depois? As vezes os cara matava e aí todo mundo
passava a noite toda cortando o cara em pedaço bem pequeninho,
depois jogava no vaso e dava descarga. Eu nunca fiz, porque os
corró fazia mais esse trabalho, mais eu já vi muitas vezes os cara
cortando a noite toda, depois tinha que quebrar os osso. No outro
dia os agente ia fazer a chamada, contar os preso e dizia fugiu.
Aí corre daqui, corre dali, a polícia procura, mais quem acha? A
família nunca sabe que eles morreu. É só mais um foragido da
justiça. Se o esgoto do Carumbé falasse... Tinha muita história né?
Eu num quero morrer nesse lugar maldito. (Prisioneiro Fábio Jone.
Entrevista. Cuiabá, junho de 2009. In: SCUDDER, 2013, p. 114).

Das narrativas dos prisioneiros brota uma população cuiabana e brasileira


empobrecida, abandonada à própria sorte desde o nascedouro. Nos presídios
para adultos, encontramos homens e mulheres que têm como referência, ou
como palco de sua infância as instituições de fechamento, uma gente sujeita
à morte desde criança e que parece pressentir que

O que o colonizado viu em seu solo é que podiam impunemente


prendê-lo, espancá-lo, matá-lo à fome; e nenhum professor de moral,
nenhum cura, jamais veio receber as pancadas em seu lugar, nem
partilhar com êle o seu pão. Para o colonizado, ser moralista é, de
modo bem concreto, impor silêncio à soberba do colono, despedaçar-
lhe a violência ostentosa, numa palavra: expulsá-lo francamente do
panorama. O decantado princípio que quer que todos os homens
sejam iguais achará sua ilustração nas colônias assim que o colonizado
se apresentar como o igual do colono. Mais um passo e ele quererá
bater-se para ser mais que o colono. De fato já decidiu substituir o
colono, tomar-lhe o lugar. Como se vê, é todo um universo material e
moral que se desmorona. (FANON, 1968: 33)

O agente penitenciário AB., através de sua narrativa, possibilita que com-


preendamos o entendimento do colonizado de que não existe solidariedade

193
para com sua dor, de que é preciso despedaçar a violência ostentosa e a
soberba do colono e do Estado colonialista, de tomar seu lugar, este enten-
dimento tem a ver com a decisão de afirmação da vida, de impor sua revolta.
Não resta dúvida de que o colonizado, homem, mulher ou criança su-
balternizado, exposto a processos de desumanização e que articula sua vida
no limite do imponderável, reconhece o modo como o Estado projeta sua
extinção. Um exemplo das artimanhas dos agentes do Estado na promoção
do extermínio pode ser visto em mais um fragmento da narrativa de PCM:
Aí o bicho pegou! Tiro prá tudo quanto é lado, preso dando tiro em preso,
e vai daqui vai dali a PM começou a atirar. As armas vinham voando por
cima do muro. Aí nós gritemo prá PM que não era fuga, não era rebelião,
não era nada, era só acerto de conta de preso. Aí quando nós dissemo prá
PM que era guerra de preso com preso, eles falaram beleza, deixa eles se
fuderem. Aí demorou um tempo veio o coordenador do sistema prisional
ZCN, é um secretário de não sei o que agora. O secretário veio e falou: é
prá deixar matar, não é prá interferir! Tava a polícia do Estado todo aqui
DOI, COE... Resgate do Corpo de Bombeiros veio também, resgatar não
sei o que! Nesse dia na hora da chacina acabou a bala nossa. Quem deu
a bala prá mim foi o secretário, doze bala explosiva, entregou na mão do
Onça, o Onça deu prá mim. Eu não quis pegar da mão dele não, porque
endoidou pra matar eu, Sandro Louco, depois que deram idéia nele de
que eu tava ajudando a matar os preso, aí ele disse que era pra deixar de
boa eu. A chacina começou às nove horas da manhã e acabou às quatro.
Treze mortos. Sete presos morreram na bala e seis morreram na facada,
mas todos tomaram facada, mesmo depois de baleado, até os defuntos.
Depois que acabou nós tivemos o melhor tratamento pela direção, agente,
PM e tudo. A visita que era nas segunda quarta-feira do mês, virou todas
as quartas. Foi feito um pacto de paz, mas na cadeia nunca tem paz. Fazer
faz mas nunca para de morrer. Agora os caras tão tramando, a cadeia tá
queta, polícia e agente tão dormindo, dando bobeira! (Prisioneiro PCM.
Entrevista. Cuiabá, novembro de 2009. In: SCUDDER, 2013, p. 67).

Esta política genocida de Estado e que permeia todos os setores da vida


em sociedade, atinge sua crueza e age sem subterfúgios nas unidades prisio-
nais. Dentre os muros, os suplícios são de toda sorte e a tortura é exercida
sem grandes empecilhos. O relato de PCM confirma a afirmação de Agamben
(2004), de que algumas vidas são matáveis. De fato, nas prisões o exercício
do poder soberano, do poder do colono sobre o colonizado, imposto física
e moralmente pela polícia, pelos agentes penitenciários, mas também por
psicólogos, médicos, assistentes sociais, enfermeiros, com o aval do Estado e

194
contando com a cumplicidade e com a cegueira seletiva do judiciário, apon-
tando para o fato de que, todo poder é exercido sobre o corpo, trata-se então
de uma biopolítica, de um biopoder.
Por certo que os bairros do Carumbé e Pascoal Ramos são insuficientes
para oferecer uma cartografia de Cuiabá e da população que vive às margens
de seu território. Há outros lugares que poderiam figurar nesta escrita, mas,
de fato, toda seleção é arbitrária e esconde ou mata outras experiências e
aprendizados.
Nas faixas estreitas, na linha sinuosa não pavimentada que circunda a ci-
dade ocupada por loteamentos irregulares, desprovida de encanto, nos bairros
ignorados pelo poder público, onde a população pobre trabalhadora levanta
corajosamente e com imenso sacrifício de suas moradias, ou mesmo nas ruas,
onde um outro contingente enfrenta, escancaradamente, os perigos de um Es-
tado genocida, racista, há mais para aprender sobre Cuiabá. Contudo, pelo
fato de abrigarem as duas maiores penitenciárias do estado de Mato Grosso,
por trancafiarem um conjunto considerável de pessoas, o Carumbé e o Pascoal
Ramos são bairros deveras singulares e relevantes. Eles guardam um mundo
diferenciado e silenciado de uma Cuiabá que precisamos conhecer e ouvir.
Os prisioneiros são pessoas que gozam, a maioria das vezes desde sua
infância, de um não lugar na cidade, que são expropriadas do direito de criar
uma estética, de fabricar sonhos, de organizar suas existências em comunhão
com aquilo que o meio urbano, através do trabalho do colonizado, oferece
de agradável aos sentidos: a livre circulação, o encontro, a apreciação dos
lugares de lazer, de estar, de morar, de comer etc.
Como dissemos no início desta escrita, a população periférica e aprisio-
nada ensina. É historiadora de si mesma, prima por deixar registros de sua
trajetória, de sua vida. Mesmo que os registros, as pistas e os testemunhos
estejam inscritos nas paredes das prisões, nas tatuagens e/ou nas marcas de
tortura que marcam seus corpos, mesmo que o cenário de suas mortes seja
o único texto possível, lá está desenhada uma Cuiabá de trânsito limitado e
inscreve também a revolta do colonizado. Cabe atentar que:

O colonizado está sempre atento porque, decifrando com dificuldade


os múltiplos signos do mundo colonial, jamais sabe se passou ou não
do limite. Diante do mundo arranjado pelo colonialista, o colonizado
a tôdo momento se presume culpado. A culpabilidade do colonizado
não é uma culpabilidade assumida, é antes, uma espécie de maldição
(…). Está dominado, mas não domesticado, está inferiorizado, mas não
convencido de sua inferioridade. Espera pacientemente para que o
colono relaxe a vigilância para lhe saltar em cima. (FANON: 1968, p. 41).

195
Se pensarmos com Fanon, é possível concluir que a periferia de Cuiabá
não é “segura” para todos, não é segura para seus próprios habitantes, mas
também não é segura para os colonos, justamente porque se trata de espaços
ocupados por “humilhados e ofendidos” (DOSTOIEVSKI, 1951), do coloniza-
do que aguarda pela insurgência, daquele que espera o momento de explodir
sua revolta diante da inferiorização que sofre e das políticas que visam apri-
sionar e dar cabo de sua vida.
Se recorri à metáfora do colono para pensar a elite e o Estado, fiel repre-
sentante desta e dos interesses do mercado do sistema-mundo capitalista, e
a do colonizado, para pensar a população e o lugar da gente subalternizada,
encarcerada, de periferia, é, seguramente, por entender a permanência da
colonialidade, por saber que a prisão é um dispositivo de extermínio dos
jovens negros, pobres e de periferia, e por saber que os “Estados Modernos”
se assentam sobre fundamentos racistas.
De outro modo, poderia dizer que pensar Cuiabá através da narrativa de
prisioneiros, mirar um pedaço da cidade através das grades das celas, olhar
para os bairros que abrigam as prisões e perceber que esta maquinaria vio-
lenta do Estado gera uma economia muitas vezes desconhecida da socieda-
de cuiabana. Uma economia tímida, de subsistência, como a barraquinha da
senhora que aluga roupas para as visitas de quarta-feira e domingo, roupas
trocadas apressadamente e numa sessão de malabarismo em frente às peni-
tenciárias. Uma economia que impulsiona o mercadinho próximo, que com-
pra o picolé dos “tiozinhos” e dos garotos. Mas há também uma economia
maior, gerada pela delinquência e pelo encarceramento, que proporciona
lucro para empresas que servem a comida de cheiro e aparência duvidosa,
empresas de segurança privada, portões elétricos, câmeras, além dos concur-
sos para a segurança pública e do próprio tráfico.
Não é fácil enxergar esta cidade, é uma cidade sofrida, uma Cuiabá dos
pobres, dos negros, dos desamparados, das crianças que sofreram abandono
e cumpriram um ciclo: pela PROSOL, pelo Pomeri, pelo Presídio do Carumbé,
pela Penitenciária Feminina, pela Penitenciária Central do Estado. Crianças que
foram alvo em chacinas, como a do Beco do Candeeiro, e que por um acaso
conseguiram escapar da polícia, das gangs, da elite incendiária, do poder pú-
blico que derruba as comunidades de rua e ribeirinhas com a força dos tratores.
Quem sabe vivam um pouco mais e atravessem a fronteira e avancem para o
lugar do colono, se posicionando próximo ao Morro da Luz, da ponte na região
do Porto, buscando algum abrigo para que não tenham suas vidas interrompi-
das e postas nos caixões de aço transportados pelos rabecões.
No prefácio de “Peles Brancas, Máscaras Negras”, de Frantz Fanon,
Lewis R. Gordon escreve que os colegas de Fanon diziam que ele era zan-

196
gado, por fora e por dentro. Parece fácil compreender a razão. Quem se
aproxima do território dos colonizados adota a dor, a revolta e a agonia por
companheira. Quem anda pela periferia, ou mesmo pelas ruas do centro de
Cuiabá, quem observa as pessoas jogadas nos camburões e dali atiradas nas
celas de delegacias e prisões, quem olha, mesmo que de longe, para as filas
nas prisões nos dias de visita, suspeita que algo não vai bem.
Talvez a zanga de Fanon ressoe nos homens e mulheres negros e negras
colonizados, por saberem que a herança colonial continua localizando-os
“naturalmente” em um não lugar, Por sentirem que, de fato, não há conci-
liação possível entre o mundo do colono e o mundo do colonizado, que não
há desejo por parte do colono de tratar as fronteiras enquanto zona de intera-
ção, não há sequer um movimento de aproximação da população refugada e
redundante daquilo que se convencionou de direitos humanos e individuais
(BAUMAN, 2005).
Cumpre compreender que a condição do colonizado é pensada pelo
mercado e pelos estados do sistema-mundo capitalista como necessária para
a produção de bens, mercadorias e privilégios para um número cada vez
menor de pessoas, não importa se na atualidade se nomeiem como empresas
transnacionais, como financistas, como empresas do agronegócio, ou qual-
quer outra fantasia e não enquanto escravocratas ou colonos. O fato é que o
aprofundamento das diferenças e desigualdades sociais, do fosso entre estes
mundos tem se tornado abissal. Sem dúvida, concordamos com Fanon que,
[...] o intelectual que seguiu o colonialista no plano do universal abstrato
vai lutar para que o colono e colonizado possam viver em paz num
mundo nôvo. Mas o que não percebe, exatamente porque o colonialismo
se infiltrou nêle com todos os seus modos de pensar, é que o colono,
uma vez desaparecido o contexto colonial, não tem mais interêsse em
ficar, em coexistir. (FANON: 1968, p. 33).

Após escutar as narrativas dos prisioneiros, transitar pelo território colo-


nizado, observar a desatenção para com a população da periferia cuiabana,
é possível dizer que este “[...] é um mundo de atitudes inexplicáveis” (DOS-
TOIEVSKI, 1951), um mundo abandonado a uma violência e desamparo ab-
surdos, um mundo que deveria atentar para o fato de que “A revolta nasce do
espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível”
(CAMUS, 2017, p. 19).
Não há palavra final a proferir sobre essa Cuiabá aniquilada, o que fize-
mos foi uma apresentação, uma cartografia acanhada de algumas pontas, de
algumas margens da cidade. A rudeza dos lugares percorridos e a morte que
ronda os personagens provocam um desânimo e um desconforto doloroso,

197
mas lembra que: “Não há no mundo amor suficiente para ser desperdiçado
em algo que não o ser humano” (Ibid.)
Camus (Ibid. 31) dizia que “[...] a revolta é o ato do homem informado,
que tem consciência de seus direitos”, e acrescentamos: a revolta é ato do
homem que sabe de sua condição e se insurge, do homem que intui, observa
e reflete sobre modo como o sistema-mundo capitalista funciona, e se sua
desesperança pode paralisá-lo, pode também colocá-lo em movimento de re-
beldia contra o terror de um Estado capitalista-colonialista que se lança sobre
a periferia, sem hesitação, impedindo-a de viver.
Por hora, cabe sublinhar que na periferia, nos centros socioeducativos,
nas penitenciárias, nos becos e vielas de Cuiabá há vida! Há uma gente forte,
que tem sua capacidade de ânimo testado dia-a-dia, lutando para que se leve
em conta sua humanidade, para que sejam respeitados seus limites, suas for-
ças e resistências, para romper a muralha que demarca a Cuiabá do colono e
a Cuiabá do colonizado, pessoas que brigam pelo direito de existir, de estar
e bem-viver na cidade.

REFERÊNCIAS

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de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

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infopen-nesta-terca-feira/relatoriodepen-versao-web.pdf>. Acesso em: 31 de maio,
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