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Revista Placar #1469 (2020-11)
Revista Placar #1469 (2020-11)
DE
ASSINANTE
VENDA PROIBIDA
EXEMPLAR
ED. 1469
UM DRIBLE NO
MACHISMO A SOCIEDADE BRASILEIRA JÁ NÃO
ACEITA IMPUNEMENTE A CULTURA
DO ESTUPRO — E POR ISSO O
CONTRATO DE ROBINHO
COM O SANTOS FOI SUSPENSO
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quais não havia tribuna de im- Colaboraram nesta edição: Alexandre Battibugli
(fotografia); Sidnei Gil, Tatiana Leonardi, Thamyres
prensa. Lembra de ter sido xinga- ALEXANDER HASSENSTEIN/GETTY IMAGES
Rezende, Tiago Guimarães e Wellington Budim
ser importunadas nem agredidas, lidade de estoque). Solicite ao seu jornaleiro. Distribuída em todo o país
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MERCADO Davies, o canadense do
placar@abril.com.br Bayern de Munique: valor nas alturas www.grupoabril.com.br
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CAPA: KAI FÖRSTERLING/EFE
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um imenso coração
O artista urbano Kobra parece pequeno
diante de Pelé, pintado em um paredão de
800 metros quadrados em Santos. Mas quem
não pareceria pequeno diante do Rei do futebol?
O trabalho foi uma homenagem aos 80 anos
de Pelé, completados em 23 de outubro.
Está agora eternizado no Centro de Atividades
Turísticas da Ponta da Praia, área revitalizada.
Kobra usou como referência uma foto histórica
de PLACAR, feita por Luiz Paulo Machado em
1971, aquela do coração de suor. “O mérito
é todo do fotógrafo”, diz o grafiteiro.
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A MÁSCA
Robinho, logo depois de sua
apresentação na Vila Belmiro:
a quarta passagem pelo clube
foi rapidamente interrompida
Ettore Chiereguini/Agif/Folhapress
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Martha Esteves
F
oi uma infeliz coincidência, agora transfor- nove anos de prisão na Itália, em 2017, por crime de
mada em constrangedor equívoco: em 10 de agressão sexual contra uma jovem albanesa. O acor-
outubro, Dia Nacional de Luta contra a Vio- do com o atleta de 36 anos envolvia salários de sim-
lência à Mulher no Brasil, o Santos anunciou bólicos 1 500 reais mensais, bônus de 300 000 reais
a volta de Robinho. Seria a quarta passagem após dez jogos e quantia idêntica pelas quinze parti-
do jogador pelo clube. Lia-se, na conta oficial do time das seguintes. O contrato duraria cinco meses, com
no Twitter, com palavras em português e inglês: preferência de renovação para mais um ano e sete
“O menino da Vila. O ídolo. The Last Pedal. 2020, o meses. Mas, devido à revolta acelerada pelas redes so-
Quarto Ato”. A última pedalada, o quarto ato, foi da- ciais e à divulgação de trechos da sentença judicial
da pela sociedade civil, na pele de mulheres indigna- italiana, o Santos voltou atrás e suspendeu a transa-
das com a chance oferecida ao atacante condenado a ção. Deu-se, enfim, um drible no machismo.
O site globoesporte.com revelou trechos das interceptações telefônicas feitas com autorização judicial no início de 2014, depois
das acusações da suposta vítima, de origem albanesa. Apenas um dos amigos do jogador é identificado pelo nome — os outros
três, não. Para a Justiça italiana, os diálogos são “autoincriminatórios”.
Robinho conversa com Ricardo Falco, Robinho conversa com o músico Jairo Chagas, que tocou na noite
amigo também investigado. do estupro investigado na boate Sio Café, em Milão.
Falco: E la lembra da situação. Ela sabe que Robinho: Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava
todos transaram com ela. completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu
(...) olha, os caras estão na merda... Ainda bem que
Robinho: O (nome do amigo 1) tenho existe Deus, porque eu nem toquei naquela garota. Vi o
certeza que gozou dentro dela. (nome do amigo 2), e os outros foderam ela, eles vão ter
problemas, não eu... Lembro que os caras que pegaram
Falco: Não acredito. Naquele dia ela ela foram (nome do amigo 1) e (nome do amigo 2). Eram
não conseguia fazer nada, nem cinco em cima dela (...) A polícia não pode dizer nada,
mesmo ficar em pé, ela estava eu direi que estava com você e depois fui para casa.
realmente fora de si.
chagas: Mas você também transou com a mulher?
Robinho: Sim.
Robinho: Não, eu tentei. (amigo 1), (amigo 2) e (amigo 3)...
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A diretoria santista reagiu rapidamente quando a gri- Rollo, diria depois que a suspensão do contrato piorou
ta contra a permanência de Robinho começou a doer no ainda mais as finanças do clube, que tem 53 milhões de
bolso, com a movimentação dos patrocinadores. O pri- reais no vermelho e dívidas inclusive com os salários dos
meiro a pular fora da canoa foi a Orthopride, rede de jogadores. Agora, para tentar reduzir os danos, pretende
franquias de ortodontia estética. Em seguida, a Philco, de fazer uma vaquinha virtual. “Podem encarar como hu-
eletroeletrônicos; a Kicaldo, empresa de alimentos; e a milhação fazer essa arrecadação na internet, mas estou
Tekbond, de adesivos e colas, divulgaram notas ressal- me humilhando mesmo”, admite.
tando não ter participado da transação e afirmando res- Muito mais humilhante, e possivelmente sem recupe-
peitar “a diversidade e a inclusão em suas operações”, ração possível para a imagem do clube, teria sido manter
além de repudiarem “qualquer ato de violência”. Esti- Robinho na equipe. A decisão iria no avesso dos humo-
mou-se uma perda em torno de 20 milhões anuais caso a res da sociedade e do pleno respeito aos direitos huma-
debandada se concretizasse — e, por isso, a única e espe- nos. Convém ressaltar ainda que, em tempos de internet,
rada saída era o recuo. O presidente do Santos, Orlando tudo é muito rápido e os tropeções são revelados imedia-
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Grupos de
tamente. Cedo ou tarde, certamente torcedoras Tudo somado, os dirigentes san-
cedo, a máscara cairia. Uma frente protestaram tistas tomaram a estrada correta ao
ampla formada por torcedoras de em Curitiba, ser apresentados à encruzilhada.
Santos, Flamengo, Corinthians e onde o Santos As empresas já entenderam o peso
outros times se movimentou pelo jogaria (à esq.). da reputação — sabem que ela vale
WhatsApp contra a chegada de Ro- Já em 2017 dinheiro — e a importância da ade-
binho. No Twitter, jornalistas, tor- parte da torcida são a grandes causas. E não se trata
cedoras e celebridades fizeram ba- do Atlético-MG de oportunismo, apenas de adequa-
rulho, com dezenas de mensagens reclamara da ção a novos momentos da civiliza-
Gabriel Machado/AGIF/afp
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tamente julga mal. E o tempo dirá que tenho razão.” de trabalho no regime semiaberto, poderia cumprir o
Caso a condenação de Robinho seja ratificada, ele não resto da pena em prisão domiciliar.
será extraditado. Confirmada a decisão da primeira O caminho de Robinho é difícil e é grande a probabili-
instância, a defesa poderá recorrer ao Tribunal de Cas- dade de ele ter de pagar pelo erro — notícia evidentemente
sação, semelhante ao Superior Tribunal de Justiça do ruim para ele, para seus familiares, mas uma conquista
Brasil. Depois de transitado em julgado, o processo para a sociedade. Beatriz Antunes, de 26 anos, psicóloga
vem para o Brasil e, para que não haja impunidade, o que oferece apoio profissional ao coletivo Fogo no Assédio,
jogador poderá cumprir a sua pena aqui. “Nesse caso, formado por torcedoras do Botafogo do Rio, espera que a
aplica-se o artigo 101 da Lei do Estrangeiro. A pena é onda não seja passageira. “Casos de assédio e violência se-
da Itália, mas ele cumpre segundo as leis brasileiras, xual no futebol acontecem o tempo todo e mostram quan-
isso se a lei for mais benéfica para ele”, diz o jurista to a figura da mulher é totalmente desmerecida no meio.
gaúcho e professor de pós-graduação de direito Lenio A gente sabe que a perda de dinheiro fala mais alto no fu-
Streck. Condenado a nove anos de prisão, Robinho po- tebol, e foi o nosso grito que alertou os patrocinadores.
deria cumprir dois quintos da pena, ou três anos e Uma pequena vitória em meio a tantas batalhas contra o
meio. Em seguida, tendo bom comportamento, poderia machismo.” As mudanças de humor são recentes. Em 2017,
seguir em regime semiaberto, com direito a trabalhar depois que o caso de estupro já havia estourado, ainda sem
e fazer cursos fora da prisão. Depois de um ano e meio julgamento, Robinho jogou pelo Atlético Mineiro — houve
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GENTE JOVEM
REUNIDA
Há um interessante movimento do futebol em todo o
mundo — o de treinadores jovens, mas tão jovens que
chegaram a dividir o gramado com seus atuais comandados.
O que há de positivo e de negativo nessa onda?
A
mais colado à tese que se pretende
té outro dia, talvez com demonstrar — a da relevância da
pouco mais de cabelos, no memória recente com a bola nos
caso de alguns, e sem bar- pés — do que Pirlo. Do ex-meio-
riga, para quase todos, eles campista italiano dizia-se jogar de
brilhavam dentro de campo — de- terno, dada a elegância. Ele pendu-
ram alguns passos para o lado, rou a chuteira há três anos e, agora,
atravessaram a linha de cal e volta- literalmente vestiu roupa de gala,
ram a seus clubes como treinado- elegante como todo italiano da ge-
res. Bem-vindo a um fenômeno na- ma. Comanda Cristiano Ronaldo,
da desprezível — o dos técnicos jo- Dybala e o veterano goleiro Gian-
vens, tão jovens que em muitos ca- luigi Buffon, companheiro de tan-
sos chegaram a dividir o vestiário tas conquistas. Buffon, aos 42 anos,
com alguns de seus atuais coman- é um ano mais velho do que o chefe
dados. É movimento que costuma Pirlo, de 41. Contratado no fim de
dar bons resultados, alimenta o julho para assumir a equipe sub-23
ânimo, vira conversa de gente que da La Vecchia Signora, foi rapida-
FOTOS: REPRODUÃO, VALERIO PENNICINO/GETTY IMAGES
& 42 anos
Andrea Pirlo, Gianluigi Buffon,
41 anos
A parceria de maior sucesso dentro de campo:
tetracampeões italianos e campeões do mundo
com a seleção italiana. O goleiro é apenas um
ano mais velho do que o novo treinador de La
Vecchia Signora
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Frank Lampard,
42 anos & 31 anos
César Azpilicueta,
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O PRIMO POBRE
DA BOLA
Em meio à pandemia, a última divisão
paulista expõe o duro cotidiano de um
futebol que se diz profissional mas
tem tantas dificuldades que é quase
mais correto chamar de amador
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S
ano passado, subiram o Paulista,
ábado, 17 de outubro, 15 ho- que já caiu de volta, e o Marília, que
ras de uma tarde de sol em terminou em décimo entre dezesseis
São Paulo. No Estádio Ni- participantes). Pelo regulamento, to-
colau Alayon, na Zona das teriam direito a uma “cota de
Oeste de São Paulo, os quase 10 000 participação” paga pela FPF. Na vida
lugares estão praticamente vazios. real, porém, os clubes têm dívidas
No jogo sem público, por causa da com a federação e, portanto, ela não
pandemia da Covid-19, apenas repassa os valores previstos. Como
uma fiscal da Federação Paulista diria o poeta Vampeta, “eles fingem
de Futebol controla a circulação que pagam, eu finjo que jogo”. As-
dos jogadores e demais integrantes sim, sete times (Santacruzense, São
das comissões técnicas. Três ou- Carlos, Joseense, Taboão da Serra,
tros funcionários da FPF cuidam Mogi Mirim, Jaguariúna e Taquari-
da transmissão do jogo via redes tinga) desistiram antes de a bola vol-
sociais. E apenas este repórter e tar a rolar. Os outros 35 foram divi-
um fotógrafo de PLACAR acompa- didos em sete grupos, levando em
nham a primeira rodada da Se- conta a proximidade regional.
gunda Divisão do Campeonato Ainda assim, são necessárias pe-
Paulista (apesar do nome, ela é, de quenas viagens. De Andradina,
fato, a quarta, pois as outras são quase na divisa com Mato Grosso
chamadas de A1, A2 e A3). do Sul, a São José do Rio Preto, por
Em campo, o Barcelona Capela, exemplo, são três horas de carro. “O
da capital, e o Jabaquara, de Santos, campeonato dura dois meses e cus-
estreiam no torneio, que tradicional- ta perto de 60 000 reais por mês,
mente encerra as competições esta- contando as despesas com os atletas
duais todos os anos. Sentado sobre e a comissão técnica, viagens e ali-
uma confortável poltrona estofada mentação”, resume Irineu Rodrí-
cinza, que se destaca em meio às ca- guez Gonzalez, presidente do Elos-
deiras azuis da parte coberta da ar- port, de Capão Bonito, a 182 quilô-
quibancada, Severino Possidônio metros ao sul da capital. No ano
dos Santos, 73 anos, faz sua voz re- passado, o time fez a pior campa-
verberar como um poderoso alto-fa- nha: jogou dez vezes e perdeu todas,
lante. “Oxe, domina uma bola, late- com 37 gols sofridos e apenas três
O “Barça” paulistano e o ral, pelo amor de Deus. Agora pega, marcados (nas quatro primeiras ro-
Jabaquara postados antes do pega, pega... Ah, no meu tempo não dadas deste ano, já tinha conquista-
apito inicial: aqui não tem essa de tinha isso, não, esses jogadores são do uma vitória, um empate e os
um time jogar de uniforme claro todos moles.” Com as mãos, ele pare- mesmos três gols a favor).
e o outro de uniforme escuro ce orientar o time azul e grená, tal O regulamento de 2020 prevê
qual o famoso esquadrão espanhol que os cinco times de cada grupo
do qual tomou o nome. Na véspera, joguem todos contra todos duas ve-
o técnico Edson Lino testara positi- zes (ida e volta). Os dois primeiros
vo para o novo coronavírus e coube colocados, mais os dois melhores
ao auxiliar e faz-tudo Washington terceiros colocados entre todos,
Pereira Souza assumir o comando — passam para as oitavas de final. Daí
ajudado informalmente pelos gritos em diante, todo o mata-mata é feito
de Santos, motorista do, vamos lá, em apenas uma partida, até chegar
“Barça” há dezessete anos. à final, prevista para o dia 16 de
Bem-vindo ao primo pobre entre dezembro. Como se não bastasse a
Alexandre Battibugli
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Getty Images
A Champions é o espaço para brilhar,
seja para os craques consagrados, seja
para as novas estrelas, que sonham com
contratos milionários e em levar seus
times a conquistas inesquecíveis
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T
o do mu ndo s a b e que a
Champions League é o maior
campeonato de clubes do
mundo. Os times mais ricos,
os melhores jogadores, estádios len-
dários com seus gramados impecá-
veis — e até um VAR que ajuda mais
do que atrapalha (intervenções quase
sempre rápidas e precisas). A cada
ano, 32 equipes buscam a glória eter-
na (ops, esse é o slogan de outro tor-
neio, pelas bandas de cá, ao Sul, que
sonha em conquistar um tantinho de
relevância e audiência), por mais que
na imensa maioria das vezes somen-
te os mesmos “suspeitos” de sempre
consigam chegar às finais.
A fase de grupos da temporada
2020/2021 da Champions começou
na segunda quinzena de outubro, e
a magia apareceu com força logo na
terceira rodada. Num único dia —
3 de novembro, terça-feira — foram
35 gols em apenas oito jogos, média
superior a quatro por partida. No
encerramento dos confrontos de
ida, várias previsões se confirma-
ram. Bayern de Munique (atual de-
tentor do troféu), Liverpool (cam-
peão do ano anterior), Barcelona e
Manchester City ganharam os três
— 100% de aproveitamento.
Antes de a bola rolar, falava-se
que alguns pequenos poderiam sur-
preender positivamente. Não foi
desta vez. O Midtylland, da Dina-
marca, e o RB Salzburg, da Áustria,
Angelo Blankespoor/Soccrates/Getty Images
não conseguiram sequer uma vitó-
ria no “turno” e levaram, respecti-
vamente, oito e onze gols. Idem para
o Krasnodar, da Rússia, e o Rennes,
da França, que só empataram (entre
si) na estreia e depois não foram pá-
reo para Chelsea e Sevilla.
A exceção que confirma a regra
foi protagonizada pelo novato Istan- Erling Haaland
bul Basaksehir, que conseguiu, con- País: Noruega
tra o Manchester United, não só Data de nascimento:
marcar pela primeira vez na Liga 21 de julho de 2000
dos Campeões — fez logo dois gols Clube: Borussia Dortmund
ainda no primeiro tempo — como Valor estimado:
derrotou o badalado time inglês por 120,3 milhões de euros
2 a 1, com direito a grande festa dos
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RICARDO CORREA
38 UM LANCE
ENTRETENIMENTO
O futebol a 24 quadros 46
PRIMEIROS
INESQUECÍVEL
A triste noite africana
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por segundo
PASSOS
O nascimento a história
de um certo de uma foto
Ricardo Izecson Kaká, ainda adolescente, ao
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A mão que salvou o
dos Santos Leite começar a carreira no São Paulo Uruguai e fez com que
os africanos chorassem
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R.I.P.
A elegância do
brasileiro de origem
britânica que nos
trouxe até aqui
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REPORTAGEM
ENTORTA-VARAL
Ah, aquele manto
francês invicto Charles Miller: duas bolas de capotão na bagagem
Crônica
Minha vida por um
lateral-esquerdo 60
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LIVRO
58 De onde veio o
apelido Pelé
ricardo beliel
UM GRANDE TIME
Os mágicos magiares
Mário Vianna: engraxate, empacotador de velas e árbitro da Copa de 1954
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O
s jogos em estádios vazios,
em campo
com o áudio das torcidas
reproduzido em alto-falan-
tes para conferir alguma
graça às transmissões, nos fazem
Quatro filmes e uma provocação para renovar o interesse refletir sobre um dos muitos cli-
pelo futebol em tempos de pandemia — por que quase chês a rondar o futebol — não há
não há boas produções tendo o jogo como tema? cinema à altura do esporte.
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Antes, um passe de lado. Não cerca de 400 dos 1 281 gols anotados bola cair no chão, antes do arrema-
que não haja filmes sobre futebol. pelo rei, sua mais destacada contri- te de cabeça nos 4 a 0 a liquidar o
Existem, sim, e o Netflix está cheio buição narrativa é justamente o que Juventus no Campeonato Paulista
deles, mas a maioria padece de um o esvazia como um bom filme sobre de 1959. E aí Massaini vai lá e recria
problema fundamental, exposto em o tema — a digitalização daquele o lance digitalmente. Pode parecer
Pelé Eterno (2004), de Anibal Mas- que o próprio Pelé considera o seu uma boa ideia, mas o que se vê é a
saini Neto, tomado como medida Cidadão Kane, o seu Oito e Meio, o obra-prima de Pelé reduzida a uma
para sustentar a canelada inicial na seu Um Corpo que Cai. Como se sa- jogada de videogame, naquele rit-
esteira dos 80 anos do jogador. Para be, não há registro em vídeo dos mo das coisas que não podem ter
além da pesquisa exaustiva, com três lençóis seguidos, sem deixar a acontecido de verdade.
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reconstrução das relações desfei- a arte, indicamos quatro filmes pa- cardo Gomes Leite, é uma maravi-
tas entre pais e filhos na Europa ra você pensar no que há para ser lha discreta como o seu persona-
do pós-guerra, mas, sim, da arris- visto na televisão, desses jogos da gem central. Lançado pouco antes
cada recriação de uma partida Champions e da Libertadores sem da Copa que o consagraria com a
histórica. A dinâmica dos jogado- torcida às dezenas de produções geração da conquista definitiva da
res em campo é notável pela ve- sobre o esporte nos Netflix da vida. Jules Rimet, mistura momentos de
rossimilhança. Se vale assisti-lo? À sua maneira, eles revelam uma sua vida privada, com um registro
Vale, sobretudo se você se der o dimensão do futebol que vem sen- peculiar do drama da retina desco-
trabalho de confrontar os enqua- do abandonada pelo próprio fute- lada, a cenas das eliminatórias pa-
dramentos e gols — é uma pena bol e que talvez só mesmo alguns ra o México, à moda do Canal 100.
que não tenham recriado todos — documentários como estes consi- Tostão estava voando em campo,
com os registros originais da Fifa. gam registrá-la, senão restaurá-la, artilheiro com dez dos 23 gols da
Tudo isso posto, na reflexão do para o bem das futuras gerações. campanha, à frente de Pelé e Jair-
que o cinema tem a ver com o fute- Tostão, a Fera de Ouro (1970), zinho. A trilha sonora, com can-
bol e o que o futebol tem a ver com dos bissextos Paulo Laender e Ri- ções e um tema instrumental de
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N
um tempo em que a sigla VAR não que-
ria dizer absolutamente nada (só no fim
dos anos 1960 ela batizaria uma Van-
guarda Armada Revolucionária, que lu-
tava contra a ditadura militar, e cinco décadas
depois ela voltaria para o recém-criado Video
Assistant Referee, ou Árbitro Assistente de Ví-
deo, tão criticado aqui no Brasil), um juiz de fu-
tebol reinava nos gramados. Mário Gonçalves
Vianna, seu nome tinha “dois enes” e não se
cansava de ser forte, prepotente, arrogante e in-
capaz de levar um desaforo para casa. “Não to-
cou na bola, mas teve a intenção. É pênalti, não
admito discussões”, disse certa vez, resumindo
o espírito Mário Vianna de ser, um velho “jeito”
do futebol que certamente levou muita gente a
apoiar a invenção do atual VAR.
Ele nasceu em 6 de setembro de 1902, foi balei-
ro, engraxate, jornaleiro, empacotador de velas,
fiscal da Guarda Civil e da Polícia Especial. De-
pois, atuou durante 25 anos como árbitro (apitou
nas Copas de 1950 e 1954), quando se tornou o
mais famoso e importante do país. Teve uma bre-
ve carreira de técnico: entre 1957 e 1958 dirigiu o
Palmeiras em dezesseis jogos, com quatro vitórias,
quatro empates e oito derrotas. No ano seguinte,
passou a ser comentarista de arbitragem no rádio
IGNACIO FERREIRA
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A
proveitando a onda de sucesso da banda adolescente KLB (sim,
existiu uma banda com esse nome e, sim, ela fazia sucesso), um trio
de boleiros prometia “conquistar a torcida inteira”. Em primeiro
plano, o já consagrado Leonardo (tinha estado nas Copas de 1994,
como lateral-esquerdo do São Paulo, e de 1998, como meia do
Milan), o L da nova trinca. Logo atrás, duas jovens promessas:
Júlio Baptista (o B) e Kaká (o K), ambos integrantes da sele-
ção brasileira que disputara o Mundial Sub-20 na Argen-
tina, no mês anterior. Mais do que a esperança de um
novo ciclo de bom futebol para o torcedor tricolor, a
revista, de julho de 2001, ficou nos arquivos como a
primeira em que Ricardo Izecson dos Santos Leite, o
tal Kaká, apareceu na capa de PLACAR.
No texto, assinado por Arnaldo Ribeiro, eles
eram apresentados como “os favoritos das
adolescentes são-paulinas” e o time, que ha-
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via acabado de chegar à final da dessa forma”, dizia Kaká, que já era vez. A pergunta era direta: “Sai da-
Copa dos Campeões, se preparava assediado para sair do clube. “O São qui um Raí?”. Menos de dois meses
com afinco para o Campeonato Paulo não quer vendê-lo agora. haviam se passado e ele já era des-
Brasileiro (terminou a primeira fa- O Kaká também não quer sair. taque e artilheiro do tricolor. Vale
se em sétimo lugar e caiu nas quar- O objetivo dele é se firmar como ti- lembrar que, no início do ano, Ka-
tas de final para o então Atlético tular e buscar um espaço na seleção ká havia feito dois gols na final do
Paranaense, que seria o campeão) e principal”, explicava seu empresá- Torneio Rio-São Paulo e, mais uma
a Mercosul (não passou da fase de rio, Wagner Ribeiro. Criado no Mo- vez, a revista apostou alto na “pro-
grupos). “O meio-campo, o coração rumbi, o jovem meia tinha apenas messa”. “A posição em campo é a
do time, deve mudar, e muito, para 12 anos em 1994, quando Leonardo mesma; a vocação para fazer gols,
melhor”, cravou a revista. deixou o tricolor para atuar na também; o carisma junto aos tor-
Na época, o elenco contava com França, e já jogava futebol de salão cedores, parecido; a pinta de bom-
nove meio-campistas: além dos três e futebol de campo no departamen- moço, idem; o assédio dos (ou das)
já citados, Carlos Miguel, Fabiano, to social do clube. fãs se assemelha…” Logo em segui-
Fabio Simplício, Harison, Reinaldo No fim de agosto, Kaká estava da, havia uma tentativa de se dis-
e Souza. “A concorrência é sempre novamente na capa de PLACAR. sociar das comparações. “Como
uma boa. Você nunca se acomoda Dessa vez, sozinho pela primeira Caio, hoje no Fluminense, ele mo-
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RICARDO CORREA
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A cruel defesa
de Suárez
A noite em que as mãos do goleador uruguaio evitaram o gol de Gana na prorrogação,
atalho para um dos momentos mais dramáticos de todas as Copas do Mundo
Diego Teixeira Setton cruzou; o goleiro Muslera dividiu linha de fundo. A felicidade mu-
E
a bola no alto com Mensah; ela dara de lado. Suárez, que se retira-
ra 2 de julho de 2010, uma sobrou no pé de Appiah, o cami- va do gramado com lágrimas nos
sexta-feira, um pouco de- sa 10, mas seu chute foi bloquea- olhos, virou o rosto e explodiu de
pois do almoço, quase 3 da do por Luis Suárez; e lá vinha a euforia. Sua defesa dera certo. Pa-
tarde. Eu tinha 6 anos. Co- bola, a subir, à espera da cabeça- ra Gana, era o prenúncio de uma
mo qualquer criança de minha da matadora de Adiyiah. Gol!, é o decepção. A decisão seria levada
idade, pelo pouco que posso lem- que parecia estar estampado no para as penalidades máximas.
brar, já havia até me acalmado rosto dos torcedores no Soccer Asamoah se redimiu e converteu
depois da decepcionante derrota City, em Johannesburgo, em cer- o primeiro gol de Gana. Depois de
do Brasil para a Holanda, por teza que ecoa até hoje. quatro cobranças para cada lado,
2 a 1, e a eliminação. O fracasso Mas não. Suárez saltou, esti- o Uruguai liderava por 3 a 2. Bas-
ocorrera pela manhã. Agora es- cou os braços e, com as mãos, es- taria mais um tento para a classi-
tava interessado no outro jogo pecialmente a direita, espalmou ficação. E lá vinha Loco Abreu.
daquela dia: Uruguai e Gana. a pelota em belíssima defesa. De- Na maior tranquilidade do mun-
O vencedor disputaria uma das pois de milésimos de segundos do, ele deu uma cavadinha, e que
semifinais contra os holandeses. de espanto, veio a evidência: pê- cavadinha, e correu para o abra-
E aqui começo a narrar, depois nalti a favor de Gana. Os ganeses ço. Uruguai e Holanda disputa-
de ver e rever muitas vezes as celebravam. Suárez foi expulso. riam a semifinal para saber quem
imagens no YouTube. A África caminhava para fazer faria a finalíssima contra Espa-
O time sul-americano e a equi- história na primeira Copa dispu- nha ou Alemanha.
pe africana faziam uma partida tada no continente. Ainda hoje é Mas era tudo detalhe diante do
equilibrada até que, aos 45 minu- de emocionar, dada a tensão, que ocorrera naquela noite de
tos do primeiro tempo, Sulley acompanhar o camisa 3, Asa- Johannesburgo, a noite em que
Muntari abriu o placar com um moah Gyan, a caminho da marca uma mão irregular tirou das mãos
golaço de fora da área. A vanta- de pênalti. Um chutaço, bola no de Gana a chance de ser a primeira
gem não durou muito: aos 55 mi- travessão e do travessão para a seleção africana a estar entre os
nutos, Diego Forlán cobrou uma quatro primeiros colocados de um
falta e a bola da Copa, a Jabulani, Mundial. Suárez não deixou, com
que os goleiros diziam ser trai- um gesto impulsivo e, no fim das
çoeira, leve demais, meio estra- contas, salvador. O sonho africano
nha, fez uma curva inesperada. tinha sido frustrado pela defesa de
Outro golaço. um centroavante e pela cavadinha
Com o empate em 1 a 1 ao fim O sonho africano tinha de um “Loco”. E o jovem adulto de
dos noventa minutos, viria a sido frustrado pela hoje, eu, a passear pela infância,
prorrogação. Nada de gol até o defesa de um por aquele lance inesquecível, não
minuto final. Uma falta marcada centroavante e pela para de pensar — play, stop, play,
na entrada da área do Uruguai de novo, e de novo — na tristeza de
era a chance de Gana vencer. Um
cavadinha de um ‘Loco’. Gana, apesar da permanente sim-
cruzamento representaria peri- O futebol é o que é por patia pelo Uruguai. O futebol é o
go. E assim foi — mas com pita- não escolher narrativas, que é por não escolher narrativas,
das de inacreditável. Paintsil é imprevisível” por ser cruel e imprevisível. ƒ
52 NOV | 2020
O
itavas de final da Copa do estivesse a no máximo 2 metros nutos, com 4 a 1 para o Brasil, o
Mundo de 1998. No Par- do transmissor.” editor Ricardo Corrêa disse que
que dos Príncipes, em Pa- Em partidas de mundiais, era queria ver as fotos feitas pelos cole-
ris, o Brasil (ca mpeão comum cada fotógrafo gastar de gas (que eram reveladas por um
quatro anos antes e primeiro co- quatro a seis filmes em cada tempo dos patrocinadores do torneio no
locado do Grupo A) enfrenta o de jogo. Encerrados os noventa mi- próprio centro de imprensa, den-
Chile (segundo colocado no Gru-
po B). Para surpresa geral, o vo-
lante César Sampaio faz dois
gols, aos onze e aos 27 minutos
do primeiro tempo, e, com mais
um de Ronaldo Fenômeno, de pê-
nalti, a seleção vai para o vestiá-
rio com a vantagem de 3 a 0.
PLACAR tinha três fotógrafos
acompanhando tudo o que rola-
va no gramado. Naquele interva-
lo da partida, aproveitando que a
fiscalização da Fifa estava um
pouco mais relaxada, um deles,
Alexandre Battibugli, o Batti, to-
mou uma decisão ousada, com a
cara da revista.
Discretamente, atravessou o
campo e, contrariando as regras
— que previam câmeras fotográ-
ficas apenas atrás das placas de
publicidade —, prendeu o equipa-
mento e a miniantena para acio-
namento a distância num peque-
no tripé e pôs tudo dentro do gol
que seria defendido pelo chileno
Nelson Tapia. “As máquinas digi-
tais já estavam em uso desde a
Copa de 1994, nos Estados Uni-
dos, mas a qualidade dos regis-
tros em negativos ainda era me-
lhor”, lembra Batti. “Assim, colo-
quei um filme novo e fiquei com
Alexandre Battibugli
A “Tricolore” à frente e o
fenômeno Ronaldo celebrando
o gol: olhar surpreendente
54 NOV | 2020
NOV | 2020 55
Divulgação
dos Protestantes, em São Paulo
A TRANQUILIDADE
E dos bigodes daquele homem
minucioso e entusiasmado — o pri-
meiro jogador brasileiro em um
clube profissional da Europa (o
DO INÍCIO
Southampton Football Club), arti-
lheiro de dois campeonatos paulis-
tas pelo SPAC (1902 e 1903) — nas-
ceria uma paixão nacional. Miller
O canto onde repousam os restos mortais de Charles Miller, morreu em 1953, aos 78 anos, a
o introdutor do futebol no Brasil, filho de um escocês tempo de acompanhar o choro da
e uma brasileira, é um pouco como ele era — discreto derrota da seleção para o Uruguai,
em 1950, mas antes da era de ouro
Fábio Altman tre as equipes do The São Paulo inaugurada em 1958, na Suécia.
C
Ra ilway e do The GasWorks Conseguiu, contudo, saber que da-
harles William Miller, fi- Team. Resultado: 4 a 2 para o quela sua mala de viagem brotara
lho de um escocês que Railway, mas o placar era o que um modo de vida no Brasil. Foi en-
veio ao Brasil para ajudar menos importava. terrado a menos de 1 quilômetro da
a administrar a Estrada Para Miller, muito além de vitó- atual sede do SPAC, em São Paulo,
de Ferro Santos-Jundiaí e de uma rias ou derrotas, o que lhe dava no pequeno Cemitério dos Protes-
brasileira de família inglesa, re- prazer era a introdução do novo tantes, desde 1858 instalado na Rua
tornou de uma viagem de estudos esporte como ferramenta de ami- Sergipe, no bairro da Consolação.
a Southampton, na Inglaterra, no zade, de cooperação. Durante a se- Entre os túmulos, há pés de árvores
fim de 1894, com peças curiosas mana ele trabalhava na São Paulo frutíferas. Não muito longe do can-
na mala. Segundo relato do escri- Railway e aos sábados reunia os to de Miller, há uma lápide com o
tor e historiador John Mills, Mil- amigos na sede do São Paulo nome de Marlene Dietrich — não,
ler trouxe na bagagem um livro Athletic Club, no bairro paulista- não é a atriz alemã. É uma homôni-
de regras da Association Football, no do Bom Retiro, para ensinar o ma, mera curiosidade — mas é pro-
duas bolas de capotão, um par de funcionamento daquela modali- ximidade que ajuda a compor o ce-
chuteiras e uma bomba de ar. Em dade coletiva, que exigia coopera- nário elegante e tranquilo do gra-
14 de abril de 1895, no campo da ção, raciocínio, passes e não ape- mado bem aparado onde repousa o
Várzea do Carmo, em São Paulo, nas a individualidade — era um homem que fez das relvas o palco
ele organizaria a primeira parti- espanto para uma turma acostu- de epopeias, calma e docemente.
da de futebol oficial no Brasil, en- mada ao aristocrático críquete. Ele descobriu o Brasil. ƒ
56 NOV | 2020
ROUPA EU Vou?
Ao pânico sucedeu uma solução
criativa, talvez a única no horizon-
te — era preciso pedir emprestadas
de algum clube da cidade camisas
A tarde fria de um sábado de 1978 em que a seleção da França de outra cor. E lá foram os cartolas
de Michel Platini e Didier Six entrou em campo com o uniforme franceses, acompanhados de bate-
emprestado de um clube de pescadores de Mar del Plata dores da polícia, atrás da sede de
E
um clube de pescadores locais, o
ra uma vez um mundo sem O treinador francês Michel Hi- Club Atletico Kimberley. E, com
as imposições das grandes dalgo decidira deixar no banco as quarenta minutos de atraso, para
marcas de equipamento estrelas Michel Platini, Didier Six e bagunçar o coreto das emissoras
esportivo, sem contratos Henri Michel para dar chance a al- de televisão, os franceses entra-
milionários de jogadores, um guns novatos. Michel, que nos jogos ram em campo pela primeira e úl-
planeta quase amador do ponto iniciais fora o capitão, sempre aten- tima vez em sua vitoriosa história
de vista do marketing esportivo to a tudo, no aquecimento antes da com listras verdes em fundo bran-
— mas era uma Copa do Mundo, partida notou algo estranho debai- co. Venceram honrosamente: 3 a 1.
e a história que se contará a se- xo dos agasalhos dos húngaros — De lá para cá, a França ganhou
guir soa improvável. Era 10 de ju- eles estavam de uniforme branco. duas Copas do Mundo, e depois da
nho de 1978, terceira rodada da Problema: os franceses também es- era Platini veio o tempo de Zidane.
fase de grupos do Mundial dispu- tavam de branco e caberia aos gau- O Kimberley permanece na Liga
tado na Argentina do ditador leses, segundo orientação da Fifa, Marplatense, cujo campeonato já
sanguinário Jorge Videla. França entrar no gramado com outra tona- venceu dezesseis vezes. No site de
e Hungria já haviam sido elimi- lidade de camisa e calção. Mas qual leilões eBay, uma réplica daquele
nadas da competição, depois de o quê. Nenhuma das seleções leva- manto de 1978 custa algo em torno
perder seus dois primeiros jogos. de 500 reais. Virou um pequeno
Seria, portanto, um partida me- A Hungria, de branco, contra uma clássico. E é possível dizer que a
lancólica, com jeitão de domingo equipe irreconhecível dentro de campo: França, com aquelas cores emer-
de várzea naquele sábado frio de vitória de 3 a 1 da turma de listras genciais, nunca perdeu um único
Mar del Plata. verdes do manto nada sagrado jogo. Está invicta. ƒ
AFP
NOV | 2020 57
E OS
INVENCÍVEIS
PERDERAM...
De 1950 a 1954, a seleção da Hungria fez 27 jogos, com
23 vitórias e quatro empates. Chegou à Copa da Suíça
como superfavorita, arrasou os adversários (inclusive
o Brasil), mas aí despontou o Sobrenatural de Almeida
N
os Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, a seleção da
Hungria fez cinco jogos, com cinco vitórias, e marcou vin-
te gols para conquistar a medalha de ouro contra a Iugoslá-
via. Às vésperas do início da Copa do Mundo de 1954, na
Suíça, um espectro rondava a Europa: quem será o vice-campeão
neste ano? Todos sabiam que só uma improvável (e inacreditável) DPA/PICTURE ALLIANCE/GETTY IMAGES
ACERVO PLACAR
em 1950) nas quartas e de novo 4 a 2 contra o Uruguai (depois do Problema resolvido: Chico bebeu de
2 a 2 no tempo regulamentar). Em quatro jogos, 25 gols marcados sua paixão pela Hungria de 1954,
e sete sofridos. Mas o futebol, ah, o futebol, é mesmo uma caixi- e não demorou para nomear
nha de surpresas e o jogo só acaba quando termina. No dia 4 de uma de suas criações como
julho de 1954, o que ficou para a história é até hoje conhecido co- Kocsis Ferenc. Disse
mo o Milagre de Berna. No estádio Wankdorf, 42 000 pessoas vi- o compositor e escritor
ram a Hungria abrir 2 a 0 aos seis e nove minutos do primeiro em uma apresentação
tempo. A Alemanha, que tinha tomado de 8 duas semanas antes, na Flip: “A gente jogava
conseguiu o empate rapidamente (aos onze e aos dezoito minu- futebol de mesa e eu tinha
tos). Depois, foi paciente e aguerrida para segurar o ímpeto dos meus botões com os
adversários. E aos 39 do segundo tempo, o improvável (e inacre- nomes da seleção húngara.
ditável) aconteceu: Rahn recebeu na meia direita, driblou Lantos Mais tarde, uns dez anos
e, quase na linha da grande área, chutou rasteiro no canto direito depois, uma húngara me
de Grosics. Com o 3 a 2 no placar final, os alemães derrotaram a ensinou a pronunciar direito
invencível máquina húngara. Na revista O Cruzeiro, o jornalista os nomes e também outras
José Amádio resumiu o susto: “A Hungria merecia ganhar a Co- palavras em húngaro”.
pa. Mas a Alemanha mereceu ganhar o jogo. E o jogo valia a Co-
pa”. Apesar da derrota, os mágicos magiares seguem sendo cele- O cantor e compositor: batendo
brados em todo o mundo quase sete décadas depois. ƒ um bolão com craques magiares
58 NOV | 2020
REPRODUÇÃO
O EXÉRCITO DA BOLA
Terminada a II Guerra Mundial, a Hungria O espetacular atacante: Copa de 1962 com a camisa da Fúria espanhola
ficou sob a influência da União Soviética,
e o secretário-geral do Partido Comunista local O “MAJOR GALOPANTE”
incumbiu o vice-ministro dos Esportes de Sabe o prêmio da FIFA para o gol mais bonito do ano? Ele se chama Puskás em
montar uma seleção arrasadora. Com a ajuda homenagem ao craque húngaro Ferenc Puskás Biró (1/4/1927-17/11/2006).
do treinador Gyula Mándi (que em 1957 Nascido em Budapeste, foi o líder dos mágicos magiares que encantaram
foi contratado pelo América do Rio), ele passou o mundo na primeira metade dos anos 1950. Começou a jogar com apenas
o ano de 1949 garimpando jogadores pelo país. 16 anos, durante a II Guerra Mundial. Atuou 85 vezes pela seleção
Todos foram recrutados pelo Exército. da Hungria e anotou 84 gols (recorde não superado até hoje). Pelo Honvéd,
Recebiam soldo e tinham diferentes patentes jogou 367 partidas e fez 379 gols. Como tinha a patente de major do Exército,
(Ferenc Puskás, o maior craque húngaro, era ganhou também o apelido de Major Galopante. Apesar do biotipo meio
major). A maioria passou a atuar pelo Kispest, improvável para um atleta de elite (1,72 metro de altura, levemente gordinho),
time fundado em 1909 que foi rebatizado de foi o maior jogador do país onde nasceu. Em 1958, transferiu-se para o Real
Honvéd (Defensor, em português). Alguns Madrid, onde ficou por oito anos, até 1966. Lá, fez mais 262 jogos e 242 gols.
poucos foram para o MTK, também renomeado E, como as regras da época permitiam, vestiu também a camisa da seleção
de Vörös Lobogó (Bandeira Vermelha). espanhola — esteve na Copa de 1962, disputada no Chile, mas a Fúria
perdeu para o Brasil e a Checoslováquia e caiu ainda na fase de grupos.
NOV | 2020 59
O Brasil e a místic
O Comentarista do Futuro
de PLACAR viaja na máquina
do tempo até 1958 e
testemunha o lance que
marcou o início de uma
dinastia de laterais-esquerdos
bons de bola do nosso futebol
Claudio Henrique
C
aros leitores de 1958, vocês
não viram, apenas ouviram
no rádio, mas garanto a to-
dos que o jogo de ontem, em
que nosso escrete abateu a Áustria
por 3 a 0, estreia no certame mundial
da Suécia, merecerá seu lugar na his-
tória. E digo isso com a certeza de
quem vem de 2020, quando essa par-
tida será menos lembrada do que
deveria. Não advogo pelo fato de ser
a largada de uma campanha antoló-
gica da seleção canarinho, pois ela
terá início de fato, anotem, no tercei-
ro confronto, quando escalaremos
dois reservas, um de pernas tortas e
outro franzino e menor de idade. On-
tem o que se deu para a eternidade
foi o surgimento de uma sina que
acompanhará o futebol brasileiro
pelos próximos 62 anos: os laterais-
esquerdos bons de bola e com pinta
de “camisa 10”. Sim, a partir desta
Copa, será a 10 a chamada “camisa
mais pesada” da seleção. Mas outra
bem poderia ser consagrada: a 6. E
ontem testemunhei o lance que é a
gênese de tudo. Se Deus criou o
mundo em sete dias, Nilton Santos
precisou de sete passadas largas para
nos presentear com este novo perfil
de jogador de futebol: o “falso-late-
ral”. Mas tem de ser canhoto! “Volta, Nilton! Volta,
Não há gravações que registrem Nilton”, gritou em vão
o fato, mas ele será muito relatado um desesperado
acervo placar
60 NOV | 2020
NOV | 2020 61
62 NOV | 2020
NOV | 2020 63
Silvestre Gorgulho
S
e o apelido de família de
Edson Arantes do Nasci-
mento é Dico, de onde vem
o apelido Pelé? Essa é uma
história que merece ser contada
com detalhes. Acompanhei, como
torcedor, a vida profissional de Pelé
desde 1958, na Copa do Mundo da
Suécia. Em campo, vi Pelé jogar
apenas três vezes. Todas no Minei-
rão, em Belo Horizonte. Era bom ver
Pelé pegar a bola e a torcida automa-
ticamente se levantar no estádio.
Pela TV, vi muitas vezes. Mas na
maioria, mesmo, “vi” Pelé jogar, no
Santos ou na seleção, pelo rádio. Ah!
como a gente viajava na fantasia dos
locutores... A grande vantagem do
filme Pelé Eterno, de Aníbal Massai-
ni Neto, é que não precisa ser torce-
dor nem entender muito de futebol
para gostar do superdocumentário.
Basta gostar de ser brasileiro, de es-
acervo placar
porte ou de arte. “Pelé Eterno” é
bom de título e de pesquisa. Apenas
faltou dar mais detalhes sobre um Como ele não conseguia falar Bilé, era só Plé, a criançada pegava no pé
tema que acho relevante: a origem
do nome Pelé e a sua infância. Te- neira, como Antônio Farid Lage, res referências. E é justamente por
nho certeza de que esse deve ser um Bernadete Guimarães e o diretor isso que dou este testemunho. Afi-
novo projeto para Massaini. do Vasco, Miguel Gorgulho. De- nal, como nasceu o nome Pelé?
Em Pelé Eterno, dona Celeste pois, a equipe da ESPN foi a Volta Voltemos no tempo. Corria o
chega a explicar rapidamente logo Redonda, no Rio de Janeiro, onde ano de 1942. Escuto essa história
no início: “Lá em São Lourenço, ha- moram os filhos de Bilé: Sidney, desde criança. Agora, é uma boa
via um goleiro chamado Bilé...”. O Shirley e Wanderley. Bilé (José Luiz oportunidade de relembrá-la. Mi-
canal ESPN foi mais fundo na his- da Silva) morreu em 1975, aos 53 nha família é de São Lourenço, sul
tória. Em 2010, quando Pelé com- anos. Mas vamos à história. Pri- de Minas. Meu pai, Miguel Ar-
pletou 70 anos, fez uma série sobre meiro, vale lembrar que Pelé, on- chanjo Gorgulho, foi um empresá-
o Rei. Uma equipe foi a São Louren- tem e hoje, é nome, sobrenome, rio local sempre atento às questões
ço, comandada por Roberto Salim, substantivo e adjetivo. Não tenho sociais, culturais e educacionais do
e pesquisou muito sobre o Vasco, dúvida de que, junto com o nome município. Estava na criação do ae-
sobre Dondinho, sobre Bilé, entre- Amazônia, seja o vocábulo brasi- roclube, na implantação da facul-
vistando familiares do goleiro e vá- leiro mais conhecido no mundo. dade, foi presidente da associação
rios personagens da cidade sul-mi- Amazônia e Pelé são nossas maio- paroquial e com alguns amigos
64 NOV | 2020
NOV | 2020 65
Errou, assuma
E lembremos que os jogadores de futebol, apesar da fama e
do dinheiro, são pessoas como todas as outras, ídolos frágeis
N
ão sou de acompanhar frenetica- porque a verdade prevalecerá. É óbvio que
mente as redes sociais, mas sem- muitas vezes os jogadores caem em arapu-
pre que posso dou uma olhada. cas, são seduzidos, traídos por falsos ami-
Não há dúvida que Pelé e Marado- gos, enganados por falsos amores. Existem
na foram craques excepcionais. Muitos até vários casos em que os jogadores chegam
acham que o argentino foi superior ao Rei. em seu quarto de hotel e encontram lindas
São opiniões, e temos de respeitá-las. Os mulheres escondidas. Alguns as expulsam e
dois fizeram aniversário recentemente e, outros não resistem à tentação e depois se
em ambos os casos, muita gente postou co- enredam em uma teia de problemas.
mentários extremamente agressivos sobre Mas sigo em meu ponto de vista, errou,
a dupla. No caso de Pelé, lembraram que ele assuma. Claro, os jogadores deveriam ser
nunca teria assumido uma filha, e, no de exemplos para os jovens, para a torcida e
Maradona, bateram forte em seu envolvi- para as famílias. Mas eles são pessoas co-
mento com as drogas: “cheirador safado”, muns, falsos super-homens, ídolos frágeis.
“rei do pó”, e por aí vai. Jogadores de futebol Maradona estava internado no começo de
são pessoas comuns, com erros e acertos. novembro em decorrência de um proble-
Claro que deveriam servir de exemplo, ter ma no cérebro, mas estamos na torcida pa-
um acompanhamento psicológico mais ra que tudo fique bem — apesar dos erros
eficiente, alguns ficam ricos muito rápido, que cometeu, mas sabendo que foi um dos
são convidados para festas, viagens para- grandes da história do futebol. ƒ
disíacas com belas mulheres, bebidas e
Não adianta drogas de todo tipo. Se os jogadores que
se cercar de não alcançaram o estrelato se empolgam,
advogados, imagine as grandes estrelas.
porque a Ao longo dos anos, vimos muitos jogado-
verdade res envolvidos com drogas (eu mesmo atra-
vessei um período colado a elas, sei como é
prevalecerá. difícil abandoná-las), brigas familiares, aci-
É óbvio que dentes de trânsito com fatalidades, ou pre-
muitas vezes os sos por não pagar pensão, por fazer uso de
jogadores caem passaporte falso, envolvidos com trafican-
Juan Ignacio Roncoroni/EPA/EFE
66 nov | 2020