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1.

1 O caracol material

Todo o pensamento de Bachelard está nesse


caracol material, nesta infinidade em
profundidade. Ele é este caracol. Não é de
forma alguma habitual na história das
ideias que a matéria seja afetada duma tal
multiplicidade de funções: ética, poética,
psicológica, gnosiológica, metafísica. 1

Pierre Quillet fornece uma descrição afetiva de Gaston


Bachelard, porém reveladora de alguns traços da trajetória
filosófica e científica do pensador francês, para os quais
gostaria de voltar-me. Ao definir seu mestre como um
caracol material, Quillet toma de empréstimo um símbolo
caro a Bachelard. O epíteto foi retirado justamente de uma
das obras mais notáveis do filósofo, A poética do espaço
(1957), na qual a imagem do caracol é assinalada como
símbolo de profundidade.2 Ao retomar a imagem do molusco,
Quillet chama a atenção não apenas para a densidade da
filosofia bachelardiana, mas igualmente para seu vínculo
indelével com a matéria, presente nos dois vetores de seu
pensamento: o científico e o poético.

O filósofo e professor de física, matemática e


química, acostumado à lide com números, fórmulas e
elementos químicos, em um dado momento de sua vida, sentiu-
se compelido a recomeçar. Como os grandes mestres têm por
hábito conservar as chamas da curiosidade e a motivação

1
QUILLET, Pierre. Introdução ao pensamento de Gaston Bachelard.
Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
2
No capítulo “A concha”, de A poética do espaço, Gaston
Bachelard sustenta o caráter misterioso e complexo da imagem do
caracol. Observa o filósofo: “Tudo é dialética no ser que sai de
uma concha”. (p.120) BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
irrefreável dos aprendizes, Bachelard dedica boa parte de
sua vida à poesia, vislumbrando na arte poética um meio
privilegiado para o estudo do devaneio literário e de sua
relação com os arquétipos presentes no inconsciente humano.

A pesquisa, que se ocupa da vertente poética da obra


de Bachelard conduz, necessariamente, ao estudo da
percepção, do imaginário, da imaginação material, da
imaginação formal e do devaneio. No âmbito dessas
reflexões, o estudo das imagens materiais torna-se um
problema filosófico, retomado constantemente. Para
Bachelard, a adesão a tais imagens, através do devaneio
constitui uma experiência ontológica, na qual o ser do
homem participa integralmente. Por outro lado, o filósofo
defende que o vínculo de um poeta a uma imagem é igualmente
uma ligação cósmica, através da qual participa todo o
universo. Na dialética entre o homem e o mundo, o devaneio
dos quatro elementos – água, fogo, terra e ar – testemunha
o vínculo entre as imagens poéticas e a matéria sonhada,
conforme se pode reconhecer na reconstituição dos momentos
mais importantes da filosofia da poesia preconizada por
Gaston Bachelard.

1.2 Poesia e ciência: a bem-aventurança de um


encontro

A investigação sobre o imaginário poético presente na


obra filosófica de Gaston Bachelard remonta ao livro A
psicanálise do fogo (1938). A defesa da complementaridade
entre razão e imaginação no processo de construção do
conhecimento toma por base uma aproximação aparentemente
insólita entre ciência e poesia: “Os eixos da poesia e da
ciência são a princípio inversos. Tudo o que a filosofia
pode esperar é tornar a poesia e a ciência complementares,
3
uni-las como dois contrários bem-feitos”.

Ao reunir a expansividade do espírito poético e o


rigor do espírito científico, Bachelard opõe-se à soberania
da razão como única via possível para a compreensão da
vida, da ciência e do homem no mundo. O diálogo entre
ciência e poesia firma-se como uma urgência epistemológica
do pensar bachelardiano, configurando uma de suas
contribuições mais importantes ao estudo da poesia no
século XX. Considerando a racionalidade como um dos
caminhos de acesso à compreensão da vida, Bachelard entrevê
no estudo do devaneio poético mais uma trilha a ser
percorrida na aventura de conhecer o ser humano.

Em A psicanálise do fogo – primeira obra que aborda


aspectos do devaneio poético, o filósofo dedica-se à imagem
do fogo, por reconhecer nela a presença de um fenômeno de
totalidade. Presente no imaginário científico e literário
da humanidade, o fogo mobiliza uma rede simbólica de
profunda beleza e significação através da qual estão
reunidos o desejo de conhecer e de ultrapassar-se. Por ser
tema frequente nas mais variadas áreas do conhecimento, o
fogo constitui uma imagem privilegiada para a especulação
filosófica:

Se tudo o que muda lentamente se explica


pela vida, tudo o que muda velozmente se
explica pelo fogo. O fogo é o ultravivo.
O fogo é íntimo e universal. Vive em
nosso coração. Vive no céu. Sobe das
profundezas da substância e se oferece
como um amor. Torna a descer à matéria e
se oculta, latente, contido como o ódio
e a vingança. Dentre todos os fenômenos,
é realmente o único capaz de receber tão

3
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p.2.
nitidamente as duas valorizações
contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no
Paraíso, abrasa no inferno. É doçura e
tortura. Cozinha e apocalipse. É prazer
para a criança sentada ajuizadamente
junto à lareira; castiga, no entanto,
toda desobediência quando se quer
brincar demasiado de perto com suas
chamas. O fogo é bem-estar e respeito. É
um deus tutelar e terrível, bom e mau.
Pode contradizer-se, por isso é um dos
princípios de explicação universal.4

A complexidade que emana da imagem ígnea justifica


certas escolhas feitas por Bachelard. Nesse sentido, a
distinção entre o homem pensador e o homem pensativo tem
por objetivo estabelecer o caminho de análise do devaneio.

Na visão bachelardiana, o homem pensador se prende


excessivamente à razão; o homem pensativo, a seu turno,
encontra no devaneio uma forma poética de habitar o mundo:
“é o homem pensativo que queremos estudar aqui, o homem
pensativo junto à lareira, na solidão, quando o fogo é
brilhante, como uma consciência da solidão”.5 Ao
experimentar a sedução das imagens do fogo, o homem
pensativo explora uma multiplicidade de temas primitivos
que remonta aos arquétipos oriundos do inconsciente
coletivo.

Nesse aspecto da filosofia bachelardiana, evidencia-se


a presença decisiva do legado de Carl Gustav Jung.
Bachelard retoma da obra de Jung as noções de arquétipo e
de inconsciente coletivo para enfatizar a dimensão trans-
histórica das imagens que surgem no devaneio poético.6 Com

4
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p.11 e 12.
5
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p.4.
6
Em contraposição à teoria de Sigmund Freud, que define o
inconsciente como espaço catalisador dos conteúdos rejeitados
base nos conceitos jungianos, Bachelard defende que as
imagens arquetípicas constituem forças orgânicas presentes
no inconsciente de cada ser. Essas disposições não
representam impulsos estáticos, porquanto a ação imaginante
constantemente as manipula.

O estudo do devaneio poético tem motivações de análise


muito distintas daquelas que movem psicanalistas e
psicólogos a estudar o sonho noturno: “O sonho avança
linearmente, esquecendo seu caminho à medida que avança. O
devaneio opera como estrela. Retorna ao seu centro para
emitir novos raios”.7 O sonho noturno percorre um caminho
linear e o objetivo de quem o analisa é compreender a
origem oculta da história narrada. Por outro lado, a
análise do devaneio persegue um ideal oposto, na medida em
que se interessa pela expressão do que é manifesto. A
especulação em torno das causas psíquicas que motivam a
presença de determinadas imagens no devaneio literário é
menos relevante que o estudo do tratamento estético que os
poetas conferem a elas.

Sendo assim, a forma como as imagens aparecem no


devaneio e o que elas representam constituem o foco
principal de interesse do filósofo na leitura da poesia.
Vendo no devaneio uma forma possível para compreender

pelo consciente, Jung concebe-o como uma estrutura ativa capaz


de gerar seus próprios conteúdos. A partir de Jung, o
inconsciente deixa de ser visto como um consciente recalcado e
passa a ser considerado como uma natureza primeira, capaz de
agregar não apenas conteúdos pessoais, mas componentes
impessoais e coletivos. Em face dessa assertiva, Jung afirma a
existência do inconsciente coletivo, estrutura formada por
imagens arcaicas, as quais o mesmo denomina de arquétipo – “uma
imagem histórica que se propagou universalmente e irrompe de
novo na existência através de uma função psíquica natural”.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Rio de Janeiro: Vozes,
2004. p.13.
7
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p.22.
melhor o comportamento do ser no mundo, Bachelard vislumbra
a presença de um sentimento comum entre o homem da ciência
e o homem das artes: a busca pelo saber mobiliza tanto o
homem pensador quanto o homem pensativo.

A representação da vontade humana de conhecer é


designada por Bachelard como complexo de Prometeu, reunião
de “todas as tendências que nos impelem a saber tanto
quanto nossos pais, mais que nossos pais, tanto quanto
nossos mestres, mais do que nossos mestres”.8 O desejo de
conhecer alia-se ao desejo de transcender, razão pela qual
o filósofo afirma que o complexo de Prometeu é o complexo
de Édipo da vida intelectual.

A necessidade semelhante de conhecer que parte das


inquietudes dos sujeitos no mundo aproxima o cientista e o
poeta. Compelidas a seguir o caminho traçado por seus
questionamentos mais simples e secretos, as experiências
científica e poética narram a trajetória dos sujeitos que
se movem em direção as suas respostas. Tanto nos bastidores
do fazer poético quanto do fazer científico, encontraremos
uma dimensão subjetiva e afetiva, marcada histórica e
socialmente. No pensamento de Bachelard, o sonho antecipa a
ciência e está na base da construção do conhecimento:

Só se pode estudar o que


primeiramente se sonhou. A ciência
forma-se muito mais sobre um devaneio
do que sobre uma experiência, e são
necessárias muitas experiências para
se apagarem as brumas do sonho.9

8
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p.18.
9
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p.34.
A ciência é muito mais obra dos desejos, dos sonhos e
das inquietudes do homem diante do que conhece e do que
desconhece de si e do mundo, do que apenas um produto de
necessidades objetivas. Razão e imaginação não são
instâncias opositoras, mas complementares. Ao elaborar e
defender com clareza a dimensão onírica do pensamento
científico, Bachelard possibilita um questionamento arguto
em torno dos ideais que movem os pesquisadores e os impelem
a fazer ciência. O filósofo empenha-se em dar visibilidade
a um projeto de construção do conhecimento que questiona a
formação de um discurso unívoco, baseado no distanciamento
entre sujeito do conhecimento e objeto científico.

A despeito de formarem domínios distintos, razão


científica e razão poética são perpassadas pela
subjetividade e pela imaginação. Para Bachelard, a
imaginação contribui para a formação de uma razão criadora,
de uma ciência viva que não se restringe a observar,
definir, classificar, mas também se ocupa em problematizar,
questionar o produto do conhecimento e as formas de
concebê-lo. Essa aliança entre o sonho e a ciência confere
ao saber uma dimensão poética e ética. O fazer científico
tornara-se um exercício bem mais complexo, na medida em que
se inscreve como um processo denso e autocrítico, capaz de
produzir o conhecimento e questionar essa construção.

Em torno de tais reflexões, A psicanálise do fogo


introduz conceitos basilares da filosofia de Bachelard. As
questões apontadas pelo filósofo serão retomadas nas obras
posteriores, com vistas a dedicar atenção mais detida para
os temas inicialmente abordados.

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