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A adoção da eletricidade na Marinha Portuguesa

(1884-1913)

Resumo

O aproveitamento prático da eletricidade só surgiu em Portugal no último quartel


do século XIX, sendo inicialmente utilizada na iluminação pública dos grandes centros
urbanos, mas essa nova tecnologia que então estava em grande desenvolvimento no
estrangeiro, veio a ser rapidamente adotada em muitas outras aplicações em Portugal.
As primeiras referências escritas sobre a questão da eletricidade a bordo dos navios
da Armada, foram publicadas nos Anais do Clube Militar Naval e respeitam à corveta
Afonso de Albuquerque, em que são descritas algumas experiências e que, surgiram numa
altura em que ainda não existiam praticamente nenhumas utilizações concretas da
eletricidade na Marinha Portuguesa.
Porém, a adoção da eletricidade para utilização a bordo dos navios da Marinha
Portuguesa foi um processo que exigiu crítica e reflexão, daí resultando que a sua
produção a bordo e as suas diferentes aplicações nos sistemas de iluminação,
telecomunicações, artilharia, produção de frio e na propulsão dos submarinos, entre outras
utilizações, fosse um processo gradual e que fosse desenvolvido como parte de diversos
planos navais para a renovação da esquadra.

Palavras-chave: eletricidade, iluminação a bordo, telecomunicações, propulsão


dos submarinos
Abstract

The practical use of electricity only appeared in Portugal in the last quarter of the
19th century, being initially used in public lighting in large urban centers, but this new
technology, which was then under great development abroad, was quickly adopted in many
other applications in Portugal.
The first written references on the issue of electricity aboard Navy ships were
published in the Anais do Clube Militar Naval and refer to the corvette Afonso de
Albuquerque, in which some experiences that arose at a time when there were practically
no concrete uses of electricity in the Portuguese Navy.
However, the adoption of electricity for use on board Portuguese Navy ships was a
process that required criticism and reflection, with the result that its production on board
and its different applications in lighting, telecommunications, artillery, cold production
systems and the propulsion of submarines, among other uses, it was a gradual process and
following several naval plans for the renewal of the fleet.

Keywords: electricity, onboard lighting, telecommunications, propulsion of


submarines

1
Introdução

As primeiras referências escritas sobre a problemática da introdução de eletricidade


na Armada, em que se descrevem essencialmente algumas experiências, foram publicadas
pelos Anais do Clube Militar Naval.
Logo em 1871 os Anais deram a conhecer aos seus sócios as diversas aplicações da
luz elétrica a bordo dos navios num texto inovador que referia a luz elétrica como sendo um
importante auxiliar da Marinha, tanto em tempo de paz como na guerra, mas que a instalação da
luz elétrica a bordo teria de ser objeto de muita atenção.
Apesar do assunto ter despertado o interesse dos sócios do Clube Militar Naval,
também gerou preocupações relativamente à aplicação da eletricidade ao serviço marítimo.
De facto, esta nova tecnologia só se concretizou quando foi construído o primeiro
navio – a corveta Afonso de Albuquerque – lançada à água em Inglaterra em 1884 e que
dispunha de uma modesta instalação elétrica de origem. Foi o primeiro navio de guerra
português a ter instalação elétrica desde a sua construção, embora no mesmo ano, também
o navio mercante Funchal, tivesse recebido uma instalação elétrica.
Porém, ainda não estávamos muito atrasados relativamente às grandes marinhas. Um
ano antes da entrada ao serviço da corveta Afonso de Albuquerque, o USS Treton, um navio
de guerra da Marinha dos EUA, inaugurou em 1883, uma instalação de luzes elétricas.

2
1. Enquadramento histórico

Até meados do século XIX, tanto o espaço público como o espaço doméstico eram
iluminados com gás, com petróleo, com azeite e com outros óleos animais ou vegetais.
Porém, com o desenvolvimento dos estudos sobre a eletricidade sucederam-se muitas
experiências e invenções que, numa primeira fase, tinham por objetivo a iluminação desses
mesmos espaços com a nova tecnologia, mais barata, mais limpa e de maior eficiência.
Nessa época multiplicavam-se as invenções e, quando hoje se procura fazer um
historial da evolução dos progressos nos domínios da eletricidade, surgem informações
muito díspares e protagonistas muito diferentes. Porém, é consensual que algumas
invenções foram muito relevantes para o desenvolvimento dessa nova tecnologia e para o
progresso da sociedade, destacando-se entre muitas outras, o dínamo do belga Zénobe
Gramme (1869), a lâmpada incandescente com filamento de carbono do americano Thomas
Edison (1879) e o motor-gerador do sérvio Nikola Tesla (1887). Esses três inventores, tal
como os já anteriormente referidos Stephen Gray, Alessandro Volta, James Maxwell ou
Guglielmo Marconi, segundo todos os critérios de apreciação, estão no grupo dos que mais
contribuíram para o desenvolvimento da eletricidade.
Porém, o último quartel do século XIX foi um período em que se destacaram muitos
cientistas e inventores, tendo-se passado “do pensamento teórico para a realização prática”
ou da ciência pura para a técnica.1
Na segunda metade do século XIX multiplicaram-se os inventos e as experiências
para aperfeiçoar a produção e a utilização da eletricidade, tendo muitos deles sido
rapidamente industrializados e adotados na generalidade dos países mais desenvolvidos.
O entusiasmo que a eletricidade estava a despertar nesses países deu origem à
realização de várias exposições internacionais ou feiras, em que as novas invenções eram
reveladas à comunidade empresarial e à indústria. Uma das mais famosas terá sido a
Exposição Internacional de Eletricidade, organizada em Paris entre 1 de agosto e 15 de

1
Jean Cazenobe, “De Maxwell à Marconi: Les difficultés du passage de la théorie scientifique à la
réalization technique”, Bulletin d'histoire de l'électricité, n°5, juin 1985, pp. 19-36.
https://www.persee.fr/issue/helec_0758-7171_1985_num_5_1 (Acedido em fevereiro de 2021).
3
novembro de 1881, que consagrou o aparecimento de múltiplas aplicações industriais do
dínamo de Gramme e divulgou as últimas invenções de Thomas Edison.

Milhares de lâmpadas acenderam de uma só vez em 10 de agosto de 1881, no parque


de exposições da Feira Internacional da Electricidade em Paris. O público entusiasmou-
se com as “estrelas” ou “luminárias de Edison”.
[…] Apesar de muito admirada na feira de Paris, a electricidade ainda demorou a se
impor na Europa. Os alemães, por exemplo, continuaram usando lamparinas de petróleo,
velas de cera e lampiões a gás para a iluminação geral”.2

Essa exposição foi objeto de relato na imprensa portuguesa, o que revela que em
Portugal se acompanhava o desenvolvimento da eletricidade.3
Nesta mesma época também em Portugal se sucediam várias iniciativas relativas à
introdução da eletricidade, não só para utilização na iluminação pública, mas também para
a iluminação a bordo de alguns navios. Assim, era noticiado que a corveta Mindelo foi
iluminada, tendo a sua luz sido exibida até à noite de 31 de outubro de 1880, “estando a
corveta fundeada em frente de Belém, e attraindo esta novidade ao caes e logares próximos
grande concorrência de espectadores”.4
Em 1884 foi o paquete Funchal, pertencente à frota da Empresa Insulana de
Navegação, que se tornou no primeiro vapor mercante português que recebeu uma
instalação elétrica em todas as suas acomodações.5
Porém, só em 1887 é que a Câmara Municipal de Lisboa assinou um contrato para a
eletrificação da Avenida da Liberdade e da Praça dos Restauradores, embora esse propósito
só tivesse sido realizado em 1889 quando a iluminação elétrica também foi instalada de
forma definitiva em vários locais da cidade de Lisboa, nomeadamente no Chiado, no
Rossio, na Rua do Ouro e na Praça do Município.6
Neste contexto temporal de fins do século XIX, é interessante saber o que se passou
em outros países relativamente à introdução da eletricidade, sobretudo para podermos

2
«1881: Primeira Feira Internacional da Electricidade em Paris. https://www.dw.com/pt-br/1881-
primeira-feira-internacional-da-eletricidade-em-paris/a-319769, (Acedido em abril de 2021).
3
«A Exposição de Electricidade em Paris», O Occidente, Ano IV, nº 98, 11 de setembro de 1881.
4
«Luz eléctrica a bordo». Anais do Clube Militar Naval, Tomo Décimo, Lisboa, 1880, p. 266.
5
Carlos Silveira, Navegação a vapor entre o Continente e os Açores – Primeiros Tempos, Horta,
Edição do autor, 2014.
6
“Lisboa. A noite natural que nunca mais foi escura”, https://sol.sapo.pt/artigo/536720/lisboa-a-
noite-natural-que-nunca-mais-foi-escura (Acedido em janeiro de 2021).
4
avaliar em termos comparativos, qual o posicionamento de Portugal em relação à adoção
da nova tecnologia.
Porém, embora tivessem sido encontrados poucos estudos acessíveis sobre este
assunto, foi possível reunir, através de buscas na internet, algumas informações avulsas
que adiante se sintetizam e que nos ajudam a posicionar Portugal em relação a outros países
nesse domínio, nomeadamente a Espanha, a França, o Reino Unido e os Estados Unidos.

Espanha
A primeira referência à utilização da eletricidade em Espanha data de 1852, quando
foram feitas algumas experiências de iluminação na Plaza de la Armeria del Palacio Real
e no Congresso dos Deputados, em Madrid. Depois de outras experiências, tanto em
Madrid como em Barcelona, em 1875 foi instalado um dínamo na capital da Catalunha
com o qual foi produzida eletricidade (DC), que foi utilizada nas principais áreas da cidade,
tendo sido iluminadas as Ramblas, o mercado de La Boqueria, o Castelo de Montjuic e o
bairro de Gràcia.
No ano seguinte foi criada a Sociedad Española de Electricidad, que foi a primeira
empresa espanhola dedicada à produção e distribuição de eletricidade e em 1889 foi criada
a Compañia General Madrileña de Electricidad.7
Segundo a Revista General de Marina, órgão oficial da Armada Espanhola, em 1877
“se introducía la electricidad a bordo de los buques de la Armada”.8
A adoção da eletricidade foi rápida nas cidades espanholas e em 1888 foi publicado
um decreto que proibia expressamente a iluminação nos teatros com gás e que autorizava
a iluminação com azeite apenas como solução de emergência.

França
Segundo uma tese apresentada por Didier Robineau na Université de Nantes, a
primeira tentativa para iluminar um navio francês aconteceu em 1855 no aviso Jérôme

7
Historia de la Electricidad en España.
http://www.energiaysociedad.es/manenergia/1-2-historia-de-la-electricidad-en-espana/ (Acedido em maio
de 2021)
8
Revista General de Marina.
https://armada.defensa.gob.es/ArmadaPortal/page/Portal/ArmadaEspannola/mardigitalrevistas/prefLang-
en/02revistaGenMarina. (Acedido em abril de 2021).
5
Napoléon, tendo sido utilizadas máquinas magneto-eléctricas.9 Depois, a experiência foi
repetida em 1868 na fragata couraçada L’Héroïne, até que em 1877 a Marinha Francesa
equipou o couraçado Richelieu com iluminação elétrica e projetores luminosos,
comportando o conjunto da instalação 227 lâmpadas, das quais 211 de 8 velas para
iluminação e dezasseis de 30 velas para os projetores e faróis de borda.10
Então, “um certo número de máquinas Gramme foram instaladas em vários navios
de guerra franceses, dinamarqueses, russos, ingleses e espanhóis, entre os quais o Livadia
e o Pierre-le-Grand da Marinha russa, o Richelieu e o Suffren da Marinha francesa, o
Rumancia e o Victoria da Marinha espanhola”.11
A Marinha Francesa estava muito interessada nas potencialidades da nova tecnologia
e em 1882 encomendou 145 projetores, dos quais trinta tinham um alcance de 6
quilómetros para a defesa das suas costas.12
O caso da França destaca-se do que conhecemos de outros países, pois existe um
enorme interesse por esse tipo de estudos, através de parcerias entre a Universidade e o
grupo EDF – Electricité de France. Daí nasceu a criação em 1982 da Association pour
l'histoire de l'électricité en France (AHEF), a fim de estimular e divulgar estudos sobre a
história da eletricidade francesa. Esta associação publicou, duas vezes por ano, um Bulletin
d’histoire de l’électricité, em que foram divulgadas algumas dezenas de textos sobre os
primórdios da eletricidade em França. Em 2001 a associação deu lugar a um novo comité
de história da eletricidade que continuou a missão da AHEF e que, a partir de 2013, se
passou a denominar Comité d’histoire de l’électricité et de l’énergie, continuando a
publicar estudos monográficos sobre a história da eletricidade em França.13

Reino Unido
Na segunda metade do século XIX o Reino Unido era a primeira potência marítima
mundial e, naturalmente, também foi a primeira a adotar a eletricidade nos seus navios,

9
Didier Robineau, L’introduction de l’électricité dans la marine militaires (1880-1935), These de
Doctorat, l’Université de Nantes, 2019, p. 31/313, https://halshs.archives-ouvertes.fr/CFV/tel-02876149v1
(Acedido em dezembro de 2020).
10
Bulletin d'histoire de l'électricité, in https://www.persee.fr/collection/helec, (Acedido em abril de
2021), p. 69.
11
Didier Robineau, op. cit., p. 32/313.
12
Ibidem, pp. 30-31.
13
Bulletin d'histoire de l'électricité. https://www.persee.fr/collection/helec, (Acedido em abril de
2021).
6
tendo o HMS Minotaur e o HMS Temeraire sido equipados em 1876 com geradores
movidos a vapor para alimentar os seus projetores de arco voltaico.14
O desenvolvimento da eletricidade entusiasmou a Marinha Britânica e “em 1892
havia cerca de 300 navios da Royal Navy com iluminação elétrica e munidos de
projetores”.15

Estados Unidos
Os Estados Unidos estiveram na vanguarda da investigação, da invenção e da
experimentação no domínio da eletricidade, tendo sido um dos países pioneiros na sua
utilização prática, numa época em que ainda não eram a superpotência em que se
transformaram em meados do século XX.
O primeiro navio americano que dispôs de iluminação elétrica foi o SS Columbia,
um navio a vapor de carga e passageiros que era propriedade da Oregon Railway and
Navigation Company. Este navio foi o primeiro que possuiu um dínamo para alimentar as
lâmpadas elétricas inventadas por Thomas Edison, que funcionaram pela primeira vez fora
do seu laboratório em Menlo Park, no estado de Nova Jersey.
Esse laboratório era a Edison Electric Illuminating Company, uma empresa fundada
por Edison, que no dia 4 de setembro de 1882 ligou pela primeira vez lâmpadas elétricas
na via pública. Aconteceu na Wall Street, na cidade de Nova Iorque, que já então era o
centro financeiro dos Estados Unidos, que dessa forma se tornou a primeira rua no mundo
que recebeu iluminação elétrica.16
Entretanto, nesse mesmo ano de 1882 foi eletrificado o primeiro farol americano, na
área de aproximação ao porto de Nova Iorque.
O sucesso com a instalação elétrica do SS Columbia, levou a que em 1883 fosse
contratada a Edison Company for Isolated Lighting para instalar um sistema elétrico a
bordo de um navio da Marinha americana. O USS Trenton foi o navio escolhido e, tal como
o SS Columbia, era um navio moderno com casco de aço e sistema de propulsão a vapor

14
DUNKLEY, Mark, Ships and Boats: 1840-1950 - Introductions to Heritage Assets, Swindon,
Historic England, July 2016. https://historicengland.org.uk/images-books/publications/iha-ships-boats-
1840-1950/heag133-ships-and-boats-1840-1950-iha/ (Acedido em abril de 2021)
15
Didier Robineau, op. cit., p. 75.
16
“Há 135 anos, lâmpadas elétricas iluminavam uma via púbica pela primeira vez”?,
https://www.tecmundo.com.br/ciencia/121655-ha-135-anos-lampadas-eletricas-iluminavam-via-publica-1-
vez.htm (Acedido em Abril de 2021)
7
com equipamentos de navegação adicionais. No ano seguinte, o Bureau of Navigation
decidiu que os navios Atlanta, Boston e Omaha deveriam ser equipados com um sistema
de iluminação elétrica semelhante ao que fora instalado no USS Trenton e, logo depois, a
iluminação elétrica tornou-se um recurso padrão instalado a bordo de navios militares e
comerciais.17
O USS Trenton foi sobretudo uma plataforma experimental para a Marinha dos
Estados Unidos que, a partir de então, tratou muito rapidamente de desenvolver a
eletrificação da sua frota, segundo refere Didier Robineau.18
As informações relativas à adoção da eletricidade a bordo dos navios em diferentes
países, apesar da sua escassez e até de alguma imprecisão, permitem uma análise
comparativa, que se apresenta no quadro seguinte.
Nesse quadro se pode verificar que, num curto espaço de poucos anos, as principais
Marinhas do mundo ocidental adotaram a eletricidade, não só para fazer a iluminação
pública em substituição da iluminação a gás ou outra, mas também para iluminar os seus
navios.

Ano Ocorrência
O HMS Minotaur e o HMS Temeraire, foram equipados com geradores movidos a vapor
1876
para os projetores de arco voltaico.
O couraçado francês Richelieu foi equipado com iluminação elétrica e projetores
1877
luminosos.

1877 Introdução da eletricidade a bordo dos navios da Armada de Espanha.

A corveta portuguesa Mindelo foi iluminada ocasionalmente, tendo a sua luz sido exibida
1880
com o navio fundeado em frente de Belém.
O navio mercante americano SS Columbia recebe o primeiro sistema de iluminação com
1880
120 luzes.

1883 O USS Trenton torna-se o primeiro navio da US Navy a receber uma instalação elétrica.

17
E. Skjong, E. Rødskar, M. Molinas, TA Johansen e J. Cunningham, "The Marine Vessel's Electrical
Power System: From its Birth to Present Day". Proceedings of the IEEE , vol. 103, Nr. 12, 2015, pp. 2-3,
(Acedido em Abril de 2021)
18
Didier Robineau, op. cit., p. 75.
8
Embora com informação escassa, o anterior quadro permite-nos verificar que,
aparentemente, a Marinha Portuguesa acompanhou as outras Marinhas na adoção da
eletricidade a bordo dos seus navios, assunto que adiante será desenvolvido.

2. Contexto que antecedeu a utilização da eletricidade em Portugal

A eletricidade só surgiu em Portugal no último quartel do século XIX e, mais


objetivamente, a partir da década de 1880, assentando sobretudo no seu uso para a
iluminação pública dos grandes centros urbanos, até então não iluminadas ou iluminadas
de forma precária a azeite ou gás.
Recuando até aos finais do século XVIII, verifica-se que a iluminação pública da
cidade de Lisboa era apenas usada nas noites sem luar, daí resultando que a vida social da
cidade era constantemente fustigada com crimes de sangue, assaltos, roubos e violações.
Porém, a progressiva generalização da utilização da eletricidade nas cidades foi um
fator de preocupação, relativamente à forma de organização espacial dos centros urbanos,
porque a iluminação das ruas, praças e zonas verdes, teria de ser bem equacionada, de
forma a poder garantir segurança e bem-estar aos seus habitantes ou a quem as visitasse.
A eletricidade, que passou a iluminar as cidades durante a noite, originou hábitos nas
populações e alterações na vida social, bem como no espaço urbano.19
Em 17 de dezembro de 1780, quando se realizou a festa do aniversário da Rainha D.
Maria I, foram acesos 774 candeeiros de azeite em honra da Rainha. A iluminação da
cidade foi um sucesso, não só em relação à segurança pública da cidade, mas também como
espetáculo e como forma de ostentação para os palácios e para as casas das famílias mais
importantes. Dizia-se então que “cada candeeiro é menos um polícia”, mas houve protestos
e o sistema de iluminação foi abandonado em 1792.
Contudo, os tempos conturbados por que passou o país, sobretudo as invasões
francesas, a partida da Família Real para o Brasil, as revoltas liberais e a guerra civil, não
proporcionaram as condições necessárias para que a iluminação pública fosse retomada.
Por todas estas razões, só em 1848 foi reposta a iluminação pública da cidade, mas o

19
Ana Cardoso de Matos, “Tecnologia, engenharia e eletricidade nas redes urbanas de iluminação e
transporte. Portugal 1880-1926”, Actas del Simposio Internacional Globalización, innovación y construcción
de redes técnicas urbanas en América y Europa, 1890-1930. Brazilian Traction, Barcelona Traction y otros
conglomerados financieros y técnicos. Barcelona, Universidad de Barcelona- Geocritica, 2012.
9
combustível azeite foi substituído pelo gás, sendo o seu fornecimento assegurado pela
Companhia de Iluminação Lisbonense.20
A primeira experiência de iluminação pública a partir da eletricidade aconteceu no
dia 28 de setembro de 1878 na esplanada da Cidadela de Cascais, quando se comemorava
o 15º aniversário do Príncipe herdeiro D. Carlos. 21
Após aquela festa de aniversário, o rei D. Luiz ofereceu à Câmara Municipal de
Lisboa “seis candeeiros de lâmpadas de arco tipo Jablochkoff, que tinham sido usados pela
primeira vez” naquela festa.22
Porém, só a partir de 1880 é que a eletricidade passou a ser considerada uma fonte
de iluminação, sendo instalada em locais de Lisboa como o Teatro de São Carlos, a Estação
de Santa Apolónia e alguns estabelecimentos comerciais, como a Papelaria Progresso, o
Matadouro Municipal, mas também na Fábrica de Tomar.23
Apesar das primeiras experiências de iluminação elétrica, ainda era a iluminação a
gás que continuava a ser utilizada e uma notícia publicada na revista O Occidente com o
título “A illuminação a gaz e os bicos intensivos”, mostra como em 1881 o aparecimento
da eletricidade ainda suscitava dúvidas quanto às suas vantagens ou desvantagens
relativamente à iluminação a gás, pois alguns consideravam que “a sua intensidade era
demasiada para poder servir na illuminação ordinaria”.

A questão da illuminação preoccupa todos os espiritos, porque as condições da vida


moderna tornam cada vez mais necessario o constante emprego da luz. Disputam o campo
o gaz e a electricidade, e não se poderá ainda dizer qual d’elles ganhará a partida. Com o
apparecimento da luz electrica julgou-se que a sua intensidade era demasiada para poder
servir na illuminação ordinária; hoje há já quem a julgue um tanto fraca, depois dos meios
empregados para lhe conservar uma certa fixidez.24

20
Rosa Maria Fina, “E agora a noite: a transformação da noite lisboeta entre os séculos XVIII e XIX,
Brotéria. Cristianismo ed Cultura, Volume 180-4, abril 2005.
21
“A cidadela de Cascais como palco de estreia”. TinyURL.com - shorten that long URL into a tiny
URL.
22
Lisboa. A noite natural que nunca mais foi escura.
https://sol.sapo.pt/artigo/536720/lisboa-a-noite-natural-que-nunca-mais-foi-escura. (Acedido em
abril de 2021).
23
Ibidem, p.7.
24
“A illuminação a gaz e os bicos intensivos”. O Occidente, 4º Ano – Volume IV – nº 84, 21 de abril
de 1881.
10
No ano de 1882 a cidade de Lisboa festejou durante três dias o Centenário do
Marquês de Pombal com grande pompa e muita participação popular, tendo a revista O
Occidente feito a descrição dos festejos e das iluminações, das quais publicou vários
desenhos.

O aspecto d’essa rua [da Prata] vista da Praça da Figueira ou do Terreiro do Paço
era realmente phantastico. A ornamentação consistia de inumeros arcos de ferro, a
curtissima distancia, todos illuminados a gaz, que davam um effeito maravilhoso de
perspectiva. A rua dos Fanqueiros era illuminada quasi que pelo mesmo plano, mas o
numero d’arcos era muito menor, a distancia que os separava muiyo mais lomnga, e por
consequencia o effeito muito inferior ao da rua da Prata. […]
O Rocio estava brilhante no centro; a praça cercada de festões de luz, com o theatro
de D. Maria todo illuminado ao fundo fazia um esplendido effeito […]. Na segunda-feira
8, ao meio dia realizou-se na Avenida da Liberdade o lançamento da primeira pedra do
monumento à memoria do marquez de Pombal. Essa era a festa official do centenario;
feita com a assistencia d’El-Rei, do ministerio e da côrte.25

Significa que, na grande festa do centenário do Marquês de Pombal realizada em


Lisboa no ano de 1882, ainda a iluminação foi feita com gás.
A imprensa da época e, em especial a revista O Occidente, acompanhava com
interesse as notícias relativas às novas utilizações da eletricidade e alguns títulos daquela
revista são bem sugestivos, como por exemplo “A luz eléctrica nos trabalhos ruraes” (15
de setembro de 1879), a “Locomotiva eléctrica da Siemens” (15 de maio de 1880) ou “O
progresso da telegrafia” (1 de novembro de 1881).
As iniciativas para a utilização da eletricidade na iluminação pública e de edifícios
eram as que mais regularmente eram noticiadas pela imprensa e mostravam que as mais
recentes inovações estavam a ser adotadas.

Em 1882 as salas da exposição de Arte Ornamental realizada no Museu Nacional de


Belas Artes, foram iluminadas com reguladores diferenciais de Brush enquanto no Jardim
do Museu se acenderam lâmpadas Jablochokoff.
Seis anos depois a Exposição da Indústria Nacional realizada também em Lisboa foi
iluminada a luz elétrica por F. Baerlein.
No Instituto Industrial de Lisboa, onde o laboratório de electrotécnica possuía uma
instalação completa para a demonstração dos fenómenos eléctricos, foram realizadas, em

25
“Chronica Occidental”. O Occidente, 5º Anno – Volume V – nº 123, 21 de maio de 1882.
11
1883-84, as primeiras experiências com as lâmpadas Swan e uma máquina Siemens e a
partir de 1891, o edifício do Instituto passou a ser parcialmente iluminado a luz elétrica.26

Porém, só em maio de 1889 é que a Câmara Municipal de Lisboa celebrou um


contrato destinado à instalação de iluminação elétrica de algumas zonas da cidade.

A iluminação eléctrica é instalada em definitivo no Chiado, rua do Ouro, praças D.


Pedro IV, do Município e dos Restauradores e na avenida da Liberdade, movimentando
as famílias e a circulação das pessoas pela zona nobre da baixa, atraídas pela novidade e
pelo progresso, tecendo-se comparações com a moderna cidade de Paris. Era o fim da
lamparina como se apregoava nas ruas de Lisboa.27

Seguiram-se outras experiências de utilização da eletricidade para a iluminação


pública em diferentes cidades e a cidade de Braga veio reivindicar ter sido a primeira cidade
que, no dia 23 de junho de 1893, teve eletricidade nas ruas e habitações durante os festejos
da noite de São João, embora dois anos antes, também as Termas do Gerês tenham
beneficiado da eletricidade.28
No dia 31 de agosto de 1901começaram a circular os primeiros carros elétricos de
Lisboa e esse facto, que recentemente foi evocado por ocasião do seu 120º aniversário,29
era mais um testemunho do entusiasmo com que era adotada a eletricidade, já não apenas
na perspetiva da iluminação, mas em muitas outras aplicações. Também, o sucesso da
eletrificação da cidade de Lisboa foi enorme e o aumento do consumo de energia elétrica
obrigou a que, em 1908, se construísse a nova Central da Junqueira, um belo edifício que
atualmente aloja o Museu da Eletricidade.
Com os múltiplos avanços tecnológicos, em finais do século XIX surgiram
naturalmente em Portugal várias empresas nacionais e estrangeiras, dedicadas à exploração
comercial da eletricidade e que forneciam e montavam instalações elétricas. A Companhia
Portuguesa de Eletricidade que possuía escritórios em Lisboa e no Porto, foi responsável
pela montagem de diversas instalações elétricas, como a iluminação do Chiado e a
iluminação da Companhia de Caminhos de Ferro do Norte e Leste, realizou, entre outras

26
Ana Cardoso de Matos, op. cit., p. 7.
27
Lisboa. A noite natural que nunca mais foi escura. https://sol.sapo.pt/artigo/536720/lisboa-a-noite-
natural-que-nunca-mais-foi-escura. (Acedido em abril de 2021).
28
Sabe qual foi a primeira cidade de Portugal a ter eletricidade?
https://www.electrorep.pt/novidades/sabe-qual-foi-a-primeira-cidade-de-portugal-a-ter-eletricidade.
(Acedido em janeiro de 2021).
29
Público, edição de 31 de agosto de 2021.
12
obras, a iluminação elétrica da estação do Rossio. Seguiu-se a iluminação da Avenida da
Liberdade a partir de uma pequena Central Elétrica que se situava nessa mesma avenida e
que pertencia à Companhia Gás de Lisboa.30
No campo da difusão tecnológica ligada à eletricidade, os engenheiros portugueses
conheciam as tecnologias mais avançadas e as suas aplicações, as quais foram introduzidas
em Portugal sem grande desfasamento em relação aos outros países. Mesmo assim, a maior
parte desses projetos foram entregues a engenheiros estrangeiros ou a portugueses que
tinham feito a sua formação no estrangeiro, os quais se assumiram como agentes de
transferência de tecnologia.31
A nível cultural, também esta moderna tecnologia levou ao surgimento em Portugal
de revistas e jornais dedicados aos usos da eletricidade, tal como aconteceu noutros países
da Europa, o que mostrava que havia públicos e leitores interessados nesse tema.
Já em 1883 se tinha iniciado a edição de uma Revista de Electricidade e Telegrafia,
na qual se publicaram artigos sobre as Exposições de Eletricidade de Paris e de Viena, se
deu a notícia do surgimento de novas máquinas elétricas e se publicaram traduções de
artigos que tinham sido divulgados em publicações especializadas como o Journal
Parisienne d'Electricité, o La Electricidad de Barcelona, a La Lumière Electrique ou o
Journal Télegraphique.32
Em termos práticos, a eletricidade, aplicada à iluminação pública fez mudar, não só
os comportamentos sociais, como também os interesses científicos e os hábitos da leitura
em geral e sobre este tema, o que levou ao surgimento de novas revistas especializadas,
como a Revista de Electricidade, Telegrafos, Faróis e Correios, em que foram incluídos
vários artigos sobre esta temática.

30
Ana Cardoso de Matos, op. cit., p. 4.
31
Ibidem, p. 16.
32
Ibidem, pp. 7-8.
13
3. A introdução da eletricidade a bordo dos navios

Como foi referido, a primeira experiência de iluminação pública a partir da


eletricidade em Portugal, aconteceu no dia 28 de setembro de 1878 na esplanada da
Cidadela de Cascais, quando se comemorava o 15º aniversário do Príncipe herdeiro D.
Carlos.
Nessa ocasião foram acesos candeeiros e o sucesso da experiência foi tão grande que
em Lisboa se organizaram excursões de famílias para ver a novidade que eram os
candeeiros acesos. “Este evento real foi o pontapé de saída para eletrificar Portugal e os
portugueses ficaram entusiasmados com a novidade”. 33
Pouco tempo depois, por iniciativa do Rei D. Luís que tinha uma especial ligação à
Marinha, aconteceu a primeira experiência de iluminação elétrica a bordo da corveta
Mindelo, que está relatada nos Anais do Club Militar Naval (CMN) de 1880, numa notícia
intitulada “Luz electrica a bordo”, que revela como aconteceu a primeira instalação elétrica
a bordo de um navio em Portugal.

Não devemos deixar passar desapercebido o facto que ultimamente se deu em um


dos navios da nossa marinha de guerra, e que pela sua novidade e importancia é digno de
todo o nosso interesse. Referimo-nos á exhibição da luz electrica a bordo da corveta
Mindello, na commissão que este navio acaba de desempenhar ás ordens de S. M. El-rei
[D. Luís I].
Deve-se a S. M. o pensamento inicial d’esta innovação, pensamento despertado
talvez em presença do brilhante espectaculo offerecido pela esquadra franceza em a noite
de 28 de setembro, quando n’um momento dado, os cinco navios de que a referida
esquadra se compunha, pondo em acção os seus apparelhos de luz electrica, encheram de
irradiações deslumbrantes a bahia de Cascaes.34

33
“A cidadela de Cascais como palco de estreia”. https://www.edp.com/pt-pt/historias/uma-historia-
de-dois-seculos-portugal-acende-a-primeira-lampada. (Acedido em janeiro de 2021).
34
«Luz electrica a bordo». Anais do Club Militar Naval, Tomo X, 1880, pp. 266-267.
15
Fig. 3 – A corveta Mindelo
(Fonte: Três Séculos no Mar (1640-1910), Volume 17, António Marques Esparteiro)

A notícia revelava que a instalação “foi obra do hábil e inteligente engenheiro


maquinista-naval, o Sr. João do Pinho”.

Este acontecimento, que á primeira vista poderá parecer insignificante, tem, a nosso
ver, toda a importância pela iniciação que representa para a nossa marinha, o qual deu
assim o primeiro passo para a acquisição de tão grande e indispensável melhoramento.
Actualmente não se compreende um verdadeiro navio de combate sem este importante
accessorio.35

A inovação começou a ser adotada e, em 1884, quando a Empresa Insulana de


Navegação adquiriu o paquete Funchal, que durante 43 anos se manteve ao serviço das
ligações entre o Continente e os arquipélagos dos Açores e Madeira, mandou instalar
iluminação elétrica a bordo. Assim, o paquete Funchal tornou-se o primeiro navio
português a instalar iluminação elétrica em todas as suas acomodações.36

35
Ibidem, p. 267.
36
Carlos Silveira, Navegação a Vapor entre o Continente e os Açores. Primeiros tempos, Horta,
Edição de Autor, 2014, p. 39.
16
Fig. 4 – Esquema simplificado do primeiro navio com sistema de iluminação Edison.
(Fonte: Optimization-based Control in Shipboard Electric Systems, Espen Skjong,)

Porém, apesar das vantagens da eletricidade a bordo, alguns anos depois ainda havia
sérias resistências à inovação que era trazida pela nova tecnologia da eletricidade, como
prova o artigo publicado nos Anais do Club Militar Naval, da autoria do 2º Tenente Pereira
da Silva, que haveria de ser Ministro da Marinha entre 1923 e 1926:

É frequente ouvir-se dizer a muitos dos nossos officiaes de marinha, que a


electricidade a bordo só é prática na illuminação e projectores e que deveria ser banida
d’outras aplicações, por não merecer confiança. É esta uma affirmação bastante erronea
e que só pode ser sustentada, por quem nunca lidou com apparelhos electricos.
[…]
Há pois toda a vantagem, debaixo do ponto de vista militar, no emprego da energia
eléctrica nas machinas auxiliares de bordo. Os electro-motores são hoje perfeitamente
praticos no emprego de cabrestantes, guinchos, bombas, monta-cargas, ventiladores, etc.
São muito mais simples que os motores de vapor e muito mais faceis de manejar.
Qualquer individuo trabalha com um motor electrico, o que não succede com um motor
de vapor.37

A eficiência dos motores elétricos e a sua simplicidade revelavam-se mais


interessantes quando eram empregues diretamente num equipamento ou como máquinas
auxiliares de bordo e, por isso, a instalação a bordo destes novos aparelhos generalizou-se
rapidamente e começou a substituir o uso dos equipamentos a vapor.38

37
Fernando Augusto Pereira da Silva, «A electricidade a bordo dos navios de guerra», Anais do Clube
Militar Naval, Tomo XXXII, Nº 8, agosto, 1902, p. 485.
38
Ibidem, p. 486.
17
Significa que a adoção da eletricidade para utilização a bordo dos navios da
Marinha Portuguesa foi um processo que exigiu crítica e reflexão, daí resultando que a sua
produção a bordo – geradores elétricos – e as suas diferentes aplicações – sistemas de
iluminação, telecomunicações, artilharia, sistemas de frio, ventilação, máquinas auxiliares
como guinchos e cabrestantes, entre outras utilizações – foi um processo que se verificou
gradualmente. Conhecidas as tradicionais dificuldades orçamentais que sempre afetam a
Marinha, sobretudo em épocas de renovação tecnológica, é natural pensar-se que a
introdução de eletricidade na Marinha Portuguesa também sofreu com as vicissitudes
orçamentais.

4. Os sistemas de iluminação a bordo

Na segunda metade do século XIX verificou-se uma enorme evolução tecnológica


no que respeita à conceção e arquitetura dos navios e às técnicas de construção naval, que
influenciaram os sistemas de propulsão mecânica e o armamento, mas a adoção da
eletricidade foi, porventura, a maior aquisição tecnológica da época da passagem para o
século XX.
O fim da propulsão à vela e o aparecimento da propulsão a vapor, bem como a
passagem da construção em madeira para a construção em o ferro e aço, como materiais a
utilizados na construção dos respetivos cascos, foram as alterações dominantes mais
referidas relativamente a este período.
Porém, para além desses aspetos, foi também importante a revolução técnica
associada à chegada da eletricidade ao mundo marítimo. A pioneira aplicação da
eletricidade a bordo dos navios foi a iluminação, que se tornou possível a partir de meados
do século XIX, quando se inventou um eficaz revestimento de borracha para os fios
condutores. Foi mais uma “invenção” lucrativa, só ao alcance de grandes empresas
capitalistas localizadas em dois ou três países mais ricos ou mais desenvolvidos
cientificamente.39

39
João Freire, Jornal da Marinha – Chefias, Mudanças, Permanências e Desempenhos nos Últimos
180 Anos, Lisboa, 2016, p. 130.
18
Porém, a eletricidade chegou bem mais tarde a bordo dos navios 40 enquanto a
iluminação por lanternas de azeite continuou a ser o sistema dominante e assim se manteve
por mais alguns anos.
O uso da eletricidade produzida a bordo por geradores pode considerar-se que passou
por duas fases.
Numa primeira fase que se pode situar até 1890, a eletricidade era aplicada para a
iluminação dos compartimentos, para as luzes de navegação e para os projetores destinados
à localização noturna de alvos ou perigos, militares ou marítimos.
Na segunda fase, mais tardia, os navios modernos começaram a dispor de motores
elétricos que podiam movimentar grandes cargas, como por exemplo os elevadores de
munições, a movimentação de bocas-de-fogo de maior calibre, os guinchos que permitiam
içar as âncoras, entre outras aplicações.
Esta realidade verificou-se na Marinha dos Estados Unidos, mas já antes se vinha
verificando nas marinhas inglesa, francesa e espanhola. No entanto, a adoção de motores
elétricos só muito vagarosamente foi penetrando na nossa Armada.41
Tomando como exemplo, a informação de que temos notícia que nos indica que a
primeira instalação de luz elétrica em navios de passageiros foi montada a bordo do SS
Columbia (1880-1907) e era composta por 120 lâmpadas incandescentes distribuídas em
vários circuitos. A alimentação era assegurada por quatro dínamos de 6 kW. Estes eram
movimentados por correia de transmissão ligada ao veio propulsor, que recebia energia da
máquina a vapor.42
Os diferentes circuitos elétricos eram protegidos por pequenos fios condutores
funcionando como fusíveis. Cada dínamo poderia produzir energia para 60 lâmpadas, cada
uma com potência nominal de 16 velas.43 O sistema de energia não incluía qualquer

40
Para que possamos obter a corrente elétrica, necessitamos de uma fonte geradora de energia elétrica,
gerador ou uma bateria, um recetor para utilizar a energia produzida, e condutores para realizarmos a ligação
desses elementos em um circuito fechado. Esse conjunto constitui um circuito elétrico.
41
João Freire, op. cit., p. 131.
42
Espen Skjong, The Marine Vessel’s Electrical Power System: From its Birth to Present Day, IEEE
Proceedings, 2015, p. 2.
43
Vela é a designação dada à força de luz brilhante gerada pelo filamento metálico ou de carvão da
lâmpada. Atualmente essa designação é mencionada em watts ou lumens.
19
fornecimento para equipamentos que não fossem de iluminação, sendo o ajuste de tensão
para o brilho das lâmpadas feito pelo pessoal de quarto à casa da máquina.44
Pouco depois do sucesso acontecido com a instalação elétrica a bordo do SS
Columbia, a firma Edison Company for Isolated Lighting instalou em 1883 um sistema
elétrico a bordo do USS Trenton.
A iluminação tornou-se um recurso padrão a bordo, tanto dos navios militares da US
Navy, quanto dos navios comerciais. Apesar da corrente contínua de baixa tensão de 110
Volts, desenvolvida por Edison, ter sido apenas destinada para lâmpadas incandescentes,
existiram inúmeras réplicas ou imitações, até porque passou a existir uma forte competição
comercial entre inventores e firmas concorrentes. Certo, é que este período é considerado
como a marca do nascimento da rede elétrica a bordo dos navios.45

5. As telecomunicações

No último decénio verificou-se um outro conjunto de inovações tecnológicas que


melhorou a capacidade de combate em esquadra, criando forças operacionais
verdadeiramente oceânicas.
Como marco dessa evolução, pode ser mencionada a introdução das transmissões de
telegrafia sem fios (TSF) nos navios, que permitiu expandir a capacidade de comunicação
para além da linha de visão direta, facultando ao comando do navio a capacidade de dar
ordens às unidades espalhadas e fora do seu contacto visual, o que reforçou a capacidade
de reconhecimento em tempo real para lá do horizonte geográfico e a possibilidade da
realização de manobras estratégicas fora das zonas litorais.
Esta conquista científica e tecnológica nasceu de uma sequência de inventos e de
experiências, realizadas sobretudo, pelo físico italiano Guglielmo Marconi.
Porém, os primeiros ensaios de telegrafia sem fios em Portugal realizaram-se, por
iniciativa do Exército, entre o forte da Raposeira, na Trafaria, e o Regimento de
Engenharia, no forte do Alto do Duque. Deste ensaio surgiu o equipamento que iria ser
testado em manobras navais a bordo do cruzador D. Carlos I.46

44
Ibidem, p. 2.
45
Ibidem, p. 3.
46
António José Telo, História da Marinha Portuguesa – Homens, Doutrinas e Organização, 1824-
1974, Lisboa, 1999, p. 247.
20
A Marinha Portuguesa conseguiu, uma vez mais com a sua iniciação nesta moderna
tecnologia, afirmar o seu pioneirismo com o uso da TSF, reforçando a imagem de uma
instituição precursora na implementação das mais modernas tecnologias,47 em linha com o
projeto modernizador do Fontismo.48
Como salientou o Professor António Telo, “foi o poder naval que facilitou a transição
da sociedade portuguesa para a tecnologia da idade industrial”.49
A Marinha adquiriu alguns equipamentos Ducretet para instrução e em 1905 criou o
Posto Radiotelegráfico, montado no Serviço e Escola Prática de Torpedos e Eletricidade
(SEPTE), em Vale de Zebro. Este equipamento, que era exclusivamente reservado para
instrução de radiotelegrafistas, manteve-se pouco tempo em uso, sendo rapidamente
substituído em 1909 pelos equipamentos Marconi de 1,5 Kw, adquiridos para serem
instalados a bordo dos cruzadores e em terra.50
Ainda em 1909, na sequência do contrato de aquisição de equipamentos
radiotelegráficos Marconi (ver anexo I), deu-se a criação na Marinha da especialidade de
Radiotelegrafistas. Esta nova classe, oriunda da Classe dos Timoneiros-Sinaleiros, foi
pioneira nas Comunicações, tendo sido iniciada a respetiva formação em 1910 no SEPTE,
mas esse quadro de Radiotelegrafistas só foi concretizado em 1915.51
Curiosamente, foi este Posto Radiotelegráfico de Vale de Zebro que assegurou as
primeiras ligações radiotelegráficas com o cruzador S. Gabriel em 1909, durante a sua
viagem de circum-navegação.
Também na antiga Escola Naval, então localizada no edifício do Arsenal de Marinha,
em Lisboa, este equipamento Marconi foi montado e utilizado. Este recente posto, que
ocupava o canto Sudoeste da Casa da Balança, “foi o primeiro Posto Radiotelegráfico que
fez serviço em Portugal e o berço da atual rede radiotelegráfica da Armada”52, sendo

47
António Rebelo Duarte, «Da introdução da TSF às modernas TCI’s. 100anos que honram a
Marinha.», Revista da Armada, nº 441, 2010, p. 10.
48
Designação dada ao período de crescimento que evitou que Portugal se atrasasse ainda mais
relativamente a outros países europeus, após as guerras liberais. Foi criado um conjunto de medidas por
Fontes Pereira de Melo para melhorar os transportes e comunicações, tendo em vista desenvolver a
agricultura, o comércio e a indústria.
49
António José Telo, op. cit., p. XV.
50
José Moura da Fonseca, As Comunicações Navais e a TSF na Armada, Lisboa, 1988, pp. 153-161.
51
Ibidem, p. 279.
52
Ibidem, p. 157.
21
idêntico aos que foram montados nos cruzadores e no Posto Radiotelegráfico de Vale de
Zebro.

Fig. 5 – Posto radiotelegráfico de Vale de Zebro


(Fonte: Museu de Marinha)

Todavia, o dia 16 de fevereiro de 1910 representou um marco no esforço da Marinha,


não tanto pela instalação da primeira estação radiotelegráfica fixa no país mas, acima de
tudo, pelo que significou de envolvimento no processo de modernização tecnológica no
sector das comunicações, nomeadamente ao nível do serviço público móvel marítimo e da
salvaguarda da vida humana no mar, com o apoio aos navios, nacionais e estrangeiros, ao
largo da costa portuguesa ou em águas mais distantes do porto de Lisboa, mas também,
alguns anos mais tarde, no Ultramar.
Neste contexto, o posto radiotelegráfico, equipado pela Marconi, tornou-se na
primeira estação radiotelegráfica que existiu em Portugal continental e foi o embrião da
rede radiotelegráfica do Ministério da Marinha. Esta competência técnica ficou a dever-se,

22
em boa medida, à inovadora criação, em 1902, do Serviço e Escola Prática de Torpedos e
Eletricidade, em Vale de Zebro.
A estação referida tomou a designação de Posto Radiotelegráfico do Arsenal da
Marinha, com o indicativo de chamada ALFA MIKE, tendo como seu primeiro diretor o
1º Tenente Ladislau Parreira, um oficial que no dia 5 de Outubro de 1910 muito se
distinguiu ao assumir o comando do Corpo de Marinheiros em Alcântara e ao apoiar o seu
camarada Machado dos Santos, que comandou das operações militares que se
desenvolveram na Rotunda, através de comunicações navais dirigidas de bordo do cruzador
S. Rafael.
Este posto, precursor da extraordinária expansão das comunicações navais na
Marinha, em 1974 atingiram o auge em termos de infraestruturas e de dispersão geográfica.
Relativamente à aquisição de equipamentos TSF de 1,5 KW à Marconi, a Marinha
constituiu uma comissão, no dia 5 de fevereiro de 1909, com a missão de proceder à sua
instalação em terra e nos cruzadores S. Gabriel, D. Carlos I, S. Rafael, Adamastor e Vasco
da Gama, garantindo assim o seu pioneirismo nas comunicações TSF.
Assim, após a instalação a bordo dos aparelhos adquiridos à Marconi, o dia 11 de
dezembro de 1909 foi assinalado na história portuguesa como a data do início das
comunicações radionavais portuguesas a bordo, mais concretamente, com a partida do
cruzador S. Gabriel para a primeira viagem de circum-navegação portuguesa.

Antes de partir para uma viagem de circum-navegação do globo foi-lhe montado


um posto de telegrafia sem fios, para o que foi necessário retirar o mastro da mezena e
deslocar o grande. O alcance garantido era c.de 400 km com uma antena de 30 metros.
No entanto, veio a transmitir a 1300 km. No dia 30 de Novembro de 1909, foram para
bordo 9 volumes com o material para o posto de T.S.F. No dia 1 de Dezembro começou
a montagem por dois ingleses. Em 8 de Dezembro, os ingleses fizeram experiências com
um navio a cerca de 130 milhas, com bom resultado. Em 9 deram as experiências por
findas.53

Foi assim que no dia 11 de dezembro de 1909, pelas 15 horas e 30 minutos, o


cruzador S. Gabriel largou de Lisboa para uma viagem de circum-navegação e poucas

53
António Marques Esparteiro, Três Séculos no Mar (1640-1910), Nº 29, Lisboa, 1986, pp. 22-23.
23
horas depois, quando já navegava longe da costa, estabeleceu comunicações por telegrafia
sem fios com o posto radiotelegráfico de Vale de Zebro.54
Em termos operacionais e de serviço, as mensagens navais trocadas naquele dia,
foram as primeiras que na Armada e, talvez em Portugal, utilizaram a via radiotelegráfica.
Anteriormente, no dia 25 de maio de 1902, a Marinha já havia realizado algumas
experiências neste tipo de comunicações entre o cruzador D. Carlos I e um equipamento
instalado em Cascais. Apesar destes ensaios, considera-se que a atividade desenvolvida em
11 de dezembro de 1909 foi operacionalmente a experiência pioneira.
A edição do jornal O Século do dia 15 de dezembro dava notícia do acontecimento:

O posto de telegrafia sem fios montado a bordo do cruzador “S. Gabriel” esteve
em comunicação, durante as primeiras horas da viagem do cruzador, com o posto, em
Vale de Zebro.

Foram, pois, essas as primeiras notícias da longa viagem que o cruzador iniciou,
informando que no mar havia muito balanço, mas que o navio seguia “sem novidade”. Os
resultados obtidos podem considerar-se muito lisonjeiros porque não houvera tempo para
efetuar a sintonização entre os dois postos, uma vez que o posto do cruzador tinha sido
montado nos últimos dias da estada do navio em Lisboa.
Com o afastamento do S. Gabriel dos alcances radiotelegráficos do posto de Vale de
Zebro, o qual havia sido instalado apenas para fins de instrução, e dado que não existiam
ao tempo outros navios portugueses equipados de TSF ou outros postos radiotelegráficos
abertos ao serviço, as radiocomunicações navais iniciadas no dia 11 de dezembro, só
prosseguiram e se concretizaram em moldes definitivos e regulares, a partir do dia 16 de
fevereiro de 1910. Esta data ficou associada às Comunicações Navais por ter sido neste dia
que se inaugurou o Posto Radiotelegráfico do Arsenal da Marinha.
Seriam então 14 horas e 40 minutos quando o Marinheiro Timoneiro-Sinaleiro nº
1763 Manuel Fernandes Correia recebeu e registou no respetivo livro a primeira
transmissão oficial, originada no Posto Radiotelegráfico de Vale de Zebro, que dizia:
“Queira fazer o obséquio de me mandar dizer se ahi em Lisboa está a chover”.

54
Maria Fernanda Rollo e Maria Inês Queiroz, «A tripla rede Marconi. Cronologia», Lisboa, 2007, p.
125.
24
Embora não se possa garantir que o teor da mensagem seja de carácter operacional,
ela é relevante por constituir o arranque oficial do Posto Radiotelegráfico do Arsenal da
Marinha.
Voltando aos postos em terra, em 1916 entrou em funcionamento a Central
Transmissora de Monsanto, substituindo o Posto Radiotelegráfico do Arsenal da Marinha:

[…] por este não ter capacidade radiotelegráfica suficiente para corresponder às
solicitações do serviço oficial e do serviço móvel marítimo e a sua localização não
permitir os melhoramentos indispensáveis.55

A opção de Monsanto correspondeu a uma escolha muito feliz, pois, como refere o
Almirante Moura da Fonseca, “dentro da área de Lisboa, não existe outro local que se lhe
assemelhe em desafogo e condições de irradiação”.

Os equipamentos necessários, que haviam sido encomendados à Marconi, foram


recebidos nos primeiros meses de 1915 - um transmissor de faísca Marconi tipo Battleship
de 5 Kw e um receptor de tipo magnético de cordão rotativo - e a sua instalação teve
início em Novembro desse mesmo ano.56

Fig. 6 – Posto radiotelegráfico de Monsanto


(Fonte: As Comunicações Navais e a TSF na Armada)

55
José Moura da Fonseca, op. cit., p. 161.
56
Ibidem, p. 161.
25
As edificações começaram a ser construídas logo que foram rececionados os
equipamentos, mas só em abril de 1916 é que finalizaram os trabalhos da sua instalação -
receção e transmissão.

Monsanto iniciou o serviço oficialmente no dia 12 de julho de 1916, depois dos


resultados satisfatórios obtidos nos testes oficiais. Fica o registo dos dois mastros do
parque inicial de antenas que foram montados em apenas 15 dias e as honrosas tradições
no historial das radiocomunicações em Portugal. A actividade de apoio às forças aliadas
durante a Guerra Mundial de 1914-1918 foi realçada pelos “inestimáveis serviços à causa
aliada durante a Primeira Guerra Mundial, entre os quais, a emissão periódica, em francês,
de avisos de guerra à navegação e a ligação entre a esquadra inglesa a Oeste de Lisboa
(Finisterra) e Gibraltar”.57

Como nota histórica interessante, refere-se que o posto de Monsanto recebeu em


primeira mão, a notícia da assinatura do Armistício da Grande Guerra, às 7 horas da manhã
do dia 11 de novembro de 1918.

De CTV para Chefemar, legações e Consulados – Recebeu-se o seguinte expedido


às 07.00 horas. «Armistice à été signé à cinq heure en viguer à onze heure du matin heure
francaise»58

Também é de evidenciar o primeiro amplificador de válvulas que houve em


Monsanto e que foi utilizado, oferta do Adido Naval Francês, Tenente-Coronel Bernard,
presente num relatório enviado ao seu Governo acerca da radiotelegrafia na Península.59

Nos finais de 1918 os sistemas de TSF, de telegrafia e de fonia estavam


generalizados, sendo Monsanto o local onde o pessoal da TSF recebia instrução sobre os
novos transmissores e recetores a válvulas.60

6. Aplicações na artilharia

No final do século XIX, o Almirante Alfred Mahan61 defendia que a segurança de


um Estado se conseguia pela obtenção do domínio do mar através duma batalha

57
Ibidem, p. 163.
58
José Moura da Fonseca, A TSF na Armada, Lisboa, 1985, p. 15.
59
José Moura da Fonseca, As Comunicações Navais e a TSF na Armada, Lisboa, 1988, p. 163.
60
Ibidem, p. 164.
61
Alfred Thayer Mahan (1840‑1912), Almirante e historiador norte americano, cuja principal obra
sobre história e estratégia naval foi The Influence of Seapower on History,1660‑1783.
26
determinante e de uma estratégia ofensiva de aniquilação do adversário, onde uma marinha
de guerra poderosa e oceânica seria o instrumento de concretização final.62 Foi com
esta doutrina que aquele estratega americano influenciou as marinhas mais evoluídas numa
corrida internacional ao armamento para a obtenção de supremacias navais. Essa corrida
passou pela intensa utilização da eletricidade no desenvolvimento das novas tecnologias
aplicadas à Artilharia e que, ao serem introduzidas em navios de guerra, possibilitassem o
aumento da capacidade de fogo e as respetivas alterações nas táticas navais.
Houve uma evolução tecnológica ligada ao desenvolvimento metalúrgico, o que veio
a capacitar os navios de modernas peças de artilharia naval. Esta nova tecnologia trouxe
maior alcance, maior precisão e uma maior penetração em relação à artilharia naval
existente, tornando as unidades navais modernas umas verdadeiras plataformas de tiro.
A partir de 1895 e até 1900 houve um outro conjunto de inovações tecnológicas que
melhorou a capacidade de combate em esquadra, dando origem às forças com capacidade
oceânica. É claro que este feito inovador só foi conseguido devido à utilização da
eletricidade.
Foi com a introdução das comunicações sem fios nos navios que se expandiu a
capacidade de comunicar para além da linha do horizonte ou da linha de visão direta. Esta
capacidade facultou ao comandante de uma esquadra dar ordens a unidades navais
dispersas e fora do seu contacto visual. Assim, era possível fazer um reconhecimento da
situação em tempo real, para além da linha do horizonte geográfico e a partir das
informações recebidas conduzir o combate e aprovar manobras estratégicas.

O controlo telemétrico de tiro foi outra evolução técnica que transformou a


capacidade de tiro dos couraçados, ao ultrapassar a limitação da capacidade do olho
humano para apontar uma arma a mais de 2.000 metros, limitação que não se verificava
enquanto o alcance efectivo da artilharia rondava os 1.500 metros, mas que com as peças
de alma estriada e a nova pólvora química se revelava uma verdadeira limitação. Assim
após a introdução da telemetria, em 1880, na Royal Navy conseguiu um alcance útil de
tiro58 de 3.000 metros, sendo que em 1904 já tinha evoluído para uma capacidade de
apontar com eficácia sobre alvos a uma distância entre os 6.000m e 7.000m. A evolução
dos telémetros permitiu alcançar condições de tiro eficaz entre 10.000m e 14.000m
durante a Grande Guerra, mas em consequência desse enorme alcance de tiro surgiram

62
João Pires Neves, Poder Naval e o Papel das Marinhas no século XXI, Lisboa, 2019, p. 20.
27
novos problemas de eficiência que levaram à necessidade do estudo de métodos de
aquisição de alvos e de controlo de tiro.63

Porém, só com a chegada da era da eletrónica, algumas décadas depois, é que se


alterou definitivamente o conceito tático das operações navais, se abriu caminho à
automação e se vulgarizaram os circuitos de comunicação, comando e controlo que
actualmente equipam os navios.
Neste propósito, foi publicado em 1970 nos Anais do CMN, um artigo da autoria do
Comandante J. Rasquilho Raposo, relativamente aos cem anos da Artilharia Naval, em que
mostra que a evolução técnica tinha sido enorme, passando dos sistemas hidráulicos e
elétricos do início do século XX que movimentavam as peças de artilharia de grande
calibre, , para as torres de artilharia telecomandadas a partir de um calculador de tiro
computorizado, substituindo totalmente os apontadores das peças.64

Há cem anos, o problema da pontaria resumia-se à resolução de um problema


extraordinariamente simples, uma vez que os alvos a bater, assim como os navios
atiradores dispunham de muito baixas velocidades e as próprias peças tinham alcances
muito pequenos.
[…]
Pretendendo inicialmente resolver unicamente o problema do tiro direto, passa
posteriormente à fase de alça calculadora, que não representa senão os primórdios das
Direções de tiro. É desse modo que se passa pelas alças telescópicas, cada vez mais
perfeitas, dada a necessidade de observação a longa distância, pelas alças de anel e pelas
alças giroscópicas. 65

A Marinha Portuguesa ao longo das primeiras duas décadas do século XX foi


acompanhando as novidades tecnológicas mundiais, tendo realizado um esforço enorme
para adquirir meios e para se manter a par desse conhecimento científico.

7. A produção de frio

A história das navegações está cheia de referências às dificuldades alimentares das


tripulações, à falta de alimentos frescos, ao transporte de animais vivos para serem abatidos

63
Ibidem, p.34.
64
J. Rasquilho Raposo, “Cem anos da artilharia naval”, Anais do Clube Militar Naval, Número
Especial Comemorativo do Primeiro Centenário dos Anais do CMN, Lisboa, 1970, p. 195.
65
Ibidem, p. 195.
28
durantes as viagens e às doenças, designadamente o escorbuto, que dizimavam os
tripulantes.
A partir de meados do século XIX, o desenvolvimento das tecnologias navais fez
aumentar o desenvolvimento de máquinas que vieram a permitir que os alimentos fossem
armazenados por longos períodos de tempo, através da sua conservação em frio.
Passava-se assim de um sistema baseado nos chamados “alimentos secos”,
designadamente o biscoito, a carne salgada, o peixe seco. A conservação também deveria
ser vista como uma forma de armazenar o excesso de alimentos disponíveis e em tempos
de escassez.
Esta ideia revolucionária iria permitir aos navios e às respetivas armadas, não só
ganhar maior autonomia no mar, mas também uma melhoria substancial nas condições de
higiene sanitária de bordo.
Os alimentos a bordo das viagens das naus e caravelas, após um certo tempo
deterioraram-se, causando muitas doenças. Apesar dos alimentos carregados para bordo
passarem por várias técnicas de conservação anteriormente utilizadas, como a salga, a
secagem, a fumagem, a fermentação do peixe e, mais tarde, os enlatados, foi o gelo que
veio garantir a melhor conservação dos alimentos. Porém, nas armadas portuguesas, foi o
bacalhau que, como era seco e salgado, ocupava e continua a ocupar um lugar de eleição à
mesa dos marinheiros e que, ainda hoje, faz parte da tradição da dieta naval.
Foi em França que a mudança para o sistema termoelétrico se iniciou através de uma
série de experiências científicas realizadas em 1834 por Jean Charles Peltier66 que
descobriu que à passagem de corrente contínua numa junção de duas placas de metais
diferentes, dependendo da direção da corrente, se dá a libertação ou absorção de calor na
junção delas.67
Entre 1842 e 1887 o comércio marítimo de carga geral acentuou-se devido à
introdução do vapor nos navios de longo curso, com motores mais potentes e rápidos. É
precisamente durante esta fase, que surgem enormes pressões para a construção e
modernização dos navios de grande calado. A necessidade de conservar alimentos fez com

66
Jean Charles Peltier (1785-1845), foi um físico francês que descobriu como a corrente elétrica pode
produzir frio ou calor.
67
Etienne Delaire. Le froid dans la conservation des produits de la mer, p. 14. https://hal.archives-
ouvertes.fr, (Acedido em março de 2021).
29
que surgisse a primeira máquina inventada em Grenelle pelo francês Paul Giffard68 numa
fábrica onde ele próprio investigou a preservação de carne pelo sistema de refrigeração,
que era obtida pela expansão do ar comprimido até obter um resfriamento muito abaixo de
0ºC.
Esta novidade atravessou fronteiras e foi imediatamente introduzida na indústria
naval inglesa. A Inglaterra que já era a primeira marinha mundial adotou imediatamente os
resultados obtidos por Paul Giffard, em particular na adaptação deste processo aos navios
que realizavam o transporte de carne ovina da Austrália para a Inglaterra, fazendo escala
na Nova Zelândia.69
De salientar que este desenvolvimento foi a pedra angular de um sistema que iria
permitir aos navios uma autonomia que só foi concretizado depois de muita luta pela
hegemonia das principais potências construtoras. Porém, a grande decisão só se deu no
começo do século e mais concretamente a partir de 1918, quando se deu o aparecimento
do primeiro frigorífico a eletricidade com um pequeno motor, fabricado nos Estados
Unidos pela firma Kelvinator Company. A partir de 1920, a evolução foi tremenda, com
uma produção sempre a crescer.
Em Portugal o aparecimento dos navios com refrigeração por eletricidade
acompanhou a evolução mundial, à medida que iam sendo colocados em prática novos
programas de construção naval.
O problema da refrigeração a bordo também despertou interesse em Portugal,
sobretudo em relação à sua adoção pelos cruzadores que então integravam o efetivo dos
navios da Armada. Os Anais do CMN testemunharam esse interesse ao publicar um artigo
em 1909, intitulado “Máquinas frigorificas de ar”, da autoria do maquinista naval Alfredo
de Oliveira Dores, em que é feito um estudo da máquina frigorífica a ser aplicada no
cruzador S. Rafael. O estudo, para além de se debruçar sobre aspetos técnicos relativos à
manutenção do equipamento, ensina também como calcular a potência frigorifica para a
produção exata de gelo de uma determinada câmara de frio.70

68
Paul Giffard (1837-1897), foi um inventor francês que se destacou nos campos da termodinâmica,
do gás e da compressão.
69
Etienne Delaire, op. cit., pp. 18-19.
70
Alfredo de Oliveira Dores, “Máquinas frigorificas de ar”, Anais do Clube Militar Naval, Vol.40,
Lisboa, 1909, pp. 385-405.
30
Fig. 7 – Máquina frigorífica do cruzador S. Rafael.
(Fonte: Anais do Clube Militar Naval)

A machina frigorifica do cruzador S. Rafael é do typo Thirion, vertical, para uma


producção de 5oo frigorias71.
Estava primitivamente installada na casa das machinas auxiliares de ré, sendo
depois montada no pavimento da coberta de ré, devido ao seu anterior mau
funcionamento. Evitaram-se assim algumas curvas e a extensão do conductor foi bastante
diminuída. Modificou-se também a tubuladura de sahida do ar expandido junto á machina
e a de entrada na camara frigorifica, que então eram cónicas e, portanto, teoricamente
susceptiveis de grande debito, mas que não tendo disposição para a limpeza da neve que
ahi se depositava traziam consigo o mau funccionamento da machina.72

71
Unidade térmica empregada nas indústrias frigorificas, e que corresponde ao milionésimo da termia.
É uma caloria negativa.
72
Ibidem, pp. 385-389.
31
Mais tarde, em 1917, outro artigo publicado nos Anais do CMN faz referência ao
cálculo de uma instalação para refrigeração nos paióis nos navios de guerra, em particular
no cruzador Almirante Reis. Esse artigo é assinado pelo 2º tenente Raúl César Ferreira, que
pertencia à guarnição desse navio, e nele é calculada uma instalação para refrigeração nos
paióis de munições, de forma a baixar e manter a uma determinada temperatura 73. É
também calculado um frigorífico para viveres, em que já é tido em conta:

1º o consumo horário de frigorias pela transmissão do calor, durante as 24 horas,


através das paredes do paiol, o qual se pode supor de 0.7 a 0.8 de caloria por m² e por
hora, para um grau de diferença de temperatura, se se trata de paredes bem isoladas;
2.° As frigorias perdidas por aberturas de portas, entradas de pessoas, luzes, etc.74

No entanto, até ao início da Grande Guerra, a Armada não considerou ser importante
a instalação a bordo de sistemas de refrigeração, continuando a ser carregados animais
vivos nos nossos navios para serem consumidos a bordo. Na prática, em Portugal a
utilização das frigoríficas a bordo só ficou generalizado mais tarde, a partir dos anos 1920.

8. A propulsão dos submarinos

Um submarino é um navio com capacidade para operar em imersão e, embora de


forma não exclusiva, é utilizado sobretudo para fins militares. A sua invenção aconteceu
nos Estados Unidos em finais do século XVIII e o crédito desse invento tem sido atribuído
a diferentes inventores, como David Bushnell, John Holland e Robert Fulton, entre
outros.75
Na realidade, Bushnell é americano e fez um submarino nos Estados Unidos na altura
da guerra da independência. O seu propósito era atacar um navio inglês e foi utilizado, mas
o ataque não teve sucesso. Fulton era também americano, mas fez um submarino para os
franceses de Napoleão Bonaparte, o qual não teve qualquer uso. Mais tarde, na guerra civil
americana apareceu mais um submarino, o Hunley, que foi usado com sucesso num ataque,
mas o submarino também se perdeu, na mesma explosão.

73
Raúl César Ferreira, “Refrigeração dos paiois nos navios de guerra”, Anais do Clube Militar Naval,
Vol.48, Lisboa, 1917, pp. 123-127.
74
Ibidem, p. 127.
75
A Marinha de Guerra Portuguesa foi uma das primeiras do mundo a dispor de submarinos, tendo
recebido em 1913 o NRP Espadarte, que fora encomendado ainda no tempo da Monarquia e que foi
construído nos estaleiros italianos de Livorno e La Spezia.
32
Estes submarinos não teriam grande valor militar, pois eram todos de propulsão
humana e o Nautilus de Fulton, até tinha uma vela ao navegar à superfície. No entanto, o
interesse pelos submarinos também deu origem a projetos alemães, russos e de outros
países.
No final do século XIX é que começaram a aparecer submarinos com impacto
significativo na arte da guerra, sobretudo depois de adotarem sistemas de propulsão,
primeiro a ar comprimido e, depois, a eletricidade com um sistema diesel-elétrico destinado
ao carregamento das baterias principais. Foram os franceses que estiveram totalmente na
vanguarda da inovação desta época.

Fig. 8 – Esquema simplificado do sistema de propulsão diesel-bateria dos primeiros submarinos


(Fonte: Optimization-based Control in Shipboard Electric Systems, Espen Skjong)

A figura 8 simplifica como funcionava o sistema de propulsão diesel-elétrico ou de


bateria dos primeiros submarinos, em que as baterias principais (baterias de chumbo) eram
carregadas quando o submarino se encontrava à superfície, usando para isso a propulsão

33
com geradores a diesel. As baterias deveriam ser apenas utilizadas durante a imersão como
forma de aumentar a autonomia do submarino.76
Embora tenha sido feito um grande esforço no desenvolvimento evolutivo dos
motores e dos sistemas de propulsão, o problema da falta de oxigénio durante as operações
de imersão não se conseguia resolver de forma satisfatória, porque a guarnição do
submarino precisava do ar renovado para respirar.77
Apesar disso, com a introdução da bateria como fonte de energia para a sua
propulsão, o submarino tornou-se uma arma de grande sucesso. Para além dos motores
elétricos da propulsão, a bateria alimentava os sistemas de iluminação e instrumentos de
apoio à navegação.
A duração máxima das operações de imersão estava muito dependente da aceleração
do submarino, verificando-se que a uma velocidade de cerca de 2 nós, poderia permanecer
imerso cerca de 48 horas, enquanto se a sua rotação subisse, para cerca de 8 nós, só poderia
ficar imerso uma hora.78
Assim, podemos definir a bateria elétrica como a fonte de energia dos motores
elétricos de propulsão do submarino debaixo da água. Relativamente à sua capacidade, as
baterias dependem da variação das intensidades da descarga, que por sua vez são
determinadas pelas velocidades máxima e económica em imersão.
Em Portugal foi o 1º Tenente Joaquim de Almeida Henriques, o primeiro comandante
do submersível Espadarte, que descreveu o funcionamento da bateria elétrica do
submarino.

a energia elétrica da bateria representa o combustível dos motores electricos do


submarino, combustivel que pode ser admitido nos motores em maior ou menor
quantidade, dando ao navio maior ou menor velocidade, e que se considera exgotado a
certa altura da descida da voltagem em cada elemento, como um tanque de nafta ou um
paiol de carvão, necessitando desde logo ser novamente atestada a bateria, com novo
combustivel, ou seja, com nova carga, e este numero de cargas e descargas, que os

76
Espen Skjong, The Marine Vessel’s Electrical Power System: Past, Present and Future Challenges.
Optimization-based Control, 2017, pp.33-34.
77
Ibidem, pp. 28-34.
78
Ibidem, p. 34.
34
acumuladores de chumbo podem suportar, que reduz a sua vida a cêrca de 4 anos para as
chapas positivas, e a cerca de 8 anos para as chapas negativas.79

Fig. 9 – Distribuição ao longo do navio da bateria do Submersível Espadarte


(Fonte: BCM-AH – Plano 19/130 – Álbum 2, Desenho 24)

79
Joaquim de Almeida Henriques, Navegação Submarina “O Espadarte” Os primeiros e os últimos
anos de vida de um submarino, Lisboa, 1928, p. 124.
35
Foi com base nos textos do primeiro comandante do Espadarte, que ficámos a saber
como se podia garantir uma regeneração da bateria elétrica. A operação consiste na
substituição das chapas em toda a bateria, uma operação que tem que ser realizada nas
oficinas em terra, o que obriga ao desembarque completo de todos os seus elementos e a
uma nova montagem que é designada como a regeneração da bateria.80
Porém, tal como todos os submarinos, o Espadarte precisava de uma Estação em
terra que lhe carregasse a bateria elétrica principal. Só assim evitava cansar os motores e
os dínamos de bordo durante os períodos em que não se realizavam viagens.81

9. A influência da eletricidade sobre a agulha magnética

O nosso planeta comporta-se como um enorme campo magnético e a agulha


magnética, que antigamente era conhecida como agulha de marear, deverá apontar para o
norte magnético. Uma agulha magnética é, portanto, um equipamento que serve para
indicar a direção no mar, sendo constituído por uma rosa-dos-ventos graduada dos 000º aos
360º, que está fixa ao navio e tem um ponteiro associado, que se movimenta e aponta para
o norte magnético.
Porém, porque o campo magnético terrestre não é uniforme, o norte magnético não
coincide com o norte geográfico e ao ângulo formado por essas duas direções chama-se
declinação magnética.
Com o aparecimento da construção naval em ferro e aço, cada navio também passou
a magnetizar-se e a comportar-se como um campo magnético, pelo que a agulha magnética
passou a sofrer a influência não só do campo magnético terrestre, mas de praticamente
todos os objetos metálicos existentes a bordo.
Assim, a agulha magnética não aponta para o norte geográfico, nem para o norte
magnético, mas para outra direção que é o norte da agulha. O desvio entre o norte
magnético e o norte da agulha, designa-se por desvio da agulha. O aparecimento da
eletricidade a bordo gerou várias influências magnéticas que nem sempre é possível anular
ou minimizar.

80
Ibidem, p. 124.
81
Ibidem, p. 74.
36
Antes do emprego da eletricidade a bordo, a instalação e funcionamento da agulha
magnética eram considerados, exclusivamente, dependência da polaridade adquirida pela
orientação do navio no estaleiro e do ferro existente a bordo82.

O desvio da agulha depende da estrutura de ferro existente a bordo, mas também é


resultado da produção de energia elétrica a bordo, pelos seus grupos de geradores, cujo
princípio de funcionamento é eletromagnético. Este efeito é praticamente desprezível na
maior parte dos navios, pois a influência depende da intensidade dos campos
eletromagnéticos e da distância entre os locais onde se encontram os geradores e a posição
das agulhas magnéticas. Na generalidade dos navios essa distância é suficientemente
grande para esses efeitos serem praticamente nulos. Só nos submarinos é que os campos
são bastante intensos, devido à distância das agulhas aos motores elétricos ser reduzida.
O físico dinamarquês Hans Christian Ørsted83 demonstrou em 1820 a existência
dessa interação da eletricidade com a agulha magnética, a partir de uma simples experiência:

Enquanto se preparava para realizar um experimento durante uma palestra na


Universidade de Copenhague, ele descobriu que a agulha magnetizada de uma bússola
era desviada sempre que a corrente elétrica através de uma pilha voltaica (uma forma
inicial da bateria) era iniciada ou parada. Esta ocorrência surpreendente foi uma evidência
sólida de que eletricidade e magnetismo são fenómenos relacionados.84
Colocando-se o fio condutor paralelo à agulha magnética, esta girava em sentidos
opostos, conforme o fio estivesse acima ou abaixo da bússola. O sentido da rotação
também se invertia quando o sentido da corrente elétrica era alterado.
Os diagramas mostram variações da experiência, em que o fio era colocado acima
ou abaixo da bússola, paralelo à agulha ou oblíquo, com a corrente em um sentido ou em
outro. As setas representam a agulha (a linha tracejada indica a posição da agulha
magnética quando o fio está sendo percorrido pela corrente elétrica).85

Em termos práticos, se colocarmos uma agulha magnética próximo de um fio


condutor de eletricidade, este ao ser percorrido pela corrente elétrica e aproximado de uma
agulha magnética cria um desvio fazendo com que haja uma deflexão. Em termos práticos,

82
Augusto Ramos da Costa, “Influência da electricidade sobre a agulha magnética”, Anais do Clube
Militar Naval, Tomo XXVII, Nº 11, Lisboa, Clube Militar Naval, novembro, 1897, p. 987.
83
Hans Christian Ørsted (1777-1851) foi um físico e químico dinamarquês que descobriu que as
correntes elétricas podem criar campos magnéticos.
84
Hans Christian Ørsted - MagLab - nationalmaglab.org. (Acedido em dezembro de 2020).
85
Hans Christian Ørsted, «Experiências sobre o Efeito do Conflito Elétrico sobre a Agulha
Magnética», Cadernos de História e Filosofía da Ciëncia, l0, 1986, pp. 116- 117.

37
quer isto dizer que a passagem de corrente elétrica origina um campo magnético. A este
fenómeno dá-se a designação de eletromagnetismo, que é o conjunto dos fenómenos que
resultam da interação dos campos elétricos e magnéticos.
Para explicar esta relação, o cientista inglês Michael Faraday utilizou em 1831 um
núcleo de ferro e duas bobines para mostrar que a variação do fluxo magnético também
gerava corrente elétrica. A partir dessa experiência, Faraday concluiu que essa corrente
elétrica surgia se houvesse variação do campo magnético, ou seja, aparecia ou desaparecia
quando essa bobina era ligada ou desligada. Essa descoberta ficou conhecida como indução
magnética ou Lei de Faraday.

Fig. 10 – Experiências sobre o Efeito do conflito Elétrico sobre a Agulha Magnética


(Fonte: Cadernos de História e Filosofía da Ciëncia - Hans Christian Ørsted,)

Porém, era ainda necessário determinar o sentido desta corrente. Foi um cientista
estónio chamado Heinrich Lenz (1804-1865) que em 1834, quando investigava a indução
magnética, descobriu o verdadeiro sentido da corrente e essa descoberta ficou conhecida
como Lei de Lenz.

38
Esta descrição mostra bem o importante papel desempenhado por Faraday e Lenz
sobre o papel que a eletricidade desempenha sobre o magnetismo da agulha, sendo um
contributo significativo para o entendimento da indução eletromagnética.
Ramos da Costa, num artigo “Influencia da eletricidade sobre a agulha magnética”,
publicado nos Anais do Club Militar Naval, salienta que o ensino científico, mas prático,
da eletricidade se impõe, de uma forma perentória, “a todos aqueles que desejarem adquirir
maior conhecimento sobre a agulha magnética, instrumento de navegação, cuja
indispensabilidade a bordo é manifesta”.86
Contudo, é importante destacar a influência elétrica sobre a agulha nos submarinos.
Tomando por base as provas de mar do Espadarte, realizadas em 1913 ainda em La Spezia,
foram efetuadas navegações em imersão em vários quadrantes, utilizando a intensidade
máxima de descarga da bateria sobre os motores elétricos. Esta prova tinha como finalidade
calcular o desvio da agulha e assim proceder-se à sua compensação.87
Assim, nestas condições, com os motores elétricos a consumir a máxima amperagem
vinda da bateria, a alteração mais significativa da agulha, mostrada pela curva de desvio,
foi de 3 graus ao rumo de 50º a NW e de 2 graus nos rumos E e de 45º a SE.88
Com base nesta prova, mais uma vez se conclui que o campo magnético gerado à
passagem de corrente elétrica, faz defletir a agulha magnética, criando um desvio. Em
termos práticos o fluxo magnético induzido na agulha, pela rotação dos motores elétricos,
pode colocar em causa, se não for considerado, o rumo e a segurança da navegação.
Porém, algumas dezenas de anos depois surgiu a girobússola ou bússola giroscópica
e, ainda mais tarde, apareceu o GPS – Global Positioning System ou Sistema de
Posicionamento Global. A apreciação dessas novas descobertas sai fora do âmbito deste
trabalho, mas foram elas que levaram a agulha magnética e os problemas da magnetização
dos navios para um patamar de menor importância para a navegação e para a segurança
dos navios.

86
Augusto Ramos da Costa, “Influência da electricidade sobre a agulha magnética”, Annaes do Clube
Militar Naval, Tomo XXVII, Nº 11, Lisboa, Clube Militar Naval, novembro, 1897, p. 988.
87
Joaquim de Almeida Henriques, Navegação Submarina “O Espadarte” Os primeiros e os últimos
anos de vida de um submarino, Lisboa, Imprensa da Armada, 1928, p. 46.
88
Ibidem, p. 46.
39
Conclusão

A investigação realizada atingiu o objetivo de estudar a introdução de eletricidade na


Marinha Portuguesa e o seu desenvolvimento até à chegada do primeiro submarino em
1913. Porém, o estudo permitiu que fossem retiradas as seguintes conclusões:
O reconhecimento da importância da eletricidade na Marinha Portuguesa não foi
imediato, apesar das suas vantagens a bordo. Alguns anos depois ainda havia sérias
resistências à inovação que era trazida pela nova tecnologia;
A primeira aplicação prática da eletricidade a bordo dos navios da Marinha
Portuguesa foi a iluminação para compartimentos, para as luzes de navegação e para os
projetores destinados à localização noturna de alvos ou perigos, militares ou marítimos. A
corveta Mindelo (1880) e a corveta Afonso de Albuquerque (1884) estão associadas a esta
inovação;
Já no século XX, a introdução das transmissões de TSF nos navios, permitiu expandir
a capacidade de comunicação para além da linha de visão direta, facultando ao comando
do navio a capacidade de dar ordens às suas unidades espalhadas e fora do seu contacto
visual, o que reforçou a capacidade de reconhecimento em tempo real para lá do horizonte
geográfico e a possibilidade da realização de manobras estratégicas fora das zonas litorais;
Por fim, a chegada do primeiro submarino causou um impacto significativo na arte
da guerra, sobretudo depois de adotarem sistemas de propulsão baseados na eletricidade, o
que aconteceu desde os finais do século XIX com a utilização de um sistema diesel-elétrico
destinado ao carregamento das baterias principais. Com a introdução da bateria como fonte
de energia para a sua propulsão, o submarino tornou-se uma arma de grande sucesso.

41
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of Philosophiae Doctor, Norwegian University of Science and Technology, Faculty of Information
Technology and Electrical Engineering Autonomous Marine Operations and Systems Research Centre
Department of Engineering Cybernetics, Trondheim, June 2017.
https://folk.ntnu.no/torarnj/ESkjong_PhD_thesis.pdf (Acedido em janeiro de 2021).
SS Columbia which hosted the first installation of Edison’s electric system,
https://artsandculture.google.com/asset/s-s-columbia-which-hosted-the-first-installation-of-edison-s-
electric-system-edison-electric-light-company/tgEeg-Oj4TUMow. (Acedido em abril de 2021).
TELO, António José, História da Marinha Portuguesa – Homens, Doutrinas e Organização, 1824-
1974, Lisboa, Academia de Marinha, 1999.

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