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Entre outros tópicos acesos por esta obra, pode-se pensar nas
plurais relações entre performance e índice.
Não apenas devido aos indícios que ela gera: sobras, traços,
ecos, rastros, persistências. Que podem ser desde resíduos até
produtos por e/ou com ela fabricados. Nas fluidas e não pouco
complexas fronteiras entre obra de arte e documento, são múl-
tiplas as modalidades indiciais da performance como obra em
si, artística ou não, passando por memórias, registros, críticas,
histórias, objetos performáticos, fotoperformances, videoperfor-
mances, reperformances, novas performances, mais seus índi-
ces e outros desdobramentos.
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Contudo, aqui não me interessa tanto pensar nos indícios que
a performance produz ou que são produzidos a partir dela por
quem a fez (idealizou e/ou realizou) e/ou por outrem. Me interes-
sam menos os indícios da performance e mais a performance
como indício. Portanto, menos o que a sucede e mais o que a
antecede e circunda. Porque não quero pensar unicamente na
performance como indício do processo criador e/ou da obra ar-
tística em processo, da trajetória do artista. Menos a interiori-
dade do processo criativo e mais o que lhe é exterior. Assim, a
performance interessa como índice de sujeitos, processos e
fatos além do artista e de sua obra. Com o que emerge o campo
artístico e, sobretudo, o social, com suas estruturas e relações,
espaços, instituições, redes, modos de operar e interagir.
Mas, aqui, me atrai a performance que, enquanto indício, não
é simples, intencional, obrigatório e direto resultado de aconte-
cimentos individuais e/ou coletivos, artísticos e/ou sociais. Caso
contrário, a obra de arte seria um mero efeito de fenômenos
precedentes, seja da própria dinâmica artística, seja do proces-
so social.
Nesse texto, me instiga a performance na qual o artista força
a existência do indício, criando-o. O que é, a princípio, um con-
trassenso, na medida em que os índices, enquanto signos, estão
vinculados a sujeitos, seres e coisas, ações e fenômenos que os
antecedem e geram, e aos quais se referem.
Mas na performance que agora me move há vínculos de con-
tinuidade entre ela e alguns fenômenos sociais. O que permite
vê-la como índice, como referência de algo outro, ao mesmo
tempo anterior e coexistente. Entretanto, cabe ressaltar – e
esse é um atrativo especial para mim –, ela não é indício comum,
imediato, inescapável. Porque, por meio da performance, o ar-
tista produz, embora nem sempre de modo voluntário e cons-
ciente, o efeito que a causa disfarça, vela, oculta. Com a perfor-
mance, ele explicita certas ideias e práticas socais, obrigando a
ver o que, mesmo existindo culturalmente, estando à tona na
sociedade, sendo visível pelas pessoas e por elas experimenta-
do, vivido – por muitas, de maneira dolorosa –, precisa ser cha-
mado à percepção, à consciência, porque usualmente não é
visto, ou se finge não ver.
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Nesse sentido, a performance é indício singular por, ao acon- Sem ralar por inteiro a imagem, nem cobrir-se totalmente de
tecer, animar os demais elementos da cadeia significante, quero pó, ou seja, deixando incompletas as tarefas autoimpostas, ele
dizer, do processo sociocultural: exibe fenômenos, referências, também traz à luz, por outro lado, o mito da indolência dos ne-
e mobiliza pessoas, interpretantes – demanda a exploração, a gros, da preguiça que seria a eles inerente, da suposta indispo-
dúvida sobre o que permanece silenciado. Por um lado, explicita sição deles para o trabalho.
ideias, mentalidades e práticas que, embora atuantes, se que- Recobrindo seu corpo com o pó oriundo da imagem, ele também
rem invisíveis, inexistentes. Por outro, desperta percepções associa uma discussão de gênero e sexo à reflexão sobre racismo,
aguçadas e consciências propriamente ativas. subalternidade, marginalização. No machismo racista reinante no
Desse modo, a performance é indício crítico, na medida em país, recobrir o corpo masculino com pó derivado do corpo da ima-
que cristaliza situações que as forças em jogo no campo social culada Virgem, imbuído de castidade e pureza, é dar a ver o anseio
geram apenas excepcionalmente, quando, por exacerbação ou de múltipla degradação dos corpos negros. Transfigurar o homem
descuido, irrompem em meio à inércia da dinâmica cultural vi- negro com a corporeidade de uma santa, de uma mulher despro-
gente. Também é índice criativo, pois explicita essa tensão de vida de vitalidade e poder sexual, não deixa de ser um modo de
modo inusitado, artístico. Com o que sobressai a borrada fron- concretizar o anseio pelo fim do mito da potência superior do ma-
teira entre arte e real, arte e política. cho negro, difundido não apenas na cultura brasileira, e por seu
rebaixamento à suposta condição inferior do feminino.
*** E, como a imagem ralada não é de uma santa qualquer, é de
Maria, a sagrada Senhora, mãe de Jesus Cristo, o mensageiro de
De quais ideais e preconceitos vigentes no meio social Atos da Deus, a redução a pó faz pensar na destruição de imagens como
transfiguração: Desaparição, ou receita de como fazer um santo, prática que tem sido adotada na guerra atualmente em curso no
de Antônio Obá, pode ser tomada como um índice? mercado em que se transformou o campo religioso. A destruição
Nu, o artista exibe mais do que o próprio corpo – expõe como da santa explicita a oposição ao catolicismo, em particular, e às
se tenta usualmente extirpar a história do corpo negro e, conse- imagens, de modo geral, que é manifesta de modo muitas vezes
quentemente, excluí-lo da história. Associada a objetos usados ostensivo por certos segmentos do cristianismo neopentecostal.
no cotidiano doméstico, a nudez do corpo negro contrasta com Pulverizada, a imagem perde não apenas sua condição objetal,
a excepcional imagem da santa, composta por elementos refe- mas também seu colorido, tornando-se um monocromático pó.
rentes a significados de diversos tempos e espaços. Desprovido Ao revelar quão superficial era sua negritude, ínfimo véu de cor a
de cultura, o corpo negro é reduzido à natural organicidade bio- recobrir a branca essência, a performance faz lembrar que a
lógica, assim como os objetos, à mera utilidade, em contrapon- imagem da santa atualmente preservada na basílica de Nossa
to à alta carga simbólica da santa católica, da imagem, da arte. Senhora Aparecida, em Aparecida, foi uma escultura em terraco-
Executando nu as ações, ele mobiliza a figura do homem ne- ta que escureceu por ter permanecido muito tempo submersa
gro forte, viril, potente, perfeito para o trabalho, tanto o braçal nas águas do rio Paraíba, onde foi encontrada em 1717, e devido
quanto o sexual, com a correspondente inaptidão para a vida à fuligem a ela agregada pela fumaça das velas posteriormente
intelectual – fetiche recorrente não apenas no imaginário brasi- acesas pelos devotos. O que permitiu ver a principal padroeira
leiro. Redução de negros e negras a corpos produtores de rique- católica da nação brasileira como uma Maria negra, bem como
za e de prazer que era prática comum durante a vigência da es- associá-la à mestiçagem e à afro-brasilidade, que passaram a
cravidão na sociedade brasileira entre os séculos XVI e XIX, mas ser valorizadas no início do século XX. Ao transpor a imagem mul-
também depois, até hoje, no Brasil e alhures. ticor à mítica pureza do branco, o artista encena um ato similar
aos ataques feitos à imagem da santa em Aparecida e a algumas
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de suas réplicas, bem como às táticas de apagamento da negri- a performance perverte a sacralidade da imagem ao associá-la
tude na cultura brasileira. Desse modo, materializa desejos de a objetos e atos sexuais. Liberdade irreverente que explana a
variados grupos conservadores, aniquilando alguns de seus pre- sexualidade própria aos corpos humanos, o erotismo como ne-
feridos alvos: catolicismo, negritude, mulher, imagem, arte, outro. cessário e sagrado rito do corpo.
Assim como a santa ao ser ralada, o artista embranquece ao Mobilidade corporal que guarda memória de dor. Ao mudar de
cobrir-se de pó. Desse modo, corporifica o ideal que tanto ani- posição e ajustar os objetos ao corpo de quando em vez, exibin-
mou e ainda anima grandes parcelas da população brasileira: o do certo desconforto ao ralar a imagem, o artista remete às di-
branqueamento das populações nativas, de africanos e afrodes- ficuldades impostas ao trabalho servil no regime escravocrata.
cendentes, dos outros, de todas as pessoas com matizes dife- Aos corpos instrumentalizados, como os simples artefatos com
rentes da alvura ideal, do simbólico branco. Como ela e ele, a os quais os negros eram obrigados a trabalhar. Aparentemente
alteridade desaparece. sem forças, cansado ao final da performance, ele rememora a
Com Atos da transfiguração: Desaparição, ou receita de como exaustão a que eram levadas as pessoas escravizadas em pro-
fazer um santo, Antônio Obá nos obriga a ver como o negro é cessos de produção de muita riqueza com baixo investimento e
entendido, visto e tratado na sociedade brasileira e em outros alta exploração.
contextos socioculturais: próximo de um animal, potente, rentá- A pose final do artista, sentado sobre as pernas, com os bra-
vel, porém preguiçoso e indolente, que deve ser controlado, do- ços estendidos junto do corpo e expressão facial combalida –
minado, emasculado, branqueado, inviabilizado, enfraquecido, um ícone da inação –, pode ser tomada como mais uma expres-
morto, extinto. são do banzo, a nostálgica melancolia particular aos negros.
Mas desde que se entenda esse estado psicológico também
*** como recusa ao regime escravista, ao forçado desterro. Assim
como a incompletude das tarefas – a imagem não de todo rala-
Qual é o sentido, especialmente o artístico, de tirar da invisibili- da, o corpo com partes ainda por cobrir de pó – é uma resistên-
dade, fazer acontecer e deflagrar tantos preconceitos? Essas cia à violência inerente à ordem produtiva.
ideias e práticas são explicitadas não apenas com o sentido de O pó resultante do trabalho cai sobre um artefato aparente-
denúncia da violência persistente na sociedade brasileira. Nem mente insignificante. Contudo, a gamela de madeira têm outros
somente para pôr em discussão o que é comumente silenciado, sentidos, abrindo campos. É um objeto comum em terreiros de
ou para criticar o que nem é tido como existente, dado o mito da candomblé, onde é utilizada para ofertar comidas ao orixás. A
democracia racial no país. Explorando a ambiguidade de gestos, gamela de formato comprido usada pelo artista é particularmen-
coisas, seres e ideias, a performance também expõe e defende te usada para oferecer comidas a Xangô. Vínculo que é reforçado
outros valores em jogo no campo sociocultural. pelo nome do artista – Obá –, palavra que, em ioruba, significa
Não se pode deixar de ler a nudez do artista também como rei. Palavra usada no Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador, para de-
afirmação da força da negra corporeidade. Nu, o corpo negro signar um cargo existente na hierarquia litúrgica daquele terreiro,
exalta sua história própria, na qual aprendeu a cultivar a autos- ocupado por homens escolhidos para serem ministros de Xangô,
suficiência como atributo. assessores do orixá, intermediadores da divindade, da ialorixá e
A nudez e algumas ações do artista podem ser lidas como dos demais fiéis com a sociedade. Referências ao orixá vinculado
transgressões com a religiosidade. Desde a situação inicial, com à justiça entre os nagôs que permitem ver a performance como
a imagem da santa colada ao pênis, passando pelos movimen- um libelo por revisão, reparação, renovação sociocultural.
tos corpóreos quando é ralada, remissíveis à masturbação, até Mas Obá também é o nome de um orixá feminino: uma caça-
o intenso espraiar do alvo e fluido pó pelo corpo, como um gozo, dora também guerreira –uma modalidade do feminino que, em
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sociedades machistas, é geralmente associada ao que seria ex-
clusivo do universo masculino. Portanto, objeto e nome evocam
novamente a questão de gênero, seja na referência ao orixá que
questiona os atributos sociais do homem e da mulher, seja na
ambivalência entre orixá feminino e orixá ou cargo masculino.
Se a segunda e mais longa parte da performance consiste na
produção de pó branco, na parte seguinte esse pó é usado para
cobrir o corpo do artista. Procedimentos que podem ser compa-
rados à produção de efum, também um pó branco, com o qual
são cobertos seres, coisas e lugares em certos rituais no can-
domblé, inclusive ao “fazer um santo”. Branco que nas religiões
afro-brasileiras é associado a Oxalá, aos orixás funfun, à morte,
mas também à purificação. O que torna a performance quase
um ritual de passagem, de renascimento, indicando outro futuro.
Coisa, nome e cor aparentemente insignificantes que conec-
tam a performance às religiões afro-brasileiras, articulam o ca-
tolicismo, no qual o artista foi educado, ao candomblé – uma
mistura pouco estranha no Brasil. Incorporação da alteridade
que renova a prática de apropriação e acúmulo de referências
culturais outras, comuns desde o início da escravidão e que,
para muitos grupos africanos e seus descendentes no Brasil,
mais do que garantir a sobrevivência, era um modo de agregar
potência a quem o praticava.
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UNIVERSIDADE DO Organização
ESTADO DO RIO DE JANEIRO Inês de Araujo
Reitor Edição
Ruy Garcia Marques Inês de Araujo e Marcos Martins
Vice-Reitora Design
Maria Georgina Muniz Washington Marcos Martins
Vice-diretor
Capa: Inês de Araujo, frame vídeo Páginas Viradas 2011
Filipe Ferreira
Rio de Janeiro
ISBN 978-85-63266-07-1
Instituto de Artes da Uerj
1. Ar tes moderna – Séc. X XI. 2. Ar tes – Pesquisa.
2016
3. Criação (Literária, artística, etc.). 4. Instalações (Arte).
I. Araújo, Inês de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Artes. III. Título.
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