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INDÍCIOS INÊS DE AR AÚ JO [ORG.] INSTITUTO DE ARTES UERJ


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19 20 21 OUTUBRO 2015
19
Angela Donini  18 Apresentação
Ricardo Maurício gonzaga 34
Livia Flores  50
Ana Alves  62
Amanda Vieira  66
Anaïs Karenin  70 Esta publicação reúne ensaios visuais e textuais de uma série
de intervenções que ocorreram em outubro de 2015 por ocasião
20 do Encontro Indícios. O evento de três dias, organizado pelos
Roberto Conduru  76 participantes do projeto de extensão “Experiências indiciais com
Helena Martins  86 dispositivo de impressão, reprodução e gravura” do Instituto de
Junia Penna  100 Artes da Uerj, respondeu ao desejo do grupo de ampliar o espa-
Gabriela Caspary  112 ço de interlocuções que se tecem de modo singular entre práxis
Bruno AWFUL  116 artística e pesquisa teórica. Motivado pela dinâmica plural, que
Cintia faria  120 marca o intercâmbio entre as pesquisas e práticas artísticas na
universidade, este livro propõe entrecruzamentos de perspecti-
21 vas, sejam essas traçadas no campo da palavra, sejam em ex-
Marcelo Campos  126 periências concretas realizadas em pesquisas artísticas com
Paulo Becker  132 diversos meios e mídias.
MARCELO LINS  144 O interesse em aprofundar os questionamentos poéticos e a
Lucia Vignoli  154 vocação de pesquisa artística suscitados pelas práticas e pro-
Clara Machado  168 cessos com meios gráficos também nos levou a buscar o diálogo
Aline Besouro  172 com diferentes áreas. Reunindo trabalhos de 19 pesquisadores
e artistas, entre professores e estudantes, da graduação e da
pós-graduação, do Instituto de Artes da Uerj, bem como convi-
INÊS DE ARAUJO [ORG.] dados e pesquisadores de outras áreas, esta coletânea confron-
ta pesquisas do campo da arte, da história da arte, da poesia,
da literatura, da filosofia, da antropologia e da psicanálise.
As intervenções que a compõem partem de investigações di-
reta ou indiretamente ligadas a operações e procedimentos de
impressão e de suas consequências sobre práticas poéticas que
envolvem, entre outras, a questão do contato e da perda de con-
tato, do registro e do recalque, do apagamento e da marca, do
anônimo e do múltiplo, do ritmo e do intervalo, do parcial e do
duplo. Mas ao prolongar questionamentos próprios às pesqui-
sas artísticas e à dimensão prática e conceitual da produção de
imagens, gestos, objetos, situações, o conjunto de ensaios tra-
tou menos da circunscrição de um tema do que dos atravessa-
mentos de materiais heterogêneos que suas escrituras plurais
ressignificaram.

Inês de Araujo é artista e professora adjunta IART-UERJ


A noção de Indícios, tema em torno do qual o debate foi lança- sados pelos meios e materiais utilizados pelas práticas e poéti-
do, desperta para sentidos pouco convergentes. O termo suge- cas de impressão. No entrelaçamento de gestos e técnicas,
re traços aparentemente imprecisos, já que o valor indiciário marcar, esquecer, apagar, rasurar articulam embates que trans-
de qualquer elemento não confina o registro fiel de seu refe- formam os limites e fronteiras de suas inscrições.
rente. Necessariamente aproximativos, indícios, rastros, ou
sintomas levantam suspeitas. Sua intensidade aumenta de ---
acordo com aquilo que permite desvendar ao nos fazer estra-
nhar traços característicos de objetos e do que não tem objeto. Em Mal de arquivo: uma impressão freudiana, Derrida discute a
Impondo-se ao ausentar-se, a evidência de um indício leva a questão do arquivamento aproximando seu conceito do termo
perceber a simultaneidade entre acontecimentos imanentes impressão. Uma impressão não é apenas o suporte da marca de
atuais e inatuais. um acontecimento passado que faz surgir; sua condição de pos-
Trabalhar com um signo indicial coloca em jogo a produção de siblidade reside na instauração de sua relação com o porvir. O
uma marca. Sendo mais do que sua repetição, uma marca, à filósofo lembra que em inglês a palavra impressão pertence à
qual atribuímos técnicas tradicionais de impressão e gravura, mesma família que a palavra repressão, mas a diferença concei-
extrapola os limites da função de cópia ou reprodução fiel de um tual não se refere apenas a uma questão semântica, mas direta-
original. Como comenta Didi-Huberman, há uma diferença radi- mente às estruturas de arquivamento. A repressão opera o que
cal entre a forma obtida por impressão e a representação clás- Freud chama de segunda censura, afeta o afeto, “isto é, aquilo
sica entendida no sentido de mimésis: “[...] a forma impressa se que não pode jamais se deixar recalcar (repress) no inconsciente
obtém às cegas, na interioridade inacessível do contato entre a mas somente reprimir (suppress) e deslocar-se para um outro
matéria substrato e sua cópia em formação”.1 afeto”.2 Para Derrida, a problemática da inscrição que deixa uma
Do ponto de vista gráfico, as múltiplas bordas ou reservas de marca sobre um suporte é sem limite. Recuando até os confins
uma impressão, suas sobras, valem como ruídos em germe, em do que resiste ao sentido, este pensamento – que tampouco se
processo. À força de multiplicarem-se, os descartes de uma im- furtou ao exame dos ocultamentos históricos e políticos gerados
pressão falam tanto quanto suas qualidades. Além disso, to- pelo termo impressão – nos recorda que, para além do desejo de
mando emprestadas direções à deriva, suas margens conser- inscrição e memória, deve-se considerar a impressão insepará-
vam traços de sugestivas inadequações, marcam deslizamentos vel das relações do porvir com a repressão e com a supressão.
de seus códigos traduzindo outras marcas, investem movimen- Indícios suportam intensidades contraditórias, de múltiplas
tos singulares. Observar o dispositivo técnico polariza um com- valências, como o refluxo inegável de infratemporalidades que
posto, agrega ressonâncias e resistências. Ainda assim, se a infiltram todas as coisas no diálogo ininterrupto que nos funda,
evocação de uma impressão é falha, se seu sentido vago imedia- que mesmo recusado não cessa de nos confirmar. Marca fora do
tamente transborda a qualidade estável, não deveríamos esque- registro, o que resiste ao sentido não deixa de imprimir sob in-
cer que o valor indiciário, do que escapa à circunscrição de per- contáveis formas, intervalos, lacunas e margens. Observar uma
cepções objetivas, não deixa de alertar todos os sentidos. marca como suporte do tempo, um in progress da temporalidade
A valorosa imprecisão localiza a vocação lacunar de um su- experimental, sugere a recorrência de ritmos e linhas de força,
porte, advertindo-nos, assim, sobre a rede de sentidos conden- que, entre outros aspectos, ativos em práticas e poéticas que
continuam, exteriorizam nossos passos por dentro.

1 “[...] la forme ‘empreintée’ s’obtient à l’aveugle, dans l’interiorité inacessible du


contact entre la matière-substrat et sa copie en formation”. DIDI-HUBERMAN, Georges. 2 DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Cláudia de
L’Empreinte. Paris: Centre Georges Pompidou, 1997, p. 77. Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 43.
Indícios são rastros e sinais que deflagram atividade explora- sabedoria ancestral resistindo, imprimindo. Gesto inicial. Corpo
tória às margens, deslocam o sentido habitual que atribuímos a gravado.
todas as coisas. Marcado por um atraso, o signo indicial mani- Para Amanda Vieira, nenhum estudo sobre a água pode ser
festa o que resiste ao sentido imediato. Sua configuração tem- feito de forma efêmera e rápida. Suas gravuras d’água impri-
poral específica não releva de nenhum ponto de vista atual. mem exercícios sentimentais. A água escorre no ato da morte,
Como a pausa sutil, ou deslocamento, entre um raio e um trovão, no ato da não-captura e renasce outra, uma outra imagem
um signo indicial realiza no presente um movimento em dupla d’água.
face, diferido e a posteriori. Em outras palavras, trata-se de atri- Se tudo começa num ponto, como dizia Kandinsky, Bruno Awful
buir ao dado a espessura de um intervalo, e interrogar no pre- toma para si um supervocabulário suspenso: do ponto de excla-
sente latências de suas linhas de transição. Eleger o tema Indí- mação com a descoberta da tecnologia, ou a exclamação de
cios, cujo denominador c omum instiga à diferenç a, a felicidade com o resultado positivo de pesquisas científicas no
problematizar a repetição e a identidade, favorece, por outro campo elétrico, ou ainda as interrogações sobre os nossos des-
lado, a dinâmica própria à produção de um saber coletivo, ime- tinos…
diatamente polifônico. No trabalho de Clara Machado, à investigação que nasceu do
Acreditando, como Isabelle Stengers, que da plasticidade do trabalho com cabelos, outros objetos foram se agregando: um
contato provém o porvir de uma memória, do que nos incita a ninho, um osso de animal, uma pena, folhas, sementes... Enfim,
pensar e a criar, durante os três dias preocupamo-nos menos restos, vestígios, que geram um acúmulo.
com a construção de objetos de conhecimento adequados do As gravuras de Cintia Faria parecem esboçar questões para-
que em observar uma marca como um abrigo ao tempo propício doxais. Tensionar um objeto parcial. Espelhar repetição e limite.
a produções heterogêneas. Cortar e dobrar sua unidade verbal. Autorretratar o corpo. Ser
no mínimo dois. Ser sem posição identitária.
--- Gabriela Caspary examina registros de partículas reutilizáveis
de afetos. Escolhas recombinantes corroídas. Gravura, matriz,
Os ensaios visuais apresentados pelos estudantes artistas con- repetição, alteração, esgotamento. Ficção, apropriação de res-
vocam diferentes abordagens de pesquisa: “Antessala”, primei- quícios para geração de novas matrizes.
ro exercício de curadoria do trio VNTD, memorial afetivo do anti-
go prédio do DOPS – órgão de controle e repressão no Rio de ---
Janeiro durante a ditadura militar –, trabalho de Aline Besouro,
escolheu o formato jornal e a serigrafia como processo que traz As contribuições, neste diálogo, de diferentes interlocutores das
a dimensão da falha e da artesania para pensar um lugar que áreas da arte, de história da arte, poesia, literatura, filosofia,
não se pode acessar. antropologia e psicanálise não deixa de enriquecer nosso deba-
Partindo de um conjunto de materialidades diversas – como te, além de nos lembrar que, ao sairmos de um encontro, seus
etiquetas, sacos plásticos, letras, papéis de bala, barbantes ganhos continuam nos levando a reformular os termos de nos-
embalagens etc. –, Ana Alves propõe algumas ações para deixar sas próprias questões.
rastros: agregar, separar, prensar, encorpar, esfregar, dissolver, Relacionando a questão dos indícios às estratégias de desco-
gravar, sulcar, dobrar, e assim por diante. lonização do inconsciente, Angela Donini invoca forças subja-
Colocando em trabalho a história do gesto de apagamento, centes ao corpo que tensionam no reverso da ideia o lugar dos
Anaïs Karenin pensa as plantas que rebrotam, são vozes que sinais. Percorrendo outras formas de habitar o presente, o en-
rebrotam. Plantas daninhas com poder medicinal, uma força de saio explora indícios da trajetória invisível de nossos processos
de subjetivação. Evocando outros agenciamentos dos fluxos de cas do apagamento da negritude na cultura brasileira, ao ence-
nossas corporeidades, visões e audições, sequestradas pelos nar seu embranquecimento, e o entrelaçamento de questões de
modos capitalistas e coloniais de pensar, a autora nos conduz gênero ao racismo, a performance corporifica o ideal de elimi-
através de escavações de trechos do processo de criação inicia- nação da alteridade. Mas além da vigência invisível do racismo
do durante viagem realizada ao deserto de Atacama em 2015. Atos da transfiguração intensifica a contradição de seu fim que
Trabalho cujo registro fotográfico e fílmico foi realizado em par- não se quer instaurar. No entanto, o gesto iconoclasta força uma
ceria com a fotógrafa Flavia Viana. barreira entre arte e política, provoca outras associações e dis-
Ricardo Maurício desenvolve a hipótese de um deslocamento sociações entre as imagens, gerando indícios de um porvir.
histórico da lógica produtiva do signo artístico de um regime de Um poema de Frank O’Hara, “Interior (with Jane)”, determina a
representação para a lógica do índice. O processo marcado pela ênfase particular da indagação que o ensaio de Helena Martins
influência das imagens técnicas, a partir da fotografia, e sua provoca. Como podemos ver as mesmas velhas e conhecidas
potência de indicação tão poderosa quanto maleável determi- coisas sem que, por outro lado, deixemos de nelas perceber in-
nam uma nova sensibilidade na situação pós-moderna. Susce- contáveis, desconhecidas e impensáveis vidas? A contrapelo do
tível de deslocamentos alegóricos, a fotografia pode sempre diagnóstico que declara que a linguagem falha redondamente
significar outra coisa. Constituindo o mundo a partir de sua ca- naquilo que é sua promessa mais radical, o dizer o mundo, se-
pacidade de tornar conceitos visíveis, as imagens técnicas pro- guindo a via acenada pelos escritos de Wittgenstein, a autora
jetam significado sobre o mundo; nelas, o real já se constitui sugere que os objetos podem ser pensados como indícios de
como imagem. Entre outras consequências, essa transformação formas de vida. Entender um signo, alcançar sua vida, não pre-
paradigmática do signo artístico amplia o espaço político ine- sume contato com sua alma imaterial. Se os objetos são como
rente à possibilidade de um consenso a posteriori, como verdade ações congeladas, como sabem os índios, num encontro subita-
produtiva, a ser desvelado em sua recepção. mente desabituado com seus indícios o degelo é sempre possí-
O ensaio poético de Livia Flores trata de inverter o ritmo des- vel. Como nos faz pressentir o primeiro verso do poema: “A gana
cartável do instantâneo, do que nos é dado a ver. O dispositivo dos objetos para ser o que temos medo de fazer.”
criado pela artista faz pensar sobre quando o visível pode con- A reflexão de Junia Penna revela a escrita como mais uma
servar um pouco mais do que sua evidência imediata. Aqui a oportunidade para que a artista confronte o trabalho dos gestos,
palavra visão ganha do visível. O que se encena na sequência de das forças e dos traços que não param de crescer, e de solidari-
imagens, espaçamentos e palavras envolve o desarmamento zarem-se a dinâmicas de vida. O impacto dessa escrita vem não
dos automatismos do olhar e dos desempenhos de leitura que tanto do conteúdo do que está sendo dito, quanto da singeleza
nos permitem atribuir sentido imediato ao visível. O trabalho nos segundo a qual devolve ao leitor seu material – gestos, forças e
conduz através de imagens que se tornam suportes para outras traços. Como um ritmo, a escrita sugere mais um lastro de seu
imagens. Sinais do lixo mobilizam certa desafetação não sem processo criativo, do que se faz colado ao próprio corpo. Descre-
afeto; de uma imagem invisível restitui-se apenas o espanto de ver torna-se atividade que não perfaz uma imagem, mas refaz
uma imagem que não acaba de proliferar. infinitamente a impermanência de seu traçado, seu movimento
Analisando indícios críticos em Atos da transfiguração, perfor- de impermanência e passagem por uma zona que pode apenas
mance de Antônio Obá, Roberto Conduru discute inversões e ser entrevista. Porque não é para o visível que essa escrita quer
deslocamentos das fronteiras culturais e sociais que perpassam chamar a atenção, ao contrário, o que nos faz seguir e acompa-
negritude, religião e servidão. Numa gamela rente ao corpo ne- nhar pratica o contato, quase uma experiência do tato.
gro e nu, de um gesto repetitivo e vigoroso, Obá rala o artefato Em “O tempo e os vestígios”, Paulo Becker aproxima a noção
de uma santa e recobre-se com seu pó branco. Revelando táti- de obra, compreendida como operação poiética de escritura
singular, da indeterminação do movimento de constituição em Considerando a indecidibilidade acerca da continuidade ou
ato de um sujeito com buracos, efeito daquilo que a psicanálise descontinuidade das fronteiras entre filosofia, literatura e arte,
nomeia como sujeitempo. De que lugar vem a pulsão, o que seria sugerida na obra de Emerson, Marcelo Lins esboça a possibili-
uma imago original, o que faz dos vestígios visuais ou acústicos dade de redescoberta da arte num certo estado de espírito in-
uma poiesis? Este é também o terreno da constituição mesma determinado, incongruente e aberto. Em sua escritura de uma
do sujeito. Seria a luz da nossa contemporaneidade essa dos dupla vigília, o autor encontra no transe tipográfico, em relação
vestígios, que coloca em jogo o percurso de uma disparição? aos estados de imagens e suas transições, alguns hiatos, des-
Becker nos lembra que “A História não faz sentido sem os acon- vios e extravios em propósitos simétricos de escrita e leitura. Se
teceres que toma como fatos; no caso das artes, não faz senti- somos dois – aquele que enuncia uma escrita e o outro que faz
do sem as obras. A recíproca não é verdadeira: a Obra não pre- fé na leitura – ou ambos – então muito provavelmente devemos
cisa da história enquanto sentido para produzir a sua considerar que estamos mais ou menos embaraçados e cons-
significação.” cientes em nossas ocupações costumeiras.
Da reivindicação dos vestígios do corpo, que remontam ao es-
pólio de Cristo, Marcelo Campos nos leva a refletir sobre a pre-
sentificação de um “isto” impalpável que, nas obras, nos faz
perceber acontecimentos mais amplos. Como o alcance de pro-
testo transnacional do sumiço dos corpos que circula nas frases
carimbadas por Cildo Meireles nas notas de menor valor, “Quem
matou Herzog?”, de 1975, e “Cadê o Amarildo?”, de 2014. Outro
vestígio do corpo é posto em questão em trabalhos como A hora
da limpeza, de 2010, de Rosana Paulino. Aqui a sombra gera cor
trazendo à tona resquícios da escravidão e da submissão social.
Há ainda indícios que abrem vários caminhos, sem nada ter a
revelar, como Cut Piece, de Yoko Ono, de 1965, que limita-se a
desnudar o corpo da performer ou a perscrutar exterioridades.
No acontecimento em si não há final.
No ensaio poético de Lucia Vignoli os elementos, imagens e
escritas pontuam distâncias, demarcam brechas, tiram alguma
coisa do lugar, acirram diferenças. Com movimentos incisivos
próprios ao sentido do que soma camadas, a artista remove e
renova espessuras/rasuras. Poderíamos nos perguntar onde
nos encontramos ao percorrer suas variações. Poderíamos in-
dagar sobre a cumplicidade efêmera dos suportes de contami-
nação desse conjunto de circunstâncias que nos orientam atra-
vés de imbricações de transparências, de luminosidades difusas,
decifrando permeabilidades e variações de seu entorno. Mas por
que pontuar tantas rasuras com cuidado, tantas desordens na
leitura cursiva linear? No entanto, ainda assim, há texto na lei-
tura, fora da leitura, apesar da leitura.
Roberto Conduru Índices do (in)visível
performance, afro-brasilidade, política

Em um cômodo fechado, um homem negro caminha, nu, carre-


gando uma imagem de Nossa Senhora Aparecida colada ao cor-
po, junto do pênis. Em certo ponto do espaço, perto de onde, no
chão, estão pousados um ralador metálico e uma gamela de
madeira, ele para, se ajoelha, pega o ralador e nele fricciona a
imagem. Superficialmente colorida, mas feita de gesso, ao ser
ralada a imagem da santa católica é transformada em pó bran-
co, que cai na gamela e, em menor quantidade, sobre o corpo do
homem. Depois de um tempo, ele para de ralar a imagem e pas-
sa a fazer de modo intencional o que acontecia involuntariamen-
te: joga e também passa sobre si o pó. Com boa parte do corpo
já coberto de pó e, consequentemente, bastante alvo, ele senta-
-se sobre as próprias pernas, estende os braços sobre o corpo e
para de agir. Por fim, se levanta e sai do recinto, deixando nele o
ralador e a gamela com o que sobrou da imagem e o pó restante.
A sucessão de acontecimentos acima narrados refere-se a
Atos da transfiguração: Desaparição, ou receita de como fazer um
santo, performance realizada por Antônio Obá no Elefante Cen-
tro Cultural, em Brasília, em 15 de outubro de 2015. A sintética
descrição foi feita a partir de fotografias e vídeos divulgados
pelo artista na rede eletrônica de informações e por ele envia-
dos a mim.

***

Entre outros tópicos acesos por esta obra, pode-se pensar nas
plurais relações entre performance e índice.
Não apenas devido aos indícios que ela gera: sobras, traços,
ecos, rastros, persistências. Que podem ser desde resíduos até
produtos por e/ou com ela fabricados. Nas fluidas e não pouco
complexas fronteiras entre obra de arte e documento, são múl-
tiplas as modalidades indiciais da performance como obra em
si, artística ou não, passando por memórias, registros, críticas,
histórias, objetos performáticos, fotoperformances, videoperfor-
mances, reperformances, novas performances, mais seus índi-
ces e outros desdobramentos.

Roberto Conduru é professor adjunto IART- UERJ

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Contudo, aqui não me interessa tanto pensar nos indícios que
a performance produz ou que são produzidos a partir dela por
quem a fez (idealizou e/ou realizou) e/ou por outrem. Me interes-
sam menos os indícios da performance e mais a performance
como indício. Portanto, menos o que a sucede e mais o que a
antecede e circunda. Porque não quero pensar unicamente na
performance como indício do processo criador e/ou da obra ar-
tística em processo, da trajetória do artista. Menos a interiori-
dade do processo criativo e mais o que lhe é exterior. Assim, a
performance interessa como índice de sujeitos, processos e
fatos além do artista e de sua obra. Com o que emerge o campo
artístico e, sobretudo, o social, com suas estruturas e relações,
espaços, instituições, redes, modos de operar e interagir.
Mas, aqui, me atrai a performance que, enquanto indício, não
é simples, intencional, obrigatório e direto resultado de aconte-
cimentos individuais e/ou coletivos, artísticos e/ou sociais. Caso
contrário, a obra de arte seria um mero efeito de fenômenos
precedentes, seja da própria dinâmica artística, seja do proces-
so social.
Nesse texto, me instiga a performance na qual o artista força
a existência do indício, criando-o. O que é, a princípio, um con-
trassenso, na medida em que os índices, enquanto signos, estão
vinculados a sujeitos, seres e coisas, ações e fenômenos que os
antecedem e geram, e aos quais se referem.
Mas na performance que agora me move há vínculos de con-
tinuidade entre ela e alguns fenômenos sociais. O que permite
vê-la como índice, como referência de algo outro, ao mesmo
tempo anterior e coexistente. Entretanto, cabe ressaltar – e
esse é um atrativo especial para mim –, ela não é indício comum,
imediato, inescapável. Porque, por meio da performance, o ar-
tista produz, embora nem sempre de modo voluntário e cons-
ciente, o efeito que a causa disfarça, vela, oculta. Com a perfor-
mance, ele explicita certas ideias e práticas socais, obrigando a
ver o que, mesmo existindo culturalmente, estando à tona na
sociedade, sendo visível pelas pessoas e por elas experimenta-
do, vivido – por muitas, de maneira dolorosa –, precisa ser cha-
mado à percepção, à consciência, porque usualmente não é
visto, ou se finge não ver.

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Nesse sentido, a performance é indício singular por, ao acon- Sem ralar por inteiro a imagem, nem cobrir-se totalmente de
tecer, animar os demais elementos da cadeia significante, quero pó, ou seja, deixando incompletas as tarefas autoimpostas, ele
dizer, do processo sociocultural: exibe fenômenos, referências, também traz à luz, por outro lado, o mito da indolência dos ne-
e mobiliza pessoas, interpretantes – demanda a exploração, a gros, da preguiça que seria a eles inerente, da suposta indispo-
dúvida sobre o que permanece silenciado. Por um lado, explicita sição deles para o trabalho.
ideias, mentalidades e práticas que, embora atuantes, se que- Recobrindo seu corpo com o pó oriundo da imagem, ele também
rem invisíveis, inexistentes. Por outro, desperta percepções associa uma discussão de gênero e sexo à reflexão sobre racismo,
aguçadas e consciências propriamente ativas. subalternidade, marginalização. No machismo racista reinante no
Desse modo, a performance é indício crítico, na medida em país, recobrir o corpo masculino com pó derivado do corpo da ima-
que cristaliza situações que as forças em jogo no campo social culada Virgem, imbuído de castidade e pureza, é dar a ver o anseio
geram apenas excepcionalmente, quando, por exacerbação ou de múltipla degradação dos corpos negros. Transfigurar o homem
descuido, irrompem em meio à inércia da dinâmica cultural vi- negro com a corporeidade de uma santa, de uma mulher despro-
gente. Também é índice criativo, pois explicita essa tensão de vida de vitalidade e poder sexual, não deixa de ser um modo de
modo inusitado, artístico. Com o que sobressai a borrada fron- concretizar o anseio pelo fim do mito da potência superior do ma-
teira entre arte e real, arte e política. cho negro, difundido não apenas na cultura brasileira, e por seu
rebaixamento à suposta condição inferior do feminino.
*** E, como a imagem ralada não é de uma santa qualquer, é de
Maria, a sagrada Senhora, mãe de Jesus Cristo, o mensageiro de
De quais ideais e preconceitos vigentes no meio social Atos da Deus, a redução a pó faz pensar na destruição de imagens como
transfiguração: Desaparição, ou receita de como fazer um santo, prática que tem sido adotada na guerra atualmente em curso no
de Antônio Obá, pode ser tomada como um índice? mercado em que se transformou o campo religioso. A destruição
Nu, o artista exibe mais do que o próprio corpo – expõe como da santa explicita a oposição ao catolicismo, em particular, e às
se tenta usualmente extirpar a história do corpo negro e, conse- imagens, de modo geral, que é manifesta de modo muitas vezes
quentemente, excluí-lo da história. Associada a objetos usados ostensivo por certos segmentos do cristianismo neopentecostal.
no cotidiano doméstico, a nudez do corpo negro contrasta com Pulverizada, a imagem perde não apenas sua condição objetal,
a excepcional imagem da santa, composta por elementos refe- mas também seu colorido, tornando-se um monocromático pó.
rentes a significados de diversos tempos e espaços. Desprovido Ao revelar quão superficial era sua negritude, ínfimo véu de cor a
de cultura, o corpo negro é reduzido à natural organicidade bio- recobrir a branca essência, a performance faz lembrar que a
lógica, assim como os objetos, à mera utilidade, em contrapon- imagem da santa atualmente preservada na basílica de Nossa
to à alta carga simbólica da santa católica, da imagem, da arte. Senhora Aparecida, em Aparecida, foi uma escultura em terraco-
Executando nu as ações, ele mobiliza a figura do homem ne- ta que escureceu por ter permanecido muito tempo submersa
gro forte, viril, potente, perfeito para o trabalho, tanto o braçal nas águas do rio Paraíba, onde foi encontrada em 1717, e devido
quanto o sexual, com a correspondente inaptidão para a vida à fuligem a ela agregada pela fumaça das velas posteriormente
intelectual – fetiche recorrente não apenas no imaginário brasi- acesas pelos devotos. O que permitiu ver a principal padroeira
leiro. Redução de negros e negras a corpos produtores de rique- católica da nação brasileira como uma Maria negra, bem como
za e de prazer que era prática comum durante a vigência da es- associá-la à mestiçagem e à afro-brasilidade, que passaram a
cravidão na sociedade brasileira entre os séculos XVI e XIX, mas ser valorizadas no início do século XX. Ao transpor a imagem mul-
também depois, até hoje, no Brasil e alhures. ticor à mítica pureza do branco, o artista encena um ato similar
aos ataques feitos à imagem da santa em Aparecida e a algumas

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de suas réplicas, bem como às táticas de apagamento da negri- a performance perverte a sacralidade da imagem ao associá-la
tude na cultura brasileira. Desse modo, materializa desejos de a objetos e atos sexuais. Liberdade irreverente que explana a
variados grupos conservadores, aniquilando alguns de seus pre- sexualidade própria aos corpos humanos, o erotismo como ne-
feridos alvos: catolicismo, negritude, mulher, imagem, arte, outro. cessário e sagrado rito do corpo.
Assim como a santa ao ser ralada, o artista embranquece ao Mobilidade corporal que guarda memória de dor. Ao mudar de
cobrir-se de pó. Desse modo, corporifica o ideal que tanto ani- posição e ajustar os objetos ao corpo de quando em vez, exibin-
mou e ainda anima grandes parcelas da população brasileira: o do certo desconforto ao ralar a imagem, o artista remete às di-
branqueamento das populações nativas, de africanos e afrodes- ficuldades impostas ao trabalho servil no regime escravocrata.
cendentes, dos outros, de todas as pessoas com matizes dife- Aos corpos instrumentalizados, como os simples artefatos com
rentes da alvura ideal, do simbólico branco. Como ela e ele, a os quais os negros eram obrigados a trabalhar. Aparentemente
alteridade desaparece. sem forças, cansado ao final da performance, ele rememora a
Com Atos da transfiguração: Desaparição, ou receita de como exaustão a que eram levadas as pessoas escravizadas em pro-
fazer um santo, Antônio Obá nos obriga a ver como o negro é cessos de produção de muita riqueza com baixo investimento e
entendido, visto e tratado na sociedade brasileira e em outros alta exploração.
contextos socioculturais: próximo de um animal, potente, rentá- A pose final do artista, sentado sobre as pernas, com os bra-
vel, porém preguiçoso e indolente, que deve ser controlado, do- ços estendidos junto do corpo e expressão facial combalida –
minado, emasculado, branqueado, inviabilizado, enfraquecido, um ícone da inação –, pode ser tomada como mais uma expres-
morto, extinto. são do banzo, a nostálgica melancolia particular aos negros.
Mas desde que se entenda esse estado psicológico também
*** como recusa ao regime escravista, ao forçado desterro. Assim
como a incompletude das tarefas – a imagem não de todo rala-
Qual é o sentido, especialmente o artístico, de tirar da invisibili- da, o corpo com partes ainda por cobrir de pó – é uma resistên-
dade, fazer acontecer e deflagrar tantos preconceitos? Essas cia à violência inerente à ordem produtiva.
ideias e práticas são explicitadas não apenas com o sentido de O pó resultante do trabalho cai sobre um artefato aparente-
denúncia da violência persistente na sociedade brasileira. Nem mente insignificante. Contudo, a gamela de madeira têm outros
somente para pôr em discussão o que é comumente silenciado, sentidos, abrindo campos. É um objeto comum em terreiros de
ou para criticar o que nem é tido como existente, dado o mito da candomblé, onde é utilizada para ofertar comidas ao orixás. A
democracia racial no país. Explorando a ambiguidade de gestos, gamela de formato comprido usada pelo artista é particularmen-
coisas, seres e ideias, a performance também expõe e defende te usada para oferecer comidas a Xangô. Vínculo que é reforçado
outros valores em jogo no campo sociocultural. pelo nome do artista – Obá –, palavra que, em ioruba, significa
Não se pode deixar de ler a nudez do artista também como rei. Palavra usada no Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador, para de-
afirmação da força da negra corporeidade. Nu, o corpo negro signar um cargo existente na hierarquia litúrgica daquele terreiro,
exalta sua história própria, na qual aprendeu a cultivar a autos- ocupado por homens escolhidos para serem ministros de Xangô,
suficiência como atributo. assessores do orixá, intermediadores da divindade, da ialorixá e
A nudez e algumas ações do artista podem ser lidas como dos demais fiéis com a sociedade. Referências ao orixá vinculado
transgressões com a religiosidade. Desde a situação inicial, com à justiça entre os nagôs que permitem ver a performance como
a imagem da santa colada ao pênis, passando pelos movimen- um libelo por revisão, reparação, renovação sociocultural.
tos corpóreos quando é ralada, remissíveis à masturbação, até Mas Obá também é o nome de um orixá feminino: uma caça-
o intenso espraiar do alvo e fluido pó pelo corpo, como um gozo, dora também guerreira –uma modalidade do feminino que, em

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sociedades machistas, é geralmente associada ao que seria ex-
clusivo do universo masculino. Portanto, objeto e nome evocam
novamente a questão de gênero, seja na referência ao orixá que
questiona os atributos sociais do homem e da mulher, seja na
ambivalência entre orixá feminino e orixá ou cargo masculino.
Se a segunda e mais longa parte da performance consiste na
produção de pó branco, na parte seguinte esse pó é usado para
cobrir o corpo do artista. Procedimentos que podem ser compa-
rados à produção de efum, também um pó branco, com o qual
são cobertos seres, coisas e lugares em certos rituais no can-
domblé, inclusive ao “fazer um santo”. Branco que nas religiões
afro-brasileiras é associado a Oxalá, aos orixás funfun, à morte,
mas também à purificação. O que torna a performance quase
um ritual de passagem, de renascimento, indicando outro futuro.
Coisa, nome e cor aparentemente insignificantes que conec-
tam a performance às religiões afro-brasileiras, articulam o ca-
tolicismo, no qual o artista foi educado, ao candomblé – uma
mistura pouco estranha no Brasil. Incorporação da alteridade
que renova a prática de apropriação e acúmulo de referências
culturais outras, comuns desde o início da escravidão e que,
para muitos grupos africanos e seus descendentes no Brasil,
mais do que garantir a sobrevivência, era um modo de agregar
potência a quem o praticava.

***

No que denuncia, questiona e critica, Atos da transfiguração:


Desaparição, ou receita de como fazer um santo também é índice
de reação, resistência e contra-ataque social – o que amplia o
presente do qual é testemunho, voz, motor. No que propõe,
anuncia e corporifica, a performance de Antônio Obá poderia ser
vista como um indício de nova conjuntura, de outro futuro, se
não fosse contraditório pensar o índice como referente de algo
que o sucede e é, em boa parte, por ele gerado. Invisível é não
apenas a vigência do racismo, que a sociedade insiste em não
ver, é também o seu fim, que não deixam ser instaurado. Dando
visibilidade e corpo a outro horizonte sociocultural, essa perfor-
mance torna-se um indício do porvir. Um índice crítico e utópico,
como é próprio à arte.

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UNIVERSIDADE DO Organização
ESTADO DO RIO DE JANEIRO Inês de Araujo

Reitor Edição
Ruy Garcia Marques Inês de Araujo e Marcos Martins

Vice-Reitora Design
Maria Georgina Muniz Washington Marcos Martins

Sub-Reitora de Graduação Revisão


Tania Maria de Castro Carvalho Netto Ana Maria Grillo

Sub-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Fotos [páginas / autor]


Egberto Gaspar de Moura 21, 24, 28, 31  Flávia Viana

51 à 60  Livia Flores


Sub-Reitora de Extensão e Cultura
Elaine Ferreira Torres 63 à 65  Ana Alves

67 à 69  Amanda Vieira

73  Anaïs Karenin


DEPARTAMENTO CULTURAL
78 e 85  Francisco Moreira da Costa
Diretor
Ricardo Lima 103 e 108  Wilton Montenegro

112 e 113  George Magaraia

114  Gabriela Caspary


CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
117, 118 e 119  Bruno Awful
Diretor
Lincoln Tavares Silva 120, 121, 122 e 123  Cintia Faria

155, 160, 161, 163, 165 e 166  Lucia Vignoli

169, 170 e 171  Clara Machado


INSTITUTO DE ARTES
173, 174 e 175  Aline Besouro
Diretor
Alexandre Sá

Vice-diretor
Capa: Inês de Araujo, frame vídeo Páginas Viradas 2011
Filipe Ferreira

Este livro contou com o apoio CATALOGAÇÃO NA FONTE


da seguinte agência de fomento: UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH-B
Faperj – Apoio às universidade
Estaduais, 2014 I39 Indícios / Inês de Araujo [org.]. – Rio de Janeiro : UERJ,
(projeto Inês de Araujo) Instituto de Artes, 2016.
176 p. : il.

Rio de Janeiro
ISBN 978-85-63266-07-1
Instituto de Artes da Uerj
1. Ar tes moderna – Séc. X XI. 2. Ar tes – Pesquisa.
2016
3. Criação (Literária, artística, etc.). 4. Instalações (Arte).
I. Araújo, Inês de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Artes. III. Título.
CDU 7.036”21”

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