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Julián Fuks

Um dia sonhei que seria um escritor livre, um homem livre. Não sou. Um dia sonhei que seria
um sujeito pensante, astuto, profundo. Não fui. Já tive grandes ambições para mim, pensava que
escreveria sobre questões candentes da existência, que versaria sobre a morte e a vida, sobre os
afetos delicados, sobre as relações complexas. Ultimamente dedico larga parte da minha
experiência no mundo a assuntos um tantinho mais mundanos, acompanhando o descaminho de
valiosas joias sauditas, execrando um deputado de peruca e seu discurso criminoso, ou me
divertindo com mais uma derrota do Flamengo e seu técnico incompreendido.

Passo horas lendo distraídas mesquinharias e, quando por fim me sento para escrever, quando
enfim me disponho a explorar profundezas, a superfície intocada da página só me devolve
desdém. Vivo uma surpresa nada surpreendente: tudo me falta, ideia, loquacidade,
entendimento. Com desalento, com remorso, com uma acutilante vergonha de mim mesmo, me
deparo com um pequeno saber. Meu pensamento guarda os exatos contornos de tudo o que li, o
que vi, o que assimilei nesses dias de dissipação e alienamento. Minha mente definhou para se
fazer um receptáculo de palavras banais, equívocas, estúpidas. Nada tenho a escrever que não
seja pálida decorrência desses estímulos esquálidos e pouco transcendentes.

Acho que trago más notícias, ainda que intuitivas, incertas. Você é o que você come, diz um
bordão dos mais conhecidos. Eu me arrisco a extrapolar minha própria experiência e afirmar
que você pensa o que você lê, o que vê, o que entende. Se cada célula de seu corpo é composta
pela matéria que você ingeriu alguma vez, também cada sinapse deve ser efeito das ideias que
absorveu, cada pensamento próprio reverbera os pensamentos alheios que o atingiram. Alguém
poderia achar que isso o exime de culpa, que o torna mera vítima de um sistema de informações
insalubre. Pode ser, mas ainda assim é grande a responsabilidade pelas escolhas que vamos
fazendo dia a dia, sem muito ponderar, são imensas as consequências do que deixamos nossa
mente consumir.

O fato é que estamos quase todos saturados de informações irrelevantes, imagens torpes, textos
precários, análises fúteis. Sentimos com força a obrigação de nos mantermos informados sobre
as questões importantes da época, mas enquanto o fazemos nos empanturramos com as
banalidades da hora, sempre renovadas, vertiginosas, inesgotáveis. Daí a percepção que já se
espalha por toda parte de que precisamos de desconexão, de que só o vazio e o silêncio podem
nos salvar. Não apenas porque nos garantem algum descanso, alguma paz, mas porque
permitem que a mente recupere seu movimento habitual, que nela volte a prevalecer a boa
agitação do pensamento próprio.

Mas é mais do que o silêncio o que pode nos salvar. Há quem sugira que a literatura esteja
fadada ao desaparecimento num mundo abarrotado de palavras, num mundo que não lhe reserva
o devido espaço. Penso o contrário: que, como antídoto para esse excesso, a literatura nunca foi
tão essencial. Cada um encontrará a literatura em sua forma preferencial, um romance, um
poema, um filme, uma paisagem. Em qualquer caso poderá garantir a um só tempo um abrigo
da frivolidade e o silêncio necessário.

O que me salvou da inanição intelectual esta semana foi um pequeno volume de contos de
Katherine Mansfield, que por mero acaso surgiu na escrivaninha ao meu lado. Sem muita razão
ou cálculo me pus a ler um conto chamado "A festa", cujo tema parecia alegre e jovial, e cujo
estilo embalava com facilidade.

A princípio o que me atraía era o uso cuidadoso da imagem das flores, de rosas e margaridas e
lírios, um uso informado e reflexivo como eu jamais lera, tão destoante da aparição desenfreada
de flores pelo 8 de março, e do caloroso debate que suscitava. Pensei, então, que um homem
quando dá flores reais ou virtuais o faz como uma confissão de ignorância, quer se aproximar da
mulher a partir do que não capta. E pensei que era injusto condenar como fúteis as flores, se já
puderam render momentos marcantes da literatura como em Mansfield, Woolf, Lispector,
Fagundes Telles, e se já suscitaram também uma marcha das margaridas e uma revolução dos
cravos.

Mas o que pensei importa pouco, pode ser justo ou disparatado. O importante é que pensava,
que a leitura daquele conto provocava em mim o movimento que me faltava, a leitura me
despertava. Continuei a ler por horas e já não me moviam as flores, me movia a precisão livre
da linguagem daquela mulher, sua maneira surpreendente de versar sobre a vida e a morte, e as
relações complexas, os afetos delicados. E senti então que conseguia escrever, senti que devia
escrever, mesmo que fosse só para agradecer a essa mulher pelo que fez há mais de um século,
muito antes de tudo isso que hoje nos atormenta. Agradecer por suas ideias, que me devolveram
enfim às minhas próprias ideias.

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