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O MEU DIÁRIO

Acabei de deitar o João. Já estão todos a dormir.


Estou aqui sentado ao pé da lareira, e senti que o que vivi hoje era digno de aqui ser
escrito: ao jantar, o meu neto disse-me que estava a estudar a expansão portuguesa na
escola, e pediu-me que lhe contasse como foi fazer parte desta aventura. Já sabem que
quando começo a falar deste assunto não paro, e tenho sempre que contar tudo aquilo de
que ainda me lembro “tim tim por tim tim”. Mas pronto, lá comecei eu a contar-lhe…
“Tudo teve início – quer dizer, ainda me pergunto como é que fui escolhido para ser um
dos navegadores que levou os povoadores para a ilha Terceira, nos Açores, em 1450 – e
olha que não podia ter pedido melhor experiência para uma primeira navegação!
Durante a minha primeira viagem, o Orlando, navegador já com os seus 55 anos (segundo
o que ele diz, eu cá continuo a achar que já eram sessentas…), começou a falar da sua
também primeira navegação. Foi para Ceuta, em 1415, a primeira viagem do Orlando, ao
comando do rei D. João I, e do mundo. Contou-me que estava muito nervoso, aliás, todos
estavam: os burgueses ansiavam por novas mercadorias para comercializarem; a nobreza,
do ponto de vista do Orlando, só queria batatada, e alguns cargos e terras também não
calhavam mal; o clero dizia querer espalhar a fé cristã, mas o Orlando, da maneira que os
viu lutar, concluiu que, às tantas, eles também só queriam porrada; e o povo, coitado, nem
voto na matéria tinha, mas os teus livros vão te dizer que eles tinham a esperança de uma
vida melhor! Mas sobre todas estas vontades estava uma grande necessidade e motivação
de todo um país em descobrir mais, descobrir algo que os ajudasse a sair da crise em que
se encontravam. Mal chegaram lá, foi fácil dominar militarmente, mas do que os nossos
antepassados não estavam à espera era de que tivessem que esquecer tudo e voltar para
trás. Com os portugueses a dominar Ceuta, as rotas comerciais foram desviadas da cidade,
que para ajudar estava constantemente em guerra, originando elevadas despesas
militares e económicas. Ceuta foi também cercada pelos muçulmanos, o que não permitiu
a adesão dos portugueses aos campos férteis que a rodeavam, para a produção de cereais
de que a Europa tanto precisava. Resumindo, o Orlando disse que Ceuta foi uma boa
conquista a nível militar, já que a conquistamos sem qualquer dificuldade, mas a nível
económico foi um fracasso, oferecendo-nos apenas despesas.
Ah! Agora vem o reinado deste rei, não gostei nada dele. Já ouviste falar de D. Afonso V?
Vou-te contar o que ele fez. Tínhamos toda uma expansão marítima encaminhada, o Cabo
Bojador finalmente dobrado – não te preocupes que já te conto esta história – e o quê que
ele decide fazer? Voltar às conquistas no norte de África. Arrendou a exclusividade do
comércio com a costa africana a Fernão Gomes e voltou-me lá para cima, e ganhamos o
quê? Despesas.
Mas pronto, como depois da tempestade vem a bonança, agora vem, na minha opinião, o
melhor rei que já tivemos: D. João II.
Este, com a enorme ambição que tinha de chegar à Índia por mar, recuperou o
monopólio comercial, acabando o contrato com Fernão Gomes, que não gostou nada… E a
partir daqui eu já estava quase a fazer história, já estava com a armada que viria a dobrar
o Cabo das Tormentas.
Mas, enquanto isso não acontecia e andávamos lá pela costa africana, o José contou-me
um pouco do (re) descobrimento das ilhas atlânticas; eles gostam de contar conquistas
passadas durante as viagens, deve ser para dar sorte nas futuras. Contou-me que João
Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo (re) descobriram a Madeira
durante os anos de 1419 e 1420, e Diogo de Silves e Diogo de Teive todas as ilhas
açorianas, entre 1427 e 1452. Na altura, estes arquipélagos não serviram de muito, mas
futuramente vieram a dar muito jeito às viagens entre o Brasil e Portugal.
Depois foi a vez do Manuel, contou-me a história de persistência que foi a passagem do
Cabo Bojador. Tu acreditas que, depois de 12 tentativas, Gil Eanes conseguiu dobrar o
Cabo, em 1434? Qualquer pessoa teria desistido depois de 5, 7, 9 tentativas falhadas, e é
que não foram sequer 12 anos, o que também seria muito, foram 12 tentativas, com um
intervalo superior a um ano entre cada uma! Dobrar o Bojador, encarado, na altura, como
o fim do mundo – visto que vários por ali tentaram passar e nunca mais voltaram – e alvo
de várias lendas e mitos, instantaneamente não nos trouxe nada, a não ser o
reconhecimento mas, a longo prazo, foi esta passagem que nos abriu toda a navegação a
sul.
Entre Manéis, Josés, cabos, ilhas, e histórias, em 1487-1488, Bartolomeu Dias dobrou o
Cabo das Tormentas, que se viria a chamar Cabo da Boa Esperança. E isto poucos sabem,
mas fui eu a primeira pessoa a nomeá-lo assim. Esta passagem foi um misto de
sentimentos: orgulho, esperança, alegria… Nós, portugueses, vimos alcançado o momento
mais significativo para a descoberta do tão desejado caminho marítimo para a Índia.
Agora vêm os tratados, este Tratado de Tordesilhas, realizado em 1494, ainda me deixa
atoa. Com a chegada de Cristóvão Colombo à América (às Antilhas), mesmo pensando que
havia chegado à Índia, reacendeu-se a rivalidade luso-castelhana, pois segundo o Tratado
de Alcáçovas, assinado em 1479 – que dividia o mundo em duas partes, a norte das ilhas
Canárias era pertencente a Espanha, e a sul a Portugal – as Antilhas, descobertas a mando
do reino espanhol, estavam em território português, e nós é claro que as íamos reclamar.
Por influência do Papa, que era espanhol e, na altura, a pessoa com mais poder, foi-nos
proposta a assinatura de um novo tratado, o Tratado de Tordesilhas. Primeiro propuseram
a divisão do mundo em duas partes, com um meridiano que passaria a 100 léguas de Cabo
Verde. Mas não foi isso que aconteceu, vem agora a parte mais enigmática disto tudo: D.
João II não aceitou as 100 léguas, pediu mais 270, ou seja, 370 léguas a partir de Cabo
Verde. Os espanhóis, achando que tudo o que havia nas 270 léguas pedidas era água,
aceitaram, e assim foi assinado o tratado. Futuramente, foram estas léguas a mais que
mantiveram o Brasil em território português, permitindo-nos a sua posse. Impossível tudo
isto ter sido coincidência ou sorte, porquê que ele pediria assim mais água? Ele sabia mais
do que dizia, cá para mim sabia até da existência do Brasil…
Ai, e agora, uma tristeza, a prova de que esta vida é injusta… Mesmo com todos os
esforços realizados, D. João II morreu em 1495, sem ver concretizado o seu grande
objetivo: descobrir o caminho por mar para a Índia. Naquela altura já tínhamos reunidas
todas as condições necessárias para lá chegar – depois de Bartolomeu Dias ter mostrado
que era possível alcançar o oceano Índico contornando África, em 1487, Pêro da Covilhã e
Afonso de Paiva realizaram uma viagem confidencial: foram a pé, para chegando lá não
chamarem à atenção, até à Índia, onde se informaram acerca das condições de
navegabilidade no oceano Índico, e do comércio das especiarias. Hmmmm, espertinhos! Já
no reinado de D. Manuel I, Vasco da Gama parte de Lisboa, em julho de 1497, e chega à
importante cidade de Calecute, por mar, em maio de 1498. As coisas não correram bem
como estávamos à espera: não fomos recebidos da maneira que queríamos e
esperávamos, mas isso vou deixar para o teu professor te explicar. Inauguramos assim a
rota do Cabo que liga a Europa à Ásia maritimamente.
Vem agora a minha última e mais importante parte da história – é agora que irás
perceber porquê que te digo que eles já sabiam da existência do Brasil. Em 1500, com o
intuito de afirmar a presença portuguesa na Índia, D. Manuel I enviou uma poderosa
armada composta por 13 navios, e eu fazia parte da sua tripulação de 1500 homens. Aliás,
eu não fazia só parte da tripulação, eu era um escrivão desta armada entregue a Pedro
Álvares Cabral. O que se sabe da história é que Pedro seguiu a rota indicada por Vasco da
Gama, mas por algum motivo desconhecido, a armada desviou-se para sudoeste,
avistando o Brasil, em abril de 1500. Na verdade, o que aconteceu foi que, a certa altura,
durante o percurso, Pedro Ávares Cabral disse-me a mim, o escrivão, para que parasse de
escrever no diário de bordo. Eu, claro, obedeci, mas sei o que vi e ouvi: a armada foi
desviada da sua rota propositadamente, já que eles sabiam da existência do Brasil, e ir até
lá foi, desde sempre, o plano inicial. Foi assim descoberto o Brasil, na altura chamado de
Vera Cruz, em 1500.
E pronto, a minha história aqui acabou, voltei para Portugal – a idade não perdoa -, e
aqui estou. Faz-me bem escrever e recordar todos estes tempos de alegria que vivi. Agora
vou mas é dormir, que amanhã é dia de pica no boi, acordar cedo para trabalhar.”

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