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Sobre Ontens

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ISSN 2176-1876

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COMISSÃO EDITORIAL
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Prof. Caroline Antunes Martins Alamino [UFSC]
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Periódico produzido e promovido pelo


CONTRIBUIÇÕES DA PRIMEIRA EXPEDIÇÃO MARITÍMA DE
VASCO DA GAMA PARA PORTUGAL

Ana Flávia Crispim Lima


1
Resumo:
Com a queda dos bens produzidos na zona rural no século XV, o mercado interno
europeu passou por sérias complicações econômicas. Para evitar gastos com
negociações de mercadorias vindas do Oriente, os europeus precisavam procurar rotas
alternativas para encontrar o caminho até as Índias. Esta pesquisa reúne algumas
reflexões acerca da primeira expedição de Vasco da Gama, durante o reinado do rei
Manuel I de Portugal, onde os portugueses chegaram à Calicute em 1498.
Especificamente, apresentaremos uma análise do “Diário de Viagem de Vasco da
Gama”, que foi escrito por Álvaro Velho que estava a bordo da navegação. Este feito
foi importante para Portugal conseguir criar uma nova rota comercial.
Palavras-chave: Expansão Marítima; Vasco da Gama; Álvaro Velho.

Summary:
With the fall of goods produced in the countryside in the fifteenth century, the
European internal market has undergone serious economic complications. To avoid
spending coming from the Middle goods negotiations, the Europeans needed to seek
alternative routes to find the way to the Indies. This research brings together some
reflections on the first expedition of Vasco da Gama, during the reign of King Manuel I
of Portugal , where the Portuguese arrived in Calicut in 1498. Specifically, we present
an analysis of the " Vasco da Gama Travel Diary " , which it was written by Alvaro Velho
who was on board navigation . This achievement was important for Portugal be able to
create a new trade route.
Keywords: Maritime Expansion; Vasco da Gama; Álvaro Velho .
Introdução:

O sucesso da empreitada de Vasco da Gama havia transformado Lisboa da


cidade à margem do mundo em um centro comercial que rivalizava com
os mais ricos entrepostos do Oriente. No Diário de Bordo, provavelmente 2
descrito por um navegante, chamado Álvaro Velho, podemos notar a
abordagem da principal conquista marítima dos portugueses: a chegada
da expedição de Vasco da Gama à Índia, em 1498. Este documento nos
permite observar a importância de sua primeira navegação para a
produção do conhecimento científico, a fim do aperfeiçoamento das
viagens, tornando as rotas oceânicas mais rápidas, seguras, eficientes e
lucrativas.
Para Santos e Silva (1999:11) a viagem de Vasco da Gama não abriu
somente o caminho às Índias, mas contribuiu com o aumento da
República Cristã e para a formação da Europa. Irei descrever alguns
pontos do trajeto da primeira viagem de Vasco da Gama, expondo, ao
final, quais foram as repercussões desta primeira expedição para a
evolução de Portugal.
Vasco da Gama nasceu em Sines, perto do Atlântico, por volta de 1465. No
ano de 1496 era um homem " de meia estatura, um pouco envolto em
carne, cavaleiro de sua pessoa, ousado em cometer qualquer feito, no
mandar áspero e muito para temer em sua paixão, sofredor de trabalhos e
grande executor no castigo de qualquer culpa por bem da
justiça"(FONSECA,1997:8). Em 1496 D. Manoel chamou Vasco da Gama à
sua Corte e lhe disse que preparasse para partir em busca do Cabo e do
caminho à Índia. Então "Vasco da Gama beijou a mão do seu senhor pela
honra, elevada e perigosa, que lhe conferia. Depois pediu que ao irmão
Paulo se entregasse o comando de um dos seus navios"
(SANCEAU,2013:61).
Após todos os preparos, a partida da expedição ocorreu em 8 de julho de 3

1497. Quatro navios desembarcaram: São Gabriel no comando do capitão-


mor Vasco da Gama, na caravela São Rafael, sob o comando de Paulo da
Gama, irmão do Capitão-mor. Já no São Miguel, Nicolau Coelho foi o
escolhido, e a nau dos mantimentos Gonçalo Nunes. O número
aproximado de viajantes "que terão saído de Lisboa, foi entre 150 e 170
homens"(FONSECA,1997:85). Tudo o que se passou desde a partida de
Lisboa até o retorno da expedição foi retratado no Diário de Bordo de
Álvaro Velho, que estava na empreitada. O registro no Diário inicia sua
escrita onde podemos notar a influência religiosa no autor:
Em nome de Deus, amém. No ano de 1497, el-rei D. Manoel,
o primeiro com esse nome em Portugal, enviou quatro navios
em viagem de descoberta, em busca de especiarias. [...]No
sábado, 8 de julho, partimos do porto de Restelo, para seguir
nosso caminho – rogando que Deus Nosso Senhor, nos
deixasse acabar a Missão ao seu Serviço. (VELHO, 1998:41)

O primeiro contato com territórios após a partida ocorreu no dia 8 de


novembro de 1497, onde após a sondagem de Pero de Alenquer, sob
ordens do capitão-mor, lançaram âncora na baía, e permaneceram por
oito dias. A batizaram de Baía de Santa Helena (localizada no meio do
Atlântico Sul, atribuída aos territórios africanos), e nesse lugar, Velho
descreveu o seu primeiro contato com os outros povos:
Na baía de Santa Helena, há homens baços [morenos] que
não comem senão lobos-marinhos, baleias, carne de gazelas e
raízes de ervas. Andam cobertos com pele e usam umas cintas
de couro em suas vergonhas. Suas armas são uns cifres
torneados, metidos em varas de azambujo, e têm muitos
cães, iguais a de Portugal, e que ladram como eles. As aves
desta terra são também como as de Portugal: corvos 4
marinhos, gaivotas, rolas, cotovias, dentre outras. A terra é
muito sadia e temperada, e possui boas ervas.

Em 10 de novembro, vieram cerca de 15 nativos até os navios. O capitão


foi até eles, e mostrou algumas mercadorias para saber se já haviam tido
contato com aquelas mercadorias (canela, cravo, pequenas pérolas e
ouro). No entanto, eles não demonstraram conhecer nada do que lhes foi
mostrado. No domingo seguinte, aproximaram-se cerca de 50 deles, onde
dessa vez, trocaram algumas mercadorias, como objetos que traziam na
orelha, assemelhando-se ao cobre. (VELHO,1998:40)
Nesse mesmo dia, Fernão Veloso, que estava na expedição de Gama,
insistiu para que o capitão o liberasse como o objetivo de partir com os
negros, pois queria conhecer um pouco da vida que viviam. O Capitão
concede a permissão e Fernão parte com eles. Logo que afastaram da
embarcação, os nativos assaram um animal e deram de comer para o
visitante, e em seguida, disseram-lhe que retornasse para o navio pois não
queriam que os acompanhassem. Fernão volta correndo e os negros o
seguem. Quando os portugueses tentaram recolhe-lo ao barco, os
autóctones começaram a atirar com suas zagaias, e quatro homens foram
feridos, dentre eles, Vasco da Gama. Velho (1998:45) diz que o erro
cometido foi confiarem neles, por aparentarem serem homens de pouca
coragem, incapazes de cometerem o que depois fizeram, e por isso, não
levaram armas com eles ao se aproximarem.
Atravessaram o Cabo da Boa Esperança, na atual África do Sul, no dia 22
de novembro de 1497. Em 25 de novembro, entraram na Baía de São Brás,
onde lá permaneceram por 13 dias. Seis dias após se instalarem na Baía, 5

vieram cerca de 90 homens. Desta vez, eles seguiram para a terra em


batéis carregados de armas, e quando aproximaram, o capitão começou a
jogar guizos e eles logo se puseram a pega-los, algo que surpreendeu os
lusos, pois quando Bartolomeu Dias fez isso em sua expedição, eles não
pegavam nada que lhes foi oferecido.
Após o capitão-mor e os outros capitães saírem em terra com gente
armada, mandou que algum deles se aproximasse, e o presenteou com
cascavéis e barretes vermelhos, e eles retribuíram com manilhas de
marfim que traziam em seus braços. Para certificar de que não cometeria
o mesmo erro de superestimar a reação dos nativos, o capitão:

[...] mandou que saíssemos em terra com lanças, zagaias,


bestas armadas, e com os gibanetes [coletes acolchados]
vestidos. Tudo isso para lhes mostrarmos que éramos
poderosos e que lhes poderíamos fazer mal se quiséssemos,
mas que não o queríamos.(VELHO, 1998:49)

Em 6 de dezembro, colocaram uma cruz na baía de São Brás, que fizeram


de um mastro, e era muito alta. No dia seguinte, quando estavam se
preparando para partir da baía, avistaram uns 12 negros que derrubaram
a cruz, mostrando que havia sempre que possível uma resistência por
parte dos nativos à intervenção portuguesa. Em 16 de dezembro passaram
pelo último lugar que Bartolomeu Dias havia chegado, que era o rio do
Infante. A partir de então, todos os lugares passados eram novidades para
os portugueses, tornando a sua viagem cheia de expectativas e mistérios.
No dia 10 de janeiro pararam em um rio pequeno ao longo da costa. No 6

dia seguinte, foram em batéis para a terra onde encontraram vários


homens e mulheres altos e negros, e dentre eles havia um chefe. Quando
necessitava de alguém para ir investigar o lugar, o capitão buscava enviar
quem soubesse tratar bem e entender o que os nativos falavam:

O capitão-mor mandou Martin Afonso, que estivera em


Manicongo por muito tempo, e outro homem descerem à
terra. [...] O capitão mandou que entregassem ao senhor uma
jaqueta, umas calças vermelhas, uma carapuça e uma
manilha. (VELHO,1998:52)

Em agradecimento o chefe da tribo lhes deu uma excelente recepção, se


prontificando a dar de tudo que fosse necessário e que houvesse em sua
terra. Nesse lugar permaneceram por 5 dias (de 11 a 16 de janeiro), sendo
muito bem recebidos e admirados pelos nativos. Álvaro descreve essa
terra, que foi batizada de Terra de Boa Gente:

Esta terra, segundo nos pareceu, é muito povoada, e há nela


muitos soberanos. Parece haver mais mulheres do que
homens, porque onde se vinham 20 homens, vinham 40
mulheres. As casas são de palha. Armas desta gente são arcos
muito grandes, flechas e azagaias de ferro. Segundo nos
pareceu, há por aqui muito cobre, que eles trazem retorcidos
nas pernas, pelos braços e cabelos. Também há muito
estanho, que eles usam numas guarnições de punhais cujas
bainhas são de marfim. (VELHO, 1998:53)

7
Em 22 de janeiro seguiram pelo mar, onde avistaram uma terra muito
baixa, com altos arvoredos, onde mais adiante encontraram um rio, e
neste se estabeleceram por 32 dias. Depois de dois dias de estadia, dois
soberanos da terra foram vê-los acompanhados de um jovem que dizia já
ter visto navios grandes como aqueles. Neste local, vários homens
adoeceram durante o período em que ali residiam. "Os pés e mãos
inchavam, e as gengivas cresciam tanto sobre os dentes que não podiam
comer." (VELHO,1998:55) Neste relato, temos o primeiro registro durante
as grandes navegações de Escorbuto. No domingo 25 de fevereiro, eles
avistaram três pequenas ilhas (hoje Moçambique). A ilha de Moçambique
também foi descrita por Álvaro Velho:

Os homens desta terra, ruivos e de bons corpos, são da seita


de Mafamede e falam como mouros. Suas vestimentas são de
panos de linho e de algodão, muito finos, e de muitas cores,
de listras, e são ricos e lavrados [coloridos pomposos e
bordados].(VELHO, 1998:56-57)

Eram mercadores que negociam com mouros brancos, dos quais haviam
quatro embarcações instaladas naquele lugar. Negociavam ouro, prata,
tecidos, cravo, pimenta, gengibre, anéis de prata, com muitas pérolas,
aljôfar e rubis, que eram transportadas pelos mouros. Neste lugar da ilha,
estava um Senhor que eles chamavam de Sultão, que era como um vice-
rei, onde ele e o capitão-mor trocaram refeições e objetos. Um outro
contato com povos não europeus ocorreu no dia 11 de março. Nicolau
Coelho entrou em uma ilha, sendo bem recebido pelo senhor da terra,
pois pensavam que os navegantes eram turcos ou mouros: 8

Já em terra, levou até a sua casa os que iam com ele e os


convidou a entrar. Mais tarde disse que voltassem e mandou
a Nicolau Coelho um pote de tâmaras pisadas, que tinham
conservas de escravos e cominhos. Depois mandou ao
capitão-mor muitas outras coisas. Tudo isso foi enquanto lhes
parecia que éramos turcos ou mouros de alguma outra parte,
[...] Depois que souberam que éramos cristãos, ordenaram
que nos capturassem e matassem à traição. (VELHO, 1998:59)

O primeiro confronto entre a embarcação de Vasco da Gama e os árabes


ocorreu em 24 de março. Mesmo com a vantagem dos portugueses por
causa do armamento, a disputa foi muito acirrada:

[...] com os batéis armados e bombardas nas popas, fomos


para a aldeia. Os mouros haviam feito paliçadas compactas,
com muita madeira atada, de modo que não podíamos ver os
que estavam por trás delas. Eles andaram ao longo da praia
com tavolachinhas, azaguaias, agomias, arcos e fundas, com
que nos atiravam pedras. (VELHO,1998:61)

Os lusos capturaram alguns dos mouros e mataram dois deles, já os


mouros conseguiram deter dois cristãos índios e um negro, que conseguiu
fugir deles. Seguindo caminho, partiram em busca de uma cidade que se
chamava Moçamba:

Esta era uma ilha que estávamos procurando, a qual os


pilotos que trazíamos que era [habitada por] cristãos.
9
Arribamos à tarde, com muito vento. [...] Segundo os pilotos
mouros que levávamos, havia ali uma vila de cristãos e outra
de mouros. (VELHO, 1998:63)

Em 7 de abril, uma nau chegou, com cerca de 100 homens, próximo ao


capitão-mor, querendo embarcar com as armas que estavam carregando.
Contudo, só foi autorizada a entrada de quatro ou cinco deles, e com os
lusos, permaneceram por duas horas e depois partiram. Velho(1998:67)
diz que a impressão que eles passaram nesta visita, era de que vieram
para averiguar se eram capazes de tomar algum dos navios. No dia
seguinte o rei de Moçamba enviou presentes e dois homens que diziam
ser cristãos para o capitão-mor, que retribuiu enviando um colar de corais,
dizendo que entraria a porto no dia seguinte e juntamente com eles e
quatro mouros dos "mais honrados" passaram a noite na embarcação.
Para conhecer as propostas do rei, enviou dois homens que foram muito
bem recebidos pelos moradores e pelo o rei, que mandou que lhes
mostrassem toda a cidade e ainda entregou varias amostras de
mercadorias que possuíam.
Os pilotos que vieram de Moçambique lançaram-se a água, sendo
acolhidos pelos mouros que estavam no bote. Após torturar os dois
mouros que estavam com eles, o capitão conseguiu informações sobre o
plano que tramavam. Mas como foram descobertos, desistiram da trama.
Partiram no dia 13 de abril, e ao amanhecer do dia seguinte, avistaram
dois barcos perto deles e decidiram capturar as embarcações,
conseguindo prender uma delas. No barco conseguiram várias coisas,
apoderando-se de pessoas, riquezas e mantimentos. "encontramos 17 10

homens, ouro, prata, muito milho e mantimento. Levavam também uma


moça, mulher de um homem velho, mouro honrado, que também ia no
barco."(VELHO, 1998:69)
Em 14 de abril lançaram âncora em frente a Melinde. Os mouros que
mantinham cativos disseram que se os levassem até a bordo, os
substituiriam por índios cristãos. No dia seguinte o rei deixou que um
velho mouro fosse até a cidade, com o objetivo de ir ao encontro do rei
para expor as propostas de Vasco da Gama. O senhor fez o que foi
combinado, e a noite retornou ao navio trazendo boas notícias, no qual o
rei propunha a paz entre eles. O capitão se encontrou com o rei no mar,
onde depois foi convidado a descer em terra, mas Gama sempre recusava,
alegando que não tinha permissões do rei de Portugal para realizar tal
feito. Nessa cidade encontraram cristãos, onde os deixaram muito felizes.
Esses cristãos insistiam em dizer ao capitão que não confiasse nos mouros.
O rei enviou um piloto cristão e recebeu em troca, um mouro que estava
sob os comandos dos lusos. Prosseguiram a viagem e em 20 de maio
chegaram a Calicute. Quando, através de um intérprete, começam a
manter relações com os nativos, disseram que o objetivo deles era uma
busca de cristãos e especiarias. No diálogo podemos notar que os
Espanhóis, franceses e os venezianos já tinham vínculos com os nativos de
Calicute:

Perguntaram-lhe o que vínhamos buscar de tão longe, e ele lhes


respondeu:
11
-Viemos buscar cristãos e especiarias.
-Porque não mandam cá el-rei de Castela e el-rei da França e a Senhoria
de Veneza -perguntaram-lhe então. (VELHO, 1998: 75)

Quando chegaram a Calicute, o capitão enviou dois homens para irem ao


Samorim dizer que um embaixador de Portugal estava a sua espera e que
trazia muitas cartas do rei de Portugal. O Samorim os convidou para irem
até ele, onde escalou pessoas para os levarem. Antes disso, eles foram
levados em alguns lugares da cidade, sempre estiveram rodeados de
nativos que queriam conhecê-los:

Aqui cresceu tanto o número de pessoas que nos vinham ver,


que já não cabiam pelo caminho[...] Era tanta gente pelo
caminho que não era possível contar. Os telhados e casas
estavam todos cheios[...] Quanto mais nos aproximávamos do
paço (palácio) onde el-rei estava, mas gente aparecia.
(VELHO, 1998:80)

Enfim chegaram ao palácio, onde o capitão foi recebido por "homens


muito honrados e grandes senhores" (VELHO,1998:81). Ao adentrarem,
tiveram que passar por várias portas no qual foram recebidos por um
"velho baixo, que tem a função semelhante à de um bispo – e é ele quem
orienta o rei nas coisas da igreja"(velho,1998:81). Ao se encontrarem com
o rei, Álvaro descreve um pouco das tradições dos nativos de Calicute:

Logo ao entrar, o capitão fez sua reverência, segundo hábito


daquela terra, a qual é juntar as mãos e levantá-las para o
12
céu, como costumam os cristãos levantá-las a Deus; depois
abrem-nas e cerram os punhos muito acima. O capitão,
porém, não se aproximava dele, porque é costume da terra
não chegar nenhum homem junto ao rei, a não ser o criado,
como o que estava lhe dando as ervas. Quando algum homem
lhe fala, tem a mão ante a boca e fica afastado.

Depois de um tempo observando o capitão e os seus homens, o Samorim


começou a questionar a razão deles estarem em suas terras, mas o
capitão disse que a mensagem deveria ser dita somente a ele. Assim que
se encontraram sozinhos, Vasco começou a expor seus objetivos:
Encontrar o rei dos cristãos que havia ali, e quando o encontrasse,
entregasse duas cartas que enviara o seu rei lusitano. Depois de horas de
conversas, o rei demonstrou interesse e hospitalidade, ordenando que
seus servos arrumassem lugares para estes passarem a noite. As cartas
foram entregues no segundo encontro entre o capitão e o rei, que ocorreu
no dia 30 de maio. Após a leitura de intérpretes, ele ficou muito
entusiasmado com o que o rei de Portugal dizia, e logo perguntou se
trouxeram alguma mercadoria para venderem. permitindo a venda em
suas terras, no qual Vasco instalou uma feitoria no território.
Chegando o dia do retorno à Portugal, Vasco enviou ao el-rei uma
quantidade de presentes, perguntando se ele gostaria de enviar alguns
dos seus homens para o rei de Portugal, avisou das pessoas que deixou na
feitoria, pedindo também, amostras de mercadorias para levar à Europa.
O rei respondeu a mensagem dizendo que deveria deixar 600 xarafins,
como era de costume ali. Diogo Dias, o mensageiro enviado, disse que
levaria o aviso ao capitão. 13

Quando chegou a casa que estavam as mercadorias, foi cercado por


homens que o seguiram para interromper a saída. No entanto, ao ver que
estava preso, Diogo conseguiu enviar um moço negro que estava com ele
e que foi até às embarcações para informar o que estava acontecendo
com eles. A reação dos navegadores não foi agradável:

Ficamos todos muito tristes por saber que alguns homens


estavam nas mãos dos inimigos e pelo grande contratempo
que isto representava para nossa partida. Entristecia-nos
também ver um rei cristão nos fazer tanta desfeita, ainda
mais a um homem que dava do que era seu. (VELHO,
1998:94)

No meio dessa tensão, depois de dois dias, veio uma almadia com quatro
pessoas, e como o capitão os recebeu com generosidade , todos os dias
seguintes, a cada dia que se passava, vinham mais pessoas para o navio.
Em 19 de agosto, vieram cerca de 25 homens, onde Vasco da Gama notou
que 6 deles eram honrados. Capturou ao todo 19 pessoas, mandando o
restante para a terra, com o objetivo de ter de volta os seus homens que
estavam presos em Calicute.
Quando o Samorim soube do ocorrido com os homens da sua terra,
mandou que chamasse Diogo Dias, onde o recepcionou muito bem, e
propôs que ele deveria ir de encontro com Vasco e mandar soltarem os
seus homens, pois poderiam estabelecer sua feitoria, mas deveria deixar
com ele Diogo Dias. Mandou também uma carta ao rei D. Manuel I: 14

Vasco da Gama, fidalgo de vossa Casa, veio a minha terra;


com o qual eu folguei. Em minha terra há muita canela e
muito cravo, e gengibre, e pimenta, e muitas pedras
preciosas. E o que quero de tua é ouro e prata, e coral, e
escarlata.(VELHO, 1998:97)

Assim que Diogo retorna ao navio, o capitão decide não cumprir a ordem
de el-rei, devolvendo somente seis homens que estavam com ele, e
quando viu que não havia meios de recuperar a sua mercadoria decidiu
partir de volta para Portugal, levando o restante dos homens com ele.
Avisou para que aguardasse, pois ele esperava voltar em breve a Calicute
onde eles descobririam se os lusos eram ou não ladrões, como eram
acusados pelos mouros.
Vasco da Gama iniciou a viagem de regresso a 29 de agosto de 1498. No
dia seguinte, notaram que estavam sendo seguidos por cerca de 70
barcas, que ao irem de encontro ao navio, passaram a atirar com as suas
armas. O capitão e os outros também revidaram, ficando nisso por volta
de uma hora e meia. No entanto, começou a chover e acabou levando o
capitão e os seus homens para o mar, colocando fim a esse conflito.
Na viagem de ida, cruzar o Índico até à Índia com o auxílio dos ventos de
monção demorara apenas 23 dias. A de regresso, navegando contra o
vento, consumiu 132 dias, tendo as embarcações aportado em Melinde a
7 de janeiro de 1499. Nesta viagem cerca de metade da tripulação
pereceu, e muitos dos que sobraram foram severamente atingidos pelo 15

escorbuto, "por isso dos homens que ingressaram na armada,


aproximadamente 55 regressaram a Portugal". (VELHO,1998:123) Apenas
duas das embarcações que partiram do Tejo conseguiram voltar a
Portugal, chegando, respectivamente em Julho e Agosto de 1499. A
caravela Bérrio, sendo a mais leve e rápida da frota, foi a primeira a
regressar a Lisboa, onde aportou a 10 de Julho de 1499, sob o comando de
Nicolau Coelho e tendo como piloto Pêro Escobar, que mais tarde
acompanhariam a frota de Pedro Álvares Cabral na viagem em que se
registrou o "achamento" do Brasil em abril de 1500.
Vasco da Gama regressou a Portugal em setembro de 1499, um mês
depois de seus companheiros, pois sepultou seu irmão mais velho, Paulo
da Gama, que adoecera e acabara por falecer na ilha Terceira, nos Açores.
No seu regresso, foi recompensado como o homem que finalizara um
plano que levara oitenta anos a cumprir. Recebeu o título de "almirante-
mor dos Mares das Índia", sendo-lhe concedida uma renda de trezentos
mil réis anuais. Após ver que as expedições de Vasco da Gama estavam
gerando grandes lucros para o seu território, o rei D. Manuel I, assim
como o seu pai queria "espremer o oceano Índico até a última gota, até
que este se tornasse um purificado lago cristão."(CLIFF,2012:286)
A eficiência nos barcos enviados às empreitadas colaborou com o
crescimento de Portugal, pois os navios foram construídos na cidade do
Porto, que ficou considerado um ativo centro de construção naval durante
os séculos XV e XVI, o qual foi usado pelos reis portugueses para criar
embarcações modernas (BARROS,2006:131). A grande capacidade dos 16

armadores locais foi definitiva na escolha dos estaleiros do Porto que


fizeram os primeiros barcos que viajaram até à Índia, pioneiros das naus
do século XVI.
A descoberta da rota que levava os portugueses para comprar
mercadorias diretamente das Índias contribuiu com a economia do país. O
"comércio interno provou ser mais rentável do que a longa rota do cabo, e
os portugueses logo ultrapassaram os comerciantes muçulmanos na Ásia.
E no século XVI, a língua portuguesa tinha substituído o árabe como
idioma de comércio nos portos em todo o Oriente."(CLIFF,2012:286)

Referências:
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Vasco da Gama. In: ______. O Bestiário como Representação da Memória
Em Peregrinação de Barnabé das Índias de Mário Cláudio. 2013. 223 f.
Dissertação (Mestrado em Letras). Programa de Pós-Graduação em Letras,
Universidade Federal de Viçosa. Viçosa, 2013.
BARROS, Amândio Jorge Morais Barros. O Porto e a construção dos navios
de Vasco da Gama. In:______. Estudos em homenagem ao Professor
Doutor José Marques, vol. 1, 2006. 131-141p.
CLIFF, Nigel. Guerra santa : como as viagens de Vasco da Gama
transformaram o mundo. Tradução Renato Rezende. São Paulo : Globo,
2012.
FONSECA, Luís Adão da . Vasco da Gama. O homem, a viagem, a época. 1.
ed. Lisboa: Expo 98, 1997. v. 1. 362p. 17

HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Lisboa/Rio de


Janeiro:Ulisséia, [s. d.].
LOPES, Paulo. Os Livros de Viagens Medievais. Medievalista Online,
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LOYN, Henry R. Dicionário da Idade Média. Tradução Álvaro Cabral. Rio de
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DELICADEZA E VIRILIDADE NO FRONT: REPRESENTAÇÕES DE
GÊNERO EM CARTÕES-POSTAIS FRANCESES NO CONTEXTO DA
PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL (1914-1918) 1
Ana Regina Praxedes Fernandes 2
1

Resumo: A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi palco de conflitos que


estenderam-se das unidades de poder institucionalizadas até o campo das ideias e
representações, construídas mediante o diálogo entre a realidade vivida e a realidade
pensada. Essas representações não são discursos neutros e nem a verdade única
acerca do passado, visto que estão submetidas às intencionalidades da conjuntura em
que foram construídas. Também configuram-se como um campo de disputa a partir da
seleção do que será falado/lembrado e do que será silenciado/esquecido. No entanto,
essas representações são valiosas vias de acesso aos diferentes modos de pensar,
sentir e agir no mundo. Neste sentido, os discursos de gênero, sendo estes a
construção sociocultural variável das categorias feminino e masculino, deram-se
através dos embates entre permanências e rupturas em função de uma nova
caracterização dos papéis e posições sociais assumidas por homens e mulheres. Sendo
assim, o presente estudo tem como propósito a análise iconográfica e iconológica de
representações imagéticas veiculadas em cartões-postais franceses no referido
contexto. Objetiva-se compreender a construção social dos discursos de gênero
expostas por intermédio da comunicação não-verbal.
Palavras-chave: Cartões-Postais; Representações; Gênero.

1
Artigo final da pesquisa de iniciação científica dada entre agosto de 2014 e julho de 2015 na
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), com subsídio do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e orientação de Marco Antonio Stancik (DEHIS-UEPG).
2
Graduanda de bacharelado em História na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e integrante
do projeto de pesquisa continuada “História e Imagens: discursos imagéticos e representações”.
Resumen: La Primera Guerra Mundial (1914-1918) fue escenario de conflictos que se 2
extenderan de las unidades de poder institucionalizadas a lo campo de las ideas y
representaciones, construidas mediante el diálogo entre la realidad vivida y realidad
pensada. Estas representaciones no son discursos neutros ni la única verdad sobre el
pasado, ya que están sujetas a las intencionalidades de la coyuntura en que fueron
construidas. También configurarse a sí mismo como un campo de juego de la selección
de lo que se hablará / recordará y de lo que va a ser silenciado / olvidado. Sin
embargo, estas representaciones son valiosos medios de acceso a las diferentes
formas de pensar, sentir y actuar en el mundo. En este sentido, el discursos de género,
siendo estas la construcción sociocultural variable de las categorías femenino y
masculino, han renunciado a través de los enfrentamientos entre continuidades y
rupturas debido a una nueva caracterización de los roles sociales y las posiciones
adoptadas por los hombres y las mujeres. Por lo tanto, este estudio tiene como
propósito la análisis iconográfica y iconológica de las representaciones imaginistas
transportadas en postales francesas en ese contexto. El objetivo es entender la
construcción social del discursos de género expuestos por medio de la comunicación
no verbal.
Palabras clave: Tarjetas postales; Representaciones; Género.
Introdução
A Primeira Guerra Mundial, ocorrida entre 1914 e 1918, opôs o
mundo entre a Tríplice Entente (França, Grã-Bretanha, Rússia) e a Tríplice
Aliança (Alemanha, Itália, Império Austro-Húngaro), tendo como desfecho 3

o êxito da primeira. Como os homens eram direcionados ao campo de


batalha, o mercado de trabalho sofria escassez de mão-de-obra e muitas
famílias passavam por necessidades financeiras. Assim sendo, as mulheres
assumiram novas posições sociais, descobriram novos espaços de
liberdade e tiveram acesso a novas formas de expressão (FERRO, 1984;
KEEGAN, 2004; PERROT, 2005).
Essas configurações do feminino e masculino, categorias de gênero
construídas mediante critérios sociais volúveis (TILLY, 1994; SCOTT, 1995),
influenciaram não apenas a verbalidade da época como também a
comunicação não-verbal, dada nas imagens que eram veiculadas em
jornais, revistas e, no caso em estudo, cartões-postais. Essa circulação de
cartões-postais no período da Grande Guerra foi intensa e eles eram
compostos por imagens temáticas do contexto em que foram produzidos,
sendo alguns retratos fotográficos com retoques em cor e tantos outros
com expressiva composição artística. Considerando que esses cartões-
postais são vestígios do passado, assim como o passado selecionado para
ser lembrado - em alusão ao conceito de imagem documento e imagem
monumento de Le Goff (apud: MAUAD, 1996) - suas imagens são discursos
sociais.
De acordo com estes pressupostos, indaga-se como as relações de
gênero são representadas nos cartões-postais franceses da Primeira
Guerra Mundial (1914- 1918). Assim sendo, tem-se a possibilidade de
exposição das relações de gênero segundo fontes históricas em que estão
inseridos referenciais de pensamentos e questões tão subjetivas do ser 4

que, por vezes, não são suscitadas e acessíveis aos pesquisadores através
de outros documentos. Deste modo, o seguinte estudo tem como objetivo
central a análise de imagens fotográficas presentes em cartões-postais
franceses veiculados no referido período e que discorrem sobre tal
temática com o propósito de compreender os modos de pensar, sentir e
agir nessa realidade.

Fontes e Metodologia
No período da Primeira Guerra Mundial a veiculação de cartões-
postais era um meio de comunicação que trazia como adendo imagens de
diversas temáticas. A imagem postada enquanto representação do social
expõe a relação entre o real vivido e o real pensado, apresentando em
entrelinhas o imaginário da época. Assim como todas as outras fontes
históricas, a representação não é neutra e nem a verdade única de um
contexto, pois está submetida às intencionalidades e discursos
particulares do contexto em que foi construída, sendo um vestígio de um
passado específico e meio de "compreender os mecanismos pelos quais
um grupo impõe, ou tenta impor, os valores que são os seus, e o seu
domínio.” (CHARTIER, 1990, p. 17).
Além de vestígios do passado, os cartões são o passado
selecionado para ser lembrado (MAUAD, 1996; STANCIK, 2013a). Aquilo
que é perenizado na representação traz a realidade segundo uma
perspectiva, cabendo ao historiador “identificar o modo como em
diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é 5

construída, pensada, dada a ler." (CHARTIER, 1990, p. 16 - 17). Afinal, as


práticas sociais constroem as representações, assim como são construídas
pelas apropriações destas representações. Neste viés as imagens dos
cartões-postais são um testemunho de época e "além da capacidade de
representarem por meio de esquemas pictóricos, os postais também
podem ser considerados documentos que narram e registram a memória
social, cujos significados estão engendrados pela cultura" (JARDIM &
D'AVILA NETO, 2010, p. 2).
Essas imagens também são instrumentos ideológicos à medida que
veiculam determinadas representações relativas às identidades e aos
papéis de gênero, reafirmando valores e comportamentos sociais ditos
como "corretos", isto é, as mulheres e homens representados são a
idealização de determinada cultura e sociedade (JARDIM & D'AVILA NETO,
2010). Desse modo, elas trazem em si uma parcela dos múltiplos
significados dados aos gêneros feminino e masculino durante a Primeira
Guerra Mundial.
Esse âmbito exposto se articula com a conceituação de gênero,
que é "[...] um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas
diferenças percebidas entre os sexos, [e] forma primeira de significar as
relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 21), sendo que "as bases dessa
complexa estrutura social, intrincada por hierarquias e desigualdades,
envolve a organização social do trabalho e da produção, a participação dos
indivíduos e coletividades e suas representações na sociedade" (JARDIM &
D'AVILA NETO, 2010, p. 1). É neste ponto que a temática gênero discorre a
relação do feminino e masculino enquanto análise de sua construção 6

social, diferentemente da "História das Mulheres", que em um primeiro


momento esteve ligada à descrição de seus fatos, ditos, históricos.
Segundo tal contextualização, as fontes históricas em análise são
um conjunto de cartões-postais e as imagens fotográficas impressas nos
mesmos, que pertencem ao acervo particular do historiador Marco
Antonio Stancik. Neste corpo documental há em torno de duzentos
cartões-postais franceses referentes ao período em análise, dentre os
quais cerca de setenta encontram-se digitalizados e dos quais foram
selecionados cinco que veiculam representações do feminino.
Em se tratando de analisar imagens não existe um único caminho,
mas sim diversas possibilidades. Deste modo, Kossoy (2001) e Meneses
(2012) sustentam os métodos iconográfico e iconológico. Tal metodologia
consiste na descrição e análise dos elementos visuais e textuais,
considerando a composição da imagem como uma linguagem que pode
ser vista e/ou lida, um enunciado acerca das relações e construções de
gênero (BURKE, 2004; JARDIM & D'AVILA NETO, 2010).
A iconologia e iconografia despontaram nos séculos XIX e XX e têm
em Erwin Panofsky (1892 - 1968) um de seus maiores referenciais, sendo
propostos por ele três níveis de significações da imagem: pré-iconográfico
– pura descrição dos caracteres mais básicos da imagem; analítico
iconográfico – apontamento das significações secundárias da imagem
segundo o “patrimônio cognitivo” do observador; e interpretativo
iconológico – interessado nos “sintomas” da realidade que a imagem traz
em si, uma “mentalidade de base” onde “além do senso comum e de uma
vasta erudição, é exigível competência em várias áreas das humanidades”, 7

ou seja, se faz necessária uma transdisciplinariedade (apud: MENESES,


2012, p. 245).
Portanto, torna-se imprescindível relacionar a observação da
imagem com a sua contextualização, pois ela é a marca de um passado
que a produziu e consumiu, e que, por si só, não falará, sendo necessária
sua problematização. Parafraseando William Soroyan, romancista norte-
americano, uma fotografia vale mil palavras somente se você olha a
imagem e diz ou pensa mil palavras (KOSSOY, 2001, p. 116 - 117).

As representações do feminino
Com o início dos conflitos no ano de 1914, os movimentos
feministas, até então ocupados com a luta pelo direito ao sufrágio e a
igualdade política, tenderam a reverter suas ações, segundo um
patriotismo disseminado desde as instituições educacionais, ao apoio e
ordem social (BOURDÉ & MARTIN, 1983). Segundo as ativistas Marguerite
Durand e Jane Misme, o país precisava das mulheres, que para serem
dignas da cidadania que tanto almejavam tinham, muito mais do que
direitos, deveres para cumprir com a sociedade francesa (apud: THÉBAUD,
1993, p. 51). Enquanto isso, homens viam- se diante da oportunidade de
expressar valores morais e patrióticos de masculinidade, tão em voga
neste período da França.
O próprio presidente do Conselho de Ministros solicitou que as
camponesas substituíssem os homens nas colheitas (ISNENGHI, 1995, p.
86). De acordo com Françoise Thébaud (1993, p. 55) as atividades 8

desempenhadas por mulheres eram cada vez mais diversificadas, inclusive


em setores tradicionalmente masculinos, sendo que em 1918 o número
de trabalhadoras chega a quatrocentos mil, cerca de um quarto da mão de
obra francesa total e, especificamente, um terço da mão de obra da região
parisiense. No entanto, a autora aponta que tal quantificação não é tão
distinta do período pré-guerra, no qual a inserção feminina já se fazia
presente na França.
As mulheres constataram que o trabalho formal não era mais difícil
e cansativo que as tarefas domésticas, contudo era mais bem pago. As
atividades exercidas eram de caráter subalterno/submisso ou que se
relacionavam ao estereótipo consagrado da mulher. “Estas mudanças, no
entanto, estão estritamente limitadas pelos papéis sexuais tradicionais
que são até mesmo reforçados” (PERROT, 2005, p. 439). Tal relação entre
profissão e feminilidade fez com que a atuação feminina fosse, por vezes,
desconsiderada. Assim sendo, tais mulheres tinham dificuldade de
reconhecer (e de fazer reconhecer) um papel público feminino.
Neste ponto, também é discutida a masculinização das mulheres
através do trabalho, sacrifício da vida privada e da aparência (PERROT,
2005, p. 440; THÉBAUD, 1993, p. 59 - 62). A propósito, as feministas
francesas vêm nesses novos parâmetros de atuação uma possibilidade
para consolidar a emancipação feminina, como bem pontua Thébaud
(1993, p. 62):

[...] las feministas francesas quieren convertir esta


experiencia en un trampolín hacia la igualdad 9
profesional, o, por lo menos, hacia la apertura de
oficios y la cualificación de las trabajadoras.
Reivindican una formación profesional, abren o
promueven escuelas y preparan el futuro mediante
um vasto trabajo de encuesta y de información acerca
de la educación de las niñas y de las carreras
femeninas.

Essas pequenas alterações foram vistas, aos olhos masculinos,


como ameaças para com os postos convencionais dos sexos, sendo que
“*...+ as brechas abertas pelas guerras são rapidamente fechadas quando
volta a paz, sobretudo no que se refere ao trabalho e aos papéis privados”
(PERROT, 2005, p. 441).
Assim sendo, as representações imagéticas do período da Grande
Guerra norteiam-se segundo a construção do feminino e do masculino
entre as trincheiras e suas composições refletem o diálogo entre a esfera
social e mental. Em relação ao exposto, os três cartões-postais analisados
proporcionam elementos para problematizar as relações de gênero no
contexto da Primeira Guerra Mundial.
Figura 1. A. N. Figura 2. Furia. Cartão- Figura 3. Revanche. 10
Paris. Cartão- postal com número Cartão-postal n. 207.
postal n. 541. Le não identificável. Vous Sur le front/ Glorieuse
Dévouement. soutenez mon sera la guerre/ Ce
Postado em, courage. Manuscrito n'est pas en vain qu'on
1907c. pelo remetente em 02 espére. Postado em 18
de abr. de 1915. de junho de 1916.

Segundo os parâmetros expostos, a Figura 1 traz a representação


de uma mulher religiosa que, munida com uma cruz e um recipiente de
água, ampara um homem desolado pela guerra disposto com uma
trombeta na mão esquerda. Colorizada através de retoques, a imagem
traz, em segundo plano, um cenário em ruínas, que remete ao front, onde
se destaca o cenário de destruição com a fumaça que provém das chamas
que consomem uma construção e que atingem diversos locais próximos.
Um soldado levanta os braços a fim de pedir socorro, outro olha
desconfiado para o céu nebuloso, enquanto muitos estão feridos ou
mortos em meio às armas e outros objetos da artilharia referentes ao 17º.
Regimento de Infantaria como indicada a imagem. Outro senhor, que
remete a um religioso e tem um adereço de cruz vermelha no braço
esquerdo indicando sua função de socorrer feridos, coloca sua mão direita
sobre o peito de um soldado abatido.
O toque delicado da única mulher representa que ela está "a
serviço da pátria", acalentando o sofrimento dos homens na guerra. O
soldado que é por ela socorrido, em correspondência, eleva o olhar para
ela, a ponto de direcioná-la ao céu, como um anjo, e anseia por seu
acolhimento. A ternura exposta neste ponto da imagem articula-se com a 11

Pietà, famosa escultura de Miguelangelo localizada na Basílica de São


Pedro, no Vaticano, que apresenta Jesus Cristo morto nos braços de
Maria, entre outras representações pictóricas similares. Essas
representações ressaltam o padecimento do homem e a mulher como
mãe devotada e figura associada à religião que suporta, com misericórdia,
a agonia do filho. O referido cartão-postal demonstra a inserção da
mulher no mercado de trabalho e sua colaboração com a sociedade
francesa no período da Guerra, no entanto, essa mulher enquadra-se no
estereótipo da feminilidade genuinamente altruísta e delicada, bem como
tende a enfatizar o seu papel na guerra como religiosa (ISNENGHI, 1995;
JARDIM & D`AVILA NETO, 2010).
A Figura 2 apresenta um militar de farda da infantaria, com
retoque em cores expressivas e munido de sua arma, bagagem e uma flor
na mão esquerda. O painel ao seu fundo é uma estrada de lama com
destroços da artilharia e vegetação escassa. O semblante do homem é
pensativo e em segundo plano apresenta-se o busto de uma mulher com
uma criança, composto em cores pastel que se mesclam com o próprio
cenário. Em alusão à frase que acompanha a imagem (Vous soutenez mon
courage), percebe-se que o soldado indica que o apoio de sua família
alicerça sua coragem para seguir em frente na batalha. Constatam-se o
militar idealizando a mulher, mãe e esposa, que no lar o espera e o
encoraja na Guerra. Também é perceptível o destaque de enquadramento
ao homem, refletindo sua posição social ativa, de modo que a mulher é
representada inerte e cristalizada segundo sua caracterização tradicional
(JARDIM & D`AVILA NETO, 2010). 12

Já a Figura 3 expõe outro soldado, de vestimenta azul (Bleu


horizon, cor adotada a partir de 1915 para o uniforme da infantaria), que
também traz com si seus pertencentes e fuma cachimbo em meio a
folhagens. Ao alto está a face ligeiramente esmaecida de uma mulher que
esboça leve sorriso. A frase aponta que a espera e as saudades de ambos
não serão em vão, pois a guerra será gloriosa, omitindo-se na cena
qualquer menção mais explícita a elementos habitualmente associados à
guerra, tais como combates, morte, sofrimento. Em ambas as imagens
constatam-se o militar idealizando a mulher, mãe e esposa, que no lar o
espera e o encoraja na Guerra.

Figura 4. Revanche. Cartão-postal n. 134. Figura 5. J. K. Cartão-


Pour L'Absent/ Les souhaits de la petite postal n. 9340. Visite La
ouvrière/ Sauront vous trouver sur le au Héros. Manuscrito
front de guerre. Manuscrito pelo pelo remetente em 04 de
remetente em 24 de mar. de 1915. fev. de 1914.

A composição da Figura 4 estabelece a representação masculina


no alto da imagem, como produto dos pensamentos das mulheres que
estão em uma mesa rodeada de materiais de costura. A imagem é
eminentemente monocromática e destaca integrantes da cavalaria, com
uniformes típicos do século XIX e os olhares dirigidos ao horizonte, de
modo que eles avistavam algo à frente. O contraste entre as posições
sociais feminina e masculina remete à ideia da atuação pública dos 13

homens em contrapartida a das mulheres, que estão enraizadas na esfera


privada e doméstica. Há possibilidade dos novelos de lã, linhas e agulhas
fazerem referência ao trabalho de viés público, no entanto, ele articula-se
com a figura emblemática da mulher entre utensílios propostos como de
caráter feminino, associados às atividades do lar. Segundo o discurso, os
bravos soldados estão no front da guerra e isso é um consolo para as
mulheres que questionam a ausência dos homens, pois o valor patriótico e
nobre de suas ações é prevalente.
A reverência ao homem presente na guerra enquanto herói é
exposta na Figura 5. Na enfermaria o homem recebe a visita de uma
mulher e uma menina - possivelmente são sua esposa e filha. Ele está com
a cabeça enfaixada e sobre seu leito há flores e uma boina militar de cor
vermelha, elementos que informam tratar-se de um combatente ferido. A
vestimenta feminina é apresentada em cores suaves. O contentamento
expresso na face dos indivíduos converge com a frase de estímulo para
visitar-se os heróis. Essa associação da mulher aos papéis de mãe e esposa
é, segundo Michelle Perrot (2005, p. 443), fruto do consentimento delas
mesmas, que se auto-marginalizam na medida em que assumem as
concepções que lhes são impostas e introjetadas pelo sistema de vertente
masculina.
Considerações finais
Essa constante reafirmação de estereótipos femininos e
masculinos presente nos cartões-postais analisados expõe que estes
últimos também eram asfixiados por esse modelo de virilidade e viam-se 14

em crise ao constatarem a expansão dos limites, aparentemente fixos, do


feminino.

Es indiscutible que la Gran Guerra constituye para los


hombres un largo traumatismo, que es al mismo
tiempo masacre masiva, ridicula caricatura de las
imágenes de la guerra viril y triunfal, y negación de
todos los valores de la cultura Occidental. Inmóviles,
hundidos en el barro y en la sangre de las trincheras,
condenados a esperar las heridas mortales o el asalto
de los cañones enemigos, víctimas a veces de
enfermedades femeninas como la histeria, que los
médicos ingleses identificaron con el nombre de shell
shock, los combatientes experimentan el sentimiento
de una regresión al estado salvaje y viven la guerra
como una impotencia pública y privada. Cuando ellos
corrían al asalto del enemigo, las mujeres esperaban,
piadosamente. Ahora que ellas, en su ausencia,
acceden al espacio y a las responsabilidades públicas
para hacer funcionar la maquinaria de guerra, tienen
miedo de verse desposeídos o engañados. (THÉBAUD,
1993, p. 64)

Michelle Perrot (2005, p. 444 – 445) afirma que até a década de


1980 as relações entre os sexos não mudaram drasticamente. As guerras,
neste contexto, tiveram um efeito ambíguo. Ora, impulsionavam
transformações: o direito de voto feminino, antiga reivindicação das
mulheres, foi conquistado após a Primeira Guerra, “*...+ como recompensa
por suas ações de cidadãs ou de resistentes, não como fruto de seus
combates” (PERROT, 2005, p. 445). Ora, freavam tais transformações: a
new womam do início do século XX, cuja independência econômica e 15

sexual contrastava com a mulher padrão, é reprimida a partir de uma


misoginia pós-guerra que “recoloca cada sexo em seu lugar” (PERROT,
2005, p. 446), ou seja, prega-se o retorno das mulheres a sua habitual
condição social periférica. Em suas palavras, "a guerra é, em suma,
geradora de frustrações, na medida em que ela fecha as saídas que se
entreabriam ou que ela mesma abrira. Assim, ela contribui para aumentar
a tensão entre os sexos, a consciência que cada um deles tem de si
mesmo. A longo prazo, ela estimula o feminismo" (PERROT, 2005, p. 446).
Assim, esse estudo detectou nas imagens analisadas a presença dos ideais
de gênero e demonstrou, com suporte do referencial, a articulação entre
as representações imagéticas e o imaginário do contexto da Primeira
Guerra Mundial.

Referências

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triunfo de la diferencia sexual? In: DUBY, G.; PERROT, M. (Dir.). Historia de


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TILLY, Louise A. Gênero, História das Mulheres e História Social. Cadernos
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A COPA DO MUNDO FOI NOSSA? FUTEBOL E POLÍTICA NA VISÃO
CINEMATOGRÁFICA DURANTE OS ANOS DE CHUMBO: “PRA FRENTE
BRASIL” X “O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS”

Aristides Leo Pardo1

RESUMO: O presente trabalho busca sob o prisma da relação Cinema-História analisar o


vínculo existente entre o futebol e a política no Brasil, especialmente no período da Ditadura
Militar (1964-1985), relação esta, que teve como ponto alto, a conquista do Tri-Campeonato
vencido pela Seleção Brasileira na Copa do Mundo realizada em 1970, no México, na qual
ostentava uma geração de grandes jogadores que encantava o mundo com sua forma de
jogar. Tendo por base as obras fílmicas “Pra frente Brasil” (1982), de Roberto Farias e “O ano
em que meus pais saíram de férias” (2006), de Cao Hamburger, verificamos que embora
divergentes nas representações, e separadas por mais de duas décadas, se complementam e
retratam o momento vivido no país nos primeiros anos da fase que ficaria conhecida na
história como “Anos de Chumbo”, os mais brutais do regime militar, representado pelos
generais “Linha Dura” que presidiram a nação, Ernesto Geisel (1907-1996) e Emílio
Garrastazu Médici (1905-1985). Apesar do clima de terror, a euforia causada pelo Tri-
Campeonato e o “Milagre Econômico”, que forjava um crescimento à custa do
endividamento do país, tomava conta da população, incluindo ai, os donos do poder, que
capitalizaram enorme popularidade com a conquista do mundial, enquanto famílias eram
destruídas pela ação do governo militar que cassava, torturava e matava sem piedade seus
opositores e críticos, produzindo assim, feridas até hoje não cicatrizadas, o futebol
continuou a representar a força e a identidade do povo brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema. História. Futebol. Ditadura Militar

RESUMEN: Este estudio tiene como objetivo a través del prisma de la relación de la historia
del cine analizar la relación entre el fútbol y la política en Brasil, especialmente en el período
de la dictadura militar (1964-1985), una relación que era poner de relieve el logro perdedor
Tri-Campeonato de la selección brasileña en la Copa del mundo celebrada en 1970 en
México, que contaba con una generación de grandes jugadores que encantó al mundo con
su estilo de juego. Sobre la base de los trabajos de cine "para enfrentar a Brasil" (1982),
Roberto Farías y "El año que mis padres se fueron de vacaciones" (2006), Cao Hamburger,
encontró que, aunque diferentes en las representaciones, y separados por más de dos
décadas, se complementan y se retratan el tiempo vivido en el país en los primeros años de
la fase que se conoce en la historia como "años de plomo", el régimen militar más brutal,
1
Especialista em História: Cultura, Memória e Patrimônio, pela UNESPAR/UV (2014), Historiador formado pela
mesma instituição (2014) e Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pela Faculdade de
Filosofia de Campos – FAFIC, (2007). Contato: tidejor@gmail.com
representada por los generales "línea dura" que rigen la nación, Ernesto Geisel (1907-1996)
y Emilio Garrastazu Medici (1905-1985). A pesar del clima de terror, la euforia causada por el
tricampeonato y el "milagro económico", que forjó el crecimiento a expensas de la deuda
del país, tuvo en cuenta la gente, incluyendo allí, los dueños del poder, que capitalizan gran
popularidad entre los conquista del mundo, mientras que las familias fueron destruidas por
la acción del gobierno militar que la yuca, torturados y asesinados sin piedad a sus
oponentes y críticos, lo que produce heridas aún no han cicatrizado, el fútbol siguió
2
representando la fuerza y la identidad del pueblo brasileño.
PALABRAS CLAVE: cine. Historia. Fútbol. Dictadura militar

ABSTRACT: This study aims through the prism of Cinema History relationship analyze the link
between football and politics in Brazil, especially in the period of military dictatorship (1964-
1985), a relationship that was to highlight the achievement loser Tri-Championship for the
Brazilian team in the world Cup held in 1970 in Mexico, which boasted a generation of great
players who charmed the world with his style of play. Based on the film works "To face
Brazil" (1982), Roberto Farias and "The Year My Parents Went on Vacation" (2006), Cao
Hamburger, found that although different in representations, and separated by more than
two decades, they complement and portray the time lived in the country in the early years
of the phase which would be known in history as "years of Lead", the most brutal military
regime, represented by the generals "Hard Line" which governed the nation, Ernesto Geisel
(1907-1996) and Emilio Garrastazu Medici (1905-1985). Despite the climate of terror, the
euphoria caused by the Tri-Championship and the "Economic Miracle", which forged growth
at the expense of the country's debt, took people's account, including there, the owners of
power, which capitalized huge popularity with conquest of the world, while families were
destroyed by the action of the military government that cassava, tortured and killed
mercilessly his opponents and critics, thus producing wounds still have not healed, football
continued to represent the strength and identity of the Brazilian people.
KEYWORDS: Cinema. History. Soccer. Military dictatorship

INTRODUÇÃO
Desde o seu surgimento no Brasil em finais do século XIX, o futebol foi
um dos protagonistas da história brasileira, refletindo a sociedade em diversos
momentos e paulatinamente foi ganhando seu espaço e se consolidando como
“esporte nacional”, ao mesmo tempo em que foi construída a nossa própria
identidade cultural, por isso, ele não escapou de ser objeto de interesse de
governos e governantes, sejam eles de regimes autoritários ou democráticos,
todos souberam utilizar o poder do futebol ao seu favor.
Com o golpe militar de abril de 1964, que depôs o então presidente
João Goulart, o “Jango” e colocou no poder o Marechal Castelo Branco, o
primeiro dos cinco mandatários indicados pela cúpula militar, para comandar
os destinos da nação durante a Ditadura que durou duas décadas, o futebol foi
3
logo utilizado com fins propagandísticos do novo regime vigente e uma das
primeiras ações da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) no período, foi
o cancelamento de uma partida amistosa contra a União Soviética, uma clara
tentativa do governo anterior de uma aproximação diplomática através do
esporte, o que de maneira nenhuma interessava aos militares.
Com o golpe, o presidente da entidade esportiva, João Havelange,
curiosamente foi mantido no cargo, diferentemente de ministros, governantes
e funcionários dos primeiros escalões do governo deposto, que foram
demitidos sumariamente e substituídos por pessoas alinhadas ao novo regime,
uma amostra de sua adaptação a novos sistemas políticos que o beneficiaria
pessoalmente e em contrapartida ao regime. Havelange seria eleito presidente
da Federação Internacional de Futebol (FIFA), em 1974, cargo que ocuparia até
1998. Foi em sua gestão na FIFA que o Brasil conquistou o Tri-Campeonato
mundial de futebol, na Copa de 1970, em gramados mexicanos, conquista esta
que soube ser muito bem aproveitada politicamente pelos militares.
Com o fracasso na Copa do Mundo da Inglaterra, em 1966, a primeira
das cinco que a seleção brasileira disputaria sob o regime ditatorial, as
cobranças e críticas por parte de torcedores e imprensa não pararam e visando
a próxima edição do mundial, em 1970, no México. Numa estranha estratégia
até hoje não muito bem explicada, a CDB colocou na direção técnica do
selecionado nacional, um de seus principais críticos, o radialista João Saldanha,
ex-treinador do Botafogo, declaradamente seu clube do coração e militante
comunista assumido.
Talvez por conta de sua popularidade e para acalmar a imprensa que
tanto atacava a seleção, Saldanha tenha sido o escolhido, e não decepcionou,
4
montando um time repleto de craques, obteve a classificação para o mundial
um ano antes da Copa e da chegada ao poder de Emílio Garrastazu Médici. Um
general “linha dura” e fanático por futebol, que bem soube utilizar a seu favor
as benesses do esporte para sua aproximação com os setores populares,
tornando-se “O torcedor nº 1 da Seleção” e após o êxito no México capitalizou
a vitória futebolística para fins propagandísticos de seu governo, associando a
vitória em campo, com o próprio modelo de país almejado pelos militares.
O cinema, enquanto agente histórico, não apenas ilustra os
acontecimentos, mas os recria, redimensionando os diversos contextos e
criando leituras distintas daquele momento e suas representações, nas mais
diferentes óticas e épocas, e é justamente essas visões que analisaremos neste
trabalho ao confrontar duas obras cinematográficas que retratam o mesmo
tema, a euforia da conquista do Tri-Campeonato em 1970, em meio ao período
mais repressivo da Ditadura Militar brasileira.
Com o aporte de uma revisão bibliográfica sobre o período trabalhado
e a teorização do uso do cinema na pesquisa Histórica, apontaremos
semelhanças e distanciamentos entre as obras: “Pra frente Brasil” (1982), de
Roberto Farias e “O ano em que meus pais saíram de férias” (2006), de Cao
Hamburger, separadas por mais de duas décadas o lançamento de uma para
outra, mas que retratam uma parte de nossa história recente que precisa ser
revisitada constantemente, para que não caia no esquecimento e que novas
perspectivas sejam expostas, e com elas, a respostas de novos (e velhos)
questionamentos.

FUTEBOL E DITADURA
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Em vários sistemas governamentais e em diferentes épocas o futebol


foi utilizado como importante ferramenta de propaganda do governo vigente,
seja a Seleção Brasileira no caso nacional, ou até mesmo de um pequeno clube
divulgando sua prefeitura.
Sabedores do potencial do futebol, os militares o utilizaram não
somente no período da Copa do Mundo, a partir de 1971 foi organizado o
primeiro Campeonato Brasileiro de Futebol com objetivo de ampliar o número
de times e a área de atuação da antiga CBD, pois antes disso, os principais
torneios do país se resumiam exclusivamente a participação de clubes de Rio -
São Paulo, depois inclusos times mineiros e gaúchos e mais tarde, baianos e
pernambucanos.
O novo modelo de campeonato foi um sucesso e paulatinamente novos
times iam ganhando vaga, chegando ao exagerado número de 96 participantes
em 1979, época em que o Almirante Heleno Nunes comandava a CBD, após a
saída de João Havelange para assumir a presidência da FIFA. Desta fase, surgiu
a famosa frase em relação ao partido oficial do governo vigente, a ARENA -
Aliança Renovadora Nacional: “Onde a ARENA vai mal, um time no Nacional,
Onde a ARENA vai bem, outro time também”.
O milésimo gol de Pelé foi outro momento esportivo capitalizado em
favor do regime militar, em que rendeu ao jogador uma medalha de mérito
nacional e um encontro com o presidente Médici. Neste período também
surgiu a Loteria Esportiva, que unia futebol e sorte, possibilitando aos
vencedores uma ascensão social, e como o jogo incluía partidas de todo o país,
servia também para integração nacional, já que todos os resultados
interessavam na corrida pelos treze pontos.
6
O futebol foi um elemento fundamental para o regime promover a
suposta “união nacional”, em uma esfera que não passava pelo setor político,
aliás, não foram poucos os políticos que perceberam a popularidade da seleção
e procuraram também tirar proveito da situação apoiando o discurso oficial e
posando ao lado dos jogadores na grande recepção feita pelo presidente
Médici em Brasília na volta do México, que coroou futebol brasileiro e tornou
Pelé “Rei”, e um símbolo do país em todo o planeta.
A conquista do Mundial tinha virado questão de honra do governo
desde a queda de Saldanha e para certificar-se de que não haveria mais
deslizes na imagem do selecionado que pudesse estragar os planos do regime,
foi colocado no comando técnico, o prestigiado ex-jogador Zagalo, campeão do
mundo em 58 e 62, e na preparação física, junto com Carlos Alberto Parreira
(que seria campeão como técnico em 1994), o capitão do exército Cláudio
Coutinho, que seria os “olhos” dos militares de dentro da delegação e que mais
tarde teria bons resultados como treinador e uma lamentável morte precoce,
em 1981, aos 42 anos de idade, ao praticar pesca submarina no litoral carioca.
Ramos (1988, p. 11) afirma que: “É indiscutível a influência do meio
sobre qualquer produto, muito mais, tratando-se do futebol. A neutralidade
corresponde a um disfarce para esconder um posicionamento pós-sistema” e
complementa dizendo acerca do caráter propagandístico ideológico do futebol,
amplamente utilizado por governos e pela mídia ao longo dos tempos, para
assim, encobrir ou divulgar aspectos da vida cotidiana e dá como exemplo, o
questionamento do por que da retirada do então treinador da Seleção
Brasileira de 1969, João Saldanha 2·? E responde que: “Ele era um empecilho
para o governo faturar em cima da seleção” da seguinte forma:

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“Certa vez, em Porto Alegre, um repórter perguntou a
Saldanha: “O Presidente Médici teria muita vontade de ver
o Dario no comando do ataque da Seleção. Por que você
não o coloca lá? E o treinador retrucou: “Quando o
presidente formou o seu gabinete, não me consultou, de
modo que para formar o meu time, não preciso perguntar a
ele”. Tal declaração teria custado o cargo a Saldanha.
(RAMOS, 1988, p. 36)

Na Copa seguinte, disputada no lado oriental da Alemanha, ainda


dividida, a terceira do Regime Militar, a seleção foi praticamente a mesma do
México com uma alteração ou outra, mas sem as importantes presenças de
Pelé e Tostão, no comando da Comissão Técnica foi mantido Zagalo, porém o
restante foi organizado de maneira ainda mais militarizada que na Copa
anterior.
Envolvida pela sensação daquela Copa, a Holanda e seu revolucionário
“Carrossel Holandês” a seleção brasileira saiu do torneio nas semifinais,
amargando a quarta colocação e com sua imagem enfraquecida, tendo seu
sistema de jogo considerado ultrapassado em relação ao futebol europeu e não
mais despertando nos torcedores a paixão dos anos anteriores recentes. Para a
Copa seguinte, na Argentina, a militarização foi mantida e ampliada, com o
Capitão Coutinho alçado ao posto de técnico da seleção.

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Radialista e torcedor fanático do Botafogo do Rio de Janeiro. Simpatizante declarado do comunismo e
membro do PCB. Faleceu em 12 de julho de 1990.
O país sede da competição, assim como o Brasil, também vivia um
regime ditatorial, igualmente marcado pela perseguição, prisão e
desaparecimento de opositores e críticos do governo, e dessa forma, ansiavam
pela conquista do primeiro título para o futebol argentino em Copas do Mundo.
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A alta cúpula da CBD ordenou que o treinador colocasse no time titular
o jogador Roberto Dinamite, do Vasco da Gama, no lugar de Reinaldo, do
Atlético Mineiro, pois segundo afirma (GUTERMAN, 2009) o jogador poderia
ser um problema para o regime, já que comemorava seus gols com o punho
fechado e o braço erguido, símbolo do grupo marxista norte-americano
“Pantera Negra”, além de ter sido fotografado certa vez, com um livro de Lênin,
líder socialista soviético.
Porém, a ditadura argentina mostrou que não estava disposta a perder
a oportunidade de ser campeã do mundo em seus domínios, quando marcou a
partida entre Brasil x Polônia para algumas horas antes de Argentina x Peru,
pois os donos da casa saberiam exatamente por qual placar deveria vencer.
Com a vitória brasileira pelo placar de 3 a 1, os donos da casa teriam a
obrigação de derrotar os peruanos, já sem chances de avançar no torneio, por
no mínimo quatro gols de diferença. Em partida suspeita até os dias de hoje, a
Argentina venceu pelo elástico placar de seis a zero. A visita do presidente
argentino Jorge Videla ao vestiário peruano antes da partida e o fato do goleiro
da seleção peruana, Quiroga, ser argentino naturalizado, aumenta as suspeitas
de um resultado arranjado, que serviu para levar o time argentino para a
grande final contra a Holanda e assim conquistar seu primeiro título mundial de
futebol.
Sem perder uma partida sequer, os brasileiros ainda venceriam a Itália
por 2 a 1 e garantiria assim, o terceiro lugar na competição, o que levou o
treinador Coutinho a dizer que sua equipe era “A Campeã Moral” do torneio.
No Brasil, a situação piorava e o regime vigente começava a ficar cada
9
vez mais insustentável, levando os militares a se pronunciarem a favor de uma
abertura política “lenta, gradual e segura”, para garantir a manutenção da
ordem social existente.
Na última Copa do Mundo dos militares no poder, em 1982, na
Espanha, aconteceu uma grande onda de otimismo no país, já que a seleção
montada por Telê Santana era uma das melhores já vista, com Zico, Sócrates,
Falcão, Cerezo, Éder, entre outros craques e naquele mesmo ano ocorreriam
eleições diretas para governadores.
Tudo corria bem nos gramados espanhóis quando no dia 5 de julho, a
seleção dava adeus ao sonho do tetracampeonato (que chegaria somente 12
anos mais tarde), ao perder por 3 x 2 para a Itália, que levantou sua terceira
taça e igualou em número de títulos do Brasil.
Embalados pelo futebol arte apresentado na Espanha, a “Seleção
Canarinho” encantou o mundo com seu belo futebol, os militares acharam que
poderiam capitalizar a seu favor mais uma conquista brasileira nos gramados, e
se sustentar no poder apesar de mostrar-se cada vez mais agonizante.
Com a derrota na Copa e sem mais nenhuma popularidade, a Ditadura
caiu depois de findado o mandato do Presidente João Figueiredo e a eleição,
ainda indireta, pelo Colégio Eleitoral de Tancredo Neves, que não chegaria a
assumir o poder em razão de sua morte, mas que virava uma triste página da
história brasileira.
CINEMA E HISTÓRIA: FARIAS X HAMBURGUER

A ditadura militar imposta no Brasil na madrugada de 1º de abril de


1964 e que duraria por vinte e um anos, pode ser vista hoje, como parte de um
10
processo político, social e econômico com claros objetivos de colocar o país no
cenário do capitalismo internacionalista e garantir a permanência das
oligarquias no poder, afastando qualquer possibilidade de mobilização popular
ou a tentativa de avanço de outros regimes, sobretudo o comunismo, tão em
voga naquele período de auge da “Guerra Fria”, de pós-Revolução em Cuba e
de descolonizações africanas e asiáticas.
Principalmente no período que entrou para a história como “Anos de
Chumbo” da Ditadura Militar, que compreende os governos dos presidentes
Ernesto Geisel e Emílio Garrastazu Médici, entre os anos de 1969 a 1974, a
repressão moral caminhou passo a passo com a repressão política e a censura
imperou em todos os meios de comunicação para controlar temas
considerados “proibidos” ou “subversivos”, como política, sexualidade, entre
outros temas. Araújo (2003, p. 55) conta que: “(...) além de programas de TV,
diversos filmes, livros, revistas, canções e até obras de gênios da pintura foram
proibidos ou mutilados pela censura”.
Napolitano (2004, p. 49) nos diz que “A cultura passou a ser
supervalorizada, até porque, bem ou mal, era um dos únicos espaços de
atuação da esquerda politicamente derrotada”.
Surgido por iniciativa dos irmãos Lumiere nos fins do século XIX, o
cinema, que de forma pioneira registrava pequenas imagens do cotidiano,
como a chegada de um trem na estação, logo foi capaz de se tornar um meio
de produzir histórias ficcionais, com criação de cenários e enredos que
possibilitava quem o produzia uma verdadeira viagem no tempo regressando
ao passado ou avançando para o futuro, passou por diversas transformações e
tornou-se uma das principais ferramentas de Indústria Cultural ou Cultura de
Massas, mas nem sempre foi assim, conforme relata Mocellin (2002, p. 8)
11

No início do século XX, o filme não era visto como objeto


cultural. Afirmava-se que algo produzido por uma máquina
não poderia ser uma obra de arte. O “homem da câmera”
era considerado um simples caçador de imagens, portanto
não pertencia ao mundo dos letrados. Havia, da parte das
classes dirigentes, um certo desdém, quando não desprezo
por esses “caçadores de imagens” (...) O escritor italiano de
cultura francesa, Ricciotto Canuto, foi quem primeiro
compreendeu, por volta de 1911, o enorme potencial do
cinema. Para Canuto, o cinema vinha somar-se às artes
tradicionais: arquitetura, música, pintura, escultura, poesia
e dança. Foi ele quem usou pela primeira vez a expressão
“sétima arte”. (MOCELLIN, 2002, p. 8).

Ainda antes da virada para o século XX, a História começa a se firmar


como disciplina acadêmica permitindo uma reconstrução do passado, embora
tendo como fontes confiáveis, apenas documentos oficiais escritos. A partir da
década de 1930, uma corrente francesa que publicava a revista École des
Annales, contestou os estudos históricos que privilegiava somente o viés
político e pregando uma interdisciplinaridade passaram a rever o eu até então
era considerado como fontes para a história. O marco dessa virada foi a
publicação de Marc Bloch (2002) “Apologia da História ou o ofício do
historiador”, publicado pela primeira vez em 1949.
O primeiro historiador a se dedicar seu trabalho com “filmes históricos”
foi Marc Ferro (2010, p. 51) que diz que: “O filme é um documento e merece
ser analisado com tamanha importância assim como qualquer outro, pois o
filme era completamente ignorado como objeto cultural” e prossegue
afirmando que:

12
Em seu início, o cinema era desprezado pelos intelectuais e
pela elite que se proclamava culta, sendo até 1960,
desprezado também pela academia, mas as mudanças no
conceito de fonte histórica mudaram esta visão e hoje, o
filme tem direito de cidadania, tanto nos arquivos, quanto
nas pesquisas. (FERRO, 2010. p. 9).

Sendo assim o cinema, mais que fonte ou objeto, é também agente da


História, pois nos dá uma possibilidade de compreender a sociedade que
produz e a que recebe as obras cinematográficas, já que cada época entende
de maneira diferente um mesmo filme, que tem para uns um determinado
significado e para outros nada representa, pois um filme é apenas a
representação de uma época e que não tem necessariamente maiores
compromissos com o que aconteceu de fato. Acerca deste assunto, Mocellin
(2002, p. 6) discorre da seguinte forma:

Os filmes estão impregnados de valores da época em que


foram produzidos. É preciso ter em mente que os filmes
históricos ou documentários tentam recriar e reconstruir
cenários históricos nos quais as intenções, e, sobretudo, a
ideologia (explícita ou dissimulada), tanto dos diretores,
produtores, pesquisadores e cenógrafos quanto dos atores,
devem ser avaliadas. É preciso, portanto, conhecer a
sociedade que o produz, para torná-lo operacional e eficaz
para a sociedade que o recepciona. (MOCELLIN, 2002, p. 6).
Podemos então perceber que são diversas possibilidades de
interpretação de um filme, como qualquer outro documento histórico é
influenciado pelo seu tempo, pelo meio onde está inserido e pela posição
ideológica de seus produtores. Por isso mesmo o cinema foi amplamente
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utilizado por governos para propaganda de regimes, como por exemplo, exaltar
e propagar idealismos. Mocellin (2002, p. 37) explana assim sobre o assunto:

O Uso do cinema como veículo de propaganda, doutrinação


e falseamento do passado vem de longe. O cinema
soviético (glorificando o socialismo), o cinema nazista (anti-
semita e belicista, porém de ótima qualidade estética) e o
cinema americano (sofisticada máquina de alienação)
muito contribuíram para fins políticos e contrabandos
ideológicos. (...) Após o triunfo da Revolução Russa, os
comunistas utilizaram o cinema instrumento de
propaganda. Como para os dirigentes soviéticos a “sala de
cinema deveria substituir o boteco e a igreja, devendo ser o
suporte para a educação das massas”, muitos filmes foram
produzidos. Alguns ótimos, outros nem tanto. Do ponto de
vista histórico, em filmes como O Encouraçado Potemkin e
Alexandre Nevsky, ambos de Eisenstein, muitos fatos foram
distorcidos e até alterados para se coadunarem com os
objetivos políticos propostos. Era o cinema a serviço de
uma causa. (MOCELLIN, 2002, p. 37).

Mocelin (2002, p. 6) diz que são múltiplas as inter-relações existentes


entre cinema e a história e que desde o início dessa arte, tanto os
documentários quanto os filmes de ficção foram usados para doutrinar,
glorificar ou exaltar determinados regimes e personalidades; E no caso das
obras apresentadas neste trabalho, para revelar atrocidades do regime vigente
no Brasil. O autor prossegue:
O cinema, dessa forma, estava a serviço de uma causa. É,
portanto, fundamental que o professor possa detectar
quando, onde e como essa interação ocorre. Dessa maneira,
ele estará apto para trabalhar tais filmes com criticidade e,
assim, obter melhores resultados. MOCELLIN (2002, p. 6).
14
Precisamos ter em mente, ao analisar uma obra, que toda produção
cultural carrega consigo a ideologia de quem a escreve, dirige ou produz, além
de valores da época em que foi produzida, da sociedade que produz e que
recebe essas obras, pois seria demasiada ingenuidade, acreditar que exista
imparcialidade nesses trabalhos. Mocellin (2002, p. 37) nos alerta que: “Saber
discernir o que é ficção do que é histórico e perceber a real intenção dos
cineastas ao produzir um filme é fundamental para quem pretende utilizar o
cinema como recuso paradidático”.
Em se falando de resistência ao regime vigente, pouco foi possível se
fazer no campo da “sétima arte”, por ser este, um veículo midiático de alto
custo para produção e distribuição e pela censura, além do fato de que a maior
financiadora das obras cinematográficas era justamente a estatal Embrafilme, o
que justifica o fato das duas obras retratadas nestas páginas, terem sido
filmadas anos após o período de maior repressão, trazendo cada uma delas, a
visão de seu diretor sobre os difíceis anos em que em meio a euforia do
“Milagre Econômico”, enquanto o país vibrava com a vitória da seleção de
futebol no México, residências eram violadas, famílias se fragmentavam,
destinos eram interrompidos e prisioneiros políticos viviam as mais desumanas
experiências de tortura nos porões da ditadura.
É nesse contexto que “Pra Frente Brasil” (1982), de Roberto Farias
retrata a peregrinação de uma família classe média que, em virtude do
desaparecimento de um de seus integrantes, interpretado por Reginaldo Farias,
confundido com um ativista político, preso por engano e cruelmente torturado
pelos órgãos oficiais de repressão, que acarretará em sua morte, acabam
descobrindo na clandestinidade, outra realidade nacional.
A Trama inicia-se com um diálogo entre o personagem central e um
15
amigo, sobre os rumos que a Seleção Brasileira na Copa do Mundo, quando os
mesmos são interpelados por agentes do governo e detidos. Lançado no apagar
das luzes do regime militar e com auxílio da Embrafilme, na qual Farias foi
presidente na década de 1970, o que não impediu sua censura por algum
tempo,
Ao longo das sessões de tortura, o filme explicita a dicotomia entre a
euforia da cada vez mais real possibilidade da seleção vencer o mundial após
cada fase avançada na competição, com o clima de terror e medo que ronda o
país. O longa é embalado pela música homônima ao filme, composta por
Miguel Gustavo na ocasião da Copa do Mundo do México.

Figura 1. Capa de "Pra frente Brasil". Fonte:


http://www.freecovers.net/view/0/491535fbc5e1095cebb790204dbe0817/front.html
Seguindo outra linha, que não a de denúncia às atrocidades do regime
militar, “O Ano em que meus Pais Saíram de Férias” (2006), de Cao
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Hambúrguer foca na figura de Mauro, um menino de 11 anos, interpretado por
Michel Joelsas e apaixonado por futebol, que além das peladas na rua, vive
cercado por suas figurinhas, revistas e jogo de botões.
A história se passa durante a Copa do Mundo de 1970 e inicia com a
ida do menino para São Paulo, para ficar com o avô, pois seus pais, militantes
de esquerda de Belo Horizonte, vão se retirar “em férias” para fugir da
repressão governamental.
Ao chegar ao apartamento do avô, no tradicional bairro paulistano do
Bom Retiro, Mauro descobre que o mesmo acabara de falecer e assim, o
menino passa a ser cuidado por vizinhos seguidores da religião judaica, uma
colônia bem forte no bairro, assim como a de italianos e povoada por muitos
trabalhadores nas indústrias paulistas, tornando-se um verdadeiro caldeirão
cultural, em que se misturavam manifestantes contrários ao regime vigente
com aqueles que sabiam o que acontecia, mas preferiam não se manifestar
sobre o assunto.
A expectativa de assistir a Copa ao lado do pai é frustrada pelo
momento vivido no país e a saída do mesmo para “férias”, que por força do
acaso deixa Mauro sozinho. Essa é a Tônica principal do filme, que se passa
sem maiores agitações, com cenas do garoto no vazio apartamento de seu avô,
na casa do ancião judeu que o acolhe e nos corredores silenciosos do edifício,
rotina quebrada somente com a agitação dos jogos da Copa e as manifestações
estudantis.
Podemos refletir que este silêncio proposital dos ambientes em que se
passa a trama, juntamente com o fato de o menino querer ser goleiro, posição
que na opinião do pai é a mais solitária entre todas do futebol, possa nos
remeter ao medo que o país passava devido ao momento mais brutal da
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ditadura, em que o “silêncio” era a melhor estratégia para sobrevivência.
Na sequencia final, em meio a euforia geral pela conquista da Seleção
no Mundial do México, Mauro reencontra sua mãe, que volta sozinha para
buscá-lo, subentendendo que o pai do garoto não tenha sobrevivido ao
período do terror e assim, com a imagem de dentro de um táxi, a voz do
menino encerra com seguinte narração: “E assim foi o ano de 1970, o Brasil
virou Tri-Campeão. E eu mesmo sem querer e entender direito, virei uma coisa
chamada exilado. Eu acho que exilado quer dizer, ter um pai tão atrasado, mas
tão atrasado que nunca mais volta para casa”.

Figura 2. Capa do Filme de Cao Hamburguer: Disponível em:


https://coversblog.wordpress.com/category/filmes-originais/page/470/
Com as duas obras aqui explicitadas, embora separadas
temporalmente uma da outra por mais de duas décadas são claramente
complementares e transformando-se em importante material para o
conhecimento de um dos piores períodos da história brasileira, mostrando a
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força do futebol como catalisador dos momentos difíceis e sua força simbólica
de identidade do povo brasileiro que vivia uma feroz ditadura, que abriu feridas
que jamais serão cicatrizadas.

CONCLUSÃO

Através destas linhas foi possível verificar a visão cinematográfica


acerca do período de maior terror da Ditadura Militar imposta no Brasil entre
1964 e 1985, embora cada obra retrate da sua maneira e em seu tempo, sua
ótica sobre a conquista brasileira na Copa do Mundo de 1970 e os “Anos de
Chumbo” mostra a importância desta época de nossa história ser
constantemente revisitada, para que nossos mortos e torturados jamais caiam
no esquecimento coletivo.
Constantemente utilizado como meio propagandístico, o futebol
sempre foi muito bem aproveitado por todos governos, independentemente
de sua ideologia política, pois carrega consigo, o apelo popular e o sentimento
de amor patriótico, muito bem retratado pela “sétima arte”, como pano de
fundo para as atrocidades da Ditadura vigente no país durante mais de 20 anos
e mostrado de maneira explícita na obra de Farias, filmado ainda durante o
regime dos militares.
Já o longa de Hamburguer, mesmo produzindo quando o fim do regime
já havia findado há quase duas décadas, mostra de maneira comedida o
período do terror, em momento de euforia pela conquista do Tricampeonato
Mundial de futebol, no México, cúmplice de governos ditatoriais. Nessa mesma
época, o Brasil foi campeão de inúmeros títulos, aleijou, prendeu, torturou e
matou, milhares de brasileiros e muitos destes, não restaram sequer vestígios.
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FONTES

FARIAS, Roberto (Dir.). Pra frente Brasil, 1982.

HAMBURGUER, Cao (Dir.). O Ano que meus pais saíram de férias, 2006

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou Cachorro, Não: Música Popular Cafona e
Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2003

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.

GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil: Uma história da maior


expressão popular do país. São Paulo: Editora Contexto, 2009.

MOCELLIN, Renato. O Cinema e o Ensino da História. Curitiba: Nova Didática.


2002. Coleção Revisitando a História.

NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: Utopia e Massificação (1959-1980),


2ª Ed. São Paulo: Contexto, 2004

RAMOS. Roberto. Futebol: Ideologia do Poder. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes. 1988.


MEU AMIGO CLÁUDIA
Resenha

Áthyla Caetano1

O documentário Meu Amigo Cláudia conta a história da travesti Cláudia


Wonder (1955 - 2010), que teve seu auge durante as décadas de 1970 e
1980. Transitou desde a pornochanchada ao ativismo na causa das
travestis e transexuais, passando pela cena de punk-rock paulistana dos
anos 80.
Nascido Marco Antônio Abrão, Cláudia foi fruto de uma gravidez não
planejada, que chegou a termo mesmo após várias tentativas de
abortamento, experimentou desde cedo o abandono, já que fora renegada
pela mãe e acabou sendo criada pelos tios-avôs. Nem mesmo a criação
rígida impediu que a sua feminilidade aflorasse.
Em 1978 Cláudia Wonder (o sobrenome vem de wonderful/maravilha)
viaja para Europa, desembarcando em Paris, e volta ao Brasil toda feita,
com seios e muito mais feminina. Cláudia foi uma agitadora cultural, suas
performances eram sinônimas de subversão política e social. Dessa fase, o
documentário menciona o sucesso do espetáculo Vômito do Mito, no qual
Cláudia se apresentava numa banheira de sangue no extinto Madame Satã.
Ela também chegou a liderar uma banda punk e foi grande amiga do
escritor Caio Fernando Abreu (1948 – 1996), que escreveu especialmente
para ela uma crônica que deu nome ao documentário - Meu Amigo

1
Bacharel em Ciências Biológicas – UFES/Licenciado em Biologia – IFES/Especialista em Educação - IFES
Cláudia.
No documentário, Cláudia confidencia suas descobertas e fala das várias
formas de preconceito culminadas em agressões - físicas, psicológicas e
morais, sofridas ao assumir sua travestilidade. O cenário era inóspito, o
diretor destaca a Operação Tarântula, criada em 1987 pelo prefeito Jânio 2

Quadros, onde a polícia civil prendeu mais de 300 travestis sob a acusação
de transmitir aids.
Nessa mesma época, Wonder chocava ao aparecer nua na capa de uma
revista voltada ao público masculino heterossexual. E, não era a primeira
vez, Cláudia havia encenado o primeiro pornô brasileiro com uma travesti
no elenco – Sexo dos anormais, com direção de Alfredo Sternheim. Atuou
na peça O homem e o cavalo, dirigida por José Celso Martinez Corrêa e
participou de longas como O marginal e A próxima vítima. Cláudia Wonder
se torno performer e fez história na noite paulistana. Além de engajar-se
em defesa dos direitos LGBT. No filme, Cláudia aborda a transfobia dentro
da própria comunidade LGBT – provocadas por gays, lésbicas e bissexuais.
Cláudia aponta o advento da Aids – Peste gay, como causa do
recrudescimento da discriminação e da violência física contra travestis e
homossexuais na década de 1980.
O filme destaca a importância de Cláudia nas causas sociais das travestis e
transexuais, presidindo uma ONG localizada na esquina da Rêgo Freitas
com a Major Sertório, no centro de São Paulo.
O filme também revela a veia musical da multiartista que, nos anos 80, foi
vocalista das bandas de rock Jardim das Delícias e Truque Sujo.
Meu Amigo Cláudia conta ainda com depoimentos respeitosos de pessoas
que conviveram com a musa inspiradora, como José Celso Martinez Corrêa,
Glauco Mattoso, Sergio Mamberti, Grace Gianoukas, Leão Lobo, Leilah
Rios, Alfredo Sternheim, Kid Vinil, Edward MacRae, Reka, Ézio Fernandes
de Avilla entre outros. 3

Apesar de ter excursionado em festivais internacionais em 2009, o


documentário teve uma estreia tímida no circuito nacional somente em
2013. Meu amigo Cláudia merece ser redescoberto.
O documentário se encerra ao som de Funkydiscofashion lançado por
Cláudia em 2007:
Não me chame de madame/ sem saber o que diz/ eu não sou uma dama/
eu sou travesti.

REFERÊNCIA
PINHEIRO, D.; MENDONÇA, C.; SORO, D.; WERDESHEIM , B.; CHALABI, A.
Meu Amigo Cláudia. [Filme-vídeo]. Produção de Chica Mendonça, Daniel
Soro, Biba Werdesheim e Alexandre Chalabi, direção de Dácio Pinheiro.
São Paulo, Piloto Cine e TV, 2009. Digital, 87 minutos. Color. son.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=itkOf5BMflI>. Último
acesso em: 10 de jun. de 2016.
DA TRABALHADORA A ESTUPRADA: UM BREVE APANHADO
SOBRE A MULHER TUPINAMBA

Carolyne do Monte De Paula 1

Resumo
Refletir sobre as questões de gênero é algo que vai muito além do debate que
compreende a relação entre homens e mulheres na sociedade. Refletir sobre gênero é
fazer uma reflexão cultural e histórica, pois construções referentes ao feminino
diferenciam-se entre as culturas e alteram-se com o passar do tempo. Logo trabalhar
com gênero é também eleger um espaço, um tempo e uma cultura. Neste trabalho nos
norteamos principalmente pelo aspecto cultural da sociedade tupinambá no que se
refere às posições e significações atribuídas à mulher tupinambá. Para isso nos
apoiamos em duas principais obras de uma bibliografia especializada nos estudos
tupis. Buscando destacar as características e posições da mulher tupinambá nesta
cultura.
Palavras- Chave: Gênero; Mulher tupinambá; cultura.

Abstract
Reflect on gender issues is something that goes far beyond the debate that
understands the relationship between men and women in society. Reflect on gender is
to make a cultural and historical reflection, because the female related constructions
differ between cultures and change with the passage of time . Soon work with gender
is also elect a space, time and culture. In this work we are guided primarily by the
cultural aspect of Tupinambá society with regard to the positions and meanings
attributed to tupinambá woman. For this we rely on two main works of a specialized
bibliography in Tupi studies. Seeking to highlight the features and positions of
tupinambá woman in this culture.
Keywords : Gender; tupinambá woman; culture.

1
Carolyne do Monte De Paula, graduanda em Licenciatura em História-UPE. Colaboradora no Grupo de
Pesquisas Interdisciplinares em Formação de Professores, Política e Gestão Educacional/UPE.
Introdução
As questões de gênero tem sido alvo de diversos debates na
academia e de construções que ainda estão a se fazer nos campos
teóricos, visto que o tema constitui-se como relativamente novo. Os
debates tornam-se ainda mais calorosos quando se trata do debate no 2

ambiente escolar no Brasil, pois tramita em diversos estados do país


projetos de leis que visam à proibição da denominada “ideologia de
gênero” em salas de aula. “A definição mais corrente de gênero é a que o
considera uma categoria relacional, ou seja, gênero é entendido como o
estudo das relações sociais entre homens e mulheres, e como essas
relações são organizadas em diferentes sociedades, épocas e culturas.”
(SILVA,SILVA,2010,p.166). Logo falar sobre gênero compreende uma
multiplicidade de construções de identidades atribuídas ao homem e a
mulher. Os estudos de gêneros estão diretamente relacionados à
representação do feminino e a história da mulher. E, apesar do termo
gênero não se limitar apenas a questões ligadas a mulher em sua
identidade, representação, posição social e história, esta ocupa posição
fundamental e fundante nesses estudos. Discutir as questões ligadas a
gênero é reconhecer que as posições e identificações sobre homens e
mulheres compreendem aspectos para além dos determinados pelo
biológico. Mas fazem parte de uma trama maior e mais complexa
construída historicamente, assim como variam em cada tempo e espaço.
Assumindo características singulares de cultura para cultura
estabelecendo a comunição entre os indivíduos que a compõem.
Segundo Clifford Guertz(1978,p. 89 Apud Carvalho) “o conceito de
cultura... denota do significado de um padrão de significados construídos
historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções
expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens se
comunicam...”. Logo compreender as culturas é atentar para as 3

significações que as mesmas possuem, e as questões referentes a gênero


estão dentre essas significações, compreender uma cultura é também
compreender sua história.. Sendo assim este trabalho se orienta pela
perspectiva de Chartier,2009 de que toda história (econômica, política,
demográfica, etc...) é cultural, visto que todas essas são resultados das
significações dos indivíduos.
Portanto nos propomos a contribuir com as discussões
empreendidas pelo âmbito dos estudos de gênero, tomando como
referencial dessa discussão a sociedade tupinambá e sua cultura. Nosso
objeto de estudo dentro desta cultura é a mulher tupinambá e as
representações construídas sobre a mesma. Assim como Chartier
reconhecemos que “O fato da literatura se apoiar no passado e também
fazer usos de técnicas que o configurem como real, faz as fronteiras entre
história e ficção ficarem cada vez mais estreita.” (CHARTIER,2009,p.27).
Partindo desse pressuposto nos propomos a discutir as posições e
significações sobre a mulher tupinambá nessa cultura com base em dois
textos, um historiográfico e outro literário.
A ideia é captar algumas facetas sobre a qual a mulher Tupinambá
pode ser vista, já que esta é alvo de diversos estudos e pesquisa dentro do
cenário sul-americano. Com base na obra de Beatriz Perrone-Moisés, que
trata da vida dos Tupis, analisa-se como esta mulher é apresentada em
seu texto. Destarte tem-se na maravilhosa e bem trabalhada obra de
Alberto Mussa, que reconstrói o mito cosmológico dos Tupinambás,
mostrando outras facetas em que se apresenta a mulher nesta sociedade.
4

Mulher tupinambá: da trabalhadora a estuprada


A figura masculina é simbólica para os tupinambás. Principalmente
por esta se configurar como uma sociedade guerreira, envolta da lógica
antropofágica, a qual é executada pelo homem. É inegável o quão
relevante é a função social do homem nesta cultura, assumindo papel
inclusive de destaque. Contudo apesar de todo este reconhecimento do
papel do homem, a presença das mulheres não foi despercebida pelos
cronistas e as fontes que temos acesso, principalmente no que se refere
ao papel desempenhado pela mulher na economia desta sociedade.
A este fator econômico é dado muita importância aos olhos dos
europeus, pois os mesmos não estavam acostumados a ver suas mulheres
envolvidas em assuntos econômicos ou executando qualquer tipo de
trabalho, diferentemente das mulheres Tupinambás. Estas, como foi bem
observado pelos cronistas, trabalhavam exaustivamente, quase sem ter
algum descanso após o parto. A sobreposição da figura masculina em
relação à feminina na sociedade Tupinambá é factível. Mas isso não fez
com que ela, a mulher, ficasse de fora dos relatos de cronistas e colonos
contemporâneos a esta sociedade. Assim como até hoje a mulher
Tupinambá dentro deste contexto serve como objeto de estudo de muitas
pesquisas, principalmente no que diz respeito a um imaginário sensual
ligado a sua figura, trazido pela imagem da “índia”, referenciada em
trabalhos clássicos, como sedutora, e o português europeu como
seduzido.2 O tratamento para com a mulher Tupinambá, a partir da
perspectiva econômica que a coloca como trabalhadora incansável, mas
também como símbolo que expele sexualidade, atribuindo-lhe a sedução 5

como característica, revela que são atribuídas diversas facetas a esta


mulher Tupinambá, do ponto de vista analítico de sua representação.
Sendo assim, tomando como base uma bibliografia especializada
buscamos analisar, assim como, captar, a forma que esta mulher é
apresentada, de acordo com os autores, Beatriz Perrone-Moisés e Alberto
Mussa.
E já que estamos falando de mulher, é bem pertinente começar esta
análise pela autora em questão. O texto de Beatriz, que será analisado é
intitulado de “A vida nas aldeias dos Tupi da costa”, nele Beatriz com
tamanha maestria narra um dia dentro de uma aldeia Tupinambá,
fornecendo elementos que levam ao conhecimento do leitor vários
aspectos da cultura Tupinambá, que vão desde seus valores morais até a
forma como eles se organizam para um ataque a um aldeia inimiga. É
interessante a forma como ela desenvolve o texto, pois através de sua
narrativa é possível identificar elementos do cotidiano dos Tupinambás,
como por exemplo, a conversa dos homens para decidir as atividades da
aldeia.

2
Análise feita por Norvell em seu artigo: NORVELL,Jonh M.A brancura desconfortável das camadas
médias brasileiras. IN: Raça como retórica: a construção da diferença/ Organizadoras, Claudia Barcellos
Rezende e Yvonne Maggie. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001.p. 247-267.
A partir do texto de Beatriz é possível identificar as funções da
mulher, assim como a visão que os próprios tupinambás possuem de suas
mulheres.
A primeira função da mulher citada por Perrone-Moisés é
desempenhada ao amanhecer o dia, é a de reavivar o fogo que ficou aceso 6

a noite toda. O fogo tem uma função de demarcação territorial, cada


família com o seu fogo, assim como também possui uma relação com o
espiritual, pois o fogo é responsável por afastar os espíritos de anhanga 3
da aldeia. São as mulheres também que preparam unguentos para a
cicatrização das feridas dos homens após o ritual de canibalismo, assim
como remédios, e se ocupam do tratamento dos doentes da tribo 4.
Também são as mulheres que lavam as redes, nos rios, retirando deles
água em vasilhas que servem de reserva. São as mulheres que cozinham
grandes panelas de mandioca para a produção de Cauim, bebida típica
entre os tupis feita da fermentação da mandioca. Destarte vão à roça para
a coleta. Além de prepararem a refeição com os alimentos trazidos da
caça pelos seus genros ou maridos. São as mulheres também que fabricam
a cerâmica, uma atividade restrita a elas, como quase todas as que elas
desenvolvem. Como disse Beatriz:

3
Segundo a mitologia tupinambá anhagas são os espíritos de pessoas que morreram em um incêndio
que provocou a destruição do mundo, e esses espíritos vivem na terra atormentando os tupinambás.
4
O termo tribo aqui utilizado, não é sinônimo de etnia, conceito difundido por Melatti. Mas se aproxima
mais da ideia de grupo tribal, visto a diversidade cultural e a falta de homogeneização social entre as
populações indígenas no Brasil. Considera-se então a cultura compartilhada entre dialetos e língua,
Tupinambá, e o local habitado. SILVA, Kalina Vanderlei; São Paulo: SILVA,Maciel Henrique. Dicionário de
Conceitos Históricos. São Paulo: Contexto, 2005.p.409-410.
“A cerâmica é uma atividade cercada de cuidados e
restrições... Cada uma delas deve cuidar de queimar a
peça que fabricou para que não rache no cozimento,,
e também, posteriormente, com um pincel, da
delicada decoração de cor acinzentada sempre
diferente.” (PERRONE-MOISÉS,p.15).
7

O texto em questão também apresenta uma visão simbólica da


mulher, pois destaca algumas funções que tem uma conotação ligada a
lógica cultural dos Tupinambás. Por exemplo, Beatriz cita o momento da
chegada de um visitante europeu na aldeia, para assim descrever o
comportamento dos Tupis, para com o mesmo:

“Como todos os visitantes, este é recebido, com a


chamada saudação lacrimosa, cerimônia de boas-
vindas em que as mulheres, de cócoras, choram
enquanto expressam a alegria de rever o visitante, a
saudade que dele sentiram e o quanto apreciam que
tenha feito o esforço de vir até sua aldeia... Depois
disso, o dono da casa, ou seja, o homem que recebe o
visitante em seu setor da casa, entabula a conversa,
perguntando “Você veio? Como está O que quer?” E
lhe oferece comida.” (PERRONE-MOISÉS,p.17)

Observamos que neste caso a mulher desempenha uma função que,


primeiramente só é atribuída a ela, assim como por ser uma função de
choro, embora também por vezes mistura-se com a alegria, este choro
expressa uma saudade, uma tristeza a qual não pode ser expressa pelo
homem, pois este fica com a função interrogatória. Ou seja, é necessário
que se mostre ao visitante o quanto sua falta foi sentida, mas este
sentimento não pode ser expresso pelo homem, pois este é a
personificação da valentia e força, diferentemente da mulher.
A mulher também se apresenta como símbolo de graciosidade,
representando o melhor que aquela tribo pode oferecer. Ainda sobre a
visita do europeu, Beatriz narra, como acontece a troca entre a tribo e os 8

visitantes. “Uma mulher traz, assim uma boa quantidade de farinha, e sai
satisfeita com algumas pulseiras e coisas coloridas... Outra entrega ao
visitante um cesto cheio de frutas .... Uma moça oferece um papagaio já
domesticado...(PERRONE-MOISÉS,p.17) São elas que mediam as trocas
realizadas entre os europeus e sua aldeia, aparecendo como um tipo de
cartão postal da mesma.
Do mesmo modo que elas entoam a canção lacrimosa, elas são as
responsáveis por carregar os mantimentos e utensílios necessários para o
empreendimento da guerra. Mas estas não acompanham os homens
guerreiros em sua saída para o ataque, estas ficam atrás e depois o
encontram no local combinado. Pois estas são a parte indefesa do grupo.
Assim como as crianças e os velhos, as mulheres compõe o quadro da
parte frágil dos Tupi. 5
Passemos agora para a análise na obra de Mussa. A obra que se
analisa aqui, intitula-se “Meu destino é ser Onça” mito Tupinambá
restaurado por Alberto Mussa com base em relatos de contemporâneos
aos tupi. A obra de Mussa se divide em duas partes, a primeira refere-se
ao mito reconstruído por ele, que compreende uma narrativa de

5
“Com seus cativos amarrados, e sujeitos a repetidos por golpes e ameaças verbais ao longo do
percurso, os guerreiros e suas mulheres, empreendem a viagem de volta. Chegam finalmente à aldeia,
na qual permaneceram, entrementes, uns poucos homens para defender as mulheres, crianças e velhos
de um eventual ataque inimigo. (PERRONE-MOISÉS,p.18)
cosmogonia, e a segunda ele analisa e comenta as fontes que foram
utilizadas para o trabalho.
A primeira vez que Mussa toca no assunto da mulher, é para falar
da mistura entre as mesmas e os europeus, assim afirma: “... as fontes
históricas são pródigas, explicitas e enfáticas em demonstrar que houve 9

uma intensa miscigenação entre homens portugueses e mulheres índias-


relação em geral, que envolvia alguma forma de violência.
(MUSSA,2009,p.20) E foi está última palavra que me chamou atenção, pois
a partir da obra de Mussa, percebe-se não essa violência do europeu para
com a índia, mas uma violência dos tupinambás para com as suas próprias
mulheres. Não trata-se de uma violência entre casal, ou seja, do marido
para com a sua mulher. Entretanto a mito reconstruído por Mussa
apresenta uma série de estupros e mulheres violentadas.
Segundo a reconstrução de Mussa:

“ Os Tupinambá dividam a história do universo em


três períodos. O mundo primitivo era perfeito: não
havia morte, não havia incesto, não havia trabalho.
Mas a imprudência humana provocou um enorme
cataclismo- do qual apenas um homem se salvou. A
segunda humanidade sofreu muito, inicialmente, mas
em contrapartida viu surgir uma classe de homens
especiais, grandes feiticeiros que introduziram a
cultura... A terceira humanidade..., se viu privada de
chegar a terra-sem-mal em vida... A única solução
restante era garantir tal acesso depois da morte – o
que se obtinha com a prática canibal”
(MUSSA,2009,p.71-71)
Encontra-se essa violência para com a mulher nestes três períodos,
especialmente no segundo e no terceiro.
A mulher surgiu, de acordo com a observação do Velho Tuibae,
criador da terra, que percebe a necessidade de povoar a terra, criando
assim a primeira mulher. Não muito diferente de outras cosmologias, 10

como por exemplo, a bíblia, na qual a mulher é criada em função do


homem, para ao auxiliar. 6 Após serem criadas, as mulheres já são vítimas
de um estupro tenebroso, no qual anhanga transforma-se em animal pela
noite e aparece na terá para ter relações sexuais com as mulheres. Essas
relações fazem as mulheres darem a luz a lagartos em vez de crianças.
Mas esse é só o começo, das violações para com as mulheres nessa
história. Outra cena marcante é a de um irmão que estupra sua própria
irmã grávida: “Certo dia aproveitando o momento em que Ajuru saíra para
a caça, Suaçu, irmão de Inambu, subiu sorrateiro na rede da sua própria
irmã que estava grávida, e violou a lei do incesto” (MUSSA, 2009,p.41). A
partir deste acontecimento, inicia-se toda uma guerra entre as famílias
dos envolvidas, e a família da estuprada passou a viver sob um desejo de
vingar a honra da moça estuprada.
Há um elemento que se repete várias vezes nos estupros narrados
no mito, as mulheres são sempre pegas quando descuidam-se, geralmente
quando estão dormindo. No caso da mulher de Andejo, que cansada de

6
Alusão ao mito de Adão e Eva. A narrativa bíblica inicia-se com a criação do mundo por Deus, Javé, o
Deus dos Hebreus2, e dentro dessa criação Ele cria o homem cheio de direitos e livre para desfrutar de
tudo do melhor da criação do seu criador exceto o fruto da árvore do conhecimento do bem e o do mal.
Nesse contexto Deus cria a mulher que surge num contexto totalmente diferente do homem.
Primeiramente a mulher não surge como fruto de uma inspiração de Deus, mas como fruto da
perspicácia de Deus que percebe que nãoé bom que o homem viva só, em vez de liberdade e soberania
na terra a mulher vem ao mundo subjugada marcada por uma funcionalidade, de auxiliar e
corresponder ao homem. ( Gênesis 2: 15-18)
um dia de caminhada encontra um homem que a convida para dormir em
sua oca, e, “aproveitando seu descuido, deitou ao lado dela e a
violentou... deixando-a grávida” (MUSA,2009, p.52)
Estes estupros constroem as tramas dentro da história, e acabam
sendo indicadores dos questionamentos, das angustias, das aflições e até 11

de explicações que não são encontradas no mundo físico. E apontam que


o grande guerreiro Tupinambá, muitas vezes não faz uso de sua força
somente na guerra. E o quanto a condição da mulher é frágil e está sujeita
a esse tipo de violência, sem ter muito o que fazer, porém podendo ser
por muitas vezes vingada. Logo estes casos de violência entre os próprios
Tupinambás revelam que um inimigo, a qual se dirige a tão necessária
vingança para esta cultura, não é só aquele da aldeia inimiga, que comeu
seus antepassados. Mas o inimigo também pode ser aquele que quebra as
regras sociais estabelecidas, sendo assim, alvos de vingança.

Considerações finais
Tanto o texto de Beatriz Perrone-Moisés que mostra o quanto a
mulher Tupinambá é cheia de afazeres, atividades tão importantes para o
funcionamento da aldeia, porém não equiparadas a guerra realizada pelos
homens. Assim como a violência que pode ser observada dentro da obra
de Mussa, a partir dos atos dos homens para com mulheres são
indicadores da posição social da mulher nesta sociedade. O que nos
remete a ideia de estratificação social.
É tanto quanto delicado tratar de uma aplicação dessa ideia na
sociedade Tupi. Segundo Oliveira “A estratificação social indica a
existência de diferenças, de desigualdades entre pessoas de uma
determinada sociedade. Ela indica a existência de grupos de pessoas
diferentes.” (OLIVEIRA, 1998,p.71), fica bem claro o quanto a ideia de
estratificação e mobilidade, isto é, “ mudança de posição social de uma
pessoa num determinado sistema de estratificação social.” (OLIVEIRA, 12

1998,p.73), fazem muito mais sentido em sociedades industriais como a


nossa. Os cronistas foram bem claros, veementes e repetitivos, quanto a
esse aspecto, observando a ausência de hierarquias e comandos na
sociedade tupi, afirmou José de Anchieta: “Cada um é rei de sua casa,
vivendo como quer... Vivendo sem leis nem autoridade...” Os
pesquisadores da área, também apresentam-se em consenso, enquanto a
isso.” (CALDEIRA,2008,p.52)
Contudo é possível identificar na sociedade Tupi, a presença de um
determinado status atribuído há alguns componentes do grupo. Esse
status não é hierarquizador,configurando posições superiores e inferiores.
Esse status é diferenciador, ou seja, ele diferencia um individuo do outro
de acordo com alguns bens. Mas esses bens, não são materiais, ou algum
tipo de poder político. Esse bens são parte da lógica cultural dos Tupi, ou
seja, esse bens, são bens morais, que apontam maior conhecimento e
experiência daquele determinado individuo. No caso das mulheres
mesmo, Fernandes aponta que as mulheres mais velhas se diferenciavam
das mais novas, pois estas primeiras possuíam maior domínio sobre a arte
da produção de cerâmica, assim como as bebidas. Assim como a posição
da mulher era diferenciada da dos homens em relação ao seu trabalho. As
mulheres não realizavam a guerra, atividade considerada mais importante
entre os tupinambás. Mas eram responsáveis pela agricultura, produção
de cerâmica entre outras atividades. Contudo os estupros representados
na obra de Mussa mostram como sua condição era vulnerável. E que a
violência contra a mulher é um problema tão amplo e complexo quanto o
apresentado pelas sociedades ditas ocidentais. 13

Referências Bibliográficas
CALDEIRA, Jorge (org.) Brasil: A história contada por quem viu. 1ed. São
Paulo: Mameluco,2008.
CARVALHO, Alexandre Flirordi. Educação e Imagens na Sociedade do
Espetáculo: as pedagogias culturais em questão. Educação & Realidade,
Porto Alegre, v. 38, n. 2, p. 587-602, abr./jun. 2013. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/edu_realidade Acesso em: 15/03/2016.
CHARTIER,R A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2009.
FERNANDES,João Azevedo. De Cunha a Mameluca: A mulher Tupinambá
e o nascimento do Brasil. João Pessoa: editora Universitária/UFPB,2003.
História dos índios no Brasil. Manuela carneiro de Cunha (org.). São
Paulo: Cia. Da Letras/ Fapesp/SMC-SP, 1998
MUSSA, Alberto. Meu destino é ser Onça. Rio de Janeiro: Record, 2009.
OLIVEIRA,Pérsio dos santos de. Introdução à sociologia. São Paulo: editora
Ática, 1998.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. A Vida nas Aldeias dos Tupis da Costa, in:
Oceanos nº42. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2000.
SILVA, Kalina, SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos.
São Paulo: Contexto, 2005.

14
O CAMPO POLÍTICO: AS DISPUTAS PELA LIDERANÇA DO
PARTIDO REPUBLICANO FEDERAL NO AMAZONAS EM 1910

Daniel Rodrigues de Lima1

RESUMO: 1
A presente pesquisa tem como tema: O campo político: as disputas pela liderança do
Partido Republicano Federal no Amazonas em 1910. O objetivo geral que se pretende
alcançar com o estudo da presente pesquisa é: compreender as disputas pela liderança
do Partido Republicano Federal no Amazonas em 1910, em que se utilizara a
perspectiva teórica de campo político de Pierre Bourdieu. Pode-se elencar alguns dos
periódicos que consultou-se em nossa pesquisa como: Correio do Purus, Correio do
Norte, Diário do Amazonas, A Notícia e Folha do Amazonas (estes com circulação e
funcionamento no Amazonas), estes jornais nos ajudam a visualizar a disputas políticas
em torno da liderança do Partido Republicano Federal no Amazonas, pois os mesmos,
funcionavam como órgãos propagadores de representação de visão social do mundo
dos grupos antagônicos. Entende-se que muito há para pesquisar sobre a temática que
de forma breve foi apresentada nestas páginas. Onde a leitura e análise crítica das
fontes, em especial os jornais que circularam no período em questão, nos permitem
compreender as disputas acirradas em torno dos cargos de liderança na política
amazonense, e dessa forma, levar ao conhecimento acontecimentos tão importantes
da História Política do Amazonas na primeira década do século XX.
PALAVRAS-CHAVE: Partido Republicano Federal no Amazonas. Representação de visão
social do mundo. Liderança e disputas. Antonio Bittencourt. Silvério Nery.

RESUMEN:

Esta investigación tiene como tema: El campo político: las disputas por el liderazgo del
Partido Republicano Federal en el Amazonas en 1910. El objetivo general de lograr con
el estudio de esta investigación es: entender las disputas por el liderazgo del Partido
Republicano Federal en el Amazonas en 1910, en el que se había utilizado la
perspectiva teórica del campo político de Pierre Bourdieu. Puede enumerar algunas de
las revistas consultadas en nuestra investigación como Purús electrónico, correo de
Norte, Diario de Amazon, La Hoja de Noticias y Amazon (éstos con el movimiento y el
funcionamiento de la Amazonia), estos periódicos nos ayudan vista las disputas
políticas en torno a la dirección del Partido republicano Federal en la Amazonia, ya que
funcionaban como Propagadores órganos de la visión social de la representación del
mundo de grupos antagónicos. Se entiende que hay mucho que investigar sobre el
1
Graduado em Licenciatura em História (UNIASSELVI). Especialista em Ensino de História pela Faculdade
de Educação e Tecnologia da Região Missioneira (FETREMIS). Mestrando em História (UFAM). Professor
tutor externo da UNIASSELVI do Curso de Licenciatura em História.
tema que se presentó brevemente en estas páginas. Donde la lectura y el análisis
crítico de las fuentes, especialmente los periódicos que circularon en el período en
cuestión, nos permiten comprender las amargas disputas sobre posiciones de liderazgo
en la política del Amazonas, y por lo tanto para informar a este tipo de eventos
importantes en la política de la historia Amazonas en la primera década del siglo XX.

PALABRAS CLAVE: Partido Republicano Federal en la Amazonia. Representación de la


visión del mundo social. Liderazgo y disputas. Antonio Bittencourt. Silverio Nery. 2

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como tema: O campo político: as disputas


pela liderança do Partido Republicano Federal no Amazonas em 1910. A
partir, da temática proposta, busca-se analisar como se desenvolveu o
processo de disputas entre as lideranças do Partido Republicano Federal
no Amazonas, em busca da autoridade e hegemonia como discurso
político ou representação de visão de mundo social (ideologia) autêntica e
legítima dentro da instituição.

A escolha do tema ocorreu devido a proposição de um trabalho de


conclusão de disciplina (História, trabalho e movimentos sociais na
Amazônia) do PPGH-UFAM, proposto pelo professor doutor César Augusto
Bubolz Queirós.

Acredita-se que a pesquisa da temática é relevante, pois promove a


compreensão de uma parte significativa da história política do estado
Amazonas, em que as disputas pelos postos de liderança no Estado eram
uma constante (1891 a 1924), onde estas disputas ultrapassaram o campo
do discurso e, por muitas vezes, houveram conflitos que deixaram muitas
vítimas2.

Os objetivos que se pretende alcançar com o seguinte estudo são:


compreender as disputas pela liderança do Partido Republicano Federal
3
no Amazonas em 1910, em que se utilizara a perspectiva teórica de campo
político de Pierre Bourdieu. Além disso, busca-se também: conceituar
habitus, campo político e ideologia ou representação de visão de mundo
social, de acordo com as ideias de Bourdieu; analisar como os jornais da
época se posicionavam ideologicamente acerca das disputas; e
contextualizar o palco das disputas, ou seja, a cidade de Manaus no
período de 1910.

Algumas obras e artigos são de fundamental importância para


compreensão e busca do alcance dos objetivos, em que os autores ajudam
no entendimento do aporte teórico que se utilizou na construção da
pesquisa.

Pierre Bourdieu é o teórico principal desse trabalho em que algumas


de suas obras são de extrema importância, pois suas leituras nos fizeram
compreender e colocar seus métodos de pesquisa na análise do objeto.
Seus conceitos de habitus, campo e visão de mundo são fundamentais em
nossa análise.

2
Ver seguintes obras: BITTENCOURT, Agnello. Corografia do Estado do Amazonas. Manaus: ACA-Fundo
Editorial, 1985; FEITOSA, Orange Matos. Sob o Império da Lei: o amanhecer da República no Amazonas
(1892-1893). Manaus: Laureate; Uninorte; Fundação Encontro das Águas, 2008; LOUREIRO, Antônio José
Souto. Síntese da História do Amazonas. Manaus: Imprensa Oficial, 1978; SANTOS, Eloína Monteiro dos.
A Rebelião de 1924 em Manaus. 2ª Edição – Manaus. SUFRAMA; Gráfica Lorena, 1990.
Uma obra de extrema relevância é O Poder Simbólico (1989), onde
no capítulo VII- A representação política: Elementos para teoria de um
campo, Pierre Bourdieu, fala sobre o campo do poder e o campo político,
em que demonstra como se estabelecem as visões de mundo que se
legitimam e se tornam autênticas e hegemônicas dentro da política, 4

destrinchando os mecanismos utilizados pelos agentes na luta pela


liderança dentro do campo. Em que de acordo com Bourdieu:

[...] Os interesses diretamente envolvidos na luta pelo


monopólio da expressão legítima da verdade de
mundo social tendem a ser o equivalente específico
dos interesses dos ocupantes das posições homologas
no campo social, os discursos políticos acham-se
tocados de uma espécie de duplicidade estrutural: na
aparência diretamente destinados aos mandantes,
eles são, na realidade, dirigidos aos campos.
(BOURDIEU, 1989, p. 155-156)

Cabe salientar, outra a obra, Coisas Ditas (1990) e o capítulo


intitulado: “Espaço social e poder simbólico”, em que tem-se uma
conceituação teórica com exemplos práticos do que vem a ser habitus na
ideia de Pierre Bourdieu, onde essa noção é apresentada assim:

[...] como sistema· de esquemas adquiridos que


funciona no nível prático· como categorias de
percepção e apreciação, ou como princípios de
classificação e
simultaneamente como princípios organizadores da
ação, significava construir o agente social na sua
verdade de operador
prático de construção de objetos (BOURDIEU, 1990, p.
26)

5
Percebe-se, dessa forma, o Habitus como uma forma de
organização de percepção de mundo que ajuda a compreender o
comportamento dos indivíduos em nível de agrupamentos sociais e no
nível individual. É, além disso, uma experiência biográfica, em que ele
acaba dividindo a realidade social em classes, que possuem mecanismos
de distinção.

Em, O Campo Político (2011), publicado pela Revista Brasileira de


ciência Política, Bourdieu em conferência em Lyon na França em 1999, fala
e conceitua o campo político com palco de disputas constantes dentro da
realidade política, em que observa o campo político como palco de um
jogo político, que dentro da realidade social é um microcosmos
autônomo.

A noção de campo político tem muitas vantagens: ela


permite construir
de maneira rigorosa essa realidade que é a política ou
o jogo político. Ela
permite, em seguida, comparar essa realidade
construída com outras realidades como o campo
religioso, o campo artístico... e, como todos sabem,
nas ciências sociais, a comparação é um dos
instrumentos mais eficazes, ao
mesmo tempo de construção e de análise.
(BOURDIEU, 2011, p. 194)
E continua sua conceituação sobre o campo político afirmando o
seguinte, em que o:

[...] campo político como um lugar em que certo


número de 6
pessoas, que preenchem as condições de acesso, joga
um jogo particular do
qual os outros estão excluídos [...] Quanto mais o
campo
político se constitui, mais ele se autonomiza, mais se
profissionaliza, mais
os profissionais tendem a ver os profanos com uma
espécie de comiseração. (BOURDIEU, 2011, p. 197)

Ou seja, o campo político é um espaço, também, de distinção entre


profissionais e profanos, os profissionais se distinguindo dos profanos pelo
fato de seu quantum econômico e cultural serem mais elevados, com isso,
com estes aparelhos distintivos os profissionais conseguem diante dos
profanos fazer valer sua visão de mundo social, mas não quer dizer que os
profanos não possam subverter tal ordem.

Outros artigos que trabalham com os conceitos e com a teoria de


Bordieu nos auxiliaram na execução de nosso trabalho, como: o de José
Otacílio Silva em “A produção de discursos políticos na visão de Pierre
Bourdieu” (2005), demonstra como sociólogo francês desenvolve o
conceito de ideologia ou visão do mundo social, em que diversos termos
são utilizados pelo autor para denominar ideologia, como: sistema
simbólico, visões de mundo, discursos políticos e história reificada:
[...] a luta simbólica não é outra coisa senão a ‘luta
pela conservação ou pela transformação do mundo
social por meio da conservação ou da transformação
da visão do mundo social ou, mais precisamente, pela
conservação ou pela transformação das divisões
estabelecidas entre as classes por meio da
transformação ou da conservação dos sistemas de 7
classificação que são a sua forma incorporada e das
instituições que contribuem para perpetuar a
classificação em vigor, legitimando-a’ (BOURDIEU,
1989, p.174). Em síntese, é na luta simbólica pela
representação legítima do mundo social, pelo
‘monopólio da expressão legítima da verdade do
mundo’, que os protagonistas de cada campo
específico do espaço social produzem as suas visões
de mundo, as suas ideologias, no caso do campo
político, as ideologias ou discursos políticos. (SILVA,
2005, p. 196)

De acordo como o dito acima, as representações das visões de


mundo social são maneiras como os agentes detentores de quantum
elevado de capital simbólico possuem para legitimar e tornar autenticas
sua verdades, e dessa forma, fazer ver e crer seu discurso, e com isso,
explicar o mundo social em que estão inseridos.

Falando sobre a liderança e o como esta é conquistada no campo


político o artigo: “PIERRE BOURDIEU E A NOÇÃO DE LIDERANÇA
POLÍTICA”, de Raquel Brum Fernandes, aborda em sua análise como
ocorre a conexão do grupo com o indivíduo representante, em que o líder
consegue a autenticidade e hegemonia dentro do campo político falando
em nome de muitos e fazendo valer sua representação de visão de mundo
social (ideologia).

[...] Através desse poder o líder obtém a capacidade


de exercer sobre todos os demais membros do grupo
uma violência simbólica (na medida em que também é 8
dissimulada) pois não se apresentaria aos indivíduos
não estarem sujeitos a própria expressão máxima da
coletividade e sua identidade. Bourdieu fala de efeito
de oráculo, que seria justamente a possibilidade de
falar em nome do grupo e envolveria essa aparente
abnegação em prol da função desempenhada, ele diz
que: ‘É se anulando completamente em benefício de
Deus e do povo é que o sacerdote se faz Deus ou o
povo’ (BOURDIEU, 1983, p. 52). Dessa maneira o líder
deve generalizar seu interesse próprio a fim de fazê-lo
passar como interesse coletivo, e para isso um
conjunto de técnicas de oratória, de construção
textual e de aparência são empregadas. Vale ressaltar
que o sucesso do líder está associado ao seu
conhecimento das condições do jogo, ele precisa
saber como dirigir as assembleias e como evitar o
confronto com seus liderados ao demonstrar devoção
e sacrifício em nome da causa. Previsões e ideias em
geral ganham força quando proferidas por alguém que
possui reconhecimento, poder simbólico, suas
palavras são capazes de mobilizar ou desanimar o
grupo. (FERNANDES, 2010, p. 36)

Com isso, o líder conquista essa condição, pois possui elementos


distintivos que o favorecem nessa posição, ou seja, um elevado capital
cultural, e dessa forma, passa a ter reconhecimento pelos membros do
grupo que passam a ser seus dominados, e a palavra do líder acaba se
tornando a verdade do mundo social.

Em “Campo do poder, segundo Pierre Bourdieu” (2003), Denise


Maria de Oliveira Lima, desenvolve analise sobre a noção de campo, como
9
espaço de relações de poder, em que antagonismos são observados, onde
existe posições de dominantes e dominados no jogo político, de acordo
com o capital simbólico, econômico ou cultural dos agentes e das
instituições, onde: “O campo de poder, que não se confunde com o campo
político, é o espaço de relações de força entre os diferentes tipos de capital
ou entre os agentes providos de um dos diferentes tipos de capital para
poderem dominar o campo” .(LIMA, 2003, p. 3)

Para contextualizarmos historicamente o período que vai de 1900 a


1910 no Amazonas, utilizou-se, Antônio José Souto Loureiro (1978) com
“Síntese de História do Amazonas”, Edineia Mascarenhas Dias (1999) com
a Ilusão do Fausto e Deusa Costa (2014) na obra Quando viver Ameaça a
Ordem Urbana. Estes autores nos permitem compreender a política,
economia, sociedade e a urbanização do estado do Amazonas, em
especial da cidade de Manaus.

Agnelo Bittencourt com duas obras contribui em nossas análises


“Dicionário Amazonense de Biografia: Vultos do Passado” e “Corografia do
Estado do Amazonas”. Na primeira obra temos acesso à biografia de
alguns agentes que se envolveram no conflito de 1910, em busca da
liderança do Partido Republicano do Amazonas (Antônio Bittencourt,
Guerreiro Antony, Silvério Nery e Sá Peixoto), pode-se entender, com esta
obra, um pouco de suas vidas e atividades, além das redes de
relacionamentos dos agentes. Na segunda obra quando fala sobre a
administração do Governador Antonio Bittencourt (seu pai), trata do
bombardeio de 1910 em Manaus, de forma muito rápida, contudo de
grande valia. 10

No que tange as fontes utilizadas para se poder compreender as


disputas pela liderança do Partido Republicano Federal no Amazonas,
utilizou-se alguns periódicos que circularam na capital (Manaus) e no
estado do Amazonas.

Pode-se elencar alguns dos periódicos que consultou-se como


corpus documental na pesquisa como: Correio do Purus, Correio do Norte,
Diário do Amazonas, A Notícia e Folha do Amazonas (estes com circulação
e funcionamento no Amazonas).

A consulta destes periódicos e sua análise se deu com auxílio da


internet, onde o site da Hemeroteca Digital Brasileira, nos forneceu objeto
suficiente e variado para se poder desenvolver a pesquisa em questão,
além da visita in loco nos acervos do IGHA e Biblioteca Pública do
Amazonas.

2- UM BREVE CONTEXTO HISTÓRICO DO AMAZONAS: POLÍTICA,


ECONOMIA, SOCIEDADE E URBANIZAÇÃO NA CIDADE DE MANAUS DE
1900 A 1910.
No que tange a questão política, pode-se listar os governantes que
passaram no governo do Amazonas durante este período: Silvério Nery
(1900-1903); Monsenhor Coutinho (1903-1904); Constantino Nery (1904-
1907); Raimundo Afonso de Carvalho (1907-1908) e Antonio Bittencourt
(1908-1912). (LOUREIRO, 1978, p. 249-250) 11

No estado do Amazonas estes diversos governadores ajudaram no


processo de urbanização e modernização da cidade de Manaus. Todos
estes governantes se destacaram por melhorias urbanas na cidade de
Manaus, em que contratos e empréstimos estrangeiros serão meios para
a realização de tais obras, além das grandes somas adquiridas com a
economia do látex. (LOUREIRO, 1978, p. 251-253)

Cabe salientar que economicamente a situação do estado era


extremamente favorável, pois a economia do látex, durante o período de
1900 até 1910, atingiu somas impressionantes, com isso:

No decorrer do século XIX, a borracha do Amazonas


começa a despontar com boas perspectivas no
comercio internacional, passando a constituir, no
decênio de 1901/1910, o segundo produto de
exportação na balança comercial do Brasil ao lado do
café. A borracha cria a sua civilização – diz Leandro
Tocantins. (DIAS,1999, p.23)

As somas advindas da economia da borracha possibilitaram a


reestruturação da cidade de Manaus, em que o padrão europeu de
civilização seria o exemplo a ser seguido, com isso foram aterrados
igarapés, construiu-se ruas e avenidas, sistemas de transporte coletivo
como os bondes, teatro e se construiu de diversos prédios públicos.

Estas mudanças na questão urbana e urbanística da cidade


possibilitaram, possivelmente, uma mudança no comportamento da
12
sociedade manauara, em que:

Ao contrário do que relata a historiografia ufanista do


apogeu da borracha, houve em Manaus uma
concentração muito grande de trabalhadores mal
pagos, explorados nos mais diferentes tipos de
serviços, que sofreram com o aumento do custo de
vida pelos altos preços dos produtos importados e
pela carência dos gêneros de primeira necessidade, o
que contribuía para as péssimas condições de vida
destes trabalhadores. A tudo isso, somam-se as
exigências e controles desenvolvidos através dos
regulamentos em relação ao exercício das diversas
atividades e profissões, acrescentando mais
dificuldades a sobrevivência daqueles que sonham
com melhores dias, como de muitos que veem o dia-a-
dia da cidade alterando-se de uma forma violenta. São
os antigos trabalhadores que se juntam aos novos
para protestar, reivindicar das mais diferentes formas
contra as cobranças advindas do controle rigoroso
sobre o uso do espaço físico, as novas medidas para o
exercício do trabalho, a escassez dos produtos de
primeira necessidade e as imposições de novos
hábitos. Sem falar dos conflitos contra o atraso do
pagamento e horário de trabalho. (DIAS, 1999, p.158)

Diante disso, essas mudanças no espaço físico da cidade acabam por


acarretar, também, em mudanças nas relações sociais existentes, e com
isso, promovem disputas tornando a área central da cidade como
ambiente ou espaço social privilegiado às elites, detentoras de capital
econômico e cultural, em que as classes populares acabam sendo
toleradas, mas não bem vindas.
13
Dessa forma, nem tudo era tão belo na “Belle Époque” manauara,
pois em tal processo de urbanização e saneamento da cidade alguns
grupos menos privilegiados foram relegados à margem da sociedade. De
acordo com Edneia Mascarenhas Dias:

Os bairros de São Raimundo, Constantinópolis


(Educandos), Colônia Oliveira Machado, Cachoeirinha,
Moco e Tocos, este o mais próximo da cidade, mas
nem por isso isento de problemas, foram às
alternativas da população pobre, os novos bairros que
surgem diferenciam-se do ‘fausto’ da cidade, não só
pelo aspecto do terreno, pela forma de arruamento,
fachadas das casas, pela distância em relação ao
Porto, as grandes casas comerciais (importadoras-
exportadoras), ao mercado, aos hospitais, aos bancos,
aos teatros, cinemas etc., mas também pela
distribuição desigual dos serviços urbanos. Este era o
lugar dos trabalhadores na nova cidade. Um espaço
onde a convivência entre ricos e pobres torna-se
impossível. (DIAS,1999, p.137)

Mesmo com isso, houveram resistências de grupos menos


privilegiados economicamente que ficaram no perímetro central da
cidade, mas tendo que se disfarçar. Francisca Deusa Sena da Costa nos
informa:
Trabalhadores e pobres urbanos ocupavam uma outra
cidade, visualmente disfarçada, habitando vilas e
cortiços de alvenaria, além de hospedarias, porões e
casebres (estes escondidos sob as paredes demolidas
do que seria o Palácio do Governo, no final da Avenida
Eduardo Ribeiro). À exceção dos casebres, as demais
opções guardavam em comum o fato de serem 14
exploradas pelo mercado imobiliário e estarem
disfarçados por belas fachadas, assépticas do ponto de
vista externo. (COSTA, 2014, p. 112)

Com o que se afirmar até o momento, é esta a cidade que será


palco de disputas e conflitos políticos. Uma cidade rica devido à economia
do Látex, com ruas suntuosas, energia elétrica, bondes, um teatro com
características europeias (Teatro Amazonas), um mercado de ferro, sendo
uma cidade cosmopolita e com ares da mais sofisticada modernidade.
Contrastada com novos bairros sem estes benesses e com cortiços
maquiados para atendimento da dita civilização, local este de moradia dos
trabalhadores que resistiram e ficaram mesmo sendo indesejados pelo
poder público.
3- OS JORNAIS COMO INSTRUMENTOS DE PROPAGAÇÃO DE
REPRESENTAÇÕES DE VISÕES DO MUNDO SOCIAL.

3.1- A IMPRENSA COMO FONTE HISTÓRICA. 15

O uso de periódicos tanto como fontes, quanto como objeto de


estudos históricos, num primeiro momento não foi ou não tiveram grande
importância até a década de 1930.

A concepção positivista dizia que todos os documentos deveriam


possuir uma objetividade, neutralidade e credibilidade, onde estes
estavam prontos e acabados, bastando transcrevê-los para se obter uma
história verdadeira e absoluta, dessa forma, a imprensa não era vista
como fonte confiável. Tania Regina de Luca, informa:

Não se pode desprezar o peso de certa tradição,


dominante durante o século XIX e as décadas iniciais
do século XX, associada ao ideal de busca da verdade
dos fatos, que se julgava atingível por intermédio dos
documentos, cuja natureza estava longe de ser
irrelevante. Para trazer à luz o acontecido, o
historiador, livre de qualquer envolvimento com seu
objeto de estudo e senhor de métodos de crítica
textual, precisa, deveria valer-se de fontes marcadas
pela objetividade, neutralidade, fidedignidade,
credibilidade, além de suficientemente distanciadas
de seu próprio tempo. Estabeleceu-se uma hierarquia
qualitativa dos documentos para a qual o especialista
deveria estar atento. Nesse contexto, os jornais
pareciam pouco adequados para a recuperação do
passado, uma vez que essas ‘enciclopédias do
cotidiano’continham registros fragmentários do
presente, realizados sob o influxo de interesses,
compromissos e paixões. Em vez permitirem captar o
ocorrido, dele forneciam imagens parciais, distorcidas
e subjetivas. (LUCA, 2005, p.112)

Com o surgimento da "História Nova", pela chamada Escola dos 16

Annales, a concepção de fontes e objetos históricos passou a ser mais


ampla e diversificada, propondo com isso romper com o tradicionalismo
da História movida apenas pelo caráter político, econômico e social, e
fazendo assim uma busca de novas abordagens, problemas e objetos.

Com essa nova visão, passariam a ser privilegiados olhares acerca


das questões culturais, cotidianas, mentais, étnicas, de gênero, minorias,
vencedores e vencidos, sem negar a relevância das questões estruturais
da longa duração e, também, as conjunturas econômica, demográfica,
política e social.

Os periódicos nesse momento começam a fazer parte dessa


construção como fontes e objetos de estudo dessa "História Nova" com
seus variados objetos, problemas e abordagens.Com isso, os jornais e
periódicos passam ao estatuto de documento da História Política, mas não
apenas dela. Diante disso, pode-se destacar o seguinte: “As renovações no
estudo da História política, por sua vez, não poderiam dispensar a
imprensa, que cotidianamente registra cada lance dos embates na arena
do poder” (LUCA, 2005, p.128)

Os periódicos utilizados como objetos de investigação histórica,


devem ser analisados com atenção, pois a imprensa é fonte de
manipulação de interesses e de intervenção na vida social, sendo estes
veículos de comunicação, não transmissores imparciais de
acontecimentos, ou seja, possuem uma posição ideológica dentro da
realidade política e social ao qual estão inseridos:
17
Os jornais não são, no mais das vezes, obras solitárias,
mas
empreendimentos que reúnem um conjunto de
indivíduos, o que os torna projetos coletivos, por
agregarem pessoas em torno de ideias, crenças e
valores que pretende difundir a partir da palavra
escrita. (LUCA, 2005, p.140)

O que se deve grande atenção ao analisar este tipo de fontes no


caso periódicos (jornais, revistas e outros gêneros) é o que tange acerca
do cuidado em verificar não o que estes documentos dizem, mas sim,
como dizem, buscando com isso, fazer crítica interna e externa desse
documento, ou seja, na interna deve-se analisar para quem escreve, por
que escreve e localizar seu público alvo, verificar a organização estética
desse periódico, seus editores e proprietários e como estes se relacionam
com o poder e suas instituições. Na crítica externa devemos analisar como
está o contexto histórico ao qual o documento foi produzido, analisando o
político, econômico, social e cultural relacionando o documento com o
momento que se escreve para com isso se compreender as motivações
daqueles que os produzem e por que produzem.

Os periódicos são fontes bastante interessantes para a construção


do saber Histórico, contudo devemos não tentar construir esse saber
apenas através destas fontes, e sim, buscar as mais variadas fontes acerca
do período estudado para que com isso possamos obter um resultado
satisfatório construindo uma representação da realidade o mais próximo
possível do que ocorreu no período estudado.
18

3.2- A IMPRENSA AMAZONENSE E SEUS EMBATES POLÍTICOS


PARTIDÁRIOS.

Os jornais, são percebidos neste ponto como agentes propagadores


de representações de visões de mundo social, em que os atores em
disputa buscam sua legitimação, autenticidade, hegemonia e a liderança,
dentro de um determinado campo social e político.

Dessa forma, os periódicos que circularam na cidade Manaus (1910-


1911), possuíam funções pedagógicas e ideológicas, em que os discursos
produzidos como representações de visões do mundo social eram
voltados para defesa do grupo em quais suas redes de relações sociais
estavam mais próximas e afinadas. O exemplo da televisão visualizado por
Bordieu cabe aos periódicos, em que:

Há, no campo político, lutas simbólicas nas quais os


adversários dispõem de armas desiguais, de capitais
desiguais, de poderes simbólicos desiguais.
O poder político é peculiar no sentido de se parecer
com o capital literário: trata-se de um capital de
reputação, ligado à notoriedade, ao fato de ser
conhecido e reconhecido, notável. Daí o papel muito
importante da televisão, que introduziu algo
extraordinário, pois as pessoas que só eram
conhecidas pelas reuniões eleitorais nos pátios das
escolas não têm mais nada a ver com esses
subministros que, suficientemente poderosos em seus
partidos para aparecerem na televisão, têm seus
rostos conhecidos por todo mundo. O capital político
é, portanto, uma espécie de capital de reputação, um
capital simbólico ligado à maneira de ser conhecido. 19
(BOURDIEU, 2011, 204)

Os jornais aparecem neste ponto de vista como palcos para busca


de conhecimento e reconhecimento, funcionando como espaço político
para obtenção de capital de reputação, são detentores de representação
de uma visão social de mundo, onde segundo Luiz Felipe Miguel:

A mídia é, nas sociedades contemporâneas, o principal


instrumento de difusão das visões de mundo e dos
projetos políticos; dito de outra forma, é o local em
que estão expostas as diversas representações do
mundo social, associadas aos diversos grupos e
interesses presentes na sociedade. O problema é que
os discursos que ela veicula não esgotam a
pluralidade de perspectivas e interesses presente na
sociedade. As vozes que se fazem ouvir na mídia são
representantes das vozes da sociedade, mas esta
representação possui um viés. O resultado é que os
meios de comunicação reproduzem mal a diversidade
social, o que acarreta consequências significativas
para o exercício da democracia. (MIGUEL, 2002, p.
163)

Analisando o exposto acima, quando se traz para realidade do


estado do Amazonas o que se percebe é que os jornais mais importantes
que circularam na cidade de Manaus entre 1908 e 1912, tinham ligações
com determinadas representações de visões de mundo social específicas
ou projetos políticos, sendo muitas vezes órgão que representavam os
interesses de partidos políticos. Sobre o jornalismo político no Amazonas,
a obra Cem anos de Imprensa no Amazonas (1851-1950), informa: “Este
tipo de imprensa vai atravessar todo o chamado período áureo da 20

borracha [...] o jornalismo político ou a imprensa de opinião, geralmente


vinculada a um partido político, que tenta tomar posicionamentos de
caráter ideológico. [...]” (SANTOS etal.1990, p.20)

Acerca de alguns jornais da imprensa amazonense e seus


posicionamentos políticos e ideológicos se pode dizer o seguinte: o
Correio do Purus, era um órgão ligado ao partido Republicano Federal do
Amazonas, a partir de 1911, troca de lado e posição ligando-se ao Partido
Republicano Conservador (Silvério Nery). A Folha do Amazonas (1910-
1915), foi órgão do Partido Republicano Conservador, tinha como
colaborador Silvério Nery. O Diário do Amazonas era órgão pertencente
ao Partido Republicano Federal do Amazonas, com a cisão do partido em
fevereiro de 1910, toma posição a favor de Antonio Bittencourt. O
Amazonas era órgão ligado ao partido Republicano Federal, tinha como
um dos seus sócios Antonio Bitterncourt e o Correio do Norte, diz ser
independente, porém, suas tendências vão mais em defesa de
Bittencourt, contudo sem deixar de criticar o governador, e totalmente
hostis a Silvério Nery.

O posicionamento do jornal Correio do Norte fica claro, quando nos


informa em matéria veiculada em suas páginas, o seguinte:
A semelhança do que havíamos feito para o sr. Silvério
Neri, procedemos para com o sr. Affonso de Carvalho
e outros despurados corifeus do nerismo,
descrevendo-lhes à luz de documentos incontáveis, a
carreira política, a fortuna e os meios que a
constituíram, afim de tornar mais flagrante esta
incompatibilidade. Renovamos a analyse de todos os 21
contractos, de todos os empréstimos, de todas as
concessões, de todos os atos administrativos em suma
praticados pelo nerismo e por seus comparsas. O
nosso trabalho foi completo; a derrocada foi
tremenda.
O sr. Antonio Bittencourt resolveu fazer o enterro do
cadáver [...] (CORREIO DO NORTE, Manaus,10 de
fevereiro de 1910, ano I, num. 357, p.1)

O Correio Norte escreve este artigo as vésperas da destituição de


Nery e dos que o apoiam na direção do Partido Republicano Federal no
Amazonas. Em que, na convenção de 11 de fevereiro, Antonio Bittencourt
(governador do estado), entrega a chefia do partido ao seu aliado, o
presidente da assembleia legislativa do Amazonas, Guerreiro Antony.

[...] a passagem do implícito ao explicito, da impressão


subejectiva à expressão objectiva, à manifestação
pública num discurso ou num acto de instituição é
representada por isso uma forma de oficialização, de
legitimação: não por a caso que, como note
Benveniste, todas as palavras tem uma relação como
o direito tem uma raiz que significa dizer. É a
instituição entendida como o que já está instituído, já
explicitado, exerce ao mesmo tempo um efeito de
assistência e de licitação e um efeito de arrematação e
de mudança de posse. [...] (BOURDIEU, 1989, 165-166)
Ou seja, a convenção de 11 de fevereiro, consagrou e legitimou
Antonio Bittencourt e seu partidários como novos líderes do PRF no
Amazonas, que por meio desta licitação arremataram sua posse legitima e
22
autêntica na chefia partidária e política do estado.

Assim, com o exemplo do artigo publicado no Correio do Norte,


percebe-se como os jornais fundamentam as representações de visões de
mundo social dos agentes envolvidos nas disputas em torno do campo
político, como objetivo de alcançar, manter e sustentar o poder.

4- AS DISPUTAS PELA LIDERANÇA DO PARTIDO REPUBLICANO FEDERAL


NO AMAZONAS.

A política do período é orientada pelas oligarquias nacionais e


regionais. No Amazonas a oligarquia Nery (Comandada pelo senador
Silvério Nery3) dominava a cena local. Buscando acabar com a influência
política de seu ex- aliado, Antonio Bittencourt 4 (governador do Amazonas
de 1908-1912, eleito com apoio de Silvério Nery), na Convenção de 11 de
fevereiro de 1910, que destituiu Silvério Nery da liderança do Partido
Republicano Federal, ocorre a cisão do partido e inicia as divergências

3
Silvério José Nery, natural do Amazonas, nasceu em Coari, a 8 de outubro de 1858, faleceu em
Manaus, a 23 de junho de 1934. Foi vereador municipal na monarquia, deputado estadual eleito várias
vezes na república, deputado federal, governador do estado, senador e chefe de partido. (Ver:
BITTENCOURT,1973, p. 458-462)
4
Antonio Clemente Ribeiro Bittencourt nasceu a 23 de novembro de 1853, faleceu em março de 1926.
Exerceu por 25 anos o cargo de diretor na Secretaria Geral da Província do Amazonas. Deputado
estadual em várias legislaturas e Govenador do Amazonas (1908-1912), além de chefe do Partido
Republicano Federal no Amazonas. (Ver: BITTENCOURT, 1973, p. 77-81)
entre os dois caciques, instituindo duas frentes. Uma liderada por Nery, a
outra por Bittencourt. A primeira representa a ortodoxia e a segunda a
heterodoxia.

Sobre estas disputas pela liderança dentro do partido, ou melhor no


23
campo político, o sociólogo francês Pierre Bourdieu, nos informa:

A luta que opõe os profissionais é, sem dúvida, a


forma por excelência da luta simbólica pela
conservação ou pela transformação da visão do
mundo social [...] Ela assume pois a forma de fazer e
crer, de predizer e prescrever, de dar a conhecer e de
fazer reconhecer, que é ao mesmo tempo uma luta
pelo poder sobre os ‘poderes públicos’
(administrações dos Estados) [...] (BOURDIEU, 2011, p.
173-174)

Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt, após fazer sua visão de


mundo ser creditada por uma ala significativa do Partido Republicano
Federal no Amazonas, e de profano, tornar-se o profissional dentro do
partido. Agora tem a liderança do partido e faz de tudo para descreditar
os antigos detentores da doxa ou melhor da ortodoxia.

Os que dominam o partido tem os interesses ligados


com a existência e a persistência desta instituição e
com os ganhos específicos que lhe assegura,
encontram na liberdade, que o monopólio da
produção e da imposição dos interesses políticos
instituídos lhes deixa, a possibilidade de imporem os
seus interesses de mandatários como sendo os
interesses de seus mandantes. E isto passa-se sem que
nada permita fazer a prova completa de que os
interesses de mandatários coincidam com os
interesses não expressos nos mandantes, pois os
primeiros tem o monopólio dos instrumentos de
produção dos interesses políticos, quer dizer,
politicamente expressos e reconhecidos, dos
segundos. [...] (BOURDIEU, 1989, p. 168-169)

24
Esta delegação de poder que o governador do Estado, Antonio
Bittencourt, acaba recebendo de diversos membros PRF no Amazonas, em
detrimento ao antigo líder do partido (Silvério Nery), põem sua
representação do mundo social como autêntica, hegemônica e legítima,
dentro da instituição, em que, de acordo com BOURDIEU:

Na luta simbólica pela produção do senso comum ou,


mais precisamente, pelo monopólio da nomeação
legítima como imposição oficial [...] da visão legítima
do mundo social, os agentes investem capital
simbólico que adquiriram nas lutas anteriores [...]
todas as estratégias simbólicas por meio das quais os
agentes procuram impor a sua visão das divisões do
mundo social e de sua posição nesse mundo podem se
situar entre dois extremos: o insulto, idios logos pelo
qual um simples particular tentar impor o seu ponto
de vista correndo o risco da reciprocidade; a
nomeação oficial , acto de imposição simbólica que
tem a seu favor toda a força do colectivo, do
consenso, do senso comum, porque ela é operada por
um mandatário do Estado, detentor do monopólio da
violência simbólica legítima [...]. (BOURDIEU, 1989,
p.146)

O fica claro é que Antonio Bittencourt para impor sua representação


ou visão de mundo social, utilizou-se do segundo exemplo dito por
Bourdieu, ou seja, “a nomeação oficial”, e com isso, com este ato de
imposição de mandatário do Estado, fez prevalecer sua violência simbólica
legítima e deu autenticidade ao seu discurso, tornando-se o líder do PRF
no Amazonas, delegando poder político aos seus aliados mais próximos,
entre eles, Guerreiro Antony. 25

Isso fica evidente quando da eleição para intendentes e


superintendentes da Cidade de Manaus, que aconteceram em outubro de
1910, o nome do senador Jorge Moraes é o escolhido como candidato do
PRF no Amazonas ao cargo superintendência, nesse momento, a ala
bittencourista que já dominava a liderança do partido desde de fevereiro,
e com isso, fez a escolha do candidato, e dessa forma, acabou não caindo
nas graças de alguns antigos líderes do partido.

Diante disso, este acontecimento gera um atrito entre Guerreiro


Antony5 (bittencourista) e Sá Peixoto 6 (nerista), pois o vice governador (Sá
Peixoto) não foi consultado para escolha do nome dos candidatos do PRF
para as eleições municipais. O jornal Correio do Purus sobre isso, informa
o seguinte:

A política, orientada pelo Sr. Guerreiro Antony, tem


experimentado desde o período inicial de sua
organisação, effeitos de uma corrente de
apprehensões, concorrendo para essa situação

5
Antonio Guerreiro Antony, nasceu no Amazonas, descendente do negociante italiano Henrique
Antony. Deputado estadual (1908-1912) e vice-governador (1913-1917). Foi chefe do Partido
Republicano federal. (Ver: BITTENCOURT, 1973, p. 251-254)
6
Antônio Gonçalves Pereira de Sá Peixoto, natural do Rio de Janeiro. Foi nomeado por Floriano Peixoto,
Juiz federal no Amazonas. Foi Deputado Federal, Senador e Vice governador do Amazonas (1908-1912).
(Ver: BITTENCOURT, 1973, p. 443-445)
anormal, a flagrante desconfiança que reina no seio
do próprio partido.
Agora mesmo o Sr. Dr. Sá Peixoto, digno vice-
governador do Estado, acaba de publicar no Jornal do
Commercio, justamente no dia em que o Diario do
Amazonas devia dar publicidade à chapa oficial, a 26
seguinte declaração:
‘Não devendo transigir em questão de princípios,
nenhuma ligação ou solidariedade mantenho com o
Directorio do partido político de que é presidente o Sr.
Coronel Guerreiro Antony. Manaus, 12 de setembro
de 1910. - A.G. P. Sá Peixoto’. (CORREIO DO PURUS,
Lábrea, 29 de setembro de 1910, ano: XIII, p. 2)

Estes fatores de disputas entre neristas e bittencourista, em torno


da liderança partidária e também política no estado do Amazonas, irão
levar a cidade de Manaus a ser bombardeada em 8 de outubro de 1910,
por tropas federais da Marinha e do Exército, leais à Silvério Nery, em que
a Polícia Militar do Amazonas fará defesa de Bittencourt.

Tudo ocorreu no dia de 8 de outubro de 1910 (aniversário de


nascimento de Silvério Nery), contudo no dia anterior o vice-governador
do Estado, Antonio Gonçalves Sá Peixoto, em uma sessão convocada no
Congresso Legislativo do Estado, depõem do cargo de governador Antonio
Bittencourt, deposição essa embasada na letra constitucional do Estado,
ao qual pela Constituição de 1910 do Estado do Amazonas, em seu artigo
43, diz que o governador do Estado não poderia exercer outro emprego
(o Governador Antonio Clemente Ribeiro Bittencourt, seria sócio da
“Tipografia Amazonas”). Com isso, nesta sessão, considerada farsante
pelos bittencouristas, ocorreu à destituição de Bittencourt e foi
empossado o vice, Sá Peixoto (Partidário de Silvério Nery), para o cargo de
governador do Estado do Amazonas. O jornal A Notícia, órgão de imprensa
partidário Silvério Nery se posiciona favorável acerca da destituição de
Antonio Bittencourt do cargo de governador em que faz uma reportagem 27

de primeira página como os seguintes termos: “CONGRESSO DO ESTADO-


o mandato governamental perdido por disposição constitucional- O vice no
governo- communicações officiais- resistência do governador- hostilidades
entre forças estadoaes e federaes- tiroteio e rendição- restabelicada a paz-
estragos, mortes e ferimentos- o novo governo e suas noeações-nossa
reportagem”. (A Notícia, Manaus, ano III, nº 586, p. 1)

No período de 8 a 28 de outubro, Sá Peixoto detêm o cargo de


Governador, contudo em 28 de outubro acontece o contragolpe em que
oficiais da polícia e alguns civis, destituíram Sá Peixoto do cargo, e
empossaram provisoriamente como governador do Estado, o Presidente
do Tribunal Superior de Justiça, desembargador Souza Rubim.
(BITTENCOURT, 1985, p. 306)

Em 31 de outubro de 1910, Antonio Bittencourt, retorna ao


cargo de Governador do Estado, depois de ter fugido para o Estado do
Pará. Em seu retorno ao cargo de governador monta uma comissão para
apurar os fatos de sua deposição que chega à seguinte conclusão: O golpe
foi tramado pelo vice-governador Sá Peixoto, Silvério Nery, Porfírio
Nogueira e mais seis deputados estaduais mediante atas e telegramas
falsos, regidos por facções familiares e político-militares que apoiavam o
Marechal Hermes da Fonseca, ordenadas pelo Senador gaúcho Pinheiro
Machado, que antes de Hermes assumir a presidência da república, já
interferiam na deposição de governadores que faziam oposição ao
Marechal, como era o caso de Bittencourt 7.
28
Estas disputas em torno da liderança partidária e política no
Amazonas fazem com que o senador Silvério Nery estabeleça um novo
partido no estado, o Partido Republicano Conservador 8, que em nível
nacional havia sido criado por Pinheiro Machado 9, dessa forma, entende-
se que seria uma estratégia dos neristas para terem legitimidade e
hegemonia, dentro de uma instituição e, também, continuar dentro das
regras jogadas no campo político, que faria oposição ao PRF no Amazonas,
e em especial à Antonio Bittencourt.

As disputas continuam, e o desfecho será que o Governador


Antonio Bittencourt, será novamente destituído do cargo de chefe maior
do Estado do Amazonas, antes do termino de seu mandato, fato este que
vai ocorrer no dia 22 de dezembro de 1912, em mais uma ação
orquestrada por Silvério Nery e seu grupo. (SANTOS, 1990, p. 32)

7
AMAZONAS. Mensagem do Governador do Estado do Amazonas Antonio Bittencourt de 10 de julho de
1911 à Assembleia Legislativa do Estado, em que expõe sobre o bombardeio de 1910.
8
O Partido Republicano Conservador no Amazonas possuía os seguintes membros: Presidente: Senador
Silvério Nery. Senador Jonathas pedrosa, Dr. A. G. Pereira de Sá Peixoto, Deputado Henrique F. Pena de
Azevedo, Deputado Aurelio Amorim, Deputado Antonio Nogueira, Coronel Affonso de Carvalho, Coronel
Hildebrando Antony, Coronel Joaquim Cardoso de Faria, Coronel Domingos José Andrade, Coronel
Manuel de Castro Paiva, Coronel Eduardo Felix de Azevedo, coronel José Maria Corrêa, coronel Rozendo
Silva. (CORREIO DO PURUS, Lábrea, 17 de abril de 1911, ano XIV, nº sem identificação)
9
“Em 5 de novembro de 1910, Pinheiro Machado assinava em segundo lugar, após o nome de Quintino
Bocaiúva tão usado como fachada histórica, a convocação para fundar o partido*...+”. (CHACON,
Vamireh, 1998, p. 78)
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sociólogo Pierre Bourdieu foi o principal teórico que se utilizou


em nossa análise, em que seu conceito de campo político como lugar de
disputas pela hegemonia e legitimidade dentro do jogo político, nos
29
permitiu visualizar as lutas pelo poder político no Estado do Amazonas em
1910, em que dois grupos se colocaram em ampla oposição os nerista e os
bittencouristas, em que os primeiros, representam a ortodoxia e os
segundos à heterodoxia.

Viu-se também, que os jornais funcionaram como meios de


divulgação das representações de visão social de mundo das frentes em
disputas, e dessa forma, eram meios políticos eficientes e eficazes para se
fazer crer, reconhecer, ter autonomia e legitimidade.

Entende-se que muito há para pesquisar sobre a temática que de


forma breve foi apresentada nestas páginas. Onde a leitura e análise
crítica das fontes, em especial os jornais que circularam no período em
questão, nos permitem compreender as disputas acirradas em torno dos
cargos de liderança na política amazonense, e dessa forma, levar ao
conhecimento acontecimentos tão importantes da História Política do
Amazonas na primeira década do século XX.
30

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias. V. II. Rio de


Janeiro: conquista, 1973.

BITTENCOURT, Agnello. Corografia do Estado do Amazonas. Manaus:


ACA-Fundo Editorial, 1985;

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de


Janeiro:
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Brasília, janeiro-julho de 2011, pp. 193-216. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n5/a08n5.pdf. Acessado em:
21/09/2015.

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FEITOSA, Orange Matos. Sob o império da nova lei: o amanhecer da


República no Amazonas (1892-1893). Manaus: Fundação Encontro das
31
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Revista Ensaios, v. 2, nº 3, 2010. Disponível em:
http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/ensaios/article/view/33
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LIMA, Denise Maria de Oliveira. Campo do Poder segundo Pierre


Bourdieu. REVISTA CÓGITO, vol. 11, 2003. Disponível em:
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SANTOS, Eloína Monteiro dos. A Rebelião de 1924 em Manaus. 2ª Edição


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(1851-1950). Catálogo de Jornais. 2. ed. revisada. Manaus: Edua, 1990.
SILVA, José Otacílio. A produção de discursos políticos na visão de Pierre
Bourdieu. Revista Tempo da Ciência. Vol. 12, Nº 3, 2005. Disponível em:
http://e-revista.unioeste.br/index.php/tempodaciencia/article/view/441. 32

Acessado em: 10/11/2015.

JORNAIS

A NOTÍCIA, Manaus, ano III, nº 586, p. 1. Acervo da Biblioteca Pública do


Estado do Amazonas.

CORREIO DO NORTE, Manaus,10 de fevereiro de 1910, ano I, num. 357,


p.1. Arquivo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em:
bndigital.bn.br/hemeroteca-digital. Acessado em: 15/10/2015.

CORREIO DO PURUS, Lábrea, 29 de setembro de 1910, ano: XIII, p. 2.


Arquivo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em:
bndigital.bn.br/hemeroteca-digital. Acessado em: 15/10/2015.

CORREIO DO PURUS, Lábrea, 17 de abril de 1911, ano XIV, nº (sem


identificação), p. 2. Arquivo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Disponível em: bndigital.bn.br/hemeroteca-digital. Acessado em:
15/10/2015.

FONTES OFICIAIS
BITTENCOURT, Antonio Clemente Ribeiro. Mensagem lida perante o
Congresso do Amazonas na Abertura da Segunda sessão ordinária da
sétima legislatura pelo exm. Snr. Governador do Estado em 10 de julho
de 1911. Manáos: Imprensa Official, 1911.
33
A TRAJETÓRIA DA PESQUISA E DO ENSINO DE HISTÓRIA
NO BRASIL ATÉ A PRIMEIRA REPÚBLICA

Débora Araújo Fernandes*


1
Resumo Este trabalho trata do Ensino de História no Pará durante as primeiras
décadas do século XX. É um campo de investigação que aos poucos começa a ser
valorizado, pois coloca o ensino da História como centro das preocupações dos
intelectuais da área. Sabe-se que durante muito tempo, talvez desde o
reconhecimento da história como disciplina no século XIX, os profissionais da área se
preocuparam muito mais com a metodologia da pesquisa em História e sobre os
pressupostos que fundamentam essa “ciência” do que propriamente com a “didática
da História”. Assim, em todas as “correntes históricas” as perguntas que orientaram os
historiadores são: o que é história? Quais são seus métodos, procedimentos e
fundamentos? Percebe-se, porém, que aos poucos a dicotomia entre ensino e
pesquisa foi sendo rompida e os historiadores começaram a se perguntar, para que
ensinar História? Este texto se propõe a analisar a trajetória da História como disciplina
escolar no Brasil na Primeira República (1888-1930), desvelando papel das instituições
oficiais de pesquisa em História, em especial, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) e o Instituto Histórico e Geográfico Paraense (IHGP), no
direcionamento do ensino da História.

PALAVRAS-CHAVES: ensino de História; historiografia escolar; Primeira República.

*
Mestranda em Ensino de História pelo Programa de Pós-graduação em Ensino de História da
Universidade Federal do Tocantins, sob orientação do Prof. Dr. Vasni de Almeida. Bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e professora da rede pública de
ensino no Estado do Pará. E-mail: daraujof@yahoo.com.br.
Abstract: This work deals with the history of education in Para during the first decades
of the twentieth century. It is a research field that slowly begins to be valued because
it puts the teaching of history as the center of the concerns of the intellectuals of the 2
area. It is known that for a long time, perhaps since the recognition of history as a
discipline in the nineteenth century, the professionals were concerned more with the
research methodology in history and about the assumptions underlying this "science"
than properly with "didactics of history." Thus, in all "historical current" questions that
guide historians are: what is history? What are your methods, procedures and
grounds? It is clear, however, that gradually the dichotomy between teaching and
research was being broken and historians began to ask, to teach history? This text aims
to analyze the trajectory of history as a school subject in Brazil in the First Republic
(1888-1930), revealing the role of official institutions of research in history, in
particular the Brazilian Historical and Geographical Institute (IHGB) and the Historical
Institute Geographic and Pará (IHGP) in the direction of the teaching of history.
Keywords: teaching of history; historiography school; First Republic.

Introdução
O século XIX se constituiu como um marco para a pesquisa e o
ensino de História. Foi o século de afirmação da História como ciência,
campanha empreendida, especialmente, pela escola metódica alemã, dita
positivista; no rastro desse evento foram criados os institutos oficiais de
pesquisa em História, em sua grande parte, vinculados com a área da 3

Geografia, e que tinham, como uma de suas funções, promover a pesquisa


histórica dotada de um caráter científico.
A entrada da História no hall das disciplinas científicas tornou-a uma
especialidade passível de ser ensinada nas instituições educacionais desse
momento, compondo o currículo das humanidades clássicas, contribuía
para a formação humanista das crianças e jovens que frequentavam os
estabelecimentos de ensino. Além disso, Magalhães (2009) evidencia a
função cívica do ensino de História desse período que colaborava para
fundar uma unidade nacional e um sentimento de pertença ao Estado-
Nação.
O século XIX também marca profundas transformações no contexto
histórico, político e social brasileiro. Na primeira metade do século,
tivemos a independência política do Brasil e a implantação do regime
monárquico, ocorrendo vários movimentos sociais de contestação à
ordem vigente. Nas últimas décadas do XIX, podemos citar eventos como
a abolição da escravidão (1888) e a instauração da República (1889).
Todas essas transformações colocavam em questão a necessidade de
afirmação de uma identidade brasileira. A História e seu ensino são
impactados pela necessidade de construção de um modelo de nação.
Nesse sentido, nos propusemos a analisar a trajetória da História
como disciplina escolar no Brasil durante a Primeira República (1889-
1930), com especial atenção para o papel das instituições oficiais de
pesquisa em História, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB) e o Instituto Histórico e Geográfico Paraense (IHGP). Sendo que, 4

este trabalho se insere na pesquisa sobre o Ensino de História durante a


Primeira República no Pará, apresentando o levantamento preliminar da
bibliografia relativa ao tema.
A História do Ensino de História é um campo de pesquisa que os
historiadores ainda estão tateando, como demonstrou Bittencourt (2011)
ao fazer um levantamento das produções acadêmicas que elegeram essa
temática como objeto de investigação entre os anos de 1988 e 2009.
Percebe-se que existe um distanciamento entre a História pesquisada na
academia e a História ensinada na escola, ou seja, entre pesquisa e ensino
em História1. Recorremos ao percurso traçado pelo ensino de História no
Brasil observando que em cada período histórico existiram objetivos
específicos para o ensino dessa disciplina, pois como disse Cerri (1999,
p.139):

os objetivos da disciplina também são históricos, do


que resultaria absurdo discorremos sobre os mesmos
de maneira universal e genérica, descarnada de um
contexto sócio-temporal específico. Ainda que em
quase todos os programas e currículos o objetivo da
1
Ao analisar o caso alemão, Rüsen observou que as questões relativas ao ensino de História foram
relegadas à Didática Geral, suprimindo o desenvolvimento do aprendizado histórico balizado na própria
teoria da História. Sobre isso ver: RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a
partir do caso alemão. In:SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende.
Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.
disciplina apareça como “formar o cidadão”, a
verdade é que este “cidadão” também muda com o
tempo e o espaço.

Consideramos que a afirmação da História enquanto ciência foi um


5
pressuposto à sua instituição como disciplina escolar e que concomitante
a isso foram criados os institutos oficiais de pesquisa em História, surge
então a questão de como os Institutos Históricos e Geográficos se
relacionaram com os objetivos do Ensino de História no Brasil até o fim da
Primeira República? Qual a relação entre a produção de livros didáticos, os
métodos de ensino de história e a formação de professores nesse
período?
Partindo dessas problemáticas, tratamos do processo de instituição
da História como disciplina escolar no Brasil e a interferência do IHGB,
evidenciando as funções e os percalços do ensino de História durante a
Primeira República no Brasil, além do papel do IHGP na relação entre
pesquisa e ensino de História no Estado do Pará.

Século XIX: o ensino e a pesquisa em história despontam no Brasil


Num estudo recente, Schimdt (2012, p.78) propôs uma periodização
da História do Ensino de História e afirmou que “a construção do código
disciplinar da História no Brasil tem como marco institucional fundador o
Regulamento de 1838 do colégio D. Pedro II, que determinou a inserção
da História como conteúdo no currículo”. Assim, encontramos o espaço 6

embrionário do ensino de História no Brasil, que vai se desenvolver num


contexto de construção e consolidação do Estado brasileiro, tornando-se
um instrumento para a formação de uma identidade nacional.
A partir daí, a História estará presente tanto no ensino primário,
como no secundário. Sendo que, Bittencourt (2008) aponta que o ensino
de História nas escolas de “primeiras letras” desde o início da organização
do sistema escolar estava voltado para a formação moral e cívica dos
sujeitos e o ensino da História Sagrada ainda predominava sobre o de
História laica. No entanto, no nível secundário já era possível observar
uma melhor estruturação da disciplina, com programas de ensino
definidos e a produção de compêndios escolares.
Paralelo a implementação do ensino de História no colégio D. Pedro
II, foi criado o IHGB, que tinha dentre as suas finalidades pesquisar,
organizar e selecionar os acontecimentos do passado para construir a
História da recente nação. O ensino de História nas escolas brasileiras
manterá fortes vínculos com o IHGB a partir de então, especialmente
porque os membros do Instituto eram também professores no D. Pedro II
e os programas de ensino deste colégio eram utilizados como modelo
pelos demais. Além do que, enquanto o colégio Pedro II fora criado para
formar os futuros dirigentes da nação, cabia ao IHGB fazer a genealogia
desta nação e disseminar através do ensino de História um sentimento de
pertencimento que contribuísse para forjar uma identidade nacional.
Sobre esta ligação entre as duas instituições Abud (2009, p.30) diz
que, “o Pedro II e o IHGB representavam, na segunda metade do século
XIX, as instâncias de produção de um determinado conhecimento 7

histórico, com o mesmo arcabouço conceitual e problematização”, a


autora afirma isso considerando que as propostas de Karl Philipp von
Martius - o vencedor de um concurso promovido pelo IHGB sobre como se
deveria escrever a História do Brasil 2 - influenciaram os sócios do IHGB,
que pesquisavam a História Pátria, e também os programas de História do
Brasil e a produção didática do período.
No entanto, Bittencourt (2008, p. 79) faz uma ressalva quanto a isso
dizendo que “a História do Brasil dos programas curriculares e dos livros
didáticos possuía o mesmo arcabouço, mas, na prática escolar,
paradoxalmente, foi um conteúdo complementar na configuração de uma
identidade nacional”, pois predominava nas instituições escolares de nível
secundário o estudo de História Geral; a História da Pátria aparecia como
um apêndice da História da Europa, berço da civilização e do progresso.
Exemplo ao que Abud (2009) e Bittencourt (2008) se referem são os
compêndios escolares “Resumo de História do Brasil” e “Compendio da
História do Brasil”, de autoria de Bellegarde e Abreu e Lima
respectivamente. Nestas produções os autores

2
Segundo Fonseca (2003), o modelo proposto por Martius apresentava a formação do povo brasileiro a
partir da mistura de brancos, índios e negros. Mas, enfatizava o papel dos europeus no processo que
levaria o Brasil a se assentar entre as nações civilizadas.
Ensinaram à elite imperial, num período (1831-1840)
decisivo na definição dos rumos do processo de
consolidação da Monarquia constitucional, que a
História Nacional aparece no interior das grandes
nações, no processo civilizatório da humanidade. O
Brasil estava na linha do tempo da modernidade, no
processo de constituição das nações europeias ele é 8
descoberto e integrado ao mundo civilizado pelo
colonizador português (TOLEDO, 2005, p.07).

No primeiro livro, a História da Pátria obedece a uma periodização


que segue os eventos políticos, conforme propostas do IHGB. Na segunda,
é evidenciada a importância de índios e negros para a formação do povo
brasileiro, de acordo com o que Martius havia enfatizado nas suas
proposições de como se devia escrever a História do Brasil. Vale ressaltar
também, que o autor desta última era membro do instituto desde 1839 e
acompanhava de perto as discussões inerentes à construção de uma
história nacional.
Ainda que sejam visíveis as influências do IHGB nessas produções
didáticas, segundo Toledo (2005) elas ainda não representavam o modelo
historiográfico do instituto, pois apenas a partir da década de 1860 que as
produções didáticas nacionais passaram a sofrer interferência direta do
mesmo. A autora cita como exemplo a publicação de “Lições de História
do Brazil” (1861), de autoria de Joaquim de Manoel Macedo. Nessa obra,
altamente influenciada pela historiografia do IHGB, havia a tentativa de
homogeneizar o passado nacional e alocar o Brasil entre as nações
civilizadas que marchavam rumo ao progresso, permitindo as elites
imperiais conviver com as contradições internas e construir uma imagem
positiva de si mesmo.

A escrita e o ensino de História na Primeira República: necessidade de 9

novas abordagens metodológicas

No final do século XIX, ocorreu a mudança de regime político no


Brasil; no entanto, como demonstrou Cabral (2010, p.01) “com o advento
da República a disciplina História (...) manteve o seu eixo central que era a
construção de uma memória nacional que contribuísse na formação da
nacionalidade e da identidade nacional, só que agora dentro dos moldes
republicanos”. Desse modo, surgiu a necessidade de rever os objetivos e
métodos do ensino de História e a própria historiografia.
Acompanhando um movimento de expansão da educação escolar,
num momento em que os dirigentes da nação passaram a atribuir
fundamental importância a educação, como sendo um dos pressupostos
para alavancar o desenvolvimento do país, o ensino de História Pátria se
faz presente nas escolas primárias difundindo ideais cívico-patrióticos
entre os mais jovens. Um dos principais veículos desses ideais eram os
livros de leitura, obras que faziam parte da literatura escolar do período,
com a finalidade didática de promover o aprendizado da língua nacional,
voltadas para a formação moral e psicológica do indivíduo e difusor de
valores cívicos e sentimentos patrióticos.
No nível secundário o ensino de História mantém essa função cívica,
sendo destinado atuar na formação do cidadão republicano. Para esse
nível as produções didáticas acompanham as renovações da historiografia.
Embora alguns manuais didáticos do período imperial ainda continuem
sendo referências para o ensino de História é possível observar críticas 10

mais contundentes ao modelo historiográfico vigente neste período.


Segundo Gontijo (2006) o IHGB ainda continuava dar a tônica aos
estudos históricos nas primeiras décadas republicanas, mas também havia
determinadas redes de sociabilidade, reunindo estudiosos de formação e
atuação diversificada, que contribuíram para assentar práticas
historiográficas que buscavam a objetividade das pesquisas históricas
alinhadas com métodos científicos de investigação, sem deixar de atender
as demandas do campo político que necessitava impor um ideal cívico-
patriótico.
Caldas (2005) em seu estudo sobre o livro escolar “História do
Brasil” (1900), de João Ribeiro, demonstra bem isso. O autor – que era
professor do Colégio Pedro II e tornou-se membro do IHGB em 1915,
também era jornalista, gramático, poeta e crítico literário - conseguiu
marcar a sua obra através da renovação historiográfica que agradou o
público a qual fora destinado e os intelectuais da área por apresentar uma
elogiável capacidade de síntese e propor uma nova interpretação histórica
ao passado nacional. Assim,

A proposição metodológica de João Ribeiro tinha


como fundamento a ênfase nos aspectos culturais e a
consideração de uma multiplicidade de fatores na
explicação dos eventos históricos, entre eles os
processos sociais.
(...)
João Ribeiro procurava fugir do modelo de Ranke, que
conferia centralidade ao Estado na condução dos
eventos históricos. Tal perspectiva diferenciava
Ribeiro da geração anterior de historiadores, ainda 11
que não assinalasse uma total ruptura (CALDAS, 2005,
p. 39-40).

Conforme assinalou Caldas (2005) o livro de Ribeiro inova não


apenas na abordagem historiográfica, mas também na apresentação do
conteúdo que tenta romper com a interpretação factual dos eventos
históricos e oferece uma visão de conjunto da história nacional. De acordo
com Gontijo (2006, p.03) esta era uma das demandas do regime recém-
implantado, que buscava assentar uma História e um ensino que
“deveriam contribuir para a integração do povo brasileiro de modo a
fundamentar a nova nacionalidade projetada pela República”.
Se os conteúdos a serem ministrados nas aulas de História do Brasil
são revisados a partir de novas abordagens metodológicas, existe também
uma necessidade em se rever os métodos adotados para o ensino dessa
disciplina. Bittencourt (2008) demonstra que, desde o início, o ensino de
História nas escolas primárias e secundárias se dava seguindo métodos
mnemônicos, que estimulavam uma memorização mecânica dos
conteúdos; e, a partir do final do século XIX, tais métodos passam a ser
questionados, dentre outros meios, pela teoria educacional.
Acompanhando esse processo, intelectuais e educadores brasileiros
publicaram duras críticas à metodologia empregada no ensino de História
no Brasil durante a Primeira República. Em 1917, é lançada a obra
“Methodologia da História na aula primária”, escrita pelo professor
Jonathas Serrano da escola normal do Rio de Janeiro. De acordo com este 12

autor

Como nas classes elementares o método biographico


e anecdotico é indispensável, cumpre que a mestra
possua farto cabedal de episódios interessantes, que
logrem prender a attenção da criança. (...)
Por isso vemos commumente quem está
desempenhando, sem verdadeira vocação nem
preparo pedagógico,difficillima e nobre função de
guiar os primeiros passos das creanças no terreno da
historia, desobrigar-se, - ou julgar que se desobriga –
da rude tarefa, exigindo a repetição decorada de
páginas de um manual, epítome ou que nome melhor
tenha. Chamam a isso – ensinar historia (SERRANO,
1917 apud BITTENCOURT, 2008, p. 92-93).

Observa-se que Serrano não dispensa o ensino de História da Pátria


na escola primária através da biografia de seus heróis, no entanto ele está
preocupado com a formação dos professores que atuam nesse nível de
ensino e com o método decorativo empregado nas aulas de História.
Nessa direção, em 1935 é publicado o livro “A História no curso
secundário”, do educador progressista Murilo Mendes, onde ele repudia
com veemência “a technica viciosa de sua methodologia”, pautada na
decoração de datas, eventos e personagens históricos (NADAI, 1993).
Ambos questionavam a predominância de métodos de ensino de história
baseados na memorização excessiva de conteúdos.
Talvez em parte, isso se desse pela falta de formação específica para
o professor de História, pois como demonstrou Silva (2011) a primeira
graduação em História foi instituída apenas em 1934 no Brasil. Em virtude 13

disso,

no tocante aos professores, a formação era


calamitosa, especialmente do que trabalhava no
ensino primário. No secundário, a maior dificuldade
era a ausência de especialistas na área, situação
relacionada ao momento de delimitação das
disciplinas escolares (CALDAS, 2005, p.27).

Então, segundo Bittencourt (2008),na falta de uma formação


específica, os manuais didáticos consistiam na principal fonte de
conhecimento para os professores de História até a década de 1930; eram
também, os principais veículos da metodologia a ser adotada em sala de
aula. Tanto que, as publicações que inovam nesse quesito têm boa
aceitação entre os especialistas da área, a exemplo daquele escrito por
João Ribeiro.

História do Ensino de História no Pará durante a Primeira República

Considerando a literatura didática como o principal suporte dos


saberes veiculado nas escolas durante a Primeira República, trataremos da
produção de manuais didáticos no Estado do Pará durante esse período.
Coelho (s/d) relata que, a partir do final do século XIX até as primeiras
décadas do XX, a produção e editoração de “livros didáticos” com autoria
de paraenses foi bastante expressiva, sendo o período de 1890 até 1920 o
auge da produção editorial desse tipo de literatura no Pará. Dentre as
obras citadas pela autora, as que tratam de temáticas relacionadas à 14

História são: “Paraenses Illustres” (1890), de Raymundo Cyriaco Alves da


Cunha; “Noções de Educação Cívica” (1898), de Hygino Amanajás; “Leitura
Cívica – apontamentos, história e notícias sobre a Constituição Federal”
(1901), de Virgilo Cardoso de Oliveira; “Ensaios de Educação Moral e
Civica” (1928), de Ignácio Moura.
Existia um controle das instituições públicas oficiais sobre a escolha
dos manuais didáticos nesse período. Inicialmente, tal tarefa era privativa
ao Diretor Geral da Instrução Pública. Mas, com a realização de mudanças
na legislação educacional em 1901, o professor pôde escolher o livro que
utilizaria em sala de aula, ficando obrigado, ao final do ano letivo, listar as
vantagens e os inconvenientes que observou ao utilizá-lo. Para as
autoridades isso seria necessário para ajudar na avaliação dos manuais a
serem adotadas pelas escolas públicas, visto que, o Estado estabelecia
determinados critérios para aprovar as obras didáticas.
Em vista dessa ampla produção e circulação de manuais didáticos
no Pará, Cardoso (2013), buscou demonstrar a relação entre o IHGP e a
constituição do corpus disciplinar de História no Pará durante a Primeira
República. Para alcançar tal objetivo ela analisou duas obras didáticas
produzidas por membros do instituto, a saber, “Alma e Coração” (1900),
de Hygino Amanajás e “Apostilas de História do Pará” (1915), de Theodoro
Braga, além de citar vários outros manuais, aprovados pela Secretaria de
Instrução Pública do Estado do Pará nesse período e que também foram
escritos por membros do IHGP.
Segundo esta autora a criação do IHGP, em 1900 3, acompanhou a
criação de outros IHGs no Brasil e tinha como objetivo “criar uma 15

identidade nacional e colaborar com o processo civilizador através de um


dado olhar para o passado, os IHGs criam discursos regionais onde os
fatos e vultos dessa História local estavam intimamente associados à
História Nacional” (CARDOSO, 2013, p. 54).
Sendo assim, os membros do IHGP, que também se ocupam de
outras funções, dentre elas o magistério, estavam sempre acompanhando
as discussões em torno da educação – pois, assim como em nível nacional,
havia um grande entusiasmo com a educação escolar considerada o
principal meio para incluir o Brasil entre as nações civilizadas – e
vislumbrando modos de como a História pesquisada podia se tornar
ensinável aos mais jovens, dedicando-se a escrita de manuais didáticos.
“Alma e Coração” constituía-se em um livro de leitura adotado no
ensino primário. Segundo o próprio autor, teve inspiração numa obra
italiana muito utilizada nas escolas públicas do Brasil, no final do século
XIX e início do XX, que era “Coração” (1891), de Edmondo De Amicis, tanto
que segue a mesma estrutura, um diário de um adolescente que exalta a

3
De acordo com Cardoso (2013), o IHGP é criado nesse momento, mas permanece praticamente
inativo, dado o comprometimento de seus membros com outras atividades, sendo reinstalado apenas
em 1917. Esta última data permanece por algum tempo remetendo a fundação do instituto, pois
representava a necessidade da criação de um mito de origem ao apresentar a reinstalação do IHGP
como homenagem ao centenário da Revolução Pernambucana de 1817.
nacionalidade e valoração do patriotismo, assim como a obra italiana. De
acordo com Cardoso (2013, p.116) o livro de Amanajás

Estimula nos alunos o amor a pátria e o estudo de


História Pátria, necessários para conhecer o passado
da nação, seus principais acontecimentos, e o 16
conhecimento de seus heróis com conduta patriótica
exemplar, a quem a mocidade deveria se inspirar, por
suas ações grandiosas e abnegadas em favor da nação.
Recheado de intenção educativa, cívica, patriótica e
social, o livro Alma e Coração atribui grande valor a
família, a escola e ao trabalho, necessários a conduta
social do cidadão republicano.

O segundo livro analisado, “Apostilas de História do Pará”, foi


escrito atendendo a solicitação da Secretaria de Instrução Pública do Pará,
que expressou a necessidade de um manual didático de História Pátria
regional. Theodoro Braga lançou-o como parte das comemorações pelo
tricentenário da cidade de Belém, fundada em 1616. Exemplo de uma
historiografia que ainda não tinha sido superada, Braga apresenta uma
História do Pará que começa com a chegada dos portugueses, e a
consequente integração da região com a civilização europeia.
Cardoso (2013) destaca que, embora o manual de Braga fosse
destinado a alunos e professores, suas colocações estavam muito mais
voltadas aos professores, pois suas páginas continham muitos aspectos
formativos, como por exemplo, “ao tratar da origem do ensino primário
no Pará, a importância do mestre-escola e o papel da mulher na
educação”. Ele também trazia propostas inovadoras para o ensino de
História naquele momento ao tratar da importância das “relíquias
históricas” e da necessidade de um museu na cidade de Belém.
Por fim, a autora destaca que os dois manuais didáticos paraenses,
são produzidos em consonância com os acontecimentos do cenário
nacional, que através da História e do seu ensino objetivava construir uma 17

memória histórica positiva para o passado da Nação. Para isso existiam


mecanismos de controle por parte do Estado, que averiguava quais obras
didáticas estavam alinhadas com seu projeto político patriótico e
poderiam ser adotadas nas escolas públicas para o ensino de História. E
nesse processo

Os Intelectuais do Instituto Histórico e Geográfico do


Pará, amplamente envolvidos com as questões de seu
tempo, contribuíram sobremaneira para construir
uma memória histórica para região, tanto através de
suas pesquisas nas cadeiras do Instituto paraense,
quanto com suas preocupações mais amplas de
construção das tradições nacionais através da
elaboração de livros e manuais didáticos, contribuindo
para um processo ainda em andamento de
constituição e reconstituição da História como
disciplina escolar no Pará republicano (CARDOSO,
2013,p.117).

Desse modo, é possível notar que a pesquisa e o ensino de História


no Pará mantiveram estreitas relações durante esse período, em função
da preocupação que o poder constituído no Estado e os intelectuais do
IHGP tinham com a construção de uma História Pátria que não alijasse as
peculiaridades da História regional.
Considerações finais

Neste trabalho traçamos um paralelo entre pesquisa e ensino de 18

História no Brasil até a Primeira República, o que nos permitiu perceber


que para a institucionalização da História como disciplina escolar, muito
contribuiu a atuação dos intelectuais do IHGB, que em grande parte
também eram professores no Colégio Pedro II, sendo que, esta influência
se estende até o período republicano, de maneira que o ensino de História
na Primeira República apresenta ainda os resquícios da historiografia e
dos métodos empregados durante o Império.
No que tange ao ensino de História é possível perceber várias
demandas para inovar a historiografia escolar e a prática pedagógica, mas
como já sinalizamos anteriormente, ainda houve muitas permanências,
especialmente na metodologia empregada nas aulas. E quanto a formação
do professorado, foi demonstrado que, à exceção daqueles que os
produziam, os manuais didáticos eram a principal fonte de conhecimento,
inexistindo formação acadêmica para os professores de História, pois os
primeiros cursos só foram criados a partir da década de 19304.
Observando o caso paraense, pudemos notar que ainda são
incipientes os estudos sobre a História do Ensino de História no Estado,
tendo encontrado apenas uma dissertação, que se concentra na atuação

4
No Estado do Pará, conforme Silva (2011), apenas em 1954 foi criado o primeiro curso de graduação
em História, pela Universidade Federal do Pará.
dos membros do IHGP e na análise de manuais didáticos para desvelar os
caminhos da História escolar durante a Primeira República. Através de tal
trabalho se evidenciou a equivalência entre os objetivos para o ensino de
História que se tinha nas esferas federal e estadual, e também, que os
intelectuais paraenses se comportaram tais quais os seus pares do IHGB, 19

produzindo uma História ensinável nos moldes dos valores republicanos,


acrescida dos acontecimentos regionais.

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JÚLIO DE PAULA E OS VAPORES: A INFLUÊNCIA DESSE
PERSONAGEM NO DESENVOLVIMENTO DA NAVEGAÇÃO NO
RIO IGUAÇU (1893-1905)

Elois Alexandre de Paula1


1

Resumo

Este trabalho faz uma análise histórica de Júlio de Paula, antepassado de nossa família
e que teve uma relação direta com o primeiro ciclo da navegação a vapor entre os
anos de 1890 e 1910. A sua e a sua História com relação aos vapores era comentado
entre a nossa família, práticas da história oral que se seguia de geração a geração.
Porém ainda faltavam muitas provas ou evidencias para chegar a uma exatidão desses
relatos. Mas durante os últimos meses de 2016, encontramos importantes fontes que
relacionavam Júlio de Paula e a navegação. Antes se comentava que Júlio era um
“artífice” responsável pela manutenção ou montagem dos vapores, mas as fontes
comprovaram que Júlio de Paula era proprietário de dois vapores que navegavam no
Rio Iguaçu, o vapor “Brasil” e o “Cruzeiro”. As fontes encontradas datadas entre os
anos de 1900 e 1910 e deram um novo direcionamento histórico sobre a História de
Júlio de Paula. A obra “Vapores” de Arnaldo Bach (2006) também contribuiu para o
desenvolvimento desse trabalho. Este é ainda um trabalho inicial e o primeiro passo
na tentativa de reconstruir a trajetória Histórica de Júlio de Paula e a sua relação com
os vapores.

Palavras Chave – Júlio de Paula – Navegação- Vapores

1
Graduado História pela Fafiuv; Especialista Em Gestão Pública Municipal –Unicentro Irati
Abstract

This work is a historical analysis of Júlio de Paula, ancestor of our family and had a
direct relationship with the first cycle of steam navigation between the years 1890 and
1910. Its history and its relationship with the vapor was discussed between our family,
practice of oral history that followed from generation to generation. But there were
still plenty of evidence or evidence to reach an accuracy of these reports. But during
the last months of 2016, we find important sources related Julio de Paula and
navigation. Before it was said that Julius was a "journeyman" responsible for the 2
maintenance or installation of vapor, but sources confirmed that Paula Julius was
owner of two steamers sailed the Iguaçu River, the steam "Brazil" and "Cruise". The
sources found dated between the years 1900 and 1910 and gave a new historical
direction on the History of Julio de Paula. The work "Vapors" Arnold Bach (2006) also
contributed to the development of this work. This is still an early work and the first
step in trying to rebuild the Historical trajectory of Julio de Paula and his relationship
with the vapors.

Keywords - Paula Julio - navigation- Vapors

1- O Contexto Da Navegação No Rio Iguaçu No Final Do Século XIX e


Início Século XX

Antes de discutir sobre a influência de Júlio de Paula na navegação a


vapor do rio Iguaçu, é importante entender a dinâmica do
desenvolvimento entre os anos de 1893 a 1910, período da primeira fase
do desenvolvimento de empresas de navegação na região sul do Paraná.
Desde 1866 iniciou-se a exploração do rio Iguaçu para analisar as
condições de navegabilidade pelos engenheiros Jose e Francisco Keller.
Depois de varias pesquisas sobre toda grande parte da extensão do Rio e
depois de várias tentativas de regularização da navegação em 19 de abril
de 1879 por meio do decreto imperial n: 7248 o coronel Amazonas de
Araújo Marcondes consegue sua licença para uso do Rio para exploração
da navegação. (Bach, 2006) Com a concessão o coronel Amazonas adquire
o primeiro vapor denominado vapor Cruzeiro em homenagem a um das
fazendas de sua mãe (Bach, 2006). O coronel Amazonas após seguir para o
Rio de Janeiro obteve conhecimentos sobre navegação, além de mecânica
e construção naval. O vapor Cruzeiro atraca no porto de Antonina no
mesmo ano de concessão. Ali o vapor foi desmontado depois de percorrer 3
um longo percurso pela serra do mar por meio de carroções ele chaga as
margens do rio Iguaçu em porto Amazonas para sua montagem onde foi
lançado ao rio Iguaçu em17 de dezembro de 1882.
O vapor cruzeiro foi a primeira embarcação a navegar nas aguas do
Iguaçu, sendo seu primeiro proprietário o Coronel Amazonas, sendo este o
pioneiro da navegação na região da bacia sul do rio Iguaçu. Essa iniciativa
trouxe para região novos exploradores e empresas do ramo da navegação.
A prática da navegação não era exclusivamente no rio Iguaçu que cobria
as cidades de União da Vitoria e Porto Amazonas. Mas outros rios foram
explorados como o Rio Negro Canoinhas e Timbó (Bach, 2006).
Surgem também os portos em grande número principalmente na
extensão navegável do rio Iguaçu. Esses portos facilitavam o transporte
de produtos como madeira e erva mate, produtos de extrativismo que
eram a base econômica neste período do século XIX. Esses portos serviam
como ponto de abastecimento de lenha para as caldeiras das maquinas
dos vapores. Com relação a erva mate, segundo Santos (2001) foi neste
período um dos principais produtos a serem comercializado na região. Tal
cultura era abundante na região e tinha um comercio abrangente tanto no
mercado interno e externo.
Essa dinâmica econômica proporcionou o desenvolvimento e
aprimoramento da navegação na região. O meio fluvial se consolidou pela
falta da época de outras formas de transporte, haja vista que no final do
século XIX nem mesmo as ferrovias não teriam sido iniciadas. As
consequências de transformações proporcionaram o desenvolvimento das
cidades ribeirinhas aos rios de forma gradativa, trazendo novos 4
investidores na qual viram os vapores como uma forma crescimento
pessoal e econômico.
Após o primeiro vapor navegar no rio Iguaçu o percursor Cruzeiro,
outros vapores surgiram, como exemplo o Guarapuava do Coronel
Amazonas e mais duas chatas de reboque a Aliança e a Flor (Bach, 2006).
Outro vapor que surgiu foi o Potinga (antigo Tibagi) de propriedade de
Jose Marques e depois passou para Arthur de Paula e Silva no ano de
1891. O quarto vapor a surgir na região foi o Curitiba no ano de 1893 da
empresa Burmester e CIA . Entre os anos de 1893 e 1899 mais vapores
surgiram no total de três, como o rio negro, Iguaçu e o vapor Brasil antigo
Tirol no ano de 1893, na qual pertenceu a Júlio de Paula. Esses vapores
foram adquiridos por pessoas visionarias que tinham o intuito de
aventurar- se pelas aguas Iguaçu. Mas também havia, e lógico, a
pretensão de desenvolver–se economicamente. Com relação aos Vapores
e ao personagem em questão, Júlio de Paula, podemos afirmar que ele era
um agente participativo dentro desse contexto histórico, tendo este uma
relação direta com a economia e o desenvolvimento desse meio de
transporte fluvial da região neste período.

2- Júlio de Paula... Surpresas com relação à sua História?


As informações que tínhamos até o momento sobre Júlio de Paula
nosso finado Bisavô eram baseadas na tradição oral que passava de
geração em geração. Lembro-me do tempo da minha infância e
adolescência quando meu finado pai Emídio de Paula em conversas na
cozinha ou na sala de casa comentava sobre os feitos de seu avô... “Júlio 5
de Paula construiu vapores...o Pery foi construído por ele”... Falava ele
mostrando uma foto na parede da sala com a imagem de seu avô.
Muitos feitos eram comentados por meu pai e pela minha família
na qual essas histórias eram transmitidas de geração a geração. Esses
relatos sobre Júlio de Paula e suas passagens com relação aos vapores
eram muito discutidos e mencionados pelos familiares. Não temos
informações sobre a sua cidade natal, sua data de nascimento, ou de sua
data de falecimento, ou de suas origens, e certo que apenas ele estava
estabelecido em União da Vitória desde o final dos anos de 1890. As
únicas informações sobre o Sr Júlio eram única e exclusivamente pela
tradição oral, que não deixa de ser tão menos importante para a história.
Esses relatos ou narrativas Históricas sobre das famílias é um exemplo dos
aspectos da história oral, como Lucchesi (2014) comenta que o
saudosismo e as histórias de família fazem muitos construir um mundo
fascinante, e que nos tempos de hoje está se perdendo.
Com relação a esses relatos de família nunca colocamos em dúvida
a sua veracidade, mas ainda nos faltavam mais provas através de fontes
ou documentos que tivessem alguma ligação entre Júlio de Paula e os
vapores. Mas a fascinação ou a curiosidade em descobrir sobre a prova e a
história dos relatos sobre Júlio nos instigava ainda mais a investigação.
Desde o ano de 2008 quando iniciei minha graduação em história na Fafi-
União da Vitória, sempre tinha como um dos propósitos descobrir algo
sobre meu antepassado, pois estava na cidade em que a história da
navegação foi desenhada, e também terra deste meu antepassado.

Porém nada obtive de informações durante a graduação sobre ele 6

ou sua vida. Mas se existe ou não o destino, no mês de Julho do ano de


2013 após prestar concurso para Prefeitura de São Mateus do Sul-PR, foi
convocado para assumir um cargo na área administrativa da secretaria de
educação daquela cidade. Continuei as pesquisas mais sobre meu
antepassado e sua relação com a navegação, fazendo algumas visitas na
casa da memória padre Bauer, em que existem nesse museu documentos
da época, mais nada foi encontrado com relação a nossa pesquisa. Porém
a insistência muitas vezes sempre consegue seus resultados. Em meados
do mês de setembro de 2016, em conversa pelas redes sociais, com um
pesquisador da história da região, o Sr Gerson Cesar Souza, conseguimos
as primeiras fontes sobre a história de Júlio de Paula. Tínhamos agora
documentos da época que relatava sobre dois vapores relacionados ao
nome Júlio de Paula. As fontes encontradas eram datadas do inicio do
século XX, entre os anos de 1900 e 1910. Estes jornais da época
encontradas na biblioteca nacional do Rio de Janeiro tratavam de
informações sobre o desenvolvimento social e econômico das cidades de
vários estados do Brasil, incluindo também o Paraná e a sua região Sul.
União da Vitoria é indicada também com informações sobre o
desenvolvimento do comércio, tratando de informações sobre diversas
empresas, é logico das empresas de navegação e seus respectivos
proprietários.

Outras informações foram encontradas na obra Vapores de


Arnaldo Monteiro Bach. Essas fontes relacionam o nome de meu bisavô a
dois vapores, que muito nos surpreendeu. O resultado dessas fontes 7

comprovou primeiramente a participação de Júlio de Paula na primeira


fase da navegação a vapor na região, assim como foi esta participação
dele na dinâmica econômica como empresário no ramo da navegação.
Consequentemente essas descobertas desenharam uma nova trajetória
Histórica mais completa do que tínhamos antes com relatos orais, ou seja,
Júlio de Paula não era talvez um engenheiro ou um construtor de vapores,
mais um empresário do ramo.

Desse modo avançamos com um grande passo graças a descoberta


dessas fontes, e que certamente nos causou grande euforia por tratar da
História de nosso antepassado e de parte da nossa família. Muitas vezes
pensamos ou imaginamos a emoção de um historiador ou um arqueólogo
ao descobrir um documento ou uma cidade perdida. Como exemplo qual
foi a reação de Hiram Bingham ao descobrir a cidade de Machu Picchu no
século XIX.

A História muitas vezes é surpreendente, e as descobertas dessas


fontes relacionadas ao meu antepassado nos revela que o nome Júlio de
Paula não era apenas um nome que ecoava nas paredes da nossa casa
junto ao meu Pai e toda a família. Desse modo partimos da prova campo
da oralidade para a comprovação das fontes sobre a relação de nosso
antepassado com a história da navegação no rio Iguaçu.

3-A relação direta com os vapores Brasil e Cruzeiro


8

Reconstruir a História desse personagem não é uma tarefa fácil.


Júlio de Paula ate então somente era conhecido pelas histórias contadas
em geração em geração dentro do contexto familiar. A discussão agora
parte das fontes documentais que diz respeito à relação de Júlio e Paula
com o movimento da navegação no vale do Rio Iguaçu desde o fim do
século XIX. Contudo sabemos que essas fontes encontradas apesar de
importantes ainda um tanto insuficientes para relatar com mais detalhes a
vida desse personagem. Portanto sabemos da importância de ampliar
este trabalho buscando novas fontes e dados para ampliar a discussão e
analise histórica acerca de Júlio de Paula.

Também é importante relatar as dificuldades de se estabelecer


relação de propriedade e proprietários dos vapores da região. Para Bach
(2006) o que dificulta a identificação dos proprietários desses vapores era
a rotatividade, causada por fatores de ordem administrativa como salários
organizações de fretes etc. Outro elemento eram as ocorrências de
estiagem, na qual causavam diminuição nos fretes, depreciando tanto as
embarcações assim como o capital das empresas. Neste contexto que se
relaciona a propriedade dos vapores para com o Senhor Júlio de Paula as
informações são um tanto imprecisas com relação a datas e o tempo que
ele foi proprietário dos vapores Brasil e Iguaçu. Ainda nos faltam datas
com relação ao seu nascimento e a sua morte. As fontes nos mostram
apenas o período que ele se dava como proprietários dessas embarcações,
entre os anos de 1893 e 1905.

Com relação as fontes utilizamos publicações de jornais datadas do


início do século XX, que foram encontradas na biblioteca nacional e 9

também relacionamos informações encontradas na obra de Arnoldo


Monteiro Bach Vapores (2006), na qual conseguimos indícios relevantes
sobre Júlio e a relação com um dos Vapores lançados em meados dos anos
de 1890. Basicamente a ideia aqui e abordar dentro destas fontes
encontradas a participação direta deste personagem no desenvolvimento
do período inicial da navegação.

O primeiro vapor que está relacionado a Júlio de Paula e o Vapor


Brasil antigo Tirol, em que segundo Bach (2006) este vapor pertenceu a
Júlio no ano de 1893. Segundo o autor esse Vapor foi avariado na
localidade de Palmira em uma data indefinida. As fontes informam
também das características desse vapor, principalmente na parte
mecânica do mesmo, em que se comentava sua baixa potencia e que tinha
dificuldades em navegar em períodos de cheias no rio Iguaçu. Mais abaixo
o trecho da Revista Helena (2012).
Logo a abaixo a discrição do recorte da revista em que a mesma
teve como fonte o livro Vapores de Bach, (2006) e também mais abaixo o
trecho do mesmo autor que comprova a propriedade do vapor Brasil a
Júlio de Paula.
10
Três outros vapores foram lançados entre 1893 e
1899: Brasil (antigo Tirol), Rio Negro e a Iguaçu. O
Brasil pertenceu a Júlio de Paula. Por causa da
pequena potência da máquina, tinha dificuldade em
viajar contra as correntes cheias. A roda era feita por
correias de couro, que muitas eram devoradas pelos
cães nos portos. Esse vapor deixou de trafegar porque
sua caldeira explodiu em Palmira, ficando ali
abandonado. Bach (2006).

Recorte da obra Vapores. Bach (2006)

Essas fontes relacionadas ao Vapor Brasil comprova a grande


dificuldade de manter e também de navegar sobre as aguas do rio Iguaçu.
Era um esforço imaginável tanto para os navegadores quanto para os
proprietários destes na questão de manter em pleno funcionamento
dessas embarcações. Havia a necessidade de manutenção periódica das
máquinas e, portanto necessitava de recursos econômicos para manter o
funcionamento desses vapores. Mas o destino do vapor Brasil, foi um
tanto catastrófico assim dizendo. A explosão da caldeira do Vapor em
Palmira levou a desativação dessa embarcação, com certeza amargando
um grande prejuízo financeiro para Júlio.
Porém outras fontes ligam o nome de Júlio de Paula como
proprietário de outro vapor, o Cruzeiro em meados do ano de 1905. Essa
afirmação em um arquivo da Biblioteca Nacional, em forma digital. Esse 11
vapor foi o percussor da navegação no Iguaçu, um investimento do
Coronel Amazonas que tinha o intuito de desenvolver a economia da
região.

O vapor cruzeiro transportava grande quantidade de mercadorias,


além de transportes de passageiros. Para Riesemberg (1973) os vapores
na sua maioria eram utilizados para o transporte da erva mate que era o
grande o ciclo econômico da região. Esse vapor também carregava
passageiro como os demais vapores, após fazerem adaptações no seu
convés. Entre esses passageiros muitos imigrantes eram transportados no
Cruzeiro, vindos de Curitiba que vieram a se estabelecer nas cidades
ribeirinhas como São Mateus por exemplo.

Esse vapor foi uma importante embarcação durante toda a sua


atividade. Segundo Bach (2006) algumas personalidades importantes
foram passageiros no Cruzeiro, entre elas o escritor Afonso Escragnolle
Taunay, Ermelindo Leão, Inácio Carneiro. O Vapor Cruzeiro teve vários
proprietários, o primeiro foi Coronel Amazonas, depois em torno de 1897
se tornou propriedade de Arthur de Paula e Souza.

A referência que se tem do vapor Cruzeiro e a sua relação com Júlio


de Paula está datada no ano de 1905, em um jornal da época. Segundo
essa fonte no ano de 1905 o vapor Cruzeiro pertencia mesmo á Júlio de
Paula, como apresenta a fonte abaixo:

12

Fonte jornal em http://memoria.bn.br/hdb/periodico. aspx

Essa fonte de certo modo foi bastante reveladora com relação o


envolvimento de Júlio de Paula com o Cruzeiro. Ainda que com a falta
novas fontes, essa informação nos mostrou o seu pertencimento na
dinâmica econômica da região, principalmente no que se diz respeito a
navegação.

Apesar das dificuldades que os proprietários tinham em manter


esses vapores em serviço, seja pela questão econômica, como
manutenção dos equipamentos e pagamentos de funcionários, ou seja,
por questão de ordem natural como cheias e estiagem, muitos tinham o
empreendedorismo e tinham como proposito investir na navegação neste
período.

Depois do Coronel Marcondes surgiram outros visionários


empresários com o intuito de desenvolver a navegação. Bach (2006)
comenta que a família suíça Buhrer, que nos anos de 1900 entusiasmada
com os vapores no rio Iguaçu criou uma empresa de navegação, sendo
proprietários do vapor Visconde Guarapuava e Sant”Ana.

Desse modo o espírito aventureiro e o “romantismo” parecia que


envolvia a atmosfera desses visionários. Lembramo-nos de uma passagem
que meu pai comentava que observava os vapores de passagem pelo Rio 13

Iguaçu e que ele afirmava que um dos vapores denominado vapor Leão
navegava pelo Iguaçu noite adentro. Dizia meu pai; “o Vapor leão tinha
um grande farolete que clareava o rio”. Esses relatos e muitos outros
colaboraram para a construção da história da navegação do Iguaçu. Este
romantismo e a fascinação e a busca de espaço no contexto econômico na
qual esse vapores proporcionavam, trouxeram muitos empreendedores
para a navegação na região.

Nosso personagem Júlio de Paula foi um dos percursores da


navegação, com o objetivo de conquistar seu espaço junto ao
desenvolvimento da região através do Rio Iguaçu. As águas serenas deste
grande rio moviam juntamente com os vapores os sonhos e a aventura de
nosso antepassado e de muitos outros personagens que eram atraídos
por essa nova possibilidade econômica apresentada pela navegação.

4 – O que ainda tem a História para nos revelar sobre Júlio de Paula?
O que se refere ano nosso antepassado Júlio de Paula ainda tem
muito para nos revelar sobre a sua trajetória de vida. Ainda não podemos
afirmar que este trabalho esta finalizado, e racional que muito se tem a
pesquisar sobre a sua trajetória com relação a navegação.
O objeto de estudo aqui é essencialmente o resgate histórico desse
personagem para além da oralidade, ou seja, relacionamos objetos dessa
oralidade com as fontes documentais encontradas até e que serviram
como elementos para a construção desse trabalho. Como Legoff (1990)
afirma a história não se apresenta apenas pela tradição oral pelas diversas 14
culturas, mas também pelos arquivos, documentos em geral que tratam
das trajetórias históricas do homem ou da sociedade.

Neste contexto a experiência que tivemos durante a graduação no


curso de história entre os anos de (2008-2011) nos possibilitou a
desenvolver o entendimento da História não apenas como docente, mas
também como pesquisador. Os professores da graduação sempre nos
possibilitaram a estudar e a compreender a importância de ser historiador
pesquisador.

O que se refere a pesquisar sobre Júlio de Paula é a ideia principal


de uma tentativa de desvendar a trajetória desse nosso antepassado na
nossa região, e certamente tentar estabelecer uma ligação com a tradição
oral da nossa família, com as fontes encontradas até agora. Por isso
encontrar os registros documentais de nosso antepassado, foi o primeiro
passo para desenvolver e apresentar os resultados iniciais dessa pesquisa,
realizando assim uma análise da tradição oral da família e dos documentos
do período relacionado á participação de Júlio de Paula na navegação.

Durante a descoberta dessas fontes sempre a surpresa nos


acompanhou. Desse modo a ideia foi de apresentar esses resultados
dentro deste trabalho, que ainda é um pequeno recorte Histórico da vida
desse personagem. Com relação as descobertas sobre o personagem,
mencionamos a obra Vapores de Bach (2006) em que foi a primeira obra
que relaciona Júlio de Paula e outros personagens com a História da
navegação no Iguaçu. Consequentemente esse trabalho faz uma releitura
histórica dessa obra com relação á Júlio, contribuindo através deste 15
trabalho no resgate histórico e da memória desse personagem.
Portanto nosso objetivo foi de contribuir para a permanência da
tradição oral de nossa família, contribuindo para a sua continuidade da
sua história desse nosso antepassado. É fato que ainda estamos na
sombra no que diz respeito a História Júlio de Paula, e muito ainda essa
História tem a nos revelar. Mas é certo também que assim como grandes
pioneiros, como os nomes de Amazonas Marcondes, Arthur de Paula e
Souza, Júlio de Paula teve também a sua trajetória, no desenvolvimento
do progresso e da história dos vapores na primeira fase da navegação no
Iguaçu, entre o final do Século XIX, e início do Século XX.

Referências Bibliográficas

BACH, Arnoldo Monteiro. Vapores. Editora Uepg Ponta Grossa, 2006

LEGOFF, Jacques. História e Memoria. Tradução Bernardo Leitão. Edi


Unicamp, Campinas, 1990

LUCCHESI, Anita. Conversas na ante-sala da Academia: o presente, a


oralidade e a História Pública Digital. Revista História Oral, vol 17, Rio de
Janeiro, 2014.
RIESEMBERG, Alvir. A instalação Humana no vale do Iguaçu, (S. I: s.n)
1973.

SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. Vida Material, Vida Econômica.


Curitiba: SEED/UFPR, 2001·.
16
Fontes: Documentos Biblioteca nacional:
http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=313394
&pagfis=23831&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#. Acesso em
16/10/2016.
FÉ E POLÍTICA: O PENSAMENTO CATÓLICO
CONSERVADOR NA DÉCADA DE 1920 NO BRASIL
João Elter Borges Miranda 1

Resumo:
O presente trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão a respeito do pensamento
católico conservador dos anos 20 do século XX no Brasil. Para isso, adentraremos o
tema através de uma discussão bibliográfica, percorrendo brevemente a parte da
história do catolicismo no Brasil que vai da segunda metade do século XIX ao início do
XX, com maior ênfase na década de 1920. Procuraremos tratar dos acontecimentos
políticos relevantes na conjuntura nacional para compreender os seus
desdobramentos na Igreja e a reação desta. Objetivamos realizar uma sucinta reflexão
a respeito das ações tomadas pelo catolicismo frente as transformações gestadas ao
longo da Primeira República, se debruçando com maior atenção na década de 1920, e
procurando refletir sobre as ações de reaproximação entre as duas esferas de poder, a
Igreja e o Estado brasileiro. Acima de tudo, buscamos entender como estabelecia-se e
como foi moldado, nesse processo, o pensamento católico. Observamos que ao longo
da década de 1920 o pensamento católico aprofundou-se em tradicionalismo e
conservadorismo. A partir dessas considerações, buscaremos nas considerações finais
sucintamente refletir a respeito das continuidades desse pensamento católico
conservador na atualidade.
Palavras-chave: Catolicismo; Conservadorismo; Tradicionalismo.

Abstract:
This study aims to reflect about the conservative Catholic thought of the 20s of the
twentieth century in Brazil. For this, we will enter deeply the theme through a
bibliographic discussion, briefly covering the part of the history of Catholicism in Brazil
that goes from the second half of the nineteenth century to the early twentieth, with
greater emphasis in the 1920s will seek to address the relevant political developments
in national situation to understand its consequences in the Church and the reaction of
this. We aimed to conduct a brief reflection on the actions taken by Catholicism across
the gestated transformations over the First Republic, leaning more attention in the
1920s, seeking to reflect on the actions of rapprochement between the two spheres of
power, the Church and the Brazilian State. Above all, we seek to understand how
established itself and how it was shaped in the process, the Catholic thought. We note
that throughout the 1920s the Catholic thought deepened in traditionalism and
1
Acadêmico de História na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
conservatism. From these considerations, we will seek in the final considerations
briefly reflect on the continuities of this conservative Catholic thought today.

Keywords: Catholicism; Conservatism; Traditionalis.

Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada


Agora não espero mais aquela madrugada
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada
O brilho cego de paixão e fé, faca amolada
Fé cega, Faca amolada. Milton Nascimento.
(1975)

Em sua belíssima canção, Milton Nascimento elabora uma atraente,


esteticamente falando, representação sobre os mecanismos da Fé no
interior do indivíduo. Ele demonstra como este, após conceber algo com
Fé – e esta Fé não precisa ser necessariamente ancorada em desígnios
religiosos –, é envolto em tranquilidade, força, determinação e confiança,
possibilitando ao indivíduo se sentir autorizado a seguir sem se perguntar
para aonde vai a estrada. Fé, nesse sentido, pode ser compreendido como
a adesão de forma incondicional a uma hipótese que a pessoa passa a
considerar como sendo uma verdade. Esse brilho de paixão e confiança
advindo da Fé pode incorrer em direção a diversos caminhos, desde os
recheados de altruísmo e benevolência até os que são envolvidos em
posturas violentas.
Numa época em que presenciamos decisões político-constitucionais
que influenciarão a vida de toda a sociedade serem tomadas segundo
princípios supostamente religiosos, calcados numa Fé que não passa de
um mergulho em moralismo hipócrita, é importante refletirmos sobre o
processo histórico que perpassou as principais instituições religiosas ao
longo da História do Brasil. Diante da necessidade de se construir um novo
projeto para o país, pois, me parece necessário resistir ao anseio de
sujeitos que ensejam que toda a sociedade detenha uma crença,
especialmente se for a deles. Para melhor resistirmos aos atentos contra o
direito de crença e não crença, acredito ser de grande importância
refletirmos e buscarmos os mecanismos do pensamento religioso,
especialmente aquele que se perpetuou ao longo das origens da república
brasileira.
Tendo em vista a necessidade de se refletir a respeito da história do
pensamento religioso e os seus principais mecanismos, no presente 3
trabalho objetivamos adentrar no pensamento católico da década de 20
do século XX no Brasil. Queremos apontar os elementos centrais contidos
nessa estrutura intelectiva específica, perpassando o tradicionalismo e
conservadorismo que o envolve. Para tentar compreender as estruturas
intelectivas do catolicismo que permeou essa década, adentraremos o
tema através de uma discussão bibliográfica, percorrendo brevemente a
parte da história do catolicismo no Brasil que vai da segunda metade do
século XIX ao início do XX, com maior ênfase na década de 1920.
Procuraremos tratar dos acontecimentos políticos relevantes na
conjuntura nacional para compreender os seus desdobramentos na Igreja
e a reação desta.
A proposta do presente estudo, portanto, é realizar uma sucinta
reflexão a respeito das ações tomadas pelo catolicismo frente as
transformações gestadas ao longo da Primeira República, se debruçando
com maior atenção na década de 1920, e procurando refletir sobre as
ações de reaproximação entre as duas esferas de poder, a Igreja e o
Estado brasileiro. Acima de tudo, buscamos entender como estabelecia-se
e como foi moldado, nesse processo, o pensamento católico. Observamos
que ao longo da década de 1920 o pensamento católico aprofundou-se
em tradicionalismo e conservadorismo. Tendo em vista isso, buscaremos
nas considerações finais fazer uma pequena reflexão a respeito das
continuidades desse pensamento católico conservador na atualidade que,
vale ressaltar, marcou toda a história do país.

No parapeito da extinção, uma busca por reacender na cena nacional


A Igreja Católica, a despeito do seu papel soberano ao longo
Período Colonial, sofreu paulatina e vertiginosa derrocada após a expulsão
dos jesuítas, até se encontrar no Período Imperial num grau de quase
extinção. O processo de mordenização política a partir da Proclamação da
República, principalmente após a decretação da Constituição de 1891, que
selou o fim do Império, buscou eliminar quaisquer traços e características
do regime monárquico e, com especial atenção, rechaçava a 4
promiscuidade entre o Estado e a religião.
No nascimento da República, os indivíduos que perpetraram a
mudança de sistema de governo desejavam apagar quaisquer heranças do
regime político anterior. A Igreja era uma dessas heranças que se
manifestava como uma represa impedindo o avanço do rio de mudanças
republicas. Foi nesse contexto em que o catolicismo deixou de ser a
religião oficial do país e se tornou só mais uma entre outras religiões. Se
por anos a Igreja participou intimamente das decisões político-
institucionais perpetradas pelo Estado brasileiro, na transição do regime
monárquico para o republicando o projeto de Estado Laico desarticulou a
função e influência política da Igreja Católica. Segundo Aquino (2014):

Uma das primeiras tarefas da República brasileira foi a da laicização


do Estado com a publicação do decreto 119-A, de 07 de janeiro de
1890 que acabou com o regime de Padroado no país. Uma semana
depois desse decreto foi publicado outro que implantava o
calendário republicano que destituía as datas comemorativas
religiosas, inclusive a do Natal. O liberalismo, o positivismo e o
jacobinismo francês disputavam entre si a direção ideológica do
novo regime instalado no Brasil que precisou de quase uma década
para se estabelecer enfrentando rivalidades políticas, institucionais,
guerras civis e rebeliões em diferentes partes de um território
nacional ainda indefinido em muitos quilômetros de fronteiras.
(AQUINO, 2014, p. 339).

O afastamento da Igreja do Estado, porém, não significou uma


perseguição generalizada do catolicismo e sua estrutura hierárquica.
Conforme Oliveira (2015), “analisando o caso brasileiro podemos perceber
que o ocorreu um afastamento por parte do Estado institucionalizado com
a Constituição de 1891, mas esse afastamento não significou uma
perseguição generalizada às congregações católicas, também não ocorreu
confisco de bens e os religiosos puderam se manter em território
nacional” (OLIVEIRA, 2015, p. 4). Por conseguinte, a Constituição de 1891,
de inspiração positivista e nacionalista, condenou a Igreja ao ostracismo.
Entretanto, vale ressaltar que, apesar dela ter sido submetida a um
processo de desligamento do Estado, a Igreja em fins do século XIX e início
do XX detinha grande influência na população. 5
Para superar o estado de debilidade em que se encontrava e
recuperar a sua posição privilegiada por ela desfrutada no período
colonial, a Igreja, segundo Salem (1982), busca promover a rearticulação
de suas ações internas e externas. Através da implementação de novas
estratégias de ação que preservariam e reascenderiam o catolicismo na
cena nacional, ela intenta aplacar o avanço dos ideais do positivismo,
liberalismo, anarquismo, socialismo, além, é claro, do avanço do ateísmo.
Para isso, em fins do século XIX implementa o projeto de recristianização
do povo e do Estado brasileiro por meio da reinserção dos seus valores
morais e religiosos no país. Os resultados desse projeto somente serão
colhidos pela Igreja na derrocada da Primeira República, momento em que
essa instituição e o Estado se reaproximam (SALEM, 1982, p. 2-3).
O objetivo do Estado ao se reaproximar da Igreja era tê-la como
aliada nas ações de contenção dos movimentos sociais. Como se sabe, ao
longo da década de 1920 inúmeros movimentos sociais emergiram no
país, causando grande alvoroço na vida pública e intensificando o medo da
classe política de um levante popular que os tiraria do poder. Após a
Revolução de 1930, Getúlio Vargas reaproxima da Igreja para não só
conquistar o apoio das autoridades eclesiástica para os seus projetos
varguistas, como também com o intuito de, com a ajuda da Igreja, aplacar
os avanços das ações dos movimentos sociais.
Após se ver separada do Estado, a Igreja passou a responder
diretamente a Roma. Antes, os eclesiásticos respondiam diretamente às
ordens do governo imperial e não da Santa Sé. O processo de mudança da
centralização do norte ordenatório da Igreja é conhecido como
romanização dos católicos no Brasil. Se, de um lado, a Igreja católica
brasileira nesse período se afastou do Estado; do outro, ela se aproximou
de Roma.
O primeiro ordenamento do Papa foi a implementação no Brasil do
movimento que no mundo ficou conhecido como Reação Católica. O
Movimento era uma tentativa da Igreja de tornar-se novamente influente
e voltar a ter uma presença atuante na sociedade, promovendo os seus
dogmas, doutrinas e ideários religiosos. A sua vertente no Brasil ficou
conhecido como Ação Católica Brasileira (ACB) e, segundo Azzi (1977),
“duas são as ideias que dominam os líderes do catolicismo: maior
presença da Igreja, e colaboração efetiva com o governo” (AZZI, 1977, p.
63). 6
Os olhos da raiz brasileira do movimento estavam voltados para a
elite intelectual do país. Tinham como objetivo formar uma elite
intelectual católica recatolicizando os intelectuais brasileiros. A
recristianização do país seria, assim, perpetrada por esses leigos formados
segundo os ideários e doutrinas católicas. A hierarquia eclesiástica e os
leigos, estes sob o comando daqueles, teriam a missão de “salvar as almas
do povo brasileiro do mal que lhes assombra”. Portanto, o programa de
ação, conforme Salem, busca alcançar o objetivo de recatolização do país
de “cima para baixo”:

Propondo uma política de “saneamento dos saneadores”, a


cooptação de intelectuais é sugerida como a estratégia básica para
a irradiação da ampla obra de apostolado. Destacada como
elemento de vanguarda do movimento de reação, a
intelectualidade teria como tarefa combater as bases agnósticas e
laicistas do regime, disseminando a doutrina cristã pela sociedade e
suas instituições (SALEM, 1982, p. 7).

Assim, a ACB fundava-se como movimento objetivando reacender a


Igreja na vida nacional. O Movimento foi fundado em 1935 pelo cardeal D.
Sebastião Leme da Silveira Cintra. O núcleo inicial da ACB foi o Centro
Dom Vital (CDV), que durante a década de 1920 foi dirigido por Jackson de
Figueiredo Martins (1891–1928). É a partir desses dois personagens que
na década de 1930 o Movimento irromperá no país. Ambos se conhecem
no Rio de Janeiro, em 1921, quando D. Leme é transferido para a então
capital do Brasil. Apesar da morte prematura de Jackson, as suas ideias e
ideais, fortemente estratificadas num nacionalismo de direita, não só
influenciou a Ação Católica ao longo de décadas, como também outros
movimentos, além de ser considerado como o precursor do Integralismo
no Brasil.
Liderado por Leme a partir do Centro D. Vital, e tendo como ideal
norteador a cosmovisão de Jackson, a ACB então irrompe na cena nacional
para fazer a Igreja ressurgir dos escombros. Esse período de restauração
católica influenciará de tal forma o catolicismo brasileiro que até hoje se
vê continuidades de suas marcas. É interessante traçar algumas palavras
sobre Figueiredo, para podermos perceber as razões e mecanismos de
mudanças perpetrados no catolicismo na Primeira República. 7

A cosmovisão de Jackson de Figueiredo e a sua influência no


pensamento católico

Jackson de Figueiredo foi um advogado brasileiro, atuou como


professor, crítico, ensaísta, filósofo e político. Nascido no Sergipe, formou-
se na Faculdade Livre de Direito da Bahia em 1913. Publicou seu primeiro
livro, Bater de asas (1908), quando ainda era estudante, época em que
também participou de vários grupos de estudantes que se dedicavam às
letras. Em março de 1914 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou
como professor e jornalista, colaborando na Gazeta de Notícias e O Jornal.
Figueiredo detinha um posicionamento político claramente
nacionalista e chegou inclusive a defender que fossem restringidos parte
dos estrangeiros de alguns setores econômicos. Foi um dos mais
influentes leigos formado sob os preceitos religiosos na Ação Católica
brasileira. Segundo Salem, “*...+ o movimento de reação encontra nesse
personagem o mais ferrenho líder leigo da militância católica. Ele é
responsável pela aglutinação, em torno de si, de um núcleo de intelectuais
solidários com suas ideias e posições” (SALEM, 1982, p. 8). Se auto
intitulava um reacionário, como demonstra Villaça:

Jackson servia-se do termo reacionário com prazer, com volúpia.


Considerava-se um defensor da reação do bom-senso. E chamou
assim a um de seus livros mais típicos uma coletânea de artigos
exaltados: Reação do bom-senso. Como chamaria a outro livro
Literatura reacionária. Que entendia ele por reacionário? Contra
que reagia? Em que consistia a sua reação ao bom-senso?
Reacionário era para Jackson o antiliberal. O que detestava, o que
pretendia combater era a democracia liberal, vinda de Rousseau e
da Revolução Francesa. O que amava era a ordem, a autoridade, a
estabilidade. E quando, em 1921, se fundou a primeira revista de
intelectuais católicos no Brasil, Jackson escolheu para título a
palavra ordem (VILLAÇA, 2006, p. 13).

Pela ordem, autoridade, estabilidade, Figueiredo fundou a revista


“A ordem”, como disse o autor acima, em 1921, a qual foi extinta em 8
1990. A revista objetivava propagandear as concepções doutrinárias,
políticas e filosóficas católicas e combater a oposição à Igreja.
Segundo Souza (1989), a pregação de Figueiredo ao longo da
década de 1920 muda inteiramente o tradicionalismo católico, levantando
uma bandeira de feição republicana e efetivamente aglutinadora da
sociedade a partir dos ideais da Ordem e da Autoridade (SOUZA, 1989, p.
338). Um antiliberal, Figueiredo defendia os valores e a moralidade social
tradicional e cristã, muito afeito como se vê à moderação e à cooperação.
Para Salem, a cosmovisão de Figueiredo, os seus ideais, posturas e
doutrinas, em sua origem tiveram forte influência do movimento de
Action Française e dos doutrinadores da contra-revolução. Essa
cosmovisão sustentava-se na crença da não-plasticidade e da
inelasticidade do processo histórico, o qual deve ser concebido
unicamente como um problema de índole moral. Essa corrente de
pensamento do qual bebe Figueiredo busca, portanto, através de uma
concepção estática da história a naturalização das desigualdades,
entendendo os antagonismos sociais como um dado natural e imutável,
frutos da predestinação. Isso sacralizava a ordem, em defesa da
hierarquização, acima da qual, a Igreja está supostamente no alto. Em
defesa da tradição, dos antigos preceitos e da velha ordem, qualquer um
que ameaçasse esses supostos desígnios de deus estaria infringindo
contra o soberano, o chamado ‘Pai dos pecadores’, contra a moral
religiosa, contra a Igreja (SALEM, 1982, p. 8-9).
É a partir desses moldes tradicionalistas e antiliberais, entendendo
que a ordem religiosa estaria acima de tudo e a liberdade, nesse sentido,
seria uma quimera, pois que deveria ser o horizonte a ser alcançado, que
Figueiredo trabalhará para reconstruir a sociedade brasileira, incutindo
nela valores e a moral cristã, através da catolização da intelectualidade
brasileira. Conforme Paula (2012):
Figueiredo considerava a lei de natureza como algo misterioso,
produto da Providência Divina que se revela à humanidade nos
momentos de crise quando comandava claramente os seus
desígnios. O meio do comando era a tradição. Dessa forma, a
liberdade “como princípio organizador” só pode ser mesma
entendida como uma quimera, pois, por esse sentido, estaria
ancorada numa ideia abstrata de direito. Ao contrário, o direito, 9
com origem na tradição, estava ancorado na experiência, portanto
seria uma força criadora. Em sua opinião, esta força seria a força do
bom senso. E o bom senso, para Jackson, era a autoridade, cuja
fonte era a religião católica (PAULA, 2012, p. 11-12).

No fim das contas, a liberdade para Figueiredo recaía na figura da


autoridade. E todas as outras noções de liberdade, especialmente aquelas
de cunho liberal, as defendidas pela Revolução Francesa, pela Reforma
Protestante, para ele tinham estrutura cambiante e deveriam ser
renegadas. Neste sentido, a cosmovisão de Figueiredo sacraliza na figura
da autoridade divina preceitos que considera pagãos e que são, na
realidade, liberais.
Esse pensamento estrutura-se num movimento muito presente na
história do país que tem como fundo de ação a desqualificação do outro,
especialmente se o indivíduo for despossuído de poder econômico e
político, sendo assim, também não possuindo, ou possuindo pouca,
escolaridade. Não é à toa que a Ação Católica no Brasil buscou reascender
no cenário nacional a Igreja de “cima para baixo”, buscando na
intelectualidade brasileira os meios e os canais para que a sua cosmovisão
voltasse a perpetuar soberanamente no país, e não no povo
primeiramente.
O pensamento católico conservador defendido por Figueiredo – e
que, como dito, influenciará um grande número de intelectuais,
aglutinados ao redor desse personagem – está calcado, portanto, na
naturalização dos antagonismos sociais. E busca defender-se através da
moralização do processo sócio-histórico. Essa moralização, por sua vez, é
fruto de um esforço de cristianilização dos modos de interpretar o mundo.
O pensamento católico conservador, assim, procura conservar o status
quo do catolicismo através de um ideário tradicionalista. Diante de suas
dificuldades de se apropriar das múltiplas e diversas novas formas que a
sociedade vem construindo para pensar e se posicionar no mundo, leva a
Igreja a readotar o tradicionalismo para defender e fazer propagandear
aquilo que conhece e acredita ser a verdade.
Esse esforço perpetrado pela Igreja Católica para voltar a ter
soberania na produção cultural e nos direcionamentos da educação são,
assim, intensificados na década de 1920, momento no qual é fundado o
Partido Comunista brasileiro (PCB); ocorre a Semana de Arte Moderna, 10
entre outros acontecimentos que, inspirados em ideias de além-mar,
ensejam fazer um filtro daquilo que se consideram aceitável nas
produções estrangeiras e mesclar com as produções originalmente
brasileira.
Segundo Salem, a Igreja é tida como a cristalização da estabilidade e
o objetivo dessa luta que se dá em meio político e cultural é alçar a volta
da Idade Média, que simboliza o ideal a ser restaurado. Para essa linha de
pensamento, após as Reformas ocorridas no século XVI, depois das
influências de Descartes, com a Revolução Francesa, a desordem e a
licenciosidade foram muito estimuladas, de acordo com o pensamento
católico conservador presente na década de 1920 (SALEM, 1982, p. 9).
Cabia a Igreja lutar contra o avanço desses ideais que infringem os
seus dogmas. O conservadorismo e o reacionarismo são, assim, um
movimento de contraposição contra as concepções que defendem
mudanças abruptas no poder político, na influência da Igreja, na
organização estrutural da sociedade, calcados em ideais revolucionários e
progressismo.
Com Figueiredo a frente do Centro D. Vital e a revista A Ordem,
influenciando inúmeros intelectuais, esse tradicionalismo religioso é
atrelado a um nacionalismo de direita e que, com esse personagem,
culminará no Integralismo brasileiro. De inspiração tradicionalista,
ultraconservadora, inspirada na Doutrina Social da Igreja Católica – a qual
falei brevemente acima –, o Integralismo é uma doutrina política de cunho
fascista que também proveio da Action Française. No Brasil, se manifestou
na figura da Ação Integralista Brasileira e terá grande ascensão a partir da
década de 30. A despeito da desigualdade social, esse movimento
expressa que a volta da paz e da ordem somente seriam restaurados
quando aqueles considerados bons, a partir dos seus méritos, estariam a
frente do processo e seriam considerados autoridade.
Considerações Finais

Diante das alterações surgidas com o início do republicanismo, a


instituição católica precisou se rearticular para encontrar novas
estratégias de ação frente as mudanças que ocorriam no período,
objetivando estabelecer frentes de reconquista e recatolização. Nesse 11
cenário, surgem então figuras como Jackson de Figueiredo, o qual com a
sua incrusta e aprofunda em nossa sociedade ideários tradicionalistas e
conservadores que, mais tarde, desembocarão no Integralismo brasileiro,
entre outros movimentos.
Cabe aqui, após termos refletido brevemente sobre a cosmovisão
por trás desses acontecimentos, observar se na sociedade brasileira atual
prepondera ainda essas concepções. Nas minhas poucas luzes, acredito
que ainda há em muitas cabeças, infelizmente em muitas cabeças jovens,
essas ideias e ideais velhas. O que se vê hoje, em grande medida, não
passam de novas embalagens que escondem antigos interesses.
As estruturas por trás de muitas das formas de interpretar o mundo
preponderantes na sociedade atual se assentam em ideais que
naturalizam o que é construção social. Como defendia Figueiredo –
cosmovisão que, como dito, influenciou o pensamento católico na década
de 1920 – ademais os antagonismos sociais que permeiam a sociedade,
todo e qualquer indivíduo ao se dedicar com Fé em alcançar os desígnios
divinos, ao respeitar a autoridade de deus personificada e materializada
na hierarquia eclesiástica, atingirá aquilo que deseja.
Atualmente, a cosmovisão de muitos possui obviamente
características peculiares advindas do processo histórico ocorrido ao longo
do século XX, estamos falando aqui em mais de cem anos que separam o
pensamento católico conservador da década de 1920, da nossa época.
Ainda assim, percebo continuidades. Um exemplo disso, é a atual e cada
vez maior defesa da meritocracia. Essa tese bebe da mesma ideia de
naturalização do social, entendendo a desigualdade como algo dado,
natural, porém hoje se percebe a possiblidade de mutação, desde que
aqueles que quiserem a mudança se esforçarem. A proximidade entre
ambas percepções do mundo, então, está em colocar no mesmo patamar
de igualdade o que é historicamente desigual.
Um outro exemplo que me surge é o famigerado “Não pense na
crise, trabalhe”, frase vista em muitos outdoors espalhados pelo país. Esse
incentivo a auto-alienação está pautado também na defesa da autoridade
e não negação a qualquer insurgência que enseja modificar o atual estado
das coisas. Conservadorismo esse cada vez mais presente na sociedade
brasileira atual, que foi a tônica da Ação Católica no país na Primeira
República. 12
Sempre que se inicia no Brasil um movimento que objetiva melhorar
a vida de todo o povo brasileiro, as velhas elites que há séculos
adormecem em um berço esplêndido de nacionalismo de direita,
tradicionalistas, de um moralismo hipócrita e conservador, atentam
contra as mudanças de modo a garantir a manutenção do status quo.
Existem muitos outros exemplos de continuidades do pensamento
católico conservador na atualidade, mas que me escapam agora. É
fundamental nós entendermos com profundidade isso para estarmos
melhor preparados para a luta vigente.

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portuguesas para o Brasil no início do século XX: política, religião, gênero.
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VILLAÇA, A. C. O pensamento católico no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2006.
HUGO DOS REIS E A SOCIEDADE PONTA-GROSSENSE: A
ATUAÇÃO DO JORNALISTA NO DIÁRIO DOS CAMPOS

1
Isaias Holowate
2
Dones Claudio Janz Junior 1

Resumo:
O presente artigo faz um estudo da atuação do jornalista Hugo dos Reis na sociedade
ponta-grossense entre os anos de 1908 e 1921. Tendo vindo do Rio de Janeiro em
1908, ele atuou em Ponta Grossa junto ao jornal local O Progresso – depois Diário dos
Campos -, em diversas funções, sendo redator, diretor e posteriormente, proprietário
do jornal. No periódico, promoveu o surgimento de uma classe de colaboradores da
publicação, permitindo a presença de uma diversidade de representações sobre a
sociedade daquele período. Na pesquisa utiliza-se como fonte, as publicações dos
jornais O Progresso e Diário dos Campos e entre 1908 e 1921 e embasados pela teoria
das Representações do historiador Roger Chartier, analisa-se os sentidos produzidos
pelo jornalista sobre o meio social ao qual fez parte, compreendendo que as
representações são socialmente construídas e se relacionam com o ambiente social e
cultural em que seus signos são produzidos.
Palavras-chave: Representações; Relações sociais; Diário dos Campos.

Abstract:
The following article observes the work of the journalist Hugo dos Reis in the society of
the city of Ponta Grossa on the years between 1908 e 1921. Coming from Rio de
Janeiro in 1908, he worked on the local paper O Progresso – and after that in the
Diário dos Campos – in various assignments, being a drafter, director and soon after,
owner of the newspaper. He was responsible for bringing up a new class of
collaborators to the publication, allowing for a diversity of representations about the
society of that time period. In this research we use the publications of the newspaper
O Progresso e Diário dos Campos that were created in the time period between 1908
and 1921 as sources and we base our conjectures on the Theory of Representations of
the historian Roger Chartier by analyzing his impressions about the social ambient
where he was inserted, understanding that those representations are social constructs
and relate to the social and cultural ambient where their signs are reproduced.
Keywords: Representations; Social Relations; Diário dos Campos.

1
Graduado em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. E-mail:
isaiasholowate@gmail.com.
2
Orientador. Mestre em História pela Universidade Estadual do Paraná - UFPR. Docente na Universidade
Estadual de Ponta Grossa – UEPG. E-mail: donesjanz@gmail.com.
Introdução
No ano de 1908, o jornalista carioca Hugo Mendes de Borja Reis
chegou a cidade de Ponta Grossa, no Paraná. Tendo fixado residência, ele
que já tinha experiência com o jornalismo no Rio de Janeiro, tratou de
ligar-se ao periódico local O Progresso – que depois se chamaria Diário dos 2

Campos – onde atuou entre os anos de 1908 e 1921, participando da


equipe editorial do jornal.
Sua atuação junto a imprensa ponta-grossense é um dos principais
responsáveis pela presença, no jornal, de uma diversidade de
representações sobre a sociedade daquele período, sendo que, ao mesmo
tempo em que Hugo dos Reis vinha de fora e buscava espaço na sociedade
local, ele também possuía uma formação cultural que em diversos
aspectos se diferenciava dos princípios habitualmente defendidos pelos
grupos locais e particularmente, ao grupo ao qual o jornalista buscou se
inserir, que constituia-se de uma burguesia letrada urbana.
Na sua participação no jornal, ele teve ocasião de afirmar seus
preceitos, questionar princípios aos quais não concordava e ser inquirido e
acusado sobre seus posicionamentos, em virtude das suas convicções
políticas, sociais e religiosas. Defensor do espiritualismo científico 3, Reis
foi também um grande combatente em favor das causas sociais e sempre

3
Espiritualismo científico é a uma corrente ideológica que atingiu boa parte da intelectualidade
brasileira no final do século XIX e início do século XX. Partindo do movimento Kardecista, teve
notoriedade na segunda metade do século XIX, após a morte de Allan Kardec, e a primeira metade do
século XX. Seus propagadores associavam o discursos espiritualista com científico e que deveria ser
compreendida no sentido estrito da palavra. Segundo Maldonado (2008, p. 11) “boa parte da
intelectualidade brasileira do século XIX interessou-se pela doutrina espírita e até mesmo converteu-se
a ela”.
se posicionou defendendo bandeiras relativas à melhoria da educação e
da saúde.
Uma das características da participação de Hugo dos Reis na
sociedade ponta-grossense, foi o seu rápido reconhecimento no meio
jornalístico local. Numa época de fortalecimento das profissões liberais, a 3

sua recognição no meio jornalístico ponta-grossense só foi possível graças


a aceitação da sociedade local e do grupo ao qual ele se inseriu, que
aceitou-o como membro. O historiador Roger Chartier, ao defender que as
relações sociais são determinantes para construção das representações
sobre a atuação do indivíduo, aponta que: “A realidade de uma posição
social não é mais do que aquilo que a opinião considera que ela é: É o
reconhecinento, pelos outros, da qualidade de membro dessa sociedade
que, em ultima análise, decide sobre essa mesma qualidade” (CHARTIER,
1990, p. 112).
Na pesquisa, a fonte4 utilizada consiste de publicações da imprensa
ponta-grossense, do jornal O Progresso entre 1908 e 1912, e do seu
sucessor, o jornal Diário dos Campos, entre os anos de 1913 e 1921, na
época em que o Hugo dos Reis fez parte do corpo editorial da publicação.
A utilização de fontes jornalísticas em pesquisas históricas, tem se tornado
mais comum nas ultimas décadas, principalmente após a diversificação
das fontes e métodos de pesquisa promovidos pela terceira geração da
Escola dos Annales (LE GOFF e NORA, 1978, pp. 11-12).

4
Nas citações de fontes, optou-se por realizar a transcrição literal das fontes, de forma a manter a
fidelidade da grafia e a historicidade dos termos do período estudado.
Luca (2011, pp. 111-153) aponta para os avanços na pesquisa em
jornais, que se tornaram uma importante fonte de pesquisa para diversas
áreas. Os documentos jornalísticos contém uma diversidade de
representações sobre seu tempo e apresentam uma variedade de
possibilidades de pesquisa, pois, tais documentos, além de serem uma 4

ferramenta comunicativa, trazem consigo os usos sociais da notícia e


revelam interesses aos quais essas publicações defendem. Estudar o jornal
pode possibilitar uma melhor compreensão das formas com que
indivíduos pertencentes a determinados grupos, pensam, praticam e
representam a sua realidade.
A pesquisa em periódico envolve a reconhecimento da fonte como
uma ferramenta que constrói uma realidade, ao mesmo tempo em que é
influenciado pelo meio social, realizando uma constante troca de
informações. O jornal, ao mesmo tempo em que influencia a opinião de
seus leitores, também é influenciado pelos grupos que acessam à
publicação, sejam eles os patrocinadores, produtores, colaboradores ou
consumidores (PONTES e SILVA, 2012, p. 52).
Na análise de representações em jornais, também é importante
atentar para a historicidade da fonte e das representações nela contidas.
Por isso, faz-se importante que esses documentos sejam submetidos ao
crivo de uma pesquisa que envolva a utilização de um método. Sobre os
aspectos metodológicos de pesquisa nos jornais, Luca (2011, p. 140)
afirma que:
O pesquisador dos jornais e revistas trabalha com o
que se tornou notícia, que por si só já abarca um
espectro de questões, pois será preciso dar conta das
motivações que levaram à decisão de dar publicidade
a alguma coisa. [...] Em síntese, os discursos adquirem
significados de muitas formas. [...] A ênfase em certos
temas, a linguagem e a natureza do conteúdo 5
tampouco se dissociam do público que o jornal ou a
revista pretende atingir.

Contudo, as publicações de um jornal não apresentam a “verdade


por si só”; são documentos socialmente construidos e dizem respeitos à
cultura na qual foram produzidas. Por isso, o estudo das representações
presentes nos jornais deve considerar que as publicações presentes em
uma edição são ressignificações da realidade.
Para os estudos dessas ressignificações toma-se por pressuposto os
princípios da História das Representações, defendido pelo historiador
Roger Chartier, que compreende a relação da realidade/representação
através da relação signo - significado “entendida, deste modo, como
relacionamento de uma imagem presente e de um objecto ausente,
valendo aquela por este, por Ihe estar conforme” (CHARTIER,1991, p.
184). Na representação “o real assume [...] um novo sentido: aquilo que é
real, efetivamente, não é”, (CHARTIER, 1990, p. 62) e deixando para trás a
dualidade verdade/ficção, a História das Representações busca
compreender as representações da realidade produzida pelo indivíduo.
Por ser o jornal um documento histórico, a análise das
representações busca compreender os fatores que determinaram os
discursos do periódico, e suas especificidades, desde seu formato,
abrangência, apresentação, paginação, sua estrutura das matérias,
colaborações, hierarquias discursivas e debativas, além de analisar o
contexto e texto em que tais matérias forma produzidas.
Portanto, para a compreensão das representações produzidas por
Reis sobre o seu tempo, faz-se necessário entender o contexto social do 6

qual ele fazia parte, investigar a estrutura do jornal nesse período, a


estruturação e as transformações na sociedade em que ele veio a residir, e
no estudo da construção de sentidos do jornalista sobre a sociedade local,
compreender nas publicações do jornalista e seus colegas de periódico, as
relações estabelecidas no âmbito do jornal e as representações
produzidas sobre a sociedade em que ele vivia.

A sociedade ponta-grossense do início do século XX


A sociedade ponta-grossense em que Hugo dos reis se inseriu, havia
passado por um período de uma crise na economia rural na segunda
metade do século XIX, o que deu origem a uma diversificação da
economia, que passou a ser estruturada nas recém-criadas indústrias
como a madeireira (KOHLRAUSCH, 2007, p. 20) e a ervateira (LEANDRO,
1995, p. 12).
As transformações econômicas ocorreram contiguamente ao
fenômeno de urbanização da cidade, provocando uma modificação
estrutural na sociedade. No final do século XIX, a região passou por um
período de intensa imigração que trouxe pessoas de diversas
nacionalidades, possibilitando a existência de uma sociedade
caracterizada por uma multiplicidade cultural. A população ponta-
grossense passou entre o final do século XIX e o início do século XX, de
4774 habitantes de acordo com o Censo de 1890, para 20771 no Censo de
1920 (PINTO, 1980, p. 61).
Nesse período se estabeleceu uma distinção mais clara entre o rural
e o urbano (PEREIRA, 1996, pp. 97-115), criando-se um sentimento de 7

identidade urbana. A atuação na cidade, associado cada vez mais à riqueza


e ao progresso, acentua e diferencia o meio rural da urbanidade ponta-
grossense. Tal como afirma Zulian (1998, p. 40):

Transformações sensíveis na estrutura social e


econômica vão se evidenciando na Ponta Grossa do
fim do século, que se manifestam na concentração
urbana e em contraste com a dispersão rural de
proprietários em busca de outro tipo de atividade. Em
função destas transformações, Ponta Grossa, que
parecia confundir-se com o campo que a invadia,
assume “ares de cidade”.

O fenômeno da urbanização também modifica o imaginário da


cidade. Anteriormente, as cidades dos Campos Gerais 5, além de serem
pequenas e quase indistintas da área rural, se caracterizavam por uma
dependência em relação à economia das fazendas e do tropeirismo,
ambas as atividades principalmente rurais. Contudo, a partir do final do
século XIX, com a urbanização e industrialização, a população campestre
orbita a cidade, que passa agora a ser um local de atração. A cidade é o
5
A região dos Campos Gerais no Paraná ocupa uma faixa de território do Segundo Planalto paranaense,
entre o Planalto Curitibano e o Planalto de Guarapuava. Caracteriza-se por ser uma região campeira,
que durante os séculos XVIII e XIX, foi ocupada pela economia tropeira, com a instalação das fazendas
de engorda dos animais que passavam pela região.
lugar do progresso, por excelência. Lá se discutia politica e sociedade, se
comercializava matérias-primas e produtos industrializados, e uma parcela
da população se divertia nos lugares morigerados 6 ou não. Estar na cidade
era um símbolo de status superior para os grupos modernizantes da
população. 8

Nessa época, muitos dos filhos de fazendeiros partiam em direção


às capitais de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, onde realizavam
seus cursos de bacharéis, e após retornarem à região, assumiam postos de
empregos públicos e cargos na política ponta-grossense (LEANDRO, 1995,
p. 13).
Nesse mesmo período, os códigos de postura buscam regrar as
práticas sociais da população, através da ordenação dos espaços urbanos
e a busca pelo estabelecimento de normas de controle das ações dos
indivíduos (PEREIRA, 1996, p. 6). Ao mesmo tempo, a ordenação da
população procurava criar uma identidade cultural de classe média em
torno dos discursos progressistas doutrinadores daquele momento, como
a ideologia de ciência que se tornava cada vez mais poderosa.

A noção de civilização se afirmaria, principalmente, no


caráter desse progresso. É um progresso, em seus
diversos aspectos, à moda européia. A cidade vai
surgindo como uma urbe cosmopolita, onde o
comércio, a estrada de ferro, o novo arruamento, as
construções, os habitantes (sérios, ordeiros,
6
O termo “morigerado” era frequentemente utilizado na sociedade paranaense do século XIX para
referir-se aos indivíduos cujas qualidades eram defendidas pelas elites socieconômicas. O indivíduo
morigerado era aquele que defendia o trabalho, a acumulação de capital, comportando-se de acordo
com as leis e regras de etiqueta sociais. Os não-morigerados eram aqueles que constrariavam essas
regras e constituíam a grande maioria da população. (PEREIRA, 1996, p. 5)
empreendedores) e seus novos hábitos civilizados são
elementos denotativos de uma “nova Ponta Grossa” (
ZULIAN, 1998, p. 53).

Essa nova burguesia contava com muitos personagens que


defendiam os ideais positivistas. O progresso é associado à ocupação do 9

interior e ao desenvolvimento tecnológico da região. Assim como a


chegada da ferrovia, a criação do periódico O Progresso - que viria a ser o
Diário dos Campos - representam, nesse momento, como aponta Chaves
(2011, pp. 30-31), algo que tendia a ser percebido por alguns grupos da
sociedade local, como um importante avanço da cidade rumo à sua
modernização.
O aumento populacional significou também um aumento de
necessidades de estruturas políticas e sociais capazes de atender às
recentes demandas da população. Segundo os colaboradores do Diário
dos Campos, a estrutura municipal não tinha condições de arcar com o
preço da urbanização, e as transformações na estrutura urbana não
acompanharam as mudanças sociais, acentuando os problemas no
ambiente citadino e tornando as condições de vida difíceis para a maioria
da população mais pobre.
Portanto, a cidade de Ponta Grossa se urbanizou sem haver
propriamente uma preocupação das autoridades com a massa que
imigrava para a região. Os constantes apelos dos colaboradores do jornal
para o risco de uma degeneração racial citam a falta de estrutura
sanitária, cultural e social para atender à população. Com o crescimento
populacional houve um inchamento da cidade, provocando a
multiplicação das tensões sociais. As publicações do Diário dos Campos
denunciam constantemente a intensificação da criminalidade na área
urbana, e supostos “males” como o “jogo”, a “prostituição”, o
“alcoolismo” e a “vagabundagem”. Com uma estrutura sanitária escassa, a
cidade era também vítima constante de epidemias de tifo, sífilis e febre 10

amarela. As páginas do jornal constantemente reclamam ações das


autoridades em relação aos problemas da cidade em expansão.

A personalidade de Hugo dos Reis no Diário dos Campos


O discurso jornalistico do Diário dos Campos, no início do século XX,
esteve sempre atrelado às ideologias de ciência e progresso. Ambas
estiveram presentes no cenário nacional desde o movimento de
Proclamação da República, sendo que O Progresso foi o nome utilizado
inicialmente pelo jornal publicado pela primeira vez em 27 de abril de
1907 (DIÁRIO DOS CAMPOS, 27 abr. 1922, p. 1) em Ponta Grossa, com
uma tiragem de 300 exemplares.
O jornal foi criado por Jacob Holzmann, um imigrante russo-alemão
que chegou à cidade no final do século XIX, e que teve uma grande
importância na política ponta-grossense. Holzmann foi membro de uma
burguesia atuante na cidade, um dos fundadores da Companhia
Tipográfica pontagrossense e personagem influente das discussões
políticas locais, tendo sido considerado por José Cadilhe como o
“Fundador da Imprensa de Ponta Grossa” (CHAVES, 2011, p. 29). O jornal
inicialmente publicado quinzenalmente, após poucas edições, passou a ser
publicado a cada três dias.
A publicação consistia, durante a maior parte do período analisado,
de 4 páginas, sendo as duas últimas voltadas principalmente para
anúncios comerciais. Os editoriais geralmente eram posicionados na
primeira página, muitas vezes no topo. Esse posicionamento dos discursos
na publicação demonstra a importância que a opinião dos pensadores 11

locais tinham para os produtores, assinantes e compradores do jornal


nesse período.
O objetivo do periódico era promover a sociedade local, divulgando
as peculiaridades da cidade, tal como afirma Chaves (2011, p. 30):

[o objetivo do periódico era divulgar] os


acontecimentos políticos; as atrações culturais; a vida
social; os avanços urbanos e tecnológicos e os
problemas decorrentes de tais avanços; os
acontecimentos fortuitos e pitorescos; quem chegava
e quem partia; tudo era objeto das colunas publicadas
em O Progresso.

Em 1º de janeiro de 1913 o periódico, agora de propriedade da


Companhia Tipográfica Pontagrossense, se torna finalmente um diário,
passando a se chamar Diário dos Campos, o que demonstra a aceitação da
publicação por parte dos leitores.
A publicação acompanhava, refletia, questionava e debatia sobre os
mais variados acontecimentos aos quais a sociedade ponta-grossense
entrava em contato naquele período. Tendo surgido em uma época de
industrialização da cidade, o periódico foi conquistando espaço no público
dos Campos Gerais na medida em que a cidade foi aumentando sua
influência na região (REIS, 9 Out. 1915, p. 1) e se tornou o jornal de maior
circulação na região. Numa época em que alguns grupos sociais se
apropriavam dos ideais progressistas, o periódico também surgiu, nas
palavras de seu fundador, “pequerrucho”, mas com “o progresso” até no
título. Tal como afirma Holzmann (27 abr. 1915, p. 1) na edição 12

comemorativa dos oito anos do periódico:

Faz hoje oito annos que veio à luz um “pequerrucho”,


conforme mostra o retrato da nossa primeira página,
o qual era para receber o nome de “O
Pontagrossense”, mas, devido ao seu raquitismo, não
pode comportar este extenso nome, e foi então que o
batizaram de “O Progresso”, cujo nome antigo e
batido veio a calhar, porque não só ele progrediu,
como toda a cidade o acompanhou na mesma vereda.

Durante o período de publicação, personagens eminentes como


Belisário Pena, Rui Barbosa e Olavo Bilac foram reproduzidas no periódico,
além de entrevistas concedidas ou discursos públicos reproduzidos na
publicação.
Nas publicações do periódico é constante a preocupação de buscar
– ao mesmo tempo em que se associava com os discursos científicos da
época - falar na linguagem popular para atingir um maior número da
população letrada ponta-grossense.
Contudo, desde a sua fundação, o jornal enfrentou constantemente
as dificuldades financeiras, passando pelas mãos de diversos proprietários,
nos seus primeiros anos, dando origem a discussões, inclusive, sobre a sua
continuidade ininterrupta, em virtude das constantes trocas de chefia.
Porém, considera-se que a presença de Jacob Holzmann e Hugo dos Reis
nos primeiros anos, e a preocupação do jornal de após 1912, mesmo com
a mudança de nome para Diário dos Campos, em ostentar o sub-título de
Ex-O Progresso – que se manteve até a saída de Hugo dos Reis – 13

asseguram a publicação manteve uma continuidade ininterrupta.


O jornal, mesmo nos seus primeiros anos, já enfrentava diversas
dificuldades para sua manutenção, pois faltavam o apoio de
patrocinadores e anunciantes, além de ter escassos investimentos,
inadimplência dos assinantes e falta de colaboradores qualificados. Nesse
aspecto, a entrada de Hugo dos Reis em meio à equipe improvisada que
dava vida ao periódico é um fato fortuíto, pois Reis era o primeiro
jornalista de profisão que iria atuar no jornal.
Em Ponta Grossa, Hugo dos Reis se tornou um dos ícones do
jornalismo. Tendo nascido em Valença, Estado do Rio de Janeiro, em 10 de
dezembro de 1884, e migrado para Ponta Grossa, em 1908, com 23 anos
completados, sua vinda se deu por recomendação médica para cuidar de
um problema de saúde. Após ter chegado à cidade, desde logo buscou
atuar no jornalismo local, indo visitar a redação do recém-fundado O
Progresso. Epaminondas Holzmann (2004, p. 269), filho do fundador do
periódico ponta-grossense, rememoriza sobre o primeiro contato de Hugo
dos Reis com o jornal ponta-grossense:

[...] se apresentou, na gerência do jornal, um moço


cujo traje logo chamou a atenção: fraque bastante
rostido e reluzente, gravata tipo borboleta, chapéu--
coco a cobrir uma basta cabeleira encaracolada.
Esquálido, com a dentadura saliente e enormes
bigodes lusitanos, mais se assemelhava a um agente
de empresa funerária, ou então a um poeta trágico,
pronto para puxar do bolso tiras e tiras de papel
carcomido, com versos e mais versos procura de 14
editor.

Reis, que também era poeta, foi aceito e começou a atuar como
redator literário, tornando-se pouco tempo depois, o redator do
periódico, onde no período entre 1908 e 1921, galgou as funções desde a
redação, até a direção, e após 1915, tornou-se proprietário da publicação,
onde se manteve até 31 de agosto de 1921.
Durante sua participação, o jornalista acompanhou os desafios e as
mudanças na sociedade e buscou refletir nas páginas da publicação,
envolvendo-se constantemente em debates políticos e sociais da Ponta
Grossa de sua época, tendo particicipado de diversas campanhas, como
pela fundação de uma agremiação de luta pelos direitos dos
trabalhadores, pela promulgação do espiritismo, pelo povoamento do
interior, e pelo reflorestamento da região, que já era alvo das indústrias
madeireiras.
Numa Ponta Grossa que até 30 anos antes fora típicamente
escravagista7, que mesmo após ser sancionada a lei da abolição de 1888,

7
De acordo com o historiador Magnus de Mello Pereira, que elaborou uma tabela sobre a situação da
sociedade paranaense com base no relatório do governador Zacarias de Góes e Vasconcelos, Ponta
Grossa possuía por volta de 1850, uma populaçãode 3.033 habitantes, dos quais 1.889 eram
considerados brancos e outros 1.144 eram compostos por pessoas considerados pardos ou pretos. Das
pessoas consideradas não brancas, 1.059 eram escravos, o que significa que, 92,57% da população não-
branca de Ponta Grossa era escrava (PEREIRA, 1996, pp. 53-54).
não havia superado, o regime social e cultural de discriminação racial que
existia durante a escravidão, e onde a presença constante de discursos
sobre a raça apontam para a existência de racismo mesmo após a
libertação dos escravos, também Hugo dos Reis, foi alvo de atitudes
racistas por parte redatores do jornal ponta-grossense Diário do Paraná, 15

tendo a publicação rival afirmado que Reis era negro de “más acções", o
que, numa época em que a associação entre raça e qualidade morais era
comum8, equivalia a afirmar que o redator do Diário dos Campos era
dotado de defeitos morais e racialmente inferior. A defesa de Reis no
editorial intitulado “Uma resposta”, apresenta, contudo, uma visão de
raça diferente do discurso comum na sociedade ponta-grossense daquele
período, pois o jornalista afirma que suas ações, e não a sua cor, é que
definiam a sua personalidade. Defendendo-se das acusações do redator
do Diário do Paraná Reis afirma que:

O negro que mereceu atenção do redactor do “Diário”


sou eu [...] nunca fui nem serei desordeiro [...] quanto
à ser negro, louvo ao céu por ter-me feito assim,
porque poderia ter-me feito branco, mas branco de
acções negras como essas que acaba de practicar o
redactor do “Diário” [...] A raça preta de Ponta Grossa,
penso eu, sente-se muito feliz com o despreso dos
homens do “Diário”, cuja affeicção elles dispensam ou
devem dispensar”. (REIS, 27 jul. 1909, p. 2).

8
A ascensão da eugenia provocou mudanças significativas na forma que a sociedade do final do século
XIX e início do século XX interpretava o mundo, havendo neste momento, um discurso que legitimava e
ao mesmo tempo exigia ações dos cientistas com o intuito de provocar modificações na sociedade. A
raça se tornou um fator determinante para a evolução da sociedade e o aprimoramento racial era
percebido como a melhor possibilidade de promover o crescimento de uma nação (SILVEIRA, 2005,p.
32).
Em outro caso, Hugo dos Reis, foi agredido com uma violenta
pancada na cabeça, em 28 de maio de 1.909, correndo o risco de ser
linchado por um grupo de seus rivais. O fato foi inclusive noticiado no
jornal paulista, O Estado de São Paulo, na edição de 29 de maio de 1909. 16

De acordo com a publicação do jornal paulista, reproduzida no Diário dos


Campos, em 8 de junho do mesmo ano, o jornalista foi atacado pelo “Sr.
Generoso Borges, redactor do Diário do Paraná” quando saía da redação
do Diário dos Campos. Hugo dos Reis teria sido agredido em virtude de
seu constante posicionamento sobre questões políticas da sociedade
local. Assim como o periódico paulista, nos dias seguintes, dezenas de
publicações de colaboradores lamentam o fato, e questionam a atitude
tomada pelo redator do Diário do Paraná, que feria os direitos de livre
expressão, algo defendido por Reis e pela imprensa (DIÁRIO DOS CAMPOS,
8 jun. 1909, p. 1).
Também o fato de ser um emigrado do Rio de Janeiro lhe rendeu
dissabores. Num período de ascensão dos discursos regionalistas, e em
especial do paranismo 9, Reis também foi acusado de ser um estrangeiro
no solo paranense, e de não ser propriamente um parananaense. Reis
defendeu-se em um editorial em 1915, afirmando a honestidade de sua
gratidão em relação ao Paraná:

9
O paranismo foi um movimento regionalista, surgido a partir dos meios intelectais paranaenses, foi
definido em 1927, por Romário Martins, para nomear aqueles que possuíam um “amor pelo Paraná” e
lutavam pela “glorificação” do Estado. Contudo, os inícios do movimento surgem logo após a
emancipação política do Estado em 1853, e durante a disputa entre o Paraná e Santa Catarina pela
região do Contestado,os animos paranistas são exacerbados (BATISTELLA, 2012: 1)
É preciso também, que de uma vez por todas, que se
fique sabendo que o Paraná é meu, é o meu Estado.
Aqui eu renasci de moléstia incurável que,
maravilhosamente, se curou...o ser tellurico da terra
passou para o meu organismo e talvez eu não precise,
como o kaiser, derramar algumas gotas de sangue
fluminense para ficar inteiramente paranaense. O 17
poucochito que por ahi pelas pedras das calçadas
ficou derramado, em guerra aberta e acesa, o foi pela
questão dos limites. E, talvez, não precise reviver a
scena kaiseriana pois segundo uns, o cerebro se
renova inteiramente a cada 7 anos – o tempo exacto
que eu cá estou; sendo, como o corpo, o meu
pensamento, paranaense (REIS, 18 fev. 1915, p. 1).

Da mesma forma que Euclides da Cunha acompanhou a quarta


expedição contra Canudos, Hugo dos Reis visitou as áreas de confronto
durante a Guerra do Contestado, na fronteira entre os Estados do Paraná
e Santa Catarina, observando a atuação do exército na região e notando a
pobreza e as más condições sanitárias e sociais da população, abandonada
pelo poder central.
Durante a sua estadia no periódico, Hugo dos Reis também
promoveu diversos concursos culturais com o objetivo de estimular o
aumento de colaboradores e permitiu a existência de uma diversidade de
discursos que permitem a presença de uma multiplicidade de
representações sobre os mais diversos aspectos da sociedade local.
Manteve também a presença de diversos colaboradores, sendo que a
maioria deles eram pertencentes à crescente burguesia urbana de Ponta
Grossa. Os colaboradores, pertenciam a uma classe letrada, progressista e
adepta dos ideais modernizadores da sociedade paranaense, e
compunham o que se compreende como os “intelectuais locais”, que, de
acordo com os historiadores Chaves e Karvat (2013, p. 2), era constituído
por:
18

notadamente escritores, que se pautando em


diferentes leituras, autores e referências, participaram
ativamente das discussões locais. Cabe ressaltar que
essas discussões, quando problematizadas, deixam
entrever questões de ordem mais ampla, referentes à
aspectos nacionais – de foro social, econômico e/ou
político – e/ou, mesmo, internacional, principalmente
naquilo que toca os grandes dilemas históricos do
século passado, sejam os grandes conflitos bélicos
e/ou a implantaçãode diferentes regimes políticos.
Perceba-se que, com isto, o local (ou sua noção)é,
aqui, tomado a partir de um jogo de escala, e não mais
a partir de, apenas, elementos menores e/ou curiosos.
Com essas possibilidades, ou a partir delas, se abrem
novas e amplas possibilidades de problematização e
investigação.

Alguns dos principais colaboradores do jornal, como Julio Xavier e


Flávio Carvalho Guimarães eram advogados. Alcídio Ribeiro era professor
e Francisco Barbosa Maciel que afirmava ter experiência na Real
Universidade de Berlim era médico. Atuava em Ponta Grossa realizando
consultas nas farmácias Minerva, e atendia em outros horários na sua
residência.
Epaminondas Holzmann, filho de Jacob Holzmann, fundador do
Diário dos Campos, aponta ironicamente no livro “Cinco histórias
Convergentes”, a liberalidade de Hugo dos Reis, pois segundo o autor, Reis
“tolerava todos os poetas de água doce que apareciam na redação,
dando-se mesmo ao afanoso trabalho de refazer os escritos de certos
colaboradores” (HOLZMANN, 2004, p. 30).
A atitude amistosa do redator em relação aos colaboradores se 19

demonstrava como na atitude tolerante no caso dos artigos sobre a


germanização do sul do Brasil de F. Barbosa Maciel, em que Hugo dos Reis
se limita a publicar logo embaixo da ultima parte do artigo uma nota em
que afirma em nome do jornal que “não precisamos declarar que sob
muitos pontos de vista (...) nossa redação se acha em completo
antagonismo com este artigo de fundo” (DIÁRIO DOS CAMPOS, 27 dez.
1915, p. 1).
Hugo dos Reis, enquanto esteve à frente da publicação, permitiu a
existência de uma diversidade de discursos em relação às questões sociais
e raciais brasileiras, inclusive permitindo a publicação de pensamentos
opostos às suas convicções, como nos casos em que colaboradores do
jornal publicam artigos defendendo práticas de eugenia restritiva como a
restrição racial e matrimonial. Foi graças à sua liberalidade que é possível
a presença de uma diversidade de discursos e representações sobre a
sociedade ponta-grossense naquele período, tornando os anos de 1908
até 1921, um período rico em produções e diversidade de representações
sobre a sociedade no jornalismo ponta-grossense.

Considerações Finais
Os discursos produzido por Hugo dos Reis, são representações da
realidade, ressignificadas a partir da visão do jornalista. Nesse aspecto,
concordamos com Chartier, quando este defende que os significados das
representações são socialmente construídos e aponta para a necessidade
de se “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma 20

determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”


(CHARTIER, 1990, p. 16).
No momento em que o jornalista se estabelece em Ponta Grossa, a
sociedade local passava por ser um período de constantes mudanças, com
a abolição da escravidão, a chegada dos imigrantes, o aumento
populacional e urbanização, diversificação da economia, surgimento de
novas profissões, ascensão de novos discursos científicos e sociais, entre
outros. E nessa cidade em burburinho com as novas descobertas, que
Hugo dos Reis vem morar, sendo também ele um indivíduo representante
das novas classes, por ser um membro da recém surgida imprensa ponta-
grossense.
Ao mesmo tempo, compreende-se que as representações que Hugo
dos Reis constrói no Diário dos Campos possuem uma íntima relação com
os interesses do grupo social ao qual ele faz parte. Os discursos do
jornalista buscam apoiar o surgimento da classe jornalista no meio local, e
as representações que produz, atendem aos interesses dessa classe. Sobre
a importância dos interesses do grupo na construção das representações,
Chartier, afirma que “As representações do mundo social assim
construídas, embora aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado
na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as
forjam”(CHARTIER, 1990, p. 17).
O estudo é concluído no momento em que Hugo dos Reis deixa a
publicação, em 31 de agosto de 1921. A partir desse momento, o jornal
passa para as mãos de outros responsáveis, primeiramente o advogado 21

Dr. Toscano de Brito e depois José Cadilhe. Após essa data, Hugo dos Reis
continua por alguns anos como uma figura eminente da sociedade ponta-
grossense. Contudo, na metade da década de 1920, ele se muda para o
interior de São Paulo. A maioria dos outros colaboradores ainda é citada e
alguns publicam alguns artigos pelo periódico, como Flávio C. Guimarães,
que continuou atuando na cidade como advogado. Todavia, a sua
presença é mais esparsa. Enquanto isso, outros pensadores mais
polêmicos como F. Barbosa Maciel e Martins Pinto, desaparecem das
páginas do jornal.
No momento pós-Hugo dos Reis, o jornal perde parte da
combatividade dos discursos. Não encontram-se mais os debates
acirrados que envolveram dezenas de edições e que apresentaram uma
diversidade de representações como aquele envolvendo o médico F.
Barbosa Maciel e colaboradores do jornal, como Flavio C. Guimarães e
Junqueira e Guerra entre os anos de 1915 e 1916. O jornal se torna mais
de pensamento unilateral, e menos aberto às discussões que tanto
caracterizaram a publicação enquanto esteve sob a égide do jornalista
Hugo dos Reis.

REFERÊNCIAS
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paranaense. Revista Eletrônica História em Reflexão: Vol. 6 n. 11.
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O ESPORTE NA SOCIEDADE:
MUTUALISMO SOCIAL, CULTURAL E ECONÔMICO
1
Naton Joly Botogoske
2
Isaias Holowate
4

Resumo:
Neste artigo, analisamos a estruturação entre o esporte e a sociedade, buscando
compreender através de uma reflexão histórico-sociológico as relações e os
deslocamentos entre o esporte e a sua disciplinarização na sociedade atual. Partindo
do pressuposto que as práticas esportivas possuem uma intrínseca relação com os
valores da sociedade em que são produzidas, compreendemos que tais atividades,
sejam individuais, ou coletivas, caracterizam-se por uma relação, que produz e
reproduz essas práticas culturais, sejam a partir do jogo lúdico ou do esporte
profissionalizado. Na pesquisa, apontamos que na sociedade pós moderna, o esporte
profissional se tornou cada vez mais, uma ferramenta mercantilizada que promove o
estímulo de determinados valores e atua uma ferramenta panóptica de controle do
indivíduo, “prendendo-o” na sua posição social.
Palavras-chave: Corpo; Esporte; Mercantilização; Sociedade.

Abstract:
The objective of this paper is to analyze the organization between sports and society,
seeking comprehension about the relationship of sports with its disciplinarization on
the contemporary society. Following the assumption that sports practices have an
intrinsic relationship with the values of the society where they are created, we
understand that such activities, being them individual or collective, are characterized
by the reproduction of the cultural values of the society where they are inserted. With
this research we appoint that professional sports became commodified, and a tool for
control of individuals, keeping them on their respective social positions.
Keywords: Body; Commodification; Society; Sport.

1
Acadêmico do 3º ano do Curso de Bacharelado em Educação Física na Universidade estadual de Ponta
Grossa (UEPG). Email: natonjoly@gmail.com.
2
Graduado em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Email:
isaiasholowate@gmail.com.
Introdução

O presente estudo busca promover uma reflexão sobre as


tranformações compartilhadas e interdependentes entre esporte e
sociedade, valendo-se de uma interpretação do esporte como ferramenta
5
lúdica para provocar maior abrangência do termo “esporte”, visando uma
análise deste como manifestação individual, tanto quanto coletiva.
Partimos do pressuposto que na análise sociológica da cultura e do
Esporte, o estudo das relações interdependentes dos indivíduos e as
práticas esportivas são fundamentais para a compreensão do pensamento
social e das relações mutualistas e e disciplinativas presentes na sociedade
do século XXI.
Por considerarmos o esporte como uma atividade sócio-histórico e
cultural, entendemos que essa atividade também pode e deve ser
pensada sociologicamente, pois se relaciona com aspectos da vida social
humana. Nesse aspecto, pensamos o esporte como uma prática cultural.
Compreendemos a cultura não como uma relação direta e objetiva entre o
símbolo e a realidade, como um reflexo pálido no espelho, mas sim, a os
símbolos produzidos como uma ressignificação da realidade pelo
indivíduo, a partir das experiências dele no social. Ao mesmo tempo,
sendo o esporte também uma prática histórica, compreendemos que as
práticas esportivas apresentam uma historicidade nas relações
intermediadas pelo esporte, alterando-se no decorrer do tempo, pois:

As estruturas do mundo social [...] são historicamente


produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais,
discursivas) que constrõem as suas figuras. São estas
demarcações, e os esquemas que as modelam, que
constituem o objecto de uma história cultural levada a
repensar completamente a relacão tradicionalmente
postulada entre o social, identificado com um real
bem real, existindo por si próprio, e as
representacões, supostas como reflectindo-o ou dele 6
se desviando (CHARTIER, 1990, p. 27).

Devido ao número de interpretações que os termos ‘esporte’ e


‘sociedade’ podem carregar optamos pela junção de argumentos de
autores que seguem uma linha abrangente de ideias em relação aos temas
propostos. O enfoque da pesquisa foi ligar a mercantilização do esporte ao
contexto social do século XX, em conjunção com a entrada do século XXI, e
os efeitos do retorno da “cultura corporal”.
Ainda que seja uma vertente crescente, os estudos sobre a
Educação Física com viés sociocultural são comparativamente escassos,
sendo que os estudos históricos sobre a profissão costumam registrar
eventos. Justificamos esse trabalho com a necessidade de fomentar a
discussão e a interpretação sobre os rumos da História da Educação Física,
em conjunção com a História da humanidade.

Delimitação ampla do esporte: Ludicidade


Para contextualizar o esporte dentro da ideia de cultura, a primeira
questão a ser abordada é a ambiguidade do termo “esporte” ao ser
referenciado por diferentes autores. Segundo Silvino Santin, a vertente
ideológica mais comum em relação à terminologia “esporte” é focada na
orientação técnica e científica, ainda que o caráter lúdico do esporte seja
aceito de forma unânime pelos autores. Tal orientação centrada na
técnica nos leva a inclinar as discussões sobre esporte para o lado
profissional, que obviamente é extremamente impactante na cultura
brasileira, vide o futebol. Porém, a visão tecnicista acaba por limitar e 7

reduzir o número de discussões sobre o caráter lúdico do esporte, ainda


que o termo “ludicidade” seja amplamente utilizado.
Silvino Santin nos apresenta a ideia de unificar conceitos para
facilitar tal discussão sociológica:

Deve-se entender como esporte apenas as atividades


lúdicas praticadas sob a orientação da ciência e da
técnica? Este parece ser o conceito mais aceito entre
os profissionais do esporte. Com isto se privilegia o
princípio de competição e do rendimento. Ficariam
assim os jogos livres, como peladas de futebol e,
também, todas as manifestações lúdicas conhecidas
como brincadeiras. Apesar do costume vigente de
tratar o esporte, o jogo e o brinquedo como três
categorias distintas de atividades, não restam dúvidas
de que podemos unificá-las sob o manto da criação
cultural, embora reflitam valores culturais
diversificados” (SANTIN, 1996, p. 21).

Somos convidados a refletir sobre o esporte, lado a lado com a


reflexão sobre a ludicidade, aqui não usada apenas como termo distante
apontando as origens do esporte como diversão, mas como ferramenta de
unicidade entre o passado e o presente do esporte.
Santin (1996) nos guia neste estudo utilizando o termo “esporte”
enquanto que estendido a todas as manifestações praticadas com o
espírito lúdico.
Lembrando que o esporte é, primeiramente, uma criação cultural, e
que o brinquedo também o é. O que diferencia as formas lúdicas do 8

esporte moderno é a capacidade do esporte moderno de carregar seus


próprios significados, com suas práticas universalizadas, enquanto que o
lúdico carece dessa universalidade, nascendo e morrendo em si, se
espalhando apenas através da tradição. Essa diferença pode ser explicada
através da espetacularização do esporte, mas esse não é o foco no
momento.
Santin nos apresenta duas formas para identificar o esporte de
forma cultural, classificando-as como Criação Interna e Origem Externa.
Vamos, então, a elas.
A Criação Interna, nas palavras do autor:

Num primeiro momento, o esporte garante sua


identidade pela vinculação enquanto criação e
representação de uma determinada ordem cultural.
Toda sociedade, como já foi dito, sustenta-se sobre
uma construção simbólica, base de um sistema de
significações, que dá força e inspiração a toda
iniciativa de criação e de invenção. Nenhuma prática
social escapa ao controle ideológico do sistema de
significações da ordem cultural” (SANTIN, 1996, p. 21).

Santin (1996, p. 21) delimita regras para a criação e a invenção das


práticas sociais, o que limita o esporte às mesmas regras. Segundo ele,
“Um esporte é reconhecidamente pertencente a uma ordem cultural
quando reproduz, no ato de sua instauração, os valores da cultura que lhe
emprestou as condições de sua gênese”.

A Mercantilização do esporte e suas consequências culturais 9

Permanecendo no impulso de integralizar ideias aparentemente


opostas, com o devido cuidado para não simplificar demais e limitar as
consequências das ideologias envolvidas, prosseguiremos na discussão
utilizando das ideias de Valter Bracht.
Bracht (2002, p. 192) aponta duas posturas antagônicas na história
e na sociologia do esporte: o esporte “como mero reflexo das estruturas
mais amplas que caracterizam a sociedade moderna” e o esporte “como
mundo próprio”, transcendendo a organização social, sendo uma
constante antropológica.
Bracht acredita que essas posturas são complementares, e não
antagônicas, ambas necessárias na compreensão geral do fenômeno
“esporte”.
O autor cita características comuns à sociedade moderna e ao
esporte moderno (BRACHT, 2002, p. 194): secularização, igualdade de
oportunidades (meritocracia), especialização de papéis, organização
burocrática e quantificação. Tais características apresentam uma relação
próxima com os ideais defendidos pelo regime capitalista, como
rendimento e competição, mas que, por vezes, surgem antecipadas à
expansão capitalista.
Bracht (2002, p. 195) aponta a relação do esporte com a legitimação
de valores da sociedade na qual o esporte está inserido. Disciplina,
rendimento, trabalho duro, competição, meritocracia. O esporte é tão
profundamente enraizado em sua própria cultura que a reproduz em si,
gerando um ciclo vicioso em que o esporte se alimenta dos valores da 10

sociedade e realimenta a sociedade com os mesmos valores, situação que


é ampliada com a globalização do esporte.
Porém, todo esse enfoque nos mostra uma característica do esporte
como instrumento “pedagógico” dos burgueses, rendendo as classes
sociais menos favorecidas financeiramente às vontades da elite. Enquanto
que isso não deixa de ser um fato, o oposto também ocorre. O esporte
como manifestação da resistência cultural.
Voltando à mercantilização do esporte temos que a teoria social
marxista tem como prognóstico a extensão da lógica de mercadoria para
todos os espaços e relações sociais. Não nos limitaremos a essa visão ao
afirmar que a mercantilização do esporte não se limita à sua
espetacularização como entretenimento das massas. O esporte é vendido
de diversas outras formas. Nas academias de lutas onde pegamos para
aprender, nas luvas de boxe que compramos, nas escolinhas de futebol e
nas chuteiras. Carregando a espetacularização, nas canecas com símbolos
dos times, nas bandeiras dos times, etc.
Outro fator importante na transformação do esporte em produto
comercial é a inversão dos valores negativos relativos ao corpo,
apresentados na Idade Média. O corpo, deixando de ser pecaminoso e
negativo, salta para o outro lado da situação: passa a ser exaltado, como
na Grécia Antiga. A beleza do corpo passa a ser parte importante do
comércio esportivo, sendo a beleza como um reflexo da saúde e da
disciplina no esporte (a torcida reclama de um jogador “fora de forma”).
Essa nova visão referente à forma física abre espaço para as academias de
musculação, dentre outras formas de comércio da atividade física. 11

Bracht aponta que os Jogos Olímpicos são a raiz do patriotismo


ligado ao esporte, o que também populariza a prática esportiva, mas ao
contrário do que a globalização esportiva nos leva a pensar, acabou
atrasando o processo mercantilizador do esporte, no sentido em que sua
vinculação com a Guerra Fria, o patriotismo esportivo, tinha um viés de
“honra”, orgulho, o que carregou o esporte como algo voluntário e sem
fins lucrativos por mais algum tempo.
O neoliberalismo que segue a queda do estado de bem estar social
(welfare state). Nas palavras de Bracht (2002, p. 198), ele diferencia o
esporte que deixa de ser “o direito do cidadão, para a ideia do esporte
como direito do consumidor.” Ainda que com exceções, as repercussões
da crise do welfare statee a solução neoliberal levam à privatização dos
espaços públicos, acabando em grande parte com o esporte “higienista” e
gerando as escolinhas, as academias, etc. Ainda que o esporte seja visto
como saúde, deixa de ser responsabilidade do Estado.
Sobre a luta de classes, Bracht afirma:

Muitas mudanças que ocorrem no mundo do trabalho


têm consequências mediatas e imediatas no esporte.
De cunho mais geral podemos citar, com o
recrudescimento do já citado welfare state, com o
desemprego crônico e com a passagem do esporte-
cidadão para o esporte consumidor, o agravamento da
sociedade dual: num lado os incluídos e no outro os
excluídos, estes últimos relegados a uma massa de
consumidores do espetáculo esportivo (BRACHT,
2002, p. 199).
12
Os resultados dessa divisão estão fortemente presentes na “nova
sociedade”, e falando de forma simplificada, são fonte da
espetacularização do esporte. Deixando de participar, as pessoas passam a
consumir o espetáculo onde outros participam. Tal situação gera o
mercado para o esporte como espetáculo, e a nova “cultura hedonista”, a
“liberdade do capitalismo” gera novas regras, ou melhor, retira antigas
regras, o que leva ao individualismo, a busca pelo lazer e a satisfação
pessoal. Retornando ao exemplo dos corpos, o esporte passa a fazer parte
da busca pela glória, profissional ou não, e pela beleza física, refletindo
anseios individuais da população, agora separada e “livre”, trazendo lucro
para as escolinhas esportivas e as academias.

O esporte na sociedade: lazer, nova obrigação


Já afirmamos que as manifestações esportivas carregam símbolos
que refletem a sociedade na qual estão inseridas, incluindo a visão sobre o
corpo. No século XX, o corpo é “redescoberto”. Gilda Korff Dieguez (1985,
p. 98) nos convida a observar como a atenção higienista da educação física
no século XIX começa um processo de resgate do corpo como redenção,
sobrepondo-se à alma da Idade Média. A luta pela saúde é uma batalha
contra a mortalidade, da qual todos participamos. O corpo deixa de ser “a
prisão da alma” e passa a ser sacralizado.
Tal fenômeno abrange múltiplas ideologias. O corpo é moldado pela 13

equipe, pelos treinadores e técnicos, em uma visão coletiva, e pela


disciplina do atleta, em uma visão individualista.
Segundo a autora:

Assim, expoente de prestígio no mundo ocidental em


que vivemos, o corpo é objeto de um trabalho bem
elaborado, escamoteado sob a bandeira da liberdade
e da rentabilidade hedonista do seu administrador.
Capital de propriedade privada, há que se trabalhar
bem o “patrimônio” para ele dar dividendos: status,
dinheiro, prestígio, prazer (DIEGUEZ, 1985, p. 99).

As palavras de Gilda apontam o corpo como parte da


mercantilização do esporte. O corpo como mercadoria. Retornando ao
tema da “pedagogia esportiva como instrumento da elite”, o esporte
“educa” as pessoas para almejarem honra, obediência, disciplina, trabalho
duro, etc. Os atletas que chegam ao topo são os novos heróis, construindo
novas lendas, como as antigas epopéias gregas.
A autora aponta que a manutenção da forma acaba sendo uma
manutenção da “fôrma”, ou da “fórmula”, realizando a manutenção do
sistema. O esporte acaba sendo um prolongamento dos brinquedos da
infância, alimentando o desejo de permanecer jovem, na luta contra a
mortalidade.
O “tempo livre” gera novas formas de se praticar as atividades
esportivas, em contraste com a maior carga horária de trabalho da era
industrial, no século XIX. Nas palavras de Lamartine Pereira da Costa:
(1994, p. 153): “O declínio (...) aconteceu com a chegada da era industrial
que elevou a carga de trabalho em horas ocupadas. No século XIX, o 14

esporte ressurge desvinculado das manifestações culturais espontâneas”.


Assim o autor se refere às manifestações esportivas no século XIX,
relacionadas à falta de tempo livre, em contraste com os direitos
trabalhistas do século XX que dão liberdade para o lazer, ainda que
mesmo esse lazer seja ligado a interesses econômicos.
O lazer que nos liberta torna-se um instrumento de dominação no
sentido em que o tempo para o lazer é concedido, nos dando a liberdade
para fazermos o que quisermos, mas serve como ferramenta para que
retornemos com maior capacidade de produzir no trabalho.
Porém, por mais que isso soe como uma relação entre dominante e
dominado, o poder se estabelece de forma interdepentente. O poder está
presente nas relações, e não no indivíduo. O astro acredita precisar de sua
torcida, e a torcida precisa ter um astro por quem torcer. Isso acontece
sem que o torcedor saiba do poder que possui. Nessa relação de
necessidade construída a partir de símbolos compartilhados, o controle
panóptico coordena as atividades, atravéz de uma disciplina que ao
mesmo tempo aproxima e distancia os indivíduos e:

[...] prescreve a cada um seu lugar, a cada um seu


corpo, a cada um sua doença e sua morte, a cada um
seu bem, por meio de um poder onipresente e
onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira
regular e ininterrupta até a determinação final do
indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence,
do que lhe acontece (FOUCAULT, 2011, p. 188).

15
Podemos, portanto, sem nos prender a “lado” algum, observar, de
forma crítica, o peso e a importância do esporte e do lazer, como nossa
prisão e nossa libertação. Observamos que o esporte e o lazer
substituíram outras “prisões”, que poderiam ser muito piores que a atual,
funcionando tambem como espaço de controle social a partir do
símbolico, ao qual nota-se que a multiplicação das ferramentas
disciplinares é correlata à sua desinstitucionalização, “*...+ as disciplinas
maciças e compactas se decompõem em processos flexíveis de controle,
que se pode transferir e adaptar” (FOUCAULT, 2011, p. 199).
O controle do indivíduo a partir do estímulo à busca por um ideal de
felicidade em nossos momentos “livres”, é, para a sociedade pós
moderna, mais sedutor e aparentemente melhor do que não ter momento
“livre” algum, mesmo que tal liberdade seja cercada por aspas.
Considerações Finais
O esporte está profundamente enraizado nos processos culturais
que constituem a sociedade, sendo transformador dela e transformado
por ela em uma relação mútua.
A “cultura corporal” é participante das transformações sociais ao
moldar os indivíduos de acordo com valores inseridos no esporte, valores
nascidos da sociedade que gerou tal esporte. Tais transformações são
correlatas à modificações ocorridas na cultura pós moderna, que
produziram uma hibridização da identidade cultural e o deslocamento das
relações entre os indivíduo na coletividade (HALL, 2004).
Sendo assim, na atualidade, o lazer e as grandes realizações no
esporte refletem as necessidades individuais de grandeza, e as 16

necessidades coletivas de “fazer parte de algo”, simbolizando ideais como


patriotismo e heroísmo. Enquanto afirmamos que o esporte liberta e
escraviza ao mesmo tempo, podemos apontar que tal libertação é de nós
mesmos, e a nova prisão também é criada por nós, em conjunção com os
“desejos” da sociedade, que se manifesta como organismo e nós, como
organelas, alimentados e alimentadores da própria.

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ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA: AS MEMÓRIAS HISTÓRICAS
DE ANTÔNIO VIEIRA DOS SANTOS (1850/51)

João Elter Borges Miranda1


Rodrigo de Mello Ackler2
1
Resumo
Antônio Vieira dos Santos nasceu na cidade portuguesa do Porto, em 1784, e faleceu
na vila de Morretes, na Província do Paraná, em 1854. Em suas memórias históricas,
ele discorre sobre a flora, a fauna, demonstra interesse sobre as diversas culturas dos
povos que viviam na região litorânea da província, sobre a vida dos povos indígenas, a
dos europeus que ali se instalaram, entre outros temas. A obra apresenta assim
diversos dados e informações, tornando-se um documento importante para a história
do Paraná. Partindo do pressuposto – definido por Hartog – de que diferentes regimes
de historicidade perpassam uma mesma obra, analisaremos as memórias de Vieira dos
Santos presentes no Memória histórica, chronologica, topográfica e descritiva da
cidade de Paranaguá e seu município (1850/51). À luz da discussão de Certeau sobre a
operação historiográfica, objetivamos compreender o conceito de história que
orientou a sua escrita da história. Queremos vislumbrar o que Vieira dos Santos
compreendia por história; qual era o seu lugar social; qual era o seu objeto de estudo e
o período tratado; para quem se dirigia a sua obra e quais eram os seus objetivos ao
escrever esse livro.

Palavras-chave
Antônio Vieira dos Santos; Historiografia; Paraná.

1
Graduando de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
2
Graduando de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Resumen
2
Antônio Vieira dos Santos nació en la ciudad portuguesa de Oporto en 1784, y murió
en la ciudad de Morretes, en la provincia de Paraná en 1854. En sus memorias
históricas, habla de la flora, la fauna, muestra interés en los diferentes culturas de los
pueblos que viven en la región costera de la provincia, en la vida de los pueblos
indígenas, los europeos que se asentaron allí, entre otros temas. Así pues, el trabajo
proporciona diversos datos e información, por lo que es un documento importante
para la historia de Paraná. Asumiendo - definido por Hartog - que los diferentes
regímenes de historicidad se ejecutan a través de la misma obra, vamos a analizar las
memorias Vieira dos Santos presentes en la memoria histórica, chronologica,
topográficas y descriptivos de la ciudad de Paranaguá y su comarca (1850-1851). A la
luz de la discusión Certeau sobre la operación historiográfica, nuestro objetivo es
entender el concepto de la historia que guió a su escritura de la historia. Queremos
imaginar lo Vieira dos Santos entiende por la historia; lo que era su posición social;
¿cuál era su objeto de estudio y el período tratado; a quien se dirigía a su trabajo y
cuáles eran sus objetivos al escribir este libro.

Palabras clave
Antonio Vieira dos Santos; la historiografía; Paraná.

Introdução
Antônio Vieira dos Santos nasceu na cidade portuguesa do Porto,
em 1784. Aos treze anos de idade, em 1797, junto ao irmão mais velho
embarcou rumo a nuova terra, a América portuguesa, desembarcando no
Rio de Janeiro, onde após uma breve residência, transferiu-se para a vila
de Paranaguá, no ano seguinte. Nessa cidade se ocupou de atividades 3

comerciais, através das quais chegou a viajar até a Bahia. Desempenhou


também cargos de alferes, almotacé, tesoureiro de irmandade e vereador.
Casou-se com Maria Ferreira de Oliveira, filha de um comerciante
português e em 1813 radicou-se na então freguesia de Morretes, onde se
voltou ao beneficiamento da produção e comercialização da erva-mate e
aos oitenta anos faleceu, em 1854.3
Ao que consta, o lugar socioeconômico de Vieira dos Santos não
teve os áureos das elites regionais. Contudo, as dificuldades econômicas
não o fizeram deixar de se identificar e buscar aproximação com as redes
familiares elitizadas. Ele mantinha contato com elas e se beneficiava de
sua influência para conquistar aquilo que necessitava. Notadamente
literatos e eruditos como Vieira dos Santos vivendo entre uma pequena
população litorânea (cerca de 20 mil habitantes em 1853)
predominantemente iletrada, detinham influência e eram respeitados.
Essa abertura de portas através do conhecimento das letras foi
fundamental para o memorialista português, pois por meio de tal contato
que ele teve acesso a, por exemplo, os arquivos que guardavam as fontes
que fundamentaram a sua escrita da história, como tratarei mais adiante.

3
Fonte de tais dados biográficos de Vieira dos Santos: GOMES, Sandro Aramis Richter. Estratégias de
integração social: a trajetória de Antonio Vieira dos Santos na vila de Morretes (1814-1851). Anais [do] V
Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre, UFRS, 2011, p. 1.
Ele foi um autodidata, um homem de muitas leituras: de Lisboa, do
Rio de Janeiro e de outras partes do Império chegavam-lhe jornais e livros.
Além de deixar registros autobiográficos, Vieira dos Santos é autor, entre
outros títulos, de Memória histórica, chronologica e descritiva da Villa de
Morretes e do Porto Real, vulgarmente Porto de Cima 4; Memória Histórica 4

de Antonina, esta desaparecida; e Memória histórica, chronologica,


topographica e descritiva da cidade de Paranaguá e seu município
(1850/51)5, obra que analisaremos no presente artigo.
Obviamente que sem o intuito de encerrar a discussão, objetivamos
compreender o conceito de história que orientou a escrita das memórias
históricas de Vieira dos Santos. À luz das discussões sobre a operação
historiográfica perpetradas por Certeau e a partir do conceito de regimes
de historicidade fundamentado por Hartog, nós queremos vislumbrar o
que ele compreendia por história; qual era o seu lugar social; qual era o
seu objeto de estudo e o período tratado; para quem se dirigia a sua obra;
e quais eram os seus objetivos ao escrever esse livro.
Concordando com Hartog, partimos do pressuposto de que
diferentes regimes de historicidade podem estar imbricados na obra de
um mesmo historiador6. Ao analisarmos a obra, procuramos não nos
atentarmos muito as idiossincrasias da escrita do autor para vislumbrar as
diferentes estruturas que sustentam a sua construção discursiva e que se
for dado o mesmo nível de importância, podem desnortear o

4
VIEIRA DOS SANTOS, Antonio. Memória histórica, chronologica e descritiva da Villa de Morretes e do
Porto Real, vulgarmente Porto de Cima. Curitiba: Museu Paranaense, 1950, 2 v.
5
O primeiro tomo teve três edições, em 1907, 1923 e 1951; o segundo tomo foi editado em 1952.
6
HARTOG, François. Tempo, história e escrita da história: a ordem do tempo. Revista de História, São
Paulo, USP, n. 148, 2003, p. 12.
entendimento do todo. Isso não significa negar as características
peculiares, e sim refletir sobre uma obra tendo em vista a pluralidade dos
procedimentos que a construiu. Segundo Certeau:

sublinhar a singularidade de cada análise é questionar 5


a possiblidade de uma sistematização totalizante, e
considerar como essencial ao problema a necessidade
de uma discussão proporcionada a uma pluralidade de
procedimentos científicos, de funções sociais e de
convicções fundamentais.7

Ao entender que em uma obra diferentes estruturas sustentam a


sua narrativa, a resposta para qual é o conceito de história que orienta as
memórias históricas de Vieira dos Santos não será simples. Como Benatte
afirmou, ele não pode ser encaixado em uma “noção homogeneizante
como a de “concepção oitocentista da história” ou noções similares que
impossibilitam a percepção das permanências e misturas de diferentes
‘regimes de historicidade’”8.

A escrita da história de Viera dos Santos em Memória histórica,


chronologica, topographica e descritiva da cidade de Paranaguá e seu
município (1850/51)

7
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1982.
8
BENATTE, Antonio Paulo. A escrita da história em Antônio Vieira dos Santos (1850/51). Anais [do] XIII
Encontro Estadual de História da ANPUH. Londrina, UEL, 2013, p. 801.
Desde o fim do século XVIII a monarquia portuguesa impelia as
câmaras de todo o império para que escrevessem um livro no qual são
narradas memórias históricas a respeito da região onde se localizam.
Como Vieira dos Santos relata, esse induzimento veio de uma profissão de
D. Maria I, rainha de Portugal, expedida pelo Conselho Ultramarino em 6

1782, ordenando que todas as câmaras do Brasil:

[...] criassem um livro, onde fizessem escrever todos


os acontecimentos mais notáveis e dignos de
memória, desde o descobrimento das capitanias até o
presente; e os que fossem sucedendo de ora em
diante se escreverão anualmente, em virtude dela;
essa Camara deu execução mandando que; o segundo
Vereador Felis Bento Vianna as escrevesse, em hum
livro, o que fez em 2 de Dezembro de 1785, o qual
tinha por titulo – “Anno de 1785. Livro para se
Registarem as memorias annuaes dos novos
estabelecimentos, Factos e cazos mais memoráveis
dignos d’historia”.9

Em suas memórias Vieira dos Santos se mostra insatisfeito com a


obra de seu antecessor – o vereador Felis Bento – porque os
acontecimentos narrados por ele não são “[...] exatos por falta das
indagações literárias do Arquivo que aquele vereador o não fez” 10. Ao
mesmo tempo em que despende críticas à Felis Bento, Vieira dos Santos
se faz de humilde em relação a sua própria obra, lamenta as memórias
não terem sido redigidas por alguém mais bem qualificado do que ele

9
VIEIRA DOS SANTOS, Antonio. Memória histórica, chronologica, topographica e descritiva da cidade de
Paranaguá e seu município. Curitiba: Museu Paranaense, 1951, v. 1, p. 4.
10
Idem, p. 4.
mesmo. Esse penar de Vieira dos Santos paradoxalmente é também uma
espécie de autoelogio velado, pois o autor aparenta querer deixar
subentendido que apesar das inúmeras dificuldades que enfrentou ele
conseguiu redigir as suas memórias, recorrendo as fontes e ordenando-as
e analisando-as teórico-metodologicamente. 7

Diferente do vereador Felis Bento, Vieira dos Santos estabelece um


constante diálogo com as fontes, é exigente consigo mesmo neste
aspecto. Ele recorre aos arquivos e seleciona uma extensa documentação,
tanto escrita quanto oficial, a qual munirá a sua escrita. Para ter acesso
aos documentos ele contou com a ajuda de políticos e literatos locais, os
quais ele nomeou e agradeceu no livro, no trecho intitulado
“Advertência”. Os principais documentos foram fornecidos pelos arquivos
da governança municipal:

[Para] Fazer um resumo histórico de tais sucessos,


recorri ao Arquivo dessa Câmara, e com imenso
trabalho os revisei, tanto antigos como modernos; os
dos Tombos dos Povimentos, Vereanças, Registros e
Posses, e dos quais pude extrair originalmente estes
sucessos, coordenando-os em methodo chronologico,
para se conhecer com facilidade, os anos em que
acontecerão.11

À primeira vista, a escrita da história de Antônio Vieira Dos Santos


pouco se diferencia da narrativa tradicional. Westphalen, inclusive, não o
considera um historiador propriamente dito, mas um memorialista ou

11
VIEIRA DOS SANTOS, Memória Histórica da Cidade de Paranaguá..., op. cit., p. 4.
cronista12. A obra do comerciante português é uma história factual,
detalhista, recheada de nomes de personagens, “homens bons”, que
ocuparam as cadeiras da administração da província e do restante do
Império em suas diferentes estâncias. É uma narrativa repleta de datas,
ordenadas de forma linear à luz do método cronológico, baseada no 8

discurso do colonizador – e que na grande maioria das vezes têm o olhar


direcionado aos acontecimentos políticos e econômicos.
Suplantado então por suas fontes secundárias e principalmente
primárias, Vieira dos Santos vai ano após anos relatando as principais
vereanças. A tudo é deixado em anexo cópias dos documentos originais
para dar maior legitimidade e caráter de comprovação aos fatos narrados.
Trata-se, em suma, de uma História apregada aos feitos do Estado, mas é
extremamente importante observar que esse memorialista não se
restringiu a uma história acontecimental dos aspectos políticos e
econômicos do seu lugar social. Como o título já pressupõe, em seu livro
Vieira dos Santos discorre sobre uma grande variedade temática:

Memoria Historica, Chronologica, Topographica e


Descriptiva da Çidade de Paranaguá e seu Municipio,
descrevendo-se suas antiguidades, entrelaçadas com
os Factos mais memoraveis, acontecidos na Capitania
de S.m Viçente; A descripção topographica do
Municipio, a Fytologia de suas ricas mattas e a Flora
Brasileira; a Zoologia dos animaes terrestres,
aquaticos e volateis que povoão os tres reinos da
natureza, a hydrographia de suas fermosas Bahias,
Lagos e Rios; a mineralogia das suas minas de oiro e
12
WESTPHALEN, Cecília Maria. Historiografia paranaense. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, n. 343, Rio de Janeiro, 1984, p. 105-127.
de outras producções, a Agricultura, cultura e a
população Indigena antiga, e a moderna civilizada e
dos homens mais destintos, que occuparão os cargos
da governança, os que se tem destinguido nas
sciencias e Artes e os que tem sido condecorados com
as Ordens do Imperio, e as famílias mais illustres, e
todos os Actos e Deliberaçõens que a Camara praticou 9
desde o anno de 1654 e apontamentos que forão
extrahidos dos livros originaes do Archivo da mesma. 13

Como se poder ver ele acrescenta às deliberações estatais


descrições topográficas, zoológicas, fitológicas, geográficas, climáticas.
Discorre sobre características da cultura indígenas, fala sobre a “Nação
Carijó”, dá atenção aos costumes e superstições populares. A sua escrita
tem uma relação com a oralidade “selvagem”, “primitiva”, “tradicional”,
ou “popular” que é compreendido a partir do querer conquistador, a
partir do discurso colonizador, que é fundamentado na lógica da
anexação, da incorporação, da integração, no qual todos os recursos
valem pelo retorno que podem gerar e pelo potencial de exploração.
O registro de Vieira dos Santos sobre as características das tradições
popular e indígena, ainda que seja com as lentes do colonizador,
descrevendo como selvagens os povos originais que já viviam na América
portuguesa antes da chegada dos europeus – ainda que seja permeado
pela cosmovisão e epistemologia do conquistador, a escrita da história de
Vieira dos Santos transcende uma narrativa puramente acontecimental
para uma proto-história cultural, porque ela traz uma enorme variedade
temática envolvida em diversos aspectos, entre os quais abrange a cultura

13
VIEIRA DOS SANTOS, Memória Histórica da Cidade de Paranaguá..., op. cit., p. 1.
e representações culturais de povos. Nas minhas poucas luzes, acredito
que a escrita da história de Vieira dos Santos detém características
correspondentes a fase da história cultural defina por Burke como
“clássica”. Segundo ele, “o período entre 1800 e 1950 foi uma etapa que
poderia se chamar de história cultural ‘clássica’”. 14 10

Quanto a filosofia da história, Benatte demonstra que a narrativa de


Vieira dos Santos “combina-se com uma de muita longa duração: a
historia magistra vitae, o legado ciceroniano da história como mestra da
vida”15. A epígrafe de abertura do livro “Memória histórica da cidade de
Paranaguá...” aqui estudado traz inclusive a famosa citação do filósofo
romano, frisando assim qual é a filosofia da história do memorialista
português: “Historia testis temporum, lux vertatis, vita memoriae,
magistral vitae, nuntia vestutali” 16. E ele ainda reafirma no decorrer do
livro que “como Cicero tomei a inclinação que ele tinha na extenção de
contar a historia”17.
Vieira dos Santos concebe, portanto, a história como mestra da
vida, e tendo em vista esse conceito discorre sobre os chamados “grandes
feitos” da história-pátria e sobre alguns aspectos culturais, no intuito de
contribuir para que os indivíduos do presente possam ter exemplos que
possibilitarão a orientação na vida prática de modo a projetar o país ao
patamar de grande nação. É, como se vê, a pedagogia do cidadão

14
BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução: Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed, 2005, p. 16.
15
BENATTE, op. cit., p. 804.
16
“A história é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mestra da vida, a
anunciadora da antiguidade”. CÍCERO, Do Orador, II, 36.
17
VIEIRA DOS SANTOS, Memória Histórica da Cidade de Paranaguá..., op. cit., p. 7.
sustentada pela noção da historia magistra vitae, que norteia a escrita de
“feitos tão heroicos, e gloriosos que, a memoria dos tempos e dos
homens, nos Annaes da historia, as deverião perpetuamente conservar a
fim de que taes exemplos, desse hum gaz patriótico aos presentes, e os
vindouros os imitassem no futuro”.18 Escreve Vieira dos Santos: 11

A joia mais preciosa que a Camara Muniçipal pode ter,


hé aquela que, em seus cofres hé a depozitaria, não
de brilhantes, oiro, ou prata, efêmeras riquezas que a
chamma derrete, o tempo as gasta, o vento as
espalha; e o fumo as desvanece; mas sim só isto pode
ser, a conservação da historia antiga, esse facho
verdadeiro, que atravessando por entre as nuvens dos
séculos, pode vir iluminar os relevantes serviços, que
nossos antepassados fizeram á Patria como filhos
agradecidos.19

A sua narrativa é assim um discurso estabelecedor dos exempla que


contribuirão para que as gerações de sua época se orientem no caminhar
dos séculos. Ele tem uma perspectiva de futuro, pois crê que através dessa
orientação temporal os jovens se tornarão leais e bons cidadãos, bons pais
de família e obedecerão às leis, mas os seus olhos estão voltados para a
inter-relação entre passado e presente:

A primeira instrução da juventude deveria ser a


história da pátria porque sua leitura estrando gravada
em seus corações, com mais facilidade pode
reproduzir o entusiasmo, o valor e o patriotismo, a
imitação do que fizeram seus antepassados; em seus

18
VIEIRA DOS SANTOS, Memória Histórica da Cidade de Paranaguá..., op. cit., p. 10.
19
Idem, p. 9.
heroicos feitos ela pode produzir o que sejam leais e
bons cidadãos, bons pais de famílias e obediente às
leis, pode finalmente até produzir os mais
famigerados heróis. 20

A visão de Vieira dos Santos está no presente entendendo-o como


12
potencial de mudança para a construção de um futuro diferente, e se
assenta no passado como fonte de orientação. Essa maneira de pensar a
história repercuti obviamente na forma como o autor organiza os fatos:
atrelado ao método cronológico e linear de periodização, a ordem que
Vieira dos Santos dá ao tempo coordena os acontecimentos de modo que
fatos acontecidos em diferentes regiões do país estejam inter-
relacionados. Como demonstra Benatte, “os critérios de periodização
articulam a história política municipal aos grandes acontecimentos da
história-pátria”21. Isso é notado, por exemplo, na primeira parte do
capítulo 1, no qual a datação é definida como a primeira época, a qual vai
de 1500 a 1648 e compreende “desde o descobrimento do Brazil; e da
Capitania de S. Viçente, té a fundação da Villa de Paranaguá”. Ele usa
como recurso de periodização um sistema de corte no tempo linear. Cada
recorte é chamado de épocas (como Títo Lívio), e em cada um deles os
acontecimentos provinciais e nacionais são narrados articuladamente.
Assim, o desejo de reunir o maior número de fatos para que à
sociedade sirva como “hum Pharol que vos ilumine desde a mais remota
antiguidade té ao prezente, e de ora avante vos servirá de guia e bussola

20
Idem, p. 8.
21
BENATTE, op. cit., p. 801.
para navegares, nos Seculos fucturos com mais claridade” 22, baseia-se na
articulação entre acontecimentos da história política municipal e os da
história-pátria. Isso é feito de tal forma que se cria uma sintonia entre
eles. Em consequência, fica subentendido em sua narrativa que os fatos
estão interligados e, por isso, aquilo que acontece na capital direta ou 13

indiretamente repercutirá em todas as outras regiões submetidas a sua


administração. É nesse atrelamento que Vieira dos Santos se baseia para a
construção da história-pátria em suas memórias históricas.
Acontecimentos ocorridos na região onde vive o autor são refletidos e
narrados à luz do que ocorre na capital e nas outras regiões do país.
A preocupação de Vieira dos Santos em narrar acontecimentos que
fundamentarão a história-pátria como o sentido para as ações que alçarão
o Brasil ao patamar de grande nação, se assemelha a uma característica
marcadamente historicista – a preocupação em construir uma história
nacionalista. Ele elabora uma história nacional, assim como fez o projeto
inicial do Historicismo alemão que procura construir uma história
nacionalista, ao invés de universalista.
Em busca desse objetivo, Vieira dos Santos vai aos arquivos,
consulta as fontes, tanto primarias como secundárias, tanto antigas como
modernas, organiza-as cronologicamente, adota um método de crítica
destas fontes com inspiração filológica, e busca na história as bases da
nacionalidade. Essa forma de abordar as fontes também é, como Benatte
demonstra, ao modo dos historicistas23. Em sua escrita da história, o

22
VIEIRA DOS SANTOS, Memória Histórica da Cidade de Paranaguá..., op. cit., p. 4.
23
BENATTE, op. cit., p. 803.
imigrante português discorre sobre todas as épocas da história do país,
dando igual importância a elas e procura examina-las consoante critérios a
elas adequados, adotando o mesmo raciocínio para as diversas
espacialidades.
Ainda de acordo com Benatte, diferente das concepções 14

dominantes nos Oitocentos, marcadas pela ideia de progresso, a ordem


que Vieira dos Santos dá ao tempo é dominada pela noção de decadência.
O memorialista português assim não se encaixa no que Hartog chama “o
regime moderno de historicidade ocidental”, que entende o tempo como
um processo direcionado a um bom fim 24. Para Vieira dos Santos o apogeu
já passou e o futuro só trará decadência, como ele deixa claro na
conclusão do Memória Histórica da Cidade de Paranaguá e seu Município:

Aqui finda a Memória Histórica Paranaguense. Nela


acharão os vindouros, leitores, o que seus
antepassados fizeram; em cujo solo aurífero pisavam
sobre metais preciosos; e que desentranharam do seio
da pródiga Mãe da natureza, milhares de arrobas de
tais preciosidades, espargidas pelos Contornos do
Município; e que fizeram a opulência de muitas
famílias, que já não existem, esta grande ventura de
mais de 190 anos que os paranaguenses viveram
abundantes e alegres; mas chegando a época viril de
sua decadência pelas invejas de uns, ambições
d’outros; e que já tinham chegado ao apogeu da
Soberba como disse Floro no livro 3º Cap. 2º – “A
riqueza e a glória destruíram os bons costumes; e
introduziram vícios, e seguiu-se perder o respeito à
virtude”; por isso Deus quis castigar esta soberba,

24
BENATTE, op. cit., p. 808.
ordenando à Mãe da natureza fizesse recolher em
seus cofres este leite precioso que só servia de
alimentar o orgulho dos soberbos; e quando outra vez
estivesse prenhe de tais cabedais repartil-os nas
futuras gerações as que mais forem de seu agrado. 25

Apesar dele vislumbrar um fim decadente, a sua preocupação com o 15

que os seus futuros leitores, especialmente no que tange ao que dirão a


respeito da estética de sua escrita, o estilo de sua narrativa, é grande.
Como demonstrou Benatte, a fonte de inspiração de Vieira dos Santos
remete a historiografia e à literatura da Antiguidade clássica e a
preocupação com a performance literária é constante 26. Vieira dos Santos
escreve:

Conheço pois minha insuficiência e de não ter


capacidade científica e gramatical na boa ordem e
organização de uma completa história, talvez cheia de
erros, de frases incoerentes, erros de palavras, ou
letras escritas debaixo de regra gramatical por não ter
estudado a arte da língua portuguesa [...].27

O livro de Vieira dos Santos está repleto de citações eruditas.


Atrelado a isso esta a sua preocupação com a estética do texto, como já
afirmamos. A sua fonte de inspiração – a historiografia e literatura da
Antiguidade Clássica – é inalcançável. Ele chega a reconhecer que não tem
“uma elegância de estilo como Agamenon, nem eficácia no dizer como
Julio Cesar, nem mesmo como Salústio na brevidade que costumava a

25
VIEIRA DOS SANTOS, Memória Histórica da Cidade de Paranaguá..., op. cit., p. 404-405.
26
BENATTE, op. cit., p. 806.
27
VIEIRA DOS SANTOS, Memória Histórica da Cidade de Paranaguá..., op. cit., p. 7.
usar”28. Tal nível de exigência, faz com que a escrita da história de Vieira
dos Santos esteja, concordando com Benatte, “mais próxima da narrativa
literária que dos modelos, emergentes na Europa, de História ciência” 29.
Partindo da análise, a obra de Vieira dos Santos está assim entre a História
e a Literatura, mais próxima desta do que daquela. 16

Considerações finais
Com base em nossa análise, chegamos à conclusão de que mais do
que compreender o passado e contribuir para a construção de uma
narrativa que sustente as representações da história-pátria atreladas a
história da província, envolvendo para isso o máximo possível de
características ambientais, culturais e humanas, Vieira dos Santos se
debruçou sobre a escrita de suas memórias históricas com o objetivo de se
aproximar das elites regionais através do reconhecimento de sua
intelectualidade. Foi para essas pessoas que a sua obra se dirigiu, e com o
intuito de o autor se aproximar delas. Como demonstramos, o
memorialista português passou por inúmeros debacles econômicos. À
vista disso, só o caminho da erudição possibilitaria a ele se integrar as
elites locais.
Como observamos, Vieira dos Santos tem como objeto de estudo
principal a história dos feitos do estado nacional. Os critérios de
periodização da história-pátria se articulam com a provincial, numa inter-
relação que cria uma aproximação perfeita e lhe dá caráter

28
Idem, p. 7.
29
BENATTE, op. cit., p. 807.
homogeneizante. O período que ele se debruça vai de 1500 a 1850. E
quanto ao lugar social da operação historiográfica de Vieira dos Santos? A
que “meio” pertence? O imigrante português não fazia parte da elite local,
mas detinha influências políticas, militares e eclesiásticas. Foi um homem
que de certa forma estava inserido na política local; um “homem público” 17

de relativa importância. Essa importância em grande parte se deve a sua


intelectualidade. Como já apontamos, em uma região provincial de grande
maioria analfabeta, aquele que tinha conhecimento das letras era
respeitado e até reverenciado.
Quanto ao conceito de história de Vieira dos Santos, diferentes
regimes de historicidades permeiam a sua obra. Consequentemente, a
resposta para essa pergunta não pode ser simples, e não é possível
encaixa-lo em noções homogeneizante como “concepção oitocentista da
história”, a não ser que a estrutura conceitual que fundamenta essa escola
seja ampliada. Ademais, com base na análise do livro “Memória histórica,
chronológica e descritiva da Villa de Morretes e do Porto Real,
vulgarmente Porto de Cima”, mediada pelas considerações de Certeau,
Hartog e a partir das reflexões feitas por Benatte sobre a obra desse
português, chegamos à conclusão de que o conceito de história de Vieira
dos Santos tem como filosofia a historia magistra vitae, entendendo que
os exempla são fundamentais para a orientação temporal, ele constrói
uma história factual, detalhista, recheada de nomes de personagens,
“homens bons”, que ocuparam as diferentes instâncias do Estado.
Entretanto, a obra do imigrante português não é só uma narrativa
acontecimental dos feitos do Estado. Como vimos, ela traz uma grande
diversidade temática, incluindo características culturais, nos levando a
afirmar que a sua escrita da história tem em suas estruturas esteios de
uma proto-história cultural.
A forma como ele aborda as suas fontes, organizando-as de forma
linear através do método cronológico, é ao modo dos historicistas. Outra 18

semelhança com o historicismo esta na preocupação em fazer uma


história fundamentalmente nacionalista. Atrelado a tudo isso, está a
preocupação constante de Vieira dos Santos com o estilo de sua narrativa.
Esse esforço pelo aprimoramento da estética do texto faz com que ele se
aproxime mais da literatura do que da história ciência, estando desse
modo entre as duas formas de pensar o mundo.
Entre a história e a literatura, fundamentado em características
historicistas, inovando de uma história acontecimental para uma proto-
história cultural e norteado pela filosofia da história magistra vitae, por
esses e inúmeros outros aspectos a obra de Vieira dos Santos foi de
extrema importância para a formação da historiografia paranaense e para
a história do Paraná.

Referências bibliográficas

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Santos (1850/51). Anais [do] XIII Encontro Estadual de História da ANPUH.
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Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 343, Rio de Janeiro, 1984.
A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NA CONSTRUÇÃO DO
CONHECIMENTO HISTORICO

Carlos Jordan Lapa Alves 1


1

Resumo: Este artigo relata uma experiência interdisciplinar (Alvarenga et al., 2011)
desenvolvida em sala de aula entre as disciplinas de Língua Portuguesa e História
envolvendo o poema Navio Negreiro: uma tragédia no mar (1893), escrito por Castro
Alves, contextualizando-o com o conteúdo de Brasil Colonial, estudado em aulas
anteriores; para posteriormente, os alunos, através de suas percepções sobre o poema
contextualizado com o assunto, construírem Histórias em Quadrinhos (HQs) e uma
encenação baseada no teatro das sombras com o objetivo último de utilizar o texto
literário como recurso metodológico na construção do conhecimento histórico pelos
próprios alunos do Ensino Fundamental II na Escola Municipal “Manoel dos Santos
Pedroza”.
Palavras-chave: História. Literatura. Poema.

Abstract: This paper reports an interdisciplinary experience (Alvarenga et al, 2011.)


developed in class between the disciplines of Portuguese language and history
involving the poem Slave Ship: a tragedy at sea (1893) , written by Castro Alves, -
contextualizing with the contents of Colonial Brazil , studied in previous lessons ;for
later, the students, through their perceptions of the poem ,contextualized with it, build
Comics books (Comics) and a scenario based on the theater of shadows with the
ultimate goal of using the literary text as a methodological resource in the construction
of historical knowledge by the students of the Elementary School II at the Municipal
School "Manoel dos Santos Pedroza".
Keywords: History, Literature, Poem

1
Graduado em História e mestrando em Cognição e Linguagem na Universidade Estadual Norte
Fluminense “ Darcy Ribeiro” – UENF.
1. Introdução
Na sociedade contemporânea os docentes das mais diversas áreas do
conhecimento deparam-se com o percalço cotidiano de criar e manter o
interesse dos alunos no conteúdo proposto e no processo de ensino-
2
aprendizagem. Por anos o ensino de História no Brasil evidenciou a
mecanização da aprendizagem, pois o aprender estava intrinsicamente
relacionado ao ato de decorar datas, nomes e os grandes feitos. Contudo,
as novas correntes pedagógicas em união com as vertentes históricas que
surgiram durante o século XIX e XX logo questionaram a visão da História
Positivista e seus métodos de aprendizagem, por consequência
acarretando mudanças dentro das salas de aula possibilitando nas últimas
décadas um estudo histórico mais amplo e didático (SCHMIDT, 2004).
As fontes históricas utilizadas por historiadores para produção do
conhecimento histórico podem ser usadas em sala de aula, criando um
ambiente de socialização de conhecimento, no qual os educandos
participam de maneira ativa, pois para Schmidt (2004, p.54) precisa-se
“entender que o conhecimento histórico não é adquirido como um dom”,
mas consegue-se através de pesquisas e descobertas. Torna-se, portanto,
necessário transformar a sala de aula em um mundo onde os alunos
precisam descobrir sua historia, ou seja, faz-se necessário outro modelo
educacional que privilegia o ensino nas suas múltiplas variações, pois “o
que é desejado é que o professor deixe de ser um expositor satisfeito em
transmitir soluções prontas; o seu papel deveria ser aquele de um mentor,
estimulando a iniciativa e a pesquisa” (PIAGET, 1973. p16).
Entretanto, para uma melhor compreensão sente-se a necessidade
de evidenciar que o conceito de fonte histórica, o qual na concepção
positivista do século XIX privilegiava o documento escrito e oficial foi
alargado a partir da contribuição revolucionaria da Escola dos Annales e
3
passou a abarcar, também, a cultura material, as imagens, a Literatura
(SILVA; SILVA, 2009).
Chartier foi um dos expoentes da revolução historiográfica, pois em
seus estudos, o historiador francês distanciava-se de uma visão oficial e
marxista e esboçava um novo campo historiográfico em que as relações
culturais, literárias e as diversas significações tinham um denominador
comum que era a História Cultural. Atente-se que para Chartier (1990, p.
24) “a literatura representa a complexidade que o homem vive em seu
meio social”.
Segundo Navarrete (2011, p.33), “Chartier define a literatura como
uma relação intrínseca entre a crítica literária e a História”. Visto que, o
escritor está inserido no contexto e o historiador pode se apropriar de
seus relatos em forma de prosa, poesia ou conto para construir o
conhecimento histórico visando uma análise cientifica e imparcial da
literatura.
Pensando que as narrativas, sejam históricas ou literárias,
ou outras, constroem uma representação acerca da
realidade, procura-se compreender a produção e a
recepção dos textos, entendendo que a escrita, a
linguagem e a leitura são indivisíveis e estão contidas no
texto, que é uma instância intermediária entre o produtor e
o receptor, articuladora da comunicação e da veiculação
das representações. (BORGES, 2010, p 95).
Essa concepção de fonte histórica possibilita flexionar o seu uso como
recurso didático em sala de aula, pois permite o diálogo do aluno com o
passado ao desenvolver o sentido da análise histórica (CORREIA, 2013).
Afirmando isso, objetiva-se relatar uma experiência com a utilização do
4
poema como fonte histórica contextualizado com o conteúdo de História
no ensino-aprendizagem deste campo do conhecimento.

2. Metodologia
Para alcançar o objetivo proposto a proposta desenvolvida segue em uma
primeira etapa o conceito do estudo exploratório através de uma pesquisa
bibliográfica, que segundo Gil (2008) “é um estudo desenvolvido a partir
de material já elaborado, constituído de livros e artigos científicos”. Diante
das considerações teóricas, buscou-se relacioná-las com a prática do uso
do poema enquanto fonte histórica no processo de ensino- aprendizagem
da disciplina de História e Língua Portuguesa.

A atividade desenvolveu-se em grupos de alunos compostos de três


integrantes, pertencentes a uma turma do 8º ano, do Ensino Fundamental
II, da Escola Municipal Manoel dos Santos Pedroza em Piúma - ES, a partir
da inciativa dos professores de História e de Língua Portuguesa. Os
referidos alunos foram convidados a analisar o poema Navio Negreiro:
uma tragédia no mar (1983), escrito por Castro Alves, contextualizando-o
com o conteúdo de Brasil Colonial, estudado em aulas anteriores, para
posteriormente, através de suas percepções sobre o poema
contextualizado com o assunto, construírem Histórias em Quadrinhos
(HQs) e uma encenação baseada no teatro das sombras.

5
3. Resultados e Discussões
Atualmente, a sociedade vivencia e valoriza o presenteísmo, porquanto se
acredita viver um presente continuo desvinculado de qualquer passado.
Portanto, é necessário do professor uma postura de reconciliação entre a
história e os novos sujeitos mostrando-os que são atores e principalmente
construtores diários do conhecimento histórico. Para que isso ocorra
torna-se necessário do docente transformar sua sala de aula em um
grande laboratório trocando por vezes livros por documentos-fontes que
são acessíveis em diversos sites de domínio público como da Biblioteca
Nacional e outros arquivos de competência estadual.

O professor de História pode ensinar o aluno a adquirir as


ferramentas de trabalho necessárias; o saber-fazer, o
saber-fazer-bem, lançar os germes do histórico. Ele é o
responsável por ensinar o aluno a captar e a valorizar a
diversidade dos pontos de vista. Ao professor cabe ensinar
o aluno a levantar problemas e a reintegrá-los num
conjunto mais vasto de outros problemas em
problemáticas. (SCHMIDT, 2004, p.57)

Nesta perspectiva, busca-se envolver o aluno em um sentimento de


pertencimento e valorização da sua própria história, cultura e criação de
sua identidade – conforme os Parâmetros Curriculares nacionais – PCNs (
Brasil, 1997). Ainda segundo este documento torna-se prioritário que o
ensino de História se paute na construção de uma identidade nacional
através das relações sociais e individuais além de permitir analisar e
6
compreender o tempo presente e explorar criteriosamente as múltiplas
relações históricas que envolvem seu passado e sua memória.

Neste aspecto a história vincula-se diretamente com a construção


da cidadania relacionando-se ao conhecimento do outro como ser
histórico permitindo compreender o entrelaço social, a cultura, a
construção moral e a realidade que estamos inseridos.

A Literatura reconhecida como fonte histórica para viabilizar o


processo de ensino aprendizagem da História, permitiu contextualizar o
poema Navio Negreiro: uma tragédia no mar (1983), escrito por Castro
Alves com o conteúdo de História “Brasil Colonial”. A atividade
desenvolvida possibilitou relacionar muitos dos aspectos abordados no
poema pelo autor com os conteúdos disponibilizados no livro didático.
Isso vai de encontro ao que Silva (2010) propõe, pois “a ausência de
comprometimento da Literatura com a realidade dos fatos, não exclue sua
presença”.
A maior liberdade de imaginação e fantasia que proporciona a
linguagem literária que evidencia Pesavento (1995) em seus estudos,
contribuiu para uma maior riqueza de detalhes, despertando o interesse
por parte dos alunos ao relacionarem o poema com o conteúdo, pois o
interesse pela atividade prática estimula e desenvolve uma perspectiva de
participação e construção de conhecimento.
Nessa abordagem dialógica (Leitão, 2007), o diálogo com o passado
através da fonte possibilitou que os discentes desenvolvessem seus
7
pontos de vista. De acordo com Teixeira (2010), o documento histórico
como recurso pedagógico permite a construção de pontes entre o aluno
com o passado, pois desenvolve-se o interesse pela investigação histórica
oferecendo a possibilidade do aluno fazer sua própria leitura sobre os
eventos que o documento trata.
Pode–se perceber através das analises feitas pelos alunos um
sentimento de reconhecimento de suas histórias através do poema, pois
este enquanto expressão humana conseguiu criar uma relação intrínseca
entre as condições sociais e humanas dos alunos e os personagens do
poema, visto que a escola é localizada em uma área periférica, seria,
portanto, quimera aos alunos uma representação de poema que
elucidasse os grandes heróis e seus feitos.
Tal fato é endossado, pois a maioria dos discentes não se vê
representado por estes personagens, uma vez que, o estudante muitas
vezes acaba assumindo apenas ao papel de expectador do grande
espetáculo histórico provido pelas grandes elites e seus respectivos
interesses, portanto sem desenvolver uma analise critica, tendo em vista
não se identificar com a História que geralmente traz os discursos das
rainhas, reis, príncipes, papas e presidentes. O poema, enquanto forma de
Literatura carregada de emoção, provoca a identificação do aluno com os
personagens (KARAWEJCZYK apud TEIXEIRA, 2010).
Através das representações históricas que o poema transpõe foi
estimulado a capacidade de interpretação dos alunos. As produções
8
verbais e as em formas de Historia em Quadrinhos só foram possíveis por
parte dos discentes, pois houve uma interação entre o texto literário e os
conteúdos propostos pelo livro didático, visto que, precisa-se levar em
consideração que as poesias não são predominantes nas leituras dos
adolescentes. Ademais, Correia (2013) adverte que o texto literário, como
recurso do conhecimento histórico, no processo pedagógico necessita ser
trabalhado em sincronia com outras fontes de conhecimento, pois se
torna preciso viabilizar as analises e as interlocuções entre os saberes que
proporcionam analises complexas sobre fenômenos também complexos.
Santomé (1998) destaca a importância da integração do trabalho de
diferentes disciplinas, pois a desconexão e descontextualização dos
saberes dificultam a criatividade e a imaginação, bem como as iniciativas
dos alunos, que não entendem o sentido das partes estudadas. Nessa
perspectiva, o poema trabalhado na aula de Literatura foi utilizado na aula
de História, integrando os conteúdos das disciplinas, estimulando a
criatividade e a iniciativa do aluno.

4. Considerações Finais
A partir da resignificação dos conceitos teórico-metodológicos acerca do
que pode ser considerado documento histórico ou fonte histórica, criou-se
o interesse por parte dos professores de História e de Literatura
descontruir paradigmas e aproximar o conhecimento dos discentes. A
aceitação da Literatura pelos adolescentes e também enquanto recurso
histórico possibilitou o seu uso como mediador e construtor de um
9
conhecimento interdisciplinar abarcando teorias e metodologias da
ciência literária quanto da ciência histórica.
A História e a Literatura, no processo de ensino-aprendizagem,
viabilizaram um espaço privilegiado de produção do conhecimento
pedagógico. A integração das referidas áreas do conhecimento conferiu
sentido e prazer à realidade cotidiana escolar dos alunos, pois estes
perceberam que estavam interagindo com e construindo conhecimento.
Diante do relato apresentado é importante destacar que alguns dos
métodos utilizados durante as aulas, comprovaram as hipóteses e as
teorias de pesquisa de grandes autores como: Correia (2013), Silva (2010)
e Fonseca (2003) quando afirmam que os alunos aprendem fazendo, pois
as atividades demonstraram que os métodos de ensino interferem
diretamente no interesse pelo conteúdo e no processo de ensino-
aprendizagem.
Deve-se então ter em mente que os professores exercem um papel
insubstituível no processo da transformação social, pois a formação dos
educadores não se baseia apenas em técnica prontas, e nem como apenas
executora de decisões alheias, mas, na formação de cidadãos com
competências e habilidades na capacidade de decidir e agir. Em suma,
novas técnicas de ensino tem o poder de produzir novos conhecimentos
para além da teoria e da prática de ensinar, pois torna-se preciso
(re)significar o ensino e colocar o aluno no papel de construtor do
conhecimento.

10
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dimensão retórica da historiografia. In: Pinsky, Carla Bassanezi e Luca,
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HAITI: DA INDEPENDÊNCIA À DEPENDÊNCIA DUVALIER

Leanderson Cristiano Voznei1

RESUMO: O Haiti conquistou sua independência após quase três séculos de domínio
europeu, fruto da união dos escravos, que organizados se revoltaram e deram início a 1
revolta de São Domingos (1791-1804), em plena Revolução Francesa (1789-1799), que
instigou o mundo com seus ideais de Igualdade, Liberdade e Fraternidade. A situação
do país nunca foi das melhores, mas piorou a partir de 1957 quando teve início a
“Dinastia Duvalier”, considerado o pior e mais cruel regime ditatorial do Haiti.
Atualmente, já se passaram mais de dois séculos desde sua independência e o país
ainda sofre com a miséria, doenças, descaso político e esquecimento mundial e se vê
obrigado a sobreviver com as migalhas das elites branca e mulata que se afirmaram no
poder após sucessivos golpes de estado.

Palavras-chave: Revolução Francesa, Dinastia, Independência.

ABSTRACT: Haiti won its independence after almost three centuries of European rule,
marriage fruit of slaves, who organized revolted and began the revolt São Domingos
(1791-1804), in full French Revolution (1789-1799), which He urged the world with
their ideals of equality, liberty and fraternity. The situation of the country was never
the best, but worsened from 1957 when it began to "Duvalier dynasty", considered the
worst and most cruel dictatorial regime in Haiti. Currently, it's been more than two
centuries since independence and the country still suffers from poverty, disease,
political neglect and world oblivion and forced to survive on the crumbs from the
white elites and mulatto who claimed in power after successive blows state .

Keywords: French Revolution, Dynasty, Independence.

INTRODUÇÃO:
Segundo Bona após a independência do Haiti, Dessalines (um dos
líderes comandados por T´oussaint) “tornou-se o primeiro chefe de Estado
haitiano” o qual foi coroado imperador, foi responsável pela unificação da

1
Acadêmico do 4º ano do Curso de Licenciatura em História da Unespar, Campus de União da Vitória-
PR.
ilha, porém foi morto dois anos depois e a ilha novamente foi dividida em
duas:
Henri Christopher, que funda um reino ao norte, e
Alexandre Pétion, que lidera uma república ao sul, e
voltando o leste aos espanhóis. A unificação do país só
acontece em 1820 sob o governo de Jean-Pierre 2
Boyer, que governou como ditador até 1843. 2
O país agora independente saiu do mercado mundial de açúcar e
os ex-escravos retornam as suas tradições africanas de agricultura de
subsistência (produção de alimentos para sobrevivência).
Porém, apesar de não fazer mais parte do mercado mundial do
açúcar, o Haiti ainda continuou atraindo os negativos olhos do mundo,
pois sua independência passou a ser vista pelas nações livres como um
perigo, principalmente pelos Europeus, que temiam que o acontecimento
na ilha se espalhasse para as outras colônias mundiais e desta forma
servisse como um estopim para novas revoltas. Nesse contexto, segundo
Bona, a própria França só teria aceitado a independência do Haiti em
1824, mediante uma altíssima indenização, que embora aceita pelos
líderes haitianos, jamais se conseguiria quitar, ainda mais levando em
consideração a situação lastimável em que o país se encontrara depois da
saída do mercado mundial do açúcar.
Segundo Matijascic 3 os mulatos que auxiliaram no processo de
revolta e independência se constituíram como elite (por serem
proprietários de terras) e não mudaram a estrutura social do país, ou seja,
os ex-escravos continuaram a ser utilizados nas lavouras de produtos
primários, desta forma isto se tornou uma divergência de interesses
sociais, que elencaram uma série de conflitos e disputas internas pelo
poder do país.
Essas disputas internas do poder tornaram a situação entre mulatos
e negros incontroláveis e nesse sentido os conflitos entre ambos
ganharam força, vejamos:

2
BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e cooperação técnica. UFPI.
Dissertação de mestrado.Teresina. 2011. p 24.
3
MATIJASCIC. 2009. p. 5 Apud BONA. 2011. p. 24
[...] a hostilidade entre os dois grupos levou a cada
um, quando ocupou o governo, preferir intervenções
externas em assuntos domésticos a permitir que o
grupo rival tomasse o poder. Frequentemente
observamos que os políticos haitianos solicitaram
assistência estrangeira militar em troca de benefícios
como ceder parte do território para uma base naval 3
ou oferecer vantagens comerciais. No início do século
XIX, os britânicos e franceses estavam mais propensos
a obter privilégios no Haiti; ao final do mesmo século,
essa situação foi gradualmente substituída pelos
Estados Unidos e pela Alemanha. 4
1 - DEPENDÊNCIA MUNDIAL NOS ASSUNTOS INTERNOS
Observa-se que desde a independência do Haiti, seus dirigentes
preferiram as mais variadas intervenções militares em seus territórios a
uma eventual alternância de poder, desta maneira se sobressaíram os
interesses mundiais sobre a ilha, vejamos a seguir:
As ilhas caribenhas ofereciam uma estratégica posição
de parada para os navios mercantes rumo a países do
continente americano. Grande parte das posses era de
domínio britânico e espanhol. O Haiti foi alvo das
disputas entre as potências, pois era o único país sem
influência predominante de uma delas. A
vulnerabilidade do Haiti a interesses externos foi uma
conseqüência da instabilidade política e da
dependência econômica do país.5
Até 1915, segundo Matisjascic, os exércitos da França, EUA,
Alemanha e Inglaterra estiveram em domínios haitianos, sempre pelo
mesmo motivo, de resolver problemas considerados domésticos, ou seja,
problemas internos que os dirigentes não conseguiam ou nem tentavam
resolver, tornando o país um dependente crônico das políticas
econômicas mundiais.

4
MATIJASCIC. 2009. p. 5-6 Apud NICHOLLS. 1996. p. 8 Apud BONA. 2011. p. 25
5
MATIJASCIC. 2009. p. 5-6 Apud NICHOLLS. 1996. p. 8 Apud BONA. 2011. p. 25
Esta forte dependência assistencial mundial, tem seus pilares
calcados na violência do povo para resolver problemas, aliado a formação
de grupos rivais que buscavam a liderança do país e forçavam a população
a tomar partido de uma causa específica. Desta maneira, até a intervenção
dos Estados Unidos da América em 1915, “o Haiti conheceu 21 (vinte e
um) governantes que tiveram final trágico. Digno de nota foi Faustin
Soulouque, que, nomeado presidente em 1847, conquistou a República 4
Dominicana em 1849 e foi proclamado imperador”6, o qual foi deposto em
1858 e exilado. Outro governante teria sido envenenado “outro morreu na
explosão de seu palácio, outros foram condenados à morte e um deles,
Vilbrum Sam, foi linchado pelo povo.” 7
Para Bona, a intervenção Norte Americana no Haiti se deu através
de um projeto de política expansionista iniciado após o fim da Guerra Civil
nos Estados Unidos (1861-1865). Desta maneira as intervenções militares
em países da América Central, Caribe e Pacífico tinham o ideal mascarado
de dominação desses mares. Fato este que é sustentado por Schmidt,
vejamos:
[...] o objetivo da expansão norte-americana era
conquistar a hegemonia nos mares do Caribe e do
Pacífico. Quanto ao cumprimento desse objetivo no
mar caribenho, Porto Rico foi cedido aos Estados
Unidos em 1898 e, na mesma data, Cuba foi ocupada
por tropas norte-americanas. O mesmo aconteceu no
Panamá em 1903, na Nicarágua em 1909 e nas Ilhas
Virgens em 1916. A República Dominicana cedeu um
porto comercial aos norte-americanos em 1905 e foi
ocupada militarmente pelos marines em 1916. O Haiti
também esteve incluído no contexto de expansão e
intervenções militares dos Estados Unidos. Além das
razões expansionistas, eliminar a presença germânica

6
BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e cooperação técnica. UFPI.
Dissertação de Mestrado.Teresina. 2011. p 26
7
Idem.
era fundamental para concretizar os interesses norte-
americanos [...].8
Segundo Schmidt o Haiti encontrava-se em uma posição geográfica
avantajada que aguçou as ambições Norte Americanas, o local escolhido
para construção da base naval teria sido Cuba, porém, “outro importante
ponto estratégico não poderia ser ignorado, Môle-Saint-Nicolas, localizado 5
a noroeste do Haiti por dar acesso livre ao Canal do Panamá.” 9 Desta
maneira, em julho de 1915, os Estados Unidos interviram no Haiti, sob
alegação de intervenção humanitária, descartando a hipótese de que a
intervenção tenha ocorrido com o objetivo de evitar que a Alemanha ou
outro país Europeu anexasse esse território aos seus domínios.
Em 1917, tropas norte-americanas acrescidas de
tropas britânicas na Jamaica controlaram a maior
parte das ilhas no Caribe desde Cuba a oeste até Porto
Rico e Ilhas Virgens a leste, impedindo que várias ilhas
que estavam no caminho para o Canal do Panamá
fossem atacadas pela Alemanha durante a Primeira
Guerra Mundial.10

Para Bona, a intervenção Norte Americana trouxe benefícios para o


Haiti como a construção de “estradas, pontes, hospitais, escolas, e
implantados sistema de telefonia e saneamento básico, porém fracassou
em conseguir estancar a fragilidade dos governos e a instabilidade política
[...]11, o que acabou gerando uma situação de desconforto político-social
no país, com a forte oposição nacionalista.
Desta maneira, “sem poder conter a constante oposição dos
nacionalistas, que não desejavam a continuidade das tropas estrangeiras
no país, em 1934, os EUA retiram suas tropas do Haiti e, em 1941,
abdicaram do controle alfandegário”. 12

8
SCHMIDT, 1995 Apud MATIJASCIC, 2009. p. 7-8 Apud BONA, 2011. p. 26-27.
9
Idem
10
Ibidem, p. 27.
11
MATIJASCIC, 2009. p. 9 Apud BONA, 2011. p. 28.
12
Idem.
Verificamos que após a retirada das tropas Norte Americanas em
1934, o país voltou a um período de crise político-econômica semelhante
a que se encontrava antes da intervenção militar de 1915. Porém, desta
vez, conforme Bona, ganhou um novo membro, as Gendarmerie d’Haïti
(Polícia Montada do Haiti) que foi criada e treinada pelos militares norte
americanos, tinha o poder de polícia e sua criação visava impedir a
anarquia, guerra civil e revoltas populares. Mas indo além de suas 6
atribuições passou a influenciar diretamente na conduta política do país,
por ser o setor mais organizado da sociedade.
Os governos estabelecidos no Haiti entre os anos de
1934 a 1956 foram marcados pelo autoritarismo,
impopularidade e ausência de apoio político ou
militar. Sténio Vincent (1930-1941), último presidente
da intervenção norte-americana, de conduta
autoritária, por suas atitudes à frente da condução
governamental, perdeu o apoio das Gendarmerie
d’Haïti, agora elemento marcante da vida política
haitiana. Pretendia um terceiro mandato, tendo sido
orientado pelo governo norte-americano a desistir. 13

2 - A ELITE MULATA GANHA REPRESENTATIVIDADE


Com isso, as Gendarmerie d’Haïti começaram a ir mais fundo nas
questões políticas do país e iniciaram um processo de que buscava sair do
papel secundário das linhas de ação do Haiti e essa tentativa aconteceu
com a indicação e apoio de Dumarsais Estimé para a presidência do país.
Este ficou no comando de 1946 até 1950 e apesar de sua política de
favorecimento as classes mais pobres da população, foi deposto em 1950
por contrariar os interesses da elite mulata haitiana.
Segundo Matijascic14, após Dumarsais Estimé ser deposto, surge a
figura do major Paul Magloire, representante das Gendarmerie d’Haïti e
portanto um legítimo representante da elite mulata, este renunciou o seu
cargo militar para concorrer à presidência. Após ser eleito oficializou uma

13
HAGGERTY, 1991 apud MATIJASCIC, 2009, Apud BONA, 2011. p. 28.
14
Ibidem, p. 29.
nova constituição que deu ao povo a oportunidade do voto direto para
presidência da república, porém, com isso ele se tornaria o presidente
vitalício do Haiti e tinha o apoio do exército. “Em reação às intenções de
Magloire de perpetuar-se no governo, houve uma violenta reação
popular, que resultou na renúncia do presidente. A impopularidade do
presidente tinha como fator principal a corrupção instaurada em seu
governo.”15 7

Bona cita que nos nove meses seguintes a saída de Magloire, o país
voltou ao período de instabilidade, passando por sete diferentes tipos de
governo, até o ano de 1957, quando através de um processo eleitoral
duvidoso sobe ao cargo um negro intelectual chamado François Duvalier.
3 - DINASTIA DUVALIER: O regime ditatorial mais cruel do Haiti.
Segundo Haggerty16, da renúncia de Magloire até a posse de
Duvalier, o Haiti conheceu três presidentes provisórios, dos quais um
renunciou e os outros dois Sylvian e Fignolé foram depostos pelo Exército,
nesse período foi que Duvalier ganhou sua ascensão política, por ser
ativamente participativo nas questões políticas e por ganhar o prestígio e
o apoio dos militares.
Para Bona o regime Duvalierista foi o regime mais cruel do Haiti,
teve início em 1957 com François Duvalier sendo eleito para a presidência
da república do Haiti, após um processo eleitoral duvidoso, já eleito,
Duvalier instaurou um regime autoritário e com forte concentração de
poder. “François Duvalier foi médico sanitarista com certo prestígio
mundial. Devido a suas fortes ligações com o movimento negro, realizara
excelente trabalho junto às populações rurais no combate à malária
*...+”17, por esses motivos adquiriu a simpatia do povo e passou a ser
chamado de “Papa Doc” (papai médico). Como forma de sustento de seu
governo e perpetuação do poder, ele montou um forte esquema de
repressão militar, que torturava e assassinava seus opositores mantendo a
hierarquia da sua estrutura social.

15
BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e cooperação técnica. UFPI.
Dissertação de Mestrado.Teresina. 2011. p 29.
16
Haggerty 1991, p. 232 apud MATIJASCIC, 2009, p. 11 Apud BONA, 2011. p. 30.
17
BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e cooperação técnica. UFPI.
Dissertação de mestrado.Teresina. 2011. p. 30.
Segundo Matijascic, mais do que possuir o apoio da população,
Duvalier teve a adesão de vários setores conservadores da sociedade,
como dos militares, Igreja católica, elite mulata, além de servir aos
interesses dos norte americanos, como o controle de revoltas populares e
a extinção da ameaça comunista no país. Duvalier permaneceu no poder
como cargo vitalício de 1957 a 1971.
8
Para se manter no poder por tanto tempo, Duvalier adotou uma
série de medidas que visavam a estabilidade de seu regime, desta maneira
“modificou os cargos de maior poder dentro das Gendarmerie d’Haïti, com
o intuito de afastar do governo aqueles envolvidos nos golpes de Estado
que atingiram as presidências passadas”.18
A antiga estrutura da Guarda Presidencial, composta e
coordenada pelas Gendarmerie d’Haïti, também
passou por alterações em 1959. A nova Guarda
Presidencial incorporou milícias civis armadas
recrutadas para agirem sob o comando de Duvalier.
Em 1962, os Voluntários da Segurança Nacional (VSN),
conhecidos pela população como Tonton Macoutes,
foram designados para o sistema de informação,
inteligência e controle. Tinham também como função
perseguir, prender e eliminar qualquer contestador do
governo. [...] a criação dos VSN reduziu a histórica
influência dos militares na escolha dos líderes políticos
do Haiti, pois neutralizou o poder das Gendarmerie
d’Haïti. Esta redução de influência deu estabilidade ao
regime ditatorial e uniu Gendarmerie d’Haïti e VSN no
papel de combate às ameaças internas. Entretanto, o
que diferenciou uma força da outra foi o fato dos VSN
não serem remunerados e não serem uma instituição
do Haiti. O caráter voluntário da milícia fez com que os
recursos econômicos necessários para o seu
funcionamento fossem obtidos por meio de atividades
ilícitas [...].19

18
HAGGERTY. 1991 apud MATIJASCIC, 2009 Apud BONA, 2011. p. 30.
19
MATIJASCIC, 2009 Apud SEITENFUS, 1994 Apud BONA, 2011. p. 31.
Para Bona ao criar os Voluntários da Segurança Nacional, Duvalier
achou um método que lhe garantiu sobrevida no poder, pois com isso
afastava de uma vez a Gendarmerie d’Haïti das questões políticas do Haiti
unindo-as aos Voluntários da Segurança Nacional. Outro método
importante foi criado mais tarde, quando em 1971 já com a saúde
debilitada, Duvalier “conseguiu impor seu filho Jean-Claude Duvalier como
sucessor na presidência vitalícia do Haiti, nos termos da Constituição por 9
ele outorgada em 1964.”20 Conseguiu isso obrigando a “Assembleia
Nacional a reduzir a idade mínima de exercício do mandato de presidente
para que seu filho pudesse assumir e, assim, prolongar seu regime
ditatorial.”21
Haggerty22 relata que na segunda metade da década de 1970, Jean-
Claude Duvalier (o Baby Doc) buscou uma aproximação norte americana e
desta forma deu o primeiro passo em direção ao desmantelamento de seu
regime. Pois a aproximação entre ambos propiciou uma abertura no
regime e permitiu que a população recuperasse alguns privilégios civis,
como a recuperação de partidos políticos civis de oposição, livre exercício
da imprensa (com algumas liberdades) e a recriação ou reabertura da
Academia militar, facilitando a manifestação de grupos de oposição.
Em 1984, eclodiu uma grande onda de violência
popular. Contê-la foi tarefa praticamente impossível
de ser cumprida. Buscando preservar a imagem da
corporação, as tropas militares se negaram a atirar
contra o povo. Diante da falta de habilidade de Jean-
Claude Duvalier para lidar com os conflitos internos e
considerando que o presidente não era unanimidade
entre as forças militares do Haiti, setores do exército
sugeriram que o presidente deixasse o país em 1986.23
4 - PAÍS SEM RUMO: Com o fim da Dinastia Duvalier o país sofre com
sucessivos golpes de estado provocados pelos militares.

20
BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e cooperação técnica. UFPI.
Dissertação de mestrado.Teresina. 2011. p. 31.
21
Idem.
22
HAGGERTY, 1991 Apud MATIJASCIC, 2009 Apud BONA, 2011. p. 31.
23
MATIJASCIC, 2009 apud HAGGERTY, 1991 Apud BONA, 2011. p. 31-32.
Conforme Bona, após o golpe de estado provocado pelos militares,
estes se sucederam no poder por vários anos, até o ano de 1990, quando
o povo escolheu através de eleições livres o padre Jean-Bertrand Aristide
para presidente. Com o afastamento de “Baby Doc” o caos se instala
novamente no Haiti e as Gendarmerie d’Haïti novamente assumem o
poder. Porém, os setores conservadores como (Igreja católica, elite mulata
e trabalhadores rurais representantes da classe média) viam agora a 10
oportunidade de mudanças que mantivessem seu status social.
Com o poder nas mãos das Gendarmerie d’Haïti, os
antigos VSN de François Duvalier, comumente
conhecidos como Tonton Macoutes ("Tio do Saco", em
crioulo haitiano; uma alusão às figuras que
provocavam medo como o "homem do saco" ou
"bicho papão"), perderam a razão de existir como tais
e deixaram de servir à segurança da Guarda Presencial
para tornarem-se um grupo paramilitar armado,
agindo na ilegalidade, que passou a fornecer armas a
outros grupos civis.24
Nesse contexto, todas as tentativas para promover eleições que
levassem ao poder um líder político eleito democraticamente entre os
anos de 1986 e 1990 fracassaram. Ocorreu no Haiti uma sucessão de
golpes militares. Durante esse período, as organizações internacionais
estiveram atentas *...+”25, até que em dezembro de 1990, ocorreram
eleições livres no Haiti “a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a
ONU uniram-se para observar o processo eleitoral que se instalara. O
padre Jean-Bertrand Aristide, ligado à Teologia da Libertação, venceu as
eleições com 67% dos votos *...+”.26 Porém foi deposto em outubro de
1991 pelo general Raoul Cedras, Aristide se exilou nos Estados Unidos e
seus partidários foram punidos ou mortos.
A comunidade internacional decretou um embargo
contra os novos donos do poder, que só fez aumentar

24
BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e cooperação técnica. UFPI.
Dissertação de mestrado.Teresina. 2011. p. 32.
25
MATIJASCIC, 2009, p. 15 Apud BONA, 2011. p. 32.
26
Ibidem, p. 33.
a miséria, pois o regime sobreviveu estabelecendo
uma aliança com o narcotráfico internacional,
permitindo a utilização do seu território como rota
para os Estados Unidos. Milhares de refugiados fugiam
em pequenas embarcações para a Flórida, gerando
uma crise que levou o presidente americano Bill
Clinton a agir. Depois de 31 infindáveis gestões, 11
apenas em outubro de 1994 uma força internacional,
liderada pelos Estados Unidos, forçou os golpistas a
entregar o poder e partir para o exílio.27
5 - NOVAS TENTATIVAS DE REDEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS
Segundo Vizentini, após os Estados Unidos obrigar os golpistas a
aceitar o exílio, Jean Bertrand Aristide retomou o poder, pois foi eleito
para um mandato de cinco anos. Aristide reassume o poder por mais dois
anos e desta vez assume um padrão de governo diferente do que teria
iniciado, quando utilizava-se de políticas reformistas, desta vez, assumiu a
postura dos seus antecessores, instaurando uma polícia que atendia as
questões políticas e levando a morte ou exílio os seus opositores. Após o
término do mandato de Aristide, elege-se René Garcia Préval, um aliado
político de Aristide, sendo empossado em fevereiro de 1996 e no ano de
2000 “Jean-Bertrand Aristide candidatou-se novamente à sucessão de
Préval e, mais uma vez, reelegeu-se para um mandato que iniciou em
fevereiro de 2001. Com isso, os problemas políticos avolumaram-se.”28
Jean-Bertrand Aristide não tinha a simpatia do novo
presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, por
isso não havia investimentos sociais e econômicos por
parte desse país, motivo para que os membros da elite
mulata desejassem restabelecer o poder. Nesse
momento, parte da população apartou-se do
governo.29

27
VIZENTINI, 2004, p. 1 Apud BONA, 2011. p. 33.
28
BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e cooperação técnica. UFPI.
Dissertação de mestrado.Teresina. 2011. p. 33.
29
Ibidem, p. 34.
Além de não contar com a simpatia dos norte americano o novo
governo de Aristide passou a ser taxado de corrupto e autoritário, deste
modo começou a perder terreno e aliados políticos para a oposição, tendo
em vista a fragilidade da sociedade haitiana aliado ao forte poder de
convencimento da população mulata que via no governo um político que
deixava de lado às questões inerentes a elite mulata.
12
Segundo Bona com a fragilização do governo de Aristide surgem
duas linhas partidárias que de certo modo dividem em duas partes a
sociedade haitiana: A primeira estava ligada à Família Lavalas ou Família
Avalanche, que compunha o partido de Aristide agora “parcialmente
transformado em milícia 30 *...+”31 e a segunda chamada Convergência
Democrática formada pelas ditaduras que perduraram no Haiti nos
períodos que antecederam à Aristide.
Sabendo da instabilidade política que agora cercava Aristide, a
extrema direita comandada por Louis Chamblain braço direito do General
Raoul Cedras que acabara de retornar do exílio, inicia uma série de
protestos “munidos de armas e mercenários”32 que seguiam as ordens do
General Cedras. Após saber que o reduto político do governo conservador
havia sido tomado pelas forças de Cedras, não houve outra saída para
Aristide a não ser pedir apoio às comunidades internacionais, porém seus
pedidos foram ignorados, deste modo “em dezembro de 2003, sob
pressão crescente da ala rebelde, Jean-Bertrand Aristide, acusado de
corrupção, de arbitrariedades e de violências, promete novas eleições
dentro de seis meses.”33
Porém, os protestos continuam por toda a capital Porto Príncipe,
ocasionando várias mortes nesta região, sem ter forças para continuar no
comando Aristide foge para a África e o país se depara com uma nova
intervenção militar da “Organização das Nações Unidas e o poder é

30
Milícia: É A designação genérica das organizações militares ou paramilitares compostas por cidadãos
co.muns, armados ou com poder de polícia que teoricamente não integram as forças armadas de um
país. Disponível em <http://www.dicionarioinformal.com.br/milícia/>. Acesso em 13 de janeiro de 2016.
31
73 BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e cooperação técnica. UFPI.
Dissertação de mestrado.Teresina. 2011. p. 34.
32
Idem.
33
Ibidem, p. 34.
entregue novamente à elite mulata haitiana, que reorganiza a Polícia
Nacional Haitiana.”34
Intervenção militar da Organização das Nações Unidas ou ameaça a
soberania haitiana?
Segundo o dicionário consultado 35 a palavra “soberania” tem por
13
significado: “Qualidades ou estado do que é soberano; Autoridade de
soberano; Poder supremo; Autoridade moral; e Excelência”, dos quais
podemos dizer sem melindre e com certeza de posse de toda a
informação já consultada, até aqui, que o Haiti não possuía nenhuma das
já citadas qualidades de soberania, desta forma, é possível entender que a
Missão de paz no Haiti não fere ou ameaça à soberania daquele país, pois
se trata de uma força multidimensional constituída e desta maneira
aprovada por duas autoridades competentes, sendo elas a ONU
(Organização das Nações Unidas e a CARICOM (Comunidade do Caribe),
esta última “é um bloco de cooperação econômica e política, criado em
1973, formado por quatorze países e quatro territórios da região
caribenha”36do qual o Haiti também faz parte.
Segundo Stochero com a renúncia de Aristide em fevereiro de 2004
o então Presidente Interino do país foi pressionado pelo Conselho de
Segurança da ONU e acabou concordando com uma nova intervenção
militar a Força Multinacional Interina (MIF) que tinha sua sustentação
econômica assegurada pelos norte-americanos e Canadenses. Essa força
“recebeu da ONU a tarefa de manter a ordem no país e, três meses
depois, foi sucedida pela Missão das Nações Unidas para Estabilização do
Haiti (MINUSTAH).”37

Deste modo, o país novamente se viu obrigado a conviver com


tropas militares internacionais em seu território, porém, essa nova
intervenção militar da Organização das Nações Unidas se modificou das

34
Idem.
35
Dicionário do Aurélio. Disponível em: < http://www.dicionariodoaurelio.com/soberania>. Acesso em
13 de janeiro de 2016.
36
Congresso Nacional, Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul. Disponível em: <
http://www.camara.gov.br/mercosul/blocos/CARICOM.htm>. Acesso em: 13 de janeiro de 2016.
37
STOCHERO. Tahiane. Dopaz, como a tropa de elite do exército brasileiro pacificou a favela mais
violenta do Haiti. Rio de janeiro. Objetiva. 2010, p. 39.
demais intervenções militares que a sucederam em pelo menos dois
aspectos: Modificação do aspecto administrativo da missão, passando o
comando da missão a partir de 2004 para o Brasil e segundo, modificando
o discurso de resolver conflitos internos, para, ensinar a resolver conflitos
internos, ou seja, passou-se a dar mais atenção a formação dos militares
haitianos, treinamentos específicos para controle de distúrbios, maior
atenção à população, aumentando a aproximação das tropas militares 14
com a população haitiana.

Que a pérola do caribe, enlameada com as lamúrias do tempo,


continue seu processo de polimento, e que a lapidação das novas
conquistas a encaminhem na reconquista do seu brilho.
REFERÊNCIAS BIBLÍOGRAFICAS

BONA. Marco Aurélio. Presença do Brasil no Haiti: Missão de paz e


cooperação técnica. UFPI. Dissertação de mestrado. Teresina. 2011.

Congresso Nacional, Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul.


Disponível em: <
http://www.camara.gov.br/mercosul/blocos/CARICOM.htm>. Acesso em:
13 de janeiro de 2016.

Dicionário do Aurélio. Disponível em: <


http://www.dicionariodoaurelio.com/soberania>. Acesso em 13 de janeiro
de 2016.

Dicionário do Aurélio. Disponível em: <


http://www.dicionariodoaurelio.com/milicia>. Acesso em 13 de janeiro de
2016.

MATIJASCIC. Vasessa Braga. Haiti: uma história de instabilidade política.


ANPUH/SP – UNESP-Franca. 06 a 10 de setembro de 2010.

STOCHERO. Tahiane. Dopaz, como a tropa de elite do exército brasileiro


pacificou a favela mais violenta do Haiti. Rio de jeneiro. Objetiva. 2010.
O LUPANAR E OS AVESSOS DA BELLE ÉPOQUE: UM OLHAR
SOBRE A PROSTITUTA JUDAICA NO RIO DE JANEIRO NA
CRÔNICA DE FERREIRA DA ROSA
Gabriel das Chagas Alves Pereira de Souza
Lorena Bordallo da Rocha Ferreira
1
Luciana Nascimento1

Resumo: As cidades, sejam elas reais ou imaginárias, são constituídas por seus mapas
textuais, nos quais estão contidas suas histórias e suas personagens. Esses elementos
foram captados pelos mais diversos discursos, dentre eles, o literário. Em relação ao
crescimento dessas cidades, a imprensa tornou-se um importante instrumento de
difusão da literatura em fins do século XIX/início do século XX, tendo sido a
responsável por construir a imagem da nação, conforme os postulados de Benedict
Anderson (2008). Naquele cenário, a crônica foi um gênero de grande importância,
fruto da modernidade, "filha do jornal", ou seja, uma narrativa urbana por excelência.
Dentro desse contexto, este artigo tem por objetivo lançar um olhar acerca da
presença da prostituição judaica no Rio de Janeiro da Belle Époque através da análise
das crônicas de Francisco Ferreira da Rosa, publicadas no Jornal O Paiz, em 1895-1896,
sob o título de A Podridão do Vício. Ademais, o estudo das crônicas de Ferreira da Rosa
será articulado aos textos historiográficos sobre o tema, tais como: SOARES (1992);
MEDEIROS (1992); ENGEL (1989), o que nos permite desvelar véus que muitas vezes
encobriram as polacas. Dessa forma, é possível fazer com que a história de um grupo
de "vencidos", usando o termo de BENJAMIM (1985), possa brilhar por instantes, ainda
que fugidios.
Palavras-chave: Cidade, crônica, mulher.

Abstract: The cities, regardless of being real or not, are made by their textual maps, in
which we can find their stories and characters. These elements were captured by many
different discourses, among which there is Literature. Concerning the growth of these
cities, the press became an important tool to spread the literary discourse by the end
of the 19th century and beginning of the 20th, being responsible for building a national
image, according to Benedict Anderson (2008). In this context, the chronicle was an
important genre, coming from the modernity and being "newspaper's daughter", in

1
Acadêmicos do Curso de Letras Português-Inglês da Faculdade de letras da UFRJ, Bolsitas PIBIC/CNPq
2014-2015 e 2015-2016. Docente do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da
UFRJ. Docente do Programa Interdisciplinar de Pós- Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ. Este
trabalho contou com o apoio do CNPq, por meio de Bolsa de Iniciação científica para os acadêmicos e
Bolsa de Produtividade em pesquisa PQ2 para a Docente. Esse trabalho constitui resultados do projeto
desenvolvido no âmbito do Programa Institucional de Iniciação Científica 2014-2016.
other words, a prototypical urban narrative. In this perspective, this article intends to
analyze the presence of Jewish prostitution in Rio de Janeiro throughout the chronicles
by Francisco Ferreira da Rosa, published in O Paiz, in 1895-1896, entitled A Podridão
do Vício. Besides, the study of these texts will be articulated to historical studies about
the theme, such as SOARES (1992), MEDEIROS (1992) and ENGEL (1989); which allow
us to discover the veils that many times hid these women. Therefore, we aim to tell
the "history of losers" using the concept by BENJAMIM (1985).
Key words: City, chronicle, woman. 2

I. Introdução
O século XIX foi atravessado por profundas transformações nos
campos político, social e cultural. A modernidade engendrada no século
XIX, imersa na era industrial, trouxe, de acordo com Nízia Villaça e Fred
Góes, novos elementos para a vida coletiva nas grandes cidades,
ocasionando transformações na vida econômica, no trabalho, nas relações
sociais, na vivência privada das pessoas nas cidades e no nascimento da
moderna urbe que antecedeu a vida metropolitana atual. (VILLAÇA; GÓES,
1998, p. 38.). Nesse cenário, Marshall Berman expressa muito bem a
modernidade como turbilhão:

Existe um tipo de experiência vital - experiência de tempo e


espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e
perigos da vida - que é compartilhada por homens e mulheres
em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de
experiências como “modernidade”. Ser moderno é encontrar-
se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria,
crescimento, autotransformação e transformação das coisas
em redor - mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que
temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência
ambiental da modernidade anula todas as fronteiras
geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e
ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade
une a espécie humana. Porem, é uma unidade paradoxal,
uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num
turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e
contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer
parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que
é sólido desmancha no ar”. (BERMAN, 1986, p.11.)
3
Para vislumbrarmos o ponto de vista original do qual parte Marshall
Berman e ilustrarmos de maneira mais abrangente a referida conjuntura,
cabe pontuar brevemente um trecho da análise feita por Marx e Engels:

Essa subversão contínua da produção, o ininterrupto abalo de


todas as condições sociais, a permanente incerteza e a
constante agitação distinguem a época burguesa de todas as
épocas precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais
antigas e cristalizadas, com seu cortejo de representações e
concepções secularmente veneradas; todas as relações que as
substituem envelhecem antes de se consolidarem. (MARX;
ENGELS, 2001, p.33)

A tênue fronteira entre os domínios públicos e privados a partir da


ascensão do capitalismo industrial do século XIX modificou o cotidiano e,
consequentemente, a identidade do indivíduo, que passou a ser
constituída a partir das influências do desenvolvimento tecnológico e da
industrialização. Podemos dizer que o século XIX foi um momento de
ruptura, transformação e adoção de novos valores e referências derivadas
do que chamamos de modernidade. O novo se sobrepõe à tradição, o
individual sobre o coletivo, o privado sobre o público e adventos como o
consumo e a técnica derivados do capitalismo industrial tornam-se
símbolos a representar uma nova era. Assim, a cidade foi um dos grandes
símbolos dessa modernidade industrial do século XIX. De acordo com Luiz
Antonio da Costa Pereira:
Uma das grandes expressões de modernidade ao longo da
história está representada pela cidade – entendida aqui como
um espaço social, econômico e territorial, transformado em
sua originalidade, onde se dá toda a dinâmica interativa dos 4
agentes presentes desse espaço. Inserida no contexto de
modernidade - representado institucionalmente pelos
capitalismo e industrialismo, pela vigilância e pelo poder
militar a cidade é um significativo símbolo cultural da
sociedade humana. Plena daqueles ingredientes que a
definem e suportada por esses componentes institucionais
exerce certo fascínio sobre as pessoas atraindo-as para si,
para o mundo urbano, para as luzes e para as cores. (PEREIRA,
2001, p. 3.)

Desse modo, o espaço urbano engendrou diversos temas e motivos


para a literatura do século XIX, tendo criado uma tradição dentro da
representação literária, quando do surgimento dos primeiros centros
urbanos. A sedução e a desilusão da cidade forneceram temas e posturas
que atravessaram a literatura, na qual a cidade figura mais como metáfora
do que como lugar físico, como bem afirmam Bradbury e McFarlane:
De fato, para muitos escritores, a cidade chegou a se
converter numa analogia da própria forma. E se o
Modernismo é uma arte especificamente urbana, em parte é
porque o artista moderno, tal como seus semelhantes, foi
capturado pelo espírito da cidade moderna, que em si é o
espírito de uma sociedade tecnológica moderna. (BRADBURY;
MCFARLANE, 1999, p. 77).

A cidade moderna do século XIX passa a ser o locus privilegiado em


que se podem observar as contradições da modernidade: de um lado, as
capitais culturais, com todas as suas novidades cosmopolitas; de outro, o
caótico espaço que, exclui para as margens os espoliados do sistema
capitalista, representados pelos trabalhadores, mendicantes e prostitutas,
o que constitui um gênero denominado de fisiologia da cidade
(BENJAMIN, 1994), sendo este um fenômeno também ocorrido no Brasil. 5

Walter Benjamin nos informa que em Paris, a partir de 1840, as


fisiologias surgem como um gênero literário próprio para satisfazer o
interesse do pequeno-burguês. As fisiologias surgem como publicações de
bolso para dar conta do interesse em explorar os tipos que habitam as
feiras, nas ruas e exposições, e que virão evoluir em folhetins e
publicações concorrendo para reproduzir a natureza de bonomia e
inofensividade invocada aos padrões burgueses da época:
Para o flâneur, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas
são um adorno de burguês; muros são a escrivaninha onde
apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas
bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após
o trabalho, observa o ambiente. Que a vida em toda a sua
diversidade, em toda a sua inesgotável riqueza de variações,
só se desenvolva entre os paralelepípedos cinzentos e ante o
cinzento pano de fundo do despotismo: eis o pensamento
político secreto da escritura de que faziam parte as fisiologias.
(BENJAMIM, 1994. p. 35).

Benjamin lê a modernidade por meio da obra de Baudelaire


indicando importantes aspectos no fazer artístico em tempos modernos,
como a inserção do artista no mercado e nas ruas, o que altera a
percepção do objeto artístico.
No mesmo momento, a ascensão do jornal faz com que a crônica se
consolide como grande marco. Esse gênero será o objeto de estudo do
presente trabalho e, por isso, é importante pensar em suas características
e contexto de aparição. Na virada do século XIII para o XIX, surge, no
periódico francês Journal des Débats, o gênero textual que se tornaria 6

uma das principais expressões da narrativa na Literatura moderna. Em


linhas gerais, são textos responsáveis por reproduzir um retrato da vida
cotidiana, fazendo uso de uma linguagem simples e de fácil acesso. A
crônica se constituiu como um espaço de informações sobre as pessoas
comuns e sobre o cotidiano das cidades, seus tipos populares, casos
típicos, as ruas e anedotas. Essas curtas narrativas são, por definição,
retrato da sociedade em harmonia com acontecimentos contemporâneos.
Sendo assim, não é difícil entender a razão pela qual seu veículo de maior
circulação seja o jornal.
Antônio Candido pontua, em A vida ao rés-do-chão, que a crônica
“Graças a Deus” não é um “gênero maior” porque sendo assim ela fica
mais perto de nós. (CANDIDO, 1992, p.13). Assim, evidencia-se como esse
gênero textual dialoga com a sociedade de forma prosaica e espontânea.
Ainda sobre seu surgimento, diz Machado de Assis, em O nascimento da
crônica:
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica;
mas há toda a probabilidade de crer que foi coletânea das
primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a
merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do
dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma
dizia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a
camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar
das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às
tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa
mais fácil natural e possível do mundo. Eis a origem da
crônica. (ASSIS, 2007, p.13).

Em A vida ao rés-do-chão, Candido assinala a constituição da


7
crônica, esclarecendo que se trata de um texto próximo à coloquialidade e
à rapidez, sem apresentar, contudo, conteúdo superficial:

Por meio dos assuntos, da composição solta, do ar de coisa


sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à
sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora
uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais
natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização
lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a
outra mão certa profundidade de significado e certo
acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma
inesperada embora discreta candidata à perfeição. [...] Em
lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de
adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele
uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade
insuspeitada. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas
formas mais diretas e também nas suas formas mais
fantásticas, sobretudo porque quase sempre utiliza o humor.
(CANDIDO, 1992, p. 13).

Seguindo o mesmo raciocínio, Arrigucci Jr nos traz um olhar acerca


desse gênero literário que se coaduna com as considerações de Candido:

A crônica se situa bem perto do chão, no cotidiano da cidade


moderna, e escolhe a linguagem simples e comunicativa, o
tom menor do bate-papo entre amigos, para tratar das
pequenas coisas que formam a vida diária, onde às vezes
encontra a mais alta poesia. (ARRIGUCCI, 1987, p. 55).
Tendo em vistas os aspectos e motivações da crônica, é possível
analisar de maneira mais minuciosa a relação entre literatura e cidade,
que, no início do século XX, estreitou-se. Sem dúvida, a urbe passar a ser
mais do que uma temática dentro da escrita para se tornar o “palco para
encenação do progresso” (BENJAMIN). Incontestavelmente, o fenômeno 8

urbano e essa “encenação do progresso” puderam abarcar muitas culturas


e países, dentre eles, o Brasil.

II- A Modernidade no Rio de Janeiro

Em 1808, a família Real mudou-se para o Rio de Janeiro, que se


tornou a capital do Brasil. Ao mesmo tempo, os ventos do Moderno
traziam, da França para o Brasil, o modelo não só de cidade, mas de
modernidade e progresso, pois Paris era considerada o centro de
irradiação da cultural universal e capital do século XIX.

Em 1903, Pereira Passos começou a maior reforma do Rio de


Janeiro, conhecida como Bota Abaixo, que tinha por objetivo dar ao Rio o
charme das ruas de Paris. O prefeito queria dar fim ao país do atraso e dar
ao Rio características de uma cidade Moderna. Como frutos da reforma de
Pereira Passos, estão o Theatro Municipal, o Museu Nacional de Belas
Artes e a Biblioteca Nacional, que fizeram com que o Rio se tornasse um
polo irradiador de cultura para as outras cidades do Brasil. O Porto do Rio
recebia as principais mercadorias que vinham do exterior e então
distribuía para os estados restantes.
A partir daí, começa a surgir uma cidade moderna que tinha como
modelo a Paris do século XIX e das reformas de Haussmann, em nome de
uma modernização e de um apagamento do passado. Por esse motivo, os
casarões antigos transformados em cortiços, por exemplo, foram
demolidos, em nome do saneamento e da higienização da cidade. Esse 9

período nascido do turbilhão em êxtase da modernidade carioca


corresponde à Belle Époque, “um período de euforia de que a civilização
brasileira participou vivamente.” (BROCA, 2005, p. 13)

Segundo Broca:
Osvaldo Cruz inicia a campanha pela extinção da febre
amarela e o Prefeito Pereira Passos vai tornar-se Barão
Haussmann do Rio de Janeiro, modernizando a velha cidade
colonial de ruas estreitas e tortuosas. Com uma diferença:
Haussmann remodelou Paris, tendo em vista objetivos
político-militares, dando aos “boulevards” um traçado
estratégico, a fim de evitar as barricadas das revoluções
liberais de 1830 e 48; enquanto Pereira Passos se orientava
pelos fins exclusivamente progressistas de emprestar ao Rio
uma fisionomia parisiense, um aspecto de cidade europeia.
Foi o período do “Bota abaixo.” (BROCA, 2005, p.13)

Essa fase representou um momento histórico consagrado pelo luxo


dos grandes salões, o charme dos cafés e a riqueza da alta sociedade.
Contudo, por trás de toda essa ostentação e charme da cidade, reinava a
pobreza e a miséria de grande parte da população. É aí que se encontram
os avessos da Belle Époque, vistos nas tristes cenas cotidianas que os
cronistas foram responsáveis por imortalizar. Dentre esses autores, João
do Rio, grande responsável pela consolidação da crônica-reportagem, é
exemplo contundente de como a crônica foi usada para que fossem feitas
essas denúncias. Em seu texto As mulheres mendigas, presentes na
canônica coletânea A alma encantadora das ruas, o olhar crítico do
flâneur toca na mesma dolorosa temática trabalhada por Ferreira da Rosa
e, por isso, precisamos enfocá-la, ainda que brevemente: 10

Eram amorosas exploradas, ardendo ainda em raiva passional,


eram vítimas do caftismo sentindo no lábio o freio de
lenocínio, eram cocottes do chic, escalavradas de sífilis, na
dor do luxo passado, e velhas, velhas sem pecado, que a
miséria, a ingratidão e a misteriosa fatalidade desfaziam nos
mais amargurados transes. Nunca os descabelados
românticos imaginaram tão torvos quadros. Já quando se lhes
pergunta o nome com bondade, a surpresa estala em choro.
(...)
— Josefina Veral, sim, senhor. Vim como criada. Um homem
raptou-me; vivi com ele seis anos. Entreguei-me à
prostituição explorada por dois malandros. Roubavam-me, a
moléstia acabou a obra... Não posso trabalhar. E de dentro de
sua negra boca saem descrições satânicas da vida que a
inutilizara. (RIO, 2012, p. 162)

De um lado, a cidade representava o grande progresso da sociedade


moderna, por outro, entre toda a pobreza e péssima qualidade de vida,
mulheres judias foram obrigadas a se prostituírem nos bordéis da cidade.
Beatriz Kushnir, em importante estudo sobre o assunto, reconstituiu a
trajetória e os laços de solidariedade e sociabilidade das prostitutas
polacas, retirando-as da vala comum. Através de documentação inédita,
deu nomes e rostos a estas mulheres até então sem uma identidade e sem
direito a uma lápide no cemitério. (KUSHNIR, 1996.).
Nesse contexto de modernização, a cidade recebe fluxos
migratórios de diversas partes do mundo, entre elas de pessoas oriundas
do Leste Europeu, dentre as quais se encontravam as judias polacas. De
acordo com Luis Carlos Soares, elas chegaram ao Rio de Janeiro em 1867 e
aqui eram distribuídas por áreas centrais da cidade (Catete, Glória, Lapa e 11

Avenida Central):

O embarque para o Rio dava-se no porto de Marselha,


que era “o ponto de marcha de todos os caftens”.
Inclusive, havia nesta cidade do sul da França um
mercado de compra e venda dessas mulheres,
organizado pelos próprios “caftens” que agiam em
diversas partes do mundo. Um mercado semelhante,
mas em menores proporções, foi por eles organizado
no Rio de Janeiro, numa casa de leilões na Rua
Uruguaiana, onde promoviam as suas reuniões.
(SOARES, 1992, p. 58).

Vale ressaltar que o fato de os caftens virem para a América latina


não se tratava de coincidência. Havia, a exemplo do Brasil e da Argentina,
uma cultura que tolerava a prostituição, além de um desequilíbrio entre o
número de homens e mulheres. Paralelo a isso, a corrupção de políticos e
policiais refletia em uma repressão branda sobre tais atividades. Beatriz
Kushnir elucida essa conjuntura:

As Américas, que vinham recebendo contingentes masculinos


em grande proporção, constituíam um grande potencial.
Relativizar os trajetos possíveis da imigração e do imigrante é
poder compreender suas variantes em um histórico nada
linear ou previsível. Semelhante aos sonhos que envolviam os
EUA e a Argentina, o Brasil era visto também como um
eldorado, particularmente para o tráfico. (KUSHNIR, 1996, p.
67)

Ferreira da Rosa também havia percebido tais circunstâncias, o que


o levou a considerar o continente americano como uma terra propícia à
instalação dos caftens: “O israelita degenerado quer dinheiro, e não faz 12

questão de meios para obtê-lo. (...) A America é campo vasto para seus
negócios immundos; para a America elle remove a sua tenda nefanda.
(ROSA, 1896, p. 21). 2
Sendo assim, conforme nos aponta Soares, a cidade da Belle Époque
trazia, em suas franjas, personagens que estavam distantes dos salões,
como foi o caso das Judias Polacas, mas que possuem sua importância na
composição do mosaico citadino, tendo em vista que são também sujeitos
construtores da história. A presença dessas mulheres, imersas na podridão
subalterna do esquecimento, não passou despercebida, uma vez que
suscitou inúmeros olhares desde os documentos produzidos pela
imigração aos relatórios de polícia, chegando à literatura por intermédio
da crônica jornalística. Sua existência, porém, era indesejada e incômoda
dentro da paisagem luxuosa da modernidade carioca. Isso é evidente na
crônica Antes de tudo, de Ferreira da Rosa, integrante do grupo de textos
que serão enfocados por este trabalho:

2
Nas citações feitas das crônicas de Ferreira da Rosa, optamos pela reprodução original de seu texto, o
que implica no uso do Português da época.
É doloroso e desagradabillissimo o trabalho de revolver
podridões. Ninguem ha que por gosto, nem mesmo simples
curiosidade, baixe da esphera sã em que vive, aos lodaçaes
pútridos em que a sociedade immerge de um lado, tranquila,
como que fazando cessão de uma parte do seu corpo,
julgando que essa se corromperá sósinha, sem comunicar-lha
a gangrena. (ROSA, 1896, p. 5) 13

Antes de nos debruçarmos para a visão geral das crônicas, é preciso


por em tela, mesmo que brevemente, alguns fatos biográficos a respeito
do autor. Francisco Ferreira da Rosa nasceu em 20 de maio de 1864, na
cidade Angra do Heroísmo: Ilha Terceira, Açores, Portugal. Em 1878, aos
quatorze anos, muda-se para o Rio de Janeiro. Ao longo dos anos, leciona
Português, Geografia e Aritmética a jovens comerciantes. Mais tarde, foi
professor do Colégio “Abílio” e do Liceu Literário Português. Em 1889,
naturalizou-se brasileiro. Já nos últimos anos do século XIX, tornou-se
redator do jornal “O Paiz”, no qual escreve uma série de crônicas acerca
das judias polacas. Faleceu repentinamente no dia 8 de março de 1952,
aos 87 anos, no Rio de Janeiro.
Em meio ao dicotômico e turbulento cenário da Belle époque
carioca, o escritor Ferreira da Rosa produziu, para o Jornal O Paiz, uma
série de crônicas, intituladas A Podridão do Vício durante o ano de 1896.
Seus textos foram reunidos e publicados ao final desse mesmo ano em
livro com o título de O Lupanar: Estudo sobre o caftismo e a prostituição
no Rio de Janeiro. O objetivo deste trabalho será analisar e compreender
essa obra dentro da conjuntura anteriormente descrita.
As crônicas de Ferreira da Rosa são impactantes, pois descrevem a
podridão à qual as mulheres eram submetidas pelos chamados caftens,
homens que enxergavam à sua frente apenas a riqueza e viam, no Brasil,
um território propício para a venda de sua mercadoria. Nesses textos, o
autor deixa clara a intenção “higienizadora” de seu trabalho, com 14

pretensões de denunciar as mazelas pútridas que cercavam, segundo ele,


o Rio de Janeiro. Nesse sentido, a primeira de suas crônicas já apresenta
esses objetivos ao pôr em cena seu “cego altruísmo”:

Ninguem ha que se disponha a tamanho sacrificio senão


forçado pelas contingencias do dever ou, então, impulsionado
pelo amor do seu semelhante, por um cego altruísmo, por um
intimo desejo de falar bem alto à sociedade descuidosa
annunciando-lhe com a mais brutal franqueza o gênero da
lepra que lhe corróe organismo, a grandeza dos cancros que
lhe minam a existencia. É esse ultimo o nosso caso. (ROSA,
1896, p. 5)

Mais adiante, reitera e sintetiza o intuito de sua “brutal franqueza”,


comprovando o caráter não apenas literário, mas jornalístico e sociológico
de seus textos. Suas crônicas são, portanto, verdadeiros estudos sociais do
Rio de Janeiro:

Fique, pois, bem evidente que o nosso objecto não é fazer


escandalo. O nosso alvo é o saneamento moral do Rio de
Janeiro. Mas, como isso não se póde obter à força de
reclamações platonicas (...) vamos desnudar as podridões do
vicio, vamos levantar a planta do theatro de todas as
devassidões, fazer a autopsia dos degenerados, desvendar a
Justiça, mostrar-lhe o dedalo monstruoso que nos deprime,
provar-lhe a inefficacia dos recursos que ella poz nas mãos da
policia e dos magistrados, para, com a energia maxima dos
desesperados, pedir a instituição das leis proprias, que
desafoguem a sociedade e cauterisem as chagas que lhe
corroem os membros. (ROSA, 1896, p. 8)

Antes de darmos continuidade à leitura de suas crônicas, é preciso 15


entender o papel da crítica sociológica na literatura, dentro da qual o
elemento subalterno, nesse caso, as judias polacas, deve ser interpretado
como sujeito construtor de um processo, não apenas como objeto. A esse
respeito, pontua Alfredo Bosi:

A crítica sociológica, estimulada pelo assunto da exclusão e da


marginalidade, deve, portanto, acautelar-se quando enfrenta
escritos ficcionais. A mente ideologizante abstrai e reduz as
diferenças na medida em que procede à força de esquemas e
tipos. Mas as vozes narrativas, quando vivas e densas,
reclamam a atenção para o que é complexo, logo singular. De
resto, quem garante que o chamado homem simples seja tão
simples assim? Há uma segunda maneira de lidar com a
relação entre o excluído e a escrita. Em vez de tomar a figura
do homem sem letras como objeto, procura-se entender o
pólo oposto: o excluído enquanto sujeito do processo
simbólico. (BOSI, 2008, p. 163.).

Podemos perceber, dessa forma, como Ferreira da Rosa foi inovador


e, em certa medida, avant la lettre no que tange à História Nova iniciada a
partir da Escola dos Annalles. O autor antecipa a releitura de uma História,
que, até então, era vinculada apenas aos grandes eventos das ciências
sociais. Para isso, o cronista põe em cena os excluídos, subalternos e
marginalizados, conseguindo, assim, criar aquilo que Le Goff chamou de
Apogeu do documento e decadência do Monumento. Existe, portanto, um
retrato da história dos vencidos, não mais a dos vencedores, para usar o
termo de Walter Benjamin.
Sob o ponto de vista literário, conseguiu, por intermédio da crônica
jornalística, apontar temas escondidos por trás da euforia da Belle 16

Époque. É interessante, no estudo de Ferreira da Rosa, analisar sua


capacidade de denúncia. O autor defende uma classe sem voz, sem moral,
sem dignidade, sem expressão, sem identidade e sem cidadania,
considerada a escória da sociedade. Publicando seus trabalhos em um
jornal de grande circulação, ele vai muito além da denúncia e passa a ser
um grande intercessor daquelas mulheres consideradas impuras. Essa
defesa se dá uma vez que as distingue das demais prostitutas. Segundo o
olhar higienista de Ferreira da Rosa, a prostituição era altamente
condenável, as polacas, porém, eram vítimas desse processo, e não suas
causadoras.

A prostituição, por qualquer lado que seja encarada, é uma


voragem, abysmo sem fundo, monstro que se alimenta de
tudo quanto a sociedade tem de mais precioso; a honra, a
saude e o pudor são virtudes que estalam entre os dentes
desse asqueroso fantasma, que só distila miseria, crimes e
baixeza.
A prostituição é a maior prova da perversão de todas as
faculdades da alma; é a bestialidade, a lascivia e a sordidez,
avassalando tudo quanto ha na mulher de attractivo e nobre,
de seductor e meigo, para converte-la no ente mais abjecto e
mais despresizel da Creação.
A prostituição não se justifica, nunca se justificou, nem se
justificará jamais. Nas grandes capitaes onde ha prostitutas,
são ellas desprezadas como merecem, pois nada ha mais
repugnante do que vender ao primeiro chegado as graças do
seu corpo.
(...)
Ha, porém, que distinguir entre a messalina voluntaria, a
infeliz victima do proprio desequilibrio mental, das proprias
paixões desordenadas, e a messalina recrutada na Europa, 17
illudida nas aldeias do sul da Russia,da Polonia, da Turquia, da
Austria Hungria, não raro da Grecia e muitas vezes da
Roumania.
Ahi, então, o analysta vê-se obrigado a escalpelar uma coisa
hedionda, uma crença quasi fantastica, um crime inaudito: a
obra do infame caften. (ROSA, 1896, p. 9 -11)

Nas crônicas de Ferreira da Rosa, o narrador retrata


jornalisticamente como tudo acontecia, a forma como aquelas mulheres
eram enganadas, capturadas e exploradas por seus próprios maridos. A
partir daí, o cronista demonstra o processo de instalação desse sistema na
cidade e a maneira pela qual, ao chegarem ao Rio de Janeiro, eram
obrigadas a se prostituírem. Antes disso, porém, o autor exerce a faceta
histórica de sua literatura de maneira eficaz ao explorar a origem dessa
prática:

O primeiro que trouxe a esposa abandonou-a, porque era


esteril; ia nisso um arremedo de obediencia à lei mosaica.
Essa mulher prostituiu-se, e elle começou a tutelal-a.
Garantiu-lhe o aluguel da casa, que mobiliou sobriamente
com peças compradas nos seus correligionários adelos; ficou
espiando o movimento do alcouce; e, à noite, foi tomar conta
à nova Messalina. Soavam as 12 horas finaes do dia
astronomico; e, dizendo perante Israel: << Tu não és mais
minha esposa >>, fez-lhe ainda, talvez, companhia conjugal,
assegurando-lhe d’esse modo a sua protecção amiga.
Estava, assim, iniciado o caftismo, tal como originariamente o
praticavam na Austria Hungria homens desbriados. O
primeiro judeu estava negociando a primeira mulher na
primeira cidade do Brazil. (ROSA, 1896, p.22)
18

Em relação a essa origem, é necessário lembrar que alguns


termos, como Zona do Mangue ou polaca, ainda permanecem no
imaginário da cidade. Isso ocorre, no primeiro caso, pela referência ao
Bairro da Cidade Nova e pelo Canal do Mangue neste mesmo bairro, cujas
imagens foram imortalizadas por Lasar Segall, na série de gravuras
intituladas “Mangue”. Sobre essa região, é relevante ressaltar que na
década de 1920, com as progressivas repressões policiais, as judias
polacas foram obrigadas a se concentrarem na Praça Onze, passando a
conviver com o restante da comunidade judaica. Nesse período, a região
era conhecida como o bairro dos judeus, sendo também denominada
Zona do Mangue, por causa do referido canal que atravessava o local.
Mesmo se ainda percorrermos o Cemitério Israelita de Inhaúma,
encontramos um testemunho da passagem das Polacas pela nossa cidade,
que é o chamado cemitério da associação das judias polacas, fundado em
1906.3

3
Há um trabalho da Historiadora Beatriz Kushnir sobre o Cemitério das Judias Polacas do Rio de Janeiro,
intitulado “Nomear é conhecer: as lápides das polacas no Cemitério Israelita de Inhaúma – um relato”.
In: História, imagem e narrativas No5, ano 3, setembro/2007 – ISSN 1808-9895 -
http://www.historiaimagem.com.br. Destacamos que a Historiadora Dra. Beatriz Kushnir é grande
estudiosa do assunto acerca da história da prostituição das judias polacas e de suas Sociedades
Beneficentes de Ajuda Mútua, tendo sido a pioneira nesses estudos, com a publicação do livro “Baile de
máscaras- Mulheres judias e prostituição.”
A ideia por trás de “Polacas”, de acordo com Gruman (2006),
simbolizava a imagem das mulheres das camadas mais pobres e, em geral,
habitantes das regiões agrícolas e industrialmente atrasadas do
continente europeu. Tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, o termo
“polaca” significava a meretriz estrangeira, não necessariamente oriunda 19

da Polônia, mas dos países do Leste Europeu. O termo abrangia uma gama
de mulheres loiras vindas dos países da Europa oriental que o imaginário
popular unificava em um único rótulo. No imaginário masculino, havia
uma atração exercida, seja a polonesa, a austríaca, a russa ou a judia,
constituindo-se um imaginário voltado para a atração por regiões
distantes e de povos distintos. Segundo Margareth Rago:

Ocorriam histórias fantásticas de nobres, num país onde até


então grande parte das prostitutas provinha dos continentes
de escravas e ex-escravas negras, principalmente no Rio de
Janeiro. Mulheres loiras, ruivas, claras, delicadas, de olhos
verdes ou azuis tornavam-se mais misteriosas e inatingíveis
para uma clientela masculina seduzida pelos mistérios
fantásticos da vida moderna e impulsionada pelo desejo de
desvendar física e simbolicamente os labirintos. (RAGO, 1991
p. 294).

O aliciamento de moças oriundas do Leste Europeu ocorreu pelo


processo de empobrecimento daquela da região bem como na
transformação profunda ocorrida nas áreas rurais do Leste Europeu,
tendo em vista que nesta porção da Europa não se conseguia acompanhar
o acelerado processo de industrialização de grande parte do continente e
o imaginário urbano da cidade levava um grande contingente a migrar
para a cidade ou para outros países. (KUSHNIR, 1996).

III. As Polacas em O Lupanar, de Ferreira da Rosa


A chegada das polacas ao Rio de Janeiro se deu em fins do século 20

XIX, por volta de 1867. De acordo com Gruman, em setembro de 1879,


uma notícia do Jornal do Commercio dá conta de que o Dr. Félix da Costa,
terceiro delegado de polícia, havia concluído um inquérito que objetivava
identificar os indivíduos que exploravam a prostituição, prática conhecida
por lenocínio, remetendo-o ao chefe de polícia da capital federal. Dentre
as informações coletadas, verificou-se a existência de uma associação
composta de judeus russos, alemães, austríacos e de outras
nacionalidades que contratavam mulheres na Europa para o Brasil
(GRUMAN, 2006, p. 89). Essa associação não poderia estar fora das
denúncias expostas por Ferreira da Rosa:

O caftismo vulgarisou-se entre os judeus sem escrupulos, e


cada qual timbrava em reunir a seu serviço o maior numero
de mulheres.
Então, começou, d’aqui para diversas cidades do velho
mundo, a romaria dos recrutadores dessas desgraçadas. O
processo empregado pra illudir as incautas familias de aldeias
pobres é ainda hoje o mesmo, com pequenas variantes. O
caften dirige-se à Russía, à Austria ou à Alemanha, escolhendo
as immediações da capital para effectuar a suas conquista ou
antes para alcançar a sua presa. (ROSA, 1896, p. 23)
Por parte da comunidade judaica, as chamadas judias polacas eram
tratadas com exclusão, constituindo mesmo um “tabu na Comunidade
Isaraelita” (KUSHNIR, 2007). Nesse sentido, vale ressaltar que esse tabu foi
enfrentado pela historiadora Beatriz Kushnir quando iniciou seu trabalho
nos anos 1980, época de renovação nos estudos de História. Essas 21

mudanças fizeram com que pesquisadores dessem mais atenção aos


personagens geralmente excluídos dos relatos oficiais, como as
prostitutas. Tal debate enseja uma reflexão sobre a complexa relação das
mulheres que praticavam a prostituição com a sociedade na qual estavam
inseridas, o que demonstra um dos muitos nós que mobilizavam o Rio no
final do século XIX, período em que a então capital da República, em
rápida expansão, viu-se obrigada a lidar com a realidade de uma
metrópole. Assim, imigração, prostituição e criminalidade passaram a
fazer parte do dia a dia de uma cidade, que subitamente ia deixando a sua
feição de cidade colonial e provinciana, para tornar-se uma cidade
moderna criada pela invenção das grandes reformas urbanas.
Em sua série de crônicas no jornal O Paiz, o jornalista Francisco
Ferreira da Rosa esquadrinhou o universo das prostitutas judias,
chamadas na época de "polacas", termo que ficou registrado nos
dicionários como sinônimo de meretriz. Sucesso entre os leitores da
época, suas crônicas permaneceram durante muitas décadas fora de
catálogo.4 Essa obra nos descortina um momento único na história do Rio,

4
Em 2009, o neto do autor, Carlos Ferreira da Rosa, organizou uma reedição da obra, com o auxílio de
Verena Kael e Matilde Teles, diretoras do documentário “Aquelas mulheres”, o qual aborda a temática
dessas mulheres esquecidas. O neto do jornalista produziu uma edição de apenas 100 exemplares, os
quais foram doados a bibliotecas e centros de referência, mantendo o português da época.
“Affrontando commodidades, conveniencias, odios e ingratidões,
penetrámos n’uma cidade completamente nova, Babylonia
desconhecida...”. Em seus textos, o autor registra a rotina daquela
comunidade numa escrita que reflete a visão geral da sociedade da época,
marcada por um misto de curiosidade, preconceito e espanto. Na Edição 22

de O paiz, de 25 de março de 1896, n. 4192, o Editor agradece apoio do


Editor do Diário de Santos e reproduz a carta recebida deste, com a
moção de apoio ao combate do caftismo na cidade, reiterando o
compromisso de Ferreira da Rosa e do Jornal O Paiz na denúncia de tal
atividade.
Ao abrir a série de crônicas e levar seu leitor a conhecer uma
“Babylonia desconhecida”, Ferreira da Rosa traça um panorama da
prostituição carioca, estabelecendo uma cartografia das ruelas do Centro,
nas quais o cronista se propõe a adentrar com o objetivo de moralizar e
sanear esse submundo, narrando a obscuridade dos avessos da Belle
époque, o que fica bem expresso no próprio título da série: A podridão do
vício. Dessa forma, o caráter sociológico e moralizante de seus escritos é,
mais uma vez, reiterada.

No centro mais geometrico da capital da Republica, tem o


Vicio o seu mais faustoso arraial. Ahi o encontrámos debaixo
das suas tres formas mais caracteristicas: a prostituição, a
jogatina e o roubo. Ahi o estudámos. (ROSA, 1896, p. 8)

Ressalta-se, ainda, que a imagem da prostituição no século XIX foi


construída no imaginário e nos discursos do clero, dos médicos, dos
juristas e dos literatos, a partir de uma diretriz regulamentarista,
influenciada pelo positivismo, pelo higienismo e pelo cientificismo que
vigorou no período, reverberando o pensamento de Lombroso, Parent-
Duchatelet, Taine, entre outros. Os médicos franceses, por exemplo,
impuseram a sua estratégia de controle e regulamentação do meretrício, 23

principalmente, na cidade de Paris. Na esteira dos seus pares europeus, os


médicos brasileiros também adotaram medidas similares, vendo a
prostituição como grande mal, que deveria ser combatido. Em decorrência
dessas mentalidades, é possível encontrar discurso semelhante no
jornalismo e na crônica publicada na imprensa, da qual Ferreira da Rosa é
exemplo claro e contundente. Tendo em vista esse cenário, Soares nos
esclarece a questão:

Em 1845, o Dr. Lassance Cunha denunciava em sua tese o


crescimento desenfreado da prostituição na cidade do Rio de
Janeiro e, consequentemente, a disseminação de muitas
doenças venéreas (principalmente a sífilis) por todas as faixas
etárias da população. (SOARES, 1992, p.26)

A partir de 1880, com o grande desenvolvimento da imprensa,


dentro das regras do jogo de poder e prestígio necessários à conquista do
público leitor, os periódicos ganharam um aspecto “imparcial” e
veiculador da “verdade”. Isso era reforçado pelo recurso da ilustração e da
fotografia, cuja “missão civilizadora” direcionava comportamentos e
conceitos, através dos discursos. Nesse contexto, faz-se importante trazer
à tona as ideias de Fairclough, segundo o qual “os discursos não apenas
refletem ou representam entidades e relações sociais, eles as constroem”
(2001, p. 22).
Nesse sentido, ao realizarmos nossa leitura do bloco de crônicas
reunidas em A Podridão do vício, num total de 25 textos, percebemos que
nesse conjunto o cronista recorre diversas vezes em seus enunciados à 24

formação discursiva policial, tendo em vista que, em seus textos, ele lança
mão de reportagens, casos e dados fornecidos por delegacias, citando,
inclusive, o discurso de delegados. Em texto publicado no dia 20 de Maio
de 1896, essa relação fica evidente:

Quem pretende justiça deve começar fazendo justiça.


E não é senão pelo prazer de exercel-a que o autor d’este
opusculo se apressa em declarar que deve todas as
observações nelle contidas à guia de uma autoridade policial
do Rio de Janeiro.
Que o Sr. Luiz Bartholomeu de Souza e Silva, delegado do Dr.
Chefe de policia na 4ª circumscripção urbana perdôe a
revelação que ahi fica. O facto é, porém, que só uma
auctoridade zelosa póde conhecer profundamente todos os
escaninhos physicos e todas as cavernas moraes da parte da
cidade que tem sob sua vigilância; o certo é que só um
homem independente póde franquear as suas obras a exame,
concurrendo para que se esquadrinhe tudo quanto o rodeia.
(...)
Por isso como homem, como brazileiro, como patriota e como
autoridade o Sr. Luiz Bartholomeu conquistou a admiração do
autor que n’estas linhas procura render-lhe a mais justa
homenagem. A elle deve os conhecimentos que adquirio
sobre esta gente que estudou. (ROSA, 1896, p. 3)
Ademais, um aspecto que chama a atenção é a adoção de um
discurso, em certa medida, antissemita, vinculando incessantemente a
imagem do caften à do judeu, sem ligá-lo a outras nacionalidades. Paralelo
ao retrato da situação econômica vivida na Europa pela comunidade
judaica, o autor se concentra, em grande parte, numa retratação 25

totalizante dos fatos, segundo a qual a mulher é vista como prisioneira e,


portanto, sempre vítima do caften.

De sorte que no meio degradante em que a prostituição


ergue o collo, ameaçando a sociedade com o insulto do seu
virus peçonhento, avulta a cellula pôdre, o homem fézes, o
typo nojento do recrutador de mulheres para o exercito do
Vicio – israelita degenerado, a envergonhar a raça humana, a
enxovalhar o Rio de Janeiro. (ROSA, 1896, p.11)

Mais adiante, sua postura antissemita de denúncia a esse grupo de


judeus fica ainda mais evidente. Ainda que Ferreira da Rosa tenha sido um
grande responsável por denunciar a exploração das polacas e consolidar
na história vozes emudecidas pela força do tempo, é imprescindível
esclarecer que tal postura, embora seja em grande parte fruto do anseio
higienista do autor, foi responsável por atrocidades ao longo da história.
Assim, torna-se evidente a visão maniqueísta utilizada na composição do
cenário de um caften vilão contra a polaca escravizada:

O publico está farto de ouvir este termo da nossa gyria –


caften; sabe perfeitamente o que elle exprime; ignorando,
porém, a natureza, o caracter, a vida de relação e a
psychologia daquillo que elle significa. É nesse ponto que
vamos lhe ser uteis.
O caften, de ordinário, é um israelita, é um judeu.
(...)
Ora, não admira que dessa raça, que o vilipendio de seculos
tanto desfigurou, e de que hoje poucos representantes se
conservam fieis à lei e puros diante do seu Deus; dessa raça
experimentada no soffrimento e douta na arte de conseguir o
bem-estar material, embora a consciencia viva estrangulada 26
pela necessidade de fingir; dessa raça hoje, portanto,
decadente brote um ramo degenerado, para constituir o
caften que assola as cidades sul americanas, principalmente o
nosso bello Rio de Janeiro. Asqueroso producto da
degeneração humana! (ROSA, 1896, p. 13-18)

Não se pode pensar, contudo, que os caftens formavam um grupo


homogêneo. Embora o discurso totalizante de Ferreira da Rosa enfoque
insistentemente os judeus, havia, dentre eles, subdivisões que nos provam
a pluralidade desses indivíduos. O argentino Julio Alsogaray e o brasileiro
Anésio Frota Aguiar, ambos delegados de polícia da primeira metade do
século XX, sistematizam esses homens em três subgrupos: o apache, o
sentimental e o caften judeu.

Nesta perspectiva, o tipo apache é o cáften francês, que vive


e age de maneira individualista sem nenhuma sociedade
secreta ou sistema de auto-ajuda. Domina suas mulheres pelo
terror e violência, porém, nunca com arma de fogo. A força
desses homens estava em suas navalhas. O segundo tipo é o
cáften sentimental, identificado como o argentino, o
portenho em especial. Caracterizado pelo papel de gigolô,
não ameaça nem violenta, controla as mulheres pelo coração.
O terceiro é o cáften judeu. Nas análises dos dois delegados,
pode-se perceber toda a problemática de uma visão
preestabelecida a respeito desse último grupo,
profundamente marcada por um estereótipo. (KUSHNIR,
1996, p. 105)

O olhar de ambos os delegados são, não por coincidência, a mesma


que Ferreira da Rosa demonstra. A “visão preestabelecida” de que nos fala
Kushnir é evidente no olhar antissemita do cronista. Em diversos 27

momentos, podemos perceber que o jornalista ilustra os caftens judeus de


modo a desumanizá-los ao máximo, demonstrando como estes não
passam de mercenários frios e inescrupulosos, que não se afetam em
nada pelo sofrimento das polacas e, portanto, seriam os piores tipos
dentre as três categorias de caftens. Entretanto, é preciso estar atento a
radicalismos nessa retratação, uma vez que o estudo de Ferreira da Rosa
almeja buscar um registro fiel do quadro que existia à época no Rio de
Janeiro, com um viés mais jornalístico do que ficcional. Portanto, faz-se
imprescindível manter a leitura crítica das crônicas dispostas em A
podridão do vício tendo em mente que todo e qualquer estudo
historiográfico não pode ser resumido a visões simplistas dos fatos,
sobretudo porque “o mundo da prostituição e da marginalidade está
envolto em fantasias”. (KUSHNIR, 1996, p. 106)
Nesse contexto, é possível observar que as imagens lançadas pelo
cronista se circunscreveram no dualismo caften carrasco/prostituta
subjugada, sem levar em consideração que tais imagens eram, de certo,
simplificadoras e reforçavam um ideal de sociedade burguesa, sem ter
como horizonte que caftens e prostitutas não eram categorias fixas, mas
sujeitos que possuem histórias de vida e crenças, sendo, por isso,
copartícipes da historiografia. Esse maniqueísmo simplificador pode ser
confrontado pelos dados de Beatriz Kushnir:

Em 1889, o Império Russo elabora uma lista de prostíbulos


existentes: os judeus possuíam 203 (70%) das 289 licenças.
No mesmo ano, outro censo apontava 30 das 36 licenças de 28
exploração de lenocínio pertencendo a mulheres judias da
região de Kherson (...) Assim, há que se repensar a ideia que
cerca o tráfico e que o une a uma noção que vitima: de
pobres moças enganadas por homens que as raptavam e as
iludiam com falsas promessas de casamento. (KUSHNIR,1996,
p.63)

Ainda sobre essa questão, é inquestionável que as judias polacas, na


grande maioria dos casos, foram as vítimas do referido processo. Mostra-
se indubitável, também, o fato de que os caftens foram responsáveis por
sua opressão e sofrimento através dos casamentos propostos na intenção
de trazê-las como escravas sexuais ao Brasil. Todavia, assim como todo e
qualquer fenômeno estudado pelas Ciências Humanas, não se pode ter
um olhar limitador no que tange à categorização de “heróis” e “vilões”.
Ferreira da Rosa, contaminado por sua visão radical, ainda que
contundente e preciso em suas críticas, por vezes ignora o panorama geral
do que se passa e acaba preso por uma divisão pouco nítida que se esgota
ao vislumbrar grupos imutáveis na relação entre carrascos e suas escravas.
Por conseguinte, não se pode deixar de lado a complexidade de todo o
sistema que perpassa a prostituição e venda dessas mulheres:

O casamento permeia sempre as narrativas sobre o tráfico.


Uma das mais fortes justificativas para a existência deste
último está no engano que as jovens moças sofriam ao aceitar
propostas de casamento de judeus, vindo com eles para as
Américas. Tal perspectiva deve ser repensada, uma vez que
restringe essas trajetórias a um único modelo, que,
certamente, reflete a visão de papéis fixos desempenhados
por homens e mulheres. Os números já citados demonstram a
vinculação de judeus com a prostituição ainda na Europa, 29
ilustrando que não se pode dar às mulheres envolvidas
apenas um papel passivo. A ascensão de uma prostituta está
na sua possibilidade de possuir uma casa própria e, assim,
tornar-se uma caftina. Portanto, não existem apenas vítimas e
a rede é muito mais complexa. (KUSHNIR, 1996, p.67).
30
31

O discurso jornalístico, de modo geral, trazia em seu bojo uma


formação discursiva jurídica, o que se revela até mesmo na escolha do
assunto constante. Isso pode ser percebido no próprio tema, ou seja, o
caftismo. Apesar de o discurso ter o caráter conservador, a situação da
prostituta é de certa forma, tolerada, pois o que está em cena é a figura
do caften. Nesse sentido, percebe-se a presença do discurso jurídico e, de
acordo com o código penal, o jornalista reafirma a condenação do 32

lenocínio como crime para quem o pratica, realizando um recorte do


mundo da prostituição e do caftismo, de acordo com um discurso legalista
e regulamentarista. Entretanto, o autor não deixa de apontar as lacunas e
problemas da lei, reforçando, assim, o caráter de denúncia que propõe
com a sua escrita: “Vá o publico e vão as autoridades apreciando o
mecanismo da obra revoltante do caften, para bem sentirem a inanidade
das nossas leis diante destes leprosos propagandistas do vicio.” (ROSA,
1896, p. 31).
Ainda que o discurso de Ferreira da Rosa tenha tomado como
missão a denúncia e o combate à exploração da prostituta, ele também foi
reflexo de visões classistas, pois tais atividades foram consideradas por ele
como típicas das classes desfavorecidas, para quem era necessária a
intervenção policial. No contexto geral dos textos do jornalista, aparece,
como já abordado, um discurso antissemita e os caftens não encontravam
abrigo no meio das classes dominantes da sociedade carioca da época. Por
outro lado, tal fato não ocorria quando se tratava da prostituta francesa e
de seu caften, pois tal prostituição fora vista, em certa medida, como
signo de sofisticação e modernidade.
Tendo em vista a conjuntura na qual estão inseridos caftens e
polacas, a observação mais minuciosa da escrita de Ferreira da Rosa e os
casos por ele relatados funcionam como documento, mas também
constituem crônicas de ficção, uma vez que todas as histórias são
produtos de uma observação do escritor. Suas crônicas, assim como já
esclarecido na comparação com João do Rio, se alinham às reportagens,
uma vez que faz uso de uma narrativa que se encontra na intercessão 33

entre Literatura e Jornalismo.


O primeiro desses casos conta a história do caften que chega ao
Brasil depois de conhecer Buenos Aires, cidade que, juntamente com Nova
York, foi um dos “grandes portos de chegada dos imigrantes judeus e,
principalmente, das polacas” (KUSHNIR, p.68). Essa crônica recebe o título
de André Goldmann:

Em Dezembro, André Goldmann, um caften conhecido n’esta


capital, partiu da Europa em direcção a Buenos Ayres, com
mais uma mulher a juntar ao numero das que se prostituem,
constituindo-se fontes de renda para seus exploradores. Em
Buenos Ayres não acharam as coisas muitos correntes, e
vieram para o Rio de Janeiro. (ROSA, 1896, p. 31)

Ferreira da Rosa, a partir daí, narra o caso do caften e suas polacas


sob o olhar crítico que já pudemos analisar. Contudo, antes de dar
continuidade à crônica, é importante perceber como a judia polaca é vista
de uma forma distinta, trata-se de um elemento exótico dentro do
contexto latino-americano. Isso se reflete, inclusive, em seus costumes e
hábitos alimentares:
Wanda, polaca e catholica, tinha 19 annos; não falava
portuguez; trazia hábitos excessivamente devassos, e deu
logo as mais surprehendentes provas de rara extravagância
no paladar. As suas refeições nunca eram a horas regulares,
nem de regular natureza: comia pepinos e cebolas com pão e
sal. Não tomava banhos. (ROSA, 1896, p. 33)

Ao longo da narrativa, encontra-se uma trajetória muito comum no


que se refere à vida das polacas à época. Wanda adoece, vítima de febre 34

amarela, e é impossibilitada de continuar rendendo lucros ao caften. Por


causa disso, Goldmann obriga a mulher a se retirar do prostíbulo e tenta
mandá-la para um hospital, mas Wanda tem medo do que poderia
acontecer. A mulher, que já não tinha controle sobre seu corpo, o país que
habitava e a língua que ouvia, tem seus últimos vestígios de liberdade
roubados ao resistir que fosse levada para o hospital por Elisa, aquela que
auxiliava o caften. Ocorre, assim, uma cena de briga na qual a mulher
enferma é obrigada a cooperar com os interesses de Goldmann.
Ferreira da Rosa faz uso desse episódio para, mais uma vez,
denunciar os absurdos ocultos da Belle époque carioca. Contudo, dessa
vez o autor tematiza uma questão muito relevante em nossos tempos: a
banalização da violência pelos habitantes da grande cidade.

Recuou, então, negando-se a entrar; mas Elisa deu-lhe um


violento empurrão, forçando-a a acceitar o transporte
offerecido.
Esta scena vandalica entre mulheres corroidas pelo virus da
prostituição, dominadas pelo infame caftismo; esta scena
deshumana, este horroroso mixto do acerbo com a satanica
depravação de sentimentos, é bastante como nota da
dissolução que empolga uma capital. E passou-se esta scena à
plena luz solar, em plena rua das nossas mais centraes!
(ROSA, 1896, p.35)
Por fim, a prostituta veio a falecer sem ter recebido nenhuma visita
de seu caften. Nesse momento, fica claro como Goldmann, assim como os
demais caftens, não viam nessas mulheres absolutamente nada além de
uma mercadoria capaz de gerar lucro. São mulheres exploradas em vida 35
para serem apagadas depois da morte: “O caften, assim que teve a noticia
da morte, riscou-a da lista dos seus pertences, e... pensou n’outra para
substituil-a.” (ROSA, 1896, p. 36)
Depois desse relato, Ferreira da Rosa dá continuidade às
crônicas com o caso intitulado de Siegmond Richer, “um personagem
destes, cujo olhar magôa, cujo halito cresta, e cuja visinhança degrada.”
(ROSA, 1896, p.38) É interessante perceber, nesse caso, como o autor
mais uma vez enfatiza a função “civilizadora” que pretende ter com sua
escrita. Em vários momentos de seus textos, Ferreira da Rosa faz questão
enfocar a necessidade social de que dispõe o jornalismo no que se refere
ao combate à prostituição:

Os pontos de encontro dos caftens são conhecidos: e não


sahem dos limites da 4ª circumscripção policial, onde tambem
se acha condensado o seu forte commercio. Os dois cafés
citados só deixaram de ser logares de reunião permanente
desses homens depois que O Paiz deu aquelle rebate. Então,
receiando a caça, afastaram-se para os quartos que têm
sempre alugados em Catumby, Rio Comprido, rua Frei Caneca
e outros pontos da cidade nova. (ROSA, 1896, p. 38)

É assim que se inicia o relato. Sendo acusado de caftismo pelo


jornal, Siegmond foge para uma casa da Rua São Francisco de Assis.
Almejando encontrá-lo, Ferreira da Rosa consegue uma entrevista com o
acusado, que nega peremptoriamente qualquer envolvimento com as
judias polacas, alegando ser apenas um vendedor de joias judeu
conhecido por todos os caftens. O homem admite que os ajuda, mas
persiste em sua afirmação de que não pratica o caftismo. Percebemos, 36

nesse momento, que a anexação das entrevistas às crônicas configura-se


como um ponto alto de articulação entre Ferreira da Rosa e João do Rio:

- Então o seu dinheiro só vem do negocio das joias.


- Só, sim, senhor; eu não...
- Não tem mulher ahi, pela janella, a ganhar dinheiro para
lhe dar?...
Açoitou-nos com o seu olhar vermelho, entreabrio os labios
grossos, mostrou-nos os dentes altos, desaprumados,
amarellos, e disse:
- Não, senhor; não faço isso; a minha vida é séria; trabalho
com honra; sou um homem acreditado na praça. (ROSA,
1896, p.43)

Ainda que o caso pareça estar resolvido, a crônica nos deixa aberto
o suspense em relação à real identidade de Siegmond Richer. Vale lembrar
que os textos de Ferreira da Rosa foram pensados para publicações em
jornais, isto é, havia, mesmo que não de forma prioritária, a preocupação
em cativar seu público, induzindo-o a acompanhar as próximas edições de
sua coluna. Para atingir essa popularidade, nada mais frutífero que o
suspense, pois “o suspense tem uma relação bastante estreita com a
ficção popular” (LODGE, 2009, p. 24). Isso se dá no parágrafo final da
crônica, quando o leitor já imagina que tudo havia sido elucidado:
Agora outra face deste homem. Veja o publico com quanto
artificio elle pretende occultar a sua verdadeira condição.
Depois de ouvil-o modesto nas suas ambições, convicto dos
seus direitos, orgulhoso das suas virtudes, vamos observal-o
desde 1879 até à data presente, accusado por negociantes
sérios, anathematisado e descarnado por uma de suas
victimas, expulso da maçonaria brazileira, processado pelo Dr. 37
Felix da Costa, emquanto, peitando uns e illudindo outros,
elle conseguia alistar-se como nosso concidadão! (ROSA,
1896, p. 44).

Em sua publicação posterior, Ferreira da Rosa dá continuidade à sua


investigação. Nesse momento, o cronista narra às ações de Richer em sua
tentativa de fugir da lei. É interessante perceber que o autor não se priva
de criticar a justiça brasileira, uma vez que, após diversas alegações
duvidosas, o caften consegue se ver livre de sua punição. Na mesma
crônica, Ferreira da Rosa, mais uma vez, insiste em evidenciar o caráter
moralizante e social de sua escrita. O cronista reforça que sua obra tem
uma função em prol da “moral” e da “civilidade”, e continuará com sua
“missão” apesar de qualquer empecilho. É necessário ressaltar, ainda, o
caráter quase messiânico que Ferreira da Rosa atribui ao seu trabalho,
comparando sua equipe a apóstolos:

Excusado é dizer que provou tudo isso. Que é que não se


prova com um pouco de boa vontade? E muniu-se, assim, um
dos homens de facto mais perniciosos à moral da nossa terra
com um documento público que attesta a “elevação das suas
virtudes” e o “fulgor da sua probidade”! Por isso elle agora
tem toda razão para nos processar. Mas nós estamos
convictos de que prestamos um serviço à sociedade, obramos
como apostolos, temos o nosso objectivo honesto, são,
patriotico: não nos assusta a barra do tribunal, ainda quando
a miséria das nossas leis der força a um caften. (ROSA, 1896,
p. 49).

Por fim, após narrar em tom de revolta as artimanhas em


38
decorrência das quais Richer consegue escapar da justiça, Ferreira da Rosa
encerra seu texto com sarcasmo ácido e mordaz, tão recorrente em
outros cronistas do início do século XX, como Lima Barreto e João do Rio:
“Santo, olympico, venerado, homem este! Pobre martyr de perseguições
da policia e da imprensa!” (ROSA, 1896, p. 51).
Ainda que o caso de Siegmond Richer tenha sido detalhadamente
abordado por Ferreira da Rosa nas crônicas já analisadas, esse relato ainda
não está exaurido. Em crônica posterior, o autor transmite, em seu texto,
um artigo escrito por uma mulher que havia conseguido escapar do
domínio do caften. O longo documento, intitulado Infamias dos caftens e
cujo subtítulo é Siegmond Richer, é inserido na crônica e oferece
revelações tão almejadas pelo público que “acompanha com interesse
anatomista, seguindo pari-passu os tempos classicos de uma grave
operação.” (ROSA, 1896, p.55). O título do relato aponta para o fato de
que o polêmico caso seria continuado e, assim, Ferreira da Rosa nos
oferece elucidações sobre esse mistério. Para melhor compreendermos a
natureza do relato, transcrevemos aqui suas primeiras linhas:

Victima do miseravel caften,escoria dessa horda de infames


judeus, que se estabeleceram nesta corte com o infame
commercio de explorar mulheres, venho perante generoso
publico expôr-lhe quanto acaba de fazer-me esse ignobil
caften, deportado por ordem do governo imperial, e que não
seguiu a sortede seus torpes companheiros por se haver
naturalisado cidadão brazileiro. (ROSA, 1896, p. 55).

Por fim, Ferreira da Rosa reforça e conclui esse momento de suas


crônicas, fazendo questão de enfatizar o fato de que sua “missão” 39
continuará: “Para nós, porém, é que não ha ouro: poderá haver a cadeia;
mas a causa do pudor publico não morre: o clamor não cessará.” (ROSA,
1896, p. 58)
Dando continuidade a seu estudo, o autor narra e denuncia diversos
outros casos de caftismo no Rio de Janeiro. Já tendo sido feita a
reprodução e a análise de alguns deles, podemos nos debruçar para uma
proposta de entendimento teórico dos escritos de Ferreira da Rosa. Nesse
sentido, é essencial pontuar a influência realista-naturalista que parece
dar base para seus textos. Tal assertiva é evidente ao lermos, antes de
tudo, o título da obra, dado que podridão e vício são temáticas
recorrentes nas obras produzidas nas últimas décadas do século XIX que
são incluídas nesse grupo. Ademais, a crítica social, por vezes vinculada ao
humor ácido, aproxima Ferreira da Rosa dos parâmetros dessa escola,
além de mostrar aproximação a grandes cronistas contemporâneos a ele
que também perceberam o poder discursivo da ironia, dentre os quais
Lima Barreto é exemplo contundente. Existe, também, em meio ao caráter
moralizante tão notório em seus textos, uma preocupação em expor as
falhas do homem no que tange à ética, à corrupção e à lealdade. Essa
marca faz parte, incontestavelmente, dos grandes autores realistas de seu
tempo. Para que possamos evidenciar tal aspecto, é suficiente pensar, por
exemplo, em três dos maiores nome do momento, sendo estes o
brasileiro Machado de Assis (1839 – 1908), o francês Gustave Flaubert
(1821 – 1880) e o português Eça de Queirós (1845 – 1900). Ainda que
Machado de Assis esteja longe do protótipo realista ilustrado por Flaubert
e Eça, essa tendência universal torna-se, portanto, mais um traço que 40

aproxima Ferreira da Rosa de tal tradição. É interessante lembrar, por fim,


que O cortiço, principal romance do cânone naturalista brasileiro, foi
publicado em 1890, portanto, seis anos antes das crônicas de Ferreira da
Rosa. Assim sendo, evidencia-se, fundamentado em parâmetros
cronológicos, temáticos e estilísticos, que Ferreira da Rosa, a nível didático
e classificatório, poderia lucidamente ser incluído no chamado
Realismo/Naturalismo. Nessa perspectiva, faz-se importante trazer à tela
as considerações acerca dessa escola literária que foram feitas por alguns
de nossos maiores críticos no intuito de comprovar a referida tese.
Nejar, ao analisar a obra de Aluísio Azevedo, tece considerações
que, em certo grau, são aplicáveis a toda produção realista-naturalista e
que poderíamos, por isso, facilmente vincular às crônicas de Ferreira da
Rosa ao postular que o autor de O cortiço “põe a faca impiedosa na
hipocrisia, câncer social de todos os tempos.” (NEJAR, 2011, p.273) Em
seguida, reitera, ainda analisando Aluísio Azevedo, um aspecto constante
nos textos de A podridão do vício: “sua escrita é dura, escorreita, com
agudeza do fio de lâmina, desfiando as alienações de uma sociedade
apodrecida e ilusória.” (NEJAR, 2011, p.273). Nesse cenário, o conceito de
uma sociedade apodrecida e ilusória coaduna-se perfeitamente aos
avessos da belle époque carioca que são denunciados pelo jornalista.
Ocorre, por conseguinte, uma aproximação inegável de Ferreira da Rosa à
tradição realista-naturalista.
Em suas crônicas, como já foi possível analisar, há diversos
momentos nos quais todas essas tendências se mostram evidentes. No
entanto, é importante destacar mais um, no qual as “impressões 41

sensíveis”, nas quais o Realismo se baseia, segundo Afrânio Coutinho, são


perfeitamente ilustradas:

Ao entrar, achamo-nos n’um compartimento que por certo é


denominado <<sala de jantar>>. Uma grande taboa de pinho,
suja, sobre dois cavaletes, occupava o centro; e, encostados
às paredes, havia um guarda-louça desguarnecido, e dois
grandes étangères cheios de pó, restos de pão, moscas, e
pratos besuntados. Pelo chão a mesma falta de asseio. O
papel que forra as paredes estava immundo. As cadeiras
tinham cada uma sua idade, feitio e qualidade. (ROSA, 1896,
p. 62).

No trecho em questão, o leitor é apresentado à cena de uma


maneira recorrente na ficção naturalista. Isso se dá pela adjetivação
expressiva atribuída aos elementos do cenário, que são descritos como
sujos, cobertos de pó, feios e asquerosos para o olhar do jornalista. Essa
estratégia reforça o nojo e repulsa que as crônicas almejam imprimir na
ambientação das polacas, além de trazer as “impressões sensíveis” por
meio do pó, das moscas e da sujeira, ratificando “o trabalho de revolver
podridões” e consolidando os caftens como as “fezes da humanidade”,
termo integrante do repertório de epítetos pejorativos cunhados ao longo
dos textos. Ainda sobre essa escola literária, Bosi, ao compreender a
literatura realista-naturalista-parnasiana como um conjunto, as caracteriza
como “uma grande mancha pardacenta que se alonga aos nossos olhos”
(BOSI, 2006, p.178). É interessante perceber o uso do termo mancha,
recorrente na ideia de impureza e podridão trabalhada amplamente por 42

Ferreira da Rosa. Assim, conseguimos observar a capacidade que o


cronista teve de sintetizar as tendências do final do século XIX em sua
missão contra o caftismo. No mesmo contexto, Bosi nos traz uma assertiva
que parece se comunicar diretamente com as denúncias em nome das
judias polacas ao reiterar que a literatura desse momento é “cinza como o
cotidiano do homem burguês, (...) cinza como a vida das cidades que já
então se unificava em todo o Ocidente” (BOSI, 2006, p.178). Essa análise
dá conta da importância de se compreender caftens e polacas como
personagens que compõem o cenário urbano da belle époque. Logo,
podemos claramente identificar o papel que Ferreira da Rosa exerce
dentro do sistema literário presente à época, no qual sua obra dispôs-se a
denunciar a mancha cinza de podridão e vício que se alastrava pela cidade
cujas vítimas principais eram as próprias polacas.

IV. Considerações finais


Francisco Ferreira da Rosa foi, indubitavelmente, um cronista no sentido
mais puro do termo porque seus textos fizeram do tempo presente e real
matéria-prima de suas denúncias. Assim, seu trabalho, embora demonstre
radicalismos questionáveis em nossos tempos, está apto a nos oferecer
exemplos contundentes da prática jornalística do final do século XIX, além
de comprovar o poder que a crônica possui. Na mesma perspectiva, seus
textos demonstram como o discurso é uma poderosa ferramenta na
disseminação de ideologias, uma vez que sua obra é impregnada pelas
convicções do autor que o motivaram em sua “missão”. 43

A Literatura, embora esteja intrinsecamente conectada ao


jornalismo nesse caso, consegue manter viva sua função de criar um
reflexo essencial e preciso de seu tempo. Por isso, A podridão do vício, em
sua realidade aguda e pujante, funciona como uma fotografia da
prostituição carioca nos últimos anos do século XIX, mesmo que por vezes
embaçada pela visão do autor. Ferreira da Rosa foi capaz de traçar uma
cartografia das margens cariocas, aqueles locais distantes das luzes
civilizatórias que se apoderavam da cidade. Por isso, para além da
primordial denúncia de uma situação deplorável, o cronista foi capaz de
descrever uma cidade e registrá-la de maneira contundente. A geografia
das linhas de Ferreira da Rosa elevam seus textos ao nível de um
documento importante para a memória da cidade e os registros das ruas.
Essas crônicas são o encontro da Literatura com o abandono, expressão
nítida dos avessos da belle époque carioca, na qual se encontram a
opulência e a miséria, o caos e a plenitude, o palco e os bastidores, a luz e
a sombra. Sendo assim, seus textos, inegavelmente, possuem um valor
que não podemos permitir que seja apagado pelo tempo.
Nessa perspectiva, é necessário estabelecer os lugares de memória,
dos quais nos fala Pierre Nora. Isso ocorre porque as polacas, na
sociedade brasileira atual, são esquecidas sob o peso do tempo e dos
tabus que cercam suas histórias. Dessa forma, o discurso precisa manter
essas histórias vivas e repassá-las. Para melhor entendermos essa
necessidade, as ideias de Nora são importantes:

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que 44


não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos,
que é preciso manter aniversários, organizar celebrações,
pronunciar elogios fúnebres, notariar ata, porque essas
operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas
minorias, de uma memória refugiada sobre focos
privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do
que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de
memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os
varreria. São bastiões sobre os quais se escora. (NORA, 1993,
p.13)

Uma vez que “não há memória espontânea”, uma das diversas


funções do discurso literário é mantê-la acesa com o passar do tempo. No
caso da Podridão do Vício, a Literatura serve duplamente como guardiã da
memória e guerreira das minorias, devido ao fato de que preserva o nome
das polacas obliteradas pela História e denuncia ainda hoje uma realidade
presente na sociedade. Logo, ler o nosso passado é o primeiro passo para
repensarmos o presente e projetarmos o futuro porque a memória é fruto
de uma construção, envolta por razões sociais e políticas, como podemos
ver em Pollak:

A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida


física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são
função do momento em que ela é articulada, em que ela está
sendo expressa. As preocupações do momento constituem
um elemento de estruturação da memória. Isso é verdade
também em relação à memória coletiva, ainda que esta seja
bem mais organizada. Todos sabem que até as datas oficiais
são fortemente estruturadas do ponto de vista político.
Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio
de datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais,
há muitas vezes problemas de luta política. A memória 45
organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um
objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para
determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados
na memória de um povo. (POLLAK, 1992, p.4)

Por tudo isso, Ferreira da Rosa, de fato, não está ilibado de críticas.
No entanto, o registro do desamparo em sua escrita precisa ser lembrado,
pois foi capaz de usar os poderes da palavra para dar voz às mulheres que
jamais frequentaram espetáculos ou pisaram os salões luxuosos da capital
fluminense. Portanto, almejamos, com este trabalho, contribuir para os
estudos de um autor pouco estudado na Historiografia literária e, assim,
colaborar para o escopo de pesquisas em Ciência da Literatura. Ademais, é
buscada uma compreensão mais profunda e exemplificada da realidade da
prostituição carioca à época, aliando o discurso histórico ao literário-
jornalístico na investigação da marginalização e da memória. Sendo assim,
para além desses objetivos, este projeto é, antes de tudo, a voz das
polacas emudecidas e uma homenagem às mulheres que não puderam ter
nomes, identidades, nem lápides.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRIGUCCI Jr., David. Fragmentos sobre a crônica. In: Enigma e
comentário. Ensaio sobre literatura e experiência. São Paulo. Companhia
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48
CARTOGRAFIAS LITERÁRIAS NA LISBOA DO SÉCULO XIX1

Luciana Marino do Nascimento

Resumo: A urbanização e a invenção da cidade moderna exerceram grande fascinação nos 1


literatos, originando novas sociabilidades, pois a urbe tornou-se um espaço intenso,
conflituoso e contraditório. Walter Benjamin (1994), ao estudar a modernidade literária de
Baudelaire, nos afirma que a cidade emerge nas páginas dos livros, revistas e jornais,
ensejando a voga da literatura panorâmica e, dessa forma, as cidades passaram a ser
imortalizadas pela pena dos escritores: Charles Baudelaire inventa a Paris do século XIX,
Dickens cria a sua Londres e Buenos Aires é escrita por Borges, o Rio de Janeiro é encenado
na literatura de Machado de Assis, João do Rio e Lima Barreto e Lisboa é lida e escrita por
Julio Cesar Machado, Eça de Queiroz, Cesário Verde, Fialho de Almeida, entre outros. Neste
trabalho, pretende-se tecer algumas considerações acerca das representações da cidade
de Lisboa na obra de Julio Cesar Machado, A Vida em Lisboa - Romance Contemporâneo,
buscando evidenciar o espaço urbano (urbe) a partir de diferentes aspectos, tais como: o
cotidiano, o lazer, o advento dos equipamentos modernos e como essas mudanças foram
captadas pela literatura.
Palavras-chave: Literatura Portuguesa; século XIX; modernidade; cidade.

Abstract: Urbanization and the invention of the modern city caused great fascination for
writers, creating new sociability, because the metropolis has become a space conflicting
and contradictory. Walter Benjamin (1994), in his study about the literary modernity of
Baudelaire, tells us that the city emerges in the pages of books, magazines and
newspapers, allowing for the vogue of panoramic literature and in this way, as a
consequence, cities are immortalized by writers: Charles Baudelaire writes the 19th
century Paris; London is thematized by Dickens; Buenos Aires by Borges; Rio de Janeiro is
performed in the literature of Machado de Assis, João do Rio and Lima Barreto; and Lisbon
is inscribed in Eça de Queiroz’ fiction. This work intends to draw some considerations about
city representation in Julio Cesar Machado´s works so as to present evidences of the urban
space from different aspects as such as: the daily life, leisure, the advent of modern
equipment and how these changes are thematized in the literature.
Key Words: Portuguese Literature, 19th century, modernity, city.

1
Este trabalho foi realizado com apoio do CNPq. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico. Brasil. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Docente do Departamento de
Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ e do PIPGLA- Programa Interdisciplinar de Pós-
Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ.
Introdução

A cidade gerada pela modernidade engendrou os ditames do modo


capitalista de produção, com suas dissonâncias e conflitos. Essa configuração
do fenômeno urbano gerado na modernidade estava diretamente associada 2

ao desenvolvimento do mercado capitalista e, de fato, a cidade moderna


ganhou formas e traçados que a distinguiram de outras espécies de
aglomeração anteriores, até mesmo se pensarmos na geração de uma nova
sensibilidade e percepção urbanas. De acordo com George Simmel, em seu
texto A metrópole e a vida mental, grande foi o impacto das mudanças
urbanas nos oitocentos, no imaginário social, o que instaurou uma
sociabilidade diversa que veio a gerar modos de estar e de se portar na
cidade:

As cidades são, em primeiro lugar, sede da mais alta divisão


econômica do trabalho. Produzem, portanto, fenômenos tão
extremos quanto, em Paris, a ocupação remunerada do
quatorzième. São pessoas que se identificam por meio de
avisos em suas residências e que estão prontas, à hora do
jantar, corretamente trajadas, de modo que possam ser
rapidamente convocadas, caso um jantar consista em treze
pessoas. Na medida de sua expansão, a cidade oferece mais e
mais as condições decisivas da divisão de trabalho. Oferece um
círculo que, através de seu tamanho, pode absorver uma
variedade altamente diversificada de serviços. (SIMMEL, 1976,
p.21-22.)

A modernidade caracterizou-se como predominantemente urbana, e boa


parte da literatura passou a tematizar a cidade, instaurando uma oposição
entre o campo e a cidade, tão bem discutida por Raymond Williams, em sua
obra O Campo e a cidade na história e na literatura, o qual assinala que tal
relação se deu em grande parte pelo próprio processo de produção e
circulação de ideias e dos textos, a partir do desenvolvimento da imprensa,
das editoras e com a criação de livrarias. 3

Neste trabalho, temos por objetivo fazer uma reflexão sobre a relação
literatura e cidade, pensando o discurso literário como representação da
cidade, a partir da leitura da narrativa A vida em Lisboa.2 Romance
Contemporâneo, de Julio Cesar Machado. Vale ressaltar que a cidade exerceu
grande fascinação sobre os literatos, e eles, por sua vez, produziram e fizeram
circular na cidade moderna, no período abordado, muitos textos literários
cuja temática era a paisagem citadina, sejam eles crônicas, contos, romances
ou poesia e, sem dúvida, tais textos captaram significativamente a nova
sensibilidade urbana e moderna.

1. Escrevendo a cidade

No imaginário social de fins do século XIX/início do século XX, a literatura


instaurou um discurso sobre o urbano, expressando os conflitos, as vivências,
os sujeitos e a forma como eles se relacionam dentro desse espaço.
Fairclough, em seu livro Norma e mudança social (2001), utiliza a expressão

2
Vale ressaltar que os estudos acerca das descrições de Lisboa foram denominados de Olisipografia. Cf.
PIMENTEL, 2012.In: QUEIROZ, et al. Lisboa nas narrativas. Olhares exteriores sobre a cidade antiga e
contemporânea.2012. Há uma abordagem bastante interessante e atual, representada pelos estudos
interdisciplinares entre Literatura e paisagem, dentro dos postulados de Michel Collot, bem como os
estudos da Geografia Cultural Yu-Fu-Tuan e Cosgrove.
discurso tanto para a linguagem falada como para a escrita. De acordo com o
autor, o discurso é moldado pela estrutura social, estabelecendo um
contraponto: “ Um modo de ação uma forma em que as pessoas podem agir
sobre o mundo e especialmente sobre os outros como também um modo de
representação. O discurso contribui para construir as relações sociais entre as 4

pessoas. O discurso contribui para construção e para sistema de


conhecimento e crença.” (FAIRCLOUGH, 2001,p.91). O discurso está, segundo
o autor, comprometido na prática social relacionado às questões culturais,
econômicas ideológicas e políticas, que perpetuam, estabelecem e
engendram as relações ideológicas e de poder que constituem, criam e
transformam os sentidos e significados do mundo, de variadas formas nas
relações de poder. Assim também o faz o discurso literário, enquanto uma
prática social, como bem postulou Fairclough.
O discurso literário sobre o urbano criou uma outra cidade, que é erguida
pela escrita dos intelectuais. Angel Rama, em sua obra A cidade das Letras,
nos aponta que a cidade é um discurso:

Toda cidade pode parecer-nos um discurso que articula


variados signos-bifrontes de acordo com leis que evocam as
gramaticais. Mas há acordo onde a tensão das partes se
agudizou. As cidades desenvolvem suntuosamente uma
linguagem mediante duas redes diferentes e superpostas: a
física, que o visitante comum percorre até perde-se na sua
multiplicidade e fragmentação, e a simbólica, que a ordena e
interpreta, ainda que somente para aqueles espíritos afins,
capazes de ler como significações o que não são nada mais que
significantes sensíveis para os demais, e, graças a essa leitura,
reconstruir a ordem. Há um labirinto das ruas que só a
aventura pessoal pode penetrar e um labirinto dos signos que
só a inteligência raciocinante pode decifrar, encontrando sua
ordem. (RAMA, 1985,p. 3)

Os postulados de Rama acerca da cidade letrada e da cidade real nos


mostram como se desenvolveu a configuração de identidades e redes de 5

sociabilidade urbanas e como a literatura aliada à imprensa tornou-se


mediadora entre a cidade real e a cidade imaginada. Como bem destacou o
autor uruguaio, a atividade intelectual especializou-se a partir do
desenvolvimento das cidades e na cidade das letras, os jornais e a atividade
literária se destacaram, formando um círculo de leitores, ainda que em
pequeno número, mas interessados nas novidades e um desses fenômenos
correspondeu à voga do romance-folhetim, a grande locomotiva do da criação
de um imaginário pautado pela experiência urbana moderna, seja ela a
Londres dos romances e contos de Dickens ou a Paris das narrativas Victor
Hugo, de Zola e da poesia de Charles Baudelaire. Walter Benjamin, ao estudar
a modernidade literária de Baudelaire, nos afirma que a cidade fez surgir nas
páginas das narrativas literárias, dos jornais e revistas, propiciando a moda de
uma literatura panorâmica:

Um gênero literário específico faz as suas primeiras tentativas


de orientação. É a literatura panorâmica. O Livro dos Cento e
Um, Os Franceses Pintados por Si Próprios, O Diabo em Paris,
A Grande Cidade merecem na capital, e na mesma época, a
atenção concedida aos «panoramas». Nesses livros
encontramos esboços que, por assim dizer, imitam com o seu
estilo episódico o primeiro plano, mais plástico, e com o seu
fundo informativo o segundo plano, mais amplo, dos
«panoramas». Numerosos autores contribuíram para esses
repertórios. Tais coletâneas são uma manifestação daquele
mesmo tipo de trabalho literário a que Girardin abriu as
portas no suplemento cultural dos jornais. Era o traje de salão
de um tipo de escrita por natureza destinada a ser consumida
nas ruas. Nesse género tinham um lugar de destaque os
fascículos, em formato de bolso, a que se chamava 6
«fisiologias». Ocupavam-se da descrição de tipos humanos
como aqueles que se encontravam quando se observava o
mercado. Do vendedor ambulante dos boulevards até aos
elegantes no foyer da Ópera, não havia figura da vida
parisiense que escapasse à pena do fisiologista. A grande
época do género é a dos começos da década de quarenta. É a
alta escola do suplemento literário, pela qual passou a
geração de Baudelaire.
[...] As fisiologias nunca ultrapassavam um horizonte muito
limitado. Depois de se terem ocupado dos tipos humanos, foi
a vez das fisiologias da cidade. Começaram a aparecer
publicações com títulos como Paris à Noite, Paris à Mesa,
Paris na Água, Paris a Cavalo, Paris Pitoresca, Paris casada.
(BENJAMIN, 1994,p. 38-40)

Após a popularização do romance-folhetim, a crônica teve seu auge,


ocupando a seção de variedades do jornal, ou seja, “o rés do chão”, e como se
pode observar nas palavras de Benjamin, a vida da cidade era constantemente
cartografada pelos escritores. As formulações discursivas associadas à cidade,
aos seus espaços, sejam eles os centros ou as margens, produziram imagens
associadas aos ditames da modernidade e a própria construção da paisagem
urbana foi articulada para legitimar esse discurso.
O discurso do fascínio pelo urbano tornou-se laudatório e a visão acerca
do passado se revela no jogo esconder e exibir, deixando transparecer apenas
os traços antigos que servem para legitimar o novo. Assim, poderíamos citar
aqui, inúmeros exemplos, como aqueles já referenciados por Benjamin: “Paris
à mesa, Paris a cavalo, Paris à noite”. Destacamos a grande euforia em torno
da grande Exposição Universal de 1900 de Paris, cujo significado, segundo
Benjamin, ultrapassou o objetivo inicial de fazer um balanço das conquistas
do século XIX para tornar-se uma matriz da modernidade, uma exposição da 7

técnica e do mercado capitalista, conjugando os ideais de Saint Simon e


Fourier de uma “aliança dos povos”. Para o autor, as grandes exposições se
eternizaram como espaços “de peregrinação ao fetiche da mercadoria”. O
Guia da Grande Exposição de 1899 exortava o público a visitar os pavilhões
com o “espírito aberto para ver as maravilhas da modernidade”:

Com que espírito é preciso visitar a Exposição? É preciso vê-la


com o mesmo espírito que presidiu a sua organização: é
preciso vê-la para se instruir e para se divertir. Ela é para todo
mundo, para todas as idades, para os sábios, assim como para
os menos instruídos, uma incomparável 'lição de coisas'. O
industrial aí encontra os modelos dos quais ele saberá
aproveitar. O simples passante aí toma uma idéia geral e
suficiente das maravilhas, sempre em progresso, da indústria
moderna. Um pode aí encontrar o caminho da fortuna, pelo
estudo dos processos aperfeiçoados de fabricação; outro aí
encontra, com os objetos usuais colocados sob seus olhos, a
satisfação econômica do seu gosto. (Apud Pesavento, 1997, p.
13)

No jogo de revelar/esconder o centro e a margem, a arquitetura e o


discurso político se esforçaram por legitimá-lo, enquanto a literatura mostrou
o embate entre a cidade monumental que nega a participação popular e o
imaginário urbano de um progresso sem medidas. Charles Baudelaire, ao
vivenciar a cidade de Paris das reformas urbanas empreendidas pelo Barão de
Haussman, nos mostra, através de um olhar de estranhamento, a cidade
como um entrecruzamento de linhas, como um labirinto. O sujeito poético
lança um olhar sobre a Paris que se modifica sob o impacto das reformas
urbanas, o que fica evidenciado nos seguintes versos: 8

Num antigo arrabalde, informe labirinto,


Onde fervilha o povo anônimo e indistinto...

Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,


Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta...

Cidade a fervilhar, cheio de sonhos, onde


o espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante!
(BAUDELAIRE, 1995, p. 175-192)

Sabe-se que a cidade marcou o cenário da modernidade ao exibir seu


desenvolvimento, seus centros de poder, mas também suas 'franjas e dobras',
suas margens, seu lixo, ou seja, sua face mais perversa, advinda das
contradições do complexo desenvolvimento econômico-industrial. Os mais
variados textos literários que tematizaram as principais cidades do mundo nos
mostram que as cidades, de fato, adquirem uma “ mitologia própria”, como
bem afirmou Brito Broca, quando representadas pelo discurso literário. Vale
ressaltar que não só o discurso literário, mas também a imprensa e o discurso
político eivado do nacionalismo e da ideia de modernidade, contribuíram para
imortalizar a imagem das cidades pelo mundo, aliado à arte e à técnica da
reprodução, a partir das fotografias, postais e souvenirs. Walter Benjamin, em
seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, afirma que
as técnicas de reprodução permitiram maior acesso do grande público às
imagens, à arte, embora o objeto de arte tenha perdido sua aura.
As imagens da cidade reproduzidas por meio da fotografia, de acordo
com Walter Benjamin, puderam ser reproduzidas maciçamente, fixando as
imagens efêmeras, além de proporcionar ao fotógrafo a possibilidade de 9

imortalizar todos os aspectos da vida cotidiana e o produto, sem dúvida,


refletiu boa parte do imaginário social.
As cidades modernas engendraram a imagem do conhecimento e da
civilização, estabelecendo uma ruptura com a antiga ordem, colocando em
evidência o urbano como o conhecemos hoje. Esta ruptura também se
concretizou na edificação e reforma das cidades, no uso que seus habitantes
passaram a fazer do seu espaço.
A predominância da cidade sobre o campo vai colaborar na
determinação de um novo modo de vida das populações –“a cidade era, sem
dúvida, o mais impressionante símbolo exterior do mundo industrial”, como
bem afirmou Eric Hobsbawm (HOBSBAWN, 1977, p. 221). Nesse novo espaço
entra em cena a escrita de uma literatura panorâmica produzida pelo
“flâneur”, o artista deambulante. É esse artista que exerce uma espécie de
“botânica no asfalto”, como bem afirmou Walter Benjamin, tematizando a
cidade das franjas e das dobras, como se pode observar no fragmento a
seguir, de autoria de Dostoievski:

Percorri a perspectiva, fui ao jardim, errei através do cais, e não


vi sequer um dos rastros que encontrava habitualmente nesses
mesmos locais. Na paisagem dos arredores de Sampetersburgo
quando à aproximação da primavera, manifestando
subitamente toda a sua violência, todas as forças que recebeu
do céu, se cobre de viçosa verdura. Regressei muito tarde à
cidade. Na realidade moro num bairro bastante afastado.
Caminhava cantando. (...) Num recanto estava uma mulher. A
rapariga caminhava apressadamente [um] sujeito cambaleante
desatou a correr em perseguição de minha desconhecida.
(DOISTOIEVSKI, 1988, p. 6-12) 10

Durante o século XIX, o crescimento urbano em escala cresceu de maneira


significativa, fruto dos complexos processos econômicos e industriais, em meio
aos quais, a cidade passou a exercer forte poder atração sobre as pessoas. O
espaço causa um desenraizamento e a ruptura dos laços de identidade e dos
elos comuns que antes uniam os homens a uma tradição cultural.
A afluência de pessoas à cidade constitui um fenômeno inusitado, ou seja,
o surgimento da multidão. Pelo seu caráter de incontrolabilidade, a multidão
comporta, contraditoriamente, a produtividade e a violência, o fascínio e o
medo. É a “massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se
fundem (...)” (FOUCAULT, 1997, p. 177). A cidade passou a constituir-se como
local de exibição e fluxo ininterrupto de pessoas, convertendo-se em vitrine a
seduzir quem a atravessa, como nos mostra Baudelaire em seu poema "A Uma
Passante":
A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
(BAUDELAIRE, 1995, p. 179)
Através da mulher que passa, o sujeito poético cria um jogo de sedução, cujos
olhares se cruzam em um momento efêmero, no qual a mulher se mostra na
multidão do bulevar.
Sabe-se que a cidade marcou o cenário da modernidade ao exibir seu
progresso, seu centro administrativo, mas também suas “dobras”, suas 11

margens, seu lixo, ou seja, sua face mais perversa, advinda das contradições do
complexo desenvolvimento econômico-industrial:

(...) As mãos sob meu queixo, só, na água-furtada,


Verei a fábrica em azáfama engolfada;
torres e chaminés, os mastros da cidade,
E o vasto céu que faz sonhar a eternidade...

Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros


persianas acobertam beijos sorrateiros,
Quando o impiedoso sol arroja seus punhais
Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais...
(BAUDELAIRE, 1995, p. 169-170)

A cidade moderna vista por Baudelaire surge como uma imagem


perturbadora que atravessa pensamentos e sonhos. Podemos, então,
afirmar que cidades são desdobramentos de sonhos e, na literatura, elas
se transformam em objetos de sedução e de desilusão a partir do olhar
dos escritores. De acordo com Richard Sennet, a cidade criou uma
novidade em termos de sociabilidade. O autor assinala que com o
desenvolvimento do espaço urbano modificaram-se os comportamentos e
os domínios das vidas pública e privada. A nova ordem da sociedade
instaurou e promoveu um outro modo de estar em público (SENNET,
1999, p. 38-40). Nesse sentido, neste trabalho, pretendemos evidenciar os
espaços lisboetas que foram reescritos por Julio Cesar Machado, em A
Vida em Lisboa – Romance contemporâneo.

2. Algumas Cartografias Lisboetas 12

No contexto dos 1800 em Portugal, observa-se que a partir de 1820,


vivenciou-se em terras lusitanas, a chamada Revolução Liberal, cujos
embates se deram entre conservadores e liberais. No entanto, conforme
assevera José Tengarrinha, os liberais se revelaram conservadores, tendo
ocorrido grandes revoltas camponesas no período que antecedeu a
famosa Revolução (TENGARRINHA, 2000, p. 202-216). Todos esses
movimentos vieram a culminaram no período da Regeneração, a partir de
1851, o qual se caracterizou pela alternância de dois partidos no poder
durante 40 anos, o que foi efetivamente realizado após um golpe, através
do qual Saldanha assumiu o poder com o apoio de liberais e
conservadores, o que implicou a derrota definitiva dos partidários do
absolutismo miguelista. Pari Pasu a essas transformações, destacamos
que o desenvolvimento e a grande circulação dos folhetins movimentam
uma gama de periódicos e textos cronísticos e de variedades que davam
conta da vida social e expressavam a atuação do literato na sociedade.
Ernesto Rodrigues assinala que o primeiro jornal português a se dedicar ao
folhetim foi o Periódico dos pobres, do Porto (1838) (RODRIGUES, 1998, p.
236).
Lisboa, como todas as cidades, na modernidade do século XIX, foi
vista pelos escritores, a partir de dois polos opostos: a cidade virtuosa e a
cidade do vício, o embate campo versus cidade. O livro A vida em Lisboa,
de Julio Cesar Machado (1835-1890), polígrafo da Lisboa do século XIX,
obteve êxito entre o público leitor. Ao se dedicar às fisiologias urbanas na 13

sua Lisboa, Julio César Machado demonstrava estar sintonizado com a sua
época, ao expressar o vigor, a novidade e o entusiasmo da modernidade
de então, conforme as palavras de Camilo Castelo Branco:
Júlio César Machado tinha a clara e fluente linguagem que
o género requer; tinha ironias e remoques comedidos,
como a cortesania manda; realçava no bem discernir o
quilate das óperas cantadas, do cantor louvável, e do actor
inteligente; achava de pronto as finas pedras do livro novo
e assoprava mui delicadamente o cisco em que se
deslapidavam, de jeito e modo que não fosse incomodar os
olhos do autor. Estes felizes atributos deram ao folhetinista
de diversos jornais um bem ganhado e soado nome.
(CASTELO BRANCO, 1969, p. 190)

João das Chagas,em sua obra Vida literária, destaca que o folhetim
desempenhou o papel de entreter a nação, o que conferia um tom mais
ameno à série literária, e Julio Cesar Machado também representava esse
locus amoenus, embora houvesse folhetins e crônicas que tematizavam a
vida econômica e política da época. Entretanto, essa consciência crítica
para a reflexão acerca dos problemas da pátria portuguesa só se daria
mais tarde, com a geração de 70: “ninguém melhor do que Júlio César
Machado compreendeu esta índole especial do folhetim, ninguém soube
melhor do que ele fazer do folhetim uma conversação escrita” (CHAGAS,
1866, p. 93-94).
A narrativa de A Vida em Lisboa - Romance contemporâneo (1858)
gira em torno de uma intriga amorosa, cujo pano de fundo é a cidade de
Lisboa, produzindo, assim, uma fisiologia da sociedade da época, ao 14

mesmo tempo em que tematiza lugares diversos (jardins, teatros,


restaurantes, cafés da moda) e personagens-tipo, tais como: a mulher
adúltera, o dândi, os janotas, os jornalistas, os barões, entre outros. Ou
seja, trata-se de uma obra em que o autor agrega elementos importantes
da modernidade literária do século XIX, de influência francesa, pois A vida
em Lisboa se encontra associada ao romance, ao contemporâneo, à
pintura de costumes, à fisiologia urbana, como o próprio autor assinala no
prólogo “ À Crítica”:

Este livro, escrito sob o poder de impressões verdadeiras,


aspira unicamente ter a cor local. O panorama lisbonense é
tão vasto que um estudo fisiológico sobre todos os vultos e
lugares seria trabalho para mui largo fôlego, e não sei se
até, conseguida a dificuldade de alguém o escrever,
venceria também a de alguém o ler! Procurar as mais
salientes feições de nossa terra, estudar os costumes e a
índole dos lisbonenses, ligar a descrição dos tipos à
descrição de certos lugares que em Lisboa têm a mais
distinta feição: inventar uma acção em que os elementos se
combinem todos a auxiliar a pintura empreendida dos
lugares e dos tipos, amenizando-a pelo interesse e
movimento de um enredo em harmonia com os caracteres
que se pretende observar – eis o plano desta obra, plano
de uma sociedade extrema, que inevitavelmente devia
tornar pesado este trabalho a um pulso literário tão pouco
experimentado como o do autor. (MACHADO, 1999, p. 3).

Considerado, genuinamente, como o folhetinista de Lisboa, Júlio


Cesar Machado torna a vida lisboeta lugar privilegiado em sua obra, uma
vez que conhecia profundamente e era frequentador dos cafés, entre eles, 15

o Chiado, o Martinho, o Suíço e o Marrare, sendo que este último dá título


ao capítulo que abre o livro A Vida em Lisboa – “ No Marrare”:

E agora que a minha profissão está feita, e eu livre já desse


encargo de consciência (porque hoje já não há obra
possível sem uma profissão de fé), comecemos a ver Lisboa
à medida que a acção deste romance folhetim caprichar
em que mudemos de rumo. Estamos no Marrare. O
Marrare é o primeiro café de Lisboa, apesar de ser o pior, o
mais mal servido. [...] O Marrare é para Lisboa uma espécie
de monumento histórico que ela suporta, porque o hábito
lho tornou necessário. É o rendez-vous dos janotes e dos
jornalistas. (MACHADO, 1999, p. 6)

Conforme assinalam Ana Isabel Queiroz e Daniel Alves, as mais


variadas representações da cidade se deram conforme o projeto estético
de cada autor ao longo da história da literatura portuguesa, tendo exibido
inúmeras facetas de uma mesma Lisboa, que se transforma em um
caleidoscópio de imagens e paisagens literárias:

De acordo com as vivências, o momento literário e as


opções estéticas de seus autores, a Lisboa imaginada ou
reinventada nas narrativas de ficção dos últimos 160 anos
exibe diferentes aspectos físicos e arquitectónicos,
condições de urbanidade e costumes da população. As
descrições e menções dos lugares da literatura são retratos
de um espaço-tempo a que o filólogo e filósofo russo M.M.
Bakhtine chamou <<cronótopos>>. (QUEIROZ; ALVES, 2012,
p.34.).

Na sua cartografia por Lisboa, Julio Cesar Machado percorre os 16


lugares que hoje não mais existem, como é o caso da Floresta Egípcia,
espaço de propriedade do italiano José Osti. A Floresta ficava no meio
termo entre uma feira popular e uma casa de espetáculos e se encontrava
localizada atrás do Palácio Alagoas:

Para os que não assistiram às festas do Tívoli, a Floresta


Egípcia é o melhor divertimneto de verão que Lisboa tem
possuído; não só a sociedade que o frequenta e de
ordinário escolhida e da melhor esfera, mas tudo parece
reunir-se para que sejam agradáveis as noites passadas
naquele grande jardim iluminado a Giorno. (MACHADO,
1999, p. 11)

Georg Simmel (1976) assinalou que, em fins do século XIX e a partir


do surgimento dos novos paradigmas urbanos, modificou-se o imaginário
social, criando uma nova sensibilidade, a partir de aquisição de novos
hábitos. De acordo com o autor, essa experiência instaurou uma nova
imagem de si e do outro, a partir da relação entre o eu e a multidão
anônima, esvaziada de identidade, que é, ao mesmo tempo, temível e
sedutora. Uma dessa formas de expressão da autoimagem pública foi
através da moda. O narrador em A Vida em Lisboa registra a moda como
importante componente da vida social:
As modistas! Que invenção admirável! As modistas são
uma novidade, da importância dos telégrafos eléctricos.
Elas não trouxeram só a Lisboa as modas e o bom tom:
trouxeram-lhe os boudoirs, onde há sempre duas peças de
fazenda por não deixar de haver, dois sofás magníficos e
uma excelente causeuse, e alguns quadros que
representam velhas historietas de amor, Maleck-Adel e 17
Matilde, Almaviva e Rosina, e até, às vezes, Amor e Psyché.
(MACHADO, 1999, p. 41)

Observa-se que a cidade se tornou palco para encenação do


progresso e da modernidade, tornando seus habitantes, segundo Richard
Sennet (1999, p. 95), “atores de um tipo muito particular”. A frequência às
ruas, a moda ou o footing das classes elitizadas converteram a rua em
uma vitrine, onde as pessoas buscavam se exibir, demarcando seus
lugares na sociedade. Assim, o Passeio Público representava um espaço de
sociabilidade e lazer e antes havia sido um lugar da Lisboa burguesa e
aristocrática, vindo a se transformar em parte de uma cidade popular em
vias de pequeno-aburguesamento:

No Passeio Público ninguém passeia. Ou se anda a correr


ou se está sentado, passear não é permitido. No Passeio
Público namora-se, conversa-se, discute-se política e
literatura, fazem-se e desfazem-se reputações, dizem-se
verdades amargas a respeito dos ausentes, e mentiras
obsequiosas na cara dos presentes, concedem-se títulos,
pede-se uma menina em casamento, planeia-se um
enterro, prometem-se empregos públicos, solicitam-se
candidaturas – tudo se faz, excepto passear! (MACHADO,
1999, p. 124)
Júlio Cesar Machado constata que a modernidade e o progresso não
chegaram a Lisboa de fato, mas a cidade embora apresentasse alguns
indícios de modernização, representados pelo gás, pelo telégrafo ou pelo
caminho de ferro:
18

Oh Lisboa! Para que havia de vir o gás anunciar que a roda


fatal do progresso vinha roubar-te parte dos encantos da
tua insipidez? Para que havia, oh Lisboa, enviar-te o destino
esses inimigos da tua patriarcal nulidade que tomaram os
caminhos de ferro e de telégrafo eléctrico e que debalde
talvez, se propõem a engrandecer-te e ilustrar-te?
(MACHADO, 1999, p. 5)

E esse descompasso com a grande modernidade europeia foi


tematizado não só por Julio Cesar Machado como também,
posteriormente, por Eça de Queiroz, sendo essa uma temática
recorrentemente discutida pela Geração de 70, grupo ao qual pertencia o
escritor.

3. Considerações finais

À guisa de conclusão, ressalte-se que é possível, ainda, observarmos


outros espaços na obra de Júlio César Machado, tais como: o Chiado, o
Ramalhete, a Rua Nova de Almada, a Rua do Alecrim, Teatro Trindade e os
cafés. Contudo, o mais importante a se destacar é que a cidade como
texto nos possibilita muitas leituras, exprimindo as vivências da
modernidade, numa tensa relação entre Portugal e o modelo parisiense,
encarado como paradigma da “vida civilizada”. A vida moderna em Lisboa
é assim definida por Julio Cesar Machado: “A vida de Lisboa tem isto de
especial: os romances de vida contemporânea apresentam os elegantes
de Paris, os dândis dos salões, os leões da voga, tendo quase todos
protectoras misteriosas, que lhe franqueiam o seu coração e o seu porte- 19

monnaie.” (MACHADO, 1999, p. 47).


Sem dúvida, reler a cidade pelo viés da literatura, torna-se um
importante elemento para compreendermos a atuação do literato na
sociedade e as relações que se estabeleceram entre literatura e
experiência urbana, a partir do século XIX, como bem assevera Ana Isabel
Queiroz et. al.:

A relação entre realidade e imagem, e entre imagem e


visão de futuro, interessa mais e mais aos
historiadores e aos geógrafos, apostados em
compreender o passado e o presente das sociedades e
dos territórios. Mas interessa também aos
planeadores e aos administradores das cidades, que,
na identidade dos lugares, encontram fundamento
para intervir nesse palimpsesto. (QUEIROZ et a,,
2012:35).

Assim, de uma cidade podemos escrever não somente as suas


ruas, os seus monumentos ou os edifícios, mas também, as suas tradições
e histórias que sobrevivem somente nos seus subterrâneos e é justamente
os literatos quem as resgatam ou as criam, inventando, muitas vezes, o “
chão das cidades”, tal qual o poeta Drummond o fez com os seus “mortos
de sobrecasaca” e é nessas linhas que se lê a literatura e a cultura de uma
época.
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CINEMA EM SALA DE AULA NO ENSINO DE HISTÓRIA
CINEMA IN CLASSROOM IN HISTORY TEACHING
Matheus Mendanha Cruz1
Luis Fernando Cerri2 1

Resumo:
O trabalho a seguir tem por método a revisão bibliográfica e elabora-se sobre os
pressupostos da Didática da História, destacando a função da História como
orientadora da vida prática, deste modo sendo necessário alcançar o aluno de maneira
diversa, dando-lhe a oportunidade de estabelecer-se como sujeito dentro da
comunidade em que se encontra. O método aqui sugerido para sair-se do modelo
tradicional é o cinema em sala de aula, ou seja, os recursos audiovisuais, deste modo
ampliando o leque de leituras críticas que o aluno pode fazer, munindo-o de
argumentos plausíveis para fazer suas escolhas dentro da sociedade que o mesmo está
inserido.
Palavras-Chave: Consciência Histórica; Ensino de História; Cinema em Sala de Aula;
Educação.

Abstract :
The following work has as method the bibliographic review and it's elaborated on the
assumptions of History's Didactics, highlighting History's role as a daily life advisor, in
this way being necessary to reach the student in various ways, giving him/her the
opportunity to stablish as an individual the community he/she is inserted. The present
suggested method to step out of the traditional model is the cinema in classroom, in
other words, audiovisual resources, expanding the range of critical readings that can
be made by the student, equipping him/her with plausible arguments to make his/her
choices in the society he/she is inserted.
Keywords: Historical Conscience; History Teaching; Cinema in Classroom; Education.

1
Acadêmico do Curso de Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG,
com experiência de trabalho na Rede Estadual de Ensino de Santa Catarina e do Paraná e na Rede
Particular da cidade de Ponta Grossa - PR.
2
Possui graduação em História (1992), mestrado (1996) e doutorado (2000) em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor associado no Departamento de História da
Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atua no mestrado acadêmico e no mestrado profissional
(ProfHistória) da UEPG. Tem experiência na área de História, com ênfase em ensino de História, atuando
principalmente nos seguintes temas: cultura histórica, didática da história, consciência histórica,
identidade social, ensino de história. Líder do Grupo de Estudos em Didática da História (GEDHI). É
diretor do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da UEPG.
Introdução
O estudo a seguir teve sua inspiração nas aulas da Disciplina de
Prática de História Antiga e Medieval. Essa disciplina ofertada pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa e ministrada pelo professor Luis
Fernando Cerri tem como proposta “aproximar os conteúdos curriculares 2

específicos da tarefa de reflexão didática” (L. F. CERRI 2014, 538) 3, ou seja,


tem como função criticar os conteúdos curriculares e repensar os modos
como esses são passados para os jovens que a eles tem acesso em sala de
aula na educação básica.
O avanço da tecnologia é notável em nossa sociedade, mas,
infelizmente, o quadro de professores tem imensa dificuldade em fazer
uso destas no cotidiano das nossas escolas, gerando o desinteresse dos
nossos alunos. É claro que se enfrenta, na realidade brasileira
especificamente, problemas históricos de falta de interesse político pela
educação, não permitindo assim, também, que as novas tecnologias
permeiem o ambiente escolar.
Um dos meios de levar conteúdos diversos aos jovens e que vem
ganhando força é o cinema, uma vez que atrai a atenção e também facilita
a compreensão já que o aluno consegue visualizar aquilo que o professor
trabalha apenas na teoria. “Por ser ficção um filme bem escolhido pode
jogar luz sobre a realidade do mundo e a complexa subjetividade humana”
(LIMA 2010, 69).

3
Nesse artigo o professor Luis Fernando Cerri justifica a criação dessa disciplina dentro do curso de
licenciatura em História baseado na Didática da História como área da Teoria da História.
Marcos Napolitano (2008) é outro estudioso que defende o cinema
como fonte histórica, deixando bem claro isso quando assegura o cinema
como descobridor da história antes da História descobri-lo como fonte de
pesquisa e veículo de aprendizagem. Além dessa característica da fonte
ele afirma primeiramente que o cinema já vinha utilizando a história, ou 3

seja, clara menção aos filmes épicos e históricos que desde muito são
produzidos.
Com isso, é importante destacar, que o cinema, em sua relação com
a História, pode ser abordado de três maneiras: cinema na História, a
história no cinema e a história do cinema (NAPOLITANO 2008, 240).
Para fins deste texto abordaremos a primeira e a segunda faceta,
aquela representando o cinema como fonte histórica da onde podemos
tirar informações para passar aos alunos e esta como a valorização da
abordagem que o cinema faz da própria história.
Sendo o cinema uma fonte histórica deve cumprir o papel, como tal,
de ser uma ferramenta “no sentido amplo que esta pode alcançar
auxiliando a compreensão do presente através do passado” (CUNHA e
XAVIER 2010, 645).
O recurso audiovisual sobressai às fontes escritas e as iconográficas,
uma vez que traz à vida de modo dinâmico aquilo que outra fonte não
consegue fazer. É preciso que tenhamos consciência que o cinema foi
muito além de apenas, inclusive Edlene Silva (2011a) chama a atenção
para que o professor possa desapegar da utilização de texto, que são
basicamente as fontes utilizadas nas aulas, e abrir-se para explorar com
seus alunos outros caminhos de construção do conhecimento.
A ideia do cinema em sala de aula deve ser abordada com cuidado,
pois (...)
(...) em relação a alguns benefícios oferecidos pelo
recurso cinematográfico, precisamos ressaltar o papel
do professor que, além de mediador, precisa ser um
conhecedor da metodologia aplicada. Um filme não 4
pode fazer e não faz sozinho o papel de despertar o
conhecimento em uma criança (SILVA e Davi 2012,
24).

Um dos pontos fundamentais para que o cinema possa ser utilizado


em sala de aula é a compreensão deste papel que o professor exerce
como líder da construção do conhecimento em meio aos alunos, ele
“deve abordá-lo (cinema) com um olhar diferenciado, direcionando o
conteúdo do filme para o que almeja abordar com a turma” (SILVA e Davi
2012, 28).
O texto que aqui propomos tem como foco principal o ensino de
História e por isso primeiramente será trabalhado o porquê da
importância do estudo da História e sua influência na sociedade. Logo
após será abordada a questão do cinema em sala de aula dentro de uma
visão mais didática, mais prática, entretanto procurando manter o foco
sobre a disciplina de História e como esta pode fornecer base para a vida
cotidiana do aluno.

Por que História?


A pergunta que dá título a essa seção parece simples, mas tem
muita importância para a reflexão daquilo que fazemos dentro de sala de
aula. Refletir sobre os objetivos que nos direcionam nas ações cotidianas
no magistério é importante para que o exerçamos com qualidade. Pensar
os conteúdos de história como cristalizados gera uma educação
tradicional, voltada a decorar datas e heróis e não aproveitando
praticamente nada de todo aquele conteúdo na vida cotidiana dos jovens 5

que estão nas salas de aulas para conseguirem desenvolver a tolerância,


respeito à liberdade, liberdade de pensamento e cultura, como defende o
artigo 3º da LDB.
Ainda há muito de uma visão antiga de que ensinar História consiste
em saber bem história, por lado dos historiadores, por lado dos
pedagogos, saber ensinar é o importante, logo quem sabe ensinar
consegue ensinar em qualquer disciplina. Essa dicotomia acaba por
prejudicar todo o processo educativo, uma vez que nem pedagogos
estudam história a ponto de estarem seguros de seus métodos para que,
assim, possam passar não fatos, mas construir o conhecimento com o
aluno, e nem historiadores estejam abertos a estudarem matérias
didáticas que os ajudem a fazer a transposição dos conteúdos gerando
reflexão e construção do conhecimento.
Essa discussão ganhou um grande ingrediente quando “Bergmann
delineou a Didática da História como uma disciplina da História, e não
como campo da pedagogia. Isso foi um fator instigante para os debates
sobre o ensino de História no Brasil” (L. CERRI 2013, 28).
Mas afinal o que seria Didática da História?
A Didática da História “se volta para processos mentais ou
atividades da consciência sobre os quais afinal se funda a referência do
aprendizado histórico à história” (RÜSEN 2010, 42). Essa área é a
responsável por não permitir que o historiador se isole e, por causa desse
isolamento da sociedade, acabe por não prestar seu serviço científico ao
meio em que vive, não lhe oferecendo as respostas ansiadas pela
comunidade que o cerca, afinal a “Didática da História indaga sobre o 6

significado da História na formação geral e na práxis social” (BERGMANN


1990, 34).
Para ficar mais claro o papel da Didática da História, dentro da
própria ciência histórica Bergmann (1990, 29) seleciona como três as suas
respectivas funções:
Investigar o que é apreendido no ensino da História (é
a tarefa empírica da Didática da História), o que pode
ser apreendido (é a tarefa reflexiva da Didática da
História) e o que deveria ser apreendido (é a tarefa
normativa da Didática da História).

O historiador precisa passar por esses aspectos, não só aquele que


exercerá o magistério, mas o pesquisador também, porque todo trabalho
científico tem vistas a comunicação de um determinado conteúdo, sendo
assim, ensina-se através daquela pesquisa, logo tudo que é produzido
para comunicação tem como fundo um cunho didático. Para Rüsen (1987,
102) a história é um processo de explicação, ou seja, um processo
didático.
Um debate levantado é se esse aspecto, essa rejeição de alguns
historiadores com o campo da Didática da História pode advir da divisão
do trabalho, de uma cientifização, ou seja, o pesquisador é aquele que faz
ciência de fato, pesquisa e historia, enquanto o professor é simplesmente
aquele que passa os resultados obtidos pelo pesquisador numa linguagem
mais fácil (L. CERRI 2013, 33).
Dentro dessa visão o professor nem mesmo é tido como um
cientista. Mas é preciso pensar que o fato de está em sala de aula também 7

é uma ciência, que tem seus métodos, como Circe Bittencourt explica
muito bem (1997, 25). A Didática da História abrange também esse
processo de transposição didática dos conteúdos históricos para dentro da
sala de aula e isso não quer dizer simplesmente simplificar, mas é dominar
o conteúdo e, a partir daí, poder passá-lo ao aluno de maneira mais
acessível e muito mais prática, até porque os trabalhos oriundos da
academia são teóricos demais e os jovens a quem nós, como professores,
comunicamos não tem, ainda, os requisitos suficientes para trazer à sua
vida cotidiana aquelas informações, ou seja, dar, de fato, significado aos
estudos egressos dos meios universitários. Cerri (2013, 38) afirma,
ressaltando o que foi dito antes, que “é preciso considerar que a Didática
da História é também uma área de produção de conhecimento, mas não
como uma área aplicada, da qual a História seria uma espécie de ‘ciência
básica’”.
O papel do professor é demonstrar como a História, no nosso caso
de estudo aqui, pode ser útil para o cotidiano e para a formação dos
sujeitos dentro da própria comunidade, não estereotipando o aluno
perfeito, mas trabalhando dentro de cada situação buscando sempre
inserir os conteúdos dentro da realidade daquele aluno para que ele possa
ver-se como um sujeito da história também e, aí sim, possa ser
protagonista dentro da sociedade em que ele vive. Enquanto houver
supervalorização do tradicional e não se perceber que a escola está ali
para servir ao seu entorno, construindo juntamente com ele a educação
necessária para suprir os problemas daquela comunidade, deixando de
lado modelos importados que não cabem à realidade de quem os importa, 8

a educação continuará fadada ao fracasso e a História persistirá numa


matéria chata em que são valorizados heróis e datas, não cumprindo
assim com o objetivo da educação tão claro na LBD e também na
Constituição Nacional do desenvolvimento humanístico e cidadão do
aluno com respeito a diversidade de pensamento e desenvolvimento da
tolerância, nem com o da História que é “contribuir para a formação
histórico-política” (BERGMANN 1990, 36). Em outras palavras,
História deve contribuir para libertar o indivíduo do
tempo presente e da imobilidade diante dos
acontecimentos, para que possa entender que
cidadania não se constitui em direitos concedidos pelo
poder instituído, mas tem sido obtida em lutas
constantes e em suas diversas dimensões.
(BITTENCOURT 1997, 20)

É difícil colocar em prática e beira a uma educação ideal? Sim. Mas é


preciso ter um horizonte para perseguirmos. Enquanto ficarmos na zona
de conforto afirmando que está além do nosso alcance e nada fizermos
para que possamos alcançar tudo continuará igual. A sala de aula se torna
o campo de batalha para todos os entraves que se dão pela construção
das grades curriculares e a História sempre é o foco de guerras
ideológicas4 porque tem em seu seio o papel de dar significado aquilo que
se passou, deste modo alterando a visão e as ideias sobre o presente, em
outras palavras, “o sentido da História significa que o processo histórico
(...) tem uma qualidade subjetiva que o leva a participar da orientação da
prática atual da vida” (RÜSEN 2001, 10). 9

Toda a história, tanto a ciência como o conto sobre o passado, até


mesmo as fábulas, são feitas em cima de uma narrativa e para
compreender qual o sentido da história precisa-se entender como se
estrutura essa narrativa.
Rüsen (1987, pp.97-99) sugere o seguinte modelo de explicação
histórica: Sn-1, seguido por S’n, que ocorre ao mesmo tempo queDn e por
fim todo esquema termina em Sn. Aonde Sn-1 é o fato na sua gênese; S’n
é a explicação de como se passou de Sn-1 para Sn, ou seja, processo; Dn é
o contexto de S’n, é o ambiente aonde o processo é vivenciado que acaba
por interferir no mesmo; por fim Sn é o resultado final, o fato consumado.
Para ficar mais claro este processo segue uma imagem que
representa como ele se dá baseada em Hempel e Stegmüller (RÜSEN
1987, 99):

Como exemplo simples desse esquema poderemos utilizar a


entrada dos EUA na II Guerra Mundial, para ficar bem elucidado. O Sn-1

4
Marc Ferro discute essa guerra pela História em seu livro A História Vigiada. (FERRO 1989)
pode ser considerado o litígio entre japoneses e estadunidenses pelas
ilhas Filipinas; como S’n pode ser considerado o ataque a Pearl Harbor;
como Dn temos o contexto da II Guerra Mundial; por fim temos o
resultado desseprocesso como a entrada dos EUA na II Guerra Mundial,
que para explicar a vitória dos Aliados sobre as potências do Eixo pode ser 10

considerado o momento Sn-1 e assim por diante.


Em sala de aula deve ser levada em conta a curiosidade científica do
aluno, pois é através do questionar que ele poderá aprender de fato e
retirar dali significado para a sua vida cotidiana, como afirma Rüsen (1987,
99) “o pensamento histórico leva em consideração as necessidades de
orientação para a vida”.
A história deve servir para gerar consciência histórica5, ou seja, para
organizar-se no tempo (L. CERRI 2011a, 60). A História é dinâmica, por ser
a eliminação da contingência visando orientação no tempo só pode ser
subjetiva (RÜSEN 2001, 10), desta maneira é impossível que haja modelos
pré-fabricados que sirvam a todos os alunos. É sim preciso levar em
consideração as particularidades para que estes jovens tenham a
possibilidade de integrar-se de fato a sua comunidade sabendo o que um
dia ela foi e o que ele pode fazer por ela.
Rüsen (2001, 10) esclarece que sentido é a “ponte entre a
experiência e a intenção” e mais a frente ele separará o sentido em
percepção, interpretação, orientação e motivação, ou seja, a percepção
explora a vivência da mudança temporal; a interpretação é a mudança

5
Para compreender melhor o que é Consciência Histórica e a sua função na sociedade de modo mais
lúdico aconselho ver o filme “O Doador de Memórias”, título original “The Giver”, do ano de 2014.
percebida que passa a ser vista como história; a orientação é a
responsável por dirigir a vida cotidiana através dessas vivências; e a
motivação é a que mobiliza forças através das vivências do passado
(RÜSEN 2001, 10-11).
Em outro trabalho Rüsen (2010) vai esclarecer que se podem gerar 11

vários sentidos à história. Ele defenderá e explicará que as formas de


aprendizado histórico são: tradicional, exemplar, crítico. Essas formas de
geração de sentido histórico acabam por serem indicadores da consciência
histórica. Cerri (2011b, 100-103) se utiliza desses níveis e explica-os
também.
Em resumo, o tradicional é aquele em que a história é vista como
um conjunto de tradições que devem ser cumpridas pura e simplesmente
por serem tradições; o exemplar é quando a história é tida apenas como
uma galeria de exemplos, de certo e errado, que devem ser seguidos ou
não; o crítico é quando se vê na história a desconstrução do atual, ou seja,
é quando se faz sempre contraponto, oposição àquilo que está posto
como realidade do hoje; por fim, o genético é quando se apreende que o
hoje é consequência e construção do passado.
Traçando aqui esses aspectos básicos da reflexão didática é possível
notar que a História se faz como disciplina importante dentro do contexto
social. Para além da reflexão teórica é importante que percebamos como,
na prática, esse ensino tem ocorrido nas escolas.
Cinema em Sala de Aula
Mesmo que os Manuais Didáticos conseguissem absorver as
novidades acadêmicas da ciência de referência e transpor para os alunos
numa linguagem adequada, ainda sim seria necessário e interessante
meios alternativos para abordar os temas. É nessa dinâmica que o aluno 12

consegue enxergar mais pormenores e também apreender melhor o


conteúdo proposto a ele.
Silvio Luiz Cordeiro (2011) fez um estudo abordando a arqueologia
como experiência também que pode servir ao ensino de História, indo
mais além, ele pretende demonstrar em seu artigo como o vídeo pode ser
útil para auxiliar o professor no processo da transposição didática dos
conteúdos.
A ideia de trazer materiais audiovisuais para dentro da sala de aula
transforma a visão do aluno. Silvio Cordeiro (2011, 436) comprova que “a
produção audiovisual documental (...) vem estimulando estudantes a
explorar o universo histórico a partir das perspectivas que o vídeo abre,
por exemplo, ao provocar temas, elevando-os a níveis mais importantes e
propícios ao debate", deste modo conseguimos cumprir com a tarefa
didática de maneira mais profunda e influente na comunidade em que
estamos inseridos.
Um aspecto de importância é a contextualização que o professor
deve fazer acerca do filme, falando com os alunos do contexto em que
esse filme foi elaborado. Edlene Silva (2011a) demonstra em seu artigo
alguns pormenores da elaboração do filme O nome da Rosa, filme este
que foi baseado no romance, homônimo, escrito por Umberto Eco. Um
dos detalhes mais interessantes que ela abordou, baseada no
documentário A abadia do Crime,foi a mudança do final da obra:
O desfecho final da produção cinematográfica é o
principal ponto de diferenças entre a narrativa de
Annaud (diretor do Filme) e Eco. No filme, o inquisidor
é morto pelos camponeses e a mulher acusada de 13
bruxaria é poupada. No livro, o inquisidor deixa o
mosteiro e leva os acusados para o julgamento fora da
abadia e o leitor presume que foram mortos na
fogueira, sem nenhuma chance de salvação (E. O.
SILVA 2011a, 14).

Annaud justifica essa mudança por causa dos ambientes vividos


pelos dois artistas serem amplamente diversos. Embora, no período
retratado, o final cinematográfico parece praticamente inverossímil pelas
vicissitudes que o marcam. O autor assim o fez por ser uma produção
romantizada e comercial, além, do próprio autor, justificar sua ação por se
entregar mais aos dramas humanos que Umberto Eco (E. O. SILVA 2011a,
14).
Com isso podemos ver que “essa contextualização faz-se necessária
para que os alunos identifiquem a linguagem estética utilizada no filme,
podendo melhor analisar as ideias nele presentes” (SILVA e Davi 2012, 30).
É essa desconstrução que mostra que o filme é uma obra fictícia
datada e com autor, ou seja, possibilita ao aluno o olhar crítico para
encarar o filme como uma fonte histórica passível de ser questionada,
assim construindo um novo conhecimento a partir dela.
É importante ter sempre em mente que o objetivo do ensino não
deve ser apenas o passar conteúdo. Deve-se dar ao aluno bases para que
ele possa seguir galgando passos para além daqueles que o ambiente
escolar o proporciona, sendo assim adquirindo visão de mundo, nas
palavras de Paulo Freire (1989), e autonomia para interpretar e participar
ativamente da sociedade em que o mesmo está inserido.
A LDB (lei de diretrizes e bases) no seu artigo 22º afirma que “a 14

educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-


lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e
fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”,
por isso é necessário que ao abordarmos assuntos referentes ao conteúdo
histórico, façamos também a transposição didática necessária a ponto de
que os alunos consigam absorver dali significado, alcançando deste modo
o objetivo da Educação Básica contida na lei que a regulamenta.
É importante evidenciar que o processo de Transposição Didática
não é puramente uma simplificação de dado conteúdo e sim a
desconstrução, deste que vem oriundo da academia na maioria das vezes,
e reconstrução (PERRENOUD 1998, 496) em sala de aula com os
educandos, assim proporcionando aos alunos compreensão sobre o
processo formador de conhecimentos e maior autonomia.
Também é preciso que se mantenha determinado cuidado com a
absorção das imagens veiculadas pelos filmes porque “cinema é
manipulação e essa sua natureza deve ser levada em conta (...) com todas
as implicações que isso representa” (NAPOLITANO 2008, 247). Essa
afirmação é confirmada, em outras palavras por Silva (2011a, 2) quando
ela afirma que “é preciso sublinhar que tais fontes (fontes históricas em
geral) são construídas em contextos específicos, e que os receptores
poderão tanto introjetar acriticamente as mensagens veiculadas pela
escrita e pela imagem, como também (re)significá-las”.
É aqui que entra o papel do professor como mediador desse
conhecimento. Como em qualquer outro material é preciso que se busque
construir com o aluno o conhecimento acerca daquele objeto, seja ele 15

filme, texto, iconografia, etc.. O professor não pode convencer-se de que é


dono da verdade absoluta e que está ali simplesmente para passar seu
conhecimento ao aluno, crendo que este é como um copo vazio afim que
seja cheio ou como barro a fim de ser moldado (as comparações são
infindas).
A ciência histórica tem como papel dialogar com o senso comum,
assessorar a reflexão, a dúvida e a busca de respostas por meio do diálogo
e para isso é preciso ir além de despir-se dos preconceitos é estar aberto a
interação e a colocar à prova seu próprio conhecimento (CERRI, 2011b,
p.75), isso sendo reafirmado por Cunha e Xavier (2010, 646) quando
firmam que “o professor age como mediador e através do diálogo, ou seja,
do entrelaçamento entre a sua fala e a fala do aluno de forma dinâmica
propicia a atribuição de novos significados sobre a história, sobre
conceitos históricos”. Importante ressaltar que é função da Didática da
História não permitir o isolamento da ciência histórica da sociedade a que
ela deve servir (BERGMANN 1990, 34).
E como mediador deve ter a consciência que ao se utilizar dos
filmes, ou de qualquer outra fonte histórica, tem que ter como objetivo
“levar o aluno a perceber como se constitui a história, como os conteúdos
históricos se contextualizam com essa fonte” (CUNHA e XAVIER 2010, 641)
e saber que o recurso audiovisual “deve ir além de meras ilustrações de
conteúdos” (CUNHA e XAVIER 2010, 641).
Como já foi dito é preciso estar preparado para utilizar o cinema em
sala de aula, por isso deve haver planejamento prévio e o professor nunca
deve passar o filme sem antes o ter assistido. Também é função do 16

professor está em sala enquanto os alunos assistem ao filme e intervir


para ressaltar qualquer aspecto que julgue importante, uma vez que o
filme está sendo usado para aula e não para lazer.
É importante mostrar ao aluno o que o mesmo deve enxergar no
filme, para isso é sempre aconselhável que haja um roteiro de perguntas
em que também conste a ficha técnica do filme. Este roteiro deve ser
entregue e lido, explicando eventuais dúvidas dos alunos antes do início
da exibição. Com o findar do filme é preciso que os alunos respondam as
questões e essas sejam debatidas em sala de aula para comparar as
variadas visões oriundas da atividade, tendo em conta as diferenças entre
o estudado e o que o filme apresenta, lembrando que é necessário que o
professor leve os alunos a refletir para quê, por quem e por que o filme foi
feito.

Conclusão
A História tem o seu lugar e é tido como ponto de litígio, pois é dela
que emana a orientação temporal, através dela é possível compreender
aquilo que nos tornamos, tanto como pessoas, como sociedade. A
consciência história tem papel ímpar dentro da sociedade democrática,
uma vez que essa é firmada na liberdade e no debate, é a história e a
maneira como esta está organizada pelo sujeito que lhes darão as bases
para as escolhas desse mesmo sujeito dentro da comunidade que vive
alterando assim todo um círculo a sua volta.
Com esse papel se aumenta a responsabilidade do professor de
História, já que este é o responsável por mediar a construção do 17

conhecimento do aluno, munindo-o de métodos e visões para que possa


viver em sociedade.
Respeitando a individualidade de cada aluno, o professor deve
esforçar-se por ir além daquilo que simplesmente lhe é proposto no
Manual Didático e buscar lecionar para o aluno que está em sua sala de
aula, não com métodos gerais, mas com estratégias que valorizem o ser
do aluno.
Uma das estratégias a serem utilizadas é o cinema em sala de aula,
podendo ser mais que alegoria, mas gerador de visão crítica baseada na
arte, saindo, assim, do tradicional uso das fontes escritas para o ensino da
história. A dinâmica impressa num filme pode repercutir muito mais efeito
do que textos imensos.
Entretanto tem que se ter como, reafirmando, mediador o
professor e para o mesmo exercer com excelência a sua função deve está
preparado para possibilitar ao aluno críticas pertinentes ao conteúdo e
transpondo este para a vivência diária, para que possa, de fato, haver
significado do trabalho feito nas escolas. Do contrário a instituição escolar
continuará falhando em cumprir com os objetivos educacionais abordados
nesse texto e a História também não estará cumprindo a sua missão de
gerar criticidade e orientação à vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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História 10 (1990): 29-42.
18
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2011a).
O CAMPO DA HISTÓRIA E SEU ENSINO: DISCUSSÃO EM
TORNO DA CONSTRUÇÃO DO CURRÍCULO DE HISTÓRIA

Bruno Sergio Scarpa Monteiro Guedes 1


1

RESUMO
Neste artigo o debate que será realizado tomará como foco de suas abordagens o
ensino de História e a elaboração do currículo de História. Será realizado um balanço
historiográfico pelos caminhos percorridos na elaboração do currículo de História, das
modificações ocorridas ao longo do século XX, como ocorreu no governo de Vargas,
especialmente no chamado Estado Novo (1937-45), e da influência, principalmente da
perspectiva da linha francesa, na compreensão da História como campo de estudo.
Palavras-chave: currículo de história; tempo; ensino-aprendizagem; conhecimento.

ABSTRACT
In this article, the debate that will be held will focus on the teaching of History and the
elaboration of the history curriculum. A historiographic balance will be carried out by
the paths taken in the elaboration of the curriculum of History, of the modifications
that occurred throughout the XX century, as happened in the Vargas government,
especially in the so-called Estado Novo (1937-45), and the influence, especially from
the perspective of the French line, in the understanding of history as a field of study.
Key words: history curriculum; time; teaching-learning; knowledge.

1
Mestre em Relações étnico-raciais pelo CEFET/RJ. Especialização em Educação pela Universidade
Federal Fluminense (UFF) e graduado em História pelo Centro Universitário Abeu (UNIABEU).
Atualmente professor de História no município do Rio de Janeiro. E-mail:
bscarpaguedes@yahoo.com.br
DISCUSSÃO E ANÁLISE
O conhecimento científico está intimamente ligado ao processo histórico –
cultural de uma sociedade e sistematicamente transparece a
preponderância dos interesses exercidos pelas classes hegemônicas nas
relações estabelecidas no âmbito desta mesma sociedade. Dessa maneira, 2

o conhecimento será organizado pelos grupos sociais de maior prestígio


que conduzirá o conhecimento a estratificação, tornando-o hierarquizado
e símbolo de poder e status quo.
WEBER (1986) realiza uma crítica em relação a burocratização dos
sistemas educacionais que privilegiam o ensino descontextualizado com a
realidade dos educandos, sem a participação coletiva dos alunos no
processo de ensino-aprendizagem, assim como na condução de um ensino
abstrato e demasiadamente literário. Na sua perspectiva é preciso haver
no processo de ensino, e consequentemente agregado ao currículo de
ensino praticado nas instituições de ensino, a valorização pelas relações
sociais vivenciadas pelos alunos fora do contexto escolar, buscando tornar
o ensino contextualizado com a realidade dos alunos, pois na sua
concepção o social e o ensino precisam estar conectados, entendendo
assim que ambos se auto-influenciam.
Ao observarmos a concepção de currículo da década de 1980 é
possível perceber uma intenção em classificar os indivíduos em abstratos,
desconsiderando a difícil complexidade, tarefa imposta pela realidade
social dos educandos, na busca de rotulá-los em bons ou maus alunos com
o intuito de se criar senso comum intelectual e ético.
APLLE (1979) nos esclarece que para entendermos o currículo exige-
se a compreensão do todo social onde nossas análises precisam estar
atentas as nuances originadas pelas relações estabelecidas no
espaço/tempo entre as instituições políticas, econômicas e culturais.
Nesse sentido, o currículo é entendido como espaço de competição. Nas 3

diretrizes de APLLE (1979) a busca para a construção de um currículo


crítico dependerá essencialmente do despertar do senso crítico dos
discentes na tentativa da construção da contra-hegemonia, onde os
alunos possam através do questionamento da interpelação dos
conteúdos, desmitificarem “verdades absolutas” presentes nos materiais
didáticos.
Na concepção de HORN,G. (2006) pensar em currículo,

“...significa a disposição de abandonar preconceitos e


regras preestabelecidas, interesses particulares ou de
grupos, em favor de um trabalho criativo de análise
dessas particularidades, sejam elas de natureza
cultural, política, artística, étnica, religiosa ou de outra
origem; com vistas ao efetivo desenvolvimento e
afirmação dessa pluralidade como única forma de
solução dos graves problemas de nosso
tempo”.(HORN, 2006, p.24)

Conforme apontado pelo historiador francês Furet, só foi nas últimas


décadas do século XIX no continente europeu, é que a História surgiu nas
propostas curriculares como disciplina escolar, tendo o Estado - Nação
como foco dos ensinamentos. Na mesma linha de raciocínio, no final do
século XIX, a História estabeleceu-se nos estabelecimentos de ensino no
Brasil, criando uma oposição entre o discurso laico em defesa da
institucionalização da História universal frente ao posicionamento
ideológico da Igreja. Portanto nesse contexto, o ensino de História
instituído no Brasil terá intensas influências principalmente do ensino
praticado na Europa que inclusive podem ser verificados até os dias atuais 4

por intermédio da organização estrutural de ensino baseado no


quadripartido francês: Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade
Contemporânea.
Contudo na década de 1930, teremos a valorização da Historia do
Brasil no currículo de ensino, motivadas tais modificações pela conjuntura
criada com a instauração do governo de Getúlio Vargas, especialmente o
período conhecido como Estado Novo (1937-45), e consequentemente
pelas reformas empreendidas por Francisco Campos (1931) e
posteriormente Gustavo Capanema (1942), que continuou a seguir o
modelo de história francesa, porém dividindo o ensino de História em
História Universal e História do Brasil. Em 1971, com a promulgação da lei
5.692/71, o ensino de História e Geografia foram conglomerados por
intermédio dos Estudos Sociais. A partir de então, pode percebe-se o
esvaziamento das propostas curriculares voltadas para as ciências
humanas que neste momento demonstrava que o ensino estava mais
disposto em consentir com os interesses dos grupos sociais que
dominavam a esfera política.
Nos anos de 1980 tivemos uma retomada da discussão sobre o
ensino de História, tendo em vista, que ainda se fazia muito presente no
currículo nacional da disciplina a perspectiva de viés positivista. Sendo
assim, houve grandes mobilizações em caráter nacional no campo da
educação, por intermédio de debates, encontros e seminários envolvendo
instituições de ensino e governamentais na busca por mudanças sobre
como se observar os acontecimentos tomando como análise o ensino de
História. 5

Ao tratarmos das questões que permeiam o ensino de História,


iremos perceber múltiplos sentidos de noções de tempo, disseminados
por variadas ciências dependendo do objeto que possuem como análise.
Nesse sentido, queremos elucidar é que o currículo de História quando
abarca o tempo sob diversos enfoques tende a transparecer uma
“deficiência” estrutural na organização dos conteúdos, a não ser que este
olhar sobre a multiplicidade de acepções sobre o tempo apresente em seu
bojo uma base coerente persuasiva.
Alguns dos problemas decorrentes da História como disciplina e
como ciência, remete-se a demarcação da construção do presente.
Decorre que o presente possui uma variação bastante subjetiva
dependendo da sociedade na qual estamos nos referindo ou até mesmo
onde o termo está sendo discursado tornando complicado qualquer
definição ou limitação do termo presente.
Ao concebermos que a História é um ir e vir do presente ao passado
e vice-versa, não garante que tal dinâmica e multilinearidade do processo
nos conduzam a um novo conhecimento, que nos permitirá enxergar o
que se encontra oculto por trás das exterioridades expostas. O que
ressaltamos é que tais relações dinâmicas dependendo de como são
exercidas possam caminhar a construir na prática do ensino relações
automáticas e/ou mecânicas, entendendo que o posicionamento frente ao
objeto histórico será de suma importância para o entendimento dos
acontecimentos históricos, através do confrontamento do passado e do
presente.
Nesse contexto, entende-se que na relação - professor e aluno, 6

objeto e realidade – o conhecimento possa ser construído numa prática


social dialética e participativa entre as partes envolvidas, mesmo que o
objeto de estudo/análise possa estar situado no passado. Ou seja, a
(re)construção do passado não se efetiva fora do julgamento do presente,
assim como que para o entendimento do presente se faz necessário a
retomada ao passado.
Ao concebermos a Escola como um espaço de produção e
disseminação do conhecimento, teremos o currículo como articulador das
ações a serem empreendidas para este saber escolar, sejam estas ações
ligadas as questões metodológicas e/ou estruturais para a prática do
ensino.

Enquanto intelectual orgânico, preocupar-se com o


problema do saber sistematizado significa ter domínio
sobre a forma e o conteúdo desse saber, isto é, ser
capaz de entender o processo de produção do
conhecimento e, no caso, através do método dialético
enquanto superação-incorporação da lógica formal.
(HORN, 2006, p. 67-68)

Para isso observa-se a necessidade no ensino de História, da


articulação entre os saberes construídos formal e informalmente na
escola, assim como, do cumprimento das orientações curriculares
impedindo ao máximo que ambos se distanciem. Nessa relação de
produção de conhecimento, o professor invariavelmente atuará como
intermediário entre o conteúdo e o processo de ensino-aprendizagem,
buscando através da prática social (conhecimento e experiência) uma 7

relação harmoniosa e amistosa onde possam ser valorizadas as


contribuições e interações dos educandos.
Nessa interação entre professor, aluno e ensino, nos deparamos
com a questão que é amplamente discutida no campo da educação: a
objetividade do conhecimento. Marx e Engels (1975), já apontavam que
seria através da práxis (prática) que poderíamos conhecer algo, inclusive a
objetividade do conhecimento. Seguindo o raciocínio dos pensadores, a
práxis estaria atuando numa zona intermediária entre a teoria e a ação,
onde seu papel estaria atrelado ao de transformação da realidade que o
cerca, ou seja, nessa situação o papel de interventor e de orientador,
caberia aos professores em sala de aula perante as situações e questões
surgidas em decorrência do tema discutido com aos alunos. Sendo assim,

É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade,


isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu
pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-
realidade do pensamento é uma questão puramente
escolática (MARX, ENGELS,1975,p.118)

A construção do conhecimento está condicionada pelas posições sociais


de professor e aluno e de suas respectivas práticas e intervenções
realizadas no objeto de análise, sejam essas intervenções e diálogos
mediados por pistas e/ou evidências. O que legitimará e sustentará a
produção do conhecimento do objeto analisado estará inevitavelmente
ligado a fundamentação teórica lógica para os apontamentos realizados.

O fato histórico não está pronto, ele é construído; a 8


construção do fato é buscada no empírico (textos e
objetos...) passando pela sensibilização teórica
(interpretação, contexto, análise) do professor e do
aluno.( (HORN, 2006, p.79)

CHOPPIN (2004) aponta que os livros didáticos são muito mais do que
instrumentos pedagógicos utilizados pelos educadores no contexto
escolar para a prática do ensino, passando a ganhar status de documentos
detentores de informações privilegiadas e até certo ponto incontestáveis
pelos discentes devido ao caráter de verdade que lhe é conferido.
No Brasil, principalmente a partir da década de 90 do século XX,
amplia-se a discussão a respeito das extensões inerentes a Didática da
História, questão que paulatinamente vem renovando-se. BERGMANN na
década de 1990 já iniciava o Brasil o debate sobre a explanação em língua
portuguesa em relação as recomendações de Jorn Russen referentes à
Didática da História.

Segundo Bergmann, “refletir sobre a História a partir


da preocupação da Didática da História significa
investigar o que é apreendido no ensino da História (é
a tarefa empírica da Didática da História), o que pode
ser apreendido (é a tarefa reflexiva da Didática da
História) e o que deveria ser apreendido (é a tarefa
normativa da Didática da História)”. (Russen, 1990,
p.9)

Os apontamentos realizados indicam que se torna primordial debater a


natureza e as dimensões do saber histórico produzido na Escola, sendo 9

necessário considerar as variadas faces desses saberes produzidos nos


documentos oficiais da educação, assim como, do saber produzido fora
dos muros da Escola e que estão disponíveis e acessíveis aos educandos.
Convém ressaltar a essa altura que pelo alto grau de propagação dos livros
didáticos de História, principalmente motivados pela sua distribuição
gratuita nas instituições de ensino públicas do Brasil, revelam-se e
apresentam-se de certo modo como um currículo semi-organizado que
são originários de múltiplas percepções e concepções acerca da cultura.
Nesse caminho, trazem em si variadas possibilidades em relação às
narrações históricas e seus consequentes posicionamentos sobre os
acontecimentos narrados, dando ênfase a determinados assuntos e
silenciando outros.

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Gabriel. Weber. São Paulo, Ática, 1986.
GLOBALIZAÇÃO E CULTURA: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A
FRAGMENTAÇÃO IDENTITÁRIA DO SUJEITO PÓS-MODERNO

Wesley dos Santos Lima1

RESUMO: Este artigo visa discutir algumas concepções que se referem ao processo da
globalização no âmbito de uma sociedade pós-moderna, a discussão perpassará a
cultura, as tecnologias emergentes e a identidade do sujeito pós-moderno. Desse
modo a problematização do conceito de globalização, aldeia global, sociedade líquida
e identidade cultural terá um grande foco para compreender as modificações advindas
do processo da globalização. Portanto o principal ponto será discutir as relações
globalizadas e as transformações que esse evento causou, questionando se é possível
manter a identidade cultural nesse mundo globalizado, onde tudo se tornou
instantâneo.
Palavras-chaves: Globalização – Cultura – Identidade

ABSTRACT: This study presents some concepts that refer to globalization process in
the context of a postmodern society, the discussion thread through culture, emerging
technologies and the identity of the subject. Thus the questioning of the concept of
globalization, global village, net society and cultural identity will have a major focus to
understand this process. Therefore, the main points to be discussed are globalized
relations and the changes that caused this event, questioning whether it is possible to
maintain the cultural identity in this globalized world where everything has become
instantaneous.
Keywords: Globalization – Culture – Identity

1 - Introdução:

A pós-modernidade é marcada pelo processo da globalização, onde


nesse processo surgem novas tecnologias, onde as distâncias
quilométricas são encurtadas por “redes”, onde a formação da chamada
aldeia global é inserida. Nesse sentido, é importante questionar até que
ponto a globalização dentro da pós-modernidade, consegue modificar o
1
Discente do curso de História 7° semestre pela Universidade Federal do Oeste da Bahia.
E-mail: wslmendes@hotmail.com
cenário cultural de uma sociedade, e se esta modificação altera a
identidade cultural do indivíduo. De acordo com Stuart Hall (2011), no seu
livro intitulado “A identidade cultural na pós-modernidade”, “a
"globalização" se refere aqueles processos, atuantes numa escala global,
que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando 2

comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo,


tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado”.
Assim, entender globalização é imaginar a proximidade de novas
informações por meio da tecnologia, é compreender uma ligação que
perpassa a sociedade cortando-a em uma linha entre conectados e
desconectados. Se nesse evento globalizante temos a capacidade de
“aproximar a distância” por meio de redes, será que podemos também
modificar a cultura de uma comunidade através da globalização em
massa?

Problematizar cultura é pensar em um leque de informações onde


essas, formam um conjunto de significados, costumes e maneiras que um
indivíduo constrói durante sua vida, a cultura é algo que vem sendo
moldada por um sujeito ao longo de sua história, sendo assim, não é algo
estável, inerte, trata-se de um modelo que está em transformação,
adaptação e inovação a todo o momento. Dessa maneira, podemos
entender que a globalização é um ciclo caraterizado pela inovação, essa
por sua vez, associada a pós-modernidade que é marcada por inúmeros
fatores de modificações. Dentro dela perde-se a ideia de fronteiras e
nasce o conceito de que o mundo está cada vez menor, no sentido de
aproximar tudo que está distante, nasce a partir da pós-modernidade um
mundo globalizado, instantâneo, trabalhado pela imagem, o ao vivo e em
cores.

Segundo Zygmunt Bauman (1999), esse mundo globalizado,


3
trabalhado por redes será constituído por uma sociedade líquida, o termo
líquido é utilizado para expressar a fragilidade, e os novos padrões da pós-
modernidade, os novos valores que surgem nesse processo e as
transformações nas formas de vida. Se na pós-modernidade temos uma
aldeia global que é ligada por redes, teremos também um comportamento
“líquido”, ou seja, nesse processo se perde os valores, a rede passa a
distanciar o contato olho a olho e a transformar esse contato por meio de
telas. Essa liquidez da sociedade pós-moderna se dá pela sua incapacidade
de fixação, uma vez que tudo está se transformando diariamente, se
modificando de acordo com as novas demandas do mundo globalizado.

2 – Globalização e Cultura:

Compreender “globalização” no processo da pós-


modernidade, é levantar uma série de fatores e questionamentos que
dissecam a discussão sobre a definição ou problematização da
globalização. Globalização vista como uma fábula assim como colocar
Milton Santos (2008), um encantamento mágico, que transforma vidas,
que modifica o cenário global aproximando as pessoas pelas redes
tecnológicas, na chamada aldeia global, que leva a informação e difundi
instantemente ideias. Desse modo, começaremos a analisar e discutir o
processo da globalização ligado à cultura, perceber-se que a globalização
tanto divide como une; divide enquanto une, e essa divisão se pauta em
uma globalização segregacionista que promove a separação e exclusão
segundo Zygmunt Bauman.
4
Dessa forma, ao analisar o processo globalizante colocamos em
pauta as consequências desse fenômeno no âmbito social-cultural, a
globalização não deve ser vista apenas como um marco de positividade e
inovações, deve-se pensar nos problemas advindo desse processo, e um
deles está relacionado à cultura. Uma das características da pós-
modernidade é a fragmentação da identidade do sujeito com os laços de
cultura e tradição, uma vez que, o homem pós-moderno sofre influência
de uma indústria cultural ou cultura de massas, que se manifesta pela
padronização de valores culturais emergentes.

Nessa perspectiva, é importante destacar que a globalização


modifica a cultura, e esta modificação acontece a partir da implantação
das tecnologias que aproxima cada vez mais as pessoas, e essas pessoas
levam sua cultura através do globo, adaptando e inovando a cada
momento. A entrada de novos valores, conceitos e olhares são inseridos a
partir desse ponto, entende-se que a globalização apesar de ter uma
ideologia como fábula também tem um lado perverso; Milton Santos
destaca que o comportamento competitivo e as mazelas como a
mortalidade infantil e a educação de qualidade cada vez mais inacessível
são direta ou indiretamente imputáveis ao presente processo da
globalização.
Seguindo o pensamento de Milton Santos, a globalização apesar de
ter duas faces, ela também pode se apresentar com uma terceira face,
que seria representada como novas formas e novas possibilidades, nesse
sentido, as novas possibilidades da globalização, segundo Santos (2008),
estariam ligadas a um contexto miscigenado em relação os modos de vida, 5

de culturas e raças, a globalização como possibilidade modificaria o


cenário de perversidade, uma vez que essa mistura social permitiria a
universalidade de ideias e pensamentos empíricos.

3 – Identidade Cultural na Pós-Modernidade:

Ao analisar a globalização e a influência dela na cultura, é


interessante destacar as modificações que a identidade cultural sofre na
pós-modernidade. Nesse sentido, ao falar em identidade cultural na pós-
modernidade o foco principal da discussão será em torno da crise de
identidade que o sujeito sofre e a sua fragmentação.

Em um cenário de novas possiblidades compreende-se que a


identidade cultural do indivíduo, sofre modificações e se fragmenta nesse
processo globalizante, é importante compreender também, que a entrada
de novos valores culturais atinge o espaço social desse indivíduo, segundo
Hall (2011) a identidade costura o sujeito à estrutura, ou seja, o sujeito se
adapta as novas informações que estão sendo expostas a ele.

Apesar da fragmentação com a entrada de novos valores culturais e


tecnológicos, o sentimento de pertencimento a uma nação se mantêm
enraizado, esse sentimento tem a capacidade de conectar memórias
existentes, de produzir sentidos, como um sistema de representação
cultural assim como aborda Schwarz (1986), uma nação é uma
comunidade simbólica e é isso que explica seu "poder para gerar um
sentimento de identidade e lealdade".

Cabe destacar aqui, a invenção das tradições abordada por


6
Hobsbawn e Ranger, a invenção das tradições ela seria uma forma de
manter ou resgatar a identidade cultural de determinado local, ela nasce a
partir da fragmentação territorial, dos valores culturais de um grupo social
e busca inserir em um novo contexto os elementos culturais que
perderam espaço dentro da globalização, essas tradições muitas vezes são
representadas por festas, costumes, ritmos e danças.

4 - A Mundialização da Cultura e Aldeia Global:

Sobre o processo de cultura mundializada cabe ressaltar os


pensamentos de Renato Ortiz, o autor coloca que o processo de
mundialização é um fenômeno social total que permeia o conjunto das
manifestações culturais; ou seja, a cultura de consumo, o consumo
mundializado transforma a cultura em uma cadeia global, em outro viés
podemos compreender que a aldeia global, como um processo de ligação
e encurtamento de redes e difusão da noção de tempo e espaço, está
relacionada à mundialização da cultura.

Segundo Costa (2004), a mundialização da cultura ela vem sendo


formada, através da dominação, do poder econômico e politico dos
Estados Unidos, analisando que os Estados Unidos possuem valores
universais e busca em certa medida difundir esses valores nas sociedades
mais “atrasadas”. A propaganda e a divulgação do estilo de vida American
way life como um caminho a ser seguido, levando ao consumo a compra,
e a imitação de formas de vidas e a padronização de hábitos.

Renato Ortiz aborda que a cultura acaba se tornando um exercício


7
de poder assim como: Disneyland, McDonald’s, calças jeans, rock and roll,
etc. Seriam expressões para uma cultura de exportação. A cultura de
exportação parte de uma nacionalidade e consegue atingir várias outras
nacionalidades através do consumo, o que transformar a mundialização
da cultura é a cadeia de informação que leva essa forma de pensamento, a
aldeia global assim como abordado por Harvey:

A medida que o espaço se encolhe para se tornar urna


aldeia "global" de telecomunicações e urna
"espaçonave planetária" de interdependências
econômicas e ecológicas — para usar apenas duas
imagens familiares e cotidianas — e à medida em que
os horizontes temporais se encurtam até ao ponto em
que o presente é tudo que existe, temos que aprender
a lidar com um sentimento avassalador de
compressão de nossos mundos espaciais e temporais
(Harvey, 1989, p. 240).

Compreende-se, portanto, o impacto da globalização sobre a


identidade, e que a mundialização da cultura abordada por Ortiz (1994,
p.30), está vinculada ao encurtamento do tempo-espaço, onde a
mundialização é um processo de totalidade que se reproduz e se desfaz
incessantemente de acordo com atores sociais desse processo. Nesse
sentido, percebe-se que entrada de novos elementos culturais altera a
identidade do sujeito, a identidade perde sua totalidade e passa a está
fragmentada por novos fatores, entende que cultura enquanto tal é um
processo de constante transformações e movimentos, ou seja, cultura e
identidade pode se transformar de acordo com a globalização, pode ser
afetada mais sob nenhuma forma apagada, a cultura e a identidade estão 8

perpassando uma corrente de vida, de olhares, de posições dentro uma


comunidade, ou até mesmo de influência familiar, dessa forma, a
identidade cultural é tudo aquilo que o sujeito constrói e adquire durante
sua trajetória enquanto individuo social e mutável.

5 – Sociedade Líquida:

Abordar sobre cultura e globalização na pós-modernidade,


inserindo conceitos como aldeia global, mundialização da cultura e
identidade cultural, é uma forma de expandir fronteiras de pensamento
onde deve ser analisada a influência e a relação que os conceitos
carregam entre si. Nessa perspectiva, de uma sociedade globalizada que
passa a está ligada e conectada por redes dentro de uma aldeia global,
Bauman vai situar um pensamento de reflexão sobre as consequências
desse processo de mudanças globais.
A chamada sociedade líquida abordada por Zygmunt Bauman é
interpretada como a perda dos valores culturais e identitários na nova
sociedade pós-moderna, segundo o autor a sociedade líquida é percebida
quando as relações humanas não são mais tangíveis, tudo se torna volátil;
o consumo se torna o meio de satisfação aos indivíduos desse processo.
Segundo o autor nada permanece nesse processo, tudo se
modifica, as pessoas ficam suscetíveis às transformações globais, uma vez
que, todos, querendo ou não, estão dentro da globalização, globalização
essa que: exclui, segrega e modifica; De fato, a globalização é um
paradoxo: é benéfica para muito poucos, mas deixa de fora ou marginaliza 9

dois terços da população mundial, Bauman (1999). E essa marginalização


será a grande causadora dos problemas sociais e culturais da sociedade
pós-moderna como afirma Milton Santos (2008), a globalização como
perversidade que faz a pobreza aumentar, o salário médio baixar, e que
são frutos de comportamentos competitivos entre os indivíduos.
Globalização como processo de modificação de um cenário,
que altera a identidade, a cultura e a massa, globalização vista como
aproximação das pessoas, encurtamento das distâncias, globalização
como segregação, globalização benéfica x maléfica. Nesse sentido,
entender globalização e cultura é manter os dois lados de um paradigma,
analisando suas consequências humanas, as transformações de uma
sociedade que perde os valores se tornando em liquida por meio das
transformações, perdendo o contato e aproximando cada vez mais os
sujeitos sociais pelas telas e pelas as redes de telecomunicações.
6 - À guisa de conclusão: Globalização e Cultura na Pós-Modernidade:
Como se pode perceber ao longo desta breve reflexão, a pós-
modernidade como promotor da inovação e dominação das mídias
eletrônicas, expansão do mercado e a celebração do consumo como
satisfação pessoal é um dos marcos para o processo de uma sociedade
globalizada, que visa, sobretudo, expandir fronteiras de pensamentos, seja
ele: econômico, cultural ou social. A implantação de novos elementos
culturais que surgem ao longo desse processo, altera a identidade cultural
do sujeito e modifica a paisagem histórica global; a rede como um dos
principais meios de comunicação distancia as pessoas do contato físico e
aproxima as mesmas de um contanto virtual. 10

A globalização como agente de transformação de uma


sociedade sólida, para uma sociedade líquida, onde as mudanças são
vistas como necessárias e precisas. Desse modo, este artigo problematizou
as questões que englobam cultura e identidade em uma sociedade pós-
moderna, o objetivo aqui se tratou em ampliar uma discussão em que a
inovação da globalização possa ser interpretada como processo de
inserimento de novas culturas, compreendendo que os novos elementos
culturais que surgem nesse processo podem ser adaptados e codificados,
a uma ideia de cultura de valores que se modifica conforme a paisagem.
Fato que nos permite concluir que é possível dialogar questões
como globalização e cultura, inserindo os aspectos inovadores da aldeia
global e a transformação de sociedade sólida em líquida, cabe manter um
estudo que dialogue esses assuntos de forma mais aprofundada e ampliar
essas manifestações de identidade cultural e social na pós-modernidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
COSTA, Tathyane. R.C. A mundialização da cultura e os processos
de homogeneização e formação da cultura global. Universitas - Relações
Int., Brasília, v. 2, n.1, p. 255-267, jan./jun. 2004.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:


Zahar, 1978.
11
HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens
da mudança cultural. SP: Loyola, 1993.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de


Janeiro: DP&A, Ed. 11°, 2011.

HOBSBAWN, Eric e Terence RANGER, org. A invenção das tradições.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo. Brasiliense,


1994.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único


à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2008.

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