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FÇTÓáD QdIDMBO
Felipe Fernáncfez-Ãhiesto
Boston Public Llbrary
Boston, MA 02116
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CRISTÓVÃO COLOMBO
Digitized by the Internet Archive
in 2011
http://www.archive.org/details/cristovaocolomboOOfern
FELIPE FERNANDEZ-ARMESTO^^
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CRISTÓVÃO COLOMBO
Tradução de
Maria José de la Fuente
EDITORIAL E PRESENÇA
FICHA TÉCNICA --:, ^ ^..^ L
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Título original: Columbus
Autor: Felipe Fernández-Armesto
© Felipe Fernández-Armesto 1991
Obra publicada originalmente em língua inglesa por Oxford University Press
Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 1992
Tradução de: Maria José de la Fuente
Capa: Arranjo gráfico de Teresa Cruz Pinho
Fotocomposição e fotolitos: Textype -Artes Gráficas, Lda.
Impressão e acabamento: Guide - Artes Gráficas
1.^ edição, Lisboa, 1992
Depósito legal 53 087/92
n.°
^^ pp
Reservados todos os direitos
E1 1 1
para a língua portuguesa à
F35
EDITORIAL PRESENÇA 1 992 >c
Rua Augusto Gil, 35-A 1000 Lisboa
Homens como vós, que atravessam o mundo
uma época, abençoar, confundir, espantar,
Para fazer
São no quadro das eras primordiais
- Como insectos insignificantes em folhas obscuras -
Apenas incidentes e sulcos da Terra revelando-se.
(Thomas Hardy, Os Dinastas)
índice
Cronologia 13
9
LISTA DAS ILUSTRAÇÕES
Pormenor de um mapa-múndi, assinado por Juan de la Cosa, com data de 1500 mas
geralmente atribuído à última parte da primeira década do século xvi. Museo Naval,
Madrid.
11
LISTA DOS MAPAS
12
CRONOLOGIA
13
28 de Outubro: descobre Cuba.
6 de Dezembro: descobre Hispaníola.
24 de Dezembro: navio almirante (Santa Maria) encalhado e abando-
nado.
25 de Dezembro: forte fundado em Navidad, Hispaníola.
1493 16 de Janeiro: Colombo parte de Hispaníola.
14 de Fevereiro: Colombo vive a sua primeira experiência conhecida
da «voz» celestial.
17 de Fevereiro: avista Santa Maria, Açores; desembarca a 18 de
Fevereiro.
4 de Março: chega a Lisboa, donde parte a 1 1 de Março.
15 de Março: chega a Paios.
Abril: Colombo informa pessoalmente Fernando e Isabel, em Barcelona.
3/4 de Maio: o papa Alexandre VI promulga as bulas Inter Caetera,
concedendo a Castela a soberania sobre as descobertas de Colombo.
25 de Setembro: Colombo parte para a sua segunda travessia atlân-
tica.
14
25 de Dezembro: Colombo visitado pela sua voz celestial.
1500 Junho: Vicente Yáfiez Pinzón desembarca em Hispaniola.
Agosto: Colombo reprime outra rebelião, chefiada por Adrián de
Muxica; chega Francisco de Bobadilla para conduzir uma investiga-
ção judicial.
Setembro: Colombo é preso.
Outubro: Colombo enviado a ferros para Espanha.
16 de Dezembro: Colombo apresenta-se a Fernando e Isabel, sendo
bem recebido.
1501 Fevereiro: tem início a correspondência, que chegou aos nossos dias,
entre Colombo e Gaspar de Gorricio; parece estar a trabalhar no Livro
das Profecias.
13 de Setembro: Nicolás de Ovando nomeado governador de Hispaniola.
1502 13 de Fevereiro: partida de Ovando.
14 de Março: Fernando e Isabel autorizam Colombo a realizar uma
quarta travessia.
3 de Abril: parte de Sevilha para a quarta e última travessia; atrasado
pelas condições do tempo, deixa Cádis a 1 1 de Maio.
15
19 de Maio: a revolta dos Forras é reprimida.
Junho: expedição de socorro organizada por Diego Mendéz salva
Colombo e os seus homens; chegam a Yáquimo a 3 de Agosto.
12 de Setembro: Colombo ruma para Espanha.
7 de Novembro: chega a Sanlúcar.
26 de Novembro: morte da rainha Isabel.
Dezembro: Diego e Bartolomé Colón na corte de Fernando.
1505 Maio: Colombo, recuperando ligeiramente a saúde abalada, viaja para
a corte.
Princípio do Verão: é recebido em audiência pelo rei, em Segóvia,
com resultados pouco satisfatórios.
25 de Agosto: acrescenta codicilo ao seu testamento.
1506 Abril: os novos reis, Felipe e Juana, chegam a Espanha. Colombo
escreve-lhes a última carta conhecida.
20 de Maio: Colombo morre em Valhadolid.
16
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por um documento em que os seus primos decla- sumivelmente no início da década de 1470. a
ram o parentesco. partir de Marselha.
19
Rotas de Colombo através do Atlântico
1493: 7 Fev. -
1493: 17 Fev. -
mudanças de vento,
chega a Santa Mana.
rota para SSE 1496: 20 Maio - .^^ »
encontra vento oeste __ -
— P^"^^ ^ ^'* '^^^
/
1493: 12 Fev. - 1493: 14 Fev. - Colombo ouve a
atingido por três dias sua voz celeste pela primeira vez
de tempestades violentas /"
.
^
/
/
1492: 8 Set. - partida para Gomera. rota para O
1498: 19 JuN. - rota de Gomera para SSO e por S
/
J-. '
il ^n /
/
/
1493: 13 OuT. - partida de Hierro, rota para O por S — :?».»/
1^
Primeira travessia
'
Segunda travessia
I 1498: 30 .lUN. - Terceira travessia
* chega a Boa Vista
^/
/ Quarta travessia
Ê ã
-
Colombo rejeita
oferta pelo chefe
de duas jovens virgens,
presencia uma batalha
entre um javali e um cuatá
^
Viagem de Colombo das Honduras a Darién, 1502-03
DESIGNAÇÕES ABREVIADAS USADAS NAS NOTAS
Bemáldez A. Bemáldez, Memorias dei reinado de los Reyes Católicos, ed. J. de Mata
Carriazo (Madrid, 1962).
Buron Ymago Mundi de Pierre d'Ailly, ed. E. Buron, 3 vols. (Paris, 1930).
Cartas Cartas de particulares de Colón y relaciones coetâneas, ed. J. Gil e C. Varela
(Madrid, 1984).
Décadas Pedro Mártir de Anglería, Décadas, ed. E. CGorman, 2 vols. (cidade do México,
1964). (Como existem numerosas traduções e edições desta obra, nenhuma delas
proeminente, cito-a pelo número da década, livro e capítulo. O texto que utili-
Pleitos Pleitos colombinos, ed. A. Muro Orejón et ai. (Sevilha, 1964- ), i-iv (1964-89),
viii (1964).
Raccolta Raccolta di documenti e studi pubblicati delia Reale Commissione Colombiana,
6 partes em 14 vols., ed. C. de LoUis et ai. (Roma, 1892-96). As partes e os
volumes são citados por números romanos maiúsculos e minúsculos.
Textos Cristóbal Colón: Textos y documentos completos, ed. C. Varela (Madrid, 1984).
Os escritos de Colombo são normalmente citados a partir desta obra, a não ser
que o texto pareça mais satisfatório noutra edição.
Thacher J. B. Thacher, Christopher Columbus: His Life, Work andRemains, 3 vols. (Nova
Iorque, 1903-04).
24
.
PREFACIO
1
Textos, 101.
2 Las Casas, i. 189; este retrato é convincente mas não verificável.
3 Textos, 268.
4 Ver p. 33 n. 8.
25
grafias eruditas, com poucas excepções, não transmitiram qualquer impres-
são geral mais convincente sobre Colombo, deve-se provavelmente culpar
a influência enganadora dos escritores do século xvi tratados vagamente
como fontes primárias^ Durante quinhentos anos, a historiografia de Colombo
tem flutuado sem atender à necessidade de uma boa e longa estadia em
doca seca. Tal como um casco coberto de lapas, necessita de uma vigorosa
limpeza para se livrar da concreção glutinosa de erros e ideias falsas.
Quando devolvido a águas profundas, deverá ser conduzido cautelosamente
para evitar tanto as teorias excêntricas como as especulações indiscipli-
nadas. No Mar das Trevas, erguem-se vozes de Sereias de todos os lados.
Este livro foi escrito na convicção de que os leitores exigem factos puros
sobre Colombo, na medida em que estes possam ser descobertos. Procurei
nada dizer que não possa ser verificado - ou, em certos casos, razoavelmente
deduzido - em fontes inatacáveis. Excluíram-se as narrativas do século xvi,
excepto quando demonstram reflectir fontes que se perderam ou para o aperçu
ocasional que me pareceu útil e que foi claramente sinalizado, com um aviso
ao leitor, no texto ou nas notas. Mesmo os relatos escritos pouco depois da
morte de Colombo por observadores privilegiados foram escassamente usa-
dos, sendo sujeitos a confirmação. As próprias narrativas de Colombo, que
dificilmente podem ser excluídas, foram tratadas experimentalmente e exa-
minadas cuidadosamente quanto aos objectivos de promoção ou justificação
que distorceram quase todos os pensamentos que Colombo confiou ao papel.
Como resultado da minha confiança nos próprios escritos de Colombo e do
tratamento céptico que lhes dei, grande parte deste livro não se refere tanto
ao que aconteceu a Colombo mas ao que se passava na sua mente, que - tal-
vez surpreendentemente - é mais fácil conhecer.
O Colombo que assim se nos revela pode não ser muito mais objectivo
que qualquer outro, quando a sua imagem surgir tremeluzindo entre a retina
do leitor e a minha. O Colombo que vejo - o novo-rico socialmente ambi-
cioso e socialmente desastrado, o autodidacta intelectualmente agressivo
mas facilmente intimidado, o fugitivo amargurado das realidades doloro-
sas; o aventureiro inibido pelo medo do fracasso - é, creio, consistente com
os testemunhos, mas seria sem dúvida possível reconstruir a imagem de
26
outras formas a partir dos mesmos testemunhos. Outros estudiosos imaf^i-
naram-no essencialmente como um marinheiro experimentado, um materia-
lista impiedoso, um vidente místico ou uma personificação do capitalismo
burguês; a origem dos seus motivos tem sido atribuída a um impulso evan-
gélico, aalguma convicção religiosa mais generalizada, ao espírito de cru-
zada, à curiosidade científica, à sabedoria esotérica ou mesmo «secreta»
ou à ganância. Considero estas versões pouco convincentes, mas não escrevi
para apresentar a minha visão à custa delas - unicamente para satisfazer
os leitores que desejem fazer a sua própria escolha dentro do leque de pos-
sibilidades genuínas.
Existem, no entanto, três tradições da historiografia de Colombo que
vivamente desafio. A primeira é a tradição mistificadora que revela alega-
das verdades crípticas que os testemunhos não podem divulgar Obras deste
tipoargumentam que Colombo não era o que parecia ou que o seu plano
de uma travessia atlântica escondia algum objectivo secreto. Por exemplo,
o testemunho racionalmente incontestável da proveniência genovesa de
Colombo não impediu os mistificadores de fabricarem um Colombo portu-
guês, castelhano, catalão, maiorquino, galego ou ibizino, por vezes com a
ajuda de documentos forjados^. Num nível mais elevado de mistificação,
uma tradição persistente tem insistido num Colombo judeu. A sua própria
atitude para com os Judeus não estava isenta de ambivalência: por um lado,
tratava-os com respeito e afirmava, por exemplo, que tal como os Mouros
e os pagãos podiam ter acesso aos dons do Espírito Santo; por outro lado,
partilhava dos preconceitos característicos do seu tempo, condenando os
Judeus como fonte «réproba» de depravação herética e acusando os seus
inimigos da mancha de proveniência judaica^. A teoria de que ele próprio
era de fé ou origem judaica pode apenas ser defendida ex silentio, na ausên-
cia - e por vezes a despeito - de testemunhos^.
Os crentes nos «segredos» de Colombo desenvolvem-se sem testemu-
nhos porque, como todas as crenças irracionais, a sua alimenta-se da indi-
27
ferença por provas. Assim, alguns eruditos geralmente dignos de elogio
argumentam, por exemplo, que todos os testemunhos que provam que Colombo
navegou em 1492 numa missão à Ásia deveriam ser «descodificados» para
demonstrar o oposto ou que o seu plano pode ser explicado apenas por
acesso a conhecimentos prévios secretos, transmitidos por um «piloto des-
conhecido» ou ainda por meio de uma pré-descoberta casual da América
pelo próprio Colombo ou até como resultado de um encontro fortuito com
índios americanos^. Os leitores deste livro podem estar certos de que serão
poupados a especulações precipitadas deste tipo.
A segunda tradição discutível trata a escassez de testemunhos como
pretexto para conjecturas intuitivas. As reconstruções imaginativas do que
Colombo «deve» ter pensado ou feito em momentos em que as fontes são
silenciosas ou ignoradas formam a base de conclusões vácuas. Baseando-
-se em tais devaneios, em obras extremamente populares, tem sido atribuí-
da a Colombo uma vigorosa vida amorosa, com relances visionários da
América na Islândia e em Porto Santo, com visitações pelas suas «vozes»
não confirmadas e com um plano para esconder a sua presumível ascen-
dência hebraica^^. Por vezes o método é defendido por um desprezo claro
pelos recursos essenciais do inquérito histórico, por um apelo a «deixar os
documentos poeirentos na prateleira e regressar à carne e ao espírito» ou
à especulação permitida porque «não existem documentos, apenas as vidas
reais destes homens e mulheres, cujo sangue corria nas suas veias como o
nosso corre nas nossas»^^. No entanto, mesmo estando dispostos a aceitar
este raciocínio obviamente falacioso, a premissa em que se baseia é falsa.
Estamos extremamente bem informados sobre Colombo. Nenhum contem-
porâneo de origem humilde ou vocação marítima deixou tantas marcas nos
registos ou tantos escritos próprios.
O último perigo que procurei evitar é o de subscrever uma lenda da
autoria do próprio explorador O retrato transmitido pela tradição histó-
rica deuma figura extraordinariamente decidida é falso, estou certo. Embora
Colombo pudesse ser obsessivamente teimoso, a sua auto-imagem, como
procuro mostrar neste livro, estava manchada pela dúvida. O seu sentido
28
do propósito divino cresceu gradual e irregularmente e nasceu e foi ali-
mentado na adversidade. As suas ideias a respeito da geografia tomaram
forma lentamente, sendo muito volúveis nos primeiros estádios. O seu desen-
volvimento mental prosseguia intermitentemente e conduziu em diferentes
épocas a diferentes direcções. A visão contrária - segundo a qual as suas
ideias surgiram repentinamente, como por revelação ou divulgação «secreta»,
ou foram sustentadas consistentemente, desafiando a troça contemporânea,
com um inflexível sentido do objectivo - tem a sua origem numa imagem
«promocional» que Colombo projectou nos seus próprios escritos na última
fase da sua vida. O seu objectivo era não só dramatizar a sua história e
realçar a base exclusiva das suas reivindicações de recompensas materiais
mas também apoiar um retrato mais amplo de si próprio como agente pro-
videncial. Defendia que fora divinamente escolhido para executar parte do
plano de Deus para a humanidade, tornando o seu Evangelho conhecido
em zonas não evangelizadas da Terra. Essa leitura tendenciosa da sua pró-
pria vida foi adoptada pelos autores das narrativas pormenorizadas do
século XVI, que influenciaram todos os escritores subsequentes. Bartolomé
de Las Casas, cuja obra tem sido fundamental para todos os estudos moder-
nos sobre Colombo, aceitava a auto-avaliação de Colombo como mensa-
geiro divino porque partilhava de uma visão providencialista da história e
escreveu para justificar e celebrar um apostolado entre os índios em que
ele pessoalmente desempenhou um papel importante; a segunda narrativa
mais influente, a Historie deirAmmiraglio, reflecte praticamente a mesma
visão, porque derivava da obra de Las Casas ou talvez porque foi realmente
obra do filho de Colombo, a quem é atribuída'^. Embora poucos historia-
dores modernos admitam uma concepção providencialista da história, quase
todos aceitam uma versão secularizada da lenda, geralmente com resulta-
dos enganadores. Algumas conclusões precipitadas têm-se baseado, por
exemplo, no mito da «certeza» de Colombo, que tem a sua origem na ima-
gem vivida de Las Casas: «estava tão certo do que ia descobrir que era
como se o tivesse num quarto fechado com a sua própria chave»'\
Colombo é melhor conhecido - isto é, compreendido mais completa-
mente - nos contextos a que pertencia: o mundo genovês de fins do século x\';
a Lisboa e a Andaluzia com infiuências genovesas para onde foi num período
crítico da sua carreira; a corte dos monarcas espanhóis, que foi efectiva-
mente a sua base de operações na segunda parte da sua vida; o desenho
de mapas e a exploração do Atlântico na sua época; o mundo da espe-
'2
Asua publicação em 1571 destinou-se, de qualquer forma, a servir os interesses da
família Colón. Ver A. Cioranescu, La primera biograjia de Cristóbal Colón (Santa Cruz
de Tenerife, 1960), e A. Rumeu de Armas, Hernando Colón: Historiador dei descubrimiento
de América (Madrid, 1973).
13
J. Laraer, «The Certainty of Columbus», History, 73 (1988), 3-23; Las Casas, i. 72.
29
culação geográfica que o rodeava, e, num segundo plano mais remoto, a
lenta mudança do centro de gravidade da civilização ocidental do
Mediterrâneo para o Atlântico, para a qual deu um contributo tão impor-
tante. Procurei delinear estes resumidamente. Actualmente, os historiado-
res deveriam apenas exigir um tempo limitado aos seus leitores e o objec-
tivomais importante desta obra é o de abarcar o essencial deforma correcta
mas convenientemente breve.
Quase tudo o que sei sobre Colombo foi aprendido em dez anos de
ensino destinado a trabalhos baseados em parte nos seus escritos, nas
Faculdades de História Moderna e de Línguas Medievais e Modernas na
Universidade de Oxford. Em relação aos colegas e alunos, estou especial-
mente em dívida para com Roger Highfield, Penry Williams, John Hopewell
e Alina Gruszka. Os meus erros, como os de Colombo, provêm de indife-
rença aos conselhos^"*.
^^ Enquanto esta obra estava a ser escrita, o professor A. Rumeu de Armas chamou a
minha atenção para um manuscrito recentemente aparecido, sem qualquer antecedente ou pro-
veniência convincente, parecendo ser uma cópia do século xviii de alguns documentos de
Colombo, incluindo alguns desconhecidos por outras fontes. Tenho o maior respeito pela
apreciação do professor Rumeu, mas senti-me obrigado a deixar de parte este manuscrito, a
que farei uma crítica pormenorizada em devido tempo. Existe uma edição fac-similada: Libro
copiador de Don Cristóbal Colón (Madrid, 1990).
30
1
DE GÉNOVA AO ATLÂNTICO,
C.1450-C.1480
'
Raccolta, II. i. 16; Cristo/oro Colombo: Documenti e prove delia sua appartenenza a
Génova (Génova, 1931), 116-17.
31
as suas origens. Uma biografia primitiva atribuída a seu irmão mais novo
sugere que tal se devia a modéstia. Preferia, segundo alega o seu biógrafo,
ascender por mérito próprio do que confiar nos seus ilustres antepassados
para marcar o seu lugar no mundo^. Um conceito típico da filosofia moral
do Renascimento encontra-se na base do argumento: a nobreza consiste não
numa linhagem antiga mas na virtude pessoal. No entanto, este, tal como
muitos outros conceitos do Renascimento, não foi inteiramente partilhado
por Colombo. Ter-se-ia gabado de uma linhagem antiga, se a tivesse pos-
suído. O seu desejo de possuir antepassados ilustres pode detectar-se na rei-
vindicação duvidosa de que «eu não sou o primeiro almirante da minha
família». Era mais franco quando admitia que os seus patronos o tinham
«erguido do nada»^
Embora referisse um antepassado almirante, suprimiu qualquer men-
ção a seu pai tecelão. Sua mãe, Susanna, filha de um tecelão, foi abafada
pelo mesmo silêncio, tal como sua irmã, Bianchinetta, que casou com um
fabricante de queijos. Porém, aos irmãos que sobreviveram até à idade
adulta - Bartolomeo e Giacomo, conhecidos exclusivamente segundo a
ortografia castelhana como Bartolomé e Diego - Colombo demonstrou o
devido sentimento familiar: «laços de sangue e grande amor», como disse'*.
Bartolomé foi o companheiro e delegado durante os longos anos gastos a
suplicar patrocínio nas cortes ocidentais da Cristandade latina e o braço
direito nas suas tentativas de estabelecer uma colónia no Novo Mundo.
Diego acompanhou a segunda travessia atlântica de Colombo e continuou
a merecer o seu afecto e a obter o seu patrocínio. «Nunca tive melhores
amigos», recordou Colombo no fim da sua vida, «tanto nos bons como nos
maus momentos, do que os meus irmãos.» Partindo de um homem que fazia
amigos nos bons momentos, muitos dos quais o abandonaram, talvez esta
afirmação não tenha grande significado. A lealdade mútua de Colombo e
seus irmãos durante o período ao serviço de Espanha trouxe-lhe o conforto
da solidariedade familiar numa terra estranha e em companhia hostil, mas
provocou ressentimentos nos subordinados excluídos de viagens e de coman-
dos coloniais. Seus primos de gerações diferentes Giovanni António e
Andrea serviram-no nas terceira e quarta travessias atlânticas, respectiva-
mente, alimentando a desilusão que muitos dos outros seguidores de Colombo
sentiam por todo o grupo familiar^.
Domenico Colombo não terá sido um pai de que fosse fácil orgulhar-
-se. Se, como é provável, pode ser identificado com o tecelão do mesmo
nome registado também como proprietário de um botequim em Savona,
2 Historie, i. 43-55.
3 Ibid. 55.
4 Textos, 189.
5 Cartas, 289, 319; Las Casas, i. 497; Textos, 339, 351
32
podemos presumir que fez algum esforço para melhorar a sua sorte; mas
em 1473, ao necessitar urgentemente de dinheiro, liquidou alguns bens
móveis e dez anos depois sofria pressões dos credores para vender a sua
casa. Uma identificação menos certa refere-se a Domenico Colombo como
guarda de uma porta da cidade em
1447 e 1450; o exercício de uma fun-
ção oficial, embora tão modesta, não poderia ter sido obtido sem o patro-
cínio de uma das facções dominantes na turbulenta história da política geno-
vesa, mas esta linha de pesquisa, embora intrigante, é demasiado vaga para
se prosseguir com proveito^.
«Colombo o pobre» - como lhe chamou um comentador primitivo^ -
não suprimido por modéstia referências a progenitores tão banais. As
teria
origens obscuras constituem explicação suficiente para as suas reticências.
Nem Colombo era homem para fazer qualquer coisa por modéstia. Mesmo
a humildade que aparentou no fim da vida, usando um hábito grosseiro^
era de tipo ostensivo e exibicionista. Afirmou ter sido inspirado divinamente
- o que representa uma forma curiosamente egotista de obscuridade. O papel
de grande nobre e de «capitão de conquistas», idealizado para si próprio
nos últimos anos de vida, estava estranhamente bem descrito e o argumento
impressionantemente bem aprendido para um homem sem educação*^.
Segundo um ponto de vista, o propósito isolado mais consistente a que
a sua própria vida foi dedicada consistiu no desejo de fundar a sua própria
dinastia nobre. As prioridades que afirmou - o serviço de Deus e dos monar-
cas de Espanha, o progresso da ciência - surgem em comparação como
subordinadas ou auxiliares: fios do manto de auto-engrandecimento que o
ex-tecelão criou para si próprio. Os companheiros descontentes na sua pri-
meira travessia atlântica compreenderam bem essas prioridades: queixaram-
-se de que queria, acima de tudo, «ser um grande senhor» e estava disposto
a arriscar a sua vida e a deles para tal^^. Na sua última viagem negou qual-
quer desejo de «posição e riqueza», mas admitiu, implicitamente, que tais
tinham sido os seus objectivos até então''.
A Igreja e a guerra constituíam as vias principais de ascensão na época de
Colombo. Seu irmão mais novo, Diego, terá decidido, em data desconhecida
embora Colombo evi-
anterior a 1498, seguir a carreira eclesiástica'^; mas,
denciasse uma sensibilidade religiosa invulgarmente forte no fim da vida, não
parece ter demonstrado qualquer vocação semelhante quando jovem. Quando
^ II. i. 84-160.
Raccolta,
Thacher, i. 190; cf a ênfase dos primeiros prosopógrafos genoveses nas suas origens
^
33
começou a sentir-se como figura quase sacerdotal - usando um hábito fran-
ciscano e levando a luz do Evangelho aos pagãos - na última década da sua
vida, adoptou também, aproximadamente na mesma altura, a autopercepção
marcial «capitão enviado de Espanha para conquistar um povo nume-
como
roso e guerreiro» ^^ Ambas estas simulações, no entanto, foram adições tardias
à sua bagagem mental. A espiritualidade foi abraçada, como veremos, como
refugio da adversidade; o papel marcial foi alegado, durante o seu período de
desgraça em 1500, para esconder as suas deficiências como adm^inistrador.
Numa carta escrita em 1495 insinuou, quase certamente de forma enganadora,
que comandara uma expedição no mar quando jovem, nas guerras entre as
dinastias angevina e aragonesa pelo domínio do reino de Nápoles^'^. Com esta
excepção, não existe qualquer outra indicação de que Colombo alguma vez
tenha tido ocasião de seguir um rumo guerreiro para autopromoção.
Mas o século xv oferecia também aos ambiciosos por ascensão social
a via marítima para concretização dos seus objectivos, geralmente através
de alpondras representadas por ilhas. Um dos mais recentes e populares
livros na Espanha de Fernando e Isabel era o descrito em Don Quixote como
«o melhor do mundo» - o Tirant lo blanc, de Joan Martorell, um extrava-
gante romance de cavalaria, em que uma das personagens é um «rei das
ilhas Canárias» que lança, com ironia presumivelmente consciente por parte
do autor, a invasão da Europa. A criação de um reino numa ilha é um desen-
lace comum nas obras do género: em Don Quixote a tradição é ridiculari-
zada através da aspiração de Sancho Pança de governar uma ilha. Quando
Fernando e Isabel acrescentaram o título de «rei e rainha das ilhas Canárias»
à relação de títulos com que encabeçavam as suas cartas, estavam a ultra-
passar a ficção e a tomar o romance realidade, servindo-se Colombo da
mesma tradição quando se lhes dirigia tratando-os como «rei e rainha das
ilhas do Oceano». Uma alquimia semelhante transformou homens de baixa
condição em príncipes ou governadores no início do século. Um assassino
membro da escória de «cavaleiros e escudeiros» de Henrique*, o Navegador,
foi transformado em «Tristão da Ilha» pelos seus serviços na Madeira.
O aventureiro normando Jean de Béthencourt proclamou-se rei das ilhas
Canárias nas ruas de Sevilha. Um dos homens «feitos» pelas escapadas às
ilhas do «mar Oceano» (como o Atlântico era então conhecido) foi Bartolomeu
34
Perestrello, membro do grupo de Henrique, o Navegador, enviado para colo-
nizar e governar Porto Santo: o casamento com a filha de Perestrello, em
data desconhecida entre 1477 e 1480, seria o primeiro grande passo de
Colombo para alcançar o prestígio social '^
O mundo da aventura maritima a que Colombo se juntou era evocado, tal-
vez da melhor forma, pela figura do conde Pêro Nifio, cuja crónica, escrita
pelo seu porta-estandarte no segundo quartel do século xv, constitui um tra-
tado de cavalaria bem como um relato de campanhas: El vitoriai exalta um
cavaleiro nunca vencido em ou amores e cujas maiores bata-
torneios, guerras
lhas eram travadas no mar - «ganhar uma batalha é o maior bem e a maior
glória da vida». Quando o autor discorre sobre a mutabilidade da vida, os seus
«mãe» é o mar «e aí está a minha
interlocutores são a Fortuna e o Vento, cuja
obra principal». O
contemporâneo de Colombo, o jovem poeta português Gil
Vicente, era capaz - graças às conotações cavaleirescas do mar - de compa-
rar uma bela mulher a uma embarcação e a um cavalo de batalha sem parecer
incongruente. Era como se o romance se pudesse sentir entre os ratos e bis-
coitos da vida a bordo ou as ondas pudessem ser montadas como pequenos
cavalos. Não há testemunhos de que Colombo tenha alguma vez lido qualquer
literatura cavaleiresca do mar, mas movimentava-se num mundo mergulhado
nela.A sua vida foi, de certa forma, a personificação desta literatura e as ilhas
que ornamentavam o brasão que conquistou eram dela uma imagem'^.
Para um jovem genovês de origem modesta e pouca educação, a vida
de marinheiro constituía uma opção de carreira perfeitamente natural. Colombo
era franco sobre a sua falta de estudos de base - de forma mais eloquente,
numa retrospectiva feita em 1501 escrita quando passara já o clímax da sua
carreira e a sua saúde e sorte se encontravam em declínio, afirmou:
Velejei por todos os mares navegados até hoje. Conversei e troquei ideias com
homens cultos, clérigos e leigos, latinos e gregos, judeus e mouros e muitos outros de
A esse desejo meu descobri que Nosso Senhor era muito favorável e para
outras religiões.
taldeu-me o espírito da compreensão. Dotou-me abundantemente para a marinharia;
deu-me o suficiente para a astrologia e também para a geometria e a aritmética, com o
talento e a habilidade de fazer representações do globo e desenhar nelas as cidades,
os rios e as montanhas, as ilhas e os portos, todos nos seus lugares próprios. Ao longo
deste tempo vi e estudei livros de todos os géneros - geografia, história, crónicas, filo-
sofia e outras artes -, pelos quais Nosso Senhor abriu o meu entendimento com a Sua
mão manifesta ao facto de que era praticável velejar daqui para as índias •^.
15
F. Femández-Armesto, The Canary Islands after the Conquest (Oxford, 1982), 136-
-40; Monumenta henricina, 15 vols. (Coimbra, 1960), ix. xi. 110, 142; P. Margry,
55, 129;
La Conquête et les conquérants des íles Canaries (Paris, 1886), 253; Fontes Rerum Canariarum
(La Laguna, 1933- ), ix. 31, 33; xi. 107, 215; Historie, i. 61-2.
•6
G. Díez de Games, El vitoriai, ed. J. de Mata Carriazo (Madrid, 1940), 40-7, 86-96, 201,
256-61, 300; G. Vicente, Obras Completas, ed. A. J. da Costa Pimpão (Barcelos, 1956), 55.
1^ Textos, 277.
35
Embora destinada a fornecer uma explicação da génese do seu projecto
para uma travessia atlântica, esta passagem tem o efeito de descrever o seu
próprio processo longo e lento de autodidáctica. Como outros homens devo-
tos em situação semelhante, Colombo atribuía evidentemente a Deus o seu
próprio papel na aquisição de conhecimentos e da perspicácia prática que
o caracterizaram na idade madura. Pela forma como o exprime, é óbvio que
pouco ou nada deste saber foi adquirido na infância.
Não frequentou certamente nenhuma universidade: o seu suposto lugar
entre os estudantes universitários de Pavia foi invenção de um biógrafo pri-
mitivo ^l A sua avaliação por um amigo - o sacerdote e cronista da sua pró-
pria época, Andrés Bemáldez - como um homem de «elevado intelecto mas
reduzida educação» ^^ era exacta. Apresentava as falhas intelectuais caracteris-
ticas de um autodidacta. A sua mente sofria dos defeitos que podem ser cau-
uma absorção de
sados por conhecimentos desordenada e não sistemática, tal
como uma embarcação ao largo num oceano sem estrelas. Lia apaixonada-
mente mas não criticamente; adquiriu, durante um longo periodo, grande quan-
tidade de informação,mas nunca conseguiu utilizá-la da melhor maneira. Era
capaz de imitar grande variedade de estilos em diversas línguas, mas cometia
sempre erros tolos ou risíveis. Saltava - nas suas tentativas de raciocínio -
para conclusões estranhas, com base em testemunhos pouco sólidos, que uma
preparação mais equilibrada o poderia ter ensinado a evitar. Seleccionava obses-
sivamente as suas leituras, escolhendo tudo o que apoiasse as suas próprias
teorias, rejeitandoou distorcendo tudo quanto não se enquadrasse.
Em qualquer caso, segundo as próprias palavras as suas viagens na juven-
tude precederam a sua autodidáctica tanto analiticamente como no tempo.
«Desde muito jovem», escreveu em 1501, «velejei pelo mar, ocupação que
conduz todos os que a seguem a desejarem aprender os segredos do mundo.»^^
Quer isto dizer que as suas experiências de navegação o conduziram como
que soprado pelo vento e arrastado por uma corrente para o oceano da espe-
culação geográfica. Provavelmente, a procura da glória no mar surgiu em
Colombo gradualmente, à medida que aumentava a sua experiência de mari-
nheiro. Seria precipitado supor que iniciou a sua carreira náutica com quais-
quer ambições específicas. Exceptuando o nascimento genovês, a única outra
afirmação digna de crédito por Colombo sobre a sua vida passada foi
feita
a reivindicação de ter ido para o mar «muito jovem». A data é desconhe-
cida. A biografia atribuída a seu filho diz que tal aconteceu quando o futuro
descobridor tinha catorze anos. Em 1492, Colombo datou o mesmo acon-
tecimento de vinte e três anos antes (se se pode confiar na transcrição do
documento)^^ Em 1472, Colombo ainda se encontrava envolvido, pelo menos
36
em certos períodos, no negócio de tecelagem da família - embora isto não
excluísse a realização de viagens marítimas, por exemplo, para compra de
lã ou venda de tecidos^^.
As
suas navegações, cuja realização podemos afirmar com segurança
terem ocorrido entre o início da década de 1470 e meados da década de
1480, podem reconstituir-se a partir de vestígios mais ou menos casuais nas
fontes (ver mapa 1). Julgando pelas aparências, parecem abranger um leque
espantoso, levando-o não só pelas águas territoriais de Génova nos mares
Ligúrico e Tirreno^^ mas também para leste até aos limites do Mediterrâneo,
em Quios^"*, e para oeste até aos pontos mais remotos da navegação efec-
tuada no Atlântico: até à Islândia ao norte, aos Açores ao centro e ao golfo
da Guiné ao suP^ Este impressionante registo de aprendizagem náutica deve
ser tratado com cautela pois deriva quase inteiramente do próprio testemunho
de Colombo. Porém, faz sentido no cenário da Génova do seu tempo - cená-
rio que, se examinado de perto, pode suprir as deficiências do nosso conhe-
cimento sobre os primeiros tempos da vida de Colombo transmitindo uma
ideia do mundo em que ele se movimentava.
22
Cristoforo Colombo: Documenti e prove, 187.
23
Textos, 306.
24
Ibid. 55, 78.
25
Ibid. 167; Raccolía, I. ii. 291, 364-9, 375, 390, 406-7; Historie, i. 64-7, indirectamente
confirmado por Textos, 19.
S. Munster, Cosmographia (Basileia, 1554), 139, 178; (1572), 178, 248.
26
37
que Jano empenha no desenho de Miinster deveria ser considerada como
abrindo a «porta» não da antiga estrada romana da Gáha para Itália pela
costa mas das colunas de Hércules.
A rede genovesa de centros de produção e permuta constituía um impé-
rio apenas em sentido muito restrito: em primeiro lugar, porque lhe fal-
tava a direcção central das instituições do Estado; em segundo, porque
abrangia poucas colónias independentes; em terceiro, devido à ambiva-
lência dos mercadores genoveses, cujo sucesso devia muito à sua solida-
riedade mútua mas ainda mais à sua capacidade de adaptação e ao talento
para diferenciar e servir interesses privados ou familiares mais do que os
da sua nação. Além disso, a política genovesa tinha o carácter de «caran-
guejo eremita», satisfeita sempre que conseguisse trabalhar em conjunto
com outros Estados ou ao lado deles. Desde Bizâncio e o Canato da Horda
Dourada no Oriente no Ocidente, os Genoveses
até Portugal e Castela
aceitaram a protecção de príncipes estrangeiros; o resultado foiuma forma
de colonialismo encoberto ou de imperialismo substituto em que, por exem-
plo, grande parte do lucro da expansão ultramarina castelhana foi atraída,
acenando os cordões da bolsa, para mãos genovesas. Outro efeito foi um
meio ideal para Colombo, permitindo-lhe ser auxiliado pela amizade dos
seus conterrâneos quando ao serviço de monarcas estrangeiros. Isto iria
combinar o melhor de dois mundos.
O que transformou a dispersão genovesa pelo Mediterrâneo numa rede,
senão num império, não foi uma política conscientemente imperial do Estado
genovês mas um sentimento - por vezes um sentimento abafado - de soli-
dariedade nacional, apoiado e frequentemente excedido por laços familia-
res. Em em geral caracteristico das comunidades
graus diferentes, isso era
mercantis mediterrânicas. O
exemplo mais notável é fornecido pelos Judeus,
que não tinham um Estado próprio mas que passavam com facilidade de
porto para porto ou de mercado para mercado, entre os seus correligioná-
rios, fazendo os seus investimentos com base em recomendações de irmãos
e primos. Mesmo em Veneza, onde a lei comercial era altamente sofisticada
no século XIII e onde pessoas sem parentesco e até desconhecidas entre si
podiam formar uma sociedade mutualista ou tomar parte em conjunto num
empreendimento accionista, a maioria das empresas comerciais de sucesso
tinha base familiar. Ser genovês, porém, era pertencer a uma comunidade
com características e vantagens bem diferenciadas.
A versatilidade genovesa não excluía a nostalgia da metrópole. Se os
mercadores tinham sucesso ao adaptarem-se a qualquer ambiente econó-
mico e a qualquer clima político, o reverso da sua ambivalência era o sen-
timento permanente de ser genovês e a capacidade duradoura de explorar
os contactos genoveses. Os nomes das ruas da Kaffa do século xiv - a
colónia independente de Génova no mar Negro - lembravam os da pátria.
O poeta conhecido como o Anónimo de Génova relacionou a capacidade
38
de adaptação dos seus conterrâneos com a sua capacidade de reproduzir o
«ambiente» da cidade natal:
27
Poesie, ed. L. Cocito (Roma, 1970), 566.
28
J.Heers, «Portugais et génois au xv^ siècle: La Rivalité Atlantique-Méditerrannée», Actas
do Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, ii (Lisboa, 1960), 141-7.
III
J. Heers, Genes au xr siècle (Paris, 1961), 200-4, 544-9; M.
29 Balard, La Romanie
39
tomou-0 independente da família no mundo comercial atlântico,
e iniciou-o
mas era improvável que conduzisse ao tipo de riqueza ou fama a que aspi-
rava e, embora estivesse grato aos Centurione pela iniciação recebida, que
recordou no seu testamento, abandonou a empresa logo que lhe foi possí-
vel. Porém, a relação provou ter valor duradouro, pois os Centurione actua-
ram como banqueiros no financiamento da sua terceira viagem transatlân-
tica em 1498 e continuaram a tratar de assuntos bancários para os herdeiros
de Colombo^^
Os talentos ambivalentes dos mercadores genoveses tornavam-nos
adaptáveis não só a uma variedade de ambientes mas também a uma diver-
sidade de tipos de comércio. Nos séculos xii e xiii, os negócios mais
atractivos tinham-nos conduzido ao Mediterrâneo Oriental, em busca de
especiarias. No decurso do século xiv, no entanto, os Genoveses dedica-
ram a maior parte do seu esforço (a grande maioria em termos de volume
e talvez um pouco mais de 50% em termos de valor) aos produtos locais
da bacia mediterrânica do Nordeste, mais volumosos para o transporte
mas dependentes da oferta: acima de tudo, a mástique de Quios, o alú-
men de Foceia, os produtos florestais danubianos e do Norte, os cereais
de Chipre, as vasilhas do Danúbio ou do mar Negro e os escravos do mar
Negro. As especiarias propriamente ditas tendiam a ser canalizadas atra-
vés de Beirute e Alexandria, onde os Venezianos dominavam. As galés
genovesas deixaram de ter utilidade e foram substituídas - quase na tota-
lidade no fim do século xiv - por embarcações de casco redondo para
transporte de grandes volumes. Aproximadamente na mesma época, as
sedas chinesas, comércio valioso e lucrativo da Roménia genovesa no iní-
cio do século XIV, tomaram-se escassas como resultado da ruptura da
«estrada mongol» para a China^^
Como que para solucionar estas dificuldades, até que a Sicília e o Algarve
começassem a fornecer maiores quantidades de açúcar e seda de melhor
qualidade, sob os auspícios genoveses, Génova encontrou uma região pró-
xima possuidora de açúcar e seda, no extremo ocidental do Mediterrâneo,
no reino mouro de Granada. Embora fosse uma especiaria oriunda mais do
Levante do que do Oriente, o açúcar foi classificado, juntamente com a
pimenta, a canela, a noz-moscada, a mácide e o cravo-da-índia, como con-
dimento exótico. O açafrão e os frutos secos e em conserva eram outros
produtos granadinos aproximadamente da mesma categoria. A indústria do
açúcar de Granada tinha o seu próprio porto em Almería, onde a maioria
dos mercadores genoveses do reino tinha representantes, mas o entreposto
30
Textos, 188, 363; R. Pike, Enterprise and Adventure (Nova Iorque, 1966), 99, 186,
192-3. Colombo reclamava parentesco com os Fieschi {Textos, 332), parentes dos Centurione,
mas até hoje não surgiu qualquer documento comprovativo.
31
M. Lombard, «Kaffa et la fm du route mongole», Annales, 5 (1950), 100-3.
40
principal era Málaga, um excelente porto na rota marítima do Mediterrâneo
para o Atlântico, com acesso à região interior granadina onde se cultiva-
vam esses produtos exóticos.
Além disso, sendo uma espécie de terra oriental deslocada. Granada
gozava de um acesso privilegiado ao Magrebe islâmico e, consequentemente,
ao ouro sariano - o eterno íman e motor do interesse europeu por África e
pelo Atlântico africano no fim da Idade Média. No século xv, Málaga
ocupava normalmente o terceiro ou o quarto lugar entre os portos ibéricos
que faziam embarques directos de ouro magrebino para Génova. Sevilha,
Cádis e Valência eram os outros centros. Mas estas estatísticas podem ocul-
tar a importância primordial do reino de Granada no comércio do ouro.
O ouro, uma vez no mar, viajava por rotas complexas. Os genoveses pare-
cem ter achado conveniente comprar o seu ouro em Castela e Valência, onde
o preço da prata era relativamente baixo. E enquanto grande parte desse
ouro, especialmente em Valência, era proveniente do comércio directo com
a Berbéria, uma das principais fontes de Castela era constituída pelo tributo
granadino, que deve ter passado virtualmente sob os olhos dos genoveses
de Málaga no seu percurso para as mãos dos seus irmãos, primos, sócios e
patrõesem Cádis e Sevilha^^. Ao longo do período de procura de patrocí-
nio feita por Colombo na corte castelhana, os monarcas de Castela estavam
envolvidos na guerra pela conquista de Granada; Málaga caiu em seu poder
um ano depois da primeira audiência concedida a Colombo; o último reduto,
a própria Granada, caiu quase no dia em que decidiram conceder a Colombo
o comando de uma expedição. Neste cenário, o relevo dado por Colombo às
referências ao comércio de ouro na sua correspondência com os monarcas é
prontamente inteligível^^
Todas as indústrias servidas pelo comércio genovês implicavam espe-
cialização geográfica, o que por sua vez implicava comércio a grandes dis-
tâncias. A
indústria têxtil dependia da concentração de lãs e de corantes nos
centros industriais, a «preparação de alimentos» pela junção de alimentos
frescos e de sal. A
indústria de ouro da própria Génova - para transforma-
ção do ouro em bruto em moeda, folha e fio - dependia do fornecimento
de ouro africano aos técnicos italianos; a construção naval exigia um casa-
mento semelhante de matérias-primas com perícia técnica e uma combina-
ção de madeira, ferro, lona e pez. Portanto, parte do estímulo para a pene-
tração genovesa no Atlântico provinha das necessidades e oportunidades
comerciais geradas pela presença de Génova no Mediterrâneo Oriental.
32
A. Boscolo, «Gli Insediamenti genovesi nel sud delia Spagna airepoca di Cristoforo
Colombo», Saggi di storia mediterrânea ira il xiv e xv secoli (Roma, 1981), 74-7; F. Melis,
1
«Málaga nel sistema económico dei xiv e xv secoli». Economia e storia, 3 (1956), 19-59,
139-63; J. Heers, «Le Royaume de Grenade et la politique marchande de Genes en Occident»,
LeMoyen Âge, 63 (1957), 87-121.
33
Verpp. 116, 118-121, 138-140.
41
E quando a actividade colonial genovesa se iniciou intensamente nos arqui-
pélagos atlânticos - especialmente nos da Madeira e das Canárias - no
século XV, o Mediterrâneo Oriental forneceu modelos económicos funda-
mentais e novas mercadorias que transformariam a ecologia das ilhas e for-
mariam a base das economias atlânticas primitivas.
A mais importante daquelas mercadorias era o açúcar. Único entre os
condimentos exóticos apreciados pelos paladares na Cristandade latina, o
açúcar podia ser cultivado no Mediterrâneo. As primeiras plantações de açú-
car possuídas por genoveses em escala comercial parecem ter existido na
Sicília, donde no século xv a colheita era levada primeiro para o Algarve,
depois para as ilhas atlânticas; aqui - na Madeira, Canárias Ocidentais, ilhas
de Cabo Verde e do golfo da Guiné - passou a constituir a base da econo-
mia das ilhas no fim do século^'*. Na altura em que o açúcar completou a
travessia atlântica e foi plantado por Colombo em Hispaníola, o modelo pra-
ticado - como geralmente se supõe -já não era o do Mediterrâneo Oriental
mas o das Canárias. Porém, deve recordar-se que a primitiva carreira de
Colombo abrangeu todo o mundo comercial genovês, desde Quios no Oriente
até aos arquipélagos atlânticos no Ocidente, e que ele tinha em mente ima-
gens mediterrânicas. Afirmou, por exemplo, que Hispaníola produzia más-
tique; devia estar a pensar na ilha como outra Quios em potência, onde,
segundo recordava, o comércio atingia o valor de cinquenta mil ducados
por ano^^.
As principais bases da experiência atlântica de Génova estavam no
Mediterrâneo Ocidental e especialmente no império castelhano da Andaluzia,
com o seu empório do ouro africano e os seus portos de águas profundas
próprios para a navegação atlântica. A natureza da colonização atlântica
genovesa seguiria a tradição mercantil, em pequena escala, centrada na famí-
lia, ambivalente e «sem pátria» que geralmente simbolizava a experiência
3^*
C. Verlinden, Les Origines de la civilisaíion atlantique (Paris, 1966), 167-70.
35 Textos, 56.
42
colectiva genovesa recaiu sobre as águas territoriais e bases próximas de
Génova e, portanto, sobre o Atlântico. Génova tinha uma relação geográ-
ficacom o Atlântico semelhante à de Veneza com o Oriente. Os Genoveses,
segundo parecia, tinham penetrado por toda a parte: existiam locais com
nomes de aventureiros genoveses no mar de Azov e nas Canárias, mas o
Atlântico era a sua esfera própria.
No entanto, quando surgiu a oportunidade de explorar o Atlântico,
Génova não dispunha dos recursos e, especialmente, do potencial humano
para a aproveitar ao máximo. A expansão genovesa, apesar das suas extraor-
dinárias capacidades de extensão, não era infinitamente elástica. Em parte
devido ao sorvedouro do empreendimento colonial ou simplesmente porque
já não havia espaço na cidade, notoriamente sobrepovoada, para constru-
ção, o crescimento de Génova parece ter sido travado. Estudando as dimen-
sões físicas da cidade e fazendo uma número de edifícios,
estimativa do
Jacques Heers calculou que a população em meados do século xv excedia
os cem mil habitantes; os seus cálculos de densidade populacional, de habi-
tantes por fogo e de fogos por casa parecem, no entanto, exagerados. Os
números dos censos do século xvi sugerem um total de apenas cerca de
metade do valor de Heers - comparável, portanto, a Valência ou Barcelona
mais do que a Veneza ou Sevilha^^. A cidade que Colombo deixou, não
tocada pelo Renascimento, não expandida pelo crescimento, relativamente
pouco adornada pela riqueza dos seus expatriados, já não era a «senhora
dos mares» aclamada no apogeu do seu dinamismo. No comércio atlântico
do século XV!, os Genoveses já não figuravam como pioneiros ou mesmo,
em grau acentuado, como participantes. Estavam limitados a um papel de
delegação, sendo os Castelhanos os delegados principais. Colombo foi pra-
ticamente o último dos pioneiros e os seus apoiantes genoveses eram repre-
sentativos de uma nova geração que preferia a bolsa cheia à vela enfunada.
As suas vantagens e limitações - talento para a expansão por delegação,
base nacional rigorosamente comprimida, tradição de conquista comercial e
de colónias não soberanas - ajudam a explicar por que razão Génova deu um
contributo vital para a exploração e colonização do Atlântico sem criar
43
isto é, permitiam consumir os mantimentos a um ritmo mais lento do que
nas galés, que se deslocavam com menor velocidade. Assim, os Genoveses
dispunham de grandes veleiros e de galés para realizarem a viagem atlân-
ticadesde os recuados anos dos fms do século xiii. As galés comerciais
desapareceram de Génova ao longo dos cem anos seguintes^^. É provavel-
mente correcto presumir que foi nas rotas atlânticas, cujas condições não
eram favoráveis às galés, que se utilizaram pela primeira vez as embarca-
ções de casco redondo. Porém, a utilização de embarcações deste tipo não
era feita unicamente ou mesmo principalmente por conveniência dos nave-
gadores: os Venezianos velejavam regularmente para Inglaterra e Flandres
em galés e, quando o comércio atlântico de Florença se iniciou no século xv,
utilizaram-se exclusivamente as galés, que demonstraram a sua aptidão para
essa tarefa e continuaram a fazê-lo até à época da Armada. A preferência
genovesa por uma navegação mais económica resultou da sua confiança no
comércio de carga volumosa e relativamente pouco valiosa. A consequên-
cia foi que uma pequena viagem, directa desde a entrada do Mediterrâneo
até ao canal da Mancha, era possível e mesmo essencial, visto que, ao explo-
rar as qualidades de longo curso das embarcações de casco redondo para
reduzir o número de escalas e encurtar a duração da viagem, os mercado-
res podiam assegurar melhor lucro. Também não havia grande interesse em
vender pequenas quantidades das mercadorias que os Genoveses transpor-
tavam; era preferível reservá-las para os grandes mercados do Norte, onde
os porões podiam ser reabastecidos com lã e tecidos. Finalmente, as embar-
cações genovesas requeriam portos espaçosos de águas profundas, como os
de Cádis e da foz do Guadalquivir. Tomou-se normal, para as embarcações
genovesas em direcção ao Norte, ultrapassarem por completo Portugal, o
mar Cantábrico e a França atlântica.
A Andaluzia tomou-se assim uma região «fronteiriça» de Génova, bem
como de Castela. A colonização, que começara antes da conquista caste-
lhana, desenvolveu-se intensamente no século xiv, quando se estabeleceu o
comércio entre Génova e o Norte e, novamente no século xv, quando dimi-
nuíram as oportunidades no Oriente. Pode ter-se uma ideia da escala e das
características das colónias pela visão da região de Cádis e de Jeréz no
século xv^^ Em primeiro lugar, são evidentes o ritmo crescente da coloni-
zação genovesa e a sua evolução cada vez mais mercantil. Os primeiros
genoveses que se estabeleceram em Jeréz, no século xiii, por exemplo, foram
Benedetto Zaccaria, o célebre comandante naval, e Gasparo di Spínola,
embaixador reformado. Zaccaria parece ter abandonado o comércio durante
44
a sua residência em Castela e era frequente que os primeiros colonos geno-
veses, especialmente em centros como Jeréz e Córdova, nas regiões inte-
riores dos grandes portos, casassem dentro da aristocracia local, tomando-
-se rentiers em
vez de mercadores. Em Sevilha e Cádis, o processo era
inverso e a influência genovesa ajudou a converter a aristocracia ao comér-
cio ao longo de mais de dois séculos de crescente relacionamento e de casa-
mentos entre famílias. Na época da nouvelle vague de imigrantes genove-
ses em fins do século xv, as novas colónias eram exclusivamente constituídas
por mercadores e artesãos. No século xvi, três quartos da nobreza de Sevilha
tinham apelidos genoveses e o filósofo seu concidadão, Jacopo Adorno, ali
se encontrava para lhes justificar a compatibilidade entre
comércio e nobreza.
A medida que o ritmo da imigração também o
nível de coloniza-
crescia,
ção fixa aumentava. Os recém-chegados genoveses do século xv, na sua
maioria, tendiam a tomar-se «cidadãos» {vecinos), bem como «passantes»
{estantes), embora os úlfimos fossem preponderantes: tal facto pressagiava
a relativa imobilidade da comunidade genovesa de Castela no século xvi,
quando tomou parte na construção do império castelhano por delegação, a
partirdos seus centros fixos, sobretudo através de comércio bancário e inves-
timentos mais do que continuando a estabelecer novas fronteiras^^.
Ao mesmo tempo, estas comunidades cada vez mais radicadas consti-
tuíam, no século XV, pontos de apoio para nova colonização genovesa a oci-
dente, em Portugal, em Africa e, principalmente, nas ilhas atlânticas. Casas
de familiares estabelecidos na Andaluzia eram escalas para parentes oriun-
dos de Génova a caminho do Ocidente ou dele regressando. Depois de ser-
vir Portugal, nomeadamente, na exploração da costa ocidental de Africa,
António di Usodimare foi acolhido por seu irmão Francesco em Cádis, em
1462. A família Franchi di Luzardo enviou alguns filhos para Tenerife e
Berbéria, os Ascanio para a Grande Canária, os Nigro para Portugal e
Madeira. Nada ilustra melhor as qualidades flexíveis da família genovesa
como instrumento de colonização do que esta capacidade de manter a mobi-
lidade, criando ao mesmo tempo raízes.
Finalmente, os genoveses da Andaluzia demonstraram uma versatilidade
característica como a de Jano. Conseguiam dissimular-se na sociedade local
pelo casamento entre famílias, por naturalização oficial, por bilinguismo,
por serviços prestados à comunidade e à coroa e até por modificação da
ortografia dos seus nomes; conservando, ao mesmo tempo, em grandes cen-
tros como Sevilha e Cádis a sua «outra Génova». Além dos seus hábitos
exógamos, o elevado número de cargos que detinham é o melhor indicador
do seu sucesso quanto à aceitação na sociedade local. Os financiadores de
39M. Ladero Quesada, «Los genoveses en Sevilla y su región (siglos xiii-xvi): elemen-
tos depermanência y arraigo», Los mudéjares de Castilla y otros estúdios de historia medie-
val andaluza (Granada, 1989), 283-312; Pike, Enterprise and Adventure, 1-19, 37-9.
45
Colombo, por exemplo Francesco da Rivarolo e Francesco Pinelli, eram con-
selheiros de Sevilha e confidentes íntimos da coroa; Francesco Adorno per-
tencia ao conselho da cidade de Jeréz e Gianbattista di Ascanio e Christoforo
Maruffo ao de Cádis. Em nível inferior, Agostino Asilio era tesoureiro da
sua paróquia em Puerto de Santa Maria. No entanto, estas posições de des-
taque na sociedade castelhana eram geralmente conseguidas sem sacrifício
da identidade genovesa, especialmente em Sevilha e Cádis, onde as colónias
genovesas se caracterizavam pelos seus antigos privilégios e pelos seus pró-
prios consulados e cais. Era frequente possuírem uma casa em Génova - a
de Rivarolo era citada como prova da nulidade da sua naturalização -, tal-
vez como um refugio. Até a famosa poupança dos Genoveses servia esta
espécie de versatilidade: os registos notariais de Cádis retratam-nos gastando
com moderação fora das actividades comerciais, excepto em jóias, tapetes e
objectos de luxo pequenos e facilmente transportáveis. Na década de 1480
existia uma confraria genovesa específica em Cádis, com a sua própria capela
na catedral, e podem ter existido organizações semelhantes noutros locais.
A confraria do Nome de Jesus, em Jeréz, por exemplo, fora fundada por
alfaiates genoveses. Em Sevilha, a «nação» genovesa manteve no século xvi
o hábito de dirigir cartas colectivas à coroa. Os efeitos da ambivalência foram
expressos de forma bem clara pelo próprio Colombo: «Senhores», escreveu
aos directores do Banco de San Giorgio do Estado genovês - numa altura
em que estava, reconhecidamente, algo desiludido com Castela -, «embora
o meu corpo vagueie por aqui, o meu coração está permanentemente em
Génova.» Esses efeitos terão também realçado a sensibilidade demonstrada
nos versos castelhanos de um dos maiores poetas da Sevilha do século xv,
conhecido como Francisco Imperial e sempre descrito como «natural de
Génova, habitante da mui nobre cidade de Sevilha». Adorava a sua cidade
adoptiva, «a melhor do reino», elogiava a beleza das suas mulheres e a jus-
tiça dos seus reis, exortava-a e aconselhava-a, numa visão explicitamente
dantesca, a purificar-se da heresia e do vício; mas nunca esqueceu também
a sua cidade natal e recordava o fim de lanos de Tróia"^^.
46
Janeiro de 1495, muito depois dos acontecimentos a que se refere, aparen-
temente com o objectivo específico de convencer os seus correspondentes
- os monarcas espanhóis - da amplitude e prática da sua perícia náutica.
De qualquer forma, todas as afirmações da carta são inerentemente plausí-
veis. A primeira viagem - se se realizou - deve ter tido lugar no início de
1472. Segundo o relato de Colombo, começou em Marselha e foi ordenada
pelo pretendente angevino ao trono napolitano, com o objectivo de captu-
raruma embarcação aragonesa no porto de Tunes. «Os homens que esta-
vam comigo amotinaram-se», afirmava Colombo, «e decidiram regressar a
Marselha», onde
compreendendo que não conseguia fazê-los mudar de ideias pela força mas apenas por
alguma astúcia, concordei com as suas exigências e, depois de alterar a posição da bús-
sola, dei pano quando estava a escurecer. E no dia seguinte, quando o Sol se ergueu,
encontrávamo-nos para lá do cabo Cartago, estando todos certos de que nos dirigíamos
a Marselha"*'.
E improvável que o episódio seja umapura invenção, visto que ser par-
tidário dos Angevinos não terá sido imaginado para tomar Colombo caro a
Fernando e O cenário da his-
Isabel, herdeiros das pretensões aragonesas.
tória é o golfode Leão e o mar Tirreno - as águas territoriais de Génova,
onde tanto velejou na sua juventude que se recordava das instruções de rota
em pormenor até aos últimos anos da sua vida"^^. A história de como enga-
nou os amotinados tem o sabor de uma sententia de um caderno de exercí-
cios, destinada a ilustrar uma máxima de filosofia moral, mas é caracterís-
tica da forma como Colombo gostava de se ver a si próprio. Contou histórias
semelhantes de como enganara a tripulação na sua primeira viagem transa-
tlântica falsificando o diáriode bordo e de como intimidara os nativos da
Jamaica durante a sua última viagem prevendo um eclipse'*^ Quer estrita-
mente verdadeira quer não, a história deve ser encarada como fiel ao homem
e como parte da sua reivindicação de uma espécie de perspicácia natural,
uma sabedoria de convés, que compensava a sua falta de educação de base.
A história da viagem de Tunes representa uma visão da primeira vira-
gem decisiva na vida de Colombo: da oficina de tecelão para bordo de uma
embarcação. A segunda viragem, do Mediterrâneo para o Atlântico, é exem-
plificada pelo testemunho que chegou aos nossos dias das suas primeiras
viagens. A data da mudança já não pode ser determinada com precisão, mas
deve dado cerca de meados da década de 1470 e não depois de 1477.
ter-se
A tradição primitiva da sua fuga providencial à pirataria e do naufrágio
41 Textos, 167.
'^ Ibid. 306.
« Verpp. 111,204.
47
numa viagem de Génova para norte é demasiado romântica e dramática para
ser aceite sem reservas: a auto-imagem que Colombo apresentava aos pri-
meiros escritores, como protagonista de grandes feitos, divinamente eleito,
é fundamentada pela história de maneira suspeita. Mas quer através de drama
divinamente orquestrado quer por meios prosaicos e esquecidos, em 1477
Colombo mudara-se certamente de Génova para Lisboa, onde iniciou um
longo período de residência fixa ou intermitente em Portugal e uma vida
inteira de navegação no Atlântico. Não é necessário um milagre para expli-
car o que, nas circunstâncias da vida de Colombo, representava uma atitude
perfeitamente lógica. Ao viajar entre o Mediterrâneo e o Atlântico, ao trans-
ferir-se para uma base de operações atlântica e ao empreender mais viagens
atlânticas estava a reflectir as características comuns da época da experiência
genovesa no comércio e na colonização.
A transferência de Colombo para um meio mais
atlântico representou
do que familiarizá-lo apenas com os problemas práticos da navegação que
teria que enfrentar ao tentar uma travessia oceânica. Abraçou um destino
atlântico, bem como uma noiva, provavelmente em Lisboa (mas possivel-
mente na Madeira ou em Porto Santo). A data não está documentada mas
as probabilidades apontam para os anos de 1478 ou 1479. Este casamento
foi o maior passo isolado dado por Colombo em direcção à respeitabilidade
social que parece ter ambicionado. Segundo certo critério, foi um passo bas-
tante modesto. Dona Felipa era efectivamente nobre, descendendo por parte
da mãe de uma família com um longo historial de serviço da coroa, e era
filha de um fidalgo cuja característica definia a nobreza feudal: a jurisdi-
ção sobre os vassalos. Seu pai, Bartolomeu Perestrello, governara um dos
feudos mais pequenos, mais pobres e mais remotos da monarquia portu-
guesa, a ilha de Porto Santo. De qualquer forma, para o filho de um tece-
lão genovês representava um salto enorme. Colombo sentiu, através do casa-
mento, o gosto da forma de nobreza a que podia aspirar elevar-se pelos seus
feitos: um feudo no mar, adquirido por feitos de heroísmo oceânico. O pai
de sua mulher fora um modelo modesto dos efeitos enobrecedores da aven-
tura no mar, uma humilde personificação do tema proeminente da literatura
cavaleiresca medieval. Se podemos confiar numa tradição biográfica pri-
mitiva, o casamento permitiu também a Colombo o acesso aos documentos
do falecido pai da sua noiva, os quais, segundo a tradição, estimularam o
interesse de Colombo pelo testemunho português das descobertas atlânti-
cas'^'*. Dona Felipa prestou mais dois serviços a seu marido: deu-lhe o seu
^ Historie, i. 61.
48
viços aos monarcas espanhóis em que fala de ter que «deixar mulher e
filhos» a fim de ir para a sua corte^^ Mas se isto implica ternura e não ape-
nas um
exemplo da habilidade de Colombo
para a retórica emotiva, deve-
mos afirmar que a referência pode estar ligada a um período posterior à
morte de Dona Felipa e que a «mulher» em questão estava ligada a Colombo
O seu casamento fomeceu-lhe outro contacto poten-
por laços menos formais.
cialmente irmã e um cunhado de sua mulher chamados Violanta
útil: uma
e Miguel Muliart viviam em Huelva, muito perto do futuro ponto de par-
tida de Colombo para o Novo Mundo. Aí os visitou em 1491, numa época
em que procurava estabelecer contactos na comunidade náutica da vizinha
Paios. Seria tentador mas insensato concluir que existiu qualquer relação
causal entre os dois acontecimentos. É mais provável que os laços familia-
res tenham beneficiado o casal Muliart, pois este pediu um empréstimo ao
seu afortunado parente Colombo quando este enriqueceu"^^.
A estrutura da sua vida no fim da década de 1470, durante o período
das primeiras viagens atlânticas, está contida num documento genovês de
1479 que regista uma viagem feita por Colombo à Madeira no ano anteríor
para comprar açúcar como parte de um negócio estabelecido pela firma
Centurione'*^. O seu promotor Luigi Centurione e o intermediário no negó-
cio, Paolo di Nigro, foram recordados no último codicilo do testamento de
Colombo, muitos anos depois, juntamente com vários habitantes de Lisboa,
incluindo outro membro do clã Centurione"*^. A ocupação como comprador
de açúcar para os interesses familiares dos Centurione nas ilhas atlânticas
forneceria também a oportunidade para a viagem entre Lisboa e Porto Santo,
recordada por Colombo na sua carta de 1495"*^, presumivelmente durante o
mesmo período das visitas às Canárias e aos Açores, que não estão regis-
tadas em qualquer documento mas que se podem deduzir com segurança da
sua familiaridade óbvia com ambos os arquipélagos, corroborada, no caso
dos Açores, pela reivindicação dos biógrafos primitivos segundo a qual reu-
nira provas da navegabilidade do Atlântico nessas ilhas^^.
^5 Textos, 272.
^ Cartas, 205; Pleitos, iv. 245.
"•^
Cristoforo Colombo: Documenti e prove, 137.
^8 Textos, 363.
^9 Ibid. 167.
50 Historie, i. 64-7, 74-8; Las Casas, i. 66-9.
5'
Textos, 1-2, 167; Buron, i. 345, ii. 531.
49
em recordação tão posterior - velejou «cem léguas para lá» da Islândia, numa
viagem a partir de Bristol, como se deduz; e em 1482 ou em data próxima,
segundo as mesmas fontes, viajou para sul de Lisboa até ao novo posto comer-
cial português de São Jorge da Mina, perto da embocadura do Volta, onde
estava concentrado o comércio português do ouro com os centros mineiros do
interior. A primeira destas rotas era normalmente percorrida pelos mercadores
mediterrânicos até Inglaterra, onde Colombo se pode bem ter juntado a uma
expedição de Bristol à Islândia. Não há nada implicitamente improvável na
sua afirmação e a participação em tal viagem forneceria também a oportuni-
dade para a visita a Galway, na Irlanda, mencionada noutra anotação à mar-
gem. A autenticidade da sua viagem à Costa do Ouro é abundantemente con-
firmada pela familiaridade demonstrada para com a Áfiica Equatorial em várias
passagens dos seus escritos que chegaram até aos nossos dias^^.
Assim, em meados
da década de 1480, Colombo quase justificara a sua
vanglória posterior de ter velejado em «todos os mares até agora navega-
dos». Em particular, seguira o curso da expansão comercial genovesa do
Mediterrâneo para o Atlântico - abrangendo quase o mundo genovês desde
Quios às Canárias - e penetrara nos recantos mais remotos do Atlântico tal
como este era conhecido na sua época.
50
Embora se tenham feito tentativas para relacionar estas divagações men-
tais com achados reais, geralmente em ligação com teorias de descobertas
pré-colombianas da América, a única nova descoberta possível no início do
século XV, que se pode considerar, é a do mar dos Sargaços. Mas uma vez
avaliada a genuína excitação provocada no século xv pelas possibilidades
ilimitadas do Atlântico, a fertilidade da especulação parece adequadamente
explicada. As novas descobertas constituíam um estímulo directo: os car-
tógrafos maiorquinos que pela primeira vez colocaram os Açores na sua
posição mais ou menos correcta, em mapas da década de 1430, introduzi-
ram também na tradição novas ilhas de existência duvidosa. Andrea Bianco,
de Génova, demonstrava interesse pelas últimas novidades confirmadas,
como o demonstra o seu mapa de 1448, mas no seu mapa-múndi de 1436
espalhou um punhado de ilhas imaginárias no Oceano e, mesmo no mapa
de 1448, incluiu algumas ilhas tradicionais com a garantia de que uma «ilha
autêntica» se encontrava a 1500 milhas no Atlântico EquatoriaP'*.
Por seu lado, as viagens inspiradas por tal especulação conduziam por
vezes a verdadeiras novas descobertas, o que alimentava o processo. Colombo
cresceu num período em que o Atlântico estava a ser coberto denovos mar-
cos e definido por limites há pouco revelados. Em 1452 - cerca da data pro-
vável do seu nascimento - foram descobertas as duas ilhas mais remotas dos
Açores. Entre meados da década de 1450 e meados da de 1460 foi explorado
o arquipélago de Cabo Verde. Na década de 1470 foram acrescentadas as ilhas
do golfo da Guiné. E durante a década de 1480, quando o próprio Colombo
procurava realizar uma viagem atlântica exploratória, Diogo Cão e Bartolom.eu
Dias seguiram a costa ocidental africana até ao seu limite mais a sul. Seguramente,
em 1480 e 1487, e talvez regularmente na década de 1490, partiam expedi-
ções de Bristol em busca de novas ilhas: um grande aumento na importação
de produtos do Atlântico Norte para Bristol na década de 1480 mostra o acrés-
cimo de comércio com a Islândia que tais viagens produziram ou reflectiram,
mas estas eram viagens conscientemente exploratórias destinadas a «procurar
e descobrir»^^ Os habitantes de Bristol chamavam ao seu objectivo «Brasil».
Para os portugueses e flamengos dos Açores, «Antillia» era um nome com-
parável que englobava todas as novas descobertas potenciais. Pelo menos oito
comissões portuguesas para a descoberta de novas ilhas atlânticas sobrevivem
dos anos de 1462-87. Algumas referem-se especificamente a testemunhos de
cartas náuticas. Os termos mais gerais são os da concessão a Fernão Teles
(1474) das «Sete Cidades ou quaisquer ilhas que descubra»^^ Apesar dos fra-
5^»
H. Yule Oldham, «A Pre-Columbian Discovery of America», Geographical Journal,
5 (1895), 221-39.
« A. Williamson, The Cabot Voyages (Cambridge, 1962), 197-203.
J.
56
Morison, The Portuguese Voyages to America (Cambridge, Mass., 1940), 32;
S. E.
J. Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, 3 vols. (Coimbra, 1940-71), iii. 124,
130,278,317,320-32,552.
51
cos resultados, as viagens a partir de Bristol e dos Açores continuaram imper-
turbavelmente. O Atlântico estava a tomar-se uma forte atracção, um vácuo
irresistivelmente detestado.
O ritmo de mudança na visão conhecida do mundo parece ter levado
Andrea Bianco, entre outros, a sentir que as antigas certezas geográficas
tinham sido afastadas. A mesma ideia foi expressa alguns anos mais tarde
pelo reconhecido mestre da escola cartográfica veneziana, Fra Mauro, que
confessou em anotação ao seu mapa-múndi - o mais completo até então
concebido - que o seu traçado tinha que ser imperfeito, visto que a exten-
são do mundo era desconhecida. Os cosmógrafos do século xv recordam-
-nos os prisioneiros de guerra das histórias de Mareei Ainé, que, incapazes
de verem as paredes das suas celas à luz de uma vela de sebo, podiam ima-
ginar-se livres. A fértil ignorância do fim da Idade Média transmitiu um
sentimento semelhante de imensidão. Colombo, apesar do seu respeito ser-
vil pelas obras selectivas de autores reputados, exibiu sempre um prazer
infantil quando conseguia, pela experiência, desafiar a sabedoria recebida.
Estava em dívida para com a confiança de alguns dos geógrafos teóricos do
seu tempo, que compreenderam os efeitos libertadores do progresso na explo-
ração. Notou, por exemplo, os argumentos do papa Pio II a favor da nave-
gabilidade de todos os oceanos e da acessibilidade de todas as terras e afir-
52
2
tenceram a Colombo, quatro dos quais estão anotados à margem. Estes vestígios
dos seus pensamentos estão depositados perto do suposto túmulo que guarda
os seus restos mortais no transepto da mesma catedral. Formam uma via de
acesso exasperantemente oblíqua mas irresistivelmente convidativa ao pro-
cesso autodidáctico de Colombo do seu projecto de uma tra-
e à formação
vessia atlântica. A informação que contêm pode ser completada pelas refe-
rências às leituras de Colombo, tanto nos seus próprios escritos como nos
relatos de contemporâneos, mas permanece intrigantemente incompleta e enre-
dadamente difícil de interpretar. Embora interrogadas sobre testemunhos das
fontes da cosmografia de Colombo, na verdade as anotações revelam mais
-
como veremos - sobre os seus valores e gostos.
53
o perigo destas fontes é o de nos encorajarem a ver Colombo como um
intelectual - o que era, em modesta escala, mas sem excluir a sua vocação
de homemde acção - e a ver a formação dos seus projectos como um exer-
Colombo era uma criatura muito mais inconstante do que geral-
cício teórico.
mente se pensa, mas defendeu com consistência total a crença na episte-
mologia empírica. Aprendia-se acima de tudo, segundo afirmava, através
da experiência ou, como uma vez disse citando um provérbio, «à medida
que se caminha, o conhecimento cresce»^ Sentia que a sua própria nave-
gação prática e os conhecimentos cosmográficos eram interdependentes.
A «própria ocupação» de marinheiro inclinava os homens a «procurar apren-
der os segredos deste mundo»^ e a cultura literária podia ser aplicada na
prática. Colombo afirmou, por exemplo, que as Caraíbas seriam intranspo-
níveis para navegadores que não conhecessem a arte esotérica do astró-
nomo^ Penso que se pode demonstrar - e espero que o seja no decurso desta
obra - que o impacte da experiência do Novo Mundo afectou as ideias de
Colombo e modificou inclusivamente as suas teorias geográficas depois de
1492 e está extremamente bem documentado que, antes dessa data, Colombo
defendia o seu projecto atlântico tanto com testemunhos recolhidos pelo seu
conhecimento pesssoal do oceano como com referências a obras de autores
conceituados. Um exame do que se poderia chamar as fontes literárias dos
planos de Colombo não deveria ser realizado sem se recordar a sua longa
e vasta experiência do oceano que, só por si, teria sido suficiente para lhe
inspirar o desejo de o atravessar.
A maioria dos estudos sobre Colombo segue os seus elogiadores do
século XVI, os quais presumiram que as justificações complexas do seu
empreendimento, escritas por ele a partir de 1498, já estavam elaboradas
antes da sua primeira travessia com todas as fontes clássicas, apócrifas,
patrísticas e medievais nos seus respectivos lugares. Começou certamente
por adquirir uma cultura literária muito antes de 1492. A sua mudança tem-
porária de vocação - numa data indeterminada, provavelmente bastante cedo
na segunda metade da década de 1480 - de marinheiro para livreiro evoca
a alquimia que transformou Colombo, o agente comercial, em Colombo, o
geógrafo culto"^. Quer a sua cultura tenha ou não contribuído para a forma-
ção do seu plano, contribuiu certamente para a apresentação deste: segundo
as próprias memórias de Colombo, expôs as suas ideias perante os monar-
cas espanhóis com a ajuda de mapas e livros^
Porém, esta conclusão, segundo a qual os conhecimentos em que Colombo
se baseou a partir de 1498 já estavam inteiramente dominados em 1492, é
•
«Andando más, más se sabe.» Textos, 218.
2 Ibid. 277.
3 Ibid. 325.
^ Ver n.° 30 abaixo.
5 Textos, 203.
54
extremamente precipitada. Por exemplo, tem-se suposto geralmente que a
teoria atribuída por Ptolemeu a Marino de Tiro, segundo a qual a massa de
terra euro-asiática se estende por mais de 255 graus sobre a superfície do
mundo, fazia parte do arsenal intelectual primitivo de Colombo. Tal facto
seria conveniente, a ser verdadeiro, porque ajudaria a explicar a razão que
levou Colombo a pensar que o Atlântico era reduzido em termos de nave-
gabilidade, mas nunca mencionou Marino até ter levado a efeito uma série
de experiências relevantes - começando na Hispaníola Ocidental, em 1494 -
numa tentativa de calcular a largura do oceano em graus^. Possuía um exem-
plar muito anotado da Historia Naturalis de Plínio, a que fez referência em
relação à identificação da planta da mástique em 1492; mas uma nota refe-
rente a Hispaníola na margem deste exemplar mostra que continuava a ler
ou a reler a obra depois dessa data e foi apenas em 1498 que Plínio foi
novamente utilizado por Colombo, no âmbito da exposição de uma teoria
cosmográfica. Mais uma vez a ocasião surgiu dada a necessidade de consi-
derar testemunhos empíricos que, segundo pensava Colombo, pareciam pôr
em causa a opinião de Plínio sobre a esfericidade da Terral Por indícios
que nos chegaram, sabemos que Colombo continuou a adquirir livros pelo
menos até 1496, ano da publicação dos exemplares que possuía da Philosophia
Naturalis de Alberto Magno e do Almanach Perpetuum de Abraão Zacuto;
no mesmo ano encomendou para Inglaterra um exemplar de Marco Pólo^.
Muitas leituras de que se podem encontrar referências nos seus escritos
podem períodos de lazer forçado, em
ter sido realizadas durante os seus
Espanha, em
1496-98 e 1500-02: o peso da erudição está mais fortemente
presente nos escritos desses períodos ou logo a seguir a eles. Em quase
todos os estádios perceptíveis da sua carreira a partir da década de 1480, a
experiência prática e a cultura literária parecem ter-se reforçado mutua-
mente, sem que nenhuma monopolizasse os processos da sua formação inte-
lectual ou desenvolvimento mental. Seria igualmente convincente argumentar
que tendia a basear-se nas obras de grandes autores para confirmar ou comen-
tar ideias provenientes da experiência, de forma a reivindicar que os seus
feitos na navegação atlântica se realizavam no decurso da aplicação de teo-
rias abstractas. A verdade reside, provavelmente, numa simbiose de ambos
os pontos de vista.
A experiência prática adquire-se ao longo de um grande período de
tempo e para um autodidacta a erudição não surge fácil nem rapidamente.
O tempo tende a alterar a linha de costa de qualquer conjunto de ideias, por
erosão nalgumas áreas e por acumulação noutras. É importante não nos dei-
xarmos iludir pela reputação de Colombo quanto à obstinação e à fé inque-
55
brantável em si próprio, a ponto de supormos que era incapaz de mudar de
ideias.Era capaz de aperfeiçoar e mesmo de alterar ideias e não deve esque-
cer-se que durante seis ou sete anos na corte castelhana se encontrou prati-
camente na posição de um intriguista profissional, reagindo à necessidade
de modificar a apresentação das suas opiniões quando se dirigia a diferen-
tes patronos e intermediários potenciais. O próprio Colombo era insensível
à sua própria mutabilidade; uma memória selectiva e uma apresentação ten-
denciosa fizeram da sua formação intelectual, em todos os seus relatos, um
coup defoudre. Adoptou um modelo da literatura hagiográfica que lhe em
era apresentada uma verdade anteriormente obscurecida pela «mão mani-
festa de Deus»^ e subsequentemente nunca deixou de o defender. No entanto,
para substituir uma imagem clássica por uma hagiográfica, uma sabedoria
como a de Colombo não brota geralmente completa da mente. É mais pro-
vável que o seu projecto básico de travessia do Atlântico e as ideias geo-
gráficas que o sustentavam tenham surgido lentamente e amadurecido gra-
dualmente. Um
projecto transatlântico podia ser apresentado de várias
maneiras - por exemplo, como veremos, como a procura de novas ilhas, um
impulso para a Ásia, a busca de um novo continente -, podendo ser asso-
ciado a uma variedade de objectivos possíveis. Poderia acrescentar-se-lhe
o «desígnio grandioso», mais remoto, de atacar o Islão pela retaguarda e
reconquistar Jerusalém, como Colombo defendeu inicialmente, antes de
1492, e que retomou intermitentemente, desenvolvendo-o, à medida que o
tempo passava, em termos crescentemente escatológicos, com interpreta-
ções cada vez mais milenaristas^^. Sem se avaliar o potencial de mudança
e desenvolvimento das ideias de Colombo, é impossível apresentar um relato
correcto destas.
Estas ideias também não podem
compreendidas aceitando a sua auto-
ser
-imagem de figura singular, excepcionalmente dotada de visões divinamente
inspiradas. As suas noções geográficas não eram imutáveis nem pouco repre-
sentativas do seu tempo. Antes de examinar em pormenor as influências
intelectuais a que esteve exposto, será útil delinear o ambiente de liberdade
de conjecturas sobre o Atlântico, partilhado por cartógrafos, cosmógrafos e
- presumivelmente - exploradores das regiões da Cristandade latina no
século XV. Neste cenário, o plano de Colombo para atravessar o oceano
parece reconfortantemente compreensível, mesmo previsível.
Foi um período em que o espaço atlântico exercia uma forte atracção
sobre a imaginação da Cristandade latina. Os cartógrafos rechearam as suas
representações do oceano com terras imaginárias e, a partir de 1424, deixa-
ram espaços vazios para serem preenchidos com novas descobertas. A medida
que o interesse pelo espaço crescia, o mesmo acontecia à consciência das pos-
9 Textos, 277.
'O
Ibid. 101, 197, 303; Raccolta, I. ii. 75-160; Navarrete, i. 222.
56
sibilidades da sua exploração. As primeiras colónias permanentes foram esta-
belecidas nas ilhas Canárias em
1402 e nos Açores em 1439. O ritmo do
esforço acelerou na segunda metade do século. A ilha de Gomera foi con-
quistada e as de Flores e Corvo, as de Cabo Verde e as do golfo da Guiné
foram exploradas durante a geração posterior a 1450. A cartografia, com atraso
em relação às descobertas, não incorporou todas estas - nem mesmo repre-
sentou ilhas previamente conhecidas com precisão absoluta - até à década de
1480. No entanto, embora lentos a reflectir as descobertas, os mapas foram
rápidos a encorajá-las: as viagens iniciadas a partir de Bristol nos últimos
anos do século para encontrar a ilha do Brasil referida pelos cartógrafos
demonstram-no, tal como as dos Portugueses a partir dos Açores para encon-
57
Mesmo as subavaliações correntes da dimensão do mundo pressupunham
uma imensa metade desconhecida, a pars inferior, subtraída à investigação
tal como o lado oculto da Lua. Assim como a imagem da orbis terrarum -
a massa de terra única e contínua que compreendia todo o mundo conhe-
cido - estava firmemente gravada na mente de todos os homens cultos, a
noção vulgarmente aceite era a de que o monótono oceano ocupava a parte
desconhecida. O pensamento ousado de que pudesse existir uma segunda
massa de terra no meio do oceano «oposto» ao mundo familiar correspon-
dia ao gosto do Renascimento pela simetria e, de maneira mais geral, à pre-
ferência medieval por uma criação ordenada e «concordante», mas quebrava
dois princípios firmemente defendidos: o de que todos os homens descen-
dem de Adão e o de que os apóstolos tinham pregado «através do mundo»^^
A crença nos Antípodas, no fim da Idade Média, pode bem comparar-se à
crença actual na existência de mundos habitados no espaço exterior: ambos
os mundos foram fervorosamente imaginados e cepticamente rejeitados.
No entanto, a possibilidade da existência dos Antípodas era cada vez
mais debatida. No início do século xv, Pierre d'Ailly, o reformador cardeal
de Touraine, referiu-a na sua Imago Mundi, uma das obras cosmográficas
mais influentes da época, e em dois tratados escritos alguns anos mais tarde
sob a influência de Ptolemeu. Na sua Historia Rerum de meados do século xv,
Eneas Sylvius Piccolomini (o futuro papa Pio II) deu à teoria a sua apro-
vação implícita, para lhe dar mais tarde uma piedosa rejeição, recordando
que um cristão «deveria preferir» a visão tradicional: é evidente que esta
espécie de rejeição não deveria ser considerada seriamente. Os exemplares
de ambas as obras, pertencentes a Colombo, sobreviveram com indícios de
leitura minuciosa. Na sua época, a existência dos Antípodas era amplamente
debatida e, nalguns círculos, especialmente em Itália e entre os humanistas,
a sua descoberta era seriamente esperada. Sob o nome de «Hespérides» apa-
receram nalguns mapas ^'^.
^3 Ver W. G. L. Randles, «Le Nouveau Monde, Tautre monde et la pluralité des mon-
des», Actas do III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, iv (Lisboa, 1961),
347-82; Buron, i. 199.
D. Bennett Durand, The Vienna-Klosterneuburg Map Corpus ofthe Fifteenth Century
^^
(Leida, 1952), fot. xiii, xv, xvi; J. Parker, «A Fragment of a Fifteenth-century Planisphere in
the James Ford Bell Collection», Imago Mundi, 19 (1965), 106-7.
58
mada em que que Colombo ou qualquer dos outros navegado-
se esperaria
res atlânticos do século xv o encontrassem: «Pode ser que nesta mesma
zona temperada existam na verdade dois mundos habitados ou até mais e,
em particular, na proximidade do paralelo de Atenas que é desenhado atra-
vés do mar Atlântico.» No contexto geral do pensamento de Estrabào, parece
que esta observação pode ter tido intenção irónica, mas a ironia é extrema-
mente difícil de detectar em textos oriundos de uma cultura pouco familiar
e os contemporâneos de Colombo interpretaram a citação literalmente. Era
evidente dada a defesa geral de Estrabào de um retrato homérico do mundo
e a rejeição da cosmografia de Eratóstenes: em particular, Estrabão preten-
dia desafiar a visão de Eratóstenes de que «se a imensidade do mar Atlântico
o não impedisse, poderíamos velejar da Ibéria à índia ao longo do mesmo
paralelo». Não se pode provar que Colombo tenha lido Estrabão, mas a car-
teia de um mapa atribuído a seu irmão Bartolomé e conhecido de escrito-
res do século XVI citava o geógrafo, bem como Ptolemeu, Plínio e Isidoro'
O facto de que o próprio Colombo considerava os Antípodas como um
destino possível para a sua projectada exploração atlântica é sugerido pela
resposta de uma das comissões que investigaram os seus planos: «Santo
Agostinho duvida.» Parece constituir uma alusão às dúvidas de Santo Agostinho
sobre a existência dos Antípodas. Quando Colombo regressou da sua pri-
meira viagem, apesar das suas categóricas afirmações de que estivera na
Ásia, a maioria dos comentadores italianos parece ter concluído que as suas
descobertas se situavam nos Antípodas: a rápida aceitação desta teoria em
tantas fontes demonstra que já seria comummente aceite antes da partida de
Colombo. A sua atracção para os humanistas era particularmente forte, tal-
vez porque parecia ter o apoio de autoridades muito consideradas pelo lugar
que ocupavam na tradiçãoclássica, como o De Nuptiis Philologiae et Me reuni,
de Martianus Capella, ou os comentários a Cícero de Macróbio, cuja con-
cepção do mundo parece ter-se baseado profundamente em Eratóstenes e por-
tanto ter pertencido a uma escola bastante diferente da de Estrabão. Macróbio
- embora mais indirectamente que Estrabão - sugeriu também que uma massa
de terra «antípoda» poderia existir no hemisfério norte bem como no sul'^
A segunda grande teoria consistia em que uma massa de terra ampla-
mente espalhada pelo mundo preenchia o espaço atlântico, deixando no meio
uma superfície relativamente menor do globo ocupada pelo oceano. Ptolemeu
mencionara, rejeitando-os, os cálculos do seu colega cosmógrafo Marino de
Tiro, que procurara estender os limites da Ásia a leste para além dos acei-
'5
H. L. Jones (ed.),The Geography of Strabo, i. 243 (I. iv. 6); A. Diller, The Textual
Tradition of Strabo's Geography (Amesterdão, 1975), 97-134; Historie, i. 88; Las Casas,
i. 154.
ed. F.Eyssenhardt (Leipzig, 1893), 614-16 (ii. 8); J. K. Wright, The Geographical Lore of
the Time ofthe Crusades (Nova Iorque, 1925), 11, 159-61.
59
tes por Ptolemeu. Seguindo esta ideia, Pierre d' Ailly especulou sobre a hipó-
tese deque os Antípodas fossem não um continente separado mas contíguo
à massa de terra conhecida. D'Ailly referiu uma série de obras notáveis reu-
nidas por Roger Bacon (1214-92), talvez com alguma distorção das inten-
ções originais dos autores, sugerindo que a maior parte da superfície do
mundo era coberta por terra: um Atlântico estreito foi uma conclusão evi-
dente extraída por alguns dos leitores de D'Ailly, incluindo explicitamente
Colombo. Ao que «o mar é pequeno entre
atribuir a Aristóteles a ideia de
a extremidade ocidental de Espanha e a parte oriental da índia», D'Ailly
estava a ser mais fiel a Bacon que a Aristóteles, cujo texto sobre o assunto
é ambíguo e obscuro. Mas a autoridade desta obra, ao ser utilizada ou invo-
cada para defender um ponto de vista específico, tinha um peso enorme. Na
época da sua terceira viagem, Colombo citou-a repetidamente em apoio da
sua reivindicação de ter atingido ou ter-se aproximado da Ásia^^
A teoria de um Atlântico estreito era cultivada no círculo do cosmógrafo
florentino Paolo dei Pozzo Toscanelli, cujas opiniões foram expressas numa
carta de Junho de 1474 dirigida, através de um cónego de Lisboa, ao rei por-
tuguês e numa subsequente recapitulação, de autenticidade duvidosa^^ diri-
1^ Raccolta, I. ii. 366-406; Buron, i. 207-15, 235, ii. 427; Aristóteles, De Caelo,
ed. W. H. K. Guthrie (Londres, 1939), 253.
'^ O caso documentado de H. Vignaud, Toscanelli and Columbus (Londres, 1902), foi
atacado várias vezes, mais eficazmente por D. L. Molinari, «La empresa colombina y el des-
cubrimiento», in R. Levene (ed.), Historia de la nación argentina, ii (Buenos Aires, 1939),
286-337, mas as dúvidas foram reavivadas por A. Cioranescu, «Portugal y las cartas de
Toscanelli», Estúdios americanos, 14 (1957), 1-17. Como todos os argumentos contra a auten-
ticidade das cartas envolvem ramificações fantasistas, é prudente fazer apenas o menor número
de afirmações a seu favor. A objecção principal de
que Colombo nunca citou Toscanelli entre
as suas fontes eruditas é intrigante mas não insuperável: só desenvolveu o hábito de citar
grandes autores a partir de 1498, quando já contava com muitas fontes mais respeitáveis -
clássicas, bíblicas ou apócrifas e patristicas. Rumeu de Armas, Hemando Colón, 257-88, apre-
senta a melhor defesa das cartas conhecida até hoje.
•9
Raccolta, l. ii. 364; I. iii. 67; V. i. 554-88; Historie, i. 55-63; Las Casas, i. 62-6.
60
pequenas modificações, a configuração representada num globo feito naquela
cidade por Martin Behaim em 1492 (ver mapa 2); no ano seguinte, Hieronymus
Munzer escreveu daquela cidade ao rei de Portugal, aconselhando a explo-
ração de uma rota para a Ásia por ocidente^^. Nessa altura, é evidente que a
tentativa já fora realizada, aparentemente sem o conhecimento de Munzer.
Mesmo o Atlântico de Toscanelli era, para fins práticos, demasiado vasto
para ser explorado. Colombo, no entanto, propôs-se diminui-lo conceptual-
mente argumentando que «este mundo é pequeno». Nos seus escritos que
chegaram aos nossos dias, Colombo só muito tarde abordou directamente o
problema da dimensão do globo. A sua primeira análise do problema foi
redigida em Agosto de 1498^'. No entanto, é razoável supor, pelo peso das
provas circunstanciais, que desde uma data muito anterior partilhava ou exce-
dia a tendência dos seus contemporâneos para o subestimar. Os dados em
que os seus cálculos se basearam eram quase todos extraídos da Imago Mundi
de Pierre d'Ailly, que leu provavelmente pela primeira vez em 1488 - data
digna de confiança da mais antiga anotação à margem que ele ou seu irmão
fizeram no texto^^. Quando expôs as suas ideias em pormenor, defendeu uma
subavaliação mais grosseira e distorcida do que qualquer outra conhecida,
25% abaixo do valor real e, pelo menos, 8% abaixo da estimativa mais arro-
jada apresentada na sua época. A base utilizada para este cálculo estava
obviamente errada: segundo afirmou numa nota à margem não datada no seu
exemplar da obra de Pierre d'Ailly, as suas próprias comparações entre lati-
tudes observadas e distâncias registadas durante uma viagem ao golfo da
Guiné tinham-no convencido de «que as minhas medições confirmam a opi-
nião de Alíragano: isto é, que a qualquer grau correspondem 56 2/3 milhas...
Assim, podemos dizer que o perímetro da Terra no equador é de 20 400
milhas». Afirmou também que as suas observações eram confirmadas por
peritos portugueses, incluindo o famoso cosmógrafo José Vizinho^^
20
Molinari, «La empresa colombina», 320-37.
21
Textos, 217.
22
O
problema de explicar as pequenas diferenças nas caligrafias que anotaram os livros
nunca Muitos estudiosos têm-se contentado em atribuir a
foi satisfatoriamente resolvido.
Colombo todas as anotações marcadas com uma cruz. Las Casas estava convencido de que
Bartolomé escrevera muitas das anotações, incluindo a que agora está em causa (i. 146), mas
é mais provável que Colombo tenha estado em Lisboa nessa época do que seu irmão. Alguns
paleógrafos têm detectado mais de duas caligrafias: Fernando Colón, por exemplo, acrescen-
tou notas suas ao exemplar de Marco Pólo pertencente a seu pai (J. Gil in El libro de Marco
Polo anotado por Cristóbal Colón, Madrid, 1987, p. ix) e outras discrepâncias podem atribuir-
-se à intervenção de uma quarta mão, como a de Fray Gaspar de Gorricio.
depositário dos
papéis de Colombo (ver acima, pp. 189-191), ou, mais convincentemente em muitos casos,
pela evolução da caligrafia dos irmãos ao longo do tempo. A defesa do tratamento como holó-
admiravel-
grafas de todas as notas à obra de D'Ailly e, por consequência, à de Pio II está
mente resumida por Gil na sua contribuição para a introdução a Textos, pp. Ivi-lxii. A nota
J.
em questão aqui (Buron, i. 207) está reproduzida em fac-símile in Raccolta, 1. iii, n." 23.
23
Raccolta, L ii. 407 (n.° 490); Buron, ii. 530.
61
Esta última afirmação é incompatível com outras provas sobre a opi-
nião de Vizinho e o resto da nota cria uma impressão fortemente engana-
dora. «A opinião de Alfi*agano» - o cosmógrafo árabe do século x Al-
-Farghani - era expressa em milhas, de extensão muito superior às dos
grandes autores dos mundos grego e latino: Colombo, que conseguiu a infor-
mação através de Pierre d'Ailly, não tomou a precaução elementar de uni-
formizar as suas unidades de medida. E, mesmo que os seus valores esti-
vessem não poderiam ter sido verificados da forma que Colombo
certos,
defendia - usando «um quadrante e outros instrumentos». As inexactidões
deste método de determinação da latitude no mar não foram resolvidas no
século xv; os cálculos de distância efectuados pelos marinheiros eram extre-
mamente rudimentares - as estimativas dos pilotos de Colombo na sua pri-
meira viagem transatlântica, por exemplo, variaram em cerca de 10% e, em
qualquer caso, Colombo não podia estar certo de que a sua rota para a Guiné
o levava ao longo de um grande círculo à volta da Terra^'^.
Seria insensato, portanto, supor que Colombo formara a ideia de um
mundo reduzido logo na data da sua primeira viagem à Guiné, data que
pode ser fixada entre 1482 e 1485, havendo razões a favor deste último
ano^^ As suas memórias dessa experiência poderiam ter sido afectadas por
acontecimentos posteriores e a recordação consequentemente modificada.
Seria, por exemplo, consentâneo com as provas imaginar Colombo relendo
Pierre d'Ailly atentamente em 1498 ou perto desta data, quando preparava
a confirmação pormenorizada da sua reivindicação de ter descoberto uma
via curta para a Ásia; pode ter então atribuído à época da viagem à Guiné
a percepção de opiniões na verdade defendidas mais tarde. De qualquer
forma, teve certamente acesso a alguma espécie de teoria de «mundo pequeno»
ou, pelo menos, a uma teoria de um Atlântico estreito - talvez a de Toscanelli -
ou tê-la-á formulado para si próprio em 1492. De outro modo, seria inex-
plicável a sua repetida defesa, em escritos que podem ser datados desse ano,
da proximidade entre a Ásia e a Europa, viajando para ocidente^^.
Embora aparentemente pensando em destinos situados na Ásia e nos
Antípodas, Colombo parece também ter tido em mente um terceiro objec-
tivo possível. Pelo menos, segundo um biógrafo primitivo e privilegiado,
esperava aumentar a lista crescente de ilhas atlânticas recém-descobertas.
Muitos dos testemunhos empíricos que reuniu sobre o potencial do Atlântico
mais remoto relacionavam-se apenas com novas terras desconhecidas. Embora,
62
por exemplo, os náufragos de cara achatada que ele afirmou ter visto na
Irlanda devessem, segundo pensou, ter vindo directamente «de Cathay», as
indicações de vários destroços e pedaços de madeira flutuante atirados para
as costas do Atlântico eram indeterminadas: podiam ter vindo de qualquer
Ainda mais enfaticamente, os relatos que coligiu sobre visões
terra a ocidente.
de marinheiros de terras evanescentes - provavelmente meras formações de
nuvens - para lá dos arquipélagos atlânticos conhecidos alimentaram espe-
ranças de novas descobertas a realizar. A sua obra como cartógrafo familia-
rizou-o intimamente com o dicionário geográfico do fabuloso Atlântico dos
seus colegas: levava consigo um «mapa de ilhas» na sua primeira travessia
do oceano e tratava-o com o respeito devido a uma fonte de confiança'^
Assim, durante o período em que formulou o seu desígnio atlântico e pro-
curou patrocínio para ele, na década de 1480 e princípios da de 1490, Colombo
poderia ter tido três destinos em mente: a Ásia, os Antípodaís e ilhas ainda por
descobrir. Os historiadores e biógrafos procuraram, de maneira geral, ligá-lo a
um destes, seguindo a tradição inaugurada pelo próprio Colombo que parece ter
2^ Ibid. 24.
28 Las Casas, i. 150.
'^'^
Epistolario, i. 307; Navarrete, i. 360-2.
63
contarmos a tradição semi-hagiográfica que considera as suas ideias com-
pletamente formadas antes da primeira travessia atlântica e se nos abs-
trairmos da ideia semelhante mas oposta de detractores que supõem que
Colombo deve ter recebido a sua noção do mundo, de uma só vez, através
de algum criador desconhecido, o processo da sua formação intelectual foi
longo, abrangendo a sua carreira como navegador transatlântico, e foi ali-
mentado pelas suas experiências e observações, bem como pelas suas lei-
turas. Tal como a religião, a sabedoria foi algo que se desenvolveu nele à
medida que o tempo passava e as suas reacções às leituras eram distorci-
das pelos seus próprios triunfos e sofrimentos. Por conseguinte, as suas
ideias sobre a geografia foram evoluindo constantemente e podiam, por
vezes, ser completamente revistas. O Colombo adamantino que herdámos
da tradição necessita de ser recriado em mercúrio e opala. Tempera-
mentalmente era sem dúvida obstinado e obsessivo, mas podia sê-lo suces-
sivamente sobre ideias diferentes.
metade da década de 1480. Pelo seu trabalho no comércio tinha acesso pri-
vilegiado a livros. A tradição de que seu irmão Bartolomeo (sempre citado,
na ortografia castelhana, como Bartolomé Colón) se lhe juntara em Lisboa,
onde aprendera a fazer mapas, pode ajudar a explicar a mudança de activi-
dade de Colombo e sugere que o início da sua aventura em comum num
ofício ligado às letras tenha tido lugar ainda mais cedo, pois o período de
residência habitual de Colombo em Lisboa não se pode ter prolongado para
além de 1485.
Nos poucos livros dos dois irmãos que chegaram aos nossos dias, as
anotações rabiscadas à margem, em caligrafias pouco claras e quase indis-
tintas, fomecem-nos o único testemunho directo da formação do intelecto
64
de Colombo. Em anos recentes têm sido estudadas por eruditos com minu-
cioso cuidado^^ A dificuldade de datar essas obras, que podem ter sido
muitas vezes durante um longo período, gera o perigo de
lidas e relidas
atribuirmos a um
período recuado da vida de Colombo crenças formula-
das e preocupações surgidas muito mais tarde.
Algumas das prioridades reveladas são difíceis de enquadrar num per-
fil convincente da evolução de Colombo. O seu interesse por problemas de
hidrografia, por exemplo, é óbvio, mas parece apenas relevante para a sua
vocação de cartógrafo e não para a de explorador. Estava claramente obce-
cado pela lenda das Amazonas, anotando todas as referências que encon-
trava e, na verdade, por duas vezes durante as suas explorações do Novo
Mundo pensou ter encontrado ou ter estado prestes a encontrar tais seres.
Mas Amazonas faria parte do seu «grande desígnio»? Estava
a procura das
interessado nelas meramente como motivo decorativo para os seus mapas
teóricos? Via-as como uma fonte de imagens próprias para lisonjear a rai-
nha de Castela, que se considerava uma femina foríisl As anotações mos-
tram também o seu interesse, surgido quase certamente antes de 1492, pelos
cálculos da idade do mundo e, por consequência, pelos cálculos da data do
milénio. O milenarismo tomou-se, no fim da década de 1490, uma das obses-
sões mais importantes preferidas por Colombo e a conquista de Jerusalém,
que afirmava ter proposto aos monarcas espanhóis como projecto futuro,
depois da expedição ao Novo Mundo, foi tratada como um símbolo esca-
tológico nos seus últimos escritos. Mas significa isto que Colombo já era
um fantasista milenarista, alimentando uma «agenda secreta» quiliástica,
antes de 1492? É prudente pensar apenas que as anotações iniciais consti-
tuem orientações das tendências no pensamento de Colombo, que podem
ter começado cedo e amadurecido mais tarde.
Entre a meia dúzia de livros que leu mais minuciosamente e que se pode
presumir terem exercido alguma influência nele, pelo menos quatro devem
ter chegado às suas mãos antes de 1492. Porém, foi apenas no fim da década
de 1490 que Colombo começou (segundo os escritos que chegaram até nós)
3'
Especialmente por Pérez de Tudela y Bueso, Mirabilis in Altis; P. Moffitt Watts,
«Prophecy and Discovery: On the Spiritual Origins of Christopher Columbus's Enterpnse of
the Indies», American Historical Review, 90 (1985), 73-102, e J. Gil, El libro de Marco Polo
(Madrid, 1986), mas não na obra do mesmo título de 1987. As anotações estão coligidas e
reproduzidas em fac-símile in Raccolía, I. ii. 289-525, I. iii (1892) e I. iii {Supplemento)
(1894). Existem edições que incluem os textos de Pierre d'Ailly in Buron (mas esta é incom-
pleta) e, em fotostato, in Imago Mundi by Petrus de Aliaco (Pierre dAilly) wiíh annotations
by Christopher Columbus (Boston, 1927) e de Marco Pólo in Gil, El libro de Marco Polo.
Não consultei a edição de L. Giovanni, // Milione con le postille di Cristoforo Colombo
(Roma, 1985). As anotações a Pio II são estudadas na tese de mestrado apresentada na
Universidade de Londres e não publicada de A. Phillimore, «The Postille of Chnstopher
Columbus to the Historia Rerum Ubique Gestarum of Pius II» (1988). Agradeço a Lady
Phillimore o empréstimo de um exemplar desta obra.
65
a compilar informações sobre o que se pode chamar cosmografia sistemá-
tica e seria apressado supor que Colombo, por exemplo em 1498, estava
simplesmente a recapitular ideias consistentemente expostas desde os anos
anteriores a 1492. De qualquer forma, os livros em questão continuam a ser
um guia valioso para o estudo das diversas ideias à disposição de Colombo
durante a formulação do seu objectivo. Constituíram, muito provavelmente,
os alicerces da defesa escrita da sua causa, os quais, segundo mais tarde
recordou, apresentara durante a sua campanha para obter patrocínio:
foram citados textos de autores conceituados, que escreveram obras históricas em que
afirmaram a existência de grandes riquezas nessas partes do mundo. E igualmente foi
necessário apresentar para apoiar isto os ditos e opiniões dos que descreveram a geogra-
fia do mundo por escrito. E por fim Suas Ahezas resolveram que devia ser efectuado^^.
Destes textos essenciais, nenhum foi tão importante, quer para Colombo
quer em termos gerais para a geografia do seu tempo, como a Geografia
de Ptolemeu^^ Redescoberto por eruditos ocidentais no início do século xv,
este compêndio alexandrino do século ii reunia muita sabedoria e especula-
ção clássicas. Em Itália e Portugal, onde Ptolemeu desfrutara do mais
longo e amplo êxito, a autoridade da Geografia era considerada superior
à de todos os outros textos. Pela mão remota de Ptolemeu, Colombo apren-
deu ou confirmou algumas informações fundamentais à elaboração dos
seus planos para atravessar o Atlântico: em primeiro lugar, que o mundo
era uma esfera perfeita - observação inexacta mas universalmente aceite
como verdadeira na época, que serviu os propósitos do explorador até,
como veremos, a rejeitar, por força das suas próprias observações, em
1498. Em segundo lugar, Ptolemeu ensinava que o mundo conhecido se
estendia por uma massa contínua de terra desde a extremidade ocidental
da Europa até ao limite mais oriental da Ásia e que entre esses dois pon-
tos se encontrava um oceano; este fora um lugar-comum da concepção do
mundo medieval antes da divulgação de Ptolemeu, mas a sua autoridade
confirmava que era teoricamente possível passar da Europa para a Ásia
através do Atlântico. O último ponto em que a ciência de Ptolemeu coin-
cidia com os planos de Colombo era a existência de terras desconhecidas
ao sul do mundo conhecido: dependendo da latitude que escolhesse para
as suas travessias, este facto oferecia a possibilidade de realizar novas e
importantes descobertas. Além disso, Ptolemeu - tal como a maioria dos
leitores o compreendia - bloqueava a rota oriental para a índia com ter-
32 Textos, 203.
A edição conhecida por Colombo existe em fac-símile, com introdução de R. A. Skelton
"
(Amesterdão, 1966). A única edição actual de confiança é a Ptolemaei Geographia, ed.
C. F. A. Nobbe (Leipzig, 1843-5). Existe uma tradução útil, Geography ofClaudius Ptolemy,
tr. e ed. E. L. Stevenson (Nova Iorque, 1932).
66
ras hipotéticas que rodeavam o oceano Índico. Não há provas de que
Colombo partilhasse desta opinião, mas era encarada seriamente na época:
em 1490, Portugal enviou uma missão exploratória ao oceano Índico pre-
cisamente para a verificar. Se a rota em redor de África fosse impraticá-
vel, tal facto constituiria uma razão adicional para tentar, de preferência,
a transnavegação directado Atlântico.
Ptolemeu encorajava Colombo, o cartógrafo, bem como Colombo, o
explorador. Colombo adoptou o princípio alexandrino de elaborar mapas
sobre uma grelha, fixando a posição dos locais pelas suas coordenadas de
O mapa que regista as suas descobertas atlânticas, pro-
longitude e latitude.
metido aos seus patronos, foi concebido segundo princípios ptolemaicos e
os esforços - sempre sem grande êxito - para determinar a longitude e a
latitude marcam os relatos das suas viagens. Como não sobreviveu qualquer
mapa autêntico da autoria de Colombo, é impossível garantir a fidelidade
deste, na prática, aos padrões de Ptolemeu. A história da realização do seu
mapa do Novo Mundo está apenas documentada pelos insistentes pedidos
dos monarcas espanhóis para o verem concluído - o que suscita a possibi-
lidade de ter sempre permanecido incompleto. Tem-se argumentado que o
mapa com maiores probabilidades de ter sido copiado da obra de Colombo -
um mapa turco de 1513, obtido através de documentos espanhóis captura-
dos - mostra sinais de ter sido copiado de um mapa exposto numa grelha-^'*;
mas como Colombo não sabia determinar correctamente a latitude e, tal
como todos os seus contemporâneos e os que se seguiram durante mais de
um século, nunca se aproximou sequer da solução para a determinação da
longitude, quaisquer esforços que possa ter feito foram, na melhor das hipó-
teses, experimentais.
Noutros aspectos, as doutrinas de Ptolemeu não auxiliaram tanto Colombo.
Na opinião de Ptolemeu, partilhada pela maioria dos contemporâneos de
Colombo, o mundo conhecido ocupava exactamente metade da superfície
do globo. Embora Ptolemeu admitisse que o Oriente desconhecido se pudesse
estender para lá desses limites, uma travessia atlântica implicaria uma via-
^^
C. H. Hapgood,Maps ofthe Ancient Sea-Kings (Londres, 1979), 4-30. O autor desen-
volve teorias amplamente fantasistas, mas a afirmação sobre a grelha parece possível.
67
k
conhecida. O seu valor sobrevivera apenas devido à rejeição do mesmo por
Ptolemeu. No fim da sua vida, Colombo afirmaria ter provado que Marino
estava certo e Ptolemeu errado^^
A sua atitude para com Ptolemeu constitui uma indicação curiosa da
forma como a sua mente trabalhava e dos problemas da investigação cien-
tífica numa época em que a experiência começava a rivalizar com a tradi-
ção como fonte de autoridade científica. Colombo tinha profundo respeito
pelos textos: como seria natural num autodidacta, sentia-se provavelmente
um pouco intimidado por eles. Mas sabia que não podiam satisfazer a sua
vontade de conhecer «os segredos deste mundo»; posteriormente, sempre
que pela sua própria experiência conseguia contestar alguma afirmação de
Ptolemeu, exultava de alegria. Já se orgulhara de ter testemunhado que as
zonas tropicais eram habitáveis, pace o sábio de Alexandria, na sua viagem
à Costa do Ouro (embora, tal como muitas observações de Colombo, esta
estivesse errada, visto que na altura em que se julgou no equador estava
realmente cinco graus a norte dele)^^. Por outro lado, o estudo e conheci-
mento dos textos e a aceitação de autoridades, incluindo a de Ptolemeu,
quando servia os propósitos de Colombo, constituíram influências funda-
mentais no aparecimento das suas ideias. Porque as notas de Colombo à
Geografia de Ptolemeu não sobreviveram, esta não pode ser investigada
como as outras obras anotadas, para compreensão específica dos valores e
prioridades de Colombo e do seu tipo de raciocínio. No entanto, parece justo
atribuir-lhe um lugar primordial na formação das suas noções de geografia.
Uma correcção parcial a Ptolemeu encontrava-se nas viagens aos limi-
tes da Ásia descritas em O Livro de Marco Pólo. A edição de Colombo,
publicada em 1485, não foi quase com certeza adquirida para a sua biblio-
teca antes de 1496, mas os seus próprios escritos mostram que conhecia bem
a versão de Marco Pólo, relativamente a nomes de locais orientais, em 1492.
O texto do viajante era muito antigo e muito lido na época de Colombo, mas
a sua autoridade era objecto de controvérsia. Entre os eruditos da Itália e do
Sul da Alemanha, o veneziano era digno de cordial confiança, enquanto nou-
tras regiões e entre estudiosos mais tradicionais o seu livro era olhado com
cepticismo. Em
Espanha parece ter sido pouco conhecido. Os homens da
Idade Média tinham sido ludibriados por demasiadas histórias de riquezas
infinitas e de prodígios ocultos da Natureza no Oriente para poderem acre-
ditar imediatamente numa narrativa tão repleta de maravilhas como a de
Marco Pólo. O epíteto comum do livro, // milione, é um tributo irónico à
hipérbole de um suposto charlatão. O texto não conferia o tipo de autoridade
que Colombo deveria invocar quando argumentasse sobre os méritos do seu
plano, mas era sempre pouco critico na sua selecção de testemunhos e con-
35 Textos, 319-20.
3^ Morison, i. 54-5.
68
siderou Marco Pólo especialmente útil em três aspectos. Em primeiro lugar,
Colombo calculou que as viagens do veneziano na Ásia o deveriam ter levado
muito para além do que Ptolemeu considerara o limite extremo da Terra. Este
facto, por si só, diminuiria o oceano de Ptolemeu, demasiado grande para
ser facilmente navegado. Além disso, Colombo dedicou especial atenção ao
registo de Marco Pólo sobre a existência de, pelo menos, 1378 ilhas ao largo
da costa da Ásia. Isto equivalia à esperança de encontrar terra antes do fim
da travessia até ao continente. Por último. Marco Pólo registara, a 1500
milhas da China, a ilha dourada, verdejante e fértil de Cipangu. Esta era a
primeira notícia digna de crédito a chegar à Europa sobre a existência do
Japão, mas por não estar confirmada suscitava dúvidas. Marco Pólo calculara
incorrectamente a distância que a separava da China e não fornecera indi-
cações adequadas sobre a sua localização. No entanto, Colombo aferrou-se
à ideia da existência de Cipangu como a sorte dourada no meio do oceano.
Na sua primeira travessia atlântica, embora inicialmente não se dirigisse para
ela, alterou a rota na esperança de a encontrar. Quando estava nas Caraíbas,
69
Colombo foi o famoso «Sir John Mandeville», que descrevia fantasias
muito mais ricas que as de Marco Pólo, sem viajar muito para além da
colecção de livros mais próxima. O que atraía particularmente Colombo,
além das histórias espantosas, eram as descrições de produtos exóticos,
que anotava nas margens do seu exemplar: «especiarias, pérolas, pedras
preciosas, tecidos de ouro, mármore», gengibre, açúcar, sedas, minas de
lápis-lazúli e prata, casas repletas de ouro, vitualhas copiosas e abundân-
cia de ricas mercadorias^^
A primeira vista, poder-se-ia esperar mais ajuda para o conhecimento
das fontes de influência no pensamento geográfico de Colombo no seu exem-
plar da Imago Mundi de Pierre d'Ailly. D'Ailly era o autor mais minucio-
samente estudado da biblioteca do explorador. Fragmentos do seu livro e de
dois tratados cosmográficos e astrológicos encadernados em conjunto foram
retirados do seu contexto, memorizados, ordenados segundo estranhos padrões
e lançados em apoio de algumas das teorias posteriores mais polémicas
- mesmo bizarras - de Colombo, tais como a de que tinha descoberto uma
rota curta para a Ásia, a partir de 1492, a de que tinha localizado o Paraíso
terreno em 1498 ou a de que as suas descobertas eram divinamente inspira-
das como prenúncios do milénio, a partir de cerca de 1500. Das páginas de
D'Ailly Colombo retirou algumas das suas especulações acerca da existên-
cia dos antípodas e a maior parte dos seus argumentos a favor de um mundo
pequeno e de um Atlântico estreito, incluindo o valor de Al-Farghani para
o comprimento de um grau; da mesma fonte reuniu anotações que revelam
interesse pelos métodos de previsão da data do milénio e copiou uma tabela
da duração do dia solar no solstício através da latitude, a qual, como vere-
mos, utilizou na sua primeira viagem transatlântica como base das suas ten-
tativas para determinar a latitude à medida que velejava^^. A influência de
D'Ailly é tão fundamental que parece particularmente importante estabele-
cer a data em que se exerceu. A edição de Colombo não tinha data, mas fora
publicada em 1480 ou 1483; este facto também não estabelece um firme ter-
minus a quo, visto que Colombo pode ter tido previamente acesso a um texto
anterior. Uma das anotações à margem refere o ano de 1481 como se fosse
feita nesse mesmo ano, mas pode tratar-se de uma citação. Um terminus ad
quem inquestionável para a primeira leitura do livro por Colombo é forne-
cido por outra anotação que refere um acontecimento «deste ano de 1488»;
pelo menos uma anotação, numa passagem de um dos tratados reunidos onde
D'Ailly discute métodos astrológicos para calcular a data do fim do mundo.
38 M. Pólo, The Description ofthe World, ed. A. C. Moule e P. Pelliott (Londres, 1938),
i. 86, 270-1, 328-9, 376, 378, 424; Mandeville's Traveis, ed. S. M. Letts, 2 vols. (Londres,
1953), i. pp. xxii-xxv; Mandeville 's Traveis, ed. M. C. Seymour (Oxford, 1967), p. xiv; Gil,
El libro de Marco Polo, 30.
3^ Buron, i. 144, 159-63 e pi. v p. op. 272; R. Laguarda Trías, El enigma de las latitu-
70
foi escrita como se 1489 ainda fosse uma data futura. Outra nota refere-se
ao «presente ano de 1491» e cita Março de 1491 como data futura"*". Mas
como a obra pode ter sido lida - e certamente o foi - muitas vezes no decurso
da vida de Colombo, procurando nas suas páginas mais «segredos deste
mundo», mais pistas sobre a natureza das suas descobertas, mais argumen-
tos a favor das suas próprias reivindicações, é impossível extrair quaisquer
conclusões fiáveis sobre a cronologia exacta da evolução das ideias de
Colombo. O facto de na década de 1480 já contemplar com interesse a pers-
pectiva do fim do mundo não significa, por exemplo, que já imaginasse o
papel pessoal que mais tarde atribuiria a si próprio no precipitar dessa con-
sumação a desejar devotamente. O livro de D'Ailly fornece não tanto um
guia para o estudo do desenvolvimento do pensamento de Colombo mas
antesuma perspectiva sobre o leque das suas prioridades. De facto, a impres-
são geral mais nítida provocada pelas suas anotações - subjacente a todos
os aspectos particulares da sua preocupação com problemas geográficos, com
projectos atlânticos e com prognósticos astrológicos - é a sua grande paixão
pelo exótico.A parte do livro com mais anotações está recheada de imagens
das maravilhas do Oriente e das riquezas da índia - ouro e prata, pérolas e
pedras preciosas, fauna e animais fabulosos.
A mesma imagem de um Colombo atraído pelo exótico e excitado pela
riqueza revela-se nas suas anotações ao compêndio geográfico de Pio 11, o
Historia Rerum ubique Gestarum. O exemplar de Colombo, impresso em
1477, estava quase tão anotado como o seu Imago Mundi, com 861 notas à
margem contra as 898 deste último. As margens de ambas as obras estão
salpicadas de passagens de especial interesse ou curiosidade. Cobrem um
vasto campo mas preocupam-se predominantemente, de uma forma ou de
outra, com as riquezas e a diversidade do Oriente. Além das Amazonas, da
hidrografia e do exotismo em geral, os tópicos específicos do livro que mais
atraíram a atenção de Colombo foram a navegabilidade de todos os ocea-
nos, a habitabilidade em todos os climas'*' e a questão da existência dos
Antípodas. Ao discutir a primeira destas questões. Pio II demonstrava uma
crença implícita - ou disposição para crer - numa rota navegável entre a
Ásia e a Europa através do Atlântico. Colombo notou, por exemplo, a sua
história de mercadores italianos que teriam desembarcado na Alemanha no
século XII. O papa humanista tinha o hábito de justapor testemunhos tex-
^0
G. Caraci, «Quando cominciò Colombo a scrivere le sue postille?», in Seriai geogra-
fia inonore di Carmelo Colamonico (Nápoles, 1963), 61-96; Raccolta, I. ii. 291, 376-7
(n.° 23, 621, 753); Buron, i. 206-9, iii. 737. Imago Mundi by Petrus de Aliaco, 60.
^^
O Historie afirma que Colombo possuía o livro De Locis Hahitahilihus atribuído a
Julius Capitolinus, que - se realmente existiu- parece ter-se relacionado com o mesmo tema
{Historie, i. 67). Bemáldez poderia estar a pensar no capítulo oito de Imago Mundi. «De quan-
titate terrae habitabilis», que estava bastante anotado por Colombo, ou numa
obra perdida de
Julius Honorius. A. Riese, Geographi Latini Minores (Heilbron, 1870), 15-55, edita
todas as
obras sobreviventes.
71
tuais e empíricos, isto é, de usar os resultados práticos de supostas nave-
gações e o testemunho observado de viagens reais para confirmar ou con-
da sabedoria recebida. Colombo, que não recebera educa-
testar as ideias
ção de base mas reclamava uma vasta experiência prática no mar, baseava
os seus próprios desafios aos eruditos nos seus conhecimentos superiores
do embora citando a autoridade escrita - cada vez mais, segundo
ofício,
parece, à medida que o tempo passava - num plano secundário. O seu método
pode ter sido inspirado pelo exemplo de Pio II ou adoptado faute de mieux.
Confere um carácter especiosamente científico aos seus próprios escritos
com os frequentes apelos a valores empíricos. Pelo menos, pode dizer-se
que Pio II o encorajou a ver a geografia como terreno excitante para novas
descobertas, em que pequena parte do retrato recebido está isenta de sofisma
e todo um mundo parecia estar aberto ao desafio.
A data da leitura do livro por Colombo não pode ser definida com muito
maior rigor do que no caso da Imago Mundi. Uma anotação que refere as
leituras de latitude de José Vizinho ao longo da costa ocidental da África
deve ser posterior a 1485; outra - que contém uma nova referência a
Bartolomeu Dias, o descobridor do cabo da Boa Esperança - deve datar de
1488, pelo menos. O que parecem ser alusões convincentes a afirmações
de Pio II no chamado diário de Colombo da sua primeira viagem transa-
tlântica tomam praticamente certo que o livro já era bem conhecido do
explorador antes de 1492 e pelo menos partes dele estavam presentes na
sua mente quando realizou a sua última viagem em 1502-04^^^.
Os outros livros anotados da biblioteca de Colombo que chegaram
até nós foram a História Natural de Plínio e Vidas de Plutarco. São últi-
mas edições, de 1489 e 1491 respectivamente, mas a que Colombo teve
acesso antes de atravessar o Atlântico. A influência que tiveram nos seus
planos parece insignificante. Embora a tradição do século xvi atribuísse
a Plínio um papel formativo na génese dos planos de Colombo, a única
referência que lhe foi feita pelo descobridor, num contexto teórico, é irre-
levante e quase todas as vinte e quatro anotações são tentativas de tra-
duzir o texto italiano da edição de Colombo para espanhol. Uma nota que
refere Hispaníola deve ter sido escrita depois de 1492. Se Colombo estava
interessado em medicamentos para doenças de olhos, para si próprio, uma
leitura, pelo menos, pode ser de data posterior a 1494, quando a sua
doença crónica e dolorosa surgiu pela primeira vez durante a exploração
de Cuba. Além das curas - sobretudo para cálculos biliares -, o interesse
de Colombo era principalmente atraído pela mesma gama de assuntos
anotada nos seus exemplares de Marco Pólo: ouro, prata, pérolas, âmbar
e «muitas maravilhas»"^^.
^^ Caraci, Scritti geografici; Textos, 115, 325; Raccolta, I. ii, n° 6, 858, 860.
^^ Raccolta, I. iii, pi. Cl.
72
No Plutarco, anotado com grande pormenor, é possível encontrar mais
algumas das obsessões específicas de Colombo. Das 437 notas, noventa e
nove ligam-se a augúrios, prodígios e, ocasionalmente, formas mais miste-
riosas de adivinhação, como o exorcismo de demónios por Numa. Nesta
matéria, Colombo mostra-se particularmente interessado em visões e dá
especial atenção a quaisquer «vozes etéreas» como as que aconselharam
Marcus Caecius. Não é difícil detectar aqui provas de um interesse que pode
ter sido suscitado pelos próprios diálogos com as suas «vozes». Com excep-
cional abertura de espírito, Colombo anotou também os argumentos de Dio
Cassius contra a crença em visões. O tema seguinte mais representado é o
do embuste como instrumento político. Colombo observou todos os aspec-
tos da astúcia de um político ou dos estratagemas de um comandante. O capi-
tão que viciava a bússola e falseava o diário de bordo encontrava certamente
inspiração nestes exemplos. Colombo manifestou também um interesse
excepcional por circunstâncias de extrema fleuma e sang-froid épatant -
particularmente em heróis como Brutus e Manlius Torquatus, que estavam
dispostos a reclamar a pena máxima para seus próprios fílhos quando o
dever assim o exigia. Colombo nunca tomou explícito o paralelo, mas inte-
ressa recordar que em Hispaníola, em 1500, se sentiu obrigado, embora com
relutância, a executar um amotinado: ao justificar este procedimento arbi-
trário e extremo, declarou que não hesitaria em fazer o mesmo a seu pró-
prio filho, em circunstâncias semelhantes. Admirava a frieza de Péricles, a
quem nada emocionava, excepto a dificil situação de seu filho: Colombo
podia identificar-se com o ateniense, pois passara por momentos de intenso
sofrimento pelos seus próprios filhos - especialmente durante a viagem de
regresso da sua primeira travessia atlântica, quando pensou que não os vol-
taria a ver, e durante a sua última viagem, quando assistiu ao sofrimento e
fortaleza de ânimo de seu filho mais novo, que o acompanhou. As suas ano-
tações abordam igualmente formas de «boa morte» e, de maneira mais geral,
o modo como morreram os heróis da Antiguidade. Algumas das suas obses-
sões mais familiares estão representadas por estranhas notas: reconhece-se
uma femina fortis na mulher de Manlius e refere-se a localização das
Amazonas. Velhas anedotas e contos morais revelam um aspecto do gosto
característico de Colombo: apreciava, por exemplo, a história do roubo da
cria de leão que comeu o seu ladrão, das duas mulheres de Roma que mor-
reram de prazer, do amor de Numa por águias ou do prodigioso camaleão
que pode assumir todas as cores, excepto o branco. A meticulosidade com
que anota os heróis sensíveis ao «desejo indizível» toma surpreendente que
ninguém ainda tenha escrito um livro em que se afirme que Colombo era
homossexual"^.
^ Raccolta, I. iii, Supplemento, passim, esp. n.'' 6, 13, 18, 28, 47, 57, 66. 75, 88, 92,
112,243,329.
73
Assim, embora seja difícil, talvez impossível, estabelecer um discurso
coerente sobre a geografia de Colombo a partir do testemunho dos seus
hábitos de leitura, é possível respigar alguns aspectos dos seus gostos.
Gostava de ler mas não era erudito, sendo pois um «leitor» sem grandes
exigências. Gostava do sensacional e do trivial, do sentencioso e do salaz.
Recolhia aspectos que reproduziam a sua própria experiência ou que se rela-
cionavam com as suas ambições. Através das suas notas, essas ambições
surgem como materiais, pelo menos tanto como científicas; interessava-se
pela Ásia devido às suas «maravilhas» de literatura sensacionalista e riqueza
de livro de ouro. A sua atitude perante a autoridade científica era uma curiosa
mistura de servilismo e de reacção. Recolhia nozes de informação como um
esquilo e quebrava-as como um crítico. A partir dos escassos testemunhos
que sobrevivem, é tentador ver o seu interesse pelos despojos da erudição
a aumentar à medida que o tempo passava e supor que as suas leituras pas-
saram a ter um propósito mais definido a partir de 1498, quando vasculhava
os seus livros sistematicamente em busca da defesa da sua carreira até essa
data, mas tal não significa necessariamente que não tivesse tentado uma
exposição académica das suas ideias antes de 1492.
74
curta para o Oriente. Esta surgia tanto pelos preparativos feitos por Colombo
- levando a bordo um intérprete oriental, munindo-se de salvos-condutos
implicitamente dirigidos ao governante da China, assegurando aos seus patro-
nos que «iria para oriente pelo ocidente» - e pelas provas consistentes do
seu próprio relato da primeira travessia atlântica, que insiste num destino
asiático com convincente monotonia. A partir do momento em que se fez
ao mar, Colombo nunca mencionou qualquer outro destino possível e quando
regressou, embora não faltassem pseudo-eruditos para identificar as suas
novas descobertas como os Antípodas ou simplesmente como ilhas previa-
mente por descobrir, Colombo excluiu rigidamente, pela forma como as
apresentou, todas as descrições que não fossem asiáticas. Se os testemunhos
sobre a sua formação intelectual não auxiliam quanto a sabermos quando e
como surgiu esta concentração de atenção, poderá ser útil investigar o outro
processo em que Colombo se empenhou nos mesmos anos - a procura de
um patrono.
75
3
A PROCURA DE PATROCÍNIO,
c.1484-1492
no segundo dia do mês de Janeiro, vi o estandarte real de Suas Altezas içado nas torres
do Alhambra, que é a fortaleza da dita cidade, e vi o rei mouro chegar às portas da dita
cidade e beijar as mãos reais de Suas Altezas e do meu senhor, o príncipe... e depois,
nesse mesmo mês... Suas Altezas, como como príncipes que amam
cristãos católicos e
a santa fé cristã, e como propagadores desta e inimigos da seita de Maomé e de todas
as idolatrias e heresias, pensaram em enviar-me, a mim Cristóvão Colombo, às regiões
da índia... e Suas Altezas ordenaram que não viajasse por terra para oriente, como é cos-
tume, mas antes pelo Ocidente, por onde até hoje, tanto quanto podemos saber ao certo,
nenhum homem alguma vez foi^.
que segundo ele próprio nada tinha a oferecer excepto promessas que «não
eram poucas nem vãs»^ obter o apoio real que lançou o seu empreendi-
mento e a sua carreira?
'
Textos, 203.
2Ibid. 15-16.
3 Ibid. 272.
77
Os exploradores do século xv, pelo que sabemos, não partiam à aven-
tura sem autorização e apoio de algum poderoso príncipe. Colombo expli-
cou bastante claramente a razão deste facto: qualquer indivíduo poderia fazer
uma descoberta mas não lhe era permitido reclamar a sua soberania, nem
conseguiria manter os seus proveitos sem protecção real contra a intrusão
de outros súbditos ou os ataques de algum príncipe estrangeiro. Quando
Colombo foi acusado, no fim da década de 1490, de conspirar para retirar
as suas descobertas à coroa castelhana, a sua defesa bastante irrelevante
baseou-se no facto de não poder passar sem um patrono. Só um Estado tinha
autoridade para legitimar o seu empreendimento, bem como poder para deter
os ladrões. Como genovês, Colombo tinha liberdade para procurar patrocí-
nio estatal por toda a parte; parece ter pensado, em várias épocas, na sua
república natal, no papa e nos monarcas de Portugal, Castela, França e
Inglaterra como potenciais protectores. Na sua própria memória distorcida,
formou-se a ideia de ter tido que afastar rivais desejosos dos seus serviços
e de que Deus deu o projecto a Castela contra ofertas dos Ingleses, Franceses
e Portugueses «por um milagre», realizado pela «mão manifesta» de Deus^.
Na realidade, Colombo suscitou apenas algum interesse esporádico fora de
Espanha e o patrocínio de Fernando e Isabel foi obtido após longo e per-
sistente esforço.
A tradição de que a procura de patrocínio se iniciou em Portugal, em
1484, pode considerar-se provisoriamente de confiança, embora se deva ter
em mente que não existe prova directa de qualquer abordagem de Colombo
na corte de Portugal antes de 1488, quando eleja se mudara para Castela^
Portugal era certamente um bom lugar para começar. Todas as novas des-
cobertas conhecidas no Atlântico, desde meados do século, tinham sido rea-
lizadas sob auspício português e a experiência da guerra no alto mar, em
1474-79, de Portugal contra Castela demonstrara, de maneira geral, que o
rei de Portugal podia oferecer a melhor prenda que um patrono poderia dar
78
ouro e centralizou o comércio africano em Lisboa, na Casa da Mina, situada
por baixo do palácio real, onde todas as viagens tinham que ser registadas
e todas as cargas armazenadas. Tomou-se hábito de Colombo evidenciar aos
monarcas castelhanos a energia e o empenho deste rei^.
Neste cenário, se Colombo procurou apoio em Portugal para a tentativa
de uma travessia atlântica em 1484, é surpreendente que o mesmo tenha sido
Apenas três anos mais tarde, um aventureiro flamengo, Fernando
rejeitado.
van Olmen, foi incumbido por Portugal para o que parece ter sido um pro-
jecto muito semelhante, isto é, o de encontrar «ilhas e continente» no oceano
Atlântico^. Pela frequência com que surgem tais documentos nos arquivos
portugueses, comissões de exploração eram fáceis de obter entre 1462 e 1487^
No entanto, segundo as tradições em que somos obrigados a confiar, o pedido
de Colombo falhou por duas razões. A comissão de eruditos profissionais que
apreciou os seus planos rejeitou-os porque não acreditava na existência de
Cipangu e, por outro lado, porque Colombo pedia recompensas exageradas
pelos seus serviços em caso de sucesso^. Ambas as explicações são credíveis:
as tentativas de Colombo para obter apoio do rei D. João podem ter sido pre-
judicadas quer pela improbabilidade da realização dos seus planos quer pela
importunidade das suas exigências. Outras razões possíveis mas inteiramente
especulativas referem-se ao facto de Colombo não ter conseguido reunir capi-
tal privado para o seu empreendimento ou de que a partida das ilhas Canárias
já fazia parte integrante dos seus planos - pois as Canárias pertenciam à esfera
da expansão castelhana, que os Portugueses, apesar de repetidos esforços, não
tinham conseguido quebrar. A própria explicação de Colombo, fornecida mais
tarde com as vantagens da percepção posterior e a exaltação da convicção
divina, diziaque Deus obscurecera a visão do rei de Portugal para reservar a
Castela a glória da descoberta^°.
Os planos divinos amadurecem lentamente. Neste caso, parece certa-
mente que Deus não teve pressa. Quando, devido ao seu desapontamento
em Portugal, Colombo transferiu as suas frustrações para Castela, tinha ainda
seis ou sete anos de espera à sua frente, marcados por momentos de deses-
pero, antes de obter finalmente um comando real. O historial de Castela na
promoção da descoberta atlântica, embora longo, era desigual e caprichoso.
Castela atrasara-se em relação a Portugal na competição por territórios ultra-
marinos não por falta de vontade mas por falta de meios. Os reis castelha-
k 79
nos tinham posto em causa as reivindicações de Portugal em África e nas
ilhas atlânticas desde 1345, quando ambas as coroas tinham reclamado o
direito de conquista das Canárias perante a corte do papa Clemente VI.
Nessa ocasião, o papa antecipara-se a ambos os rivais atribuindo ele pró-
prio os benefícios. Desde o início do século xv, os juristas castelhanos
tinham desenvolvido uma argumentação que atribuía direitos de conquista
em Africa ao seu próprio soberano, por virtude da suposta descendência da
realeza dos governantes visigodos de toda a Espanha, juntamentecom os
seus direitos contra os Mouros, através da genealogia dos monarcas de
Castela. Poucas consequências práticas tinham sido conseguidas, excep-
tuando a conquista de quatro das ilhas Canárias. Quando Colombo chegou,
porém, o ritmo do envolvimento castelhano estava a acelerar-se.
Intrusos castelhanos no comércio africano tinham provocado queixas de
Portugal desde a década de 1440, mas a guerra de 1474-79, em que Fernando
e sua mulher Isabel foram afrontados por Portugal pela coroa de Castela,
agiu como catalisadora da actividade castelhana. Os monarcas foram gene-
rosos na outorga de licenças para viagens de pirataria ou contrabando. Os
genoveses de Sevilha e Cádis tinham interesse em investir nestes empreen-
dimentos e os marinheiros andaluzes, incluindo muitos que iriam viajar com
Colombo ou que realizaram viagens transatlânticas depois dele, foram trei-
nados na navegação atlântica. O principal acto daquela guerra teve lugar
em terra, no Norte de Castela, mas foi acompanhado por uma «pequena
guerra» no mar, na latitude das Canárias. Os corsários castelhanos recebe-
ram autorização para quebrar, pela força, o monopólio de Portugal do comér-
cio da Guiné. O governador genovês das ilhas portuguesas de Cabo Verde,
António da Noli, desertou para Castela. As embarcações portuguesas efec-
tuaram numerosos ataques aos colonos castelhanos da ilha de Lançarote.
A importância das ilhas desse arquipélago ainda não conquistadas - preci-
samente as mais ricas. Grande Canária, Palma e Tenerife, que ainda esta-
vam na posse dos seus habitantes aborígenes - e a fragilidade do domínio
castelhano sobre as outras terras foram postas em evidência. Quando Fernando
e Isabel enviaram uma expedição para retomar a conquista das Canárias,
em 1478, uma esquadra portuguesa rival estava já a caminho.
Entretanto, outras razões mais aprofundadas impeliram os monarcas cas-
telhanos para uma política atlântica. Os Portugueses não eram os únicos rivais
pela posse das ilhas Canárias: o título de senhor das ilhas proviera de Diego
de Herrera, nobre de baixa estirpe de Sevilha, que se imaginava um con-
quistador. Era o tipo de paladino truculento cujo poder, numa região perifé-
rica, constituía uma afronta à coroa. Aproveitando uma rebelião local con-
traa autoridade senhorial, em Lançarote, em 1475-76 - uma de várias rebeliões
semelhantes -, os monarcas decidiram impor a sua suserania. Em Novembro
de 1476 iniciaram um inquérito sobre a base jurídica do senhorio das Canárias.
As suas conclusões foram incorporadas num acordo entre o senhor e os suse-
80
ranos, em Outubro de 1477: os direitos dos Herrera eram inatacáveis, salvo
o senhorio superior da coroa, mas «excepto por certas razões justas e razoá-
veis» que nunca foram especificadas, o direito de conquista revertia para a
coroa. Entre 1480 e 1483, a Grande Canária foi esforçadamente conquistada
aos nativos, que, armados literalmente com paus e pedras, aproveitaram o
terreno difícil conseguindo repetidas vitórias sobre adversários tecnicamente
superiores. Entretanto, uma nova insurreição dos nativos de Gomera obrigou
as forças reais a deslocarem-se da
Grande Canária para aquela ilha: em 1488
e 1489 incursões brutais esmagaram os rebeldes, que, com legalidade duvi-
dosa, foram escravizados em grande quantidade como «rebeldes contra seus
senhores naturais». Esta conquista definitiva de Gomera colocou, inciden-
talmente, o porto de águas profundas da ilha, San Sebastián, situado no
extremo ocidental do mundo cristão, à disposição de Colombo".
Para além das Canárias, outras recompensas atlânticas mais remotas
atraíam os monarcas espanhóis. Como sempre na história do envolvimento
latino no Atlântico africano, o ouro foi o seu estímulo. Segundo um obser-
vador altamente privilegiado, o interesse do rei Fernando pelas Canárias foi
suscitado pelo desejo de obter comunicações fáceis com «as minas da Etiópia»
(isto é, África)^^. A conclusão da guerra com Portugal negou-lhe efectiva-
mente o acesso às lucrativas novas minas de ouro exploradas por aquele
país abaixo da protuberância africana, perto da embocadura do Volta, na
década de 1480. Este facto deve ter ajudado a estimular a procura de fon-
tes alternativas de ouro e ajudará a explicar, por exemplo, a ênfase dada ao
ouro nos diários de Colombo. Em 1482, os monarcas castelhanos dedica-
ram-se à conquista de Granada, o último Estado mouro que permanecia na
Península Ibérica: isto não significou, porém, que tinham abandonado o inte-
resse pelo Atlântico, mas apenas que, enquanto a paz com Portugal asse-
gurasse a retaguarda, poderiam prosseguir uma política de expansão sem
limites noutra frente. A conquista das Canárias prosseguiu, embora a ritmo
lento, e, em certa medida, a conquista de Granada estimulou o interesse pela
exploração mais longínqua ao aumentar a urgência em procurar novas fon-
tesde ouro. Os custos da guerra e a perda dos tradicionais tributos grana-
dinos,combinados com o abandono das esperanças castelhanas em Africa,
conferiram às propostas de Colombo uma atracção crescente na Castela da
década de 1480 e do início da de 1490.
" E. Aznar Vallejo, La integración de las islãs Canárias en la corona de Castilla (Sevilha-
-La Laguna, 1984), 23-87; Documentos canários en el Registro dei Sello (La Laguna, 1981 ),
1-30; G. Chil y Naranjo, Estúdios históricos de las islãs Canárias, 3 vols. (Las Palmas. 876- 1
-91), ii. 632-4; A. Rumeu de Armas, «La reivindicación por la corona de Castilla dei dere-
cho sobre las Canárias mayores», Hidalguía, 32 (1959), 11; «Cristóbal Colón y Dorta Beatriz
de Bobadilla», El Museo Canário, 20 (1960), parte II, 263-7.
'2
López de Toro, «La conquista de Gran Canária en
J. la Cuarta Década de Alonso de
Falência», Anuário de estúdios atlânticos, 16 (1970), 332.
81
Desde a união das coroas de Aragão e Castela em 1479, foram adicio-
nados às tradicionais aspirações castelhanas de expansão os antigos inte-
resses aragoneses no Mediterrâneo Oriental e nas rotas comerciais para o
Oriente. O pressentimento de uma próxima luta com o Islão, que se acen-
tuara gradualmente ao longo do século, foi particularmente forte em Espanha,
terra de conflito secular com os Mouros e, mais recentemente, de envolvi-
mento contra os Turcos. Uma velha e arreigada tradição na corte aragonesa
unia o milenarismo à ambição de governar em Jerusalém - tomando reali-
dade o título de «rei e rainha de Jerusalém» que Fernando e Isabel tinham
herdado. No fim do século xiv e início do século xv, as obras proféticas de
Amau de Vilanova tinham definido um papel escatológico para os reis ara-
goneses, incluindo a renovação da Igreja, a conquista de Jerusalém e a cria-
ção de um império mundial unido^\ Este programa foi copiado das adivi-
nhações bíblicas do século xii do abade Joaquim de Fiore, uma das fontes
mais influentes das tradições quiliásticas medievais tardias. O joaquimismo
foi amplamente seguido pelos Franciscanos, alguns dos quais viriam a con-
tar-se entre os amigos mais íntimos de Colombo em Espanha, tendo inspi-
rado algumas das suas convicções mais profundamente sentidas. Em escri-
tos posteriores, Colombo citaria Joaquim, embora não por conhecimento
directo da sua obra, demonstrando também alguns conhecimentos sobre
Amau. Na corte de Femando, o Católico, parecem ter-se reavivado estas
tradições milenares quando Colombo ali chegou em meados da década de
1480. O rei foi considerado por alguns admiradores como o natural «impe-
rador do Ultimo Mundo» e que cumpriria algumas das condições prévias
de Joaquim, incluindo a conquista de Jemsalém, para o fim do mundo^'*.
Para a maioria dos defensores desta visão foi apenas, talvez, uma forma
de propaganda, mas esta tem que ser credível para ser eficaz. Durante a sua
estada na corte, Colombo teria estado exposto a suficiente propaganda deste
tipo para se convencer de que, pelo menos, os monarcas encaravam seria-
mente as suas ambições hierosolimitas. Teria ouvido quadros musicais da
profecia segundo a qual Femando e Isabel conquistariam Jemsalém e uma
canção de Juan de Anchieta que atribuía à «Escritura e aos santos» a visão
antecipada dos monarcas coroados pelo papa perante o Santo Sepulcro. Em
1489 poderia ter testemunhado a recepção a um gmpo de guardiães fran-
ciscanos do túmulo de Cristo'^ Segundo as suas memórias, Colombo pro-
pôs, como parte da sua submissão aos monarcas pelo apoio destes à sua via-
1908), 52-4; M. Menéndez y Pelayo, Historia de los heterodoxos espanoles, 7 (1948), 232 ff;
J. Carreras Artau, Relaciones de Amau de Vilanova con los reyes de la casa de Aragón
(Barcelona, 1955), 43-50.
Milhou, Colón y su mentalidad mesiánica, 361-400.
^"^
'^
J. Manzano y Manzano, Cristóbal Colón: Siete anos decisivos de su vida
Ibid. 392-3;
(Madrid, 1964), 198-200.
82
gem atlântica, que os lucros fossem destinados a uma campanha em prol de
uma cruzada a Jerusalém. Ao longo da sua subsequente carreira, a ideia de
Jerusalém nunca o abandonou, tendo sido frequentemente recordado, como
veremos, sobretudo em épocas de profunda tensão mental. Se, como parece
provável pelo testemunho das suas anotações à margem, o seu interesse
pelos cálculos do milénio já surgira na década de 1480 e o nome de Jerusalém
já tinha uma ressonância especial para ele, é fácil avaliar porque terá con-
siderado a corte do «rei e rainha de Jerusalém» um local particularmente
agradável e inspirador para viver.
Em nível mais prosaico, a indústria, o comércio e a navegação da Espanha
beneficiavam de um período de prosperidade que tornou ainda mais urgente
a procura de rotas comerciais e mercados exóticos enquanto se geravam
capitais para investimento. A competição, a todos os níveis, entre Espanha
e Portugal poucas vezes fora tão intensa como nesta época. No tratado que
pôs fim à guerra de 1479, os dois reinos dividiram entre si as futuras zonas
de expansão: as ilhas Canárias, incluindo muitas ainda por descobrir, com
a parte da costa africana imediatamente em frente delas, ficariam a perten-
cer a Castela, enquanto o resto do continente africano seria presa exclusiva
de Portugal. Nenhum acordo, porém, poderia considerar-se definitivo no
ambiente instável que então prevalecia e em 1482, durante as negociações
matrimoniais entre as duas dinastias, as condições estavam novamente em
negociação^^.
Era portanto natural que na década de 1480 Colombo, ao procurar um
Além disso, Fernando e Isabel
patrono, oscilasse entre Portugal e Espanha.
não eram os únicos protectores que Castela tinha para oferecer; se podemos
confiar na tradição que fixa a sua mudança para Castela em 1485, parece
ter passado pelo menos o seu primeiro ano criando relações de nível mais
modesto. A expansão ultramarina não era em Castela, ao contrário de Portugal,
uma actividade «oficial» há muito estabelecida, rigidamente controlada e
nalgumas áreas estritamente monopolizada pela coroa. Qualquer súbdito
castelhano que possuísse meios e motivação podia comandar alguns navios
numa razzia para fazer escravos, capturar uma cidade berbere, negociar ili-
citamente na Guiné portuguesa, conquistar uma ilha das Canárias ou inva-
dir o reino de Granada - ou, se o desejasse, tentar velejar através do Atlântico.
Empreendimentos como os que Colombo propunha acrescentavam o esplen-
dor da glória à esperança do lucro comercial e nenhum destes objectivos
era considerado menos digno para a alta nobreza da Castela da época. Em
particular o conde de Medinaceli investira bastante em aventuras de comér-
cio maritimo e tinha uma com a expansão cas-
ligação familiar tradicional
telhana nas ilhas Canárias, enquanto o duque de Medina Sidónia estava
'6
J. M. Cordeiro Sousa, «La boda de Isabel de Castilla», Revista de archivos. bibliote-
83
k
ligado à navegação, aprovisionamento e comércio de açúcar, mostrando-se
interessado em tomar parte na conquista das Canárias.
Colombo dirigiu os seus primeiros apelos a estas fontes potenciais de
apoio. O que propôs, segundo recordações posteriores de Medinaceli, foi
uma viagem «às índias». Ao dirigir-se a um bourgeois gentilhomme, Colombo
parece ter acentuado a recompensa mais aliciante em detrimento dos bene-
fícios imponderáveis dos Antípodas ou de novas ilhas. Tudo o que preci-
sava era de «três ou quatro caravelas, pois nada mais pedia». O seu plano
foi acolhido favoravelmente e Medinaceli, mais tarde, afirmou tê-lo apoiado
durante algum tempo, mas o nobre parece ter sentido que o projecto era de
tal grandeza que requeria aprovação real. Uma viagem às índias envolveria
Cartas, 144-5; um apelo a Medina Sidónia está registado apenas pela tradição, tam-
'^
84
como o mais velho deve fazer ao mais novo. Ele é o único irmão que
filho
tens e que Nosso Senhor
seja louvado, pois é exactamente como precisas
já que se tomou muito culto.»'
A situação da mãe nunca foi regularizada: o casamento com uma mulher
de origem tão humilde teria comprometido o estatuto de Colombo dura-
mente conquistado. Colombo parece, no entanto, ter-se comportado de forma
responsável e até afectuosa paracom ela. Num dos seus últimos memoran-
dos dirigido ao filho mais velho, recordou-lhe: «Encarrega-te de Beatriz
Enriquez por amor a mim, tão atenciosamente como o farias a tua própria
mãe. Dá-lhe 10 000 maravedis por ano, além do seu rendimento no negó-
cio de carne em Córdova.» Num codicilo tardio ao seu testamento declarou
que a sua solicitude para com ela se devia «a muito grandes obrigações» e
«para descargo da minha consciência, pois isto pesa muito sobre a minha
alma. A razão para tal» - acrescentou, com alusão evidente à irregularidade
da sua relação e algum remorso igualmente evidente - «não pode ser legi-
timamente escrita»'^.
É
possível que Beatriz Enriquez não fosse a sua única ligação amorosa
em Córdova, pois também aí pode ter conhecido uma senhora com quem
manteve não uma relação comprovada mas uma associação que suscitou
rumores. Beatriz de Bobadilla era uma das mulheres mais cruéis e belas de
Castela. Depois de um envolvimento com o próprio rei estivera na conquista
das Canárias, em 1481, como mulher do conquistador Hemán Peraza. Quando
este foi assassinado por nativos revoltados em 1488, tomou-se senhora da
ilha por direito próprio, esmagando a rebelião de forma sangrenta e escra-
vizando muitos dos ilhéus. Reunia as qualidades áafeminafortis e áâfemme
fatale. Era objecto de tantos boatos escandalosos que qualquer história sobre
ela tem que ser recebida cepticamente. Além disso, a origem da história que
a ligava a Colombo era o notoriamente lascivo Michele de Cuneo, de Savona,
que acompanhou a segunda travessia do Atlântico e cujas outras histórias
incluem um relato particularmente vívido da sua própria sedução de uma
jovem nativa, com a ajuda de uma corda. De qualquer forma, Cuneo refere
a relação de forma tão casual que se toma convincente. Relatando a para-
gem da expedição em Gomera, «se vos fosse contar», diz, «quantas festi-
vidades, salvas e saudações executámos naquele local, tomaria demasiado
tempo; foi tudo em honra da senhora do dito local por quem em tempos o
nosso almirante estivera apaixonado»^^.
Entre Maio de 1486 e Setembro de 1487, Colombo foi sustentado em
Castela pelos monarcas, provavelmente passando a maior parte do tempo
na corte. Foi durante este período - talvez em fins de 1486 e princípios de
18
Textos, 339, 344.
19
Ibid. 309, 362.
20
Cartas, 239-40; Rumeu de Armas, «Colón y Dofla Beatriz», 259-72.
85
1487, pela disponibilidade dos peritos chamados a ouvir o seu caso - que
o seu projecto atlântico foi submetido ao exame de um grupo de «sábios,
funcionários cultos e marinheiros» encarregado pelos monarcas de o ava-
liar^^ Este episódio tem gerado enorme especulação e grande parte da lenda,
incluindo a mentira infame de que os «peritos» pensavam que o mundo era
plano^^. Os factos verificáveis são, porém, poucos. Apenas dois membros
do grupo são conhecidos pelo nome: o seu presidente, Fray Hemando de
Talavera (o confessor hieronimita dos monarcas que mais tarde foi arce-
bispo de Granada) e Rodrigo Maldonado de Talavera, antigo professor de
leis na Universidade de Salamanca, que integrou o Conselho real como
administrador em 1480. A recordação posterior de Maldonado resume o
resultado: «Todos concordaram em
que o que o almirante dizia não podia
ser verdade e contra a sua opinião o almirante decidiu partir na dita via-
gem. »^^ Uma tradição primitiva transmitida por Las Casas indica, como
vimos, que o problema em questão não era - ou não era apenas - o de uma
rota curta para a Ásia mas o da existência dos Antípodas. Alguns mari-
nheiros que testemunharam mais tarde, em relação a outro assunto, num jul-
gamento que opôs a família de Colombo à coroa recordaram o que pode ter
constituído outro dos escrúpulos do grupo: que as pesquisas portuguesas
tinham revelado não existir nenhuma terra nova no Oceano OcidentaP"^.
Nenhum outro testemunho está suficientemente próximo do acontecimento
para ser considerado,
O resultado deste encontro com os peritos dificilmente terá sido enco-
rajador para Colombo porque terá regressado a Portugal
e ajuda a explicar
para retomar os seus esforços em 1488^^ Não
foi, porém, de forma alguma,
86
no fim da década de 1480 verá um Colombo rodeado de amigos e apoian-
tes.É verdade que a sua cosmografia idiossincrática foi aceite apenas por
alguns peritos,mas estes raramente governam e era do apoio politico e finan-
ceiro e não da concordância científica que dependia o êxito da sua procura
de patrocínio. Gradualmente entre 1486 e 1492, e com força crescente -
segundo parece - desde 1489, Colombo organizou em seu apoio uma frente
de pressão irresistível. Conseguiu o apoio de grupos influentes que faziam
ouvir a sua voz em círculos elevados e de pessoas poderosas cuja autori-
dade política era mais do que suficiente para contrapor ao cepticismo dos
sábios e, com maior dificuldade, conseguiu seguidores entre os potenciais
«anjos» financeiros, cuja vontade de investir no empreendimento constituiu
o elemento decisivo.
Muitos elementos desse contexto contribuíram para o sucesso final: a
petição de Colombo na corte foi apresentada com insistência, como sabe-
mos, e podemos supor que o fez com a sua habitual loquacidade - capaz
de vencer os que não conseguia persuadir. Conseguiu importante ajuda atra-
vés da influência e simpatia de muitos concidadãos genoveses, apoiados por
um grupo de florentinos. O aumento da confiança numa chefia política com
um propósito definido nas pessoas dos monarcas católicos e no ambiente
que os rodeava estimulou a criação e o investimento em projectos expan-
sionistas. A rivalidade entre Castela e Portugal aguçou o interesse daquela
pelas conquistas ultramarinas e pelo acesso ao comércio de produtos exó-
ticos; e, nalguns aspectos, a guerra contra Granada em que Fernando e Isabel
se empenharam em 1482 favoreceu os desígnios de Colombo porque, embora
desviasse a atenção dos monarcas e absorvesse algumas das suas energias,
criou a necessidade urgente de novas fontes de ouro para substituir as per-
didas pelo fim do tributo granadino. O estímulo comum a todos estes ele-
mentos foi a conquista das ilhas Canárias, que congregou um grupo de admi-
nistradores e financeiros, os quais dariam origem ao núcleo do grupo de
pressão de Colombo.
No centro nevrálgico do esforço de guerra dos monarcas nas Canárias,
totalizando contingentes com dificuldade, reunindo grupos de investidores
e arquitectando expedientes financeiros, estava Alonso de Quintanilla, fun-
cionário do tesouro e um dos arquitectos mais influentes da política do rei-
nado de Fernando e Isabel. Parece ter-lhe sido confiada a responsabilidade
da organização da conquista a partir de 1480, quando o decréscimo dos ren-
dimentos da venda de indulgências causou uma crise financeira. Planeou
um vasto conjunto de medidas, incluindo a hipoteca do saque real e o recurso
aos capitalistas italianos, sobretudo genoveses. Ao fazê-lo, delineou o cir-
87
Sevilha Francesco Pinelli e Francesco da Rivarolo. Pinelli estivera envol-
vido nas finanças das Canárias há tanto tempo como Quintanilla, pois admi-
nistrara os rendimentos da venda de indulgências para a conquista, a partir
de Março de 1480. A primeira subvenção pessoal de Quintanilla para a causa
foi feita em Abril do mesmo ano. Pinelli adquiriu o primeiro moinho de
açúcar na Grande Canária e emprestou dinheiro aos conquistadores de outras
ilhas do arquipélago. Por seu lado, como apoiante de Colombo, foi nomeado
pelos monarcas um dos primeiros administradores do comércio do Novo
Mundo quando foi organizado como monopólio real em 1497. Francesco da
Rivarolo terá obtido lucros ainda maiores com todo este processo. Não há
provas de que tenha contribuído pessoalmente para a conquista da Grande
Canária, mas seu genro foi um dos maiores investidores e a família Rivarolo
constituía uma sociedade comercial hermética criteriosamente dirigida pelo
patriarca Francesco. Tomou parte no financiamento da conquista de Palma
e Tenerife, por direito próprio, tomando-se o mercador mais rico do arqui-
pélago, com interesses centrados, essencial mas não exclusivamente, no açú-
car e nas tintas. Foi o suporte de Colombo, cuja quarta viagem ajudou a
financiar e cujos interesses no comércio marítimo ajudou a dirigir nos últi-
mos anos da vida do descobridor. Alguns investidores não genoveses de
Sevilha, próxima do centro do mundo de Colombo, também ajudaram a
pagar a conquista das Canárias: o duque de Medina Sidónia, que Colombo
(segundo a tradição do século xvi) encarava como um possível patrono, e
o florentino Gianotto Berardi, que provavelmente adiantou parte do inves-
timento pessoal de Colombo na primeira viagem transatlântica. Parece ter
havido uma sobreposição suficiente para que a conquista das Canárias e a
descoberta da América sejam vistas, até certo ponto, como obra do mesmo
grupo de homens^^.
O segundo ponto de apoio de Colombo na corte encontrava-se entre os
partidários do herdeiro do trono, o príncipe Don Juan. Era o ídolo da sua
própria e extraordinária pequena corte dentro da casa real. Os que o rodea-
vam não constituíam formalmente uma corte independente até 1486, mas
os seus servidores, orientadores e companheiros formavam um grupo dis-
tinto desde a sua infância até ao fim da década de 1470. A cabeça e os mem-
bros reunidos formavam um corpo estranho: um jovem fraco e pouco inte-
ligente servido por alguns dos homens e mulheres mais distintos e poderosos
de Castela, no meio de um ritual requintado. O ambiente do círculo do prín-
el reinado de los Reyes Católicos», Anuário de estúdios atlânticos, 28 (1982), 343-78; Pike,
Enterprise and Adventure, 99; pode presumir-se que Berardi deu algum contributo pelo facto
de ser membro do consórcio de Quintanilla, mas o seu papel específico pode ter sido exage-
rado por alguns historiadores que tiram conclusões precipitadas de uma dívida de Colombo
registada no testamento de Berardi. Ver Manzano, Cristóbal Colón, 321-8; C. Varela, Cristóbal
Colón y los florentinos (1988), 49-51.
88
cipe foi retratado numa descrição deixada por um dos seus servidores,
Gonzalo Femández de Oviedo, fiituro historiador das índias-^ Os membros
do séquito do príncipe eram notáveis e o seu serviço constituía uma escada
de acesso a posições de poder e influência na corte e no reino. Hntre o pes-
soal administrativo encontravam-se alguns dos homens de letras mais pro-
metedores, como Gonzalo de
Baeza, tesoureiro da corte do príncipe, que
mais tarde ascendeu à posição correspondente na corte da rainha, Juan
Velásquez de Cuellar, encarregado da escrituração e que passou a fazer o
mesmo trabalho na casa real, e Juan de Cabrero, camareiro do príncipe, que
foi promovido a servir o rei nas mesmas funções - para grande benefício
futuro de Colombo. Estes funcionários não eram meros figurantes mas
homens poderosos por direito próprio, elos fundamentais da cadeia de patro-
cínio pela qual os monarcas procuravam aumentar o seu poder As oportu-
nidades de exploração do patrocínio na Casa do Príncipe eram limitadas
pois o seu pessoal era pago directamente por um secretário real. Mesmo
assim, como referiu Oviedo, «os tesoureiros podem trazer lucro a muitos
no exercício do seu cargo», através do qual tinham acesso directo ao rei e
à rainha, crescente à medida que as suas carreiras progrediam.
Ao lado dos funcionários estavam os «companheiros» do príncipe: os
da sua geração como companheiros e pessoas para o divertirem, grupo a
que se juntou o filho de Colombo, Diego, em 1492^^ e um grupo de homens
mais velhos para sua vigilância e educação. O grupo dos mais novos incluía
António de Torres, futuro governador da Grande Canária e companheiro de
Colombo, e o dos mais velhos incluía Nicolás de Ovando, futuro governa-
dor de Hispaníola. Era exercido um papel tutelar permanente pelo precep-
tor do príncipe, Fray Diego Deza, da Ordem Dominicana, o qual deixou o
seu pupilo, segundo as palavras de Oviedo, «muito culto em tudo o que é
próprio para sua pessoa real e era, especialmente, muito católico e muito
cristão». A mente do príncipe, porém, era débil ^e muito limitada, sendo esta
a única parte dos estudos para que mostrou alguma aptidão. A obra de Deza
foi auxiliada por todo o ambiente da corte de Don Juan:
No tempo do príncipe, meu senhor, à sua mesa e no seu gabinete, na sua cozinha
ou na sua taça ou despensa ou em qualquer ofício que fosse exercido em qualquer parte
do palácio desde a própria entrada, não havia lugar para qualquer homem que não fosse
de pura linhagem, um nobre de sangue puro ou pelo menos de uma família que sempre
tivesse sido cristã, excepto no caso de dois ou três que prefiro não mencionar e a quem
a rainha nomeou antes do príncipe ter uma casa e conta próprias; e mesmo estes se sabia
bem que eram estranhos para o principe, sem a sua graça e favor^^.
27
G. Femández de Oviedo, Libro de câmara dei principe Don Juan (Madrid, 1 870).
28
Navarrete, i. 309.
29
Femández de Oviedo, Libro de câmara, 38.
89
Oviedo afirmou também, com menos ênfase, que Juan era «um bom
latinista»,mas na verdade era incapaz de falar latim ou de qualquer activi-
dade intelectualmente exigente. Estava mais à vontade fazendo pequenas
apostas em jogos de azar ou ouvindo as anedotas do seu cabeleireiro do que
no estudo sério. De qualquer forma, o mobiliário da sua sala de banho incluía
um jogo de xadrez e deve presumir-se que não era avesso a um pequeno
exercício mental enquanto se aliviava fisiologicamente. Era infantil muito
depois de ter passado a infância: isto reflectia a sua necessidade de segu-
rança numa atmosfera impregnada de responsabilidade e expectativas de
grandeza que em muito excediam as suas modestas capacidades. Nunca dor-
mia sem uma lâmpada acesa. Era insaciavelmente guloso. A sua despensa
estava sempre abastecida de doces, especialmente fruta em conserva, mar-
melada dura de Valência, misturas leves de gema de ovo e açúcar e bolas
de anis. Este pode, em parte, ter sido um gosto herdado, pois sabe-se que
seus pais se encheram de doces, pelo menos numa visita real a Valência.
Todos os filhos dos monarcas parecem ter sido criados com xarope de sabor
a rosas e as quantidades consumidas evidenciavam-se nas contas da Casa
de Isabel: o príncipe era capaz de consumir anualmente xarope cujo custo
era suficiente para manter um soldado em armas durante um ano. A gula
anormal de Juan pelos doces está de acordo com os seus outros traços infan-
tis. Os seus problemas eram agravados - tentemos adivinhar - pelas res-
90
de Benavente. Por fim trataria de quaisquer petições ou memorandos do dia
enquanto se despia.
Não está esclarecido o que terá disposto os membros da corte do prín-
cipe a favorecerem particularmente Colombo; ao contrário dos financiado-
res da conquista das Canárias, não tinham um interesse óbvio no projecto
atlântico e é tentador admitir que alguns laços pessoais desconhecidos pos-
sam ter sido os responsáveis. É certo, porém, que entre os acompanhantes
do príncipe estiveram alguns dos amigos mais fiéis de Colombo. O mais
notável de entre eles foi Fray Diego Deza, o preceptor do príncipe, que parece,
de acordo com as cartas posteriores de Colombo ter tido extraordináría inti-
midade com o descobridor durante longo período. Nos seus últimos anos,
Colombo recordou com nostalgia o tempo passado na casa de Deza, refe-
rindo-se ao «amor fraternal» que os unira e confirmou a seu filho a exis-
tência de forte confiança mútua. Uma carta de Colombo para Deza, que che-
gou aos nossos mostra como essa confiança era total, pois Colombo
dias,
permite-se uma crítica directa ao rei, a quem expressamente acusa de má-fé,
queixando-se de que apelar contra ele seria «semear ao vento». Parece o tipo
de acusação perigosa que se confiaria apenas em segredo, talvez pela rela-
A intimidade de Deza foi de grande
ção privilegiada de penitente e confessor.
auxílio paraColombo, à medida que o dominicano ascendia hierarquicamente
no serviço da Igreja e do Estado: preceptor do príncipe em 1486, bispo de
Zamora em 1494 e posteriormente de Palência, Salamanca e Jaén, inquisi-
dor-geral em 1499, arcebispo de Sevilha em 1505. Colombo atribuiu a Deza
o mérito de ter assegurado que as suas descobertas fossem feitas ao serviço
de Castela. «Ele foi a causa de Suas Altezas deixarem as índias e de eu per-
manecer em Castela quando estava prestes a abandonar o país.»""
Outros membros da Casa do Príncipe foram utilizados por Colombo
como canais privilegiados de acesso ao rei e à rainha: a ama do príncipe,
Juana de Torres y Ávila, era uma confidente com quem Colombo - pela
única carta conhecida que lhe dirigiu, escrita em
1500 - desabafava quase
tão livremente como com Deza. Nessa carta trata-a como cúmplice nas suas
relações com a rainha. Seu irmão António de Torres, embora em posição
de menor influência, era o mensageiro de Colombo aos monarcas em 1494,
tendo sido enviado de Hispaníola, depois de acompanhar a segunda traves-
siado Atlântico, para apresentar a defesa de Colombo contra os seus detrac-
tores.Juan de Cabrero, que foi transferido da Casa do Príncipe para o cargo
de camareiro do rei, desempenhou, segundo as tradições do princípio do
século XVI, papel vital na obtenção da sanção real para os planos de
um
Colombo. A sua verdadeira actuação não está bem esclarecida, mas tinha
excelentes oportunidades de exercer influência nos seus contactos diários a
sós com o rei, quando este se vestia, e durante as suas conversas depois do
91
almoço, quando - segundo outro antigo membro da Casa do Príncipe que
acompanhou Colombo às índias - «o rei ordenava que lhe trouxessem um
pequeno assento, em que ele se sentava e discutia assuntos com o rei, cor-
dialmente, como se o fizesse com um homem que estimasse». O chefe da
corte do príncipe, Gutierre de Cárdenas, genro do almirante de Castela e
detentor de alguns dos cargos mais elevados da corte e do Estado, é consi-
derado pela tradição primitiva como amigo e apoiante de Colombo; embora
esta reputação não possa ser comprovada pelos documentos existentes, parece
credível tendo em vista o papel da corte do príncipe como a colmeia da fac-
ção de Colombo. Além disso, os interesses comerciais de Cárdenas nas tin-
tas das Canárias parecem tê-lo conduzido a um contacto íntimo com alguns
dos financeiros do círculo de Quintanilla^^.
Umterceiro grupo cujo apoio Colombo obteve estava ligado ao porto
marítimo de Paios, onde a construção naval, a mão-de-obra e o suporte logís-
tico do seu empreendimento iriam concentrar-se. A figura fundamental para
o crescimento deste grupo terá sido o fi*anciscano Fray António de Marchena,
o único astrónoipo da corte que aceitou as especulações geográficas de
Colombo. Colombo prestou posteriormente homenagem à singularidade da
ajuda de Marchena, em carta dirigida aos monarcas: «Vossas Altezas já sabem
como vagueei sete anos na vossa corte, falando-lhes deste desígnio... e nunca
em todo esse tempo houve um piloto ou marinheiro ou filósofo ou outro
perito que não dissesse que a minha proposta era falsa e não tive ajuda de
ninguém excepto de Fray António de Marchena.» Os monarcas sugeriram
até que o frade acompanhasse Colombo através do Atlântico, «pois é um
bom astrónomo e sempre nos pareceu que concordava com a vossa opinião»^^.
Marchena era provincial da Ordem Franciscana da Andaluzia e, em dado
momento, guardião da irmandade de La Rábida, perto de Paios, sobranceira
ao ponto onde o Guadalquivir corre de Sevilha para o Atlântico. Era uma
comunidade rigida e fechada, mas Marchena não era o seu único laço com
o mundo da corte. Outro dos seus guardiães, Fray Juan Pérez, foi um dos
confessores da rainha. Colombo esteve aí no Verão de 1491: a lenda que o
situa na irmandade por acaso pela primeira vez seis anos antes, pedindo ajuda
na sua pobreza para o filho desfalecido, mistura provavelmente o relato con-
fiíso de testemunhas esquecidas com o gosto do romance^"*. Esta visita de
32
Manzano, Cristóbal Colón, 267-8; Femández-Armesto, The Canary Islands after the
Conquest, 22, 72; M. Serrano y Sanz, Orígenes de la dominación espanola en América (Madrid,
1918), pp. ccxviii-ccxxxi.
33
Textos, 243; Navarrete, i. 364.
3^*
A. Rumeu de Armas, La Rábida y el descubrimiento de América (Madrid, 1968), 33-
-41. A visita é possível, mas não há qualquer razão para acreditar nela.
92
para a viagem de Colombo, Martin Alonso Pinzón, e talvez com o mari-
nheiro geralmente chamado Pedro Vasques, fonte de histórias sobre terras
fugidias em pleno Atlântico e que, como piloto dos descobridores de Flores
e Corvo, se podia presumir que conhecia histórias mais úteis que o antigo
marinheiro comum^^ Fray Juan comunicou então com a corte, indo talvez
pessoalmente fazer novas exposições a favor do projecto. Os efeitos da sua
intervenção foram significativos; a rainha enviou dinheiro para que Colombo
se vestisse convenientemente para uma nova audiência e deu-lhe autoriza-
ção para alugar uma mula que o transportasse à sua presença. Este era um
privilégio considerável, concedido apenas porque a difícil situação de Colombo
lhe tinha prejudicado a saúde, dado que os monarcas estavam empenhados
num esforço de guerra e impunham austeridade, restringindo o uso de mulas.
Existiram outras figuras cujo apoio a Colombo se pode avaliar apenas
vagamente. Ao primaz de Castela, arcebispo Pedro González de Mendoza,
é atribuído apoio a Colombo em todos os relatos primitivos secundários,
mas não são claras as razões O confessor real, Fray
nem a justificação.
Hemando de Talavera, que na verdade presidiu à comissão de peritos que
rejeitou os planos de Colombo, era considerado por Pedro Mártir de Anghiera
- o humanista italiano ao serviço de Fernando e Isabel - como fundamen-
tal para o sucesso do explorador e por Las Casas como «útil». A única ajuda
de que se tem conhecimento consistia em guardar parte do dinheiro conse-
guido para a primeira viagem, entregando-o a Colombo^^. Talvez como auto-
elogio Colombo gostasse de incluir a própria rainha entre os seus antigos
amigos na corte. «Todos os outros descriam, mas à rainha, minha senhora,
Deus deu o espírito da compreensão... e grande força e tomou-a herdeira
de tudo, como filha muito querida e bem-amada.» Se somássemos todos os
indivíduos isolados que Colombo terá identificado como progenitores do
seu sucesso, obteríamos um grupo bastante grande: Diego Deza, os «dois
frades» sem nome (um dos quais se identifica com Fray Juan Pérez, segundo
a maioria dos comentadores), Fray António de Marchena (citado pelo nome),
Juan de Cabrero, o tesoureiro da coroa de Aragão (que voltaremos a refe-
rir) e a própria rainha. Nem todos estes terão sido completamente eficazes
35
Pleitos, iii. 353; iv. 244-6; viii. 258, 300-1, 339-42; Rumeu de Armas, La Rábida, 67-
-84; Historie, i. 76-7; Las Casas, i. 68-9.
36
Epistolaho, i. 242; Las Casas, i. 168. O seu papel foi alegado no processo da família
de Colombo contra a coroa em 1515: Pleitos, ii. 55.
37
Ver p. 211.
93
mk
As afirmações aduladoras de Colombo sobre o favor da rainha têm
influenciado profundamente a tradição histórica, mas devem ser tratadas
como impossíveis de verificar. Era mestre na linguagem galante que a rai-
nha gostava de ouvir. «Dei-vos a chave dos meus desejos em Barcelona. Se
provardes a minha boa vontade, descobrireis que o seu perfume e sabor ape-
nas aumentaram desde então... Dediquei-me a Vossas Altezas em Barcelona
sem restrições e assim como era com o meu espírito assim era com a minha
honra e bens.» O tom parece condizer com o ambiente galante de uma corte
onde - como na de Isabel I de Inglaterra - a própria reputação de castidade
da rainha permitia a galanteria verbal. Colombo apelava à rainha em prosa,
em termos muito semelhantes aos escolhidos, por exemplo, por Juan Alva-
rez Gato em verso:
Ou ainda:
^^ Textos, 264, 303; R. O. Jones. «Isabel la Católica y el amor cortês». Revista de lite-
ratura, 21 (1962); F. Marquez Villanueva. «Investigaciones sobre Juan Alvarez Gato». Anales
de la Universidad Hispalense, 17 (1956).
-' Serrano y Sanz, Orígenes, pp. xcvii-clxxii.
94
o empreendimento era arriscado, os pseudo-eruditos troçavam e em tempo de
guerra o dinheiro escasseava. O dinheiro teria que ser reunido e quaisquer
somas visivelmente elevadas cuidadosamente protegidas.
Colombo sempre se queixou de que os monarcas «não dariam mais que
um Mas esta afirmação é altamente enganadora. A contribuição
milhão».
totaldo «erário público» atingiu 140 000 maravedis, incluindo 140 000
1
1980), 27; M. Andrés Martin, El dinero de los Reyes Católicos para el descubrimiento de
America, financiado por la diócesis de Badajoz (Madrid, 1987); Duquesa de Berwick y Alba
cf. Las Casas,
(ed.), Nuevos autógrafos de Colón y relaciones de ultramar (Madrid, 1902), 7;
i. 171, para a origem do mito das jóias.
95
meira prioridade. A descoberta dos Antípodas, mesmo para aqueles que
acreditavam na existência de tal destino, não podia ser apresentada como
oferecendo qualquer perspectiva específica de lucro. Uma terra desconhe-
cida representava, por definição, um risco desconhecido. Apenas o Oriente,
com a sua atracção do ouro e das especiarias, era suficientemente sugestivo
para chamar a atenção dos investidores. Fernando e Isabel, sofrendo os cus-
tos da guerra de Granada e invejando os lucros conseguidos pelos Portugueses
na Guiné, apoiariam mais provavelmente uma aventura que prometesse -
ainda que com pouca certeza - abundantes rendimentos e um percurso rou-
bado aos seus rivais do que se interessariam por proezas claramente não
lucrativas. Num documento redigido para si próprio em 1492 - a petição
em que se baseavam as condições do seu comando dado pelos monarcas -,
Colombo não especificou claramente o seu destino. Nos seus contactos com
os monarcas, não perdeu nenhuma oportunidade de acentuar o seu empe-
nho na procura da Ásia. A explicação mais simples para a redução dos seus
planos é que foi feita para agradar aos patronos.
O crescimento do «grupo de pressão» de Colombo tem sido investigado
e os seus membros analisados, mas mantém-se o problema da sua criação.
Foi evidentemente um processo lento e Colombo era levado, por vezes, a
desesperar. Em 1488 regressou por algum tempo a Portugal a fim de ofe-
recer o seu projecto; cerca de 1489 enviou seu irmão Bartolomé a Inglaterra
e a França com o mesmo objectivo, igualmente com pouco sucesso. Pelo
menos uma vez, a acreditar nas suas memórias posteriores, resolveu-se a
abandonar Castela, tendo, porém, sido dissuadido por Diego Deza.
A insistência, ainda que lenta, é eficaz. Os apoiantes de Colombo for-
maram uma rede alargada que se desenvolveu por meio de contactos pes-
soais, apresentações directas e operações de amizade e de interesse comum.
Os núcleos do seu apoio - os mercadores genoveses e florentinos de Sevilha,
os frades de La Rábida e a corte, os financiadores da conquista das ilhas
Canárias, a Casa do Principe Don Juan, o tesouro da coroa de Aragão -
sobrepuseram-se e formaram uma teia cada vez mais forte. O apoio moral
transformou-se gradualmente em influência política e acabou por produzir
apoio financeiro.
É impossível, porém, imaginar Colombo apenas como um peão mani-
Os seus extraordinários
pulado por investidores ricos e políticos poderosos.
dons pessoais - era imaginativo, persuasivo, mesmo talvez carismático -
devem ser tidos em conta ao abordar o problema do lançamento do seu
empreendimento. Qualquer pessoa que leia os escritos de Colombo parti-
lhará a impressão que causou nos seus contemporâneos: surge como um
homem abençoado com os dons da retórica natural e da eloquência incan-
sável - ou, pelo menos, da loquacidade infatigável. Os seus erros, falácias
e artigos de fé eram todos expostos com convicção inabalável. Era possui-
dor de um poder de auto-afirmação que nenhuma troça poderia desafiar e
96
nenhum fracasso esmagar. A sua aparência - alto, corado c de olhos cla-
ros- tomava-o notado; passou a ser uma figura familiar na corte dos monar-
cas católicos e em Sevilha e Córdova, onde viveu quando não seguia atrás
do acampamento real com optimismo irreprimível. Colombo era o tipo de
homem com quem a familiaridade faz nascer o respeito respeito pelas suas
convicções, respeito pela sua experiência, respeito, quanto mais não fosse,
pela sua persistência.Os anos da sua procura de patrocínio em Castela não
foram, como mais tarde afirmou, uma luta isolada contra grandes obstá-
culos, mas sim uma reunião gradual de apoios num contexto crescentemente
favorável. De qualquer forma, constituíam uma história de triunfo pessoal,
alcançado em parte por esforço e mérito individuais.
No romance de Colombo, uma história irresistível e incrível termina
este período da sua vida. No
seu regresso à corte, uma nova comissão de
convocada para ouvir de novo os seus pedidos, em circunstân-
peritos foi
cias muito dramáticas, no acampamento real durante o último cerco de
Granada. Perante este cenário espectacular, representa-se o encontro teatral.
Outra peripécia abala as esperanças de Colombo: os peritos opuseram-se-
-Ihe mais uma vez. No segundo dia do ano de 1492, Fernando e Isabel
entram em Granada como conquistadores. De todos os privilegiados que
puderam assistir, apenas Colombo não partilhava da alegria geral. Volta as
costas ao triunfo e regressa desconsolado a La Rábida, consciente de que a
sua petição fracassara definitivamente. Verifica-se então o toque mais român-
tico de todos: após um dia de viagem é alcançado por um mensageiro real
que exige o seu imediato regresso ao acampamento dos monarcas. Dera-se,
subitamente, uma mudança de opinião na corte, contra todas as expectati-
vas, como nos grandes milagres. Colombo realiza a primeira etapa da sua
viagem atlântica numa mula a caminho de Granada.
97
«A CONQUISTA DO QUE PARECE IMPOSSÍVEL»
Cerca de dezassete anos mais tarde, muito depois de Colombo ter efec-
tuado a sua última viagem sobre o mar da morte, um jovem espanhol, nobre
tanto pela natureza como pelo sangue, que se instalara com sucesso no
Novo Mundo descoberto por Colombo, sentou-se a escutar a pregação infla-
mada de um dominicano na cidade de Santo Domingo, fundada por Colombo
para ser a verdadeira capital do Novo Mundo espanhol da época. Bartolomé
de Las Casas - segundo recorda o acontecimento - experimentou, enquanto
o ouvia, uma súbita revelação. Sentiu que partilhava da fúria dos frades
contra a vida corrupta dos colonos e a sua exploração impiedosa dos pobres
nativos. Convenceu-se de que Deus ordenara a descoberta apenas para que
os índios pudessem ouvir pregar a Sua palavra. Las Casas devotou o resto
da sua vida enérgica e ineficaz a essa convicção, tomando-se, na corte, um
defensor dos direitos dos índios e intermitentemente um pastor bastante
mal sucedido no território do Novo Mundo, lutando para libertar e santi-
ficar as vidas dos índios já sob domínio espanhol e promover a evangeli-
zação de outros.
Entre os muitos livros que escreveu no prosseguimento dos seus objec-
tivos encontrava-se um compêndio de História das índias, compilado sem
dúvida à parti pris, mas com laboriosa fidelidade às fontes. Entre essas fon-
tes, as mais assiduamente consultadas foram os próprios escritos de Colombo.
Colombo tinha para Las Casas um lugar especial na história sagrada como
instrumento pelo qual a difusão do Evangelho se tomou possível no Novo
Mundo. A própria convicção de Colombo de ser o executor de uma missão
divina atraiu Las Casas e conquistou a sua simpatia. Portanto, o neófito
99
dominicano leu, assinalou, anotou e, em muitos casos, copiou ou extraiu
tantos escritos do descobridor quantos pôde encontrar. Exceptuando alguns
fragmentos preservados noutras fontes, os abundantes relatos de Colombo
sobre as suas viagens, escritos a bordo para informação dos seus patroci-
nadores reais, sobrevivem agora, graças apenas aos resumos, transcrições e
paráfrases feitos por Bartolomé de Las Casas.À sua devoção devemos a
maior parte do que sabemos sobre as navegações de Colombo.
Somos particularmente afortunados em relação à primeira travessia por-
que Las Casas conservou, para a sua própria História, a base de um relato
intitulado Libro de la Primera Navegación ou Livro da Primeira Navegação,
que era uma cópia da obra escrita a bordo por Colombo ou uma versão tra-
balhada da mesma, preparada talvez com vista à sua publicação. Nunca foi
publicada e os manuscritos desapareceram ou foram destruídos, mas o resumo
de Las Casas, a que ele chamou El Primer Viaje ou A Primeira Viagem,
transmite mais do relato de Colombo do que o que sobreviveu sobre qual-
quer das viagens subsequentes. Podem ser detectadas quatro vozes distin-
tas neste resumo. Assinalam-se comentários parentéticos ou marginais inse-
ridos por Las Casas, por vezes difíceis de separar do resto do texto, mas
que geralmente são marcados pelo seu tom sentencioso: o relator espanta-
-se, por exemplo, com a insensibilidade do seu herói perante os malefícios
da escravatura ou elogia a sua fé inabalável em Deus. Existem passagens
de paráfrase em que Las Casas narra os acontecimentos sem revelar a rela-
ção do seu próprio texto com o original: as rotas tendem a ser apresentadas
de forma resumida, aumentando as dificuldades de reconstituição das rotas
de Colombo. Outras passagens estão em discurso indirecto, reflectindo fre-
quentemente ecos da própria linguagem de Colombo. Finalmente, existem
citações directas bastante prolíficas, a maioria das quais sobre os índios;
estas são claramente seleccionadas para reflectirem as prioridades do rela-
tor mais do que as do autor e confirmam - no seu conjunto - a imagem que
Las Casas tem dos índios como habitantes incorruptos e pacíficos de um
mundo de inocência rústica, naturalmente bons e inconscientemente depen-
dentes, na sua nudez indefesa, da misericórdia amorosa de Deus. Apesar
destes problemas textuais e das inevitáveis adulterações introduzidas num
texto declaradamente baseado numa cópia, El Primer Viaje permanece um
documento maravilhosamente vívido e excitante, apoiado e por vezes com-
pletado por passagens incluídas na História das índias ou noutras obras
anteriores baseadas em material igual ou semelhante ao utilizado por Las
Casas. Por si só, Colombo como um homem de
é suficiente para definir
carácter extraordinário e dotado de dons excepcionais.Os seus relatos diri-
gidos a Fernando e Isabel são únicos nos anais do mar; nenhum outro capi-
tão elaborou um diário de bordo tão pormenorizado; nenhum outro coman-
dante da época escreveu relatos tão completos; nenhum navegador desse
tempo - excepto, talvez, o futuro rival de Colombo, Amerigo Vespucci -
100
exibiu tal talento para a observação,
tal sensibilidade aos elementos, tal apre-
e para esse fim Vossas Altezas concederam-me grandes favores e fizeram-me nobre,
para que a partir deste momento me possa intitular Don e seja grande almirante do mar
Oceano e vice-rei e governador, a título perpétuo, de todas as ilhas e continente que
possa descobrir e conquistar ou que possam depois ser descobertos e conquistados no
mar Oceano e que meu filho mais velho me suceda e os seus herdeiros a partir daí de
geração em geração para sempre.
Textos, 15.
101
extraordinário para ser partilhado entre o filho de um tecelão e o chefe de
uma das famílias mais nobres do reino; no entanto, em termos estritos e
embora pareça extraordinário, Colombo teria justificação para tomar explí-
cita a pretensão de que aquela seria uma dignidade hereditária. A utiliza-
ção no comando do título de vice-rei, sem precedentes no uso castelhano,
tende a confirmar a impressão de que a chancelaria real aceitou um ras-
cunho que lhe foi submetido por Colombo sem redacção pormenorizada e
talvezsem muita reflexão ou exame. Isto, por si só, ajuda a explicar a inse-
gurança evidenciada por Colombo ao escrever o seu próprio registo resu-
mido no prólogo de A Primeira Viagem.
Além disso, poderia estar a reagir à primeira tentativa
da chancelaria de
lhe arrebatar o que lhe fora concedidoquando o seu contrato foi reformu-
lado como carta de privilégio - concessão real e portanto revogável - de
30 de Abril de 1492. Só em Maio de 1493, depois do regresso da viagem
em que descobriu novas terras, uma carta veio tomar explícita a extensão
das suas funções desde as ilhas ao mar aberto dentro dos limites do seu
almirantado e, finalmente, só em 1497 a concessão de um mayorazgo ou
direito detomar todos os seus bens transmissíveis para um beneficiário
designado teve o efeito de confirmar a natureza hereditária dos seus cargos
e de os proteger contra a divisão ou a revogação^.
De qualquer forma, os direitos económicos e jurisdicionais que não se
preocupou em registar no prólogo eram potencialmente imensos. As con-
cessões eram de dois tipos: proventos pecuniários por um lado e por outro
privilégios políticos de carácter nitidamente feudal. No aspecto económico,
Colombo deveria receber um décimo dos lucros do seu almirantado, além
do que lhe era devido pelo cargo de almirante - embora, na prática, nunca
recebesse a totalidade. No respeitante aos seus poderes formais de eminên-
cia feudal, a fonte do poder de Colombo residia na conjunção dos cargos
de almirante, vice-rei e governador, bem como no facto de serem indisso-
ciáveis e hereditários. O efeito, como se poderia sugerir, era o de transfor-
mar o mar Oceano e todas as suas terras num senhorio feudal potencial,
quase num principado. Colombo iria ter, em primeiro lugar, na sua própria
esfera de acção todos os direitos de jurisdição dos almirantes de Castela,
consistindo na aplicação de todos os escalões da justiça, incluindo a pena
de morte - embora viesse a ser punido pelo alegado exercício arbitrário
deste último direito. Possuía também o direito de perdão e tinha a facul-
dade de julgar casos que surgissem em Castela ligados ao comércio oceâ-
nico. A nomeação de oficiais subaltemos e oficiais de justiça não estava a
cargo de Colombo na totalidade, podendo apenas apresentar uma pequena
lista aos monarcas. Parece duvidoso, no entanto, que esta exclusão se apli-
casse na prática e que as nomeações directas fossem feitas por Colombo e
102
pela coroa. A organização de armadas era partilhada por Colombo c pelos
nomeados reais, mas, como os acontecimentos iriam provar, era inevitável
a existência de um
grande grau de liberdade de navegação nos primeiros
anos das descobertas. Como vice-rei e governador, Colombo poderia deter
direitos semelhantes de jurisdição e patrocínio, podendo, em teoria, inspi-
rar a obediência devida aos monarcas. Sendo a sua dignidade como vice-
-rei hereditária e indissociável das suas outras funções, era superior à dos
vice-reis aragoneses, em cujo cargo o seu foi provavelmente inspirado.
Parece que Colombo pensou mais nas implicações
destas concessões do
que os monarcas. Mais tarde, à medida que a enorme extensão das suas des-
cobertas se revelou, Fernando e Isabel foram obrigados a ignorar ou suplan-
tar muitos dos seus cargos e poderes. Teoricamente, os únicos meios à sua
disposição para esse efeito consistiam na investigação judicial da conduta
do governador, a residência ou pesquisa, a que foi submetido duas vezes
durante o seu mandato. Até essa altura, foi o único servidor da coroa espa-
nhola, exceptuando Alonso de Lugo em Tenerife, a sofrer tal processo ainda
em exercício. Os mesmos meios foram usados para vigiar seu filho e suces-
sor Diego Colón. O facto de Colombo nunca ter conseguido governar os
seus domínios com a independência intratável atingida por alguns conquis-
tadores passados e futuros foi em parte consequência de estar à frente de
uma colónia subdesenvolvida e indisciplinada, onde os seus adversários
locais eram hábeis em explorar as oportunidades de apelar à coroa ou a fun-
cionários reais interessados, contrariando as ordens de Colombo. Esteve
sujeito a todas as tentações para exceder os seus poderes e teve poucas opor-
tunidades para deles desfrutar. Foi vítima, além disso, do seu próprio sucesso
ao impor aos monarcas, em 1492, condições tão exageradas que muito os
preocuparam e alertaram para a necessidade de lhe restringir os poderes.
Mas sobretudo, como veremos, foi limitado pela sua própria incompetên-
cia e, em vez de consolidar o seu poder, preferiu fugir às responsabilida-
des, empreendendo novas explorações ou retirando-se para Castela. Portanto,
gradual e crescentemente, os monarcas decidiram interpretar os termos das
concessões feitas da forma mais desfavorável para Colombo, privando-o dos
seus privilégios e quebrando a exclusividade dos seus títulos e cargos. Após
um árduo litígio, a família Colón cedeu finalmente os seus direitos aos pri-
vilégios de Colombo em 1556, muito depois do seu conteúdo se ter per-
dido. Em termos mais dramáticos, o episódio pode ser visto como o triunfo
de uma monarquia centralizadora sobre uma tendência feudal na periferia
do seu império.
103
nela depositava: três pequenas caravelas, com uma tripulação composta por
pouco mais do que os oitenta e oito membros enumerados na lista mais
fiável. Os monarcas tinham ordenado à cidade de Paios que fornecesse duas
caravelas como pagamento de uma multa que a municipalidade devia ao
tesouro real. A primeira destas era a Pinta, de velas redondas, assim cha-
mada talvez pelo nome dos irmãos Pinzón, e a outra a Nina, de Juan Nino,
que também nela seguiria para a travessia oceânica. O aspecto pormenori-
zado das embarcações é desconhecido e todas as «reconstituições» são fan-
tasiosas^ A Nina era uma embarcação rápida e bem equilibrada, de tama-
nho médio, aparelhada com velas triangulares, e a Pinta tinha a mesma
tonelagem mas era ligeiramente mais lenta. A maior das embarcações,
embora não muito maior, era o infortunado navio almirante Santa Maria,
com o seu casco redondo e andamento lento e os monogramas de Fernando
e Isabel na vela grande. Era a única das embarcações conhecida por nós
pelo seu verdadeiro nome. A sua «alcunha», Gallega, reflecte provavel-
mente não a posse mas a construção num porto galego. As tripulações
incluíam um contingente de bascos, mas foram recrutadas sobretudo em
Paios e Sevilha, provavelmente por Martin Pinzón, que comandava a Pinta
e que, como chefe do clã Pinzón, tinha suficiente prestígio em Paios para
ultrapassar as apreensões de potenciais recrutas decorrentes de uma via-
gem ao desconhecido. A tarefa de recrutamento fora facilitada por um per-
dão condenado disposto a embarcar, mas, na prática, pouco
real a qualquer
se recorreu a tão dúbia fonte de mão-de-obra. O papel de Pinzón foi fun-
damental e pode inferir-se que, à parte qualquer acrimónia que tenha sur-
gido entre ele e Colombo no decurso da viagem, começaram por sentir con-
fiança mútua. O resultado da sua responsabilidade pelo recrutamento foi,
por outro lado, o de equipar todos os navios com homens da sua confiança
de forma que, quando ele e Colombo se desentenderam, o comandante ficou
receoso, exposto e quase isolado.
Não acompanharam a armada quaisquer soldados ou colonos, pois a
expedição era deliberadamente exploratória. Antes de partir, Colombo embar-
cou uma grande quantidade de quinquilharias que esperava trocar por amos-
tras de especiarias e ouro: os guizos de vendedor ambulante bem como as
contas e os vidros que levava estavam mais ligados, no entanto, à expe-
riência dos Portugueses na África Ocidental do que às necessidades dos
sofisticados mercados orientais em que esperava negociar. Embora espe-
rasse reabastecer-se nas ilhas Canárias, levou o peixe salgado e o toucinho,
o biscoito e a farinha, o vinho, a água e o azeite que usualmente sustenta-
vam os marinheiros mediterrânicos.
104
A rota pelas Canárias era o golpe de mestre da viagem. Antes de Colombo
tentar descobrir a América, precisava de concretizar o que, cm certo sen-
tido, era uma descoberta muito mais transcendente: a de uma rota através
do Atlântico (ver mapa 3). Um ponto de partida mais a norte tcr-lhe-ia tor-
nado impossível encontrar vento favorável. Ao escolher as Canárias criou
as possibilidades de êxito. É provavelmente justo afirmar que - encarando
a história da exploração como um todo - a maioria das viagens explorató-
rias foi realizada contra os ventos dominantes, excepto em climas de mon-
ção, porque é tão importante para um explorador encontrar uma rota de
regresso como decidir um novo destino. É precisamente o afastamento desta
regra que faz com que algumas das viagens mais famosas da história - as
dos Vikings em redor do extremo Atlântico Norte, as dos Espanhóis do
século XVI através do Pacífico e as de Colombo ao Novo Mundo - pareçam
tão ousadas e heróicas. Além da de Colombo, as tentativas de exploração
atlântica longínqua que conhecemos no século xv partiram dos Açores ou
de Bristol para a zona dos ventos oeste e a maioria, por conseguinte, fra-
cassou. A rota de Colombo, em contraste, era quase perfeitamente escolhida
em ambas as direcções. A partida era feita de um ponto, perto do paralelo
vinte e oito, onde podia ter quase a certeza de deixar para trás o tráfego
marítimo do Nordeste; na volta, começou por se dirigir para norte, pro-
curando os ventos oeste que o trariam de regresso e encontrando-os pron-
tamente. Exceptuando o fracasso por não ter explorado a Corrente do Golfo
- que só foi descoberta por navegadores europeus em 1513 - aquando da
sua segunda viagem em 1493 (em que melhorou a sua rota original atra-
vessando o oceano de forma ligeiramente mais oblíqua), Colombo estava a
prefigurar quase exactamente a melhor rota-padrão dos galeões para o resto
da era da vela.
Esta estranha boa sorte sugeriu a alguns historiadores que ele deve ter
tido prévio conhecimento secreto da rota, transmitida por um «piloto des-
conhecido» ou seleccionada nalguma sua viagem anterior desconhecida.
O recurso a tais explicações fantasistas não é necessário, embora algumas
outras razões geralmente apresentadas sejam igualmente infundadas. Por
exemplo, não escolheu as Canárias porque esperava encontrar Cipangu na
mesma latitude: é claro, pelo seu diário de bordo, que acreditava que Cipangu
estava a sul da rota que escolhera**. Também não escolheu as ilhas apenas
por possuírem um porto adequado, numa posição relativamente oeste. Os
Açores e as ilhas de Cabo Verde estavam muito mais a ocidente e os Açores,
por estarem bem a norte, prometiam uma viagem mais curta ao longo da
curvatura decrescente da Terra do que as Canárias, relativamente mais a sul.
Duas explicações possíveis para a rota de Colombo são suficientes, cada
uma por si só, podendo escolher-se entre elas, se se desejar, segundo uma
Textos, 27.
105
tendência filosófica. Os individualistas apelarão à sagacidade de Colombo,
salientando a sua grande experiência na navegação atlântica e o facto de ter
tido muitas oportunidades,no fim da década de 1470 e princípio da de 1480,
de observar os rudimentos do sistema de ventos. Os deterministas dirão que
Colombo não tinha escolha; uma vez ligado a Castela teve que partir de um
porto castelhano e as Canárias eram a única possessão castelhana no Atlântico.
A viagem para as Canárias foi rápida e calma. Durante a maior parte
da travessia, Colombo aparelhou a Nina com velas redondas para aprovei-
tar o vento favorável - outra indicação de que sabia o tipo de ventos que
iria encontrar. A sua rota através das ilhas parecia lenta, mas era importante
colocar as embarcações em condições para o que prometia ser a mais longa
viagem jamais registada em mar aberto. Além da manutenção normal e da
mudança das velas da Nina era necessário substituir o leme da Pinta. Houve
necessidade de carregar mais abastecimentos, incluindo, sem dúvida, alguns
dos queijos de Gomera, particularmente adequados para mantimentos de
bordo. Entretanto, a expedição teve que suportar uma espera tensa por vento
favorável. Quando os ventos leste surgiram, na quinta-feira 6 de Setembro
de 1492, os exploradores deixaram San Sebastián de la Gomera numa agi-
tação de velas redondas e, deixando a ilha de Hierro a bombordo, despedi-
5 Ibid. 17-19.
6 Morison, i. 240-63.
106
cisos ou que os marinheiros alguma vez pudessem retomar uma rota conhe-
cida ou voltar a um destino anteriormente visitado.
Mesmo sem o uso de instrumentos de navegação ou mapas, o cálculo
podia ser apoiado ou substituído pelo que os historiadores marítimos cha-
mam «navegação celeste primitiva»^. No hemisfério norte, com a Hslrela
Polar como guia, esta é uma arte relativamente fácil (embora esteja irre-
mediavelmente perdida hoje), que foi cultivada através de gerações c aper-
feiçoada com a prática pelos marinheiros medievais tardios da Cristandade
latina. A sua importância tem sido demonstrada, nos nossos dias, no hemis-
fério sul, onde o céu é muito mais difícil de perscrutar, por marinheiros poli-
nésios, que podem assinalar uma rota e voltar a ela através de milhares de
milhas de mar aberto, guiados apenas pelo seu mapa mental de estrelas e
pelas características subtis e judiciosamente compreendidas do vento e do
mar. A população das ilhas Marshall utiliza cartas marítimas feitas de canas
que relacionam as ilhas entre si, com padrões de ondas e com rotas nave-
gáveis; os navegadores indígenas do Pacífico, porém, são capazes de vele-
jar sem tais ajudas ou instrumentos de navegação. Numa experiência deli-
berada, o navegador Piailug, do atol micronésio de Satawal, velejou numa
canoa dupla havaiana desde o Havai, através de 3500 milhas de mar aberto,
até Taiti, entre ilhas e por mares que desconhecia, sem qualquer erro. A única
informação de que dispunha consistia na posição das estrelas^.
A tarefa de Colombo ao manter uma rota directa poderia facilmente ter
sido conseguida a olho nu sem ajuda de um navegador celeste experiente:
teria sido apenas necessário manter o Sol, de dia, e a Estrela Polar, de noite,
num ângulo de elevação constante. O testemunho de cartas marítimas medie-
vais tardias toma claro que os navegadores daquela época eram capazes de
determinar latitudes relativas a olho nu com pequena margem de erro. O pró-
prio Colombo afirmou ter procedido assim na sua viagem de regresso a 3 de
Fevereiro de 1493^. No entanto, por insuficiência da sua técnica através
de métodos primitivos ou por curiosidade científica, Colombo decidiu ultra-
passar o cálculo e a navegação celeste primitiva de três formas: utilizando
uma carta, tentando fazer leituras astronómicas exactas de latitude e verifi-
^
P. Adam, «Navigation primitive et navigation astronomique», VI' colloque internaíio-
nale d'histoire maritime (1966), 91-110.
» Ver B. Finney, Hokule'a: The Way to Tahiti (Nova Iorque, 1979).
9 Textos, 123.
107
- «a Cidades» -, um refugio mítico localizado inicialmente
ilha das Sete
no meio do oceano num mapa de 1424. Las Casas estava convencido de
que a carta de Colombo fora feita por Toscanelli: se assim foi, teria sido
desenhada sobre uma grelha de linhas de longitude e latitude, procurando
transmitir uma boa noção da distância, em contraste com a carta do mari-
nheiro comum do fim da Idade Média, que mostrava apenas rotas sob a
forma de linhas loxodrómicas partindo de rosas-dos-ventos colocadas em
pontos estratégicos. O efeito era criar desenhos delicados, que se intersec-
tam como uma teia, mas, apesar do seu atractivo estético, este tipo de carta
quase não tinha em conta as distâncias. A carta de Colombo inspirou-lhe a
confiança imerecida mais extraordinária: consultou-a com Martin Pinzón
diversas vezes durante a viagem, contemplando - e mesmo efectuando uma
vez, num momento crucial - uma mudança de rota baseada nela e aparen-
temente avaliando através dela a proximidade de terra. Porém, este último
ponto não deve ser demasiadamente realçado: Colombo pode ter usado de
forma incorrecta uma carta marítima convencional ou simplesmente utili-
zado o mapa para confirmar os seus próprios cálculos, baseados na teoria
do mundo pequeno e na sua estimativa da distância já percorri da^^.
O uso de instrumentos de navegação pelo almirante é assinalado na pas-
sagem, presumivelmente extraída do Livro da Primeira Navegação mas omi-
tida em A Primeira Viagem e preservada apenas indirectamente, sobre o dia
24 de Setembro de 1492, quando, depois de uma série de falsos avisos de
terra à vista, os receios de Colombo de uma revolta estavam no seu auge.
Segundo o relato vivo de Las Casas, os conspiradores murmuravam que
«era grande loucura e suicídio arriscar as suas vidas para seguir os planos
loucos de um estrangeiro que estava pronto a morrer na esperança de se tor-
nar um grande senhor». Alguns deles argumentavam «que o melhor a fazer
seria atirá-lo pela borda fora uma noite e espalhar o boato de que caíra ao
mar ao tentar fazer uma leitura da Estrela Polar com o seu quadrante ou
astrolábio» ^^
A alegadamente fabricada por estes amotinados apresenta um
história
humor negro Evoca brilhantemente a figura do cientista estran-
irresistível.
geiro praticando, em desagradável isolamento, as suas novas técnicas enquanto
luta sobre um convés móvel com um instrumento pouco manejável. Esta
imagem, que tanto aborreceu os conspiradores, transmite uma boa parte da
verdade. Colombo, apesar do orgulho que tinha nos seus instrumentos de
navegação, nunca capaz de os usar correctamente, impossibilitado pelo
foi
balanço do navio. As leituras que afirmou ter realizado com o seu astrolá-
10 Ibid. 21, 24, 27; Las Casas, i. 191; Cartas, 267; Raccolta, V. i. 577-80. Os argumen-
tos elaborados produzidos contra a aceitação como graduado do mapa de Toscanelli (e. g.
S. Crinò, Comefu scoperta l'America, Milão, 1943, 59-162) ignoram o significado simples
e óbvio da descrição de Toscanelli: Cartas, 137-8.
" Las Casas, i. 189.
108
bio foram, na verdade, baseadas num método menos atraente. Calculou a
duração do dia em horas de luz e mediu a latitude pela tabela que copiara
da Imago Mundi de Pierre d'Ailly'2. Os erros que cometeu correspondem
exactamente aos erros de impressão da tabela'\ Foi, compreensivelmente,
evasivo sobre o recurso a este plágio mas explicito sobre os seus meios de
medir o tempo. Não se podia confiar aos grumetes o relógio de areia mas
os corpos celestes mantinham um ritmo fiável. Em cada vinte e quatro horas
as Guardas da constelação da Ursa Menor descrevem uma revolução com-
pleta em tomo da Estrela Polar. O olho humano é suficiente para determi-
nar aproximadamente até onde chegaram na sua rota na altura de uma obser-
vação específica. Como auxiliar da memória e padrão de medida, os
navegadores medievais dividiam o círculo em oito partes iguais, a que davam
normalmente o nome de partes do corpo ou de pontos da bússola. Assim,
a divisão «nordeste» a 45 graus chamava-se «ombro direito» ou «acima do
braço direito», a divisão «leste» «braço direito», a «sudeste» era «abaixo
do braço direito» e assim sucessivamente. Ao observar o movimento das
Guardas através destas divisões, Colombo podia calcular a duração da noite
e assim, por subtracção das vinte e quatro, as horas de luz do dia. A 30 de
Setembro, por exemplo, Colombo localizou as Guardas em três das divi-
sões, fixando em nove horas a duração da noite e em quinze as horas de luz
do dia^"*. A sua obsessão com as horas de sol é compreensível apenas como
parte da sua preocupação - a preocupação de um cartógrafo, estimulado tal-
ção em ambas as direcções, talvez porque estava a passar entre zonas. A par-
a seguinte questão: terá ele compreendido este fenómeno? Igual questão tem
sido posta, contexto mais amplo, sobre a sua descoberta da América e
num
convém ver mente de Colombo enfrentando estes problemas - conceptu-
a
ais e classificativos - de enquadrar uma nova observação no âmbito do
conhecimento existente. A sua primeira reacção parece ter sido inteiramente
12
Ver p. 171.
27-
R. Laguarda Trías, El enigma de las latitudes de Colón (Valhadolid, 1974), 13-17,
13
109
prática: teveque garantir a confiança da sua tripulação na fiabilidade das
bússolas e portanto procurou minimizar o problema realizando leituras na
altura mais favorável do dia, quando a Estrela Polar estava aparentemente
na sua posição mais a ocidente. Estes factos, juntamente com o seu inte-
resse permanente pela realização de leituras e anotação dos resultados, suge-
rem que considerou pelo menos a possibilidade das variações aparentes
serem genuínas. A 30 de Setembro parece ter resolvido o problema na sua
própria mente explicando-o como o resultado aparente da instabilidade da
Estrela Polar: «A Estrela Polar move-se como as outras estrelas enquanto
a agulha da bússola aponta sempre na mesma direcção.» Pelo teor desta
frase, era uma explicação em que acreditava, não uma mera descrição pre-
parada para a sua tripulação ^^
Tais factos diziam respeito às estrelas. O que acontecia à superfície do
oceano durante a travessia? O relato de Colombo é dominado, permanen-
temente, por quatro temas: as falsas terras avistadas, que minavam o moral
dos homens; os receios de que nunca encontrariam um vento que os trou-
xesse de regresso, à medida que os ventos os conduziam rapidamente para
oeste; a tensão crescente entre Colombo e Pinzón e entre comandante e tri-
pulação, e as próprias dúvidas de Colombo, dificilmente perceptíveis mas
reais, que o afligiam crescentemente à medida que a expedição passava cada
vez mais tempo sem avistar terra. Ultrapassaram rapidamente o perigo de
uma esquadra portuguesa enviada para os interceptar e os mistérios do mar
dos Sargaços, de que poderão ter tido conhecimento prévio, de forma a afas-
tar os seus medos sem diminuir o seu espanto; mas o elemento insidioso da
incerteza sobre o destino e sobre a conveniência da viagem tomou uma via-
gem fácil em tempo de tormento. Em meados de Setembro, a procura de
sinais de terra por Colombo, sob a forma de remoinhos e queda de aves
canoras, parece ter alimentado percepções mais agudas e ter-se misturado
com ecos da Arca de Noé:
Quinta- feira, 20 de Setembro: Rumou neste dia oeste quarta a noroeste e com meio
pano devido aos ventos contrários que sucederam à acalmia. Fariam sete ou oito léguas.
Chegaram ao navio almirante duas garças reais e depois outra, o que era sinal de terra
próxima. Apanharam à mão um pássaro que era um pássaro de rio, não de mar, embora
as suas patas fossem como as da gaivota. Chegaram ao navio, de madrugada, dois ou
três pássaros de terra cantando e depois, antes do amanhecer, partiram.
•5
A. Magnaghi, «Incertezze e contrasti delle fonti tradizionale sulle osservazioni attri-
bute a Cristoforo Colombo interno ai fenomeni delia declinazione magnética», Bolettino delia
Società Geográfica Italiana, 69 (1937), 595-641; Laguarda, El enigma, 24-7.
110
vicção crescente - inicialmente explicitada na sua viagem de regresso em
1493 - de que tinha uma espécie de aliança pessoal com Deus. A 23 de
Setembro registou «mar alto, como nunca foi visto antes, excepto no tempo
dos Judeus quando fugiram do Egipto seguindo Moisés»'^.
O receio do perigo parece apenas ter aumentado a sensibilidade de
Colombo. A sua reacção mais poética ao ambiente está contida numa pas-
sagem resumida por Las Casas, com data de 16 de Setembro: «O cheiro da
manhã dava verdadeiro prazer e a única coisa que faltava era ouvir o rou-
xinol cantar, afirma.» Leitores dos elogios sensíveis de Colombo às perfei-
ções do mundo atlântico têm por vezes pensado sepodem ser relacionados
com a influência dos valores franciscanos sobre Colombo, com a sua pro-
funda reverência pela criação, ou com a estética renascentista, associada ao
interesse pela descrição realista do ambiente natural. Frequentemente, porém,
as tentativas de Colombo de evocar a beleza da Natureza podem parecer
grosseiras - como aqui, onde o rouxinol é associado à manhã - ou nebulo-
sas. As suas descrições, em particular as da paisagem e flora das Caraíbas,
recordam pelo menos o paraíso de Milton. Deve recordar-se que Colombo
estava a escrever com a finalidade de promover a imagem do Oceano e
atrair mais investimento e favor real para o seu empreendimento. Tinha inte-
resse em acentuar o clima saudável porque ajudaria a tomar a sua rota explo-
rável. Isto não quer dizer que não estivesse pessoalmente convicto da vera-
cidade das suas descrições. Por exemplo, a sua convicção, muitas vezes
declarada, de que o ar e o clima melhoravam sensivelmente cem léguas a
oeste dos Açores foi sustentada com tal insistência que desafia qualquer
cepticismo, embora seja certamente devida mais à sua imaginação do que
a qualquer efeito mensurável ^.
Em breve, Colombo começou a admitir para si próprio algumas das suas
dúvidas sobre a distância a que se encontravam as índias, pois a partir de
10 de Setembro começou a falsear o diário de bordo, diminuindo, nos cál-
culos que apresentava aos seus homens, o número de milhas percorridas.
Apreciava o seu papel de manipulador isolado com evidente prazer e remorso
fingido. Apreciava positivamente a cibernética do embuste: a sua recorda-
ção orgulhosa da tripulação, que levara, quando jovem, a confundir Tunes
com Marselha^^ é recordada pela história do diário de bordo falsificado.
Estes episódios recordam ao leitor como dependemos, para o conhecimento
do que aconteceu na viagem, de fontes directamente inspiradas pelo pró-
prio Colombo. As aparências de isolamento e vulnerabilidade são projec-
111
L
ções da sua própria auto-imagem. O ambiente de conspiração pode ser pro-
duto de uma imaginação paranóica. O testemunho do afastamento cada vez
mais acentuado em relação a Martin Pinzón - rigorosamente excluído de
A Primeira Viagem, tendo que ser coligido a partir de outras fontes, incluindo
o independente testemunho legal muito posterior - terá surgido, em primeiro
lugar, devido à sua própria natureza desconfiada e à rejeição de colabora-
ção por alguém que gosta de se isolar^^.
^9 Textos, 20; Pleitos, iv. 242-8. Ver F. Morales Padrón, «Las relaciones entre Colón
y
Martin Alonso Pinzón», Revista de índias, 21 (1961), 95-105.
20
Textos, 23-4.
21
Ibid. 22, 27; C. Sanz, El gran secreto de la Carta de Colón (Madrid, 1959), 367;
M. Giménez Femández, «América, "Ysla de Canária por ganar"». Anuário de estúdios atlân-
ticos, 1 (1955), 309-36; Raccolta. III. ii. 3.
112
De qualquer forma, a resistência de Colombo durou pouco. A 7 de
Outubro, aparentemente atraído pela direcção de voo de bandos de aves
mas talvez persuadido por sintomas de amotinação, alterou a rota para sudoeste.
A 10 de Outubro, segundo as paráfrases - que podem, evidentemente, ter
sido embelezadas posteriormente -, os homens «não podiam suportar mais».
Nessa mesma noite, a crise passou. No dia seguinte multiplicaram-se as
visões de destroços e, quando a noite caiu, todos terão ficado excitada-
113
do princípio do século xvi sugerem que a tradição cartográfica veio a iden-
do primeiro desembarque de Colombo com a actual San Salvador
tificar a ilha
23
A é analisada por L. de Vorsey e J. Parker, In the Wake of
monótona controvérsia
Columbus (Detroit, 1985).muito divulgado J. Judge, «Where Columbus Found the New
O
World», National Geographic, 170 (1986), 562-99, não nos ajuda. Com base em testemu-
nhos cartográficos, ver K. D. Gainer, «The Cartographic Evidence for the Columbus Landfall»,
Terrae incognitae, 20 (1988), 43-68.
24
Textos, 30-43, 46-1 18; F. Femández-Armesto, Before Columbus (Londres, 1987), 223-
-45; Milhou, Colón y su mentalidad mesiánica, 102-11.
114
À medida que passava pelas ilhas, Colombo iria encontrar uma varie-
dade de culturas indígenas, desde o mundo «atrasado» dos Lucayas até aos
materialmente ricos e tecnicamente avançados Tainos de Hispaníola. Mas,
embora estivesse atento a sinais de maior «civilização» na sua procura das
sedutoras terras orientais, viu-os a todos com os mesmos olhos e os temas
à volta dos quais organizou os seus escritos estão já presentes no relato do
seu primeiro encontro, a 12 de Outubro de 1492. Em primeiro lugar, com-
para constantemente os seus anfitriões, implícita ou explicitamente, com os
ilhéus canários, os negros e as raças humanóides monstruosas que se supu-
nha popularmente habitarem as partes inexploradas da Terra. O objectivo
destas comparações não era tanto o de transmitir uma descrição real dos
ilhéus mas estabelecer pontos doutrinais. A população era comparável a
outras que habitavam semelhantes latitudes, em conformidade com uma dou-
trina de Aristóteles: eram fisicamente normais, não monstruosos e, portanto
- segundo um lugar-comum da psicologia medieval -, totalmente humanos
e racionais. Qualificavam-se, assim, como susceptíveis de conversão ao cris-
tianismo, objectivo que os patronos reais de Colombo se tinham compro-
metido a atingir.
Em segundo Colombo estava desejoso de atribuir bondade natu-
lugar,
ral como criaturas inofensivas e pacíficas, não
aos habitantes. Retratou-os
corrompidas pela ganância material - na verdade, aperfeiçoadas pela pobreza.
Atribuiu-lhes um vago sentido de religião natural, sem desvios para o que
eram considerados canais «não naturais» como a idolatria. Por consequên-
cia, constituíam um exemplo moral para os cristãos. Este retrato apresenta
fortes reminiscênciasda longa tradição do tratamento medieval tardio dado
aos primitivos pagãos, especialmente por escritores franciscanos e huma-
nistas. O testemunho visual de Colombo foi filtrado, na sua mente, pelas
expectativas derivadas da tradição.
Em terceiro lugar, Colombo procurava formas de manipular os nativos
com fins lucrativos. À primeira vista, isto parece estar em oposição ao auto-
-elogio pelas suas qualidades morais, mas muitas das suas observações têm
dois sentidos. A
ignorância da guerra por parte dos nativos apresentou-os
como inocentes, mas também os tomou «fáceis de conquistar». A sua nudez
evocava um idílio rústico ou um ideal de dependência de Deus, mas tam-
bém sugeria selvajaria e semelhança com animais. A sua inexperiência
comercial, que maravilhava Colombo pela forma como trocavam tesouros
por ninharias, mostrava que eram ao mesmo tempo moralmente incorrup-
tos e facilmente enganados. As suas faculdades racionais tomavam-nos facil-
mente identificáveis como humanos e exploráveis como escravos. A atitude
de Colombo não era necessariamente diíplice, apenas ambígua; estava genui-
namente dividido entre duas formas opostas de classificar os índios. Embora
utilizasse categorias eruditas, passava frequentemente à linguagem dos mira-
bilia ou contos de viajantes medievais tardios. Escolheu o que lhe chamava
115
a atenção como bizarro, divertido, estranho ou pitoresco. Relatou, ceptica-
mente, a existência de canibais e, credulamente, a de Amazonas. Ao longo
das suas viagens ao Novo Mundo permaneceu dividido entre apreciações
opostas dos seus povos - como potenciais cristãos, como tipos de virtude
pagã, como bens móveis exploráveis, como figuras ridículas.
Em nenhuma das suas impressões iniciais do Novo Mundo - nem da
terra nem do povo - afirmou detectar qualquer prova de que estava na Ásia.
Os termos em que descreveu a sua descoberta parecem dever-se à expe-
riência da sua viagem africana ocidental. Chamava às canoas, por exemplo,
almadías e às lanças azagayas - termos da África Ocidental portuguesa^^
Foi, porém, como se acordasse e se lembrasse da tarefa que tinha em mãos.
A procura de ouro e de terras asiáticas começou no dia seguinte ao da sua
chegada, com perguntas sobre a ilha de Cipangu.
De 15 a 23 de Outubro percorreu três pequenas ilhas, a que chamou
Santa Maria de la Concepción, Fernandina e Isabela. Honrara assim Nosso
Senhor (em San Salvador), Nossa Senhora, o rei e a rainha de Espanha, por
esta ordem. Não existe suficiente informação de confiança sobre estas ilhas
ou sobre a relação entre elas, nas versões que nos chegaram do seu relato,
por forma a serem seguramente identificadas, embora a actual ilha Crooked
- dado o seu tamanho e posição - tenha sido provavelmente uma delas e a
actual ilha Long talvez outra. Devido a imprecisões no original ou a erros
de transcrição, muitas das suas rotas não fazem sentido e as fontes que che-
garam até aos nossos dias constituem um guia quase inútil para a sua rota
através das ilhas.
Sentiu, porém - ou, pelo menos, desejou dar essa impressão -, que estava
a fazer progressos à medida que navegava entre elas. Os nativos, apesar da
semelhança básica entre foram-se tomando, gradualmente, aos olhos de
si,
116
nunciados que ouvia, esperando sempre que a ilha seguinte fosse a prcSpria
Cipangu. Ao chegar a Cuba, a 24 de Outubro, declarou: «Penso que esta é
a ilha de Cipangu de que se dizem coisas maravilhosas. E em todos os glo-
bos e planisférios decorados tenho-a visto localizada nesta área.» Parece
cedo ter percebido que se tratava de uma ilusão, mas afastou-a em favor de
uma afirmação ainda mais aventurosa: que Cuba podia fazer parte do con-
tinente de Cathay. Esta ideia colocou-o perante um dilema: continuar à pro-
cura de Cipangu ao largo ou procurar a corte do Grande Khan no interior
de Cuba. Durante algum tempo inclinou-se para a segunda hipótese, che-
gando mesmo a enviar uma embaixada com o seu intérprete «que falava
caldeu» para investigar o interior, «mas não encontrando sinais de governo
organizado, decidiram regressar»^^.
Gradualmente, durante o período da sua estada em Cuba, Colombo acen-
tuou cada vez mais os méritos específicos de uma terra que podia ser apre-
ciada por si própria. Os temas de elogio ao ambiente local e apreciação da
sua beleza, abordados anteriormente na narrativa, tomam-se agora domi-
nantes. Estava a preparar para os monarcas - e talvez convencendo-se a si
próprio - a defesa da colonização e da exploração directa das descobertas
pelos seus próprios produtos, além do valor que pudessem ter como entre-
postos para os imaginados benefícios do comércio oriental. Cuba emergiu
das suas descrições exageradas não como um local real mas como um locus
amoenus onde nada era descrito com pormenor mas tudo era mais
literário,
doce e mais belo e o homem estava em harmonia com a Natureza. Era uma
terra extraordinária que excedia os dons da linguagem para a descrever ou
da pena para a registar. De uma maneira geral, Colombo confessou a sua
incapacidade para especificar os produtos da terra. Quando pensou reco-
nhecer a mástique, enganava-se. Presumiu, porém, que toda a prolífica vege-
tação devia conter muitos produtos negociáveis.
O tratamento dispensado aos nativos também sofreu alteração ou, pelo
menos, uma ênfase maior num dos seus temas habituais, à custa dos outros.
À medida que diminuíam as perspectivas de os explorar lucrativamente, as
esperanças de Colombo quanto à sua evangelização pareceram expandir-se.
Formulou uma visão de uma Igreja Católica purificada, erigida nos domí-
nios dos monarcas, em parte com a matéria-prima pura com que Deus os
presenteara nas suas descobertas, que seria preservada sem mancha de influên-
cias contaminantes. «E Vossas Altezas, quando os seus dias tiverem che-
gado ao fim - pois somos todos mortais -, deixarão os seus reinos numa
situação muito pacífica e livres de heresia e maldade e serão bem recebi-
das na presença do eterno Criador.» Este projecto de comunidade apostó-
lica ideal no Novo Mundo, que Colombo referiria frequentemente, asseme-
Ihava-se a uma poderosa visão franciscana que veio a impulsionar os intensos
117
k
esforços missionários do século seguinte. Desenvolveu-se na mente de
Colombo, durante o resto da sua vida, até que formou, talvez, o elemento
dominante da sua percepção das descobertas e lhe inspirou o sentimento da
sua própria dignidade e papel especiais como executante de um propósito
providencial^^.
Entretanto, alguns dos seus compagnons de voyage perdiam a paciên-
cia com os pobres rendimentos das descobertas e as ricas emanações do seu
espírito.A 20 de Novembro, Martin Pinzón partiu sem licença para uma
caçada ao ouro, de ilha em ilha - saciado das belezas de Cuba ou frustrado
com a sua pobreza. Depois desta quebra de disciplina, denunciada por
Colombo como «traição», era improvável que os outros exploradores supor-
tassem Cuba por muito mais tempo e a 23 de Novembro Colombo come-
çou a procurar um vento de feição para partir. Quando finalmente o encon-
trou, a 5 de conduzido por acaso, devido a uma brusca
Dezembro, foi
mudança de alguma vez descobriria.
direcção, à ilha mais importante que
O seu nome nativo era Haiti, mas Colombo, tendo já esgotado os nomes
dos membros da família real espanhola e os mais importantes da Sagrada
Família, honrou a nação que patrocinara o seu empreendimento chamando-
-Ihe La Islã Espanola ou Hispaniola, como é nomeada nos mapas ingleses.
Hispaníola foi uma descoberta significativa por duas razões. Em primeiro
lugar, embora não fosse Cipangu, produzia razoáveis quantidades de ouro
e este representava o êxito da missão de Colombo, sem o qual teria certa-
mente regressado para o ridículo e a obscuridade. Em segundo lugar, abri-
gava uma cultura indígena de riqueza e valor suficientes para- impressionar
os Espanhóis. Com alguns dos nativos Colombo conseguiu estabelecer rela-
ções amigáveis - assim pensava - e fixar no seu território o local destinado
a uma futura colónia. Na parte que nos resta do seu relato, Colombo não
fez qualquer referência à superior civilização material da ilha: o trabalho
requintado em pedra e madeira nos espaços cerimoniais que recordam os
recintos de dança mesoamericanos; os colares, pendentes e estátuas estili-
disse-lhe como vinha da parte dos monarcas de Castela, que eram os maiores príncipes
do mundo. Mas... ele só queria acreditar que os Espanhóis vinham do céu e que os rei-
nos de Castela eram no céu... Todas as ilhas estão de tal forma às ordens de Vossas
118
Altezas que falta apenas estabelecer a presença espanhola e ordenar-lhes que cumpram
a vossa vontade. Pois poderia atravessar todas estas ilhas armado sem encontrar oposi-
ção... assim, podeis comandá-los, fazê-los trabalhar, semear e o que for necessário
e
construir uma cidade e ensiná-los a usar roupas e a adoptar os nossos costumes'".
Na visão alterada das suas descobertas revelada por Colombo estão pre-
vistas as agonias do dilema da Espanha no Novo Mundo. Os lucros rápidos
que começou a procurar - os produtos exóticos, o lucro comercial - tinham
sido afastados da sua mente pelo espectáculo de um mundo ao pôr do Sol,
imaginado completo, com nativos amáveis e todo o conchego do lar Mas
esta Arcádia desigual podia ser construída apenas pelo exercício da res-
ponsabilidade social e moral: os índios deveriam ser «civilizados» segundo
a imagem metropolitana e os colonos seriam mestres bem como senhores.
Existiam três projectos distintos para as futuras conquistas nestas paragens:
o rendimento rápido e irresponsável, o longo trabalho de uma utopia colo-
nial e amissão «civilizadora». Os Espanhóis poderiam sugar como san-
como abelhas ou tecer uma teia abrangente como ara-
guessugas, trabalhar
nhas. Nem Colombo nem nenhum dos seus sucessores conseguiram resolver
as contradições inerentes.
Começou a lançar as fundações de um império colonial ao estabelecer
fortes laços pessoais, enriquecidos com presentes e reforçados pela impres-
com o cacique mais
são causada pelas armas espanholas de fogo e de aço,
importante que encontrou, chamado Guacanagarí - chefe, segundo pareceu
a Colombo, da parte norte da ilha. De acordo com Guacanagarí, deu o pri-
meiro passo para estabelecer a projectada «presença» espanhola, construindo
uma paliçada em Puerto Navidad na costa norte e guamecendo-a com trinta
e nove soldados, que ficariam para recolher amostras de ouro, esperando
uma nova expedição de Castela.
O estabelecimento de uma guarniçãogenuinamente um novo ponto
foi
Textos, 83-4.
119
no dia seguinte, encarou o acontecimento de forma bastante diferente, como
resultado da traição dos «homens de Paios», que tinham começado por for-
necer um navio em más condições, acabando num fracasso por não o afas-
tarem das rochas. Refugiava-se mais uma vez na auto-identificação agora
familiar ao leitor: o homem isolado na adversidade, a vítima de conspira-
ção. O paradigma universal de traição - o beijo de Judas - demonstra, porém,
para qualquer cristão que assim pense, que até a traição tem um lugar, um
lugar-chave, no plano cósmico. Para Colombo, a maldade da sua tripulação
era providencialmente determinada, tão seguramente como a de Judas. «Foi
uma grande bênção», escreveu, «e expresso propósito de Deus que a embar-
cação encalhasse ali para que pudesse deixar alguns dos seus homens»; o
facto de ter sido provocado por traição era, referiu Las Casas, precisamente
a prova para Colombo de que a mão de Deus estava por detrás. Dessa mão
aberta, Colombo recebia agora, como por milagre, «tábuas para construir o
forte e abastecimentos de pão e vinho e um calafate e um artilheiro e um
carpinteiro e um tanoeiro». Os destroços da embarcação e o resto da tripu-
lação satisfariam as necessidades do momento. Colombo decidira, eviden-
temente, estabelecer uma guarnição. Desta forma, transferiu para Deus a
responsabilidade da decisão^^.
A perda da Santa Maria levou Colombo a pensar no regresso. Afirmou
que queria prosseguir a exploração, mas o seu atraso era provavelmente cau-
sado pela preocupação, saliente nas paráfrases de Las Casas, de acumular
uma grande quantidade de ouro. Colombo reunira pequenas quantidades por
trato, a partir de 12 de Dezembro, mas não acreditava inicialmente que pro-
vinham da ilha. Numerosos presentes de artefactos de ouro recebidos na
última quinzena de Dezembro parecem, no entanto, tê-lo convencido de que
a fonte do ouro estava próxima e, nos primeiros dias de Janeiro, a prova da
existência de uma «mina» fugidia cresceu encorajadoramente. A 6 de Janeiro
Martin Pinzón juntou-se à expedição, trazendo uma maior quantidade de
ouro, que afirmou ter negociado. Apresentou desculpas pela sua conduta,
que Colombo em privado considerou falsas e destinadas a encobrir a ava-
reza e o orgulho, e mesmo o peculato; mas o almirante absteve-se de fazer
denúncias directas, «de forma a não dar escape às más obras do Demónio,
que desejava mais do que nunca impedir esta viagem»^^. Nenhum estudioso
de Colombo ficará convencido com estas afirmações hipócritas nem verá a
trajectória da sua relação com Martin Alonso de outra forma que não seja
a de um caso típico das amizades de Colombo. Era incapaz de se moderar
nas relações pessoais e vemos repetidamente como fulminava com malícia
e desprezo os antigos amigos íntimos. Isto não quer dizer que o facto de
transformar em rivais e inimigos uma série de colaboradores íntimos - Martin
30
Textos, 109.
120
Pinzón, Amerigo Vespucci e, como veremos, Juan de la Cosa, Francisco
Roldán, Pêro Nino, Alonso de Hojeda - fosse apenas culpa de Colombo.
Isso era antes devido a que o seu amor e afeição, frequentemente dedica-
dos sem reservas, eram sempre facilmente afastados. A sua confiança era
dada inteiramente e não podia ser reduzida sem ser destruída.
Embora indignado com Pinzón, Colombo parece ter tlcado verdadeira-
mente satisfeito com os resultados da viagem. Ainda que preocupado por
não ter encontrado vestígios da China ou de Cipangu, estava convencido de
que possuía em Hispaníola um bem explorável. Afirmou acreditar que a ilha
era maior que Espanha e escreveu entusiasticamente aos monarcas sobre as
virtudes naturais da «melhor terra do mundo». Os acontecimentos iriam pro-
var que estava enganado. O clima que elogiou provaria ser letal para os
Espanhóis. Os nativos, caracterizados como pacíficos e dóceis, demonstra-
ram ser instáveis e violentos. Mas com base no que vira até ao momento
de partir, a apreciação de Colombo, se descontarmos os exageros de um
vendedor à comissão, era justificada.
Reunira muitas amostras de ouro, vagens de pimentão-de-caiena picante,
canela de qualidade ligeiramente inferior - que talvez suscitasse esperan-
ças de especiarias mais ricas -, rumores sobre a existência de pérolas e
alguns exemplares humanos da raça índia capturados para exibição na corte.
Descobrira o ananás, o tabaco - «umas folhas que devem ser muito apre-
ciadas entre os índios», embora não soubesse ainda para que serviam -, a
canoa e a cama de rede, esta última um presente da tecnologia caraíba para
o resto do mundo que nos anos seguintes iria melhorar muito o sono dos
seus companheiros marinheiros. Partiu a 16 de Janeiro de 1493, pouco mais
de um ano após ter recebido o seu comando dos monarcas, com disposição
optimista, reflectindo que, se Hispaníola não era Cipangu, era pelo menos
«uma maravilha», talvez o reino de Sabá ou o país do qual os Magos tinham
trazido os seus presentes a Cristo^'.
pelo desastre e pelo êxito como qualquer outro período comparável da vida
de Colombo. É importante tentar retratar o seu estado de espírito.
Passara por uma experiência extraordinária, que deveria modificá-lo ou,
pelo menos, acentuar alguns dos seus traços. Existem sinais inegáveis, no
que escreveu a caminho de casa, de que a noção da realidade e a com-
preensão dos limites do possível foram, em Colombo, profundamente alte-
radas pelo seu contacto com o Novo Mundo. Quando, por exemplo, ouviu
121
falar pela primeira vez dos canibais, considerou-os um mito, talvez porque
os reconhecia como lugar-comum da imaginativa literatura de viagens medie-
val. Quando viu as maravilhas do Novo Mundo mudou de opinião, predis-
pondo-se a aceitar tais histórias. Histórias, talvez originárias de Martin
Pinzón, de ilhas habitadas umas por Amazonas outras por homens calvos
já não suscitavam o seu cepticismo. A sua tendência para atribuir mudan-
ças de fortuna à intervenção de agentes sobrenaturais substituíra quase intei-
ramente formas racionais de explicação. A forma como o ambiente das suas
descobertas desafiava o seu entendimento - apresentando-lhe, por exemplo,
toda aquela vegetação estranhamente inclassificável, contrariando as expec-
tativas criadas pela sua carta marítima, rodeando-o da algaraviada de guias
ininteligíveis - ajuda a explicar o resultado.
O isolamento que suportou também constitui uma explicação. Em parte,
o que ressalta deste relato é o sentimento de isolamento colectivo partilhado
por toda a expedição, cujos membros duvidavam de que alguma vez vol-
tassem a Espanha. O sentimento de solidão, mais forte em Colombo, foi
exacerbado pelo seu próprio temperamento pouco sociável e pelas suas con-
dições particulares. Sofria a solidão do comando. Era um «estrangeiro» cujos
hábitos e interesses não só o isolavam como o alienavam em relação aos
seus homens. Não pertencia a nenhum dos grupos quase étnicos de que as
tripulações eram compostas: os bascos, por exemplo, que se revoltavam em
conjunto, ou os homens de Paios de Moguer, amigos e empregados de Pinzón.
Enfrentou o receio permanente de revolta ou traição - e o medo é sempre
real para as suas vítimas, mesmo se as suas bases são falsas.
Não surpreende que, neste estado de autoconfiança forçada e frágil, com
a disposição exaltada induzida pela revelação de tantos dos «segredos deste
mundo», Colombo se tenha voltado para Deus. A religião era sempre o seu
primeiro refugio na adversidade. A em A Primeira
piedade demonstrada
Viagem pode ser enganadora: a mão editorial de Las Casas salienta todas
as referências a Deus, mas há uma clara regularidade na prontidão com que
Colombo procura as consolações da fé. Quando o desastre surgiu, pela pri-
meira vez, em meados de Setembro de 1492, reagiu comparando-se a Noé
e a Moisés. No princípio de Novembro, quando começou a desesperar de
encontrar algo de interesse comercial, enalteceu as perspectivas de benefí-
cio para a alma. Quando a fatalidade fez encalhar a Santa Maria, Colombo
explicou-acomo um milagre. Quando se zangou com Pinzón, culpou o
Demónio. De regresso a Espanha, estava preparado para a experiência reli-
giosa mais intensa e profunda que jamais registara: a primeira de uma série
de experiências místicas que iriam marcar um longo e por vezes precipi-
tado progresso espiritual para a intensa religiosidade da sua vida futura.
Quando tal aconteceu, a 14 de Fevereiro de 1493, encontrava-se lite-
ralmente perdido. Pensava estar bastante a sul da sua verdadeira posição -
mais perto das Canárias do que dos Açores, sendo a sua incerteza partilhada
122
pelos pilotos profissionais que seguiam a bordo e que se declararam total-
mente incapazes. Juntou-se o perigo à incerteza quando foram atingidos por
uma terrível tempestade,
que separou as embarcações e levou todos os
homens a recearem pelas suas vidas.
Os próprios pensamentos de Colombo
em plena tempestade estão registados num fragmento seu, transmitido por
uma fonte tardia e deturpada, mas transparecendo credibilidade:
Então, a minha angústia redobrou, pois parecia-me ver ante os meus olhos a ima-
gem sempre presente de meus dois filhos na escola em Córdova, abandonados sem ajuda
em terra estrangeira, antes de ter cumprido para Suas Altezas o serviço que as teria dis-
posto a recordá-los com favor - ou, de qualquer forma, antes de as fazer saber tal. E ten-
tei consolar-me com o pensamento de que Nosso Senhor não permitiria que tal empreen-
dimento permanecesse inacabado, que era tanto para exaltação da Sua Igreja, e que eu
conseguira realizar com tantos trabalhos em face de tanta hostilidade, nem quereria des-
truir-me; no entanto, compreendi que poderia humilhar-me pelos meus pecados, privar-
32 Historie, i. 146-7.
123
-lona aflição. As suas palavras, que nos chegaram na versão de Las Casas
apenas em discurso indirecto, não são nesta ocasião expressamente atri-
buídas à voz, mas o seu conteúdo é reconhecível pelos seus posteriores rea-
parecimentos. Resumia as mercês que Deus lhe concedera, estabelecia uma
comparação implícita e pouco elogiosa entre a generosidade divina e a par-
cimónia real, confirmava o desprezo de Colombo por aqueles que se tinham
oposto ao seu projecto, recordava as suas «dificuldades e adversidades» e
assegurava-lhe que todas eram provações da fé de pouco valor comparadas
com «as coisas de grande maravilha que Deus realizara nele e através dele
no decurso daquela viagem»^^
Numa carta aparentemente escrita a bordo no dia seguinte - mas talvez
retocada por um editor com vista à publicação -, Colombo resumiu o seu
feito com o devido louvor a
Nosso Senhor Deus eterno, que dá aos que caminham com Ele a conquista do que parece
impossível. E esta, evidentemente, era uma dessas conquistas, pois, embora se possa ter
pensado e escrito sobre estas terras, tudo tem sido especulação até agora, sem confir-
mação visual, sem compreensão total - de tal maneira que a maioria dos que sabiam
delas ouviram e consideraram mais provável que fossem lendárias do que qualquer outra
coisa.
E assim é que o nosso Redentor concedeu aos nossos mui ilustres rei e rainha e aos
seus famosos reinos a realização de um feito tão grandioso pelo qual toda a Cristandade
se deve regozijar e celebrar grandes festividades e dar graças solenes à Santíssima
Trindade, com muitas orações solenes, pela exaltação que derivará da conversão de tan-
tos povos à nossa santa fé e, em segundo lugar, pelos benefícios materiais que trarão
alimento e lucro^"*.
33
Las Casas, i. 313.
34
Textos, 145-6.
124
os veleiros castelhanos em águas portuguesas eram automaticamente sus-
peitos de pirataria. Dez homens que desembarcaram para rezar à Virgem
local pelo seu salvamento da tempestade foram aprisionados e Colombo
teve muita dificuldade em libertá-los. Tinha ainda um longo caminho a
percorrer de regresso a casa. Perdera a Pinta no mar, segundo parecia,
bem como a Santa Maria em Hispaníola. O tempo estava ainda tempes-
tuoso e ameaçador.
Um vento adverso levou-o agora, através de novas tempestades, dos
Açores até Lisboa. O seu antigo correspondente, o rei D. João 11, não era
tão ingénuo como os funcionários dos Açores. Conhecia os planos de Colombo
sobre o mar Oceano enão lhe agradava que uma viagem que recusara patro-
cinar tivesse resultados prometedores sob os auspícios dos seus rivais. Terá
sido portanto com alguma apreensão - mas sem opção, devido ao estado do
seu veleiro e da tripulação depois de uma viagem tão difícil - que Colombo
desembarcou na capital portuguesa. Não só foi preso pelo rei D. João e dei-
xado na dúvida sobre as hipóteses da sua libertação como também se tor-
nou suspeito em Castela por este relacionamento inesperado - mas prova-
velmente involuntário - com um inimigo. Colombo era bem capaz de ameaçar
transferir os seus serviços e o exemplo do seu concidadão genovês António
da Noli, cuja fidelidade oscilara entre Castela e Portugal durante a guerra
de 1474-79, dava aos seus conterrâneos uma triste reputação de lealdade.
É difícil imaginar, porém, o que Colombo poderia ter ganho desertando
nesta altura, a não ser que toda a confiança nas suas descobertas fosse falsa
- hipótese certamente improvável, mesmo para alguém com os talentos dis-
simuladores de Colombo.
O rei D. João parecia, na verdade, ter já encarado um acordo diplomá-
tico que incluiria concessões a Castela no mar Oceano em troca de uma
zona indiscutivelmente portuguesa em tomo do Sul da Africa. Colombo foi
libertado e em meados de Abril de 1493 «Don Cristóbal Colón, almirante
do mar Oceano, vice-rei e governador das ilhas que descobriu nas índias»
- como era agora merecidamente denominado embora erroneamente -, podia
exibir as amostras de ouro e os índios com penas ante a corte admirada de
Fernando e Isabel, em Barcelona.
Antes de o fazer, outro extraordinário golpe de sorte recairia sobre
o seu empreendimento. A Pinta, com Pinzón a bordo, escapara à tem-
pestade de Fevereiro, embora tendo perdido o contacto com a Nina. e
chegara com dificuldade ao porto espanhol de Baiona, a norte, à frente
de Colombo. Martin Pinzón tinha todos os motivos e alguma razão para
desafiar as reivindicações de Colombo. Mais tarde, durante o longo pro-
cesso entre a coroa e a família de Colombo, alguns amigos dos Pinzón
construíram uma lenda elaborada em memória de Martin, atribuindo-lhe
o papel principal na grande viagem de descoberta. Se Martin tivesse for-
necido aos monarcas a sua própria versão dos acontecimentos, Colombo
125
poderia ter ficado seriamente embaraçado, a sua glória dividida e, tal-
vez, a sua carreira truncada. Tal como as coisas se passaram, não havia
ninguém, excepto o grupo de índios cativos, para partilhar a cena com
Colombo, em Barcelona. De facto, esgotado por semanas sem dormir
num mar tempestuoso, pouco depois de encontrar um porto de abrigo
em Castela e antes de ter tempo de contar a sua própria história, Martin
Pinzón morrera.
126
i
5
'
Epistolario, i. 242, 244; Navarrete, i. 362.
2 Textos, 148.
127
Estas palavras características revelam o motivo da sua inflexibilidade:
um dos pontos em que incidiam os ataques dos seus adversários era o de
que as suas descobertas não correspondiam ao cumprimento do acordo cele-
brado com os seus patronos. Não encontrara um caminho para a Ásia mas
sim um
grupo de ilhas semelhantes às já conhecidas ou, talvez, próximas
de uma O regresso seguro e surpreendente de Colombo, as
terra antípoda.
cartas que enviou a correspondentes na corte e em Córdova, a sua apre-
sentação espectacular em Barcelona, com um desfile exótico e provas de
condimentos picantes, e a rápida circulação do seu relato impresso, que teve
a primeira edição em Barcelona antes ainda de Colombo ali chegar, cons-
tituíram acontecimentos espectaculares - tão intelectualmente intrigantes
como sensualmente estimulantes - que logo provocaram o aparecimento de
defensores das três possíveis teorias sobre a natureza das terras recém-des-
cobertas: os que concordavam com Colombo, os que classificavam as suas
descobertas como antípodas e os que as consideravam simplesmente como
novas ilhas do tipo já conhecido.
Do ponto de vista de Colombo, era importante que a opinião de Fernando
e Isabel coincidisse com a sua. A primeira reacção dos monarcas foi acei-
tar a autenticidade das suas reivindicações, mas não confiavam suficiente-
mente nele para se comprometerem irrevogavelmente. Durante a sua per-
manência na corte, Colombo foi tratado por todos os títulos que lhe tinham
sido prometidos pela concretização com sucesso do seu empreendimento,
mas as terras das suas aventuras recentes foram identificadas vagamente
apenas como «ilhas que descobriu nas índias». Em Agosto de 1494, os
monarcas mostravam-se mais convencidos: «Parece», escreveram a Colombo,
«que tudo o que desde o início dissestes que podia ser conseguido se reve-
lou, na sua maior parte [sic], verdadeiro, como se o tivésseis visto antes de
falardes sobre isso.» As perguntas reais, nessa época, sobre as estações do
ano nas novas terras e a sua coincidência com as de Espanha recordam algu-
mas observações sobre os Antípodas atribuídas a Posidonius, mas a ques-
tão é obscura e outros escritores tinham relacionado tais variações sasonais
com os climas orientais^
Nas negociações que em breve se iniciariam com Portugal para confir-
mação da soberania castelhana nestas áreas, os emissários dos monarcas
usaram uma linguagem ainda mais imprecisa. Apenas se nota que as chan-
celarias real e papal na altura da redacção das bulas Inter Cetera, publica-
das pouco depois do regresso de Colombo, se inclinavam para a opinião de
que o explorador encontrara um continente antípoda, pois a frase «conti-
nentes e ilhas remotos e desconhecidos» que aplicavam às descobertas pare-
cia excluir a Ásia, que não era «desconhecida», no sentido corrente, nos cír-
culos expostos à cultura clássica, mas simplesmente há muito não visitada.
128
o termo «Antípodas» foi efectivamente atribuído às ilhas de Colombo num
dos primeiros relatos saídos da corte depois da sua chegada, redigido por
Pedro Mártir de Anghiera, para informação de amigos em Itália: «Regressou
dos Antípodas Ocidentais um tal Cristóvão Colombo, de Ligúria, que difi-
cilmente obteve três navios dos meus soberanos para a viagem, pois estes
consideravam fabulosas as coisas que dizia.» Para outros correspondentes,
Pedro Mártir declarou que as descobertas de Colombo eram anteriormente
desconhecidas - pelo que mais uma vez queria dizer que não eram asiáti-
cas. Embora usasse normalmente os termos «Antípodas» e «Novo Mundo»
ou «Nova Orbe», era sempre cauteloso ou abertamente hostil quando refe-
ria a própria opinião de Colombo de que velejara para regiões próximas da
índia. A opinião de Pedro Mártir parece ter sido dominante entre os huma-
nistas italianos. Num
sermão em Roma, em 1497, um deles descreveu como
Colombo Nome
de Cristo aos Antípodas, «que anteriormente nem
levara o
sequer pensávamos existirem», e, pouco depois, outro em Florença desig-
nou a descoberta de Colombo como «o outro mundo oposto ao nosso»"*.
Eram correntes outras opiniões contraditórias. Imediatamente após a che-
gada de Colombo a Lisboa, surgiram rumores de que encontrara a mítica
terra perdida de Antillia - o que, a ser verdade, teria sido vantajoso para
Portugal, pois a lenda atribuía Antillia a fundadores portugueses. Alguns
relatos primitivos em Itália e Castela caracterizavam as descobertas como
novas ilhas Canárias - o que parecia razoável, pois estavam aproximada-
mente na mesma latitude e evidenciavam algumas semelhanças culturais.
Como a posse -das Canárias estava garantida por tratado com Castela, esta
era uma identificação de interesse político, tal como a de Antillia. Ambos
os rumores associavam as explorações de Colombo a regiões que não tinham
características asiáticas nem antípodas. A maioria dos relatos designava as
descobertas como «ilhas», sem qualquer outro compromisso pormenorizado^
Apesar de tais rumores e das opiniões de Pedro Mártir e seus amigos,
enquanto muitos estudiosos reservavam a sua opinião, outros eram levados
a partilhar da crença de Colombo segundo a qual as novas terras faziam
parte da Ásia. A própria segurança aparente do explorador - que ganhara
uma certa aura com o seu regresso seguro - e as indiscutíveis amostras de
ouro que trazia ajudaram a criar esta impressão. O duque, anteriormente
conde, de Medinaceli pediu aos monarcas de Espanha autorização para explo-
rar aboa fortuna do seu protegido de outrora, que «encontrara tudo o que
procurara», enviando caravelas para negociar especiarias. Vários italianos,
extraindo por vezes as suas informações directamente da versão impressa
do relato de Colombo, fizeram o mesmo no seu país; a sua opinião não
parece ter tido tanto peso como a de Pedro Mártir, embora o duque de Ferrara
5 Ver cap. 4, n. 19; Raccolta, III. i. 143, 146-7, 165-6, 169, 193, 196; ii. 1-6.
129
a aceitasse e supusesse que as teorias de Toscanelli deviam ter tido alguma
relevância para o sucesso de Colombo. Os eruditos em geral continuaram
a aderir aos cálculos tradicionais das dimensões do globo
e, portanto, não
130
Ferrer, assemelhava-se a um apóstolo, realizando para o Ocidente o que São
Tomás fizera para o Orientei Assim, o fugitivo da oficina de tecelagem de
Génova e do botequim de Savona ascendeu às mais elevadas posições da
adoração pagã e cristã do herói. Era, sem dúvida, um papel agradável, mas
que Colombo não podia manter por muito tempo, especialmente por lhe tra-
zer novas responsabilidades, muito para além da sua competência, como con-
selheiro cosmográfico da coroa, consultor diplomático para as negociações
com Portugal e administrador colonial no império que começara a fundar.
As negociações internacionais foram a parte mais delicada dos prepa-
rativos necessários para a fase seguinte da descoberta e exploração das
índias. O
objectivo dos Espanhóis era chegar a acordo sobre uma linha de
demarcação no mar Oceano, para da qual todas as novas terras seriam
lá
atribuídas a Castela. Os Portugueses, viajando
para leste a partir de tal linha,
ficariam com todas as terras que encontrassem nas suas explorações para
leste à volta de Africa, até que encontrassem os Castelhanos, que estariam
a navegar do Oeste. O resultado, segundo o cálculo dos Espanhóis, seria o
de assegurar todo o Oriente: só quatro anos depois os Portugueses ultra-
passaram a dificuldade da rota para a Ásia pelo cabo da Boa Esperança.
A chamada Memoria de La Mejorada - um memorando sobre o assunto
dirigido a Fernando e Isabel e recentemente atribuído a Colombo, embora
com reservas - sugere que o cabo da Boa Esperança seja considerado a linha
complementar de demarcação dividindo as terras castelhanas e portuguesas
a leste e refere a índia, a Pérsia, a Arábia e a Africa Oriental como con-
quistas a conceder a Espanha^ Durante o ano de 1493 apenas a questão dos
limites ocidentais parece ter sido levantada.
Enquanto Colombo estava envolvido nas negociações, prevaleceu o seu
próprio desejo de fixação de uma linha de norte a sul, cem léguas a oeste dos
Açores, onde lhe parecera detectar durante a viagemuma mudança de clima
para uma atmosfera mais agradável e doce. Os Espanhóis obtiveram o acordo
papal e uma bula de confirmação antes da partida de Colombo para a sua
segunda viagem, mas os Portugueses não concordavam em confinar as suas
navegações para oeste a limites tão reduzidos: nos anos seguintes, os seus
navios iriam velejar pelo Atlântico, em busca dos benefícios do comércio do
Nordeste, numa tentativa de avançar suficientemente para sul a fim de dobrar
o cabo da Boa Esperança. A situação na altura da partida de Colombo em
Setembro de 1493 foi expressa numa carta de Isabel, que revela também as
relações ainda existentes na época entre Colombo e os seus soberanos:
Don Cristóbal Colón, meu almirante do mar Oceano, vice-rei e governador das ilhas
recém-descobertas nas índias. Por este mensageiro vos envio um exemplar do livro que
^
Décadas, cf o prosopógrafo genovês de 1516 m Thacher, i. 96; Navarrete. i. 361-2.
i. I. I;
131
aqui deixastes, que se atrasou tanto porque foi feito em segredo para que os emissários
portugueses aqui não soubessem dele nem ninguém mais; e pela mesma razão foi feito
com duas caligrafias, como vereis, pela rapidez. Certamente, de acordo com o que tem
sido dito e visto nas- presentes negociações aqui, sabemos cada vez mais, de dia para
dia, sobre a importância, grandeza e natureza substancial do assunto, e nos servistes bem
nele; e colocamos grande confiança em vós e esperança em Deus que além do que vos
prometemos, que será cumprido e honrado na totalidade, recebereis de nós muita honra,
graça e aumento como é certo e como vossos serviços e méritos merecem. A carta marí-
tima que tendes que fazer enviar-ma-eis quando estiver terminada; e para me servir apres-
sareis a vossa partida para que, se Nosso Senhor é misericordioso, a carta seja come-
çada sem demora, pois deveis saber como é importante para o progresso das negociações.
E de tudo o que acontecer no vosso destino escrevei e dizei-nos sempre. Nas negocia-
ções portuguesas nada foi decidido com os embaixadores que aqui estão, embora pense
que o seu rei verá a razão no assunto. Desejaria que pensásseis de outra forma para que
não vos demorásseis portanto mas antes prosseguísseis imediatamente com a tarefa em
mãos, para evitar qualquer possibilidade de falsas esperanças^.
Visto que as questões com Portugal estão agora resolvidas, as embarcações podem
ir e vir em perfeita segurança... Foi realizado um acordo com os meus embaixadores e
sobre a questão da linha ou limite de demarcação que ainda tem que ser definida, por-
que nos parece um problema de grande dificuldade, gostaríamos, se fosse possível, que
132
participásseis nas negociações... Vede se vosso irmão [Bartolomé] ou qualquer
outra
pessoa que esteja convosco domina a questão. Informai-os com minúcia verbalmente e
por escrito e talvez com um mapa... e enviai-os de volta na próxima armada".
O
acordo a que Isabel se referia era o Tratado de Tordesilhas, de Junho
de 1494, em que os Portugueses concordaram com uma linha de demarca-
ção, em princípio, e fixaram o limite ocidental num ponto a 370 léguas para
além das ilhas de Cabo Verde - uma decisão bastante mais favorável para
elesdo que a tomada pelo papa e que acabou por assegurar grande parte do
O limite ainda por defmir era o oriental. A questão foi
Brasil para Portugal.
deixada sem solução. Talvez fosse apenas a subavaliação das dimensões do
globo por Colombo que a fez parecer um problema actual numa data tão
recuada, pois, de facto, os limites orientais da expansão espanhola e portu-
guesa iriam permanecer separados, na prática, por vastas distâncias, quase
até ao último quartel do século xvi.
A
24 de Maio de 1493, juntamente com Juan de Fonseca, então arce-
diago de Sevilha, que mais tarde se tomou administrador-geral do império
americano de Espanha, Colombo foi encarregado de preparar uma armada
em Sevilha, Cádis e outros portos. A nova expedição iria ser muito maior
e mais poderosa que a primeira, com objectivos mais vastos, incluindo a
colonização e a exploração. No regresso da sua primeira viagem, Colombo
planeara o que seria essencialmente uma colónia comercial segundo a tra-
dição genovesa, regulando o previsto comércio de algodão e mástique de
Hispaníola, a exploração do ouro e a escravização e exportação dos cani-
bais das outras ilhas. Os Arawaks de Hispaníola, entretanto, seriam evan-
gelizados e um
grupo de frades embarcou com esse propósito: infelizmente,
o historial de simpatia e compreensão profundas entre Colombo e francis-
canos como Juan Pérez e António de Mar^chena não se repetiria com os seus
colaboradores franciscanos no terreno.
Colombo não tencionava, segundo parece, instalar espanhóis perma-
nentemente nas índias, embora exprimisse uma preferência frustrada por
chefes de família que se comportariam responsavelmente e dariam estabi-
lidade à comunidade enquanto ali permanecessem. Desejava - mas não con-
seguiu obtê-los, pela natureza das coisas - artesãos especializados e pros-
pectores diligentes que se fixassem, exercendo os seus ofícios durante um
certo número de anos, criando um ritmo regular de produção e fornecimento,
descobrindo e desenvolvendo novas fontes de comércio, apoiando, se neces-
sário pela força das armas, uma exploração mais intensa e a expansão do
domínio espanhol. Gradualmente, um processo produtivo renovaria todo o
pessoal da fábrica. Como esta intenção foi manifestada nos seus actos e
políticas e frustrada na prática, seria o tema dominante da vida de Colombo
Ibid. 394.
133
e da história da sua infeliz colónia nos seis anos seguintes. Para além dos
seus objectivos colonizadores - e, em certo sentido, em conflito com eles
devido às exigências incompatíveis com o seu tempo e presença -, tinha
também um importante trabalho de exploração a realizar, incluindo a pro-
cura de muitas ilhas que só conhecia até aí pelo que diziam delas e, sobre-
tudo, a tentativa de verificar a sua convicção de que Cuba era um promon-
tório da China.
As explorações em que empenhou quando governava as índias
se
iriam ficar marcadas por tão má
fortuna como as suas aventuras coloni-
zadoras. No entanto, começaram sob o signo do sucesso e com o brilho
da esperança. Reunira, para a viagem, uma impressionante armada de
dezassete veleiros, incluindo a segura Nina, que desta vez estaria sob o
seu próprio comando. Juntou-se-lhe o seu irmão mais novo, Giacomo,
agora chamado Diego Colón à maneira espanhola, atraído de Génova pela
fama de Colombo. Todo o grupo atingia provavelmente mais de trezen-
tos homens, incluindo mais de duzentos voluntários - os únicos mem-
bros da força de intervenção sem salário pago pelos monarcas - e vinte
cavaleiros, cujo comportamento
altivo e montadas inferiores iriam ofen-
der Colombo. Não
poderia haver maior prova de confiança por parte dos
seus patronos ou da concordância do mundo do que a dimensão e a gran-
deza aparente da expedição. A partida foi grandiosa e com tal ruído de
música e salvas que, segundo um participante, «as Nereidas e as próprias
Sereias ficaram estupefactas»^^.
A sua rota por Comera levou-os desta vez rapidamente para sul do rumo
anterior de Colombo, de forma que avistaram terra pela primeira vez na
Dominica, nas Pequenas Antilhas, a 3 de Novembro de 1493. Apenas na
segunda tentativa Colombo descobrira a rota mais curta e mais rápida atra-
vés do Atlântico. Não se destinava a uma exibição de virtuosidade na nave-
gação: Colombo prosseguia a ambição deixada por cumprir no fim da sua
primeira viagem, isto é, seguir as indicações dos índios, que o levariam às
ilhas reputadamente ricas a sudeste de Hispaníola. Uma cadeia de novas
ilhas foi descoberta quando rumou para norte e se dirigiu a Hispaníola ao
longo de uma rota que o conduziu a Porto Rico ou San Juan Bautista, como
lhe chamou, através do coração da zona dos canibais. As primeiras grandes
investigações em terra foram feitas na ilha de Guadalupe (hoje chamada
Guadeloupe), assim denominada em honra do grande santuário da Estremadura
que Colombo visitara pouco antes da sua partida de Espanha.
Se Colombo, em tempos, duvidara da existência do canibalismo, via-se
agora confrontado com o que os seus homens interpretaram como as suas
provas irrefutáveis. O médico da expedição, Diego Alvarez Chanca, que se
12 Cartas, 183.
134
lhe juntara - aparentemente porque subestimara o desconforto c sobreava-
liara o pagamento'^ -, registou o facto numa carta para o conselho munici-
pal de Sevilha:
Inquirimos das mulheres que eram prisioneiras dos habitantes que tipo de gente
estes ilhéus eram e responderam «Caribes». Logo que compreenderam que abi)mma-
mos tal tipo de gente devido à sua malvada prática de comer carne humana, ficaram
encantadas... Disseram-nos que os homens caribes as usavam com tal crueldade que
dificilmente se acreditaria e que comem as crianças que lhes dão, apenas criando aque-
lesque têm das suas mulheres nativas. Os inimigos homens que conseguem capturar
vivos trazem-nos para suas casas para fazer delesum banquete e os que são mortos
no campo de batalha comem-nos depois de terminar o combate. Declaram que a carne
do homem é tão boa para comer que nada no mundo se lhe pode comparar; e isto c
bem evidente pois dos ossos humanos que encontrámos nas casas tudo o que podia
ser roído já o fora de forma que nada restava senão o que era demasiado dificil de
comer. Numa das casas encontrámos o pescoço de um homem a cozer numa caçarola...
Nas suas guerras com os habitantes das ilhas vizinhas, estas gentes capturam todas as
mulheres que podem, especialmente as que são jovens e belas, e mantêm-nas como
servas e concubinas; e tão grande número arrebatam que nas cinquenta casas em que
entrámos não encontrámos nenhum homem mas apenas mulheres. Desse grande número
de mulheres cativas, mais de vinte, das mais belas, vieram voluntariamente connosco.
Quando os Caribes levam rapazes como prisioneiros de guerra tiram-lhes os órgãos,
engordam-nos até crescerem e depois, quando querem fazer um grande banquete,
matam-nos e comem-nos, pois dizem que a carne das mulheres e dos jovens não é boa
para comer. Três rapazes assim mutilados vieram ter connosco a fugir quando visitá-
'3
Ver A. Tio, El doctor Diego Alvarez Chanca (Barcelona, 1966), e a caracterizaçào in
Décadas, iii. 6. 4.
14 Cartas, 159-60.
'5
Textos, 154. Ver, e. g. entre fontes a que Colombo teve acesso, Plínio, Historia Saturalis,
135
Dominados por presságios induzidos pelos seus encontros com os
canibais, os Espanhóis passaram por Porto Rico, cujo povo, segundo decla-
rou Chanca, ignorava a arte da navegação, o que era pouco provável. Por
fim, sem hesitação ou erro por parte de Colombo, chegaram à vista de
Hispaníola a 22 de Novembro. Esta nova prova da perícia de Colombo
no mar deixou espantado o seu amigo e companheiro de viagem Michele
de Cuneo. «Em minha opinião», escreveu este, «desde que Génova é
Génova nunca nasceu um homem tão conhecedor e perito na arte da nave-
gação como o dito senhor almirante.» Salientou um tipo de aptidão de
que Colombo iria dar muitas provas notáveis durante o resto da sua car-
reira: «bastava-lhe ver uma nuvem ou uma estrela de noite» para saber
prever o tempo^^. Era, talvez, outro exemplo da forma como a sua sen-
sibilidade, frequentemente tão desajustada nas relações humanas, estava
bem sintonizada com a Natureza. No entanto, será talvez errado atribuir
esta rota deDominica a Hispaníola apenas aos dons intuitivos de Colombo.
Levava guias índios que conheciam bem as águas devido às viagens de
canoa que nelas efectuavam.
Era uma zona desconhecida da costa de Hispaníola aquela com que
foram confrontados à chegada, mas não perderam muito tempo em rodeá-
-la para norte para o forte de Navidad, que estava há mais de dez meses
da guarnição de Navidad tinham sido todos mortos. Colombo não quis acre-
ditar nas notícias, mas estas foram macabramente confirmadas pelas provas
que a luz da manhã seguinte revelou. Navidad ardera totalmente e os trinta
e nove espanhóis que ali tinham ficado tomaram-se as primeiras baixas de
uma longa série de guerras coloniais no Novo Mundo. O receio dos índios
locais de poderem vir a ser considerados culpados levou-os a dispersarem-
-se e a esconderem-se, aumentando assim as naturais suspeitas dos Espanhóis.
Colombo inclinava-se a dar-lhes o benefício da dúvida, atribuindo talvez o
massacre aos Caribes ou aceitando a versão de Guacanagarí de um ataque
vingativo levado a cabo por um chefe do Haiti Oriental, em consequência
de atrocidades cometidas pelos cristãos na ilha.
Quando se provou que a ferida de Guacanagarí era apenas de conve-
niência, rebentou uma controvérsia entre os exploradores. A facção que exi-
gia vingança era chefiada, inadequadamente, pelo chefe missionário Fray
Bernardo Boil, cuja caridade evangélica parece por vezes ter sido obscure-
16 Cartas, 259.
136
cida por natural despeito. Las Casas resume uma fonte perdida da autoria
do próprio Colombo:
37
I
Colombo acalmou as apreensões de Guacanagarí e restabeleceu as boas
relações entre os Espanhóis e os habitantes locais, oferecendo-lhe um grande
presente constituído por contas de vidro, facas, tesouras, sinos de estanho,
no valor total de quatro ou cinco reales (136-
alfinetes, agulhas e esporas,
-170 maravedis), e «com
Guacanagarí acreditou que se tomara muito
isso
rico»^°. A tarefa a empreender era a escolha de um local para uma cidade
permanente - uma das embarcações fora sacrificada para o efeito, forne-
cendo madeira e pregos - e a exploração do interior do país, punindo ao
mesmo tempo os nativos considerados responsáveis pelo massacre de Navidad.
Já desapontado nas suas expectativas em relação aos nativos, Colombo estava
rapidamente a desiludir-se também com o clima e o terreno; os seus homens
sofriam com o ambiente e a alimentação desconhecidos e o gado que trou-
xera de Espanha para abastecer a nova colónia mostrou pouca adaptabili-
dade. Ao escolher a localização para a povoação, teve que optar entre as
exigências prementes de rapidez, por um lado, e uma situação salubre, por
outro. Fixou-se num local pantanoso e com pouca água, apenas porque estava
próximo^ ^ A 2 de Janeiro de 1494, apenas dois anos após o início do seu
empreendimento, foi fundada em cerimónia solene a cidade de Isabela, a
primeira e a mais infortunada cidade do Novo Mundo.
Para explorar a ilha e aí instalar guarnições, Colombo depositava grande
confiança em dois dos seus subordinados, Alonso de Hojeda (um homem
do duque de Medinaceli e futuro companheiro de Vespucci) e Pedro Margarit,
que, depois de suscitar em Colombo os habituais extremos de amizade e
inimizade, em breve regressaria a Espanha para apresentar queixas contra
o almirante. Nenhum deles parece ter compartilhado o entusiasmo sincero
de Colombo pelas índias ou ter sido motivado por quaisquer ideais cientí-
ficos ou evangélicos. Tal como a maioria dos seus companheiros, estavam
interessados no lucro e tinham vindo para Hispaníola atraídos pelo ouro e
não pelo povo ou território. Colombo colocou Margarit numa fortaleza à
beira do rio, no interior, com o objectivo de recrutar índios para procura-
rem ouro no leito do rio, permitindo a Hojeda que percorresse a ilha em
busca das riquezas minerais e dos culpados do massacre de Navidad. O mau
tratamento que infligia aos nativos culminou com a execução de um chefe
local por um roubo cometido por membros da sua comunidade - um assas-
sínio legalizado em que o próprio Colombo foi conivente, em parte devido
a um falso sentido de justiça, em parte pela pressão dos seus subordinados
e em parte ainda pelas suas próprias dúvidas sobre a forma de tratar os
índios. Os nativos revelavam-se uma ameaça potencial, não reagiam à evan-
gelização como Colombo esperara, constituíam uma força de trabalho pouco
produtiva e, na medida em que não se comportavam como Colombo pre-
138
vira, estavam a minar a sua autoridade quer perante os seus patronos quer
junto dos seus homens. Nestas circunstâncias, Colombo dispôs-sc a fazer
deles um exemplo. Foi outro grave erro. O derramamento de sangue aumen-
tou a beligerância do «movimento de resistência». Enquanto o maleável
Guacanagari permanecia calmo, o chefe culpado pelo desastre de Navidad,
Caonabó, atingia o auge do que os Espanhóis chamavam «rebelião». Quando
não desfrutavam da superioridade numérica, os exploradores estavam con-
tinuamente em perigo.
A deportação e a escravização dos nativos em grande escala, tal como
haviam sido praticadas na conquista das ilhas Canárias, constituíam a única
solução que Colombo conhecia e, no inicio de 1494, decidiu-se a começar
o envio de índios para o Velho Mundo. Era insensível às contradições ine-
rentes à sua política, pois propunha-se exportar a mesma força de trabalho
em que planeara basear-se. Estava igualmente a infringir as instruções explí-
citas dos monarcas quanto ao tratamento benigno dos nativos e a iniciar
uma linha de conduta que a
lei canónica condenava pelos seus efeitos nega-
22
Las Casas, i. 378.
23
Textos, 147-62.
139
uma, as anteriores falsas previsões de Colombo - sobre o ouro, o clima, os
índios - são afastadas e exposta a terrível realidade da vida numa fronteira
selvagem. Colombo entrelaça desculpas com as confissões; alguns dos desas-
tres - como o massacre, o pior de todos - são relatados apenas obliqua-
mente. Caonabó é mencionado apenas como «um homem muito mau e, o
que é mais, muito corajoso». Colombo volta-se rapidamente para uma visão
do futuro da ilha, a que dedica muito espaço e pormenor. Embora expressa
com entusiasmo e premência, como penhor futuro para fracassos presentes,
a visão é, sob muitos aspectos, triste. As ilhas serão transformadas em ver-
vras nativas com nomes de locais mencionados por Marco Pólo. Afirmou
24 Ibid. 238.
140
que as pegadas de grandes animais, incluindo grifos, indicavam a natureza
asiática da sua descoberta. Esta não era a afirmação sem fundamento que à
primeira vista parece, pois na verdade pensava-se - como Pedro Mártir, por
exemplo, e outros eruditos - que os grandes animais apareciam apenas cm
terras continentais. Por outro lado, nunca existiram grandes quadrúpedes em
Cuba e as visões de grifos por Colombo só podem ter sido ilusões fruto de
uma imaginação angustiada, estimulada pelos efeitos febris da frustração,
da falta de sono e do excesso de trabalho. A afirmação feita por um mem-
bro da sua tripulação de ter visto um homem vestido de branco na ilha levou
Colombo a obter, de informadores nativos, a lenda de um «rei santo de gran-
des estados que tinha províncias infinitas e usava uma túnica branca». Parece
que Colombo procurava atribuir aos índios a imagem de Prestes João, o
mítico príncipe cristão que alguns autores reputados localizavam em África
e outros no coração do Oriente^^ Exactamente na mesma época, um emis-
sário português, Pêro da Covilhã, saudava o negus da Abissínia sob o mesmo
nome e título.
Finahnente, o elemento crescentemente familiar da síndroma de Colombo,
a obsessão por Jerusalém, começou a quando falava aos seus homens
ressurgir
de deixar as ilhas para circum-navegar o mundo
e regressar a Espanha via
Calicut e o Santo Sepulcro. A última ocasião conhecida em que Colombo
falara do seu projecto de Jerusalém foi no fim da sua primeira viagem,
quando meditava ansiosamente sobre as consequências da perda da Santa
Maria e acalentou a esperança de que a guarnição de Hispaníola recolhesse
tanto ouro «que em três anos os monarcas planeassem e se preparassem para
ir conquistar os lugares santos». «Se alguma vez afastar o pensamento de
vós, oh Jerusalém, que a minha língua se cole ao céu da boca!» Para Colombo,
o pensamento de Jerusalém parece ter actuado como uma forma de peni-
tência,quando a sua consciência estava inquieta e a sua confiança abalada-^.
Depois de mais de três semanas de navegação difícil ao longo da costa
cubana, alimentado pela frustração e pela fantasia, Colombo decidiu aban-
donar a exploração de Cuba. Convenceu-se de que explorara 370 léguas da
costa - uma total sobreavaliação - e afirmou que nenhuma ilha podia ser
tão grande. Nessa base, convocou o escrivão de bordo, que combinava as
funções de escrivão e notário público, para registar o juramento de quase
todos os homens da armada segundo o qual Cuba era um continente e que
nenhuma ilha de tal grandeza fora alguma vez conhecida. A declaração era
falsa em ambos os aspectos, mas Colombo estava tão atormentado pelas
suas experiências sombrias que se encontrava agora fora da influência da
razão e os homens pouco tentaramdiscutir com ele. Juraram, além disso,
25
Bemáldez, 322; Epistolario, i. 307-8, 318.
26
Bemáldez, 309; Textos, 101.
41
I
uma afirmação precipitada para se jurar - e prometeram seguir a opinião
que tinham jurado sob pena de uma multa de dez mil maravedis e a perda
da língua por excisão^^. A exigência de tal juramento e a ameaça de castigo
tão brutal não eram actos de um homem com autocontrolo racional. O único
aspecto que se pode invocar em defesa de Colombo, além das circunstân-
cias atenuantes, é que pode ter sido vítima de um erro de cálculo. De facto,
aproveitara a oportunidade dada por um eclipse, na Hispaníola Ocidental,
para tentar calcular a longitude. Mediu a diferença horária em relação a
Cádis, onde a tabela que possuía dos previstos momentos de eclipse fora
presumivelmente realizada, obtendo cerca de dez horas, a que correspon-
diam 150 graus de longitude, e que, para um teórico do mundo pequeno,
poderia razoavelmente ter significado a vizinhança da China. Colombo par-
tilhou a maldição do candidato a exame: o método certo, a resposta ampla
e alarmantemente errada^^
Mais ainda, Colombo parece ter sentido no seu íntimo que estava a per-
petrar uma mentira. O seu amigo de Savona, Michele de Cuneo, foi dis-
pensado do juramento e a cláusula do castigo mostra como Colombo estava
pouco seguro do apoio dos seus homens às suas reivindicações. A maioria
da tripulação realizou provavelmente o juramento apenas para acalmar o
almirante ou por receio de que tentasse executar a sua ameaça de circum-
-navegar o globo via Jerusalém. Em Espanha, ninguém parece ter conside-
rado seriamente, por muito tempo, o mito de uma Cuba continental, embora
um intrigante promontório mostrado na tradição cartográfica primitiva do
Novo Mundo (o do mapa Cantino de 1502) possa representar uma tentativa
de mostrar uma Cuba tanto insular como continentaP^.
27
Cartas, 217-23.
28
Las Casas, i. 390; Raccolta, III. ii. 190-1, fo. 59v; Textos, 311, 319-20.
29
Las Casas, i. 389; as dúvidas de Pedro Mártir surgem de uma comparação do Epistolado,
318, com. Décadas, iii. 12.
142
tes que chegaram até nós: com a armada seguinte, por exemplo, Colombo
teve que enviar documentos justificando-se da falsa acusação de desvio do
ouro reaP. Um memorando anónimo de 1496, elaborado por um crítico que
conhecia sem dúvida Hispaníola directamente, mostrou como era pequena
a quantidade de ouro que existia em relação às promessas de Colombo,
como os índios eram incapazes de fornecer as quantidades que lhes eram
exigidas, como as chamadas especiarias de Hispaníola não tinham valor e
como o algodão era a mais prometedora das fontes potenciais de comér-
cio^'. Somos tentados a supor que os frades se opunham à política de escra-
143
I
Colombo fermentava entre os seus amargurados subordinados; as culturas
trazidas da Europa não vingavam em solo desconhecido e os abastecimen-
tos trazidos de Espanha tinham-se esgotado na Primavera de 1494. A pro-
dução de ouro baixara quando se esgotaram os artefactos nativos; a extrac-
ção tinha ainda um nível modesto e era empreendida de forma artesanal.
Colombo, que em Cuba parecera estar à beira de um esgotamento total,
reagiu a estes problemas com o tipo de resiliência e energia que frequente-
mente demonstrava durante as crises. O seu objectivo predominante era
silenciar os seus detractores e travar a corrente de calúnias e queixas que,
se não fosse reprimida, alienaria o precioso favor dos monarcas e poria em
perigo tudo o que conseguira. Como resultado, os expedientes de curto prazo
tomaram o lugar do planeamento a longo prazo e os interesses dos nativos
foram esquecidos no esforço desesperado para apaziguar os colonos. Além
de prosseguir a política desastrosa de escravização, Colombo adoptou dois
métodos para resolver o problema índio: a acção punitiva rigorosa e a exac-
ção de tributo, apoiadas pela construção de uma cadeia de fortes. Esta polí-
ticacondenou os índios, que nunca anteriormente tinham enfrentado traba-
lho duro ou imposto pesado, ao sofrimento, ao desespero e em muitos casos
à morte prematura, provocados pela tensão exercida. Colombo, que não
podia antever o impacte do «choque cultural» pela imposição de valores do
Velho Mundo na América, foi culpado de juízo errado mais do que de mal-
dade, juízo errado acrescido do facto do tributo poder, na melhor hipótese,
ser eficaz apenas como solução temporária. Os nativos podiam ser obriga-
dos a entregar os pequenos objectos de ouro que tinham acumulado ao longo
de muitos anos de lenta extracção de minério impuro em locais recônditos,
mas, enquanto não fosse planeada a exploração sistemática do ouro da ilha,
não havia perspectivas de manter o fluxo de ouro em mãos espanholas. Em
tal situação, uma vez esgotadas as antigas reservas dos índios, nada have-
ria para as substituir. Por outro lado, o algodão com que Colombo se pro-
punha compensar o défice provocado pela falta de ouro era um substituto
sem interesse. Em defesa desta política deve dizer-se que algum tributo teria
que ser exigido como sinal da vassalagem que, pelas ordens do papa, os hidios
deviam agora aos monarcas espanhóis; e, visto que a colónia representava
um empreendimento caro para a coroa, era essencial que fornecesse rapi-
damente algum rendimento.
As medidas punitivas adoptadas por Colombo eram suficientemente rigo-
rosas e amplas para justificar a sua vanglória posterior de ter «conquistado»
Hispaníola. A partir de fins de 1494, uma série de campanhas levou Colombo
a Hojeda e Bartolomé Colón a quase todos os pontos da ilha. Colombo espe-
rava grandes resultados da captura de Caonabó, efectuada por Hojeda, uti-
lizando um embuste durante falsas negociações em que, segundo se pensa,
persuadiu o chefe a colocar «pulseiras» que eram na verdade algemas. Porém,
a agitação e a resistência índias não foram afectadas, tendo talvez sido esti-
144
I. Impresso inicialmente em Barcelona em Abril de 1493. o prcsumi\cl primeiro
relato da descoberta de Colombo venda que rapidamente se lhe segui-
teve tal
conhecida de retratar Colombo. A cena da ilha ilustra o texto com exactidão: «As gentes de
[Hispaníola]... andam todas nuas... embora algumas das mulheres se cubram apenas num lugar com
uma folha ou um bocado de algodão... Não usam armas à excepção de paus... Muitas vezes enviei
dois ou três homens a uma aldeia e uma multidão incontável de habitantes saiu e todos fugiram.»
As palmeiras «que são uma maravilha de se ver» estão também no texto. Em segundo plano, não
relacionadas com o texto, evocações dos bohíos nativos assemelham-se a desenhos primitivos ao
natural. Contrastam com as construções elaboradas em xilogravuras primitivas. O majestoso rei
Fernando ilustra o papel da Carta na apresentação das reivindicações políticas castelhanas. Cf ilus-
tração 1 e p. 124.
m
IMM
V. Neste mapa-múndi adquirido por Alberto Cantino, agente do duque de Ferrara em Lisboa, antes
de Novembro de 1502, o principal objectivo consistia em retratar «as ilhas recentemente desco-
bertas nas regiões das índias». A linha de Tordesilhas - definida pelo tratado de 1494 entre as
zonas de expansão castelhana e portuguesa - forma o traço grosso de norte a sul, com o Brasil
aproximadamente na relação correcta com ela. As Caraíbas estão marcadas com a legenda «As
Antilhas do Rei de Castela, descobertas por Colombo, que é o Almirante dessas ditas ilhas, que
foram descobertas por ordem do mui alto e poderoso príncipe. Rei Fernando, rei de Castela». A
reprodução das Pequenas Antilhas, Hispaníola e Jamaica reflecte os relatos de Colombo. Cuba é
assinalada duas vezes, como ilha e como continente (a não ser que uma descoberta não registada
da Florida ou do lucatão seja considerada como explicação para a península à esquerda). São apre-
sentadas mais ilhas Baamas do que as que Colombo conhecia directamente. Ver pp. 141-142.
VI. Tal como o mapa de Piri Re 'is (ilustração VIII), o mapa assinado por Juan de la
Cosa mostra o Novo Mundo como uma massa de terra contínua mas suprime o istmo,
onde Colombo procurou um estreito na sua última viagem, apresentando uma grande
imagem - demasiado apagada para reprodução - de São Cristóvão transportando o
Menino Jesus, talvez aludindo ao papel que Colombo se atribuiu de «Christo ferens»
ou «portador de Cristo». Embora se encontrem várias rosas-dos-ventos espalhadas
pelo mapa, a da Virgem é a maior e a mais destacada, atravessada sobre o trópico de
Câncer em posição central. O estilo assemelha-se ao de uma xilogravura, de que se
pode presumir ter sido copiada. Embora apresentada com o Menino Jesus e acompa-
nhada por anjos, em vez de coroada e acompanhada pela Santíssima Trindade, a sua
representação evoca o tipo de retábulos que se presume estarem representados na assi-
natura mística de Colombo. Ver pp. 150-151.
TABVLA TER l\0\ E
VII. Quando Martin Waldseemuller publicou o seu vasto mapa-múndi para ilustrar uma nova
edição de Ptolemeu em Estrasburgo em 1507, atribuiu um lugar de honra a Vespucci, retratando-
-o em posição dominante, como descobridor do Novo Mundo, em lugar e posição equivalentes
aos do próprio Ptolemeu. A Tabula Terre Nove, publicada em 1513, reparou a injustiça inse-
rindo a legenda (visível à esquerda): «Esta terra com as ilhas adjacentes foi descoberta por
Colombo o Genovês por ordem do Rei de Castela.»
Ao contrário dos mapas de Cantino, de La Cosa e de Piri Re'is (ilustrações V, VI e VIII), este
não se assemelha de forma alguma a uma carta de marear. Em vez da delicada rede de linhas
lo.xodrómicas, destinadas a fornecer aos marinheiros rotas para determinar a direcção ponto a
ponto, este mapa substitui um método «científico» de ordenação, tendendo para a rede de coor-
denadas proposta por Ptolemeu. Cf. p. 108.
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VIII. A
reacção otomana às descobertas de Colombo é exemplificada pela obra
de Piri Re'isde 1513. Este afirmou que entre as fontes do seu mapa se encon-
travam mapas feitos pelo próprio Colombo e apreendidos no mar por Kamal
Re'is em 1501. A longa nota à esquerda, perto do «pescoço» do pergaminho,
resume a primeira travessia do oceano feita por Colombo. A apresentação das
Pequenas Antilhas recorda a segunda viagem de Colombo e assemelha-se ao
mapa de Juan de la Cosa, feito alguns anos antes. Piri Re'is surpreendeu os
seus compatriotas copiando as convenções, tanto cartográficas como pictóricas,
dos seus contemporâneos cristãos. O pormenor dos acampados no dorso de uma
baleia ilustra um episódio da lenda de São Brendan. Ver p. 67.
muladas como resultado. A «boa colheita», como Las Casas ironicamente
chamava à guerra, serviu apenas para quebrar a produção e esgotar os efec-
tivos militares. A afirmação de Las Casas, segundo a qual teria eliminado
dois terços da população, é sem dúvida pouco fiável - mas um aconteci-
mento tem que ser suficientemente terrível para a lenda lhe atribuir tais pro-
porções. Pedro Mártir, cuja visão dos nativos era mais fria que a de Las
Casas, calculou os mortos em cinquenta mil, culpando a fome provocada
pela táctica de terra queimada dos índios. Gonzalo Femández de Oviedo,
que partilhava da maioria dos preconceitos contra os índios e atribuiu a
culpa da explosão de violência à sua relutância em colaborar com os inva-
sores, falou de inúmeras vítimas^"^.
Enquanto os índios ou os subordinados de Colombo - particularmente
Alonso de Hojeda - tendiam a ser culpados por iniciarem o derramamento
de sangue, era atribuído a Colombo, nas mesmas fontes do século xvi, o
crédito por tê-lo terminado. No fim de Março de 1495 conduziu uma impres-
sionante coluna ao coração da ilha: com 200 homens da infantaria espa-
uma força de auxiliares nativos chefiada
nhola, vinte cavalos e vinte cães e
por Guacanagarí, dispersou os insurrectos como «bandos de pássaros». No
centro de Hispaníola, Colombo construiu um novo forte denominado
Concepción de La Vega e recebeu actos de submissão e promessas de tri-
145
1495. Ele e Colombo conheciam-se bem. Constituía outro exemplo da inca-
pacidade de Colombo de manter como amigo um colaborador. Como mem-
bro da expedição que realizou a segunda travessia do Atlântico, granjeou
os elogios do comandante por «ter servido bem e fielmente». Mas alguma
desconhecida mudança súbita em relação à causa de Colombo levou-o a
regressar a Espanha, presumivelmente com Boil e Margarit. Estava assim
profundamente marcado aos olhos de Colombo como membro de uma fac-
ção inimiga. Desconhece-se o que terá revelado contra o seu antigo senhor,
ao regressar, dispondo de todas as possibilidades de o ofender. As próprias
referências subsequentes de Colombo ao episódio sugerem satisfação pelo
seu resultado. A experiência parece tê-lo convencido de que a luta pela auto-
ridade na sua colónia só poderia ser ganha na corte e preparou a retirada
para Espanha, talvez para especificamente se defender do relato de Aguado,
no início de 1496.Considerada segundo determinada perspectiva, a sua par-
tida assemelha-se a uma fuga a problemas insolúveis e a circunstâncias desa-
gradáveis. No entanto, vencera a crise mais adversa: restaurara uma paz
difícil na colónia, vendera os índios e comprara os colonos e recuperara a
146
«A VOSSA VONTADE DE CONTINUAR
ESTE EMPREENDIMENTO»
147
Taprobana nas índias; ou o imperador Nero, que enviou outra às nascentes do Nilo...
Nem foi útil dizer que nunca lera que os príncipes de Castela alguma vez tivessem con-
quistado território fora de Espanha e que estas terras são outro mundo que os Romanos
e Alexandre e os Gregos tinham procurado conquistar com grande exercício de armas;
nem que tiveram a coragem de perse-
salientar os presentes feitos dos reis de Portugal,
verar na Guiné e nas descobertas a partir Quanto mais dizia, mais as calúnias que
daí...
'
Textos, 204.
2 Ibid. 203.
^ Las Casas, i. 486.
148
são de licenças para a exploração mineira, o fomento da agricultura, a vigi-
lância do comércio, a distribuição das propriedades dos colonos falecidos.
Fez alguns investimentos no embarque de produtos alimentares para a coló-
nia e iniciou negociações com banqueiros genoveses de Sevilha para obter
o financiamento de uma terceira travessia"*. No Verão de 1497 passou algum
tempo em retiro na casa franciscana de La Mej orada, onde - como mais
tarde recordou - redigiu propostas para uma cruzada contra Meca e para
uma viagem a Calicut para compra de especiarias - ambas, presumivel-
mente, por via oeste^ Calicut era o destino de Vasco da Gama na grande
viagem então em preparação em Portugal e os pensamentos de Colombo
podem ter sido estimulados por um propósito emulo.
As dúvidas que obscureciam a visão dos monarcas sobre o seu desco-
bridor foram afastadas ou, pelo menos, temporariamente postas de parte no
início de 1498. Em Fevereiro desse ano estava a preparar activamente a sua
partida para uma aventura que se destinava a expandir a colonização de
Hispaníola e a aumentar o âmbito da exploração das índias. Ostensivamente,
recuperara a confiança total dos monarcas, com a realidade dolorosamente
evidente de que o seu favor era agora provisório - dependente de um êxito
sólido. O mais curioso dos documentos que redigiu antes de partir é o vín-
culo dos seus bens, feito em Sevilha a 22 de Fevereiro de 1498^. A dispo-
sição dos monarcas de lhe permitir a redacção deste vínculo foi um sinal
muito claro do seu renovado favor, concedido - em regra - apenas a famí-
lias aristocráticas a quem desejavam particularmente beneficiar e cujos bens
^ Textos, 179-88.
5 Navarrete, i. 222.
6 Textos, 190-9.
149
nava eram normais «em pessoas da nobreza». Encarou repetidamente a trans-
missão do vínculo «em perpetuidade» e «de geração em geração». Comparou-
-se explicitamente ao almirante de Castela, cujo título era hereditário.
A enorme ambição social, a grande força impulsionadora da sua vida, arran-
cara-o ao tear de tecelão e continuava a embelezar a sua visão do futuro.
O segundo tema é constituído pelas referências aos termos do seu
acordo com os monarcas. Este estava obviamente muito relacionado com
os seus fins: era a base da sua reivindicação de títulos de nobreza trans-
missíveis e de recompensas materiais em que esperava basear a grandeza
da sua casa. Parece que a insistência de Colombo, no entanto, ultrapassou
o que seria razoável e traiu a sua ansiedade quanto às perspectivas de con-
seguir o cumprimento do seu contrato com a coroa: daí, em parte, a insis-
tência na extensão das suas descobertas, prova de que cumprira a sua parte
do acordo com os patronos e a sugestão de autoridade divina para a rei-
vindicação de ter descoberto as índias - «agradou a Nosso Senhor
Omnipotente... Nosso Senhor deu-me a vitória... A Santíssima Trindade
colocou na minha mente o pensamento, que depois se tomou conheci-
mento perfeito, de que podia navegar para as índias a partir de Espanha
atravessando o mar Oceano para oeste». As perspectivas de que Colombo
obtivesse, na prática, as recompensas que reivindicava tomavam-se mais
problemáticas devido ao seu cálculo extraordinariamente exagerado >do
que lhe era devido: 25% de todo o rendimento do Novo Mundo. Fernando
e Isabel nunca se dispuseram a admitir que tinham concedido mais do que
a décima parte do seu próprio quinhão, constituído por um quinto do que se
pudesse obter, sujeito a imposto real.
Embora esta quantia, por si só, fosse suficiente para enriquecer qual-
quer indivíduo ou família, as somas de dinheiro com que Colombo jogava
na sua imaginação eram fantásticas. As ambições pecuniárias irrealistas
constituem o terceiro grande tema do documento. Colombo previa fortunas
de milhões, amontoadas por ramos colaterais da sua família, distribuindo
dotes aos parentes pobres, aumentando liberalmente doações caritativas e
acumulando dinheiro para a sempre prometida campanha de libertação de
Jerusalém. Esta referência esotérica à cidade milenar deverá, talvez, ser con-
siderada em conjunto o quarto tema - o da assinatura críptica de
com
Colombo, cujo uso foi ordenado a todos os seus herdeiros directos. Esta
invenção apareceu pela primeira vez num documento de 1494, tendo subs-
gradualmente outras formas da assinatura de Colombo. Era disposta
tituído
em colunas e três linhas: a primeira linha continha um «S» maiúsculo
três
rodeado de pontos na coluna central; a segunda um «S», um «A» e um «S»
em cada coluna, divididos por pontos, e a terceira um «X», um «M» e um
«Y», igualmente distribuídos mas sem pontos. Por baixo, os seus herdeiros
deveriam escrever «el Almirante» («o Almirante»), sem mais esclarecimento.
O significado desta estranha invenção é deixado totalmente sem explicação.
150
Alain Milhou considerou recentemente que a disposição dos símbolos pro-
cura corresponder a imagens da iconografia tradicional da Coroação da
Virgem, representando cada «S» uma das Pessoas da Santíssima Trindade
(«Sanctus, Sanctus, Sanctus», na alusão litúrgica), agrupadas em tomo da
coroa da Virgem, e representando o «X» e o «Y» São Cristóvão e São João
Baptista respectivamente - ambos, como a própria Virgem Maria, «porta-
dores» de Cristo ou em Seu nome para o mundo. Cristóvão, o santo com o
mesmo nome de Colombo, sustinha Cristo nos seus ombros, Maria susti-
nha-0 no seu forma do Logos Divino,
seio e João Baptista sustinha-0, sob a
na boca, nas palavras que pronunciava para preparar o Seu caminho. Este
último papel era análogo ao que Colombo posteriormente atribuiu a si pró-
prio como «mensageiro de um novo céu» e anunciador do Evangelho num
novo mundo^ Colombo, fazendo um jogo de palavras com o seu nome, inti-
tulava-se frequentemente «Christo ferens» - «portador em nome de Cristo»;
não teria sido estranho à sua natureza imaginar-se em companhia
de san-
tos. Se esta interpretação for correcta, não exclui necessariamente outras
leituras possíveis da assinatura, a qual pode bem ter sido destinada a ser
interpretada a vários níveis^ Colombo dedicou a viagem a realizar em Maio
de 1498 à Santíssima Trindade. Juntamente com os modos agressivamente
austeros que adoptou na altura, o seu esforço para perpetuar o uso da assi-
natura mística é um
testemunho da sua crescente repulsa, devido à
forte
desilusão, pelos padrões mundanos de
sucesso. Os seus interesses estavam
a voltar-se para o significado potencial do seu próprio papel de filho da pro-
fecia, providencialmente designado.
Porém, esta reflexão tem que ser colocada em contraste com a versão
limitada do futuro dos índios, revelada no documento que criava um vín-
culo. Não era, evidentemente, o contexto apropriado para uma exposição
pormenorizada dos planos de Colombo para a colónia que fundara. É notá-
vel, porém, que apenas três pequenas fundações religiosas fossem especifi-
camente referidas no documento, que este incluísse doações substanciais
para os membros da dinastia de Colombo e apenas uma doação muito modesta
para dar uma base doutrinal sólida à evangelização do Novo Mundo, que
todas as doações fossem mesquinhas em comparação com as quantias atri-
buídas à glorificação dos descendentes de Colombo e que um dos princi-
pais objectivos a que se iria consagrar a fundação, prevista por Colombo,
da igreja de Santa Maria de la Concepción fosse a exibição dos termos do
vínculo como um memorial perpétuo - e, por consequência, uma advertên-
151
cia perpétua aos seus herdeiros. Além disso, o documento determinava o
desvio de dízimas para enriquecimento do irmão de Colombo, Bartolomé,
e dos seus herdeiros, até à acumulação de uma fortuna substancial. Se a
devoção de Colombo era sentida no seu coração, não se destinava, eviden-
temente, a ser sentida no seu bolso. O paradoxo nunca foi assinalado e
poderá nunca ser resolvido. Talvez a caridade prática ou as igrejas de pedra
sejam facilmente esquecidas ou ignoradas por aqueles cujo cristianismo tem
um sabor fortemente místico.
Finalmente, o vínculo refere dois temas que terão estado associados na
mente de Colombo: o orgulho pela sua origem genovesa e a insatisfação
implícita em relação aos seus soberanos espanhóis. O primeiro é demons-
trado pelas constantes afirmações de Colombo sobre o seu nascimento geno-
vês, pelos seus elogios a Génova e ao Banco do Estado genovês e pelo
desejo de manter uma casa, à sua custa, naquela cidade para sempre. A expec-
tativa afirmadapor Colombo de que Génova ajudaria a sua descendência
no futuro poderá ter tido a intenção de apresentar, para os monarcas, uma
ressonância ameaçadora juntamente com as suas afirmações de que viera
de Génova para os servir. Subentende-se que a trajectória poderia ser inver-
tida e os seus serviços devolvidos à cidade onde nascera, caso não fossem
devidamente apreciados em Espanha. A censura feita pelo almirante aos
monarcas pelo atraso na adopção dos seus planos revela uma certa amar-
gura que iria dominar a sua atitude para com os patronos: «Por Deus omni-
potente Vossas Altezas deram-me os meios e o direito de conquistar e obter
esta propriedade vinculada, embora viesse para estes reinos para vos ofe-
recer este empreendimento e passaram longo tempo sem me dar os meios
para efectuar a obra.» A sua insistência em que «continuaram a conceder-
-me favores e muito acrescentamento» é claramente pouco sincera: Colombo
não está a agradecer favores recebidos mas a tentar obter mais. As tentati-
vas de pagar o mal dos monarcas com o bem, particularmente agradecendo-
-Ihes promessas não cumpridas, tomar-se-ia a táctica dominante das súpli-
cas de Colombo a Fernando e Isabel.
Os seus dois anos em Espanha deram também a Colombo tempo sufi-
ciente para melhorar os seus conhecimentos sobre a cosmografia tradicio-
nal e sobre os seus últimos aditamentos. Pediu informações a Inglaterra
sobre a travessia do Atlântico Norte por John Cabot, em 1496, bem como
mapas e livros para apoio das suas leituras^. Também parece ter voltado aos
antigos autores favoritos, incluindo Pierre d'Ailly, Plínio, Pio II e Marco
Pólo: as referências que deles fez depois desta data são mais seguras, mais
argutas e mais sistematicamente desenvolvidas que anteriormente - embora,
no total, não mais convincentes. A necessidade de defender, contra os argu-
mentos dos eruditos, as suas teorias sobre a pequena dimensão do mundo
^ Cartas, 267-9.
152
e sobre a acessibilidade da Ásia continuou a absorver uma boa dose das
suas energias. Parece ter aperfeiçoado os seus próprios argumentos e orde-
nado uma série de textos, abundante mas díspar, em seu apoio. A defesa
que escreveu em fms de 1498, quando regressou a Hispaníola, demonstra
quer a sua maior estatura mental quer as constantes limitações da sua eru-
dição como geógrafo. As referências de D'Ailly - embaraçosamente não
provadas para um erudito - continuaram a fornecer a fundamentação do seu
caso: diversas obras de relevo são amontoadas sem selecção, como coisas
sem valor, teólogos do século xiii comprimem filósofos clássicos e árabes,
padres da Igreja têm o mesmo peso que um dramaturgo romano e um pro-
feta apócrifo. Como murmúrios chineses, as autoridades reunidas são trun-
cadas pelo caminho. Por exemplo, a opinião atribuída por D'Ailly a Aristóteles
e utilizada por Colombo - segundo a qual «o mar é pequeno entre a extremi-
dade ocidental de Espanha e a parte oriental da índia» - não é confirmada
por qualquer texto autêntico de Aristóteles chegado aos nossos dias, pois a
opinião conhecida parece antes sugerir o contrário ^°. Algumas deliciosas
considerações irrelevantes são permitidas para aumentar a variedade dos
conhecimentos:
Plínio escreve que todo o mar e terra juntos formam uma esfera e afirma que este
mar Oceano constitui a maior massa de água e que está colocada em direcção ao céu e
que a terra está por debaixo e sustenta-a e que os dois estão combinados como o inte-
rior de uma noz com a casca grossa à sua volta^^
153
As más notícias provenientes da ilha tinham continuado a acumular-se.
Os índios intratáveis, os colonos recalcitrantes, os mosquitos implacáveis,
os «ares» e «águas» insalubres que Colombo deixara para trás na sua última
fuga continuavam a atormentar a colónia. Uma carta que Colombo escre-
veu ao irmão, cerca de três meses antes de embarcar, mostra como sentia
vivamente as dificuldades de Bartolomé. Lamentando os problemas de con-
tabilização dos embarques de ouro, o almirante lançou um forte cri de coeur.
Nosso Senhor sabe quanta ansiedade tenho sofrido pensando em como estás. Assim,
estes problemas, embora possa parecer que passo demasiado trabalho com eles, têm sido
muito piores na realidade: tanto que me cansaram da vida devido à grande perturbação
em que sei que deves estar, em que deves pensar-me unido a ti. Porque embora, é certo,
tenha estado longe aqui, deixei e mantenho o meu coração ai, sem pensar noutra coisa,
constantemente. Nosso Senhor é testemunha; nem acredito que tenhas qualquer dúvida
sobre isso no teu coração. Pois além dos nossos laços de sangue e grande amor, os efei-
tos da fortuna e a natureza do perigo e adversidade em lugares tão longínquos impelem
e obrigam o espírito e o bom senso do homem a suportar qualquer problema que se
possa imaginar - em qualquer outro local. Seria muito vantajoso se este sofrimento
aí ou
fosse suportado por uma causa que redundasse em serviço de Nosso Senhor, por quem
nos devemos esforçar com alegre disposição. E seria uma ajuda recordar que nenhum
grande feito se pode realizar a não ser com dor. Novamente, é alguma consolação acre-
ditar que o que for conseguido esforçadamente é ainda mais docemente estimado e apre-
ciado. Muito se poderia dizer sobre o assunto, mas, como esta não é a causa principal
pela qual tens sofrido ou que tenho visto, esperarei para falar dela com mais tempo e
directamente^^.
154
amplamente, no seu tempo, que as terras situadas na mesma latitude pos-
suíam os mesmos produtos. Também se pensava que as zonas ou «climas»
destas latitudes se tomavam mais ricas à medida que se caminhava para o
sul. Este era o peso dos conselhos que o almirante recebera de Jaume Ferrer'^
155
importantes para a compreensão do problema de consciência sobre a natu-
reza das suas descobertas, pois provam que previa um encontro justamente
com um novo continente como a América demonstrou ser. A sua disposi-
ção, antecipando novas revelações com a mesma excitação que precedera a
primeira viagem, está patente nas instruções que escreveu para as embar-
cações de reabastecimento enviadas à frente para Hispaníola: «Que Nosso
Senhor me guie e conduza a algo que possa ser para Seu Serviço e do rei
e rainha, nosso senhor e senhora, e para honra da Cristandade. Pois acre-
dito que este caminho nunca foi percorrido antes por ninguém e que este
mar é completamente desconhecido.»^^
ia
Textos, 221; Las Casas,
i. 498.
20 J.
Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, iii. 56, 69, 243-4, 500-1 1,
156
cio do Nordeste e do Sudeste -, acalmando-se ele próprio, sob um sol cruel
em meados de Julho. O calor transformou o vinho em vinagre, a água em
vapor e o trigo em cinzas; o toucinho derreteu ou apodreceu. «E, de repente,
tudo entrou em desordem, pois não havia homem que ousasse descer do
convés para reparar o casco ou tratar dos abastecimentos.»^' Se não fosse
o céu nublado que veio em seu socorro durante grande parte dos oito dias
sem vento, não teriam sobrevivido. O relato feito por Colombo sobre a sua
fuga às calmarias equatoriais é confuso. Por um lado, afirma que atingira a
latitude desejada - a de Serra Leoa; por outro, toma claro que teria ido mais
para sul se o vento o tivesse permitido. Tal como aconteceu, a primeira
prioridade era fugir ao calor fétido:
Recordei que ao velejar para as índias descobri que cada vez que passava cem léguas
a oeste dos Açores o clima melhorava por completo, tanto nas latitudes mais a norte
como nas mais a sul. E decidi, se aprouvesse a Nosso Senhor conceder-me vento e bom
tempo que me permitisse onde estava, que já não tentaria ir mais para sul nem
fugir de
voltaria para trás mas velejaria para oeste até que atingisse aquela linha, na esperança
de encontrar o mesmo abrandamento das condições que encontrara quando velejava ao
longo do paralelo da Grande Canária, e que se assim fosse então poderia dirigir-me mais
para sul^^.
157
poucos dias depois; mas a sua mudança de rumo afastou a expectativa da
proximidade de um novo continente, facto que o preocupara no início da
viagem, e voltou os seus pensamentos para as ilhas que previra na sua nova
rota. Assim, quando encontrou a América, a confusão sobre a sua natureza
- insular ou continental - foi ainda maior.
Na época dessa viagem, Colombo atravessava uma fase de devoção par-
ticularmente intensa pela Santíssima Trindade, que invocava sempre que
podia e a quem dedicara especificamente esta terceira travessia do oceano.
Quando, no último dia de Julho, avistou terra pela primeira vez nesta via-
gem, sob a forma de três elevações baixas mas distintas, apenas visíveis a
noroeste, sofreu naturalmente o choque da coincidência, pelo que, quando
«entoámos a salve e outros cânticos e todos demos muitas graças ao Senhor»,
chamou à ilha Trinidad:
E aprouve a Nosso Senhor que graças à Sua divina Majestade a primeira vista foi
de três cabeços ou devo dizer três montanhas, todas vistas logo num único relance...
Pois é certo que a descoberta desta terra, nesta viagem, foi um grande milagre tanto
como a descoberta feita na primeira viagem^^.
Quando cheguei à Punta dei Arenal, vi que a ilha de Trinidad forma uma grande
angra, com duas léguas de largura de oeste para leste, com uma terra a que chamei Tierra
de Gracia e que para lá entrar, para completar o circuito da ilha pelo Norte, existiam
algumas correntes a ter em conta, que cruzavam aquela angra e faziam um ruído estron-
doso, como uma onda que vai e se quebra e bate contra as rochas. Lancei âncora na dita
Punta dei Arenal, fora da dita angra, e descobri que a corrente fluía de leste para oeste,
158
com toda a fúria do Guadalquivir na preia-mar. E continuava sem cessar, dia e noite, de
forma que pensei ser incapaz de regressar, devido à corrente, ou de continuar, devido
aos recifes. E durante a noite, quando já era muito tarde e estava no convés do meu
navio, ouvi um terrível rugido que se aproximava da embarcação pelo sul e parei para
olhar e vi o mar erguido de oeste para leste, como um monte largo tão alto como o
navio. E continuava na minha direcção, pouco a pouco, e no cimo podia ver a direcção
da corrente e vinha rugindo com poderoso ruído, como a fúria da quebra das outras cor-
rentes que como disse me pareciam ser como ondas do mar que batiam contra as rochas.
Pois até hoje sinto o medo no meu corpo que senti não fossem elas virar o navio quando
passassem por debaixo dele. E passou e atingiu a entrada da angra, onde pareceu hesi-
tar durante muito tempo^"*.
24 Textos, 208.
25Ibid. 211.
26 Ibid. 205.
2' Las Casas, ii. 26. Leio «ganarán» [«ganharão»] em vez de «ganaron» [«ganharam»].
159
Estas considerações impeliam-no para a verdadeira compreensão da natu-
reza da América quando surgiu a convicção de que o grande curso de água
doce que observara deveria ter que atravessar uma grande extensão de terra.
Colombo foi cauteloso ao tirar a conclusão inevitável, mas meditou nas afir-
mações feitas pelos índios das Pequenas Antilhas na sua segunda viagem
- que afirmou agora recordar - sobre a existência de um grande continente
a sul.Por fim, a 13 de Agosto, quando se encontrava ao largo de Margarita,
introduziu no seu diário uma das d'=;clarações mais importantes da história
da exploração: «Acredito que este é um continente muito vasto que até agora
permaneceu desconhecido.»^^ Não era uma visão evanescente: Colombo
aferrou-se a ela quando voltou a Hispaníola e relatou aos monarcas a sua
descoberta de «uma terra enorme, localizada a sul, de que até hoje nada se
conhece»^^.
Alguns dias depois de descobrir o continente da América, Colombo afir-
28 Ibid. 238.
2Mbid. 218.
160
em Hispaníola. Confiando na possibilidade de regressar para mais tarde pro-
ceder à exploração, dirigiu-se para norte e afastou-se da costa a 15 de
Agosto^^.
Atormentado pela doença de olhos e esforçando-se por escrever os seus
relatos aos monarcas, regressou, na viagem para norte, à sua disposição
introspectiva e amargurada. Permaneceu como sempre auto-elogiador e os
seus superlativos fluíam abundantemente. No entanto, ao mesmo tempo,
incluía descrições dos feitos portugueses em África na tentativa evidente de
provocar nos seus próprios patronos um sentido mais vivo do dever. As
recordações do seu tratamento na corte surgiam, talvez sem artifício, por
serem profundamente sentidas. Voltou-se para a autocompaixão e contrição
afectada: é difícil resistir à sensação de que as suas reflexões sobre a supe-
rioridade dos fins espirituais constituíam um acto de penitência pela pró-
pria cupidez material. «Não suporto as dificuldades», exclamou em tom exa-
gerado de protesto, «para reunir tesouros ou para encontrar riquezas para
mim, pois, na verdade, sei que tudo o que é realizado neste mundo é vai-
dade, excepto o que é para honra e serviço de Deus, que não é para cons-
truir riqueza ou causas de orgulho ou muitas das outras coisas que usamos
neste mundo a que estamos mais afeiçoados do que às coisas que podem
salvar as nossas almas. »^^ Através dos textos escritos a bordo ou pouco
depois de desembarcar, Colombo, embora prendendo-se às suas antigas espe-
ranças, parecia afastar-se da confiançano patrocínio dos monarcas para a
dependência de Deus - a condição abençoada que vira exemplificada nos
franciscanos que tanto admirava e nos índios de Hispaníola quando os con-
templara pela primeira vez com olhos de certo modo inocentes.
Com esta disposição vulnerável examinou, sem razão nem crítica, as
observações que fizera na viagem até esse momento. Não estava em con-
dições de compilar racionalmente a informação recolhida. Recordou, em
mudança de clima que afirmara ter observado na sua pri-
primeiro lugar, a
meira viagem, cerca de cem léguas a oeste dos Açores. Recordou a água
doce e o clima temperado do golfo de Pária, que parecia, em retrospectiva,
estranhamente perfeito. Recordou que as embocaduras, como as do Paraíso,
eram em número de quatro. Por fim, aduziu as suas observações astronó-
micas, que raramente eram suficientemente precisas para serem fonte de
teorias úteis. Parece ter trabalhado muito para melhorar os seus conheci-
mentos de astronomia desde as duas primeiras viagens, quando as suas supos-
tas leituras da latitude tinham sido de maneira geral erradas a 1 00% e a ten-
tativa de medir a longitude a partir de um eclipse produzira um erro ainda
maior. Na terceira travessia fizera numerosas leituras da posição da Estrela
Polar e confirmara a sua descoberta de que esta tendia a desviar-se da posi-
161
ção fixa tradicionalmente atribuída. Agora acreditava realmente que lhe era
possível medir a rotação que a Estrela Polar descrevia nos céus, embora
fosse extraordinariamente optimista a este respeito. Dedicou-se a fazer lei-
Agora observei a variação muito grande que descrevi e devido a ela comecei a reflec-
tir sobre esta questão da forma do mundo. E concluí que não era redondo como dizem,
mas que tem a mesma forma de uma pêra, que pode ser toda redonda, excepto na parte
em que está o pedúnculo, ao alto. Ou é como se alguém tivesse uma bola muito redonda
e num ponto da sua superfície era como se tivesse aí colocado um mamilo de mulher; e
esta parte semelhante a uma teta seria a mais proeminente e mais próxima do céu.
Afirmo que o mundo não é esférico mas tem esta modificação que expliquei e que
se encontra neste hemisfério onde os íncfios estão e no mar Oceano. E a parte mais alta
dele é no equador. E conduz em muito à mesma conclusão de que o Sol, quando Nosso
Senhor o criou, estava colocado sobre o ponto mais oriental do mundo, exactamente no
local onde o ponto mais alto da protuberância do mundo está localizado. E embora fosse
opinião de Aristóteles que o Pólo Sul ou antes a terra no Pólo Sul é a parte mais ele-
vada do globo e a mais próxima do céu, há outras autoridades que discordam, dizendo
que é o Pólo Norte. Parece portanto que deve alguma parte do mundo que é mais
existir
elevada e mais próxima do céu do que o resto. Mas não descobriram
o facto de que era
no equador sob a forma que descrevi. E o seu fracasso não deve ser causa de espanto
porque não tinham conhecimento seguro da existência deste hemisfério, excepto espe-
culações imprecisas deduzidas apenas pela razão; porque ninguém estivera aqui ou enviara
uma missão para o procurar até hoje, quando Suas Altezas ordenaram que tanto o mar
como a terra fossem explorados e descobertos^^.
32
Textos, 212-14.
33
Ibid. 214.
162
Pierre d'Ailly especulara, numa passagem da sua obra que Colombo
deve ter conhecido, sobre a possibilidade da existência de uma protuberân-
cia que desfigurava a esfericidade da Terra^^. Mas o descobridor não ficou
por aqui. As suas especulações prosseguiram. A localização e a docilidade
do delta que descobrira, com os seus quatro rios, nos «confins do Oriente»,
induziram Colombo a mais uma conclusão precipitada:
Acredito que se velejasse para lá do equador encontraria cada vez maior amenidade
no clima e variação nas estrelas, embora não creia que seja possível navegar ali, onde
o mundo atinge o seu ponto mais elevado, donde nenhum homem se pode aproximar,
pois acredito que aí está localizado o Paraíso terrestre, onde nenhum homem pode ir,
^^ Buron, i. 197; Raccolta, I. ii. 375; uma protuberância no equador é atribuída por
Estrabão, como teoria, a Posidonius {The Fragments, ed. L. Edelstein e I. G. Kidd, Cambridge,
1972, 69), mas Colombo não demonstra ter disto conhecimento.
35 Textos, 216.
163
com que Colombo acreditava ter derrotado, por um misto de orientação
divina e observação científica, «Ptolemeu e os outros eruditos que escre-
veram sobre este mundo»^^.
Como Colombo formulou nesta
balanço, das duas novas hipóteses que
viagem - a da natureza continental da América e a da localização do Éden -,
a primeira deve ser considerada a mais prometedora. Tragicamente, porém,
a segunda hipótese obscureceu a primeira. Como o Paraíso terrestre se supu-
nha a oriente, as duas teorias tomaram-se interdependentes, dando origem
à defesa cada vez mais desesperada de Colombo em favor da afirmação de
que as suas terras eram asiáticas. Numa carta sem data, provavelmente de
fins de 1499 ou princípios de 1500, abandonou a mais brilhante das suas
reivindicações - a de ter descoberto um continente desconhecido:
A terra que Deus deu recentemente a Vossas Altezas nesta viagem deve ser consi-
derada continental na extensão, pelo que Vossas Altezas devem sentir grande alegria e
dar-Lhe graças infinitas e detestar aqueles que dizem que não deveis gastar dinheiro
neste empreendimento pois não são amigos da honra do vosso alto estado - sem falar
de todas as almas cuja salvação podemos esperar, de que Vossas Altezas são causa e
que é o nosso principal ganho. E desejo dirigir-me à vanglória deste mundo, que devia
ser desafiada, porque o nosso poderoso Deus a detesta. E deixai-os responder-me, os
que leram as histórias dos Gregos e Romanos, se com tão pouco ganho estenderam os
seus impérios tão grandiosamente como Vossa Alteza [sic] agora o fez com o de Hispaníola,
com as índias e aquela ilha que mede mais de setecentas léguas e Jamaica, com outras
setecentas ilhas, e uma parte tão grande do continente que era muito bem conhecida dos
antigos e não desconhecida como os invejosos ou ignorantes gostam de pretender^^.
3Mbid. 213.
37 Ibid. 245.
164
«o DEMÓNIO TEM ESTADO A TRABALHAR»
A COLÓNIA DE HISPANIOLA,
1496-1499
O nosso povo aqui está de tal forma que não há homem bom nem mau que não
tenha dois ou três índios para o servir e cães para caçar por ele e, embora fosse talvez
165
melhor não o mencionar, mulheres tão bonitas que causam admiração. Estou extrema-
mente descontente com a última destas práticas, pois me parece ser desserviço de Deus,
mas nada posso fazer sobre isso nem sobre o hábito de comer carne ao sábado [sic, em
vez de sexta-feira] e outras práticas malvadas que não são de bons cristãos. Por estas
razões, seria grande vantagem ter aqui alguns frades devotos mais para reformar a fé
em nós cristãos que para dá-la aos índios. E nunca conseguirei ministrar castigos justos
homens sejam enviados de Castela para aqui com
a não ser que cinquenta ou sessenta
cada armada e que eu mande para aí o mesmo número de entre os preguiçosos e insu-
bordinados, como faço com esta armada - tal seria o maior e melhor castigo e o menos
oneroso na consciência que me ocorrei
Não poderia ser fornecida prova mais cabal da clivagem existente entre
Colombo e os seus homens na apreciação da ilha. Existia uma curiosa iro-
nia na proposta de Colombo de deportar homens por delinquência, alguns
dos quais tinham já sido exilados pelos seus crimes. Para a maior parte deles
isso teria constituído mais um incitamento do que um castigo. Logo que os
colonos chegavam e descobriam como as realidades da vida em Hispaníola
estavam longe das promessas feitas por Colombo, o seu maior desejo era
partir - mesmo sem acumular a riqueza com que tinham sonhado. «Que
Deus me leve para Castela!» era a imprecação favorita da ilha e o regresso
gratuito a casa a primeira exigência dos rebeldes^.
A culpa, em certo sentido, era do próprio Colombo. O quadro que pin-
tara de grandes quantidades de ouro a recolher e de índios dispostos a ser-
vir, em clima salubre e solo fértil, tinha sido literalmente aceite pelo seu
público e atraíra os ociosos e os sem-valor que merecia. Reciprocamente,
provocou o inevitável desapontamento quando os homens descobriram como
o clima era na realidade hostil e como era pesado o trabalho que se lhes
exigia. Colombo admitiu praticamente tudo isto num lúgubre canto episto-
lar que enviou para Espanha em Maio de 1499:
Nenhum dos colonos veio sem acreditar que o ouro e as especiarias se podiam amon-
toar facilmente e não pensaram que, embora houvesse ouro, estaria enterrado em minas e
as especiarias estariam no topo das árvores e que o ouro teria que ser extraído e as espe-
ciarias colhidas e preparadas - tudo isto tomei público quando estava em Sevilha, porque
os que desejavam vir eram tão numerosos. E sabia o que queriam e assim expliquei-lhes
isto, com todo o trabalho que os homens que vão para se instalarem em terras longínquas
pela primeira vez e todos responderam que era para fazer tal trabalho que iam^.
A julgar pelo tom de todos os seus escritos sobre Hispaníola que che-
garam até nós, os avisos de Colombo tinham sido fortemente inadequados
1
Textos, 244.
2 Las Casas, ii. 69; Cartas, 273.
^ Textos, 256.
166
e abafados pela torrente dos seus elogios a uma Arcádia atraente. Tomou-
-se vulgar que os colonos desiludidos, regressados de Hispaníola, provo-
cassem tumultos perante os monarcas nas audiências públicas, acusando
Colombo e escarnecendo com surpreendente agudeza das suas «terras de
vaidade e ilusão»"*. O grande continente em que Colombo desembarcara na
sua terceira travessia - com o qual esperara, talvez, fortalecer a sua própria
influência - só piorara a questão, ao aumentar a pressão sobre os limitados
recursos da colónia.
Se os planos de Colombo para a colónia não estavam em sintonia com
os dos seus homens, também não coincidiam totalmente com os objecti-
vos dos monarcas. É difícil, a esta distância, julgar as intenções de Colombo,
mas parece que, enquanto clamava por uma comunidade estável, terá enca-
rado a ideia de outra de carácter ainda mais transitório. O modelo princi-
pal em que pensava não parece ter sido o da colónia agrária, dedicada ao
trabalho directo do solo, povoada por colonos de todos os níveis sociais,
como existiam nas Canárias, Madeira e Açores, mas o de um entreposto
comercial de tipo genovês ou semelhante ao que os Portugueses tinham
instalado em São Jorge da Mina, na costa ocidental africana, destinado ao
comércio a longa distância de produtos de elevado valor, com a obtenção
de grandes lucros para investimento na metrópole. Os colonos orientariam
a introdução e o cultivo de produtos agrícolas europeus e a criação de gado,
de forma a assegurar-lhes uma alimentação aceitável, mas dedicariam os
seus esforços essencialmente à produção de ouro, a enviar para Espanha,
ao algodão, às tintas e a quaisquer especiarias existentes ou a introduzir,
bem como, evidentemente, à escravatura. Previa claramente que o traba-
lho fosse executado pelos índios, que parece ter sobrestimado grosseira-
mente, quer quanto ao número quer quanto à adaptação ao trabalho. Tratava-
-os como infinitamente substituíveis. Pouco se esforçou para enviar
trabalhadores, preferindo seleccionar homens com competência técnica -
soldados, marinheiros, artesãos, funcionários, mineiros experientes e agri-
cultores especializados. Entre os trezentos representantes dos diferentes
ofícios que o acompanhavam na terceira travessia, incluíam-se apenas cin-
quenta trabalhadores e trinta mulheres^.
Fernando e Isabel não se satisfaziam, no entanto, com uma mera fei-
toria comercial. Queriam que as novas descobertas fossem «povoadas» -
isto é, colonizadas a todos os níveis pelos seus próprios súbditos para as
colocar firmemente sob o domínio político de Castela. Tal como escreve-
167
ram às municipalidades dos seus reinos, elogiando a terceira viagem de
Colombo, «recomendámos a Don Cristóbal Colón que regressasse à ilha
de Hispaníola e às outras ilhas e continente que estão nas ditas índias e
orientasse a sua preservação e povoamento porque dessa forma o Nosso
Senhor Deus é servido. Sua Santa Fé espalhada e nossos próprios reinos
aumentados»^.
Os monarcas desejavam particularmente que a terra da ilha fosse divi-
dida entre os colonos e uma nova agricultura introduzida tal como se estava
a fazer, por sua ordem, ao mesmo tempo nas ilhas Canárias. Acima de tudo,
desejavam promover a produção de açúcar, do qual existia na Europa uma
grande procura relativamente recente e ainda Esperavam, con-
insatisfeita.
cedendo terras e isenções fiscais que tinham atraído colonos nos anos ante-
riores, chamar colonos a Hispaníola. Por fim, as bases da nova agricultura
não seriam postas em prática, excluindo o sector pastoril, que os monarcas
estavam determinados a favorecer nos seus reinos novos tal como nos anti-
gos. Não perdiam de vista o propósito principal de toda a sua provisão, isto
é, a extensão do seu próprio poder; assim, reservaram para si as minas e o
Quaisquer pessoas que desejem ir viver e habitar na dita ilha de Hispaníola, sem
salário, podem ir e irão livremente e ficarão aí isentas e livres e não pagarão qualquer
imposto e terão para si e para os seus e seus herdeiros as casas que erigirem e as terras
que trabalharem e as heranças que criarem nas terras e nos locais que lhes serão atri-
buídos ali na dita ilha pelas pessoas que por vós [Colombo] serão encarregadas''.
6 Navarrete, i. 428.
' Ibid. 415.
168
ceitos dosmonarcas sobre a forma de tratamento a dar a este grupo foram
expressos no primeiro ponto das suas instruções a Colombo:
Em primeiro lugar, quando estiverdes nas ditas índias, se Deus quiser, tentareis com
toda a diligência inspirar e conduzir os nativos das ditas índias para caminhos inteira-
mente de paz e tranquilidade e convencê-los de que têm que servir e estar sob o nosso
senhorio e benigna sujeição e, acima de tudo, que se convertam à nossa santa Fé Católica
e que a eles e aos que vão viver para as ditas índias sejam ministrados os Santos
Sacramentos pelos clérigos e frades que estão ou estarão aí^.
169
Não lhes dera, porém, a liberdade de disporem dos nativos do Novo Mundo
como entendessem. Pelo contrário, eram obrigados, por uma longa tradi-
ção canónica, bem como pelas suas próprias convicções, a não permitir que
o mau tratamento ou a escravização indiscriminada interferissem com a
obra de conversão. As soluções que poderiam ser comercialmente vanta-
josas, como escravizar os nativos ou entregá-los aos Espanhóis como força
de trabalho em sujeição feudal, eram excluídas pela necessidade política
de conservar os índios sob o senhorio directo da coroa. Em particular,
era bastante claro que os nativos não podiam, por lei, ser escravizados a não
ser quando capturados no decurso de guerra legítima ou quando aberta-
mente colocados fora da protecção da lei natural por ofensas contra esta,
como o canibalismo^.
Este ponto representou o fim do consenso entre a política de Colombo
e a dos monarcas. É bem patente a forma como compreendia as priorida-
des destes nos termos com que instruiu Pedro Margarit, quando o deixou
encarregado de Hispaníola durante as explorações de Cuba, em 1494. «O prin-
cipal que deveis fazer», escreveu Colombo, «é olhar cuidadosamente pelos
índios e não permitir que lhes seja feito qualquer mal nem que se lhes tire
nada contra sua vontade; mas antes que sejam honrados e mantidos em segu-
rança para que não se revoltem.» ^^ O que Colombo não conseguiu com-
preender, no entanto, foram os limites impostos pela lei e pela vontade real
à exploração económica do trabalho nativo. Logo em 1493, quando propôs
a escravização dos índios na versão do seu relato preparada para publica-
ção, uma acção presumivelmente editorial emendou a proposta, especifi-
cando que os escravos deveriam provir «de entre os idólatras»^ - um grupo
^
9 Vercap. 5, n. 15.
10
Textos, 163.
" Ibid. 145.
'2 Ibid. 243-4.
170
A escravização e a exportação, mesmo à escala sugerida por Colombo,
respeitava apenas a uma pequena parte dos nativos de Hispaníola. A maio-
ria era necessária para trabalhar na colónia. Colombo exprimiu melhor a sua
politica num novo memorando que dirigiu ao Fernando depois de ter sido
rei
171
existia qualquer outro instrumento de regulamentação social, económica e
política nas terras conquistadas. Todos os aspectos da vida colonial eram
abrangidos por este sistema. As instituições militares, tal como existiam,
dependiam da obrigação de prestar serviço militar pelo detentor da enco-
mienda. Dele dependiam as esperanças de uma evangelização bem suce-
dida. O comércio, a exploração das minas, a indústria, todos estavam liga-
dos ao sistema de encomienda - embora cada vez menos, à medida que o
tempo passava - e a ligação à agricultura era ainda mais forte.
É, pois, importante considerar até que ponto os historiadores têm tido
razão ao atribuir a Colombo a introdução da encomienda. Quando os Espanhóis
chegaram ao Novo Mundo, não se conhecia nada de semelhante à enco-
mienda na história da sociedade espanhola. Concessão de terra, senhorio,
jurisdição e tributo, tinham todas um lugar na anterior experiência coloni-
zadora, mas nunca anteriormente tinham sido distribuídos serviços pessoais
desta forma. Apresentar a distribuição de índios entre os colonos como uma
delegação ou uma alienação de direitos soberanos ultrapassa largamente as
provas existentes. A escravização dos índios podia ser considerada nesses
termos, visto que introduziauma alteração no estatuto dos nativos de vas-
salos dos reis para bensmóveis pessoais. Contudo, nada existe nos textos
que chegaram até nós sobre as primeiras concessões de encomiendas que
seja incompatível com a vassalagem real; na verdade, não há provas, até à
chegada dos dominicanos a Hispaníola, de que alguém tivesse encarado juri-
dicamente estas concessões. As actas limitavam-se a definir quais os índios
cujos serviços pessoais o beneficiário podia utilizar e a conferir a este obri-
gações militares e evangélicas. A questão da posse não foi levantada: a única
alusão está na provisão de que o concessionário deveria ensinar a fé aos
índios, visto que nesse princípio, incluído na bula de 1496, se considerava
baseada a legitimidade da conquista espanhola. É verdade que na época de
Colombo existia a obsessão pelo jurídico, mas não tanto como em alguns
historiadores posteriores. Outro elemento tomou estas concessões diferen-
tes de quaisquer outras anteriormente conhecidas: não havia efectivamente
menção expressa aos limites dos serviços envolvidos. Existiam quase sem-
pre alguns índios - os mais novos ou os mais velhos - isentos de serviço e
especificava-se, geralmente, que os índios iriam trabalhar em «quintas e gran-
des propriedades» e minas, se existissem. Por outras palavras, o serviço apli-
car-se-ia a todas as actividades para as quais os Espanhóis o requeressem
e não tinha quaisquer limites práticos.
Se a ideia desta instituição, única no seu tempo, não foi concebida e
aplicada por Colombo, onde terá tido a sua origem? Os registos da admi-
nistração de Hispaníola pelo almirante perderam-se - submersos com a
esquadra afundada em 1502. A teoria de que a encomienda era obra do seu
inventivo cérebro baseia-se nas conclusões de historiadores que escreveram
depois no século xvi, sobretudo no testemunho do eminente antiquário do
172
reinado de Filipe António de Herrera, segundo o qual «o almirante deu
II,
"* A. de Herrera, Historia general de los hechos de los castellanos en las islãs y tierrafirme
dei mar oceano, ed. A. Ballesteros y Beretta e A. Altolaguirre y Duvale (Madrid, 1934), ii.
15
Textos, 253; Navarrete, i. 430; Las Casas, ii. 86-90.
16
Cartas, 257.
173
provocada pelas suas campanhas punitivas em 1494-96. Se Colombo tivesse
sido considerado responsável pela introdução da encomienda, é difícil ima-
ginar como Las Casas teria ignorado o facto e, tendo dele conhecimento,
No entanto, na História das índias, a época
se tivesse abstido de o comentar.
de Colombo aparece como uma idade de ouro, apenas assombrada pelos
excessos dos seus subordinados, mesmo antes do início da exploração sis-
temática dos índios. Las Casas encara Colombo como o que permite um
abuso existente - relutantemente e como um expediente temporário - e não
como o que inicia um sistema.
Para conciliar a opinião de Las Casas com outros relatos, não devemos
imputar aos governadores seguintes a criatividade institucional que tivemos
relutância em atribuir a Colombo. Resta a possibilidade de que o tipo de
relações entre índios e Espanhóis, incluído na encomienda, tivesse já sur-
gido gradualmente nos dias de domínio de Colombo e de que as primeiras
concessões de encomiendas realizadas por governadores posteriores tives-
sem meramente confirmado uma situação já existente. O exemplo do Paraguai,
se é lícito apresentar um exemplo tão distante mas nalguns aspectos não
dissemelhante, sugere que isto não é impossível: ali, os colonos espanhóis
adquiriram os serviços pessoais quase por acaso - ou antes, os nativos for-
neceram serviços voluntariamente quando os Espanhóis tomaram as suas
filhas como esposas ou concubinas'^ Existe uma passagem inconclusiva
mas sugestiva em Las Casas onde se sugere que a situação no Paraguai se
assemelhava à de Hispaníola:
Os trezentos espanhóis que estiveram aqui [em 1502]... costumavam, por sedução
ou pela força, tomar as mulheres mais importantes das aldeias ou suas filhas como aman-
tes ou criadas, como lhes chamavam, e viver com elas em pecado. Os seus parentes ou
vassalos acreditavam que tinham sido tomadas como esposas legítimas e nessa crença
foram dadas aos espanhóis, que se tomaram objecto de adoração geral'^.
174
A encomienda provou ser, na melhor das hipóteses, improdutiva e, na
pior, destrutiva. Já na época de Colombo se verificara o despovoamento
catastrófico de Hispaníola, causado pela proliferação de doenças europeias
entre os índios e por um suposto colapso da taxa de natalidade. Em breve,
esse despovoamento se espalharia por outras conquistas espanholas. Muitos
contemporâneos, sobretudo Las Casas, consideravam a encomienda, com os
seus efeitos desmoralizadores e prática onerosa - na verdade, frequente-
mente cruel -, a causa principal do desastre demográfico. Poucas vantagens
parece ter trazido e os administradores do império, no século seguinte, devo-
taram muito tempo e esforço em busca de alternativas, nenhuma das quais
se mostrou também inteiramente satisfatória. O papel de Colombo na sua
génese foi típico das suas falhas como administrador colonial. Os proble-
mas excediam de tal forma a sua capacidade que poucas tentativas fez para
•^ Cartas, 271-80.
20 Textos, 255-9.
175
para onde Bartolomé transferira a povoação: «Disseram que é o pior local
e no entanto é o melhor.» De facto, Santo Domingo era muito superior a
Isabela e perdurou até aos nossos dias, o que se pode considerar justifica-
ção para a escolha dos dois irmãos, mas acarretava, na verdade, terríveis
problemas de aclimatização aos recém-chegados. Quando Colombo regres-
sou, encontrou um terço dos homens doentes. Em segundo lugar, existiam
queixas de «fome». Colombo salientou que Roldán não tinha dificuldade
em sustentar o seu grupo de 120 rebeldes e mais de 500 criados índios, mas
isso era possível porque abandonara a paliçada e vivia da terra, bem longe
da principal força espanhola. A grande concentração de colonos inactivos
na capital era muito mais difícil de alimentar e só possível por meio de
importações de Espanha ou por um esforço de produção que nem os Espanhóis
nem os índios podiam ou estavam dispostos a fazer. A presunção de Colombo
de que os Espanhóis renunciariam ao pão de trigo em favor do tipo de pão
local, feito de mandioca, revela o carácter essencialmente cultural dos pro-
blemas levantados pela colonização. A alimentação nativa era deficiente em
proteínas em comparação com a espanhola. Para satisfação das necessida-
des alimentares, utilizando produtos nativos, os Espanhóis tinham que inge-
rir enormes quantidades que ultrapassavam a capacidade da economia local,
muito apreciados, protegia os direitos dos acusados; era aplicada por auto-
ridades concorrentes, com graus de autoridade sobrepostos, que se limita-
vam e equilibravam entre si. No pequeno mundo de Santo Domingo, longe
da influência de qualquer funcionário superior, a autoridade de Colombo ou
do seu delegado não tinha entraves. Ao exigir, em todos os casos, o direito
de apelo à coroa e a correspondente suspensão temporária do julgamento,
os rebeldes levantavam um problema de importância fiandamental, numa
monarquia que crescera de repente para além do alcance de comunicações
frequentes e para além do alcance prático das suas instituições tradicionais.
Os casos específicos que contribuíram para a divisão da colónia parecem
triviais: Colombo confiscara alguns porcos para criação, a fim de impedir
os donos de os matar; Bartolomé governara «com tal rigor», segundo Roldán,
«que causou tanto medo no povo que o levou a perder todo o seu amor».
Roldán não o acusava de quaisquer excessos sanguinários ou de privações
arbitrárias de liberdade. Atingiu, porém, um ponto claramente sensível com
a queixa de que Bartolomé tentara privá-lo do seu cargo. Sob os rancores
e as ofensas, segundo se suspeita, encontravam-se conflitos de personali-
dade. O caso Roldán era característico da incapacidade de Colombo de man-
ter como amigo um colaborador. Tal como todos os companheiros afasta-
176
dos de Colombo, tomou-se o epítome da ingratidão «esse ingrato Roldán,
um zé-ninguém que eu tinha na minha casa» - e um agente da malevolên-
cia sobrenatural num mundo em que «o Demónio tem estado a trabalhar»^^
A primeira reacção de Colombo, ao verificar a desordem que tinha domi-
nado a colónia na sua ausência, foi a de tentar apaziguar Roldán. A sua polí-
tica iria seguir o mesmo curso do da visita anterior, quando começara por
tentar acalmar os nativos e fora, finalmente, obrigado a esmagá-los com
sangrenta frieza. Em fins de Outubro, escreveu a Roldán tratando-o por
«meu muito querido amigo», admitindo suavemente que o rebelde estava
«à espera ansiosamente do meu regresso, como se a saúde da tua alma disso
dependesse», e cedendo à primeira das exigências dos rebeldes: o regresso
gratuito a Espanha^^. Colombo afirmou, mais tarde, que esta oferta era uma
dissimulação calculada e justificada, destinada a atrair Roldán para o pren-
der. No entanto, é possível também que desejasse intensamente evitar uma
prova de força com os rebeldes, que tinham saqueado o depósito de armas
da colónia e sido reforçados com os «melhores» dos recém-chegados.
Colombo preferia vê-losem Castela, juntando-se ao coro crescente dos seus
caluniadores, do que em Hispaníola, destruindo directamente a sua obra.
Em qualquer caso, esta estratégia falhou. Roldán ignorou as indicações, ten-
tadoramente retardadas,com que Colombo o procurava apanhar e continuou
antes «a atormentar-me com os seus ataques». Nem a sua total capitulação
às exigências de Roldán e a reintegração do rebelde num importante cargo
de confiança conseguiram erradicar as causas da rebelião e, depois do regresso
triunfal de Roldán ao acampamento do almirante em Agosto
de 1499, gru-
pos de rebeldes permaneceram em armas.
A crise agudizou-se repentinamente em Setembro de 1499 com a che-
gada ao largo de Xaragua do antigo companheiro de armas de Colombo,
Alonso de Hojeda. Com outros antigos amigos do almirante, incluindo Juan
de la Cosa, que atravessara o Atlântico pelo menos uma vez em companhia
de Colombo, e Amerigo Vespucci, que, como colaborador nos negócios de
Gianotto Berardi, conhecera provavelmente alguns dos planos de Colombo,
organizou a primeira das muitas expedições da Andaluzia que quebrariam
o precioso monopólio de navegação transatlântica de Colombo. As más notí-
cias recebidas de Hispaníola e o clima de suspeição contra Colombo criado
pelo número crescente de caluniadores que enchia a corte permitiram-lhe
obter licença, em Maio de 1499, para procurar, ao largo da costa norte do
continente sul-americano, as pérolas referidas por Colombo durante a sua
terceira viagem. Seguiu a rota de Colombo, «matando, roubando e lutando»
à medida que avançava, mas não encontrou pérolas, reunindo apenas um
saque insignificante para tanto esforço. Rumou então para norte em direc-
177
ção a Hispaníola e desembarcou perto do acampamento rebelde, aparente-
mente decidido a retirar alguma vantagem do que fora uma viagem desas-
trosa. Colocou-se à frente dos rebeldes, fomentou uma nova insurreição
índia e, alegando que Colombo perdera a sua posição ao exceder os seus
poderes, ameaçou depô-lo e substituí-lo. Colombo, colocando o caçador fur-
tivo no lugar do guarda da coutada, enviou Roldán para o combater ou,
melhor dizendo, deixou Roldán tratar do assunto, pois que o preço da fide-
lidade de Roldán era virtualmente ter pulso livre no SuP^
O confronto entre os descontentes durou até Março de 1500, altura em
que Roldán conseguiu subornar o intruso. As sementes da rebelião conti-
nuaram a germinar. Quando surgiu uma nova insurreição nativa em Xaragua,
provocada pela tentativa de rapto, por um espanhol, da filha de um chefe
para concubina, Roldán tentou resolver o problema expulsando o malfeitor
Não só os nativos continuaram inquietos - e não pacificados durante quase
quatro anos - como a tirania de Roldán forneceu o pretexto para um novo
desafio à autoridade, encabeçado desta vez por Adrián de Muxica, um parente
do expulso. Em Junho de 1500, a situação agravou-se com a chegada, ao
largo da costa, de outro intruso: Vicente Yánez Pinzón, irmão de Martin
Alonso e também companheiro de Colombo na primeira travessia. O receio
de que ele interviesse em favor dos rebeldes demonstrou não ter fundamento
e, pouco tempo depois, Colombo capturou Muxica e executou-o. A série
23
Cartas, 280-1; Navarrete, ii. 17-20, 60.
24
Textos, 263, 270; Historie, ii. 71.
25
Ver p. 123.
26
Verpp. 199-202.
178
Sentia profundamente a maldade dos seus inimigos - alternadamente cor-
tesãos, eruditos, índios,amotinados e rebeldes, que pareciam formar uma
cadeia sem fim, única e diabólica. Nestas circunstâncias sentiu-se dominado
pela convicção de que estava a passar por uma prova de fé; e no ímpeto da
fé que fluía desse sentimento sentiu a presença e ouviu a voz do céu. As
prioridades de Colombo tinham-se voltado do secular para o espiritual ao
longo da terceira viagem. A experiência de 26 de Dezembro de 1499 cons-
tituiu um momento decisivo do processo:
Quando todos me tinham abandonado, fui atacado pelos índios e pelos cristãos mal-
vados. Encontrei-me em tal situação que, na tentativa de escapar à morte, fiz-me ao mar
numa pequena caravela. Então o Senhor veio em minha ajuda, dizendo: «Oh, homem
de pouca fé, não temas, estou contigo.» E derrotou os meus inimigos e mostrou-me a
forma de cumprir as minhas promessas. Miserável pecador que sou por ter depositado
a minha confiança nas vaidades deste mundo!
Talcomo o conduziam cada vez mais alto aos arroubos mais remotos
da fuga mística, as experiências de Colombo no Novo Mundo estavam a
alterar a sua autopercepção. O seu fracasso como administrador era claro,
mesmo para si próprio, mas sentia-se satisfeito pela sua transformação em
soldado, derrotando índios mal armados ou grupos de rebeldes cercados.
Era umlugar-comum em Espanha que «armas e letras» constituíam talen-
tos diferentes mas não incompatíveis, sendo ambos necessários para o
desempenho dos deveres da governação. Don Quixote resumiria esta tra-
dição, com espírito, no seu conselho a Sancho Pança: «Tu, Sancho, deves
usar um misto de trajo de licenciado e de armadura de capitão, pois na ilha
que te darei para governar as armas serão requeridas tanto como as letras
e as letras tanto como as armas. »^'' Os relatos de Colombo para Espanha,
a partir de 1498, solicitam constantemente a presença de «um homem culto,
uma pessoa preparada para deveres judiciais», a fim de o auxiliar ou mesmo
de o substituir^^ Embora fosse um novo-rico, começava agora a ver-se
como um aristocrata antiquado, cuja grande virtude era o seu heroísmo e
cuja nobreza não ficava comprometida pela sua insuficiência em assuntos
burocráticos. A passou a designar-se cada vez mais por
partir de agora,
«capitão» - um termo militar - em vez de marinheiro, chamando «con-
quistas» às suas descobertas. O seu fracasso na administração era uma prova
da sua nobreza mais do que uma mancha na sua competência. «Devo ser
julgado como capitão», pedia, «de cavaleiros e conquistas e outros e não
como homem de letras. »^^
179
o seu pedido de um funcionário «letrado» apenas antecipou, talvez, uma
evolução inevitável. Durante todo o seu reinado, foi política de Fernando e
Isabel infiltrar administradores preparados pelas universidades, directamente
na sua dependência, nas estruturas hierárquicas de poder estabelecidas local-
mente. Já em Maio de 1493 tinham nomeado Juan de Fonseca para organi-
zar a preparação de armadas e de pessoal para as índias juntamente com
Colombo e, durante a ausência deste em Hispaníola, Fonseca assumira toda
a responsabilidade da operação. Como resultado, no último ano do governo
de Colombo nas índias, o seu monopólio de navegação foi quebrado sem
justificações e a série das chamadas viagens «andaluzas» teve início seguindo
os passos de Colombo, aproveitando a perícia deste, com autorização real,
a fim de expandir o conhecimento e a soberania espanhóis para além das
terras descobertas por Colombo. Nem os próprios esforços sobre-humanos
de Colombo na exploração, que o desviavam dos seus outros deveres e pre-
judicavam a sua saúde, podiam impedir esta evolução inevitável: só auto-
rizando livremente as actividades dos exploradores conseguiria a coroa con-
firmar e estender o seu domínio sobre um Novo Mundo que, de outra forma,
se tomaria atraente para intrusos estrangeiros.
Porém, a missão de Fonseca destinava-se, em parte deliberadamente, a
contrabalançar o poder potencial de Colombo. Numa referência pouco velada
às actividades do bispo (posição que Fonseca agora ocupava), o almirante
pediu aos monarcas que nomeassem para cargos de influência apenas aque-
les que se sentissem motivados pelo seu empreendimento e não aqueles que
tudo faziam para o prejudicar e favorecer os seus rivais.
Quando conseguiu que lhe enviassem o juiz que pedira, esta condição
particular foi deixada conspicuamente por satisfazer. «O homem escolhido»,
queixou-se Colombo, «era exactamente o oposto do que a natureza do tra-
balho exigia.»^^ Os monarcas decidiram nomear Francisco de Bobadilla, que
combinava as vantagens de pertencer a uma família respeitável e de pos-
suir boa cultura (que Colombo não tinha) com os poderes judiciais, para
lidar com os rebeldes e investigar as queixas que os colonos tinham acumulado
contra o almirante. Interpretou as instruções recebidas principalmente como
destinadas a impedir Colombo de causar mais prejuízos.
Na que Bobadilla chegou a Hispaníola, em Agosto de 1500,
altura em
Colombo já não suportava os viajantes andaluzes, que tinham profanado as
suas descobertas - como lhe parecia - introduzindo-se nelas sem a sua per-
missão, alienando os nativos, dedicando-se ilicitamente à escravização e
desembarcando por vezes em Hispaníola para fomentar a rebelião. Admitiu,
mais tarde, ter pensado inicialmente que Bobadilla era um destes^^
Provavelmente, portanto, não o recebeu com a humildade e a disposição de
30
ibid. 265.
31
Ibid. 266.
180
agradar que afirmou nas suas justificações aos monarcas. Bobadilla, por seu
lado, também não estava favoravelmente inclinado em relação a Colombo.
Chegara directamente depois de ouvir as alegações dos detractores de
Colombo na corte em ambiente amargurado por grande quantidade de supli-
cantes regressados de Hispaníola com pedidos de pagamento e queixas con-
tra o almirante. Igualmente prejudicial aos interesses de Colombo era a dis-
posição xenófoba então presente na corte, onde os estrangeiros, especialmente
os genoveses, se estavam a tomar os bodes expiatórios dos problemas das
outras colónias de Castela. No fim da década de 1490, o pessoal genovês
foi demitido dos seus cargos, perdeu causas perante a justiça real e foi
objecto de repetida legislação que limitava as suas propriedades e confis-
cava o excedente^^. Quando pediu a ajuda de um «letrado», Colombo pre-
vira já esta objecção ao seu governo. «Tenho sido culpado, no meu traba-
lho colonizador, como em muitos outros assuntos, como um pobre estrangeiro
detestado»", queixou-se, mas este não era o momento para solicitar repa-
ração com esse fundamento. Segundo o amigo de Colombo, Andrés de
Bemáldez, as acusações contra ele eram «que escondia o ouro e desejava
tomar-se, com outros cúmplices, senhor da ilha e dá-la aos Genoveses»^"^.
As tentativas de Colombo para
ridicularizar tais acusações e sugerir que
estas equivaliam a admitir que iria «roubar as índias do altar de São Pedro»
e «dá-las aos Mouros» não parecem ter provocado o riso da corte^^ Do
ponto de vista dos frades, cuja tarefa específica era a evangelização dos
nativos, o governo de Colombo também não era satisfatório. As suas quei-
xas pormenorizadas não chegaram até nós, mas um resumo das mesmas
sugere que culpavam Colombo dos excessos cometidos contra os índios:
«Tirou-lhes as suas mulheres e tirou-lhes todos os seus bens.»^^
Bobadilla estava autorizado a tomar nas suas mãos o governo de
Hispaníola caso achasse que o almirante devia responder pelas acusações.
Entre as suas primeiras medidas após a chegada, no meio de uma nova rebe-
lião que Colombo tentava reprimir, contaram-se a promoção dos adversá-
rios do almirante, a prisão de Colombo e seus irmãos e o seu envio para
Espanha a fim de serem julgados das acusações feitas contra eles. «Existe
alguém nalgum lado», ripostou Colombo, «que alguma vez consideraria tal
coisa justa?»
A
caminho de Espanha, Colombo recusou que lhe tirassem as grilhetas
e usou-as como sinal de humildade afectada e de orgulho rebelde, até que
pudesse embaraçar os monarcas arrastando os pés até à sua presença, usando-
181
-as ainda. A
viagem deu-lhe muito tempo para reflexão. Nas cartas que
escreveu no seu decurso adoptou uma nova auto-imagem de figura seme-
lhante a Job, exemplo de paciência no sofrimento, modelo de fé duradoura.
Voltou uma vez mais, como noutros momentos de crise, ao sonho da cru-
zada de Jerusalém. «Pelo céu que espero, juro que tudo o que ganhei, desde
a minha primeira viagem, com a ajuda de Nosso Senhor, Lhe será ofere-
cido de igual forma para a expedição à Arábia Félix e mesmo até Meca.»^^
Como sempre acontecia em épocas de tensão, o sentimento da sua própria
missão providencial foi realçado e iniciou um projecto que iria ocupar mui-
tos dos forçados tempos livres passados em Espanha: a procura nas Escrituras
de profecias das suas descobertas. «Do Novo Céu e da Nova Terra de que
Nosso Senhor falou, através de São João, no Apocalipse», assegurou, de
forma pouco plausível, à ama do príncipe, «fez-me Seu Mensageiro e reve-
lou-me tais locais. »^^
Também tinha novas e mais práticas reflexões para oferecer. Admitiu
que excedera os limites correctos da sua autoridade e a lei ao tentar domi-
nar, por enforcamentos arbitrários, a rebelião de 1500 em Hispaníola. A sua
autodefesa nesse aspecto era realista: uma fronteira selvagem, segundo escre-
veu, não poderia ser governada com decoro semelhante ao utilizado em
qualquer das possessões europeias dos monarcas. Esta admissão obrigava-
-o a fazer uma apreciação radicalmente nova dos índios: a sua desilusão em
relação a eles sobressai no retrato de um povo selvagem e guerreiro - «povos
selvagens que são belicosos e vivem em regiões montanhosas e florestas»^^.
Isto contrasta com as imagens admiráveis, quase adoráveis, de nativos pací-
ficos, naturalmente bons, geradas no seu primeiro encontro com eles. O pró-
prio Colombo, segundo parece, era susceptível ao tipo de desencantamento
evidenciado pelos seus homens.
A carreira de Colombo atingira agora o seu ponto mais baixo, mas as
circunstâncias não eram, talvez, tão adversas como à primeira vista pode-
ria parecer. A prisão temporária era uma espécie de risco profissional na
Espanha do tempo de Colombo e, embora nunca mais desfrutasse dos dias
tranquilos de 1493, alguma reparação o esperava em Castela. Falhara no
seu papel de sátrapa oriental, como se imaginara, mas um
novo e
forjava
mais glorioso como herói de hagiografia, servidor dos propósitos de Deus
previstos nas Sagradas Escrituras. Conservou os seus títulos sonoros de almi-
rante, vice-rei e governador, bem como as perspectivas de riqueza consi-
derável- mesmo contando com a falta de cumprimento das promessas dos
monarcas - pela sua parte do rendimento das índias. Seus filhos estavam a
ser educados na corte; Diego, o filho legítimo, tinha todas as probabilida-
3^ Navarrete, i. 222.
38
Textos, 264.
39
Ibid. 272.
182
des de contrair um excelente casamento e toda a sua família usava o título
de Don em Castela.
Era improvável que recuperasse o poder relativamente às responsabili-
dades governativas em Hispaníola. Uma das circunstâncias mais amargas
da sua desgraça foi a unanimidade com que os observadores mais impar-
ciais - os frades da missão de Hispaníola, com quem Colombo afirmava ter
uma relação especial - aconselharam os monarcas
a jamais permitirem que
o almirante voltasse, para bem
da tranquilidade da colónia"^^. Por outro lado,
embora solicitasse continuamente reparação na corte dos monarcas, os mean-
dros do poder nunca o tinham atraído tanto como a glória, a nobreza, a
riqueza e a excitação da descoberta. Como vimos, desejava ardentemente
partilhar o fardo do governo da sua colónia com alguém mais habilitado
para o suportar. Sentiu, talvez mais profundamente, a interrupção do seu
trabalho como explorador - a frustração dos seus contínuos esforços para
chegar ao fabuloso Oriente. A intervenção
do Demónio no progresso da sua
carreira ocorreu numa altura suas explorações a um ponto
em que levara as
crucial, pois, quando navegara em mar aberto
na sua terceira travessia, tor-
nara-se o primeiro europeu, desde as navegações casuais dos Vikings, a avis-
tar o continente da América e o primeiro a compreender a sua natureza con-
tinental. No seguimento desta descoberta, sofrera o mais intenso auto-exame
a que alguma vez se submetera e dera a expressão mais completa de sem-
pre às suas dúvidas sobre as suas próprias teorias geográficas. Em primeiro
lugar, os problemas da colónia de Hispaníola e, seguidamente, a chegada
de Bobadilla tinham-no impedido de fazer novas explorações e de verifi-
car, ao mesmo tempo, tanto as novas como as antigas especulações. Agora
estava afastado das índias e de regresso, pela força, a Castela, enquanto as
ideias que ponderara durante tanto tempo eram de novo mergulhadas no
cadinho aquecido da sua mente. Reflectira quase até à incoerência e cis-
mara quase até à loucura. Refugiara-se na fuga mística e nas obsessões para-
nóicas contra inimigos vagamente definidos. Tomara-se autojustificativo
quando anteriormente fora apenas auto-elogiador. Todos estes sintomas tor-
nar-se-iam mais acentuados à medida que enfrentava novas dificuldades e
experimentava novos desastres, nos anos que culminaram com a sua última
viagem transatlântica.
^ Cartas, 288-9.
183
l
p
8
185
motivos duplos de penitência e de política. Assim, a reconquista de Jerusalém
iria representar, em parte, um sacrifício pessoal e forneceria, se efectivada,
um meio de recuperar o prestígio perdido.
Os monarcas trataram evidentemente a proposta com frieza: numa
carta pessoal para a rainha - sem data e talvez escrita entre 1500 e 1502 -,
que é um pedido claro de umas migalhas de favor, Colombo pede a Isabel
«que não trate ligeiramente a questão de Jerusalém nem acredite que falei
sobre ela com qualquer motivo reservado»^ Foi-lhe pedido, porém, que
justificasse o plano com mais pormenor e, em fins de 1500, produziu em
resposta um memorando, «A Razão Que Tenho para Acreditar na
Restauração dos Lugares Santos à Santa Igreja Militante»^. Trata-se de
um documento espantoso, em que nenhuma estratégia é mencionada,
nenhuma consideração prática abordada, nenhuns meios ou medidas acon-
selhados. A sua única preocupação - apresentada entre muitas divaga-
ções autobiográficas e queixas pela forma como fora tratado - é mostrar
que a vontade de Deus, manifesta na profecia das Escrituras, nas estre-
las e nas emanações do Espírito Santo, consiste em que Jerusalém seja
agora recuperada para a Igreja por uma campanha lançada a partir de
Espanha. Na verdade, repudia expressamente argumentos práticos:
Deixo de lado toda a minha experiência de navegação desde jovem e todas as dis-
cussões que tenho tido com tanta gente em tantas terras e de tantas tradições religiosas;
e deixo de lado todas as minhas artes e escritos a que me referi. Baseio-me inteiramente
na Santa Escritura sagrada e em certos textos proféticos de certas pessoas santas que,
por revelação divina, têm tido algo a dizer sobre o assunto.
1
Textos, 303.
2 Ibid. 277.
186
giara a sua própria sabedoria prática e fizera da sua falta de cultura uma
virtude. Nas suas recomendações aos monarcas, parecia hesitar entre duas
auto-avaliações que se excluíam mutuamente: repetia a reivindicação, mui-
tasvezes apresentada, da autoridade devida à experiência prática, mas incli-
nava-se mais para uma autocaracterização como ignorante não sobrecarre-
gado por qualquer cultura secular e totalmente dependente de Deus:
É possível que Vossas Altezas e todos os outros que me conhecem a quem este
documento será mostrado me dirijam pública ou privadamente várias censuras: como
homem não dotado na erudição, como marinheiro leigo, como indivíduo terreno e prá-
tico, etc. Respondo com as palavras de São Mateus: «Oh, Senhor, Quem esconderia estas
3 Ver p. 82.
187
lógicos; e que o próprio Joaquim - pois é citado por esse primeiro nome -
associava a reconquista de Jerusalém a uma «Aquele
iniciativa espanhola:
que reconstruiria a Casa no monte Sião viria certamente de Espanha.»
Deve dizer-se que Colombo era um leitor tão desatento da literatura pro-
fética como da geográfica. Por exemplo, um ciclo de dez revoluções de
Saturno, descrito por Pierre d'Ailly, terminara 1489; podia portanto -
em
apenas com um pequeno esforço de imaginação - invocar-se como pre-
núncio da descoberta da América, mas não pode ter sido, ao mesmo tempo,
relevante para a conquista de Jerusalém projectada por Colombo"^. Não uti-
lizou os textos de D'Ailly sobre conjunções planetárias, que poderiam ter
apoiado os seus argumentos. As suas referências a passagens de D'Ailly
sobre o Anticristo, muito relacionadas com a visão de Colombo, foram vagas
e pouco exploradas. Colombo não parecia consciente de que nessas passa-
gens o cardeal estava a seguir Roger Bacon.O texto que atribuiu a Joaquim
parece ter sido uma invenção sua ou talvez uma tradição errada da época^.
O projecto de Jerusalém estava intimamente ligado à segunda preo-
cupação importante neste periodo da vida de Colombo: o esforço para pro-
mover uma determinada imagem de si próprio. A publicidade não tem obri-
gatoriamente que ser pouco sincera e é inteiramente convincente imaginar
Colombo empenhado a fundo na convicção do propósito divino que pro-
clamava ao mundo. Via-se como outro dos seus heróis, João Baptista, ou
seja, como «um homem enviado por Deus». Tratava-se, sem dúvida, de vai-
dade ou, na melhor das hipóteses, de falsa modéstia, mas uma forma de vai-
dade compreensível em alguém que tanto conseguira e que, no entanto, se
mostrava insatisfeito. Esta vaidade era alimentada pelos sentimentos mais
profundos e verdadeiros que marcavam a alma de Colombo: a cólera, o res-
sentimento, o orgulho e uma ambição facilmente frustrada. O filho de um
tecelão, ainda ávido de grandeza depois de se tomar vice-rei, e o explora-
dor ainda insatisfeito depois de descobrir a América podem provocar sim-
patia, mas apenas a observadores sensíveis; são difíceis de compreender
totalmente, mesmo para os mais compreensivos. Colombo fora também
encorajado pelo papel heróico que lhe atribuíam os seus admiradores. Terá
sido inebriante ser saudado como um novo apóstolo por Jaume Ferrer ou
como um candidato à apoteose por Pedro Mártir^. Todos estes efeitos -
alguns criados por ele próprio, outros por terceiros - conduziram Colombo,
firmemente, à convicção do seu papel providencial.
Porém, no caso de ter existido uma única influência decisiva, esta terá
que ser procurada na tendência de Colombo para o uso da religião como
Colomb (Paris, 1961), 495 il° 14; Colombo atribuiu a 'mesma doutrina a um enviado geno-
vês à corte espanhola: Raccolta, II. ii. 148, 202.
6 Ver p. 127.
188
um refugio. Precipitava-se para o abrigo da experiência religiosa sempre
que as tempestades da vida o ameaçavam. A sua relação com Deus tomou-
-se um substituto para as suas insatisfatórias relações humanas. O caminho
para o céu foi escolhido entre os destroços das suas muitas amizades des-
feitas. Loquaz sobre o amor de Deus, muito raramente mencionava a sua
A maior parte é composta por textos bíblicos e patrísticos sobre Ofir, Tarshish
e outros nomes de Colombo ou, simplesmente,
especial ressonância para
sobre ilhas. Existe um
fragmento do que parece ser uma cópia de uma pas-
sagem sobre eclipses observados por Colombo, contendo cálculos de lon-
gitude a partir deles, expressos por números confusos e contraditórios.
189
Encontra-se um comentário sobre uma passagem da Medea de Séneca
(extraída de um fólio ainda existente entre os livros de Colombo), citada
posteriormente por Colombo e que sugere uma autocomparação, na sua
mente, com o piloto de Jasão, Tífis, «que descobrirá um novo mundo e então
Tule já não será a mais remota das terras». Surge um fragmento exaspe-
rante de uma carta, supostamente dirigida por um embaixador genovês aos
monarcas católicos, atribuindo a Joaquim de Fiore a profecia segundo a qual
«de Espanha virá o homem que restaurará a Arca de Sião». Finalmente,
além das garatujas e dos rabiscos escritos ao acaso, aparecem dispersos ao
longo da colecção três fragmentos de versos. Uma estrofe de oito versos
celebra o banquete de João Baptista, por quem podemos deduzir que Colombo,
como vimos, tinha uma especial devoção. São oito linhas sobre a correcção
do cumprimento das promessas, o que terá sido relevante, na mente de
Colombo, para os pedidos que dirigia aos monarcas. O último poema, mais
longo e de carácter penitencial, foi escrito nas margens da última folha, pelo
que poderá, provavelmente, ser atribuído com segurança a um periodo pos-
terior. O seu tom introspectivo e o realce da iminência da morte confirmam-
8 Ver p. 213.
9 Textos, 272, 283.
190
seus direitos e especificava as suas queixas. Lamentava-se, sobretudo, de
que em virtude da sua demissão perdera benefícios provenientes da justiça
que era seu privilégio exercer; que o seu quinhão dos rendimentos de
Hispaníola devidos aos monarcas estava a ser calculado depois da dedução
dos pagamentos reais a terceiros; que lhe estava a ser negado o direito de
nomeação e demissão de cargos em Hispaníola, direito que constituía um
dos privilégios dos seus cargos, que fora infringido o seu monopólio da
navegação, que as suas despesas não tinham sido reembolsadas e, em resumo,
segundo um pedido de 1501, que «arriscou a sua pessoa e a de seus irmãos
e veio de tão longe para servir Vossas Altezas e gastou nisso dezassete anos,
a melhor parte da sua vida, sem qualquer recompensa até agora»'^.
Em fins de 1501 ou nos princípios de 1502, surgiram sinais de que a
sorte de Colombo estava a melhorar. Conseguiu juntar capital proveniente
de banqueiros genoveses de Sevilha para aproveitar o seu direito de inves-
tir em viagens às suas descobertas - «o meu oitavo quinhão nas viagens de
191
tou o conhecimento da costa, provavelmente até ao rio São Francisco. Porém,
pensava-se que grande parte da zona se incluía no lado português da linha
de Tordesilhas e a navegação portuguesa na zona estava a lançar os funda-
mentos da futura exploração. Era notório que quaisquer novas vantagens
para Castela teriam que ser procuradas mais para oeste e norte, para além
dos limites do que Colombo já descobrira. A falta de sucesso dos seus rivais
constituía uma poderosa razão para dar a Colombo uma nova oportunidade
de aumentar, ele próprio, os seus feitos.
Parecia, além que Colombo podia agora ser lançado, com segu-
disso,
rança, noutra expedição. Em Setembro de 1501, os monarcas tinham preen-
chido a vaga criada no governo de Hispaníola pela queda em desgraça de
Colombo, nomeando Don Nicolás de Ovando. O prestígio deste, conferido
por credenciais incontestavelmente aristocráticas, era acompanhado de uma
competência que a prosperidade de Hispaníola sob o seu domínio em breve
confirmaria. Como antigo membro da corte do príncipe, onde vigiava o seu
andamento, podia esperar-se que soubesse lidar com Colombo. Se o almi-
rante fosse autorizado a regressar às índias, Hispaníola poderia ser-lhe proi-
bida e, sob a chefia de Ovando, nada haveria a recear da impopularidade
12 Ibid. 305.
192
lho da história do seu empreendimento, feita «no estilo dos Comentários de
César». Falou em tom confiante da renovação do favor real: «Meu senhor
rei e senhora rainha desejam honrar-me, mais do que nunca.»^^
•3 Ibid. 308-15.
'4 Cartas, 298-9.
193
Maio, tinha quatro caravelas. Seus irmãos acompanharam-no - segundo
nos diz, Bartolomé foi relutantemente recrutado para servir^^ -, bem como
o seu inteligente filho Fernando, com apenas treze anos de idade. A sua
missão era exploratória - propósito mais agradável que as múltiplas res-
ponsabilidades que suportara nas suas duas últimas travessias. O seu objec-
tivo era «ir e explorar a terra de Pária», isto é, retomar as explorações
interrompidas na sua terceira viagem. Planeou, porém, não repetir as via-
gens ao longo da costa efectuadas sem sucesso pelos intrusos andaluzes
que ali tinham estado desde 1499, mas antes alargar a exploração da costa
de Pária bem para norte, verificando a extensão do continente nessa direc-
ção e procurando a tão desejada rota para a Ásia. Sabia-se agora que a
parte continental do Novo Mundo, descoberta por Colombo em 1498, ocu-
pava uma grande parte do Atlântico Sul. Colombo calculou que seria pos-
sível navegar pela passagem existente entre as ilhas que encontrara nas
suas primeiras travessias e este novo continente, através da parte ociden-
tal do que hoje se chama o mar das Caraíbas. Atingiria, assim, a fugidia
E no que respeita ao que dizeis sobre Portugal, escrevemos sobre o assunto ao rei
de Portugal, nosso genro, e junto vos enviamos a carta dirigida ao seu capitão, conforme
o vosso pedido, pela qual o notificamos da vossa partida para oeste e dizemos que sou-
bemos da sua partida para leste e que, se se encontrarem no caminho, devem tratar-se
como amigos e como é correcto entre capitães e súbditos de monarcas entre os quais
existe tanto amor e amizade e tantos laços de sangue, dizendo-lhe que vos ordenámos
o mesmo. E pediremos a nosso genro, o rei de Portugal, que escreva ao seu capitão nos
194
esta viagem, em que depositara tantas ilusões, viria a constituir o fracasso
mais evidente da sua vida. Terminaria não na Ásia mas nas profundezas da
angústia e quase no desespero. Atingido por um ciclone, sujeito quase insu-
portavelmente a ventos contrários, debilitado pela malária, atacado por índios
hostis na costa do Panamá, vagueando por fim na Jamaica, ameaçado pela
fome muitos dos seus homens, Colombo seria levado para
e rejeitado por
o refijgio dos seus anos de declínio: ilusões, misticismo e fantasia.
A travessia foi a mais rápida de todas as que fizera - vinte e um dias a
partir da Grande Canária. Porém, aí terminaram as facilidades. Raramente
encontrou ventos ou correntes favoráveis durante o resto da viagem. Os
monarcas tinham-lhe ordenado solenemente que não interrompesse a via-
gem em Hispaníola nem perturbasse o comando de Ovando. Afinal, tinham
sido prevenidos, pela autoridade irrefutável dos missionários franciscanos,
que, se Colombo desembarcasse na colónia, o resultado seria fatal para a
paz da ilha. A ordem foi transmitida com tacto, «porque não está certo que
esta viagem seja de qualquer forma atrasada», sendo-lhe dada permissão
«quando regressardes, se Deus quiser, se achardes necessário fazer ali uma
^'^.
pequena paragem no regresso»
Estas eram instruções a que Colombo não estava disposto a obedecer.
A ofensa que sentia quanto à sua destituição do governo efectivo de Hispaníola
causava-lhe grande sofrimento. A sua petição revelava, sob a aparência indi-
ferente do discurso na terceira pessoa, a verdadeira dor que lhe causava:
Está decidido que é ele que tem que governar e dirigir as ditas ilhas e terras como
almirante, vice-rei e governador e não outra pessoa... pois além de estar assim firmado
por contrato, é justo que o faça, devido ao papel que tem tido neste assunto e ao facto
de que não teria tomado este empreendimento se não estivesse decidido que teria que
governar e dirigir, porque nesse caso não poderia esperar obter qualquer recompensa
dele nem ninguém teria suportado o sofrimento nem arriscado a sua pessoa para levar
o assunto ao seu fim, como ele fez^^.
17 Ibid. 224.
'8 Textos, 298.
19 Ibid. 303.
195
Santo Domingo era, porém, o único porto permanente no extremo oposto
do Atlântico. Ir lá antes de continuar a exploração constituía uma precau-
ção sensata, bem como uma tentação irresistível. Quando chegou ao largo
de Hispaníola, a 29 de Junho, tomou-se urgente procurar abrigo. Aproximava-
-se um ciclone e Colombo, que conhecia aquelas águas melhor que nin-
guém, compreendeu os sinais com precisão. Enviou uma mensagem a Ovando,
pedindo entrada no porto e avisando-o da tempestade próxima. O governa-
dor ignorou o pedido e desprezou o aviso. «Alguma vez nasceu algum
homem», exclamou Colombo, «que não morresse de desespero - excep-
tuando o próprio Job - ao ser-lhe negado abrigo, pelo risco que corriam a
sua vida e alma e as de seu filho e irmãos e companheiros, na própria terra
e portos que, por vontade de Deus, suando sangue, conquistei para Espanha?»^^
Parte da armada que trouxera Ovando de Espanha partira, na ignorância do
ciclone, enquanto os navios de Colombo procuravam abrigo num pequeno
porto natural que conhecia nas proximidades.
Nessa noite, enquanto o navio almirante estava firmemente ancorado,
as outras caravelas quebraram as amarras e salvaram-se apenas por sorte e
pela ousada competência da tripulação. O destino da armada que partira
confirmou o aviso de Colombo. Perderam-se dezanove embarcações com
mais de quinhentos homens. Entre os mortos contavam-se Francisco de
Bobadilla, o funcionário que acorrentara Colombo, e o seu velho inimigo
Roldán^^ Também se perdeu o maior carregamento de ouro jamais enviado
para Espanha. O único navio que chegou a Castela foi um dos que trans-
portavam parte dos rendimentos do próprio Colombo.
Com ventos sul adversos, Colombo não podia retomar directamente
as explorações da costa de Pária. Não tinha outra solução senão dirigir-
-se para oeste, até que, em fins de Julho de 1502, encontrou a costa de
Belize, perto de Bonacca, na ponta oriental das ilhas Bay. Justamente
famoso por atravessar o Atlântico, Colombo conseguira agora uma segunda
transnavegação - a das Caraíbas -, menos espectacular mas, de certo
modo, igualmente notável. Se os atrasos causados pela tempestade e os
ventos contrários fossem tidos em conta, levara quase o dobro do tempo
a fazer a travessia do que a atravessar todo o oceano. As correntes com-
plexas, os ventos variáveis, os recifes e baixios traiçoeiros e o tempo tem-
pestuoso tomam as Caraíbas perigosas mesmo para os que as conhecem
bem; Colombo enfrentara-as sem preparação e aparentemente sem quais-
quer guias nativos a bordo. Ficou tão impressionado pelo seu próprio
feito que sentiu, ao olhar para trás, que fora guiado pela inspiração divina
- um «tipo de profecia» acessível apenas aos iniciados na astronomia -
2oibid. 317.
Oviedo,i. 72. Esta tradução toraa-se credível pelo testemunho da morte de Roldán,
2>
anterior a Agosto de 1504, revelada por Cioranescu, Óeuvres de Colomb, 473 n.° 10.
196
e que nenhum dos seus pilotos profissionais seria capaz de encontrar de
novo o caminho^^.
A costa das Honduras era aparentemente continental, com um interior
visivelmente montanhoso. Este facto foi confirmado pelos nativos, que
pareceram a Colombo mais civilizados que os ilhéus, mais bem vestidos,
com acesso a comércio distante e hábeis no trabalho do cobre. A costa
estendia-se de leste para oeste. A questão era saber se esta terra fazia parte
do continente que Colombo descobrira em Pária. Se assim fosse, estaria
em conformidade com os planos de Colombo, isto é, continuar pela sua
rota para oeste e procurar a índia nessa direcção. Decidiu, no entanto, rumar
para leste e navegar contra o vento na direcção da sua anterior descoberta
(ver mapa 5).
Colombo confessava uma obrigação assumida perante os monarcas de
cumprir a sua promessa de regressar ao «povo do pau-brasil». Pode ser,
porém, que a explicação da sua conduta resida antes em informações enga-
nadoras obtidas dos nativos. Pensava que na rota adoptada se encontrava um
estreito que, através de um istmo, conduzia a um grande oceano. Fez, pelo
menos, uma tentativa de identificação, na sua mente, deste estreito com o
estreito de Malaca, pelo qual Marco Pólo viajara nas faldas do Áureo
Quersoneso^^ (ou península de Malaca, como é hoje, prosaicamente, cha-
mada). Se isto fosse verdadeiro, a índia estaria do outro lado. Colombo vele-
java, efectivamente, ao longo da costa de um istmo e o oceano que o banhava
a ocidente era o Pacífico. Mas o estreito não existia e, mesmo que aí se
encontrasse o Áureo Quersoneso, estaria ainda a três ou quatro meses de via-
gem para além dele. Colombo ainda não tinha um intérprete de confiança.
Capturara um índio, agora baptizado «Juan Pérez», que estava a preparar
para essa função, mas, de momento, as suas comunicações com os nativos
eram por meio de sinais. A biografia atribuída a seu filho, que reivindica
uma autoridade especial para a viagem em que o jovem Fernando embarcou,
assinala que a confusão surgiu porque as informações dos nativos indicavam
um «estreito» ou faixa estreita de terra - isto é, o istmo do Panamá -, que
Colombo pensou significar um estreito de água «no seu sentido normal, de
acordo com o seu maior desejo»^"*. Não era a primeira vez nem seria a última
que Colombo era desviado do bom caminho pelas suas ilusões.
Durante quase quatro meses, o almirante e os seus homens sofreram
dificuldades enquanto perseguiam o quimérico estreito, primeiro em luta
22
Textos, 324-5.
23
Ibid. 319. Colombo parece, pela sua correspondência com Pedro Mártir, ter esperado
encontrar o Áureo Quersoneso desde a sua tentativa de medir a longitude de Hispaníola na
sua segunda viagem: Epistolario, i. 261, 307. A linguagem do relato feito por Colombo da
sua quarta viagem é,porém, cautelosa sobre a questão e deixa em aberto a possibilidade de
outra península ter sido atravessada antes do Quersoneso ser atingido.
2^ Historie, ii. 93.
197
esgotante contra o vento e depois, onde a costa inflectia para sul no cabo
Gracias a Díos, numa costa onde abundava a malária, com clima péssimo
e chuvas torrenciais. As embarcações estavam homens doen-
danificadas e os
tes. O irmão de Colombo, Bartolomé, encontrava-se entre os mais atingi-
dos. Em Cariai - região do décimo paralelo na costa da actual Costa Rica -
ouviu rumores de terras civilizadas e auríferas, aparentemente situadas no
extremo oposto do istmo. Em fins de Setembro, o próprio Colombo estava
«às portas da morte». O facto de ver o filho nas garras da doença trouxe-
-Ihe recordações de casa e reacções de autocompaixão:
A doença do filho que tinha comigo despedaçava-me a alma e tanto mais quanto o
via em tão tenra idade - com treze anos - com tantas dores e suportando tudo tão bem...
Outra tristeza arrancava-me o coração do peito e essa êra Don Diego, meu filho que dei-
xara em Espanha, sem ninguém para olhar por ele, despojado da herança da minha honra
e estado, embora acreditasse firmemente que Suas Altezas, como príncipes justos e vir-
tuosos, lhe restituiriam tudo com vantagem^^.
Lutei ali contra muitos perigos e dificuldades até à minha total exaustão e das embar-
cações e homens. Fiquei ali quinze dias, pois tal era a vontade do tempo cruel... Aí
mudei de minas e decidi fazer algo quanto a elas enquanto
ideias sobre o regresso às
esperava por tempo propício para retomar a minha viagem por mar. E, quando fizera
quatro léguas, a tempestade voltou. E deixou-me de tal forma exausto que estava quase
inconsciente. Agora, a minha velha ferida do mar começou a perturbar-me novamente.
Durante nove dias vagueei, perdido, sem esperança de sair dali vivo. Nunca olhos viram
mar tão alto e ameaçador e espumando. O vento não nos levava para onde queriamos
nem nos permitia chegar a qualquer tipo de terra. Aí permaneci, naquele mar de san-
gue, que fervia como um caldeirão numa grande fogueira. Um céu tão assustador nunca
se viu. Um dia ardeu toda a noite como o lume num fogão e lançava tais chamas, sob
25
Textos, 318.
26
Ibid. 320.
198
a forma de relâmpagos, que a todo o momento tinha que verificar se os mastros ou as
velas tinham sido atingidos. Brilhavam tão depressa e violentamente que todos acredi-
támos que os navios se afundariam. Em todo aquele tempo as águas do céu nunca para-
ram de cair torrencialmente. Não era o que se poderia chamar uma tempestade de água
mas antes a vinda do segundo Dilúvio. As tripulações estavam tão oprimidas nesta altura
que desejavam a morte como fuga a tantos sofrimentos. As embarcações tinham agora
perdido os botes, as âncoras e as amarras por duas vezes. Estavam muito esburacadas e
sem velas^^.
Ibid. 320-1.
199
Em meus navios estavam todos completamente atacados pelo caruncho e
Abril, os
mal os conseguia manter a flutuar. Nessa altura, o rio abriu um canal para o mar e, com
um esforço tremendo, consegui fazer sair três embarcações, sem carga. Os botes dos
navios voltaram para carregar o sal e a água. O mar ergueu-se e tomou-se ameaçador e
não puderam voltar a sair. Os nativos apareceram e atacaram os botes em força mas
foram mortos. Meu irmão e todos os meus outros homens estavam a bordo do navio que
ainda se encontrava no estuário e eu estava completamente só, ao largo, naquela costa
selvagem, com febre alta. Sentia-me completamente esgotado, morto para qualquer espe-
rança de fuga. Este era o estado em que me arrastei pelo cordame até ao cesto da gávea.
Clamei e gritei alto com medo, implorando, implorando urgentemente aos capitães dos
navios de guerra de Suas Altezas, de todos os cantos do vento, para virem em meu auxí-
lio. Mas nunca obtive resposta. Ainda gemendo, perdi os sentidos. Ouvi uma voz dizendo
em tom piedoso: «Oh, homem louco e lento no serviço do teu Deus, o Deus de todos!
Que mais fez Ele por Moisés ou pelo Seu servidor David? Desde o momento do teu nas-
cimento teve sempre especial cuidado contigo. E, quando viu que estavas na idade que
Lhe agradava, fez teu nome ressoar por toda a terra. As índias, que são uma parte tão
ricado mundo. Ele tas deu. Concedeste-as a quem quiseste e Ele permitiu-to. Dos laços
do mar Oceano, que tinham sido ligados com correntes poderosas, Ele deu-te as chaves.
E foste senhor de muitas terras e tua honra foi grande entre os cristãos. Que mais fez
Ele pelo Seu povo, Israel, quando o libertou do Egipto? Ou por David, quando de um
pastor o fez rei da Judeia? Volta-te para Ele e confessa o teu pecado. A Sua misericór-
dia é eterna. A velhice não te impossibilitará todos os grandes feitos. Múltipla e grande
é a herança da Sua dádiva. Abraão já tinha cem anos quando gerou Isaac. Sara também
não era jovem. Chamas Deus para te ajudar: considera, na tua ignorância, quem te afli-
giu tantas vezes e tão intensamente - Deus ou o mundo? Os privilégios e promessas que
Deus concede não os quebra. Nem diz, depois de O servirem, que tal não era o Seu pro-
pósito e que as Suas palavras deviam ser compreendidas de outra forma. Nem atribui o
destino de mártir como uma forma de esconder as obrigações. Mantém-se fiel ao sen-
tido literal das Suas palavras. O que promete dá com acréscimo. Esse é o Seu modo.
Como te disse, assim o teu Criador te tratou e assim Ele trata com todos os homens.
E agora», disse-lhe a voz, «mostra-Lhe a resolução que mostraste em todos os teus esfor-
ços e irás ao serviço de outros.» E, meio morto como mas não
estava, ouvi tudo isto,
sabia como responder meus peca-
a estas palavras de verdade, excepto chorando pelos
dos. Quem quer que falou, terminou com as palavras: «Não temas, mas tem coragem.
Todas as tuas angústias estão gravadas em letras de mármore e há um propósito por
detrás de todas elas.»^^
28 Ibid. 322-3.
200
Colombo em pessoa, como um domínio que Colombo, por autoridade divi-
namente delegada, transmitira aos monarcas. Isto era não só uma distorção
dos factos, pois a autoridade de Colombo adviera-lhe de concessão dos
monarcas e não o contrário, como era também uma doutrina extremamente
subversiva: a legitimidade do governo medieval dependia das afirmações
de que os poderes existentes são ordenados por Deus e de que a eleição
divina elevava os monarcas acima dos seus súbditos. Exceptuando o rei, a
reivindicação desta honra directamente de Deus era, no tempo de Colombo
- embora houvesse casos anteriores -, um desafio inimaginável à autori-
dade real. Em grande parte do discurso, a voz usou linguagem muito sobre-
carregada de alusões bíblicas e litúrgicas. As suas credenciais foram esta-
belecidas por frases conhecidas, como «não temas, mas tem coragem» e
«volta-te para Ele e confessa o teu pecado». Em particular, a voz seguiu
Job e Jeremias - livros que Colombo considerava, em certo sentido, apli-
cáveis a si próprio - e o discurso escatológico de Cristo, que terá sido minu-
ciosamente estudado por um leitor como Colombo, o qual esperava desem-
penhar um papel na reconquista de Jerusalém e alegremente antecipava o
fim do mundo. A voz seleccionou, como modelos a seguir por Colombo,
uma relação impressionante de figuras das Escrituras tradicionalmente con-
sideradas como próximas de Cristo. Existia, porém, uma passagem com duas
frases, no meio do discurso, onde a mensagem se desnudava das roupagens
bíblicas. Ocorria logo a seguir à referência ao facto de Abraão ter dado à
voz uma espécie de «deixa» para a introdução do conceito de aliança. «Os
privilégios e promessas que Deus concede não os quebra» parece reflectir
«o Senhor fez um juramento que não mudará», embora o termo «privilé-
gios» actualize a alusão e levante, implicitamente, a própria questão exis-
tente entre Colombo Seguem-se duas frases revelado-
e os seus patronos.
ras. «Nem diz, depois de O
terem servido, que tal não era o Seu propósito
e que as Suas palavras deveriam ser compreendidas de outra forma» era
uma censura directa a Fernando e Isabel: convenientemente para Colombo,
a voz poupou-lhe a necessidade de os acusar, directamente, de má-fé. A mesma
queixa subsistia em todas as petições que Colombo dirigiu à coroa nos últi-
mos anos de vida: não estava a receber as recompensas que os monarcas se
tinham comprometido a dar-lhe em 1492. A frase seguinte da voz era obs-
cura, mas a sua interpretação parece ser que Deus aceita apenas o martírio
voluntário, enquanto Colombo o recebera dos cruéis monarcas.
A voz parecia articular tão exactamente os próprios pensamentos de
Colombo de forma tão conveniente para os objectivos do explorador que
um leitor crítico é quase obrigado a perguntar se toda a aparição não foi
uma mistificação, um estratagema deliberadamente criado para a transmis-
são de um «subtexto» ligeiramente codificado e arriscado. De tudo o que o
crítico tem à sua disposição, a sinceridade é o mais difícil de avaliar, mas
vale a pena recordar algumas razões para pensar que Colombo acreditava
201
verdadeiramente nessa sua voz. Esta era, afinal, a terceira ocorrência do
mesmo género: uma única aparição suscitaria suspeitas, as repetições fre-
quentes poderiam sugerir demasiada exploração, mas três experiências seme-
lhantes não são nem de mais nem de menos para se tomarem facilmente
credíveis. Em cada nova ocasião, as descrições de Colombo tomam-se mais
explícitas e mais pormenorizadas: uma explicação para isto seria uma maior
confiança em presença de um fenómeno perturbador que se ia tomando gra-
dualmente mais familiar. Em todos os casos, as circunstâncias eram seme-
lhantes e conducentes a uma experiência mística em alguém cuja sensibili-
dade está adequadamente receptiva: nesta última ocasião, Colombo mencionou
especificamente que estava na verdade febril, bem como isolado e deses-
perado, quando a voz falou. Finalmente, as aparições de vários tipos - geral-
mente manifestações fisicas da Virgem, mas incluindo «vozes», e a descida
visível de outros seres celestes - faziam parte do tecido da experiência reli-
giosa popular no tempo de Colombo: não eram banais nem bizarras mas,
no conjunto, ainda bem-vindas e mesmo activamente promovidas pela Igreja.
A atitude oficial mudou, em Espanha, na segunda década do século xvi,
quando os visionários se tomaram objecto de cepticismo e mesmo de sus-
peitai^. Embora o início dessa mudança se possa, talvez, detectar na época
29 W. Christian, Appahtions in Late Medieval and Renais sance Spain (Princeton, 1981),
150-87.
202
riam afastar-se do continente logo que possível. Os homens devem ter receado
ficar vagueando na costa sul-americana e nestas circunstâncias as técnicas
tortuosas de Colombo no comando não podiam inspirar confiança total. Pode
ter-se tomado suspeito, por exemplo, de tentar persistir na sua missão à
costa de Pária ou de tentar procurar ainda o «estreito» para a índia. De facto,
na altura em que deixaram a costa, na península de Darién, a de Maio de
1
Ouçamos agora os seus comentários - os que são tão prontos a fazer acusações e
rápidos em encontrar defeitos, dizendo, dos seus ancoradouros seguros aí em Espanha:
«Por que não fez isto ou aquilo quando lá esteve?» Gostaria de ver o seu comporta-
mento nesta aventura. Acredito verdadeiramente que existe outra viagem, de tipo bas-
tante diferente, que eles farão ou toda a nossa fé é vã^^.
Como Colombo previra, tinham rumado para norte demasiado cedo. A sua
rota levou-os para cima, para a costa de Cuba. Num último esforço desespe-
rado para atingir Hispaníola antes dos barcos carcomidos se afundarem, desem-
barcaram a curta distância do seu objectivo - pois o vento era-lhes desfavo-
rável -, na costa jamaicana, na actual baía de Santa Ana^^ Eram na realidade
náufragos, visto que os seus navios estavam inutilizados e o estabelecimento
espanhol mais próximo encontrava-se em Santo Domingo, a mais de 450
Textos, 323-4.
Morison, ii. 386-7.
203
!
milhas, incluindo mais de cem milhas de zona navegável. Esta distância seria
facilmente transposta de canoa, mas uma curiosa característica da exploração
espanhola das Caraíbas é que pouco ficou a dever aos conhecimentos nati-
vos: a cultura indígena era subestimada e as embarcações nativas considera-
das pouco seguras. Mais tarde, no século xvi, as canoas tomaram-se um meio
de transporte básico para o comércio espanhol e seria por meio delas que o
salvamento de Colombo, a partir de Hispaníola, finalmente se efectuaria.
Inicialmente, porém, a ideia do recurso a um meio de transporte tão simples
e eficaz parece não ter ocorrido aos náufi*agos. A sua prioridade era a sobre-
vivência. Estavam dependentes dos abastecimentos que conseguissem dos
nativos por troca e limitados a uma alimentação dispéptica constituída por
carne de roedores e mandioca. Os Espanhóis tinham, no Novo Mundo, um
mau historial na manutenção de relações amigáveis com os nativos. Os pro-
blemas da procura excessiva e das trocas insuficientes deixaram, em breve,
os náufi'agos esfomeados e os nativos alienados. Durante a crise, Colombo
demonstrou algum do seu antigo desembaraço e engenho. Estava previsto um
eclipse para 29 de Fevereiro e, naturalmente, esperava-o com satisfação, na
esperança de medir a sua duração, confirmando assim a suposta latitude a que
se encontrava^^. Ao prevê-lo, prefigurou um herói de Rider Haggard e inti-
midou os índios de tal forma que renovaram os abastecimentos.
Semelhantes talentos foram-lhe exigidos pela explosão de uma rebelião
entre os seus próprios homens. Os irmãos Porras, Francisco e Diego, tinham
sido nomeados para lugares de comando na expedição pelo tesoureiro real
Alonso de Morales. Colombo admitira-os a bordo relutantemente e nunca se
tinham entendido. Conceberam um plano de regresso a Hispaníola, com
outros descontentes, utilizando canoas; Colombo foi obrigado a deixá-los
partir, mas acabaram por se afundar e só sobreviveram aterrorizando os hidios.
O almirante tinha poucos meios coercivos à sua disposição, além do derra-
mamento de sangue. A pólvora e as balas tinham-se esgotado e o moral da
tripulação fiel era presumivelmente frágil. Tentou lidar com os irmãos como
o fizera com Roldán, de adulação e apaziguamento. Rejeitaram,
isto é, através
porém, as suas abordagens neste sentido. A sua indisciplina punha em perigo
toda a expedição ao ameaçar o equilíbrio delicado das relações de Colombo
com os nativos. Colombo atribuiu o início das hostilidades aos amotinados:
204
Não podia arriscar-se a outro acto arbitrário de justiça semelhante ao
que tinha causado problemas a Colombo no caso de Adrián de Muxica.
Colombo libertou os irmãos amotinados. Mais tarde, o governador de
Hispaníola não quis processá-los e assim puderam juntar-se ao coro dos
detractores de Colombo em Espanha. «Os delinquentes apareceram na corte,
descarados», explodiu Colombo numa carta a seu filho. «De tal descara-
mento, tal malvada nunca se ouviu falar antes. »^'*
perfídia
Entretanto, Colombo tomara medidas para conseguir salvar a expedi-
ção. O seu leal subordinado Diego Méndez de Salcedo foi um dos aventu-
reiros mais ousados da expedição. Prestara bons serviços nas negociações
e na actuação relativas aos índios no continente e na Jamaica. Pelas suas
próprias palavras, os descontentes queixaram-se de que era o favorito de
Colombo, a quem o almirante confiava «todas as tarefas que conferem
honra». O novo objectivo era atingir Hispaníola numa canoa com remado-
res nativos, acompanhada por uma segunda canoa levando a bordo o ofi-
cial genovês Bartolomeo Fieschi. A distância era reduzida, pelos padrões
navegação e de resistência em pequenas embarcações, mas Méndez
actuais de
falou por todos quando respondeu que era impossível. Aceitou a missão
com demonstração convincente de relutância, apenas depois de ter falhado
um pedido geral para voluntários.
Então levantei-me [recordou] e disse: «Meu Senhor, tenho apenas uma vida. Estou
disposto a arriscá-la ao serviço de Vossa Senhoria e para bem dos presentes, porque
tenho esperança em Nosso Senhor Deus que, vendo a boa intenção com que o farei, me
libertará como fez muitas vezes anteriormente.» Quando o almirante ouviu a minha deci-
são, ergueu-se e abraçou-me e beijou-me na face, dizendo: «Sei bem que não havia nin-
guém senão tu que ousasse aceitar este empreendimento.»^^
205
saudável. Encontrava-se mergulhado numa autocompaixão pouco racional,
agravada por um genuíno sentimento de perigo:
A minha provação é como a descrevi. Até aqui, chorei as minhas próprias lágrimas.
Agora que os céus tenham piedade de mim e a terra chore por mim! Dos bens munda-
nos, tenho menos que nada para o ofertório. Dos confortos espirituais, aqui estou nas
índias, despojado como foi dito. Estou perdido nesta tristeza terrível, doente, esperando
dia após dia pela morte, rodeado por um milhão de selvagens, que fervilham de cruel-
dade e hostilidade para cormosco e estou tão desligado dos sacramentos da Santa Igreja
que a minha alma será esquecida se deixar o meu corpo neste local. Imploro as lágri-
36 Textos, 329.
" Ibid. 320, 327; os termos são semelhantes aos que utilizou quando escreveu ao papa
antes de partir: ibid. 311.
38 Ibid. 319-20.
206
culdade a Santo Domingo mas encontrara o governador Ovando previsi-
velmente insensível à provação de Colombo. Recusou ceder embarcações
para um salvamento imediato e obrigou Méndez a esperar a nova armada
de Espanha e a obter navios à sua própria custa. Só após sete meses de pro-
telamento oficioso é que Ovando enviou Diego de Escobar para confirmar
a situação de Colombo: a escolha do emissário foi pouco feliz, pois Escobar
era um amotinado veterano que se juntara à rebelião de Roldán em Hispaníola,
em 1499. Na altura em que chegou, no entanto, a própria visão de um ini-
Se alguma vez pronunciei palavras verdadeiras, são estas que vou dizer: que, desde
a época em que vos conheci, o meu coração tem ficado sempre feliz com tudo o que
tendes feito por mim... Não tenho espírito nem força para exprimir como estou con-
vencido disso. Deixai-me dizer apenas, meu Senhor, que a minha esperança tem sido e
é que não vos poupareis para me salvar e estou certo disso pois todos os meus sentidos
assim o indicam^^.
3Mbid. 331.
'«'Las Casas, ii. 316.
'*'
Décadas, iii. 4, 16.
« Cartas, 305.
207
«o MENSAGEIRO DE UM NOVO CEU»
A sua vida foi sempre católica e santa e era exigente em tudo o que dissesse res-
peito ao santo serviço de Deus. Portanto, podemos confiar que foi para a glória e está
*
Epistolario, ii. 88.
209
livre de todas as preocupações deste duro e triste mundo. A outra coisa é ser vigilante
e diligente, em tudo e por tudo, ao serviço de nosso senhor rei e lutar para lhe poupar
a adversidade. Sua Alteza é a cabeça da Cristandade. Conheces o velho ditado: quando
a cabeça adoece, também os membros adoecem. Por isso, todos os bons cristãos deve-
riam rezar pela sua vida e saúde e aqueles de nós que estão comprometidos ao seu ser-
viço deveriam contribuir com toda a diligência e zelo^.
realizada apenas em curtas tiradas, «pois esta minha doença é tão dolorosa
e o frio agrava-a tanto que não poderei evitar acabar nalguma estalagem»^
A última observação não era inteiramente jovial: Colombo queria dizer que
poderia morrer no caminho. Durante a sua ausência da corte, os seus negó-
cios foram dirigidos por Diego - apoiado, em Dezembro de 1504, por
Bartolomé e pelo jovem Fernando - e por Diego Deza, que se tomou arce-
bispo de Sevilha em Janeiro de 1505, mas os esforços conjugados deram
pouco ou nenhum resultado. Os assuntos em causa eram, como sempre, os
termos dos privilégios de Colombo: o patrocínio e os rendimentos que os
monarcas não estavam dispostos a conceder, os cargos que não tinha com-
petência para desempenhar. No início de 1505, Colombo exprimiu a Deza
o seu desespero, numa carta em que culpa o rei, com franqueza chocante:
E visto que parece que Sua Alteza não está disposta a cumprir o que prometeu com
a sua palavra e por escrito, juntamente com a rainha - que Deus dê descanso à sua
alma -, sinto que, para um simples lavrador como eu, lutar estando ele contra mim seria
como lutar com o vento. E tudo correrá bem. Pois fiz o que pude e agora que seja o
2 Textos, 341.
3 Ibid. 329, 337, 339, 350.
210
Senhor Nosso Deus a agir, mas sempre O encontrei muito favorável e uma ajuda muito
presente quando em dificuldades"^.
vã, visto que divergiam precisamente sobre a definição do que era devido.
O descobridor retirou-se algo consolado, convencendo-se a si próprio de
que o rei não podia resolver a questão definitivamente enquanto os herdei-
ros do trono de Castela, o rei Felipe e Dona Juana, se encontrassem ausen-
tes do reino^. O que se terá passado entre os interlocutores, numa ocasião
como esta, é sugerido por uma passagem de uma carta de Colombo a
Fernando, provavelmente desta data*^. Começa com a afirmação, agora fre-
quente em Colombo, de que «foi um milagre que Nosso Senhor Deus me
enviou aqui para servir Vossa Alteza». Segue-se uma comparação desfavo-
rável entre Fernando e o rei D. João II de Portugal, pois este «tomou a res-
211
ponsabilidade pessoal das questões ligadas à exploração em vez de as dele-
gar em qualquer pessoa». A
acusação implícita era dirigida ao bispo Juan
de Fonseca, cuja interferência nunca fora do agrado de Colombo. O almi-
rante prosseguia, recordando sem tacto as suas supostas oportunidades de
servir outros patronos, antes de voltar a insistir que «o meu empreen- em
dimento... é e provará ser o que sempre afirmei».Grande parte do resto da
carta apresenta de novo as reivindicações de Colombo quanto ao cumpri-
mento específico de todas -as alegadas promessas dos seus patronos, antes
de concluir:
Se for restaurado no favor, podereis ter a certeza de que vos servirei nestes poucos
dias restantes que Nosso Senhor me concederá para viver, e que tenho esperança n'Ele,
como sinto no meu coração e pareço saber ao certo, que farei que esse serviço que ainda
tenho que cumprir ressoe cem vezes mais alto do que o que fiz.
cilmente terá sido credível. Estes temas incluídos nas últimas súplicas do
almirante ao seu patrono, juntamente com a proclamação renovada da con-
vicção de que, desde o princípio, tivera razão sobre as suas descobertas,
revelam o mundo mental para onde Colombo se retirara: incorrigivelmente
vaidoso, implacavelmente provocador, inacessível à razão.
E no entanto, consciente da morte iminente, estava também resignado.
Nas margens da última folha da sua colecção de profecias escreveu, pro-
vavelmente nos últimos meses de vida, um longo poema referente a si pró-
prio: a cópia a limpo que começou a transcrever nunca foi terminada^ Com
forma de balada e mensagem sentenciosa, o poema assemelha-se ao género,
popular na corte de Fernando e Isabel, da filosofia moral em verso, em que
os escritores franciscanos se especializavam^. O seu quietismo é perturbado
por algumas das obsessões caras a Colombo - a malevolência dos seus ini-
migos, o acerto das suas contas com «César»'^. Cada verso começa com um
termo latino; lidos em sequência, formam a frase: «Memorare novíssima
tua et in aetemum non peccabis.» Na Idade Média, esta sentença estava
associada à imagem de São Jerónimo e era interpretada como uma exorta-
ção à penitência; segundo esta tradição, poderia ser traduzido por: «Lembrai-
212
-vos das vossas mais recentes acções e evitareis o pecado na eternidade.»
Para Colombo, a frase no contexto do poema transmite um significado dife-
rente, de triunfo e vaidade, que procurei evidenciar numa tradução do que
é, afmal, virtualmente o epitáfio do próprio Colombo. Os termos em latim
213
Porque as suas vidas empregaram
Maldosamente e gozaram
Os prazeres do mundo e da ganância.
Para sempre a perda é o seu medo
Das riquezas que nunca saciam.
SEDE SEM PECADO e contemplai
As agonias dos que morrem,
Como a dor e o terror são o destino
Dos pecadores no seu estado miserável.
Pensai bem, tanto quanto puderdes.
Nos justos, libertos por fim
Das lutas sofridas no passado
Para a luz eternamente.
Servi o rei e a rainha, nosso Senhor e Senhora [escreveu], nas índias - digo servi
mas parece antes que por vontade de Deus lhas dei, como um bem meu, posso dizer,
porque tive que importunar Suas Altezas sobre elas, pois eram desconhecidas e a forma
de as descobrir estava ocuha de todos a quem se perguntou por elas.
•1 Ibid. 360-2.
214
da de 1480, em relação aos que o tinham protegido ou com quem tinha con-
traído dívidas: todos membros de famílias de mercadores e banqueiros geno-
veses, exceptuando um judeu anónimo «que vivia perto das portas da
Judiaria»^^. Tudo isto parece inteiramente lógico num moribundo, cuja memó-
ria recua selectivamente pelas crises e triunfos da vida, à medida que pro-
cura fazer o seu exame de consciência.
porém, errado supor que Colombo morreu num estado de espí-
Seria,
rito de retrospecção. No leito de morte, a autocompaixão e a angústia quanto
aos termos dos seus «contratos» misturavam-se com sonhos de glória futura.
Por morte da rainha Isabel, sucederam-lhe sua filha e genro, Juana e Felipe,
enquanto Fernando permanecia em Castela como regente. O casal real encon-
trava-se nos seus domínios da Borgonha, esperando-se que viessem, por
mar, dos Países Baixos para Espanha. Segundo Las Casas, Colombo sen-
tiu-se reconfortado com a esperança da sua chegada, talvez por estar des-
contente com a atitude de Fernando ou por sentir que um resultado satisfa-
tório para o seu caso estava destinado a ficar em suspenso durante a ausência
dos herdeiros. Quando chegaram, a 26 de Abril de 1506, encontrava-se nas
garras da sua última doença. A última carta do seu punho que chegou até
nós é-lhes dirigida:
Mui serenos e mui altos e poderosos príncipes, nosso Senhor rei e Senhora rainha,
confio em que Vossas Altezas acreditarão em mim quando digo que nunca desejei tão
ansiosamente a saúde do meu corpo como quando ouvi que Vossas Altezas vinham para
cá através do mar, para que pudesse ir perante vós e colocar-me ao vosso serviço e para
que vísseis o conhecimento e a experiência que tenho em navegação. Mas Nosso Senhor
decidiu de outro modo. Assim, peço muito humildemente a Vossas Altezas que me con-
teis entre o número dos vossos fiéis vassalos e servidores e tomeis por certo que, embora
esta doença agora me ponha à prova sem mercê, poderei no entanto servir-vos com tal
serviço que nunca foi visto antes semelhante. As situações desagradáveis em que fui
•2 Ibid. 363. Apenas um legado neste codicilo, feito a «Gerónimo dei Puerto» de Génova,
pode pertencer a um contexto diferente do da Lisboa de Colombo.
•3 Ibid. 358.
215
entre os franciscanos de Valhadolid, o corpo foi trasladado em 1509 para o
mausoléu da família erigido por seu filho em Sevilha. Uma mudança de
ideias de Don Diego levou a uma nova remoção, após a morte deste, para
o santuário da catedral de Santo Domingo. Em 1795, quando Santo Domingo
se tomou francesa, foram de novo trasladados para a respeitabilidade do
solo espanhol em Havana, até que a «libertação» de Cuba na guerra de 1898
tomou conveniente enviá-los de novo para Espanha, onde foram deposita-
dos num monumento, com a imponência adequada, na Catedral de Sevilha.
Com as sucessivas remoções, multiplicaram-se as possibilidades de troca,
pelo que Santo Domingo, em particular, permanece convencida de que os
verdadeiros ossos de Colombo ali ficaram^"^. Os apreciadores da ironia fin-
gem acreditar na anedota de cicerone segundo a qual Colombo repousa «sob
as mesas de bilhar» do Café dei Norte, em Valhadolid^^ Mas, se as relí-
quias do seu corpo não estão na Catedral de Sevilha, as da sua mente ali
estão, sem dúvida. Podem ver-se sob a forma dos livros da sua biblioteca
que chegaram até aos nossos dias e das notas que escreveu nas margens.
Em nenhum outro local os viajantes sentirão mais a magia das relíquias
representativas do espírito de Colombo.
''*
A argumentação é feita por Thacher, iii. 506-13, e A. Pedroso, Cristóbal Colón (Havana,
1944), 451-71. Para uma resposta a favor de Sevilha, que não corresponde totalmente ao seu
título, ver B. Cuartero y Huerta, La prueba plena (Madrid, 1963).
'5 Granzotto, Christopher Columbus, 283-5.
216
digma da espoliação da natureza e da corrupção do homem natural. E se a
influência do Velho Mundo sobre o Novo do Novo sobre
foi perniciosa, a
'^ F. López de Gomara, Historia general de las índias, ed. P. Guibelalde e E. M. Aguilera
(Barcelona, 1965), 5, 29.
'^ Las Casas, i. 70-1; Oviedo, 15-21; ver «Prefácio», n. 9.
217
podia apresentar numerosos testemunhos a favor do pai e Fernando escre-
veu extensamente em defesa das suas reivindicações. Deve dizer-se que,
qualquer que fosse o papel de Martin Pinzón na primeira viagem transa-
tlântica, sobreo qual nunca saberemos toda a verdade, ele se juntou ao
empreendimento apenas numa fase tardia, quando os planos de Colombo já
iam bem avançados. Embora Colombo conhecesse bem muitas histórias de
marinheiros sobre terras desconhecidas a oeste e registasse algumas delas
juntamente com outras provas em apoio das suas teorias, a história do piloto
desconhecido é inaceitável tal como se apresenta: provém de fontes influen-
ciadas, não é confirmada por qualquer autoridade contemporânea e baseia-
-se na hipótese de uma travessia casual que não está registada, de qualquer
outra forma, na latitude em
que Colombo velejava (embora se tenham veri-
ficado travessias acidentais mais para sul,em rotas que se desconhece terem
sido frequentadas antes da época de Colombo)^^ O argumento de que o
piloto desconhecido deve ter existido porque Colombo não teria, de outra
forma, sabido para onde ir lembra um dos argumentos irónicos de Voltaire
a favor da existência de Deus: se Ele não existisse, seria necessário inventá-
-Lo. O piloto desconhecido não é necessário mesmo como ficção reconfor-
tante. Colombo reunira indicações suficientes sobre terras a oeste, segundo
os seus próprios padrões, pelas suas próprias pesquisas, sem recurso a fon-
tes secretas. Segundo que coligiu incluía his-
ele próprio admitiu, o material
tórias de marinheiros sobre terras atlânticas, formando apenas um fi*ágil fio
na teia das provas. A «certeza» que ele terá evidenciado e que só pode expli-
car-se, afirma-se, por uma pré-descoberta da América é, como vimos, outro
mito. O suposto marinheiro não pode ter ajudado muito, visto que a sua
informação não era suficiente para abalar a convicção de Colombo de que
encontrara a Ásia. As dúvidas do almirante sobre esse ponto, quando sur-
giram, foram claramente atribuídas às suas próprias observações.
Os rivais de Colombo em breve se multiplicaram logo que os relatos
das viagens de Vespucci se tomaram conhecidos. Não há dúvida de que a
reivindicação de Vespucci - para sermos justos, deve dizer-se antes a rei-
vindicação apresentada em favor de Vespucci em seu nome - de ter visi-
tado a parte continental do Novo Mundo antes de Colombo é falsa. Baseia-
-se no relato pré-datado da sua aventura com Alonso de Hojeda no golfo
de Pária. Colombo precedera-os nessas terras um ano e o seu relato inspi-
rara quase certamente a tentativa de Hojeda. Os actuais admiradores de
Vespucci colocam mais ênfase na alegação de que o florentino foi o pri-
meiro a compreender a verdadeira natureza da América como um conti-
nente separado da massa de terra euro-asiática. Mas, como argumentámos,
Colombo fez também a primeira reivindicação nesse sentido e, se a opi-
nião de Colombo não foi firme, também a de Vespucci não foi inequívoca
218
nem imutável. Este apoiou, explicitamente, a convicção de Colombo na
proximidade entre o Novo Mundo e a Ásia. Apenas um ano depois da morte
de Colombo, Martin Waldseemiiller propôs que o novo continente fosse
chamado América em honra de Amerigo Vespucci, que considerou um geó-
grafo à altura de Ptolemeu: seis anos depois, retractou-se desta sugestão e
restituiu a Colombo a honra da descoberta. Entretanto, porém, o novo nome
começara a afirmar-se. É inútil dizer que o nome é errado, mas importa
compreender que tem que ser justificado, se for caso disso, pela eficácia
de Vespucci como publicista e não como descobridor.
A ironia está em que a fama de Vespucci surgiu tarde - depois da morte
de Colombo - e não afectou a relação pessoal íntima entre os dois explo-
radores. Fora permitido a Vespucci o acesso aos livros de Colombo, foi tes-
temunha numa minuta do testamento de Colombo e viveu na casa de Colombo
durante os últimos meses passados pelo descobridor em Sevilha. Na época,
o juízo de Colombo sobre ele tinha ampla justificação: «A fortuna», escre-
veu, «foi-lhe adversa como a tantos outros. Os seus trabalhos não lhe trou-
xeram os benefícios que mereciam.» A imagem de dois navegadores subes-
timados, confortando-se mutuamente em Sevilha, é deliciosa. Esta imagem
é confirmada por outras fontes: em 1502, Pietro Rondinelli referira a mesma
versão sobre a sorte de Vespucci, bem menos recompensado do que mere-
cia. Colombo apreciava-o tanto que o recrutou - aparentemente com agrado -
para se juntar ao seu grupo de pressão na corte. Assim, os dois grandes
rivais pelos louros da descoberta trocavam comiseração e recomendações^^.
Escritores posteriores acrescentaram aos rivais deColombo os Noruegueses
das sagas proto-históricas ou mesmo os Galeses e os Hibémios de mitos mais
remotos e nebulosos. A descoberta galesa, juntamente com a dos Escoceses,
Polacos, Venezianos hoc genus omne, pode ser relegada para o reino da
et
fantasia. Da descoberta não se pode dizer muito mais, excepto que
irlandesa,
ela era tecnicamente possível. A América pode ter sido alcançada pelas nave-
gações de eremitas que, entre os séculos vi e vii, procuraram ilhas desertas
no Atlântico Norte, em pequenas embarcações, por razões devotas; a fonte
em que algumas destas estão registadas - a história da procura do Paraíso
terrestre por São Brendan - é tão invulgar, pelos padrões da literatura hagio-
gráfica da época, que é tentador lê-la como se fosse o relato de uma viagem
real. Mas tudo no texto pode ser explicado sem defender o desembarque de
219
maior parte das «provas» arqueológicas apresentadas em seu apoio seja
muito pouco impressionante, a de UAnse aux Meadows, perto do estreito
de Belle Isle na Terra Nova, é mais ou menos convincente. A história con-
tada nas sagas é muito inconsistente, mas podemos sintetizá-la pelo que
vale. Em 987, Bjami Heijolfsson tentou navegar da Islândia para a Gronelândia
por uma rota desconhecida de qualquer membro da sua tripulação, tendo-
-se perdido e avistado uma terra desconhecida até então. Depois de um inter-
valo de quinze anos, Leif Eiriksson, filho do fundador da colónia escandi-
nava na Gronelândia, seguiu a rota de Bjami e desceu uma longa costa até
zonas a que deu os nomes de Helluland, Markland e Vinland. A descrição
desta última na saga é totalmente compatível com a do Norte da Terra Nova.
Seguiu-se uma missão colonizadora sob a chefia de Thorfmn Karlsefhi - um
mercador inspirado peia história de Leif - mas enfrentou os terríveis nati-
vos, os Skraelingar, e teve que ser abandonada em data desconhecida no
início do século xiii-^
Esta descoberta norueguesa da América não deve ser desprezada. Pode
ter começado acidentalmente, mas foi prosseguida com um genuíno espí-
rito de exploração. Os Islandeses registaram-na segundo o costume do seu
tempo e esse registo foi conserv^ado até. pelo menos. 1347, data em que a
última viagem de comércio ou para caçar a Markland é mencionada nos
Anais Islandeses. Agora que se demonstrou que o Mapa de Vinland exis-
tente na Biblioteca da Universidade de Yale, em tempos prematuramente
considerado como confirmação das sagas, é uma falsificação, não se pode
afirmar que a tradição de Vinland se tenha mantido depois disso ou tenha
sido transmitida sob forma cartográfica até ser ressuscitada pelos antiquá-
rios do século XVI. A ideia de que Colombo a deve ter adoptado na sua
visita à Islândia em 1477, ideia que alguns estudiosos não hesitaram em
apresentar--, é extremamente precipitada. A obra de Colombo é bem dis-
tinta do feito dos viajantes noruegueses e, segundo qualquer padrão racio-
nal, incomensuravelmente mais significativa. Em primeiro lugar, a menos
que se dê crédito à ideia de que encontrou algo na Islândia, os seus empreen-
dimentos foram inteiramente independentes um do outro. Em segundo lugar,
a rota norueguesa através do Atlântico seguia a via de alpondras geladas:
de facto, ligava a Islândia e a Gronelândia a Markland e a América à
Escandinávia apenas de forma indirecta e, no melhor dos casos, muito irre-
gular, enquanto Colombo descobriu uma rota directa de acesso fácil. Isto
não diminui, evidentemente, a proeza dos viajantes islandeses, que nave-
garam tão longe em condições adversas, mas é uma distinção importante.
Em terceiro lugar, os próprios Islandeses eram guardiães de um posto avan-
'1 Morison, European Discoven-, 32-60; G. Jones. A Histon- of the Vikings (Londres,
1968), 295-306.
2^ Taviani, Christopher Columbus, 93, 352. Tal como os antecessores que cita, Taviani
não tem provas, apenas uma «convicção» sobre o que «deve» ter acontecido.
220
çado, impressionante mas do Norte da Europa,
periférico, da civilização
que acabava de se tomar um jovem parceiro da Cristandade latina da época.
Os seus contactos com os Skraelingar nada produziram com significado
cultural para o resto do mundo. Colombo ajudou, realmente, a colocar uma
faixa à volta do mundo, em dois aspectos distintos: descobriu duas novas
rotas - a transatlântica e a transcaraíba - que criaram o elo de união entre
as grandes civilizações, anteriormente separadas, da Mesoamérica e do
Mediterrâneo e descobriu a rota dos ventos alísios que conduziu os seus
sucessores no Atlântico Sul - a grande via da Europa no século xvi - ao
resto do mundo^^ Finalmente, Colombo foi o primeiro numa tradição inin-
terrupta de navegação transatlântica que se manteve até aos nossos dias:
nosso descobridor da América. As viagens islandesas não
ele é, portanto, o
diminuem esse papel mais do que as supostas viagens chinesas à costa ame-
ricana do Pacífico ou a descoberta feita pelos primeiros habitantes do con-
tinente quando atravessaram, há mais de vinte mil anos, o estreito de Bering
ligado pelo gelo.
Um argumento alternativo, ainda ligado aos Vikings mas apresentado
especialmente pelos admiradores de Vespucci, defende que a descoberta da
América por Colombo não foi superior à dos Islandeses, visto que encon-
trou o Novo Mundo completamente por acaso e não conseguiu reconhecê-
-lo correctamente: não se pode dizer que alguém «descobriu» alguma coisa
a não ser que a reconheça pelo que é. Também se tem dito que nem Colombo
nem ninguém até à sua época previu a existência de uma segunda massa de
terra no munndo e que é, portanto, impreciso falar da «descoberta» de alguma
coisa que a mente europeia não estava conceptualmente preparada para com-
preender. Pelo contrário, a descoberta da América deu-se gradual e cumu-
lativamente à medida que, por influência de novas explorações, as suposi-
ções dos homens se adaptaram aos factos. Hoje em dia aceita-se que não
se pode dizer que alguém «descobriu» alguma coisa sem a reconhecer pelo
que é. De outra forma, o acontecimento é um mero acidente, que passará
despercebido a não ser que outra pessoa sugira uma identificação que o des-
cobridor não conseguiu fazer. A penicilina ficará no cadinho até este ser
lavado, o cometa desaparecerá da vista, mas tal não sucedeu quando Colombo
encontrou a América.
Em primeiro lugar, as possibilidades de uma descoberta exactamente
igual à de Colombo - a de um continente separado da massa de terra euro-
-asiática - foram seriamente debatidas, vivamente discutidas e, nalguns
Colombo.
casos, ansiosamente esperadas entre os eruditos antes da partida de
Após o regresso e conhecido o relato, um considerável número de comen-
tadores cultos precipitou-se ao concluir que Colombo descobrira exacta-
23 F. Femández-Armesto (ed.), The Times Atlas ofthe World Exploration (prestes a ser
publicado, Londres, 1992), cap. 12.
221
mente tal mundo antípoda. O próprio Colombo, na sua terceira viagem, iden-
tificou correctamente o continente que então descobriu pela primeira vez
com o continente imaginado. Durante a virtual loucura causada pelos seus
sofrimentos posteriores, abandonou a ideia e, mesmo quando a defendia, a
sua opinião sobre a proximidade entre as suas descobertas e a Ásia era for-
temente exagerada, mas a América não tinha que ser «inventada»^"*: o dis-
curso da época incluía termos adequados para a descrever e classificar e o
próprioColombo esteve entre as primeiras pessoas a utilizá-los.
É claro que a descoberta da América foi um processo que começou com
Colombo mas se desenrolou, pouco a pouco, depois da sua época, irregu-
larmente, não estando ainda totalmente completo. Afinal, tem havido muita
América para descobrir. O levantamento das costas da América do Sul não
estava totalmente completo até cerca de 1 540 e, embora as costas do Atlântico
e do Pacífico da América do Norte fossem mais ou menos conhecidas nessa
época, a costa norte permaneceu oculta sob o gelo até que Amundsen a atra-
vessou em 1905. Relativamente à questão principal entre Colombo e a pos-
teridade - a relação entre a América e a Ásia -, Femández de Oviedo salien-
tou, na década de 1530, que toda a verdade era ainda desconhecida, e assim
permaneceu até ao princípio do século xviii, quando o estreito de Bering
foi explorado. Muitas das características físicas importantes do interior eram
ainda desconhecidas em fins do século xviii, não tendo sido cartografadas
até inícios do século xix; só com o advento da cartografia aérea, no pre-
sente século - que só desvendou os últimos segredos da América do Sul a
partir da década de 1970 -, se penetrou nas últimas áreas que resistiam
à exploração. Num processo tão longo, Colombo detém um lugar primor-
dial como seu iniciador e a extensão a que o levou, durante a sua curta car-
reira, é ainda mais surpreendente quando comparado com o cenário do pro-
cesso como um todo: depois de desembarcar nalgumas ilhas das Baamas,
explorou grande parte da costa de Cuba, Hispaníola, Jamaica, Porto Rico,
das Pequenas Antilhas até Dominica e Trinidad e a costa do continente desde
a foz do Orinoco até à baía das Honduras.
O último argumento contra a atribuição da descoberta a Colombo levanta
também um problema conceptual. Apenas numa perspectiva muito grossei-
ramente eurocêntrica, afirma-se, se poderia falar da «descoberta» de terras
que tinham sido bem conhecidas pelos seus povos nativos durante milhares
de anos. Tem sido inclusivamente defendido, por um erudito altamente con-
ceituado e podendo-se apenas detectar um levíssimo traço de ironia, que a
descoberta americana da Europa precedeu a descoberta europeia da América,
quando uma canoa caraíba foi mal orientada através do Atlântico, consti-
tuindo o conhecimento deste facto o «segredo» de Colombo^^ Pense-se o
222
!
que se pensar desta brincadeira, é difícil negar prioridade à descoberta ame-
ricana da América. Este respeitável argumento faria da palavra «descoberta»
um termo quase inútil, limitando-o a terras desabitadas. Não indica que a
descoberta não é uma questão de estar num local mas de lá chegar, de esta-
belecer rotas de acesso a partir de outro local. O povoamento do Novo
Mundo, que foi seguido pelo seu isolamento, não foi claramente uma des-
coberta, nesse sentido. Um hemisfério tão vasto oferecia naturalmente espaço
para intensa exploração interna: é apropriado falar da exploração, registada
em mapas, feita por alguns esquimós, índios norte-americanos, povos
mesoamericanos e pelos Incas, registada neste último caso através de mne-
mónicas que hoje mal compreendemos^^. A confiança dos primeiros explo-
radores espanhóis e portugueses nos guias nativos, mesmo nalguns casos
para percorrer longas distâncias, sugere que outras histórias de exploração
se deram no Novo Mundo, que podemos apenas adivinhar. Nada disto retira
o carácter de descoberta à criação de rotas que ninguém conhecia anterior-
mente, como as de Colombo através do Atlântico.
Apesar de quase quinhentos anos de detracção sistemática, o seu papel
prévio na descoberta da América permanece a parte mais importante das
credenciais de Colombo como explorador. Mas devemos recordar alguns
dos testemunhos de apoio também: a decifração do sistema de ventos do
Atlântico, a descoberta da variação magnética no hemisfério ocidental, os
contributos para a cartografia do Atlântico e do Novo Mundo, as épicas
travessias das Caraíbas, a demonstração da natureza continental de partes
da América Central e do Sul, o aperçu sobre a esfericidade imperfeita do
globo, a estranha habilidade intuitiva na navegação. Qualquer destes fei-
tos daria a um explorador fama duradoura, juntos constituem um historial
difícil de igualar.
Colombo era um ignorante confesso que desafiou a sabedoria reco-
nhecida na sua época. A sua humildade perante textos antigos, combinada
com o prazer paradoxal que sentia sempre que os podia corrigir pela expe-
riência, aponta-o desde logo como um dos últimos portadores do facho da
cosmografia medieval, que se transportavam com os archotes aos ombros
dos seus predecessores, e um dos primeiros sinais luminosos da revolu-
ção científica, cujo brilho foi induzido do interior por terem preferido a
experiência à autoridade. O mesmo tipo de paradoxo alimentou todos os
aspectos do seu carácter. A atracção pela fantasia e pelas ilusões acomo-
dava-se dificilmente naquela mente realista, já bastante ocupada com o
sentido do comércio e do lucro. Nas relações com a coroa e na preocupação
com os seus descendentes, o seu misticismo era temperado por um mate-
1982), 419-58.
223
rialismo apenas ligeiramente menos intenso - como os ricos gurus que
hoje em dia são tão conhecidos em retiros espirituais como no mundo dos
negócios. Embora a religião tivesse uma poderosa influência na sua vida,
os efeitos eram estranhamente limitados: os legados devotos foram pou-
cos, a caridade começava e quase acabava entre os seus familiares. Os
índios que descobriu foram encarados com zelo evangélico e tratados com
insensível indiferença. Foi um praticante inveterado do embuste, uma
vítima perene da auto-ilusão, mas raras vezes foi conscientemente falso.
Ao lidar com subordinados, era alternadamente calculista e franco. Ansiava
por admiradores mas não conseguia conservar os amigos. A sua ânsia de
enobrecimento, a sua ambição confessa por «estado e riqueza» não o impe-
diram de demonstrar um certo orgulho na sua origem modesta nem de
comparar o tecelão-almirante ao pastor-rei. Adorava a aventura, mas não
suportava a adversidade. Ainda mais paradoxalmente, para além das ilhas
e continentes do Oceano, Colombo explorou involuntariamente as regiões
limítrofes entre o génio e a loucura. Os momentos de tensão transtoma-
vam-no - por vezes, chegariam a enlouquecê-lo - e, durante a sua última
doença deste tipo, afastou obsessivamente as suas ideias mais brilhantes
e nunca as recuperou.
Provavelmente, para realizar os seus feitos contribuiu o facto de ser um
visionário com instinto para o fantástico. A tarefa que se propôs - atraves-
sar o mar Oceano directamente da Europa para a Ásia - estava literalmente
fora das possibilidades de qualquer embarcação da época. A tarefa que cum-
priu - passar da Europa para um Novo Mundo - encontrava-se para além
da concepção de muitos dos seus contemporâneos. A realização do que se
considerava fortemente improvável era insuficiente para Colombo - quisera
«a conquista do que parecia impossível». Morreu um magnífico fracassado:
não atingira o Oriente. O seu fracasso abrangia o que, a longo prazo, veio
a parecer um sucesso ainda maior: a descoberta da América.
Não pode fazer justiça sem compreender a fraqueza que o inca-
se lhe
pacitava perante a má sorte. Receava demasiado o fracasso para enfrentar
a adversidade, talvez por ter tido sucesso durante demasiado tempo: aquela
consistiria não só na perda do seu orgulho pessoal mas também das reivin-
dicações de recompensas materiais em que repousavam as esperanças para
si próprio e para os seus. É difícil acreditar, por exemplo, que a sua insis-
224
frustradas. Em vez de ficar satisfeito com as suas realizações, sentia-se ultra-
jado pelos seus erros. Insatisfeito com a aclamação, ficava amargurado com
as calúnias. Este carácter implacável fê-lo viver energicamente e morrer
miseravelmente. Sem ele, poderia nada ter realizado; devido a ele, nunca
poderia contentar-se com os louros obtidos ou gozar o seu sucesso. Era típico
de Colombo abjurar o seu feito da descoberta de um novo continente por
ser incapaz de enfrentar o fracasso quando tentava atingir um continente já
conhecido. Queria repetir o seu alarde: «Quando decidi iniciar este empreen-
dimento, todos disseram que era impossível», sem ter que admitir que «eles»
tinham razão.
225
estão a transferir- se, ou já o fizeram, para o Japão e para a Califórnia.
É provável que o Pacífico venha a desempenhar, na história da «civiliza-
ção global», o mesmo papel unificador que o Atlântico desempenhou na
do Ocidente. Em 2020, quando celebrarmos o quinto centenário da tra-
vessia do Pacífico por Magalhães, aqueles que ainda estiverem vivos pode-
rão recordar melancolicamente 1992, com a sensação de déjà-vu e irre-
sistíveis pressentimentos sobre tanta agitação.
226
índice remissivo
Nota: Cristóvão Colombo é referido nas subentradas por CC.
227
1
Bemáldez, Andrés 36, 64, 130, 181 primeira visão europeia dos nativos 1 14
Béthencourt, Jean de 34 procura de Cipangu nas 69
Bianco, Andrea 51, 52 tecnologia (cama de rede) das 121
Bizâncio 38, 42 transnavegação das 196, 221
228
Cárdenas, Gutierre de 92 Colombo (née Perestrello), Dona Felipa
Cariai 198 (mulher) 48
Caribes 116, 135, 136, 158 Colombo, Giacomo, ver Colón, Diego
cartas 107, 108, 112, 132 (irmão)
Cartago, cabo 47 Colombo, Giovanni António (primo) 32
cartografia 57, 64, 67, 142, 220 Colombo, Susanna (mãe) 32
maiorquina 50 Colón, Bartolomé (irmão) 32, 133, 142,
Casa da Mina 79 144-146, 154, 210
Castela 102, 103, 106, 125, 126, 165-167, e documento de herança de CC 152
182, 183, 196 e mapas 59, 64
entrega de novas terras a 83, 131 e procura de patrocínio 95, 96
Genoveses em 38, 39, 41, 44-46 e Roldán 176, 177
ver também Fernando e Isabel; Portugal e última travessia 194, 198
vida primitiva de CC em 84, 85, 90, 91, Colón, Cristóbal, ver Colombo, Cristóvão
96,97 Colón, Diego (irmão) 32, 33, 134
união com Aragão 82 Colón, Diego (filho) 48, 89, 103, 182, 198,
Cathay 60, 64, 117 209, 210
Centurione, Luigi 49 e disputa da descoberta 217
China 40, 75, 121,206 e herança 198, 211, 214
Marco Pólo e 60, 69 e remoção dos restos mortais de CC 215-
Cícero 59 -216
Cipangu79, 105, 107, 112, 116, 118, 121 Colón, Don Luis (sobrinho) 53
fantasias de CC sobre 64, 117 Colón, Fernando (filho ilegítimo) 53, 84,
civilização 114, 115, 118, 217, 221, 225 210,214,217
Clemente VI, Papa 80 nascimento 84
clima 138, 139, 166 comerciantes 38-41, 44, 45, 48
Açores e mudança de 111, 131, 157, ver também comércio
161, 162 comércio 80, 83, 140, 143, 172
Colombo, Andrea (primo) 32 comerciantes genoveses e 40-42, 44, 45, 48
Colombo, Bartolomeo, ver Colón, Barto- Concepción de la Vega 145
lomé confratemidade Nome de Jesus 46
Colombo, Bianchinetta (irmã) 32 Córdova 45, 84, 85, 96, 128
Colombo, Cristoforo, ver Colombo, Cris- Corvo 57, 93
tóvão Cosa, Juan de la 121, 177
Colombo, Cristóvão: cosmografia 53-66, 86, 131, 152, 159, 202,
ambição 34, 36, 75, 150, 211, 224 223
arte náutica 35, 36, 134-136; gostos 68- ver também d'Ailly, Pierre; al-Farghani;
-74; ver também travessias atlânticas Ferrer, Jaume; Vizinho, José
carreira 36, 39, 42, 130, 216 Costa Rica 198
casamento 35, 47, 48 Covilhã, Pêro da 141
educação 35, 36 Cristandade 114, 152, 156, 206
milenarismo 56, 65, 70, 150 Crooked, ilha 116
religião ; ver também Deus 33, 122, 124, cruzadas 101, 149, 182, 185, 194, 224
158, 178, 179, 186-189, 199-202 Cuba 117, 146, 170, 203, 216, 222
reputação (declínio, morte e) 35, 198, suposta natureza continental de 117, 134,
209-226 140, 141, 206,224
Colombo, Domenico (pai) 31, 32, 33 doenças de CC em 72, 143, 144, 161, 162
229
Culebra, rio 198 Felipe I (Rei de Castela) 211,215
Cuneo, Michele de 85, 135, 142, 173 Fernando e Isabel 103, 143, 150, 152, 180,
212
Darién, península 203 e colonização 167, 168
Deus 99, 100, 114, 115,218 despesas da casa 89, 90
CC e 64, 117, 120, 122-124, 148, 186- inquérito judicial aos cargos de CC 145
-188; prioridade 33, 36; e procura de morte (de Isabel) 209, 215
patrocínio 78, 79; sentimento de con- patrocínio de 78, 80-83, 87, 93, 95
tacto pessoal 111, 179, 182, 199-201, relatos de CC a 130, 131-132, 137, 139,
214; substituto para relações huma- 165-166, 185
nas 189 aceitação de 128; escravos e 131; lin-
Deza, Fray Diego 89, 90, 91, 96, 210 guagem atraente de 94; Memoria de
diário de bordo 47, 101, 105, 112, 113 La Mejorada 131; natureza irritante
Dias, Bartolomeu 51, 72 de 192-193; pormenor de 100; voz
doença 175 celestial em 200, 214
Dominica 134, 222 Femández, Garcia 92
Dominicanos 99, 100, 172 Femández de Oviedo, Gonzalo 145, 217, 222
Don Quixote 34, 179 Fernandina (ilha) 116
Ferrara, Duque de 129
eclipses 132, 142, 204 Ferrer, Jaume 130, 131, 132, 155, 188
Éden, Jardim do 163, 164 Fieschi, Bartolomeo 205
Eiriksson, Leif 220 Flandres 44, 190
embarcações de casco redondo 43, 44 Florença 44, 129
encomienda 171-175 Flores 57, 93
Enríquez, Beatriz 84, 85, 214 Foceia 40
Enríquez de Arana, Rodrigo 84 Fonseca, (Bispo) Juan de 133, 180, 212
Equador 162, 163 França 44, 78, 84, 96, 142
Eratóstenes de Alexandria 57, 59, 67 Francisco, São 114
Escandinavos 219, 220 Franciscanos 114, 133, 149, 189, 212, 216
Escobar, Diego de 207 influência em CC 82, 111, 115, 161, 186
escravatura 133, 139, 143, 169, 171, 172
insensibilidade de CC à 100, 174 galés 43, 44
Espanha, ver Aragão; Cádis; Castela; Galway 50
Sevilha Gama, Vasco da 149, 185, 194
especiarias 71, 95, 104, 129, 149, 166 Génova/Genoveses 37-45, 152, 192, 193
procura de 40 famílias 39, 40, 45
sem valor 143 Geografia (Ptolemeu) 66, 68
Estrabão 58, 59 Geografia (Estrabão) 58
«Estrada Mongol» 40 Gomera 57, 85, 134
Estrela Polar 107-110, 161, 162 González de Mendoza, Arcebispo 93
evangelização 101, 117, 133, 138, 151, Gorricio, Gaspar de 189, 190
172 Gracias a Dios, Cabo 198
dever de 78, 169 Gran Canária 45, 80, 87, 89, 157, 195
obstáculos à 143, 173 Granada 40, 41, 95,97,209
promoção da 99 prioridade do povoamento de 95
Extremadura 94, 95, 134 Grande Khan 101, 116
al-Farghani 62, 70 Gronelândia 219, 220
230
Guacanagarí 119, 135-139, 142 índia 42, 59, 77, 101, 131, 197
Guadalquivir 44, 92, 158 impressões exóticas da 71
Guadalupe (ilha) 134 Índico, Oceano 67, 78
Guanahaní 113 índios, ver Caribes; nativos
Guarino de Verona 58 Infantado, Duque do 90
Guerra, irmãos 191 Inglaterra 44, 50, 55, 78, 142, 152
Guiné 62, 80, 83, 95 procura de patrocínio de Bartolomé em
Guiné, Golfo da 37, 42, 49, 51, 57, 61 96
Golfo, Corrente do 105 Inquisição 176
Irianda 50, 63
Haiti 118, 136 Isabel (Rainha de Castela), ver Fernando
Havai 107 e Isabel
Havana 216 Isabela (ilha) 116
Heers, Jacques 43 Isabela (cidade) 143
Helluland 220 Isaías 148, 187, 189
Henrique o Navegador 34, 35 Isidoro 59
Hércules, Estreitos de 37 Islã Espanola, La, ver Hispaníola
heresia 137 Islão 41, 57, 81, 185
Herjolfsson, Bjami 220 Itália 37, 59, 66, 68, 129
Herrera, António de 173
Herrera, Diego de 80 Jamaica 113, 140, 204-206, 222
Hespérides 58, 155 CC abandonado na 195
Hésper, Rei 217 James de Vitry 43
Hibémios 219 Japão 60, 69, 226
Hierro (ilha) 106 Jeréz 44, 45, 46
Hispaníola 57, 73, 91, 132-148, 165-183, Jerusalém 56, 65, 150, 185-188, 193, 210
222 ambição aragonesa de governar 82
como bem 121 obsessão de CC por 141, 182
canoas usadas 204, 205 João II (Rei de Portugal) 60, 125, 155,
vinda de CC acorrentado 185 194,211
sentença de morte do amotinado em 74 CC e patrocínio de 78, 79
primeiro contacto com habitantes de 1 1 João Baptista 188, 190
dar nome a 1 1 Joaquim de Fiore 82, 187, 188, 190
novos mares conhecidos em 130 Juan, Príncipe 88, 89, 96
Ovando e governo de 192, 195 Juana, Dona (Infanta) 190, 211, 215
rendimentos de 191 Judeus 35, 38, 214
Santa Maria perdido em 125 Júlio II, Papa 130, 192, 193
açúcar plantado em 42
Hojeda, Alonso de 121, 144, 145, 177, Kaffa 38, 39
191,218 Karlsefni, Thorfmn 220
confiança de CC em 138 Khanato da Horda Dourada 38
Honduras 197,203,206,222 Kublai Khan 69
Huelva 49
La Mej orada 149
lanos de Tróia 37, 46 La Palma 88, 95
Islândia 37, 50, 220 La Rábida 96, 97
Imago Mundi 58, 61, 70-72, 109 Lanzarote 80
231
1 1
232
Navidad, ver Puerto Navidad Perestrello, Diego 48
Negro, Mar 38, 39, 40, 42 Perestrello, Dona Felipa 48
Negros 155, 158 Pérez, Fray Juan 92, 93, 133, 189
Novo Mundo, ver América; «Antillia»; Péricles 74
Antípodas; Caraíbas; Cuba; Hispaníola; Pérsia 42, 131
Jamaica Piailug 107
Nigro, Paolo di 45, 49 Piccolomini, Aeneas Sylvius (Papa Pio II)
CC do 159, 163
e limites Plínio 55, 59, 72, 152, 153
Ftolemeu e 67 Plutarco 72, 73
rotas para 82 Pólo, Marco 60, 68, 69, 140, 152, 197
Orinoco 155, 158, 222 O Livro de Marco Pólo 56, 68, 72
Otomano, Império 42 Pólo Norte 162
ouro 137-143, 155, 167, 181, 185, 198 Forras, Diego de 204, 207
africano 41, 42, 50, 78, 155 Forras, Francisco de 204
rendimentos de CC do 195, 196, 210 Fort Paix 118
exploração do 101, 199 Porto Santo 35, 48, 49
Oriente e 95 Portugal 63, 66, 78-86, 125, 149, 185
amostras de 104, 120, 121, 129, 130 Ilhas Canárias e 63, 112, 129
procura de 81, 87, 116, 118 negociações castelhanas com 128, 131-
histórias sobre 70-72, 166 -133, 155
Ouro, Costa do 50, 68 CC em 47, 95
Ovando, Don Nicolás de 89, 192, 193, 196, missão de espionagem no Oceano Índico
207 de 67
Genoveses em 38, 39, 45
Pacífico 105, 107, 197, 221, 222, 226 rivalidade entre Castela e 87
Paios 49, 92, 95, 104, 120, 122 ver também João II
233
6 1
234
Velez de Mendoza, Luis 191 Vizinho, José 61, 62, 72
Veneza 38, 43 Volta 50, 78, 81
Venezianos 44, 219
Venezuela 157 Waldseemiiller, Martin 219
Veragua 199, 206 Watling, Ilha 114
Vespucci, Amerigo 100, 121, 130, 138,
177,218,219, 221 Xaragua 177, 178
viagens, ver Atlântico, travessias do
Vicente, Gil 35 Yánez Pinzón, Vicente 130, 178, 191
Vikings 219, 221
Vilanova, Amau de 82 Zaccaria, Benedetto 44
Villena,Marquês de 90 Zacuto, Abraão 55
Vinland 220 índice compilado por Frank Pert
235
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