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O meu avô é um guerreiro a sério

- João! Não te volto a chamar, levanta-te e anda arrumar a casa! Amanhã já é dia da ceia de
Natal, queres que os teus primos vejam a casa neste estado quando chegarem?
- Aiii! Está bem, já vou, mãe!
- Não é já, é agora! Começa pelo outro lado, pela arrecadação, que eu dou conta desta parte!
- A sério? A parte mais velha da casa fica sempre para mim!
Enquanto arrumava a arrecadação, João depara-se com um livro castanho, antigo e empoeirado,
e logo se apressa a desamarrar o cordão que o embrulhava. Quando o abre, na primeira página
está escrito o nome do seu avô – Ilídio –, a data – 21/10/1916 –, e um longo texto, que se
alastrava pelo resto das páginas, e que João, sem hesitar, começa a ler.

“Eu, Ilídio, português, nascido em 1895, em Barcelos, fui um dos que foi enviado para a
Grande Guerra.”

- Uau! É o diário do avô, e fala sobre quando ele foi para a guerra! Não o posso ler todo, é muito
grande, mas quero ler as partes que falam sobre como foi a Grande Guerra!

“Começaram hoje os treinos de preparação para a frente de guerra na Europa. Acabamos de nos
tornar numa república, o exército está mal organizado, mal equipado e, sinceramente, não nos
sentimos motivados para ir para guerra.
Para além disso ainda nos disseram que temos 3 meses para nos prepararmos e partirmos para a
Flandres.”

“Hoje, não sei ao certo que dia é, mas sei que estamos no fim de janeiro de 1917, e que é o dia
em que vamos ser enviados para a Flandres. Não me sinto preparado para lutar; afinal de contas,
só tivemos 3 meses para nos reorganizarmos e treinarmos para uma guerra que, segundo dizem,
nunca tão grande e sangrenta se viu.”

“Já aqui estou nestas trincheiras a disparar e recuar, disparar e recuar há tanto tempo que lhe
perco a conta.
Hoje, dezembro de 1917 (segundo dizia na carta que recebi da minha mulher), fui informado de
que, com o agravamento das dificuldades económicas e sociais, as forças políticas que se
opunham à intervenção de Portugal na guerra derrubaram o governo, e instalaram uma Ditadura
Militar, chefiada por Sidónio Pais.
Isto é notícia má atrás de notícia ruim, agora uma Ditadura Militar? Por isso é que nós estamos
aqui, na Flandres, praticamente abandonados…
Segundo se diz por aí, mandarem-nos para cá foi um mal necessário, na medida em que só assim
Portugal honraria o compromisso de aliança com Inglaterra, defenderia e veria garantidos os seus
direitos sobre as colónias africanas, daria resposta à necessidade de afirmar o prestígio e
influência do Estado Republicano, bem como se permitiria a possibilidade da sua participação
em futuras conversações de paz.”

“Neste momento estou preso, sobre a guarda dos alemães. O que me trouxe até aqui foi a derrota
na batalha de La Lys. Na madrugada de 9 de abril de 1918, fomos surpreendidos por oito
divisões alemãs, com tantos, mas tantos homens – aquilo pareciam uns 100 mil soldados, e mais
de mil peças de artilharia – que avançaram sobre nós e os nossos 11 quilómetros, constituídos
por duas divisões e cerca de 20 mil homens, os quais nada puderam contra aquele batalhão de
gente. Eles estavam mesmo determinados em romper as linhas Aliadas de uma vez por todas, na
frente ocidental europeia.
Foi o dia mais triste desde que aqui estou: vi companheiros meus, que conheci toda a minha vida,
morrerem ao meu lado, sem que eu nada pudesse fazer. Senti-me impotente, fraco. Ainda assim,
fui um dos que sobreviveu, apesar de que, entre estar aqui – refém dos alemães e sem os meus
companheiros –, ou ter morrido a lutar com eles, não sei qual seria melhor.”

“Estamos aqui encostados à berma da estrada, a descansar do longo caminho que já percorremos,
e para o ainda mais logo que nos resta percorrer.
Os alemães soltaram-nos e deixaram-nos voltar a casa, pelo que pressupomos que a guerra tenha
finalmente acabado. Quando fomos libertados, não tínhamos ninguém à nossa espera, nem sinal
de tropas portuguesas. Agora temos que percorrer todo este caminho de França até Portugal a pé!
Estamos exaustos, com fome e sede. Vamos pedindo uns pedaços de pão por aí, mas, depois do
que passamos, não é isto que merecemos… Sentimo-nos abandonados pela nossa pátria, a
verdade é essa.”

“Cheguei a casa há 3 dias, as coisas mudaram…


A minha mulher e a minha filha trabalham na fábrica onde eu costumava produzir. Disse-lhes
que, agora que tinha voltado, elas já poderiam voltar a limpar a casa e cuidar das crianças, mas
disseram-me que não. Que não querem voltar para casa, que querem continuar a trabalhar e
receber os seus salários, porque afinal aquilo não é assim tão difícil e cansativo como eu fazia
crer. Esta ideia não me agrada nada: mesmo depois de ter estado muito tempo fora, eu ainda sou
o homem da casa!
Também dizem por aí que a Europa perdeu a sua hegemonia para uns tais de Estados Unidos da
América: custa-me a acreditar, quer dizer, se os Aliados ganharam a guerra, devem estar mais
fortes que nunca!
Uns dizem que a queda do protagonismo da Europa aconteceu devido à 1ª Guerra, que foi um
erro ela ter acontecido e um ainda maior nós termos participado. Outros dizem que fizemos bem
em tomar parte na guerra, pois atingimos os nossos objetivos: mantivemos as colónias, a
independência, e demos prestígio à República Portuguesa.
Eu cá preferia ter ficado por estes lados e não ter ido para a Flandres, mas finalmente o pesadelo
acabou (pelo menos este…)!”

- Uau! Isto foi mesmo incrível, o meu avô é um guerreiro a sério!

- Joãooo! O quê que estás aqui a fazer? Não me digas que depois deste tempo todo ainda estás a
limpar a arrecadação!

- Não, mãe, achas! Comecei pela cozinha, neste lado só falta a arrecadação e já estou quase a
acabar. E tu? Já acabaste a tua parte?

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