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das, estranguladas, agredidas brutalmente até o mo-

mento em que perdem a vida. A palavra feminicídio


passou a ser usada para designar um crime no Brasil
Feminicídio é uma palavra nova para uma
a partir de 2015, pois existe nele uma particularidade.
prática antiga, uma vez que mulheres morrem de for-
Vamos falar sobre feminicídio?
mas trágicas todos os dias no Brasil: são espanca-

tipo de violência em algum momento de suas vidas.


Feminicídio é uma palavra que define o ho- Em 2016, um terço das mulheres no Brasil – 29% –
micídio de mulheres como crime hediondo quando relataram ter sofrido algum tipo de violência. Delas,
envolve menosprezo ou discriminação à condição de apenas 11% procuraram uma delegacia da mulher e
mulher e violência doméstica e familiar. A lei define em 43% dos casos a agressão mais grave foi no do-
feminicídio como “o assassinato de uma mulher co- micílio.
metido por razões da condição de sexo feminino” e a Esses são alguns dados de muitos outros –
pena prevista para o homicídio qualificado é de reclu- sobre os quais falaremos adiante – e que ilustram
são de 12 a 30 anos. pontos-chave para entendermos a diferença entre
feminicídio e homicídio de mulheres.
O principal motivo para o uso da palavra fe-
minicídio é de que o crime é diferente por si só, por
“Trata-se de um crime de ódio. O conceito surgiu ser um crime de discriminação, cometido contra uma
na década de 1970 com o fim de reconhecer e mulher pelo fato de ela ser mulher. Essa discrimina-
dar visibilidade à discriminação, opressão, desi- ção provém no machismo e do patriarcado, que são
gualdade e violência sistemática contra as mu- maneiras culturais de a sociedade colocar a mulher
lheres, que, em sua forma mais aguda, culmina num lugar de inferioridade, submissão e subserviên-
na morte. Essa forma de assassinato não cons- cia; de acordo com essa lente, a autoridade máxima
titui um evento isolado e nem repentino ou ines- é exercida pelo homem e automaticamente a mulher
perado; ao contrário, faz parte de um processo se torna um ser desimportante, que deve dedicar sua
contínuo de violências, cujas raízes misóginas vida à servir (principalmente os homens).
caracterizam o uso de violência extrema. Inclui
uma vasta gama de abusos, desde verbais, fí-
sicos e sexuais, como o estupro, e diversas for-
mas de mutilação e de barbárie.”
Eleonora Menicucci - ministra-chefe da Secreta-
ria de Políticas para as Mulheres da Presidência.
Um terço dos homicídios de mulheres no
mundo – 35% – são cometidos por seus companhei-
ros, de acordo com a Organização Mundial da Saú-
de, enquanto 5% dos assassinatos de homens são
cometidos por suas parceiras. A projeção da Orga-
nização das Nações Unidas é que 70% de todas as
mulheres no mundo já sofreram ou irão sofrer algum Por vezes, mulheres sofrem diversos tipos de
violência de gênero – sexual, psicológica, moral, físi- 4.762 só em 2013. Em 2015 o número diminuiu, mas
ca, doméstica – até que lhe seja tirada a vida. A exis- pouco: 4.621 mulheres foram assassinadas no Bra-
tência dessas formas de violência na vida de tantas sil, contabilizando 4,5 mortes para cada 100 mil mu-
mulheres chama a nossa atenção para o fato de que lheres, de acordo com o Atlas da Violência de 2017.
o feminicídio pode ser evitado, por muitas vezes ser A pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança
o ápice de um processo de violência contínua e que Pública de 2017 sobre a violência contra a mulher
muitas vezes está dentro de casa. indica que 29% das entrevistadas afirmou ter sofrido
algum tipo de violência no último ano. Os tipos de
violência sofridas são:
- 67% das entrevistadas disseram já ter sofrido
agressão física;
- 47% delas sofreu violência psicológica;
- 36% delas foram vítimas de violência moral;
- 15% sofreram violência sexual.
Houve um aumento perceptivo de mulheres
que declaram ter sido violentadas sexualmente. Em
2011, eram 5% das mulheres; em 2017 passou para
15%. Assim como aumentou o número de mulheres
que dizem conhecer alguma mulher que já sofreu
violência doméstica ou familiar praticada por um ho-
mem: em 2015 era de 56%; já em 2017 passou para
71% (dados de 2017).
Aí fica uma reflexão: será que a violência
contra a mulher realmente aumentou ou as mulheres
estão falando mais a respeito? Há de se considerar

A tipificação do feminicídio como crime de gê-


nero se faz necessária por estar diretamente ligado
à violência de gênero e por ser um crime passível de
ser evitado – principalmente às vítimas de violência
doméstica, que podem ter suporte e seus agressores
punidos conforme prevê a lei. De acordo com o Atlas
da Violência e outros relatórios, “os dados apresen-
tados [sobre violência contra a mulher e feminicídio]
revelam um quadro grave, e indicam também que
muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas. Em
inúmeros casos, até chegar a ser vítima de uma vio-
lência fatal, essa mulher é vítima de uma série de ou-
tras violências de gênero, como bem especifica a Lei
Maria da Penha (Lei 11.340/06). A violência psicoló-
gica, patrimonial, física ou sexual, em um movimento
de agravamento crescente, muitas vezes, antecede
o desfecho fatal.”

O panorama de feminicídio no Brasil é grave:


a cada dia, 13 mulheres são assassinadas no Bra-
sil. Há diversas pesquisas, relatórios e estudos que
mostram esse comportamento sistêmico não só no
Brasil, mas no mundo.
O Brasil tem a quinta maior taxa de femini-
cídios no mundo: 4,8 homicídios para cada 100 mil
mulheres – de acordo com a Organização Mundial da
Saúde. O Mapa da Violência de 2015 que trata sobre
o homicídio de mulheres mostra que 106.093 mulhe-
res foram assassinadas entre 1980 e 2013, sendo
a existência da Lei Maria da Penha, que visa a pu- menos privilégios um grupo de mulheres tem, mais
nir violência doméstica, e de maneiras de denunciar sofrerá com a violência e mais altos serão os núme-
essa violência – como o número 180 ou em delega- ros de feminicídio. São poucas as pesquisas que
cias da mulher, que são iniciativas oficiais do gover-
segmentam as entrevistadas por uma perspectiva de
no. renda, por exemplo, o que pode ser um impeditivo
de uma leitura mais ampla do problema. Não há ou-
tros recortes feitos por essas pesquisas que tragam
dados sobre feminicídio de mulheres lésbicas, bisse-
O recorte de realidade precisa ser feito tam-
xuais, transsexuais, travestis, nem cruzem as suas
bém quando tratamos de mulheres negras com re-
demais características, como as de ser uma mulher
lação a mulheres brancas: em dez anos, de 2003 a
negra e lésbica, por exemplo.
2013, o número de homicídio de mulheres brancas
caiu 9,8% – de 1.747 para 1.576 – e o de mulhe-
res negras cresceu 54,2%, passando de 1.864 para Ainda é um desafio mundial criar leis que ti-
2.875 (Mapa da Violência, 2015). Dentre as mulheres pifiquem o crime de feminicídio, conforme feito no
que declararam ter sofrido algum tipo de violência, Brasil, o que consequentemente diminui o problema
enquanto o percentual de brasileiras brancas que so- da invisibilidade e inicia uma discussão. Na América
freram violência física foi de 57%, o percentual de Latina, 15 países têm leis específicas contra o femi-
negras (pretas e pardas) foi de 74%. (DataSenado, nicídio, com diferentes tipos de penalidade.
2017). Mas muitos países não penalizam sequer a
Além de a taxa de mortalidade de mulhe- violência contra a mulher, quanto mais o feminicídio.
res negras ter aumentado, cresceu a proporção de Dos 193 países, 140 têm leis contra a violência do-
mulheres negras entre mulheres vítimas de mortes méstica. As regiões no mundo com menos punição
por agressão: em 2005 era de 54,8% e em 2015 era para a violência contra a mulher estão na África Sub-
65,3% (Atlas da Violência, 2017). Resumindo, 65,3% saariana, no Oriente Médio e Norte da África (um em
das mulheres assassinadas no Brasil no último ano cada quatro), de acordo reportagem do El País.
eram negras, evidenciando que a combinação entre Atualmente, 140 países no mundo punem a
desigualdade de gênero e racismo é um ponto funda- violência doméstica e 46 não o fazem. Alguns países
mental para compreendermos a violência letal contra têm quebrado a lógica da região em que estão inse-
a mulher no país. ridos: na Tunísia, o parlamento criou uma lei contra
a violência de gênero, a mais abrangente dentro da
região árabe, que pune todo tipo de agressão sexista
e assédio sexual. Já a Rússia, que é um país consi-
derado hostil às mulheres – a cada 40 minutos, uma
mulher é assassinada lá – descriminalizou a violência
de gênero. Uma pessoa que seria presa por cometer
tal crime, hoje só recebe uma multa.

Criado na Grécia Antiga, o termo misoginia


(infelizmente) ainda é muito atual. Mas, afinal, o que
é misoginia? Do grego, ela tem origem em duas pa-
lavras: miseó, que siginifica “ódio”, e gyné, que sig-
nifica “mulher”. Nos dicionários, ela está relacionada
ao ódio ou aversão às mulheres.
Hoje, entende-se que a misoginia pode se
Essa disparidade pode ser observada nas manifestar de diversas formas, como através da ob-
respostas à pergunta sobre ter visto algum tipo de jetificação, da depreciação, do descrédito e dos vá-
violência mulheres no seu bairro no último ano prati- rios tipos de violência contra a mulher, seja física,
cada por companheiros, maridos ou namorados (atu- moral, sexual, patrimonial ou psicologicamente.
ais ou não): 26% das mulheres negras respondeu
que sim, em oposição a 22% das mulheres brancas. Raiz do problema
Quando questionadas sobre ter visto essa violência Há séculos, a misoginia tem dado as caras
na casa de suas vizinhas, 42% das mulheres negras na história humana. Desde a Grécia Antiga, é possí-
afirmou ter visto, assim como 30% das mulheres vel identificar uma série de ideias que corroboravam
brancas. (FBSP, 2017). a hipótese de que mulheres eram inferiores aos ho-
Os números nos levam a concluir que quanto mens. Ao considerá-las “homens imperfeitos”, Aristó-
teles é um dos mais antigos pensadores a serem cri- defesa e sobrevivência.
ticados, hoje, por suas ideias misóginas. E a lista não
para por aí. Hobbes, Descartes, Rousseau, Hegel,
Nietzsche e Freud também colaboraram de alguma
forma para sustentar a ideia da inferioridade feminina
e alimentar a repulsa por mulheres.
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer, por
exemplo, criticou a “natureza feminina” diversas ve-
zes em seus ensaios, como quando alegou que as
mulheres eram “por natureza destinadas a obede-
cer”.
Até mesmo Charles Darwin defendeu ideias
como a de que mulheres, crianças e “selvagens” ti-
nham cérebros menores e, consequentemente, me-
nos intelecto.
Apesar de já terem sido contestadas e derru-
badas pela ciência, ideias como essa sustentam atos
de violência e assédio até hoje.

São três conceitos que estão interligados e


sustentam a ocorrência da violência contra a mulher.
A misoginia é um sentimento de aversão patológico
pelo feminino, que se traduz em uma prática compor-
tamental machista, cujas opiniões e atitudes visam
o estabelecimento e a manutenção das desigualda-
des e da hierarquia entre os gêneros, corroborando a
crença de superioridade do poder e da figura mascu-
lina pregada pelo machismo.
O sexismo, por sua vez, pode ser definido
como um conjunto de atitudes discriminatórias e de
objetificação sexual que buscam estabelecer o papel
social que cada gênero deve exercer, para isso são
utilizados estereótipos de como falar, agir, pensar e
até mesmo o que vestir.

O constante estímulo de comportamentos es-


tereotipados impacta ambos os gêneros, visto que
exige amostras de uma cruel virilidade no homem e
total subserviência na mulher. Quando a expectativa
comportamental não ocorre, a violência eclode em
uma escala ascendente de gravidade, iniciando com
as piadas depreciativas, assédios, abusos, estupros
e culmina com o feminicídio.
As bases misóginas do pensamento ocidental
geram a banalização da violência ao feminino que
se estende pelos vários aspectos da vida da mulher,
como o social, o psicológico, econômico e político,
tornando difícil identificar os traços nocivos mais su-
tis. Desta forma, homens e mulheres reproduzem
atos e expressões machistas quase que de forma
inconsciente, com a mulher adotando, muitas vezes, Sites consultados:
como mecanismo de sobrevivência na cultura opres- https://www.politize.com.br/misoginia/
sora, uma aparente passividade que não deve ser https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noti-
entendida como a aceitação das situações que lhe cia/2020/02/o-que-e-misoginia.html
ferem a dignidade, mas sim como um mecanismo de https://www.politize.com.br/feminicidio/

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