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Faculdade de Letras
Yasmin Schiess Miranda
DE ORPHEO:
UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE AS NARRATIVAS DO MITO DE
ORFEU NAS GEÓRGICAS IV DE VIRGÍLIO E NAS METAMORFOSES X
DE OVÍDIO.
Belo Horizonte
2016
Yasmin Schiess Miranda
DE ORPHEO:
UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE AS NARRATIVAS DO MITO DE
ORFEU NAS GEÓRGICAS IV DE VIRGÍLIO E NAS METAMORFOSES DE
OVÍDIO.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2016
Para a Darla.
Tu es ubi felicitas mihi est.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Jeanne e Tito, geradores, provedores, educadores, formadores e, acima de tudo,
melhores amigos, aos quais dedicar palavras nunca será o suficiente;
À minha avó, Ilva, minha segunda mãe, pelo incessante cuidado afetuoso (e, por que não, pelas
incontáveis preocupações);
À professora Heloísa, sem a qual o Latim não teria me encantado desde a primeira aula, não só
pela orientação aplicada, contínua e paciente nesta monografia, mas também pelo auxílio
sempre amigo em momentos de incertezas ou dificuldades ao longo do curso;
À professora Sandra, pela sugestão do livro que embasou nosso primeiro capítulo e pela
inabalável boa vontade para com a minha assídua curiosidade pouco pragmática durante as
aulas;
À Izabela Lago, pelas tardes de trabalhos, pelos empréstimos de livros, pelos baralhos, canetas,
chás, bichinhos de pelúcia, receitas e confraternizações;
À Sílvia Duarte, por nunca passar por mim sem tirar uns minutinhos para compartilhar histórias
e risadas (salvo, é claro, nos encontros na biblioteca);
Ao Pedro Brito, cujas saudações pelos corredores da faculdade nunca aconteceram sem fortes
abraços;
Aos meus colegas de sala e aos funcionários da faculdade de Letras, que de uma forma ou de
outra, colaboraram com a minha formação,
ABSTRACT
We propose, with this work, the comparative analysis of the literary narratives of Orpheu’s
myths found in the Georgics IV.453-527 of Publius Virgil Maro and in the Metamorphoses
X.1-85 of Publius Ovid Naso. We aim, in this way, to point out the most striking differences in
structure, style and semantics between the two accounts of the story. Therefore, we seek to
define synthetically the meaning of myth, revisit the Orpheu’s figure in some texts of Greek
and Latin literature, present the works and the basic biography of both poets – emphasizing the
selected compositions –, and briefly discuss the influence of tradition in Latin literature. We
start, thus, the examination of the verses and, based on the assumption that Ovid emulated his
predecessor, we conclude that he, even without abandoning literary memory, recreated the
Orphic narrative in an unique and particular manner, deviating from Virgil not only in the
elaboration of the plot and in the language style, but above all in the tone and the treatment
given to his version of the myth. Finally, we also present the unabridged translation in prose of
the appreciated verses, accompanied by supporting notes.
Key words: Orpheus, Ovid, Virgil, Georgics, Metamorphoses.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
I
O MITO DE ORFEU
1
Várias são as mitologias, pois incontáveis são os mitos e suas origens. Nas definições da presente seção,
contemplamos apenas a mitologia clássica, visto que trabalharemos apenas com um mito de versão greco-latina.
2
Cf. LIDDELL; SCOTT, 1996, p. 1151.
3
Estudiosos mais radicais pressupõem que as únicas narrativas passíveis de serem chamadas de mito são aquelas
de sociedades arcaicas e tradicionalmente orais, onde não há registros escritos, com o argumento de que tais
documentos contaminariam qualquer tipo de narrativa. Neste ponto, concordamos com a opinião de Mark Morford
e Robert Lenardon (2003, p. 16) sobre a abrangência oral e literária do mito: “we do not concour with those who
place such a narrow definition upon the word myth [...] first of all, a myth need not to be just a story told orally. It
can be danced, painted, and enacted, and this, in fact, is what primitive people do […] myth is no less a literary
form than it is an oral form. Furthermore, the texts of classical mythology can be linked to the oral and literary
themes of other mythologies.”
4
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 3.
5
Alguns dicionários de Língua Portuguesa, por exemplo, admitem definições relacionadas ao imaginário para mito:
“mi.to sm (gr mythos) [...] 5. Coisa inacreditável. 6. Enigma. 7. Utopia. [...]” (MICHAELIS, 1998, p. 1390); mito
s.m (1836) [...] 4. Representação de fatos e/ou personagens históricos, amplificados através do imaginário coletivo
e de longas tradições literárias orais ou escritas [...] (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1300); “mito. [do gr. mŷthos,
‘fábula’, pelo lat. mythu.] S. m. [...] 3. Representação de fatos ou personagens reais, exagerada pela imaginação
popular, pela tradição, etc. 4. Pessoa ou fato assim concebido [...] 5. Ideia falsa, sem correspondente na realidade
[...] 8. Coisa inacreditável, fantasiosa, irreal; utopia [...]” (FERREIRA, 2009, p. 1341).
6
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 4.
9
indistinto dos vocábulos lenda e mito – ainda que lenda tenha uma acepção própria.7
Tal equiparação popular de mito com ficção ou irrealidade foi uma constante teórica na
Antiguidade Clássica Romana, e, de acordo com Fritz Graf (2002, p. 108), “na República tardia
e no princípio da Roma Augustana, mitos (fabulae)8 eram universalmente entendidos como
ficções poéticas”.9 De fato, Cícero, em seu tratado De Inuentione I.27, ao dissertar sobre textos
narrativos, explica que eles podem ser de três espécies, duas das quais se relacionam com os
assuntos públicos e uma terceira que se afasta dessa premissa e é recitada ou escrita apenas para
o divertimento de um público. Essa última ainda se subdivide em outros dois tipos: um que lida
com a exposição de eventos e outro que lida com a exposição de pessoas. Para o primeiro,
existem mais três formas, uma das quais é a fabula:
Aquela em que é estabelecida a exposição dos eventos tem três formas: fabula,
historia, argumentum. Fabula é aquela [narração] na qual [não] estão contidas
nem verdades nem coisas semelhantes à verdade [...] historia, um registro a
partir de uma memória afastada de nosso tempo [...] argumentum, uma
narrativa fictícia, que, todavia, poderia ter acontecido (trad. nossa).
7
Junito Brandão (1986, p. 35) define: “Lenda é uma narrativa de cunho, as mais das vezes, edificante, composta
para ser lida (provém do latim legenda, o que deve ser lido) ou narrada em público e que tem por alicerce o
histórico, embora deformado”.
8
Decerto o vocábulo latino fabula, cujas origens etimológicas remontam ao verbo for (falar, dizer) tem, tal como
o grego mýthos, um significativo número de acepções (ainda que aqui o consideremos estritamente como mito):
fala, conversação, coisa dita, conto, história, fábula, conto narrado para entreter e, por fim, ficção e fofoca,
definições com as quais consideramos ser possível assegurar a tendência dos autores romanos a considerar fabula
uma narração fictícia, como as fábulas de Fedro ou as peças de teatro latinas, que eram chamadas fabula togata e
fabula paliata, sendo as primeiras de argumento romano e as últimas, de mais sucesso, de argumento grego. Para
mais detalhes, cf. GLARE, 1968, p. 665.
9
“... in late Republican and early Augustan Rome, myths (fabulae) were universally understood as poetic fictions”.
Todas as citações em língua inglesa são de nossa tradução.
10
“... fabulam, quae uersatur in tragoediis atque carminibus non a ueritate modo sed etiam a forma ueritatis
remota.” (Quint. Inst. 2.4.2), “... mito, que se trata nas tragédias e poemas, e que está longe não apenas da verdade,
mas até da verossimilhança.” (trad. Rafael Falcón); “fabula est, quae neque ueras neque ueri similes continet res,
ut eae sunt, quae tragoedis traditae sunt.” (Rhet. Her. I.13): “A fábula contém ações que não são nem verdadeiras,
nem verossímeis, como as relatadas na tragédia.” (trad. Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra).
11
“... condemned the fictions of myth but used those fictions in his poetic argument (see, for example, De Rerum
10
Natura 1.82–101)”
12
“... he refers to it [myth] as mendacium (Amores 3.6.16, Fasti 6.253) and licentia (Am. 3.12.41); he uses fabula
(with its connotations of unreliability) of ‘mythic’ narrative (Ars Amatoria 3.326, Fas. 3.738) and acknowledges
the unbelievability of his own Metamorphoses (Tristia 2.63–4)” (BOYLE, 2007, p. 357); também cf. AVELLAR,
2015, p. 142.
13
“... myth, like art, is truth on a quite different plane from that of prosaic and transitory factual knowledge”.
14
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 4-5. Atribuímos a perenidade dos mitos, em especial, a sua existência em
uma instância absoluta. Uma narrativa só continua a impactar seus receptores, milhares de anos depois de ser
contada pela primeira vez, se evidenciar algum aspecto humano definitivo.
15
Para citar apenas algumas delas, há a teoria etiológica, a metafórica, a ritualista e religiosa, a estruturalista e as
psicanalíticas. Para uma enumeração analítica e mais geral dessas e de outras, cf. COHEN, 1969, p. 337-353 e
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 5-22.
16
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 24.
11
rigor, como todos os outros mitos clássicos, uma história, e para restringir essa classificação e
buscar uma elucidação menos generalista e mais consoante com nosso intento, teremos em
mente a definição proposta por Morford e Lenardon (2003, p. 25):
Um mito clássico é uma história que, através de sua forma clássica, obteve
uma espécie de imortalidade por causa de sua beleza arquetípica inerente, por
sua profundidade e pelo poder que inspirou gratificante renovação e
transformação por sucessivas gerações.17
I. 2. Sobre Orfeu
Na introdução do capítulo sobre a história de Orfeu no livro Orpheus and Greek Religion:
a study of the Orphic Movement, William Guthrie (1952, p. 25) alerta-nos, de imediato, para
que não queiramos encontrar na narração do personagem uma história simples, sem variações
ou inconsistências,21 um aviso justificado pela disseminação do mito entre diferentes povos,
pela hipótese de uma possível existência humana de Orfeu em tempos remotos e, mormente,
17
“A classical myth is a story that, through its classical form, has attained a kind of immortality because its inherent
archetypal beauty, profundity, and power have inspired rewarding renewal and transformation by successive
generations.”
18
Observamos que a palavra órfico é usada neste trabalho com o significado adjetivo “de Orfeu” e não está, em
momento algum, salvo quando referenciado o contrário, relacionada à doutrina chamada Orfismo.
19
Como em Propércio, Elegiae I 3, 42 e III 2, 3; em Horácio, Carmina I 12, 8 e I 24, 13 e Epistula ad Pisones 392;
em Virgílio, Eclogae III 46 e Eneida VI 119-20, em Ovídio não só nas Metamorfoses X, mas em Amores III 9,
Ars Amatoria III 321-2 , Tristia IV 1, 17 e Epistula Ex Ponto II. 9, 53 e III 3, 41.
20
Poderíamos nos demorar indefinidamente ao revisitar as manifestações artísticas inspiradas pelo mito de Orfeu
desde os tempos antigos. Logo, apenas de forma ilustrativa, mencionamos a ópera L’Orfeo (1607), do italiano
Claudio Monteverdi; a pintura de Eugène Delacroix, A Primavera - Eurídice Colhendo Flores é Mordida por uma
Cobra (A Morte de Eurídice)(As Quatro Estações de Hartmann) (1853-63); a escultura em mármore do francês
Auguste Rodin, Orpheus and Eurydice (1893); a produção cinematográfica Orphée (1950) de Jean Cocteau; A
Invenção de Orfeu (1952), obra poética do modernista brasileiro Jorge de Lima; a peça musical para teatro, Orfeu
da Conceição (1956), de Vinícius de Moraes; o álbum da banda inglesa Nick Cave and the Bad Seeds, The Lyre
of Orpheus (2004) e a composição musical contemporânea da russa Sofia Gubaidulina, The Lyre of Orpheus (2006).
21
“we must not expect to find the legend of Orpheus told as a simple or singles story, without variations and
without inconsistencies.”
12
pela versatilidade de seu caráter22 – afinal, o vate não se relaciona apenas à poesia e à música.
A magia, o heroísmo, a engenhosidade artística e até mesmo a fundação de uma religião
permeiam o fértil imaginário popular a seu respeito. Nesta seção, investigaremos a figura órfica
e faremos uma breve seleção de narrativas que envolvem o personagem ao listar os mais
notórios relatos de suas façanhas nos autores gregos e romanos aos quais tivemos acesso por
meio de traduções. Visamos, com isso, conhecer melhor as representações de Orfeu que
circulavam pelo mundo greco-latino – e que, porventura, possam ter servido de influência ou
inspiração tanto para Virgílio quanto para Ovídio.
o orfismo e o mito de Orfeu, na verdade, são duas coisas muito diferentes entre
si. O mito de Orfeu [...] é remoto e mais antigo que a doutrina órfica. Explicar
por que os órficos adotaram Orfeu como seu pai-fundador, seu profeta
supremo, é tarefa de especulação.
De fato, sendo a origem do mito datada de uma antiguidade excessivamente remota,27 julgamos,
como Lee (1996, p. 3), que não há maneira de afirmar com segurança a veracidade da existência
22
GUTHRIE, 1952, p. 25.
23
Guthrie (1952, p. 26) comenta que alguns informantes deixam dúvidas quanto à exata localização da origem de
Orfeu, visto que dizem o herói ter nascido ou vivido nos arredores do Monte Olimpo, mas esclarece que tal detalhe
não é importante em seu desenvolvimento histórico: “One or two of our informants leave some doubt whether they
thought his true origin was Thracian of Macedonian, for the speak of him as having been born or as living in the
neighbourhood of Olympos; but this, though an interesting detail, is a matter of little consequence in history”.
24
“sua existência era tão real para o povo, que, em Anfissa, na Lócrida, se lhe venerava a cabeça como verdadeira
relíquia.” (BRANDÃO, 1987, p. 142)
25
“... by the fifth century B.C. he was accepted as a human religious teacher, whose doctrine was communicated
in sacred writings attributed to him”
26
Complexo movimento religioso histórico que contribuiu com três inovações para a religiosidade grega: a
cosmogonia, a antropogonia e a escatologia; cf. BRANDÃO, 1986, p. 150-156. Para mais detalhes sobre o Orfismo,
GUTHRIE, 1952 e MORFORD; LENARDON, 2003, p. 354-369.
27
GUTHRIE, 1952, p. 26.
13
humana de Orfeu,28 mas é necessário considerar que sua identidade significou mais para os
antigos do que atualmente significa para nós, visto que carregava, então, uma acepção mística.29
Há, para a figura órfica, portanto, uma natureza ambivalente: ela apresenta dois valores, na
medida em que é tanto uma figura de cunho mais lendário, sob a ótica do Orfismo, quanto uma
figura mitológica, construída ao longo dos séculos através de uma tradição literária,30 cerne de
nosso interesse neste estudo.
28
Guthrie (1952, p. 1-4) comenta a possibilidade de que Orfeu tenha existido e, ao mesmo tempo em que aponta
estudiosos que consideram a humanidade do vate incontestável, também menciona que, na era clássica grega,
ninguém parecia estar muito preocupado com essa questão.
29
NETO, 2009, p. 19.
30
Idem, p. 20-21.
31
GUTHRIE, 1952, p. 1.
32
BRANDÃO, 1986, p. 141.
33
Do grego katábasis, que significa descida, caminho para baixo; cf. LIDDELL; SCOTT, 1996, p. 884.
34
Orphanós, em grego, possui um sentido menos restrito que órfão em português, podendo ser traduzido por:
“carente de...”, “desprovido de...”; cf. LIDDELL; SCOTT, 1996, p. 1257-8.
35
CHANTRAINE, 1968, p. 829.
36
GRIMAL, 1986, p. 315; MORFORD; LENARDON, 2003, p. 360; MARCH, 2001, p. 572.
37
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 360; MARCH, 2001, p. 572.
38
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 360; MARCH, 2001, p. 572; há também aqueles que levantam a
possibilidade de a mãe do vate ser a musa Polímnia – matrona da dança e da poesia sagrada – ou até mesmo
Terpsícore – musa da poesia lírica e da dança; cf. GRIMAL, 1986, p. 315.
39
Ainda que as atribuições de cada musa sofram variações, Calíope é geralmente considerada a musa da poesia
épica e da eloquência. Hesíodo a considera como a maior das musas e a nomeia Belavoz: “ταῦτ᾽ ἄρα Μοῦσαι
ἄειδον, Ὀλύμπια δώματ᾽ ἔχουσαι, / ἐννέα θυγατέρες μεγάλου Διὸς ἐκγεγαυῖαι, / Κλειώ τ᾽ Εὐτέρπη τε Θάλειά τε
Μελπομέενη τε / Τερψιχόρη τ᾽ Ἐρατώ τε Πολύμνιά τ᾽ Οὐρανίη τε / Καλλιόπη θ᾽: ἣ δὲ προφερεστάτη ἐστὶν
ἁπασέων.” (Hes. Theo. 76-79) “Isso as Musas cantavam, que têm casas olímpias, as nove filhas do grande Zeus
geradas, Glória, Aprazível, Festa, Cantarina, Dançaraz, Saudosa, Muitacanção, Celeste e Belavoz: essa é a superior
entre todas” (trad. Christian Werner).
14
40
GRIMAL, 1986, p. 315.
41
“Apollo lyra accepta dicitur Orphea docuisse, et postquam ipse citharam inuenerit, illi lyram concessisse.” (Hyg.
Ast. II. 7), “conta-se que Apolo, após receber a lira, teria ensinado Orfeu, e depois que ele próprio inventou a cítara,
concedera-lhe a lira ” (trad. nossa).
42
“τάχα δ᾽ ἐν ταῖς πολυδένδρεσ-/ σιν Ὀλύμπου θαλάμαις, ἔν-/ θα ποτ᾽ Ὀρφεὺς κιθαρίζων/ σύναγεν δένδρεα
μούσαις,/ σύναγεν θῆρας ἀγρώτας.” (Eur. Bac. 560-564),“em arvoredos profusos, talvez aos remansos do Olimpo,
onde outrora Orfeu tocando cítara, com seus cantos, as árvores atraiu, atraiu as feras bravias” (trad. Maria Helena
da Rocha Pereira e Maria de Fátima M. Machado)
43
“Orpheaque in medio posuit, siluasque sequentes” (Virg. Buc. III. 46), “em meio a Orfeu com seguidoras selvas”
(trad. Odorico Mendes).
44
“Cum traheret siluas Orpheus et dura canendo saxa, bis amissa coniuge maestus erat” (Ov. Trist. IV. 1, 17), “e
ao arrastar matas e duras pedras com o canto, chorava Orfeu a esposa duas vezes perdida.” (trad. Júlia Avellar).
45
Nome do navio com o qual Jasão e seus companheiros navegaram pelo mar em busca do tosão de ouro; cf.
MARCH, 2001, p. 123.
46
Fernando Rodrigues Junior (2010, p. 148) complementa que: “Orfeu também é considerado um dos argonautas
por Píndaro Pítica IV, Heródoto (31F42-43 Jacoby), Apolodoro Biblioteca, Argonáuticas Órficas e Valério Flaco
Argonáuticas”. Importa saber: ainda que a obra Argonáuticas Órficas tenha por foco a participação de Orfeu na
viagem liderada por Jasão, é um texto de autoria anônima e de data de composição incerta – provavelmente, foi
escrito no século V d.C., o que o distancia consideravelmente do período clássico visado no presente trabalho,
motivo pelo qual não discorremos sobre ele.
47
Obra escrita no século III a.C. composta de quatro livros em versos hexâmetros.
15
Cabe aqui mencionar que, com a sedução de sua música e de sua poesia, o cantor e
argonauta de Apolônio de Rodes vai além de encantar elementos naturais: Orfeu é capaz,
também, de fascinar os homens. Através dos sons da forminge,48 ele dita o ritmo dos remos,
conforta a tripulação machucada e cansada e resolve situações de tensão, como por exemplo,
quando, ao cantar sobre o começo dos tempos e a era de dominação dos titãs,49 “põe fim à
discussão entre Idas e Idmão em um potencial momento de desintegração da tripulação na hora
da partida do porto de Pagasas” (RODRIGUES JUNIOR, 2010, p. 148-9), em uma passagem
de singular beleza poética.
Mas, como já mencionado, os grandes feitos de Orfeu não se restringem àqueles
relacionados à perícia musical. Seu caráter de educador e de poeta modelo, por exemplo, são
bem exemplificados em As Rãs, de Aristófanes, em que Orfeu é citado dentre os poetas
tradicionais, em meio a Hesíodo, Homero e Museu.50 Segundo Marina Peixoto Soares (2014,
p. 19), “Ésquilo e Eurípides concordam que um bom poeta deve ser admirado por sua habilidade
e por sua capacidade de proporcionar bons conselhos para a cidade”, o que “relaciona-se com
a concepção grega do poeta como professor”. Ao incluir Orfeu entre Hesíodo e Homero, o
dramaturgo – que viveu aproximadamente entre 447-385 a.C. – decerto nos ilustra com nitidez
a ambivalência lendário-mitológica do personagem, que se revela quando nos deparamos com
48
Também conhecido como fórminx, é um instrumento de cordas antiquíssimo, parecido com a cítara e com a lira.
(PERSEUS ENCYCLOPEDIA, 2016)
49
Apol. Arg. I.492-518.
50
“Ὀρφεὺς μὲν γὰρ τελετάς θ᾽ ἡμῖν κατέδειξε φόνωντ᾽ ἀπέχεσθαι” (Arist. Bat. 1032), “Pois Orfeu nos ensinou os
ritos e como se abster das matanças” (trad. Marina Peixoto Soares).
16
seu perfil de professor, fundador e iniciador. Essa interseção de caracteres é o ponto em que
conjecturamos haver um hibridismo entre seu eu mitológico, lendário e teológico.
Complementarmente às atribuições supracitadas, Orfeu chega a ser apontado até mesmo
como filósofo, iniciador do amor homossexual, da agricultura, do metro poético hexâmetro
datílico51 e, para os praticantes do Orfismo, introdutor dos mistérios da vida após a morte,
segredo vislumbrado após sua descida ao mundo dos mortos52 – ou, mais tecnicamente, depois
de sua catábase.
51
LEE, 1996, p. 2.
52
BRANDÃO, 1987, p. 144.
53
Para informaçõs mais detalhadas sobre os primeiros relatos da história de Orfeu; cf. LEE, 1996.
54
NETO, 2009, p. 22.
17
Orfeu, pelo contrário, filho de Éagro, eles o fizeram voltar do Hades sem nada
conceder-lhe; mostraram-lhe apenas o fantasma da mulher por causa de quem
ele ali fora ter, não a própria esposa, por o considerarem pusilânime: era um
simples harpista, que, não se dispondo a morrer por amor, como o fizera
Alceste, arranjara jeito de penetrar vivo no Hades. Por isso mesmo,
castigaram-no, determinando os deuses que viesse a morrer por mão de
mulheres. (trad. Carlos Alberto Nunes)
Todas essas versões, porém, excluem detalhes que foram adicionados por Virgílio, no
século I a.C., nas Geórgicas, e reforçados por Ovídio, também neste século, nas
Metamorfoses,56 tais como a razão para a morte de Eurídice, envenenada pela serpente que lhe
morde os calcanhares,57 a regra de Prosérpina que ditava a Orfeu não volver seu olhar sob a
pena de perder a esposa, a dramatização da quebra do juramento e o consequente insucesso da
missão de resgate.
Além disso, assim como Platão comenta o destino do personagem, que foi assassinado
por mulheres, ambos os poetas latinos concatenam às suas narrações o episódio da violenta
morte de Orfeu. Os relatos mais conhecidos do desfecho da vida do vate afirmam que ele foi
morto e despedaçado por mulheres da Trácia, seguidoras de Dioniso. Virgílio considera que
isso se deu por sua eterna fidelidade à Eurídice, pois, após perdê-la, Orfeu absteve-se do
relacionamento íntimo com mulheres e foi atacado por aquelas que o desejavam e eram
55
Obra elegíaca “que aparentemente se tratava de um catálogo histórias de amor” (NETO, 2009, p. 22).
56
NETO, 2009, p. 23.
57
Lee (1996, p. 13) considera que essa foi, de fato, uma inovação adicionada à história pela narrativa virgiliana:
“a final innovation of Virgil's – at least it is a detail never used by the predecessors in our canon – is the initial
death of Eurydice by a snake bite”.
18
constantemente recusadas. Ovídio admite esse mesmo relato e ainda adiciona que o herói,
evitando a companhia feminina antes de morrer, aproveitou-se, então, do amor de garotos
jovens.58 Brandão (1987, p. 143), por sua vez, denuncia Afrodite como a responsável pelo
trágico fim:
Cuja cabeça no mar, trazida da montanha, foi levada pelas ondas para a ilha
de Lesbos, recolhida pelos habitantes e mandada a uma sepultura. Em função
desta gentileza, foram apreciados com um talento natural para a arte da música.
Além disso, a Lira foi incluída entre as estrelas, como dissemos anteriormente,
pelas musas. (trad. nossa)
58
Higino – escritor latino que viveu aproximadamente entre 64 e 17 a.C. – corrobora essa versão ovidiana:
“nonnulli aiunt, quod Orpheus primus puerilem amorem induxerit, mulieribus uisum contumeliam fecisse; hac re
ab his interfectum.” (Hyg. Ast. II.7); “alguns dizem que Orfeu foi o primeiro a adotar o amor pueril, e pareceu ter
feito uma afronta às mulheres; por isso, foi morto por elas.” (trad. nossa).
59
“the nightingale was said to sing more sweetly over his grave than anywhere else in Greece”.
19
II
VIRGÍLIO E OVÍDIO
Tímido e recatado, o poeta não se casou e nem participou ativamente da vida pública de
Roma.62 Conta-se também que a família de Virgílio teve os bens confiscados e posteriormente
devolvidos por Otaviano;63 deste modo, sua gratidão ao imperador estaria personificada em
Títiro, personagem de sua primeira Écloga, “a quem coube o perdão concedido por um deus e
a felicidade de poder habitar em paz seus campos com rebanhos” (TREVIZAM, 2013, p. 13).
Virgílio foi grande amigo de Horácio e de outros poetas que lhe eram contemporâneos,
além de ter feito parte do círculo literário de Mecenas,64 um patrono das artes e “ministro” de
Augusto, que encomendava poemas aos literatos e a quem Virgílio dedicou as Geórgicas:
60
NETO, 2014, p. 9.
61
GRANDSDEN, 2004, p. 8.
62
Idem, ibidem.
63
TREVIZAM, 2013, p. 13-14.
64
GRANDSDEN, 2004, p. 9.
20
o que torna as searas alegres, sob qual astro convém volver a terra, Mecenas,
[...] começarei a cantar aqui. (trad. Matheus Trevizam)
Três são as obras virgilianas, todas elas escritas no metro hexâmetro datílico, 65 um
relevante padrão que nos permite observar o desenvolvimento métrico e estilístico do poeta:66
Respeitado como um dos maiores poetas do período clássico romano, Virgílio trabalhou
65
O metro hexâmetro datílico consiste de seis pés dátilos ( ) e/ou espondeus ( ), com exceção do quinto pé,
que é, tradicionalmente, sempre dátilo (daí o nome hexâmetro datílico).
66
Como explicado por Gransden (2004, p. 20), a igualdade métrica das composições facilita a que Virgílio cite a
si mesmo, além de dar ao leitor uma sensação de continuidade entre as obras: “the fact that Virgil’s three
compositions are all in the same metre naturally facilitates self-quotation, and gives the reader a sense of continuity
from work to work. It is possible to trace the development and maturing of Virgil as an artist through his handling
of the hexameter”.
67
NETO, 2014, p. 9.
68
As assim chamadas obras da juventude de Virgílio, contidas na Appendix Vergiliana, não foram consideradas
aqui pela incerteza da autoria.
69
NETO, 2014, p. 9.
70
Idem, p. 10.
71
Um carmen perpetuum não é um poema eterno; é, antes, um poema contínuo: “a poem which lasts forever, but
a continuous or (to use a musical term) ‘through-composed’ work” (GRANSDEN, 2004, p. 36).
72
Usualmente considera-se que, em uma emulação das épicas homéricas, os seis primeiros livros da Eneida
rivalizam com a Odisseia e os seis últimos, com a Ilíada. Entretanto, é prudente mencionar que o valor inerente à
Eneida não reside nas obras que influenciaram Virgílio – há de se considerar igualmente as obras que foram
influenciadas por ele, como nos afirma João Angelo Oliva Neto (2014, p. 13-14): “por mais que ela [a Eneida]
pressuponha a Ilíada e a Odisseia homéricas, que lhe foram os modelos mais notórios, por quanto também dependa
das menos conhecidas Argonáuticas, de Apolônio de Rodes (século III a.C), que lhe foram, porém, como veremos,
modelo mais próximo, é no poema de Virgílio que se miraram Dante Alighieri, que faz de Virgílio guia do poeta
na Divina Comédia; Ludovico Ariosto, no Orlando furioso; Torquato Tasso, na Jerusalém libertada; John Milton
duplamente, no Paraíso perdido e no Paraíso reconquistado, e enfim este Camões, também nosso porque não
menos nos pertence a língua d’Os Lusíadas”.
21
II.2. Geórgicas
Escritas no período entre 37-29 a.C., as Geórgicas constituem-se de quatro livros, com
um total de 2.188 versos. Seu tema é explicitado logo na abertura do poema:
O que torna as searas alegres, sob qual astro contém volver a terra, Mecenas,
e unir a videira aos olmos, que cuidado pedem os bois, que trabalho o rebanho
de alguém e quanta destreza nas abelhas frugais começarei a cantar aqui. (trad.
Matheus Trevizam)
Influenciada pelo modelo grego do autor Hesíodo, 75 a obra “se afasta do universo
pastoril das Églogas juvenis” e “daquele marcial da Eneida” (TREVIZAM, 2014, p. 58) e, à
primeira vista, é um poema agrário,76 cujos livros tratam sobre quatro tópicos específicos dessa
área – as plantações, a arboricultura, a pecuária e a apicultura, respectivamente. Ainda que
costumeiramente classificada como pertencente ao gênero épico didático,77 para Volk (2008, p.
6) as Geórgicas são, na verdade, um poema aparentemente didático, uma vez que “o trabalho
não pretende ensinar agricultura aos fazendeiros, mas sim transmitir uma mensagem maior”.78
73
NETO, 2014, p. 9.
74
GRANDSDEN, 2004, p. 7.
75
Poeta grego que viveu aproximadamente no séc. VII a.C., autor da Teogonia e de Os Trabalhos e os Dias.
76
Trevizam (2014, p. 57-8) observa que o título da obra recupera as palavras gregas georgós, camponês, e georgía,
agricultura.
77
Toohey (1996, p. 4) enumera as principais características da épica didática: “a didatic epic speaks with a single
authorial voice and this is directed explicitly to an addressee, who may or may not be named. It is usually a serious
literary form. Its subject matter is instructional rather than merely oratory. It may be, and often is, quite technical
and detailed. Included within the narrative are normally a number of illustrative panels. These are often based on
mythological themes. The meter of didactic poetry is that of narrative epic, the hexameter [...]”. Para uma discussão
sobre como tal gênero se desenvolve especificamente nas Geórgicas, cf. TREVIZAM, 2014, p. 57-99.
78
“the work is intended not to teach agriculture to the farmers but rather to convey a larger message...”
22
Para o professor, tal celebração acontece ainda que, no quarto livro da obra, o fracasso
do poeta-modelo Orfeu seja narrado em um epílion,80 – uma pequena épica inserida ao texto,
onde se localiza a passagem cerne de nosso estudo – considerado por Trevizam (2014, p. 91)
como “o mais bem elaborado artefato literário de todo o poema”.
Nesse epílion, a moldura da narrativa órfica, Virgílio conta-nos a história do apicultor
Aristeu, que perdeu os seus enxames em decorrência da fome e da doença e que, por isso, chora
seus infortúnios a Cirene,81 sua mãe. Respondendo às lamentações do filho, a náiade abre as
portas de seu místico reino aquático e o recebe com rituais e ambrosia. Ela afirma que é Proteu
– um deus marinho, ancião das profecias – quem terá as respostas para a razão da desventura
de Aristeu, e lhe dá as coordenadas para encontrar a deidade e obter as respostas que procura.
Seguindo a orientação materna, o jovem encontra Proteu e o subjuga: a partir disso, é pela voz
do deus marinho que escutamos a história de Orfeu e Eurídice, dado que a perda dos enxames
de Aristeu fora consequência de sua responsabilidade pela morte da ninfa, picada por uma cobra
ao fugir das mãos desejosas do apicultor. Posteriormente à narração de Proteu, Aristeu recebe
as instruções de sua mãe sobre como fazer renascer suas abelhas com um estranho ritual
chamado bugonia, em que ele sacrifica alguns animais em honra dos manes de Orfeu e Eurídice,
concluindo a fábula.
Conceber a motivação de Virgílio para ligar o mito de Orfeu à trama de Aristeu é tarefa
de especulação, e o entendimento da passagem divide os críticos das Geórgicas. Segundo Gian
Biagio Conte (1986, p. 130-131), alguns leem o epílion simplesmente como uma adição
79
VOLK, 2008, p. 7.
80
“O epílion, ou pequena épica, constitui-se numa invenção literária dos poetas alexandrinos (embora a designação
e o reconhecimento da categoria compositiva caibam aos teóricos modernos), caracterizando-se pela estrutura
narrativa de extensão razoavelmente breve, pelo emprego do hexâmetro, pela tematização de lendas míticas (vida
e amores dos heróis) e pelo desdobramento em mais de uma história, de modo que uma delas é contida pela outra”
(TREVIZAM, 2003, p. 32).
81
Uma náiade por quem Apolo se apaixonou e com quem gerou Aristeu; cf. GRIMAL, 1986, p. 59.
23
ornamental e elegante ao texto, que não se associaria com o resto da obra e cujo propósito seria
meramente explicar o ritual da bugonia; outros acreditam que ele seria uma mensagem
codificada e se referiria ao poeta Galo;82 por fim, há aqueles que buscam evidências para o
significado da passagem em seu próprio desenvolvimento e relacionamento com o resto da
obra.83 Cuidamos que os últimos apresentem a leitura mais sensata: há, na narração moldura de
Aristeu, uma correlação direta com a narração emoldurada de Orfeu,84 cuja apreciação é capaz
de nos guiar a uma compreensão satisfatória das razões pelas quais Virgílio optou pelo mito
órfico como narrativa encaixada.
Inicialmente, vale-nos pensar que as tramas de um e outro personagem são estruturadas
de forma muito similar: ambos perdem algo de importância, ambos sofrem uma catábase – no
caso do apicultor, ela se dá ao buscar a caverna aquática de sua mãe – e ambos vão até o final
para recuperar o que perderam.85 Entretanto, ao compararmos o desfecho de Aristeu com o de
Orfeu, é inevitável não atentarmos para o fato de que, enquanto aquele obteve o que buscava
(as abelhas), este perdeu o que alcançou (Eurídice).86 Tão evidente distinção faz com que, de
imediato, confrontemos os personagens através do desfecho de suas trajetórias. Afinal, Orfeu
frustra todas as expectativas quando ignora a ordem divina de Perséfone, mas Aristeu faz o
oposto: escuta Proteu atentamente e, em seguida, respeita, diligentemente, todos os comandos
de Cirene.87
Com isso, conclui-se que o paralelismo entre os dois personagens compartilha a
ideologia presente em todas as Geórgicas, na medida em que ele
tem a função de demonstrar uma distinta oposição entre duas atitudes e dois
modos de vida. Por um lado, existe o escrupuloso, pio “georgos” e de outro,
um amante que [...] é traído pelo próprio “furor” que o dominou. [...] nada
resiste diante da vontade dos deuses; qualquer triunfo sobre eles é ilusório.
Seus desejos têm de ser seguidos escrupulosamente e sua divindade e poder
devem ser reconhecidos (CONTE,1986, p. 134-35).88
82
Sobre a mensagem de Galo, Conte (1986, p. 131) explica: “Some believe it should be read as a message ‘in code’
referring to Gallus the poet (or else an indirect way of eulogizing him as an historical figure, treating him as
governor of Egypt rather than as the founder of a new kind of love poetry – elegiac poetry).”
83
CONTE, 1986, p. 131. Apesar de não ter sido elencada por Conte, há também a interpretação de Sérvio Honorato
– um comentador de Virgílio do séc. IV d.C. – para a inclusão da narrativa órfica no livro IV. Em um trecho de
seus comentários, Sérvio afirma que “sane sciendum, ut supra diximus, ultimam partem huius libri esse mutatam:
nam laudes Galli habuit locus ille, qui nunc Orphei continet fabulam, quae inserta est, postquam irato Augusto
Gallus occisus est.” (Serv. Georg. Comm. VI. 1); “certamente deve-se saber que, como dissemos acima, a última
parte deste livro foi mudada: na verdade, aquela passagem que suportou os elogios de Galo agora contém a fábula
de Orfeu, que foi inserida depois que Galo foi morto pelo irado Augusto” (trad. nossa).
84
Idem, ibidem.
85
Idem, p. 135.
86
Idem, p. 132.
87
Idem, p. 135/139.
88
“has the function of displaying a distinctive opposition between two attitudes and two ways of life. On the one
24
Trevizam (2014, p. 92-93) menciona o crítico italiano e explica que tal passagem
significaria, “em um poema tão carregado de reminiscências tradicionais quanto as agrárias
Geórgicas, o endosso da postura humana segundo os critérios do mos maiorum”, que dita, ao
homem de valor, uma postura módica em relação às futilidades e às paixões, uma postura de
integral respeito aos deveres e aos deuses – a partir disso, Aristeu seria, por excelência, a
personificação de um discipulus da poesia didática proposta por Virgílio; o personagem é
aquele que soube ouvir e que, assimilando o que lhe foi narrado, aprendeu o que deveria fazer
e como não deveria agir.89
Em consequência, a narração órfica possibilitaria a interpretação de um final otimista
tanto para o livro IV quanto para as Geórgicas como um todo, com a promessa de bem-estar
àqueles que aceitam a vontade divina e se dispõem a praticar o mos maiorum. Conforme declara
Gary Miles (1980, p. 281):
Por fim, é imprescindível mencionar uma última ideia proposta por Conte (1986, p. 138)
a respeito do epílion: a de que a narração órfica seria, no domínio metalinguístico, uma
“mensagem sobre os modos e a função da poesia”.91 Para o estudioso, Virgílio coloca Orfeu
não apenas como um amante, mas como um “poeta-amante”, uma distinção expressiva a partir
do momento em que consideramos o amor como o tema central da poesia órfica: seu canto é
essencialmente apaixonado e reduz-se sempre à Eurídice, o que pode ser percebido com muita
clareza no final da narração, quando a cabeça do vate continua a clamar repetidamente pela
esposa perdida.92 Sua poética, contudo, é improdutiva: a poesia romântica, mais precisamente
a elegíaca, para Virgílio, falha por estar distanciada da ação e por adotar um “modo
contemplativo” (CONTE, 1986, p. 137), uma poesia que, apesar de poderosa, serve apenas para
consolar quem a compôs e para distrair seus leitores ou ouvintes. Já a poesia geórgica, como
hand there is a scrupulous, pious “georgos” and on the other a lover who […] is betrayed by the very “furor” that
has seized him. […] nothing avails against the will of the gods; any triumph over them is illusory. Their wishes
must be fulfilled scrupulously, and their divinity and power must be recognized.”
89
CONTE, 1986, p. 135.
90
Proteus' story of Orpheus and Eurydice does not allow indifference toward it. It demands that we respect the
human suffering that loss and change entail, for it is only by acceptance of them and their place in the natural order
of things that we can hope to confront future honestly.
91
“... message about the modes and function of poetry”
92
CONTE, 1986, p. 136.
25
observamos (p. 23-24), endossa uma postura ativa e ilustra a vitória daqueles que confiam nos
deuses e conservam a pietas através das dificuldades, tomando Aristeu por modelo.93
Eis que a objetivação dessa postura “representaria, no plano metalinguístico, a recusa
do próprio Virgílio em filiar-se compositivamente às manifestações do gênero da elegia erótica
romana, justamente caracterizado [...] pelo infundido (e infrutífero) lamento amoroso por uma
mulher ‘difícil’” (TREVIZAM, 2014, p. 93). Logo, as particularidades da poesia órfica
traduzem exatamente a natureza poética da qual Virgílio, com as Geórgicas, intencionava se
afastar. 94 Tentaremos demonstrar, um pouco mais adiante, como essa interpretação pode
encaixar-se em nosso estudo comparativo. Antes, contudo, faz-se necessário conhecer um
pouco mais sobre Ovídio e sobre as Metamorfoses.
Diferentemente de Virgílio, Ovídio teve uma vida pessoal mais agitada: casou-se três
vezes, foi pai de uma filha e avô de duas crianças.97 Além disso, conta-se que ele foi exilado
pelo imperador Augusto em 8 d.C.98 As razões para seu possível desterro são incertas, mas é
provável que se relacionem ao teor predominantemente feminista, ousado e erótico de suas
93
Idem, p. 139.
94
Idem, p. 137.
95
VOLK, 2010, p. 22-23.
96
Ovídio notabilizou-se pela composição de elegias, poemas de metro elegíaco, tradicionalmente constituído por
um hexâmetro seguido por um pentâmetro.
97
VOLK, 2010, p. 23.
98
Há bastante controvérsia e dúvida não apenas em relação ao exílio de Ovídio, mas também sobre os outros
aspectos de sua biografia. Isso se deve ao fato de que a maior parte das informações sobre a vida do poeta advém
de sua própria obra; destarte, existe uma grande dificuldade em tentar dissociar a realidade da criatividade,
sobretudo pela constante “brincadeira” do poeta com a metaficção (em especial quando consideramos seu trabalho
“pós-exílio”). Refletindo sobre o assunto, Volk (2010, p. 22) conclui ser mais proveitoso ler a obra de Ovídio livre
de preocupações históricas: “extracting hard historical facts from the Ovidian corpus is difficult and always fraught
with methodological uncertainty; by contrast, reading the story of Ovid as a work of fiction, without worrying
about its relation to reality is comparatively easy”. Para mais sobre o jogo de ficcionalidade em Ovídio, cf.
AVELLAR, 2015.
26
primeiras publicações.99 Segundo o próprio poeta, ele passou o resto de sua vida de relegado
em Tomis, onde morreu, calcula-se, no ano 18 d.C. 100
Autor de uma obra consideravelmente vasta – atribui-se a ele um total de 11
composições – Ovídio desenvolveu, em sua literatura, três fases distintas: a dos poemas de amor,
a dos poemas longos e a das composições de exílio. Não necessariamente em ordem cronológica,
pois há considerável dificuldade em organizá-los temporalmente, mas a começar pela primeira
fase, eis abaixo a lista de seus trabalhos:101
1) Amores, os Amores, uma coleção de três livros contendo 49 elegias nas quais o autor
descreve sentimentos eróticos e românticos à sua musa Corina;
2) Heroides ou Epistulae Heroidum, as Cartas das Heroínas, 21 cartas ficcionais
escritas em metro elegíaco nas quais as remetentes são heroínas mitológicas e os destinatários,
seus amantes;
3) Medicamina faciei femineae, Os Medicamentos para a Face da Mulher,
presumivelmente um manual de cosmética de caráter didático, escrito em hexâmetro datílico e
do qual sobreviveram apenas fragmentos;
4) Ars amatoria, A Arte de Amar, um conjunto de três livros, descritos por Volk (2010,
p. 9) como uma “combinação do formato didático com o metro e o assunto elegíaco”, 102 nos
quais o poeta coloca-se como mestre do amor e elabora um tratado sobre como conquistar uma
paixão e, em seguida, como mantê-la;
5) Remedia amoris, Remédios do Amor, em que o poeta apresenta, em dísticos elegíacos,
dicas para livrar-se de amores indesejados;
6) Medea (Medeia), tragédia da qual restam-nos apenas dois fragmentos.
1) Fasti, os Fastos, seis livros compostos em metro elegíaco (apenas metade da obra
chegou até nós – seriam, no total, doze livros),103 cada um dedicado a um mês do ano. Essa
produção conta com um conteúdo variado – o poeta faz listas de feriados religiosos, dá
informações astronômicas, menciona eventos históricos e reconta mitos;
99
VOLK, 2010, p. 30-32.
100
Idem, p. 6.
101
Idem, p. 6-19.
102
“combination of a didactic format with elegiac meter and subject matter”
103
VOLK, 2010, p. 13.
27
1) Tristia, com cinco livros e 2) Epistulae ex Ponto, com quatro; ambas compilações de
elegias saudosas, onde Ovídio narra as desventuras de seu exílio;
3) Ibis, elegia de 642 linhas em que o poeta ataca um inimigo.
II.4. Metamorfoses
104
Elaine Fantham (2004, p. 3) afirma que não podemos precisar a data de publicação das Metamorfoses: “we
cannot date exactly the publication – that is, the circulation in manuscript form – of Ovid’s great epic of
transformation”.
105
VOLK, 2010, p. 53.
106
“moves from one story to the next, comprising a vast number of distinct and mostly unrelated tales”
28
de Virgílio – apresentam um escopo narrativo único, 107 um único herói, 108 e um corpus
igualmente restrito de personagens auxiliares.
Ainda para a professora (2010, p. 54), uma poesia “que trata de uma variedade de tópicos
ou conta uma multidão de histórias, não era, entretanto, desconhecida antes de Ovídio”, 109
porquanto já existia um “minigênero” chamado de “poemas de catálogo” cujo expoente foi o
grego Calímaco com a obra Aetia, “uma coleção de pequenos, alusivos e independentes poemas
em um volume cuidadosamente organizado que tirava proveito do equilíbrio e do contraste
interno” 110 (FANTHAM, 2004, p. 6). Alguns desses “poemas de catálogo”, inclusive, tratavam
diretamente de histórias de transformações mitológicas.111 Não obstante, ainda que claramente
influenciado pelo caráter de tais obras, Ovídio tinha a intenção de criar, com as Metamorfoses,
um poema de alçamento épico, disposição que pode ser depreendida dos primeiros versos da
composição, onde sua voz poética pede auxílio aos deuses ao mesmo tempo em que apresenta
uma proposta de produção, no mínimo, ambiciosa:112
Cantará, portanto, sobre plurais “formas mudadas” – eis aqui menção às metamorfoses
que intitulam o poema – mas, com o auxílio divino, conduzirá sua composição de forma
ininterrupta.113 É curioso apontar que, apesar do nome, nem todas as histórias narradas ao longo
da obra falam sobre transformações, ainda que, na prática, esse seja o tema principal do poema
107
No caso da Eneida, a fundação de Roma; no caso da Odisseia, a volta para casa; no caso da Ilíada, a ira de
Aquiles.
108
Respectivamente Eneias, Ulisses e Aquiles.
109
“that treats a variety of topics or tells a multitude of stories was, however, not unheard of before Ovid”.
110
“the collecting of short, allusive, self-contained poems into a carefully arranged volume that played on
internal balance and contrast”.
111
VOLK, 2010, p. 54.
112
Idem, p. 54-55.
113
Ovídio serve-se da expressão carmen perpetuum (Ov. Met. I.4) para descrever as Metamorfoses, uma
característica tradicionalmente atribuída à Eneida de Virgílio; é natural, portanto, considerar que as Metamorfoses
rivalizem com a suprema épica predecessora e respondam aos temas abordados por ela, conforme aponta Volk
(2010, p. 55): “Ovid’s Metamorphoses was the first major Latin epic after the Aeneid and obviously had to react
to Vergil’s work and – ideally – surpass it or, if this proved impossible, at least demonstrate how epic could also
be done differently.”
29
como um todo114 – afinal há, dentro do texto, uma progressão temporal e temática que pode ser
percebida a partir da divisão do poema: três blocos de cinco livros, com o primeiro tratando dos
deuses, o segundo, dos heróis e o terceiro, dos homens.115 Ora, não seria o próprio arcabouço
da composição, sui generis, a maior das metamorfoses presentes na obra?
Além disso, Ovídio tinge sua obra com outros tipos de transformações. É possível
perceber ao longo das Metamorfoses, por exemplo, não apenas a influência da “poesia de
catálogo”, mas também a presença de subgêneros que se alternam e se completam,
metamorfoseando o texto na medida em que lhe imprimem diferentes tonalidades, tais como o
trágico, o bucólico e o elegíaco,116 sendo este a especialidade ovidiana e um dos estilos mais
marcantes da sua composição, refletido até mesmo na seleção mitológica da obra:
Mas não é só essa gama de estilos que individualiza o poema, uma vez que nele há uma
rede tão grande de diálogos com outros autores quanto o número de narrações retratadas:118
muitas das histórias contadas por Ovídio foram antes matéria de outros poetas, e Virgílio,
aparentemente, é tido como uma de suas influências mais marcantes: “qualquer que seja o seu
gênero, a escrita de Ovídio é repleta de reminiscências de Virgílio, muito mais alardeadas do
que ocultadas”119 (TARRANT, 2006, p. 62). Curiosamente, a história de Orfeu encontrada nas
Metamorfoses serve para exemplificar tanto o peso do gênero elegíaco quanto a presença
virgiliana na composição, características que se tornarão mais evidentes no próximo capítulo,
com base na efetiva comparação dos versos referentes ao mito de Orfeu em Virgílio e Ovídio;
antes, porém, é oportuno compreender o contexto no qual a trama órfica se desenrola nas
Metamorfoses.
114
VOLK, 2010, p. 12.
115
É Volk (2010, p. 11) quem percebe esse padrão e afirma que o poema pode ser dividido em três blocos de cinco
livros, de acordo com os assuntos tratados em cada um: “into three blocks of five books each, a structure that
corresponds to the chronological progression of the work's subject matter. Books 1-5 treat exploits of the gods,
Books 6-10 recount adventures of heroes, and Books 11-15 tell tales about mere men”.
116
FANTHAM, 2004, p. 125-128; VOLK, 2010, p. 54-55.
117
“the most recognizable counterweight to epic grandeur in this composite poem is surely the world of elegy:
amor outweights arma [...] As elegy thrived on the jealousy, frustration, and separation of lovers, and the
contemplation of death, so Ovid selects myths that provoke such emotions”.
118
Especialmente notável pela análise intertextual de várias passagens das Metamorfoses é a obra de Fantham; cf.
FANTHAM, 2004.
119
“whatever its genre, Ovid's writing is suffused with Virgilian reminiscence, often paraded rather than concealed”
30
120
A história de Atalanta e Hipomenes é, em tese, contada por Vênus para Adônis. Entretanto, como é Orfeu quem
canta essa trama, é ele quem cria o discurso da deusa, em uma interessantíssima estrutura onde o “narrador Ovídio”
dá voz a Orfeu que, em seguida, dá voz a Vênus – que terminará dando voz a todos os personagens da história que
irá contar. Ulrich Eigler (2012, p. 355-368) faz uma excelente análise dessa construção narrativa nas Metamorfoses.
121
“the Metamorphoses is not just about stories but about storytelling, exhibiting nearly as much of an interest in
the act of narrating as in the narrative themselves”.
122
VOLK, 2010, p. 58.
123
“The Metamorphoses would never have won centuries of readers if Ovid had not known how to appeal to both
the head and the heart, to imagination as well as sentiment, to our feeling for the tragic and our amusement at the
comic, to our response to visual arts and to human vulnerability...”
31
III
ESTUDO COMPARATIVO
124
“... by picking the topic of the Orpheus story in his tenth Book, Ovid seeks the competition with Virgil”.
125
“... in fact, Ovid seems to challenge every detail of Virgil’s famous version of the Orpheus and Eurydice myth”.
126
“Yet the historian of the language who is also a lover of Virgil must stress the fact that all Latin literary genres
with the exception of satire (‘satira tota nostra est’ is all that Quintilian can claim) owed their form and much of
their content to Greek practice and theory. So it is first to Greek literature that we must turn to reach an
understanding of the progress of literary Latin” (PALMER, 1954, p. 96).
127
Carta de caráter didático que o poeta escreveu aos Pisões, uma família romana patrícia, intencionando
aconselhar sobre o fazer poético.
32
ou seja, no mínimo, coerente ao trabalhar em uma proposta inovadora. Depois de citar o valor
das fontes gregas, mencionar que a literatura é como um bosque que constantemente perde
folhas antigas, mas que volta a vicejar com as novas, ele exorta: “ou segue a tradição ou cria
coisas em si convenientes, escritor!”. 128 Dessa maneira, Horácio defende a adequação aos
modelos literários: se há desejo, por exemplo, de recriar um Aquiles, que ele seja sempre “ativo,
irascível, inexorável, impetuoso, negue as leis que lhe são destinadas, atribua tudo às armas” 129
e que essas características sejam coerentes no decurso da obra. Tal amoldamento, porém, não
pressupõe que o autor se torne um intérprete servil ou um imitador de seus predecessores, pois
os temas tradicionais devem ser tratados de modo particular:
128
Trad. Bruno et al. “aut famam sequere aut sibi conuenientia finge scriptor” (Hor. Ars. 119-120).
129
Trad. Bruno et al. “impiger, iracundus, inexorabilis, acer iura neget sibi nata, nihil non arroget armis” (Hor.
Ars. 121-122).
130
Parece-nos interessante apontar que, em português, “emulação” advém do substantivo latino aemulatio, onis
que significa, dentre outras coisas, “esforço contínuo para igualar alguém em alguma coisa, rivalidade, desejo de
rivalizar, de igualar” (SARAIVA, 2006, p. 36).
33
compondo um trabalho que os adote como modelos, mas que, no final, conquiste um resultado
superior aos exemplos primeiros.
Diante disso, confirma-se a validade das afirmações de Liveley e Eigler no início da
seção, na medida em que, assim como consideramos Virgílio ter se utilizado da emulação
homérica na composição da Eneida e decerto ter se apoiado na tradição corrente para elaborar
sua própria narrativa de Orfeu, julgamos que Ovídio, nos mesmos moldes, tenha intentado
rivalizar com Virgílio, não apenas nas Metamorfoses como um todo,131 mas especialmente na
aventura órfica: eis a disputa que examinaremos na sequência deste capítulo.
III.2. Análise dos versos 453-527 das Geórgicas IV e 1-85 das Metamorfoses X
Primeira Parte
Virg. Georg. IV.453-466 e Ov. Met. X.1-12.
“As iras de algum poder divino o atingem; você expia grandes faltas: o
infeliz Orfeu, sem o merecer, está violentamente furioso pela esposa raptada
e, a menos que os fados se oponham,[455] instiga-lhe estes castigos. Pois ela,
garota que haveria de morrer, enquanto fugia de você, descendo o rio, não viu,
diante dos pés, uma horrível cobra d’água que habita as margens da alta relva.
131
Tarrant (2006, p. 61), menciona a postura ovidiana de rivalidade com Virgílio por meio de indicações
compositivas de que Ovídio, desde a publicação dos Amores, desejava alçar ao gênero épico, cuja obra mais ilustre
em Língua Latina era a Eneida: “His earliest published collection of poems, the elegiac Amores, opens with a poem
in which Ovid is deflected from epic to elegy when Amor removes a metrical foot from the second line of his
work-in-progress. The elegy (and presumably the imagined epic) begins with arma, and an allusion to the Aeneid
seems likely. Since Ovid, unlike other elegists, does not portray himself as unfit for grander themes, and his service
as a writer of elegy is from the outset temporary, the Virgilian echo may signal his ambition to emulate Virgil by
rising through the genres to epic. Certainly imitation (in parodic form) of the Georgics is one of the motivating
forces of the mock-didactic Ars amatoria, a work of Ovid's mid-career, while his largest and most ambitious work,
the Metamorphoses, is in several senses a response and counterpart to the Aeneid.”; cf. também THOMAS, 2009,
p. 294-307.
34
Como perscrutamos nos capítulos anteriores, Virgílio inicia sua versão do mito através
da voz do deus ancião Proteu, que avisa ao pastor Aristeu que as iras de algum poder divino o
atingem e, responsável pela morte da mulher de Orfeu, é a fúria do marido que recai sobre ele
(v. 453-455). O narrador imediatamente apresenta Orfeu pelo nome (v. 455), mas não faz o
mesmo com Eurídice, que é evocada apenas pelo epíteto moritura puella (garota que haveria
de morrer, v. 458); afinal, ao fugir de Aristeu, que a perseguia nas margens de um rio, Eurídice
se depara com uma hydrus (cobra d’água, v. 458) e é mordida. Dois pontos interessam aqui:
primeiro, a especificação de Virgílio ao chamar a serpente de hydrus, o que parece fator não só
relacionado ao cuidado do autor com a nomenclatura do mundo animal nas Geórgicas, tendo
em vista o locus da ação, mas também à voz de Proteu, um personagem caracteristicamente
132
Todas as traduções de Virgílio e Ovídio apresentadas neste capítulo são de nossa autoria, salvo quando citado
o contrário.
35
133
“has no need to show the physical reason for her death.”
134
“particulary expected his audience to remember the masterpiece of Vergil's Georg. […]”
135
Afinal, como indicam os estudiosos do assunto, a ligação de Aristeu com o episódio da morte de Eurídice é
uma criação virgiliana.
136
Anderson (1972, p. 476) explica que a tocha fumacenta é a indicação de um mau agouro aos recém-casados:
“Hymenaeus carries a wedding torch, but the sputtering smoky flame brings tears to the eyes of the wedding party
and augurs tears for the couple”.
36
verso occidit in talum serpentis dente recepto (morre com o dente de uma serpente cravado no
calcanhar, v. 10) o “relato físico”137 da mordida, o que foi, como vimos, ocultado pela voz de
Proteu em Virgílio. Similarmente, além de ignorar o esmorecimento de qualquer outro ser que
não Orfeu, o narrador das Metamorfoses passa pelo pesar do vate tão rapidamente que encerra
a passagem em apenas duas palavras: satis defleuit (muito lamentou, v. 11-12); uma descrição
objetiva que opera como um indicador de como Ovídio pretende tonalizar o seu relato.138
Virgílio, enfim, dedica ao luto órfico mais que o dobro de atenção (3 versos, v. 464-
466). Num trecho esteticamente rebuscado,139 Proteu “parece esquecer, momentaneamente, que
ele começou endereçando a seu ouvinte, o jovem Aristeu” 140 (LEE, 1996, p. 111) e, numa
demonstração de empatia, volta-se para Eurídice. Nesta passagem, a tristeza do amante ganha
realce com a musicalidade grave dos espondeus e leve dos dátilos e com a seleção vocabular,
que indica uma desesperadora solidão. Nota-se, na construção rítmica da passagem, um verso
mais lento (v. 465), que comunica a tristeza, seguido de um que mistura quantidades longas e
breves141 e cria uma cadência mais musical de evidente contraste:
O próprio [Orfeu], com a lira côncava, procurando aliviar o triste amor, a você,
doce esposa, no litoral, a você, ao nascer do dia, [465] a você, ao cair do dia,
cantava ensimesmado.
Segunda Parte
Virg. Georg. IV.467-484 e Ov. Met. X.12-48.
137
PUTNAM, 1979, p. 292.
138
“the hyperbaton and the flatly objective view of Orpheus' initial grief indicate the way Ovid intends to interpret
the entire situation” (ANDERSON, 1972, p. 476).
139
Sobre a construção vocabular da passagem, Lee (1996, p. 112) aponta o uso dos te… te… te… e das aliterações
em palavras como solans e dulcis: “the passage is written with great art: the echoing te … te … te … is interwoven
with the alliterative pattern, developed from solans and dulcis, of solo in litore secum, and with the assonance of
venien-te … decenden-te.”
140
“seems momentarily to forget that he began by addressing his listener, young Aristaeus”
141
PUTNAM, 1979, p. 294.
37
audiência”, 142 enquanto o segundo é “um declínio não intencional na literatura quando,
esforçando-se para ser patético, ou apaixonado, ou elevado, o escritor ultrapassa a marca e cai
no trivial ou no ridículo”.143 Os dois atributos nos são marcantes pois, ao mesmo tempo em que
Virgílio objetiva o pathos, Ovídio mira, intencionalmente,144 na polaridade oposta, o bathos.
Vejamos, então, como essas qualidades são demonstradas na determinação órfica em descer às
regiões inferiores em cada uma das narrativas.
Ao passo que o tom virgiliano denota o grande empenho de Orfeu ao colocar que o vate
até mesmo atravessou a entrada dos infernos pela esposa, taenaria etiam fauces adiit (até
mesmo foi para as entradas dos infernos, v. 468-469), a entonação ovidiana, com uma dupla
negação ne non temptaret (para que tentasse também as trevas, v. 12), de acordo com Anderson
(1972, p. 477) “sugere uma nuance de deboche da parte de Ovídio. Lamentar-se para as
instâncias superiores não levará a nada, então Orfeu tentou as sombras”.145 O comentarista
inclusive se pergunta se o personagem não estava à procura de uma audiência para o seu
lamento, como um herói que se diz altruísta mas que, na verdade, almeja apenas
reconhecimento pessoal.
Ambas as descrições da descida zelam pelo detalhamento de como o músico chegou às
regiões infernais: Virgílio menciona as alta ostia Ditis (as ilustres portas de Plutão, v. 467) e o
caligantem lucum nigra formidine (bosque escurecido pelo sombrio medo, v. 468), em um verso
significativo, que denota “uma elegante mistura da aparência física e espiritual do lugar”146
(Thomas, em VIRGIL, 1988, p. 228) e cujo ritmo lento dos quatro primeiros pés espondaicos
(ēt cālīgāntēm nīgrā fōrmīdĭnĕ lūcŭm), para Putnam (1979, p. 295), “complementa a escuridão
da atmosfera”;147 Ovídio, mais direto, cita apenas a porta Taenaria (porta de Ténaro, v. 13),
mas ambos mencionam tanto os Manes, ou fantasmas, quanto os deuses do mundo inferior,
Plutão e Perséfone. Há, na sequência da passagem, entretanto, uma distinção vital entre as
narrativas: novamente Ovídio prefere as minúcias e detalha a canção de Orfeu às divindades
142
“a scene or passage that is designed to evoke the feelings of tenderness, pity, or sympathetic sorrow from the
audience”.
143
“an unintentional descent in literature when, straining to be pathetic or passionate or elevated, the writer
overshoots the mark and drops into the trivial or the ridiculous”.
144
A intencionalidade do bathos é, aqui, um fator decisivo; como poderemos constatar, a não intencionalidade
expressa na significação formal do conceito não pode ser aplicada a Ovídio, uma vez que, consoante a nossa leitura,
o poeta efetivamente tenciona ultrapassar esse ponto em que o elevado se transforma no ridículo; cf. BOYLE,
2007, p. 359.
145
“suggests a nuance of mockery on the part of Ovid. Moaning to the upper air can achieve nothing, so Orpheus
tried the Shades”.
146
“a fine blending of the physical and spiritual appearance of the place”.
147
“whose slowness of rhythm complements darkness of atmosphere”.
40
infernais em nada menos do que 23 versos (v. 16-39),148 enquanto Virgílio sequer reproduz a
canção, cuja eficácia só é constatada com as reações dos ouvintes.149 Para Boyle (2007, p. 359),
a razão pela qual o autor não expôs o discurso reside no fato de que “o protótipo mítico grego
de todos os poetas começa com uma linguagem cheia de qualificação, exegese e banalidade”,150
e um discurso órfico nesses padrões certamente não emocionaria os mortos de Virgílio.
Ovídio, por outro lado, mantendo seu tratamento “batético” do mito, aproveita a
passagem para transformar Orfeu em uma espécie de esnobe artificioso e a canção, que
comoveu os seres infernais, em um discurso excessivamente retórico, prolixo e trivial. 151
Ademais, o Orfeu virgiliano de fato “cantou” (canebat, v. 466), ao passo que o de Ovídio,
também acompanhado da lira, “proclamou de uma maneira solene e definitiva”152 (dicentem, v.
40), escolha léxica que corrobora a artificialidade do seu discurso.153
Existe, ainda, notável distinção entre os dois poetas na descrição das almas que
escutaram a música e em suas reações. Ovídio, depois de apenas mencionar em meio verso as
exsangues animae (almas desprovidas de sangue, v. 41), concentra-se em cinco personagens
infernais famosos: Tântalo, Íxion, Títio, as Danaides e Sísifo, cujos castigos divinos
teoricamente eternos puderam ser momentaneamente ignorados em uma resposta hiperbólica e
pungente à canção órfica154 (v. 40-46), que se torna ainda mais exacerbada com a imagem das
Eumênides chorando pela primeira vez.
Já Virgílio, em uma passagem que, para Thomas, “sugere o triunfo da poesia sobre o
Hades”155 (VIRGIL, 1988, p. 229), dedica especial atenção às almas comuns (v. 471-480) e
dramatiza o trecho com o relato de que a música não afetou apenas esses espíritos, mas também
a morada da morte (domus Leti, v. 481), o mais fundo Tártaro (intima Tartara, v. 482), as
Eumênides (Eumenides, v. 483) – ainda que o Proteu não as tenha descrito chorar –, o ávido
Cérbero (inhians Cerberus, v. 484) e, por fim, até mesmo a roda de Íxion, que parou com o
148
A canção de Orfeu é retoricamente habilidosa; o vate tanto se apropria da ideia de que a morte virá para todos
os seres, seja mais cedo ou mais tarde (v. 32-35), como também tenta ganhar a simpatia de Plutão apelando para
o rapto de Prosérpina, considerando que os deuses infernais também são tocados pelo Amor (ANDERSON, 1972,
p. 477-478).
149
PUTNAM, 1979, p. 296.
150
“The Greek mythic prototype of all poets begins with language filled with qualification, exegesis, and banality,
and decidedly not of the kind to make the Virgilian dead weep”.
151
BOYLE, 2007, p. 359.
152
MARTIN (1941, p. 58). Segundo esse etimologista, o verbo dicere, tem como raiz deic, que significa “apontar”,
e se especializou, no latim, língua fortemente religiosa e jurídica, no sentido de mostrar pela palavra: “la R. deic,
qui signifie montrer du doigt, s’est specialisée dans le latin, langue fortemente religeuse et juridique, au sens de
montrer par la parole.”
153
BOYLE, 2007, p. 359.
154
ANDERSON, 1972, p. 478-479.
155
“suggest the triumph of poetry over Hades”.
41
Terceira Parte
Virg. Georg. IV.485-520 e Ov. Met. X.48-85
Comovidos pela canção órfica assim como os outros seres infernais, Plutão e Prosérpina
devolvem Eurídice. No verso 486 da passagem virgiliana, Proteu cita pela primeira vez o nome
da ninfa e Putnam (1979, p. 302) relembra que “nomear é ajudar a recuperar a
individualidade”.156 Contudo, em comparação com as Metamorfoses, Virgílio é econômico e
continua apresentando, por meio do ancião, um posicionamento narrativo enviesado. 157 Ele
indica a devolução de Eurídice apenas através do particípio reddita (restituída, v. 486) e, até
certa altura, parece-nos que a única regra estabelecida por Prosérpina foi a de que a jovem
156
“to name is to help restore individuality”.
157
VIRGIL, 1988, p. 230.
44
deveria seguir atrás do marido até que alcançassem as regiões superiores: “ela seguia atrás (pois
Prosérpina dera esta ordem)” (pone sequens (namque hanc dederat Proserpina legem), v. 487).
De fato, Proteu não esclarece diretamente quais seriam as consequências caso Orfeu olhasse
para trás. Logo, as implicações da regra imposta pela deusa só são vislumbradas versos à frente
(v. 490-502), através de seus efeitos, quando o vate efetivamente volta os olhos para a esposa e
ela, subitamentemente (subito v. 499), lhe escapa.158
Ovídio, por sua vez, brinca com a mordida da cobra nos pés de Eurídice ao afirmar que
ela estava entre as almas recém-chegadas e que andava devagar, incessit passu de uulnere tardo
(caminhou com o passo vagaroso em razão da ferida, v. 48-49), 159 uma passagem que
exemplifica o comentário de Tarrant (2006, p. 62) sobre a relação compositiva entre Ovídio e
seu predecessor: “as apropriações de Ovídio da linguagem virgiliana usualmente contêm um
elemento de travessura, frequentemente transpondo um material de contextos solenes para
cenários humorísticos ou vergonhosos”. 160 Em seguida, o poeta estabelece, prontamente, a
regra e suas consequências caso Orfeu não fosse capaz de cumpri-la, ne flectat retro sua lumina,
donec Auernas exierit ualles; aut irrita dona futura (que não virasse os olhos para trás, até que
tivesse saído para os vales Avernos, ou a dádiva prometida seria inútil, v. 51-52).161
É certo que ambos os autores elaboram o fracasso de Orfeu e sua consequente atitude
de voltar os olhos para Eurídice; no entanto, adotam razões distintas para justificar a falha.
Virgílio se apoia em uma subita dementia (súbita loucura, v. 489), “uma perda de controle
causada pelo amor” 162 (Thomas, em VIRGIL, 1988, p. 230), o que nos soa coerente e
significativo, uma vez que ao longo das Geórgicas (com destaque ao Livro III), o poeta recusa
as paixões; para ele, o amor desmedido invariavelmente leva à loucura e à perdição,163 um efeito
convenientemente ilustrado com a história de Orfeu.
158
Putnam (1979, p. 301), especificamente sobre essa passagem, diz que as formas verbais empregadas por
Virgílio contêm profunda significação para o desfecho trágico da narrativa: “the sequence of verbs conveys
something of the excitement at the crisis. Pluperfects list what had been done to gain this instant of grace. Present
participles and the imperfect veniebat show it coming to be, while reddita seems to give assurance to the outcome
of events begun by referens. These verbs all give place to three perfects that finalize the bitter turn matter take”.
159
Anderson (1972, p. 479) comenta que um detalhe como esse acabaria com o decoro de uma cena épica, caso a
obra se propusse a demonstrar tal característica – essa é uma verdadeira passagem “batética”: “Ovid a little too
realistically pictures Eurydice limping towards her husband, her foot still hurting from the snake bite! The detail
would spoil an epic scene if this were meant to have the decorum of epic”.
160
“Ovid's appropriations of Virgilian language usually contain an element of mischief, often transposing material
from solemn contexts to humorous or disreputable settings.”
161
É possível que Ovídio confiasse que o leitor já estaria à espera dessa informação, acostumado com a adição de
Virgílio à lenda.
162
“A loss of control caused by amor”.
163
Gary Miles (1980, p. 275) confirma a presença dessa noção destrutiva do amor nas Geórgicas III: “Proteus'
depiction of Orpheus as a lover who is overcome by madness (dementia), suggests an analogy between Orpheus'
fateful error and the kinds of helpless self-destruction that, in Georgic 3, was ascribed to the influence of amor”.
Para mais informações sobre o amor em Virgílio, cf. SILVA, 2016.
45
164
BOYLE, 2007, p. 360.
165
“His deathless side relies on the amazing community of words and music, ordered with imaginative brilliance
to control death”.
166
“His capture by madness means that the operation of this special gift of spirit, which elevates him above all
animal and human peers and allies him with the gods, is no longer possible.”
167
“Ovid ‘corrects’ Virgil in claiming Eurydice made no complaint against Orpheus” (THOMAS, 2009, p. 305).
168
“Ovid comments ironically and playfully on the longer, somewhat plaintive speech assigned by Vergil (4.494-
98) to Eurydice. She explicitly there refers to Orpheus' furor and asserts that he has destroyed both her and himself.
Ovid goes to the other extreme and makes his Eurydice so uncomplaining and tight-lipped that she barely ekes out
vale.” (ANDERSON, 1972, p. 480).
169
Richard F. Thomas, em VIRGIL, 1988, p. 231.
46
se referir tanto à Eurídice quanto a Orfeu: “o medo é (ou/e) que ela possa ser fraca e cair para
trás, ou que talvez ele esteja se afastando dela e possa falhar em sua missão de retornar em
segurança para o mundo superior e de manter as condições impostas pelos deuses do mundo
inferior”.170 Nas Geórgicas, porém, não há a mesma reciprocidade descrita por Ovídio e apenas
o marido tenta segurar a esposa: neque illum prensantem nequiquam umbras (e aquele,
agarrando as sombras em vão, v. 500-501).
Após perder Eurídice mais uma vez, Orfeu, atordoado, pede para que Caronte o permita
atravessar o rio novamente, mas recebe uma negativa tanto em uma (Georg. IV.502-03) quanto
em outra obra (Met. X.72-73). O período de luto do amante, entretanto, é significativamente
distinto para os dois poetas e Veiga (2011, p. 73) observa que “Ovídio abranda o peso da dor,
em comparação ao relato virgiliano”. Realmente, nas Metamorfoses, Orfeu recolhe-se,
deprimido e sem alimento, na margem do Estige, por sete dias (v. 73-75), enquanto nas
Geórgicas relata-se que ele chorou a esposa sob um rochedo, junto ao rio Estrímon, por
hiperbólicos sete meses (v. 507-510)!
Após a desventura, Orfeu recolhe-se à solidão. Nas Geórgicas narra-se que sob a mesma
gruta em que o vate chorou Eurídice ininterruptamente, ele também moveu carvalhos e amansou
tigres com seu canto, mulcentem tigris et agentem quercus (acalmando tigres e movimentando
carvalhos, v. 510), uma evocação da divina capacidade órfica de influenciar a natureza com a
música. Nas Metamorfoses, por sua vez, relata-se que o herói se refugiou no monte Hemo (v.
76), onde acusava os deuses infernais de serem cruéis, esse deos Erebi crudeles questus,
(lamentou os deuses do Érebo serem cruéis, v. 76) e que, depois de três anos contínuos de
solidão, sofrendo por Eurídice e recusando as muitas mulheres que o desejavam, o vate abdicou
das relações heterossexuais, refugerat femineam Venerem (renunciara a todo desejo feminino,
v. 79-80) e foi o primeiro, na Trácia, a praticar a pederastia, amorem in teneros transferre mares
citraque iuuentam aetatis breue uer et primos carpere flores (a transferir o amor para os jovens
do sexo masculino antes da idade adulta, e a gozar da breve primavera da vida e das primeiras
florações, v. 83-85).
Virgílio, por outro lado, ignora a lenda de que Orfeu iniciou a homossexualidade entre
os trácios e relata que ele se manteve sozinho a vagar sem rumo, solus Hyperboreas glacies
Tanaimque niualem aruaque Riphaeis numquam uiduata pruinis (solitário, percorria a geleira
hiperbórea, o nevado Tanais, os lavrados campos nunca privados de geadas dos montes Rifeus,
“the fear is (either/both) that she might grow weak and fall back, or lest he might be pulling away from her and
170
might fail in his mission to return safely to the upper world and to keep the conditions laid by the gods of the
underworld”.
47
Quarta Parte
Virg. Georg. IV.520-527 e trechos de Ov. Met. XI
Para não concluirmos o trabalho sem a comparação do fechamento das duas narrativas,
utilizaremos a tradução de Paulo Farmhouse Alberto (OVÍDIO, 2007, v. 1-19, p. 265) de alguns
dos versos das Metamorfoses XI.
171
“only narrates […] that Orpheus has renounced Venus and has moved the cold north in order to sing his
miserabile carmen about his love’s sorrow to animals and trees”.
172
“depicts the Metamorphoses on a small scale”.
173
EIGLER, 2012, p. 362.
48
Como podemos perceber, tal como Virgílio, Ovídio opta pela lenda da morte de Orfeu
pelas mulheres Cícones – entretanto, o primeiro poeta narra imediatamente que o corpo
dilacerado do vate é espalhado pelos campos (v. 522) ao passo que o segundo escolhe,
inicialmente, o apedrejamento; o esquartejamento de Orfeu acontece vários versos adiante,
49
membra iacent diuersa locis (os membros jazem por todos os lados,174 v. 50). Além disso, nas
Metamorfoses, a cabeça e a lira do vate foram atiradas no rio Hebro, caput, Hebre, lyramque
excipis (a cabeça e a lira, Hebro, tu acolhes,175 v. 50-51). Embora não mencione a lira, Virgílio
relata que a cabeça (caput, v. 523) foi lançada no Hebro (v. 524-25) e adiciona que ela
murmurava repetidamente o nome de Eurídice, o que encerra a trágica narrativa.
Não obstante, o desfecho das Metamorfoses para a história excede os limites impostos
pela tradição de Virgílio. Ovídio estende a cena por detalhados 66 versos do Livro XI e a encerra
com um derradeiro encontro de Orfeu e Eurídice nas regiões inferiores, escolha que, em última
análise, nos atesta uma das mais expressivas diferenças entre os dois poetas: se para Virgílio o
amor não prevalece, para Ovídio, ele é o único desfecho possível.
174
Trad. Paulo Farmhouse Alberto.
175
Trad. Paulo Farmhouse Alberto.
50
IV
CONCLUSÃO
Aqui não existe uma metamorfose física, mas essa versão da história de Orfeu,
narrada ao longo dos livros 10 e 11 das Metamorfoses (10.1-11.84) é
efetivamente a transformação da Geórgicas 4 de Virgílio, uma releitura que
transforma tragédia em comédia, e o pathos Virgiliano em um bathos
Ovidiano.177
176
Como afirma Thomas (2009, p. 305), sobre o tratamento estilístico de Ovídio para o mito Órfico: “Ovid’s
stylistic register is utterly differente from that of Virgil’s elevated epyllion, simpler and ‘profaning’ [...] at the
same time there is mischief at work, with humor deflecting the pathos [...]”.
177
“There is no physical metamorphosis here, but this version of the story of Orpheus, narrated across books 10
and 11 of the Metamorphoses (10.1–11.84), is effectively a transformation of Virgil’s Georgics 4, a re-reading that
turns tragedy into comedy, and Virgilian pathos into Ovidian bathos.”
51
Virgílio, através de Proteu, reconta com profunda simpatia o amor de Orfeu, seu
esforço para resgatar Eurídice da morte e a paixão que o levou a olhar para trás,
para ela, antes de alcançarem as regiões superiores. Ovídio, ao contrário, evita
qualquer simpatia convincente e aproveita quase todas as oportunidades de
burlar o pathos.178
Com efeito, a negação de um amor exagerado é uma característica marcante do último livro das
Geórgicas.179
Levando em consideração a teoria metalinguística de Conte para a interpretação da
narrativa órfica no poema em questão (p. 24-25), entendemos que a opção de Virgílio pelo mito
de Orfeu como a história encaixada do epílion se justificaria com o propósito de ilustrar a
oposição de duas formas de poesia, uma passiva e uma ativa, respectivamente figuradas pela
poética de Orfeu e pelo comportamento exemplar do mos maiorum de Aristeu. Como resultado,
o inútil clamor final e contínuo do vate por Eurídice representaria a rejeição de uma poética
caracteristicamente elegíaca, fundamentada no canto de um amor irracional e desregrado.180
Vale-nos lembrar, contudo, que Ovídio se estabeleceu como poeta exatamente por meio de
versos elegíacos.
Considerando todos esses aspectos e ponderando que Ovídio naturalmente estimava
desafiar e superar a obra virgiliana, nos questionamos se sua postura “batética” no tratamento
do mito órfico seria somente uma resposta antagônica ao patético de Virgílio, ou se seria, ao
mesmo tempo, uma resposta à recusa metalinguística da elegia pelo seu predecessor. Afinal,
Ovídio elabora um final inesperadamente feliz – e, por que não dizer, romântico? – para a
178
“Vergil, through Proteus, recounts with profound sympathy the love of Orpheus, his effort to regain Eurydice
from death, and the passion which led him to look back at her before reaching the upper air. Ovid, on the contrary,
avoids any convincing sympathy and exploits almost every opportunity to circumvent pathos.”
179
SILVA, 2016, p. 85.
180
CONTE, 1986, p. 136-138.
52
narrativa, com o reencontro dos cônjuges nas regiões inferiores, opondo-se vigorosamente ao
desfecho virgiliano de um lamento infrutífero de um Orfeu desolado, e mostrando, talvez, que
a poética elegia nem sempre é em vão.
Em resumo, Virgílio se apropria do mito órfico de forma singular e adiciona a ele
elementos que se consolidaram a ponto de chegarem aos dias de hoje como componentes
inexoráveis da narrativa órfica. Ovídio respeita a tradição e pressupõe que o leitor tenha
conhecimento da história narrada com maestria pelo poeta que o precedeu, mas não perde a
oportunidade de reinventá-la e de transformá-la. Desse modo, estamos certos de que ambos os
autores nos trazem sublimes versões para apreciação do mito de Orfeu.
53
V
TRADUÇÃO
“As iras de algum poder divino o atingem; você expia grandes faltas: o infeliz Orfeu,
sem o merecer, está violentamente furioso pela esposa raptada e, a menos que os fados se
oponham, [455] instiga-lhe estes castigos. Pois ela, garota que haveria de morrer, enquanto
fugia de você, descendo o rio, não viu, diante dos pés, uma horrível cobra d’água que habita as
margens da alta relva. Logo, um coro harmonioso de Dríades181 [460] encheu os cumes dos
montes com um clamor; choraram as cidadelas de Ródope,182 e o alto Pangeu,183 e os domínios
belicosos do Reso, e também os Getas e Hebro, e Orítia da Ática.184 O próprio [Orfeu], com a
lira côncava, procurando aliviar o triste amor, a você, doce esposa, no litoral, a você, ao nascer
do dia, [465] a você, ao cair do dia, cantava ensimesmado. Até mesmo foi para as entradas dos
infernos, atravessou as ilustres portas de Plutão e caminhou no bosque obscurecido pelo
sombrio medo, e se aproximou dos Manes,185 e do rei que faz tremer, e dos corações incapazes
de cederem às súplicas humanas. [470]
“E vinham do fundo da morada do Érebo186 as sombras emocionadas pelo canto e os
leves fantasmas dos carentes de luz, tal como muitos milhares de pássaros se escondem nas
folhagens quando Vesper187 ou a chuva de inverno os conduzem dos montes,188 mães e maridos
e corpos com vida terminada [475] de nobres heróis e meninos e castas meninas e jovens
colocados nas piras diante dos olhos dos pais; em volta dos quais o negro lodo e a disforme
cana do Cócito189 e o odioso pântano de vagarosa água se apertam, e o Estige,190 nove vezes
circundado, reprime. [480]
181
Ninfas dos bosques.
182
Outro nome para a Trácia.
183
Monte entre a Trácia e a Macedônia.
184
“The Geatae are people, Hebrus is the river down which Orpheus’ head will roll (523-7), and Attic Orithyia
was the daughter of Erechtheus who married the North wind” (Thomas em VIRGIL, 1988, p. 227).
185
Aqui, as almas dos mortos.
186
Um dos nomes para os infernos.
187
A estrela da tarde.
188
“The shades are compared to the number of birds which settle in the foliage when evening or rain approaches
[…]” (Thomas em VIRGIL, 1988, p. 228).
189
Um dos rios do submundo.
190
Um dos rios das regiões infernais, no qual Caronte, o barqueiro, atravessa as almas para o outro lado.
56
E até a morada da própria Morte e o mais fundo Tártaro 191 estiveram entorpecidos, e as
Eumênides,192 com serpentes marinhas entrelaçadas nos cabelos, e Cérbero,193 ávido, conteve
as três bocas e a roda de Íxion194 parou com o vento.
“E o que agora refaz os passos se livrara de toda a desventura e, [485] com Eurídice
restituída, voltava ao mundo superior. Ela seguia atrás (pois Prosérpina dera esta ordem),
quando súbita loucura se apoderou do imprudente amante, [loucura] que, todavia, deveria ser
perdoada, se os Manes soubessem perdoar: parou, já sob a própria luz do sol e, esquecido [da
ordem] [490] e vencido no espírito, ah! voltou os olhos para sua Eurídice. Aí, todo o esforço se
perdeu, pois rompidos os pactos do cruel tirano, três vezes um estrondo foi ouvido nos pântanos
do Averno.195 Aquela diz: ‘que enorme delírio destruiu a mim, infeliz, e a você, Orfeu? Eis que,
de novo, [495] os implacáveis destinos me chamam de volta e o sono domina meus olhos
oscilantes. E agora, adeus! Sou levada, rodeada pela vasta noite, estendendo as fracas mãos a
você, não mais sua.’ Disse e, subitamente, como tênue fumaça misturada aos ares, desapareceu
dos olhos na direção oposta, [500] e aquele, agarrando as sombras em vão e desejando dizer
muitas coisas, não mais a viu: ademais, nem o barqueiro do Orco196 lhe permitiu atravessar a
barreira do pântano. O que faria? Para onde iria, tendo a esposa duas vezes raptada? Com que
pranto moveria os Manes, que outros numes [moveria] com sua voz? [505] Aquela, gelada,
certamente já navegava na canoa do Estige.
Contam aquele ter chorado sucessivamente por sete meses sob o elevado rochedo junto
da água do isolado Estrímon197 e ter narrado esta [história] sob a gruta gelada, acalmando tigres
e movimentando carvalhos com a canção. [510]
191
Localização mais profunda e horrível dos infernos.
192
Nome dado às três Fúrias, ou Erínias, Alecto, Megera e Tisífone, deusas da vingança e da justiça, puniam os
homens transgressores das ordens da natureza; cf. THEOI, 2016a.
193
Cão infernal de três cabeças.
194
Mortal que durante um banquete em que fora convidado por Júpiter, tentou conquistar Juno; como punição pela
audácia, foi preso em uma roda que está fadada a girar eternamente nas regiões infernais; cf. GREEK MYTH
INDEX, 2016b.
195
Vale onde se localiza um lago da Campânia, local em que os poetas consideram estar os infernos.
196
Outro nome para designar as regiões infernais.
197
Rio da Trácia.
58
Tal qual a aflita Filomela198 que sob a sombra do choupo lamenta os filhotes perdidos, os quais
o rude lavrador vigilante arrancou, implumes, do ninho; e ela chora a noite, pousada em um
galho, e recomeça um canto digno de compaixão, e com abatidas lamentações enche ares
distantes. [515]
Nenhum amor, nenhuma união mudaram o espírito. Solitário, percorria a geleira
hiperbórea,199 o nevado Tanais,200 os lavrados campos nunca privados de geadas dos montes
Rifeus,201 lastimando a raptada Eurídice e o malogrado presente de Plutão. As desdenhadas
mulheres Cícones, [520] durante os sacrifícios ao deus e as orgias do noturno Baco, espalharam
o jovem despedaçado pelos campos extensos. Até mesmo quando o Hebro de Eagro,202 levando
a cabeça arrancada do marmóreo pescoço, revolvia-a no meio do turbilhão de água, ‘Eurídice’,
a própria voz e a gelada língua [525] clamavam com o sopro vital escapando; ‘oh! Infeliz
Eurídice... Eurídice!’, as margens ecoavam por todo o rio.”
198
O pássaro rouxinol.
199
Setentrional.
200
Atualmente chamado Don, é o rio que separa a Europa da Ásia.
201
Montes na Cítia.
202
Um rio da Trácia.
60
Daí, pela imensidão dos céus, envolvido em um manto dourado, Himeneu203 se retirou,
e aos litorais dos Cícones, chamado pela voz de Orfeu, dirigiu-se em vão. Ele compareceu,
certamente, mas nem as palavras festivas, nem os olhos contentes, nem o feliz voto levou; [5]
também a tocha que segurava esteve sempre sibilante com o fumo que provoca lágrimas, mas
não acendeu fogo, apesar das sacudidelas.
O desfecho é mais triste do que o presságio. 204 De fato, enquanto a recém-casada
vagueia pelas relvas, acompanhada por um grupo de Náiades,205 morre com o dente de uma
serpente cravado no calcanhar. [10] Depois que o poeta de Ródope muito lamentou no mundo
superior atreveu-se a descer, para que tentasse também as trevas, até o Estige, pela porta de
Ténaro 206 e, através de povos insubstanciais e fantasmas que foram sepultados, alcançou
Perséfone e o Senhor das Sombras,207 [15] governante dos horríveis domínios; e, tocando as
cordas em versos, assim diz:
“Ó, divindades de um mundo situado sob a terra para o qual nós, todos os que somos
criados mortais, recairemos, se for permitido e vocês consentirem, abandonando os rodeios de
uma fala falsa, narrarei a verdade; não desci até aqui para ver o Tártaro sombrio, [20] nem para
domar as três cabeças208 do monstro meduseu,209 eriçadas como cobras; a causa da viagem é a
minha esposa, na qual uma víbora, ao ser pisada, inoculou o veneno e da qual arrancou os anos
da juventude. Desejei ser capaz de suportar, e não negarei ter tentado: [25] o Amor venceu! Ele
é um deus bem conhecido na região superior, e me pergunto se o é neste lugar. Mas, em todo
caso, penso que ele esteja aqui, [pois] se a fama do antigo rapto não é uma mentira, também o
Amor os uniu. Por estes lugares cheios de terror, por este vazio gigantesco e pelos silêncios do
profundo reino, [30] eu imploro, desfaçam o destino precipitado de Eurídice!
203
Deus do casamento, ou mais propriamente, deus do hino nupcial. Por sua relação com a música, diz-se ser filho
de Apolo e alguma musa.
204
O presságio é aquele trazido pela tocha que, mesmo agitada, não se acendia.
205
Ninfas das águas. Vivem em rios, lagos e fontes.
206
Local da entrada dos infernos.
207
O deus Plutão.
208
Cérbero, o cão de três cabeças.
209
Sobre a relação de Cérbero com a medusa: “Medusaei: the dog had power similar to Medusa’s: a glance at him
turned one into stone” (ANDERSON, 1972, p. 477).
62
Todas as coisas lhes são reservadas, e mesmo com um pouco de demora, mais cedo ou mais
tarde, precipitamo-nos à única morada. Todos nos dirigimos a este lugar, esta é a habitação
última, e vocês mantêm os mais extensos reinos do gênero humano. [35] Eurídice também,
idosa, quando tiver levado ao fim os justos anos, será do direito de vocês: pedimos o usufruto
[dessa vida]210 como um presente. Porque, se os destinos negam o favor à minha mulher, é certo
não me deixarem regressar: deleitem-se com a morte de ambos!”.
Dizendo tais coisas e tocando as cordas junto das palavras, [40] as almas desprovidas
de sangue choravam; nem Tântalo211 buscou alcançar a água fugitiva, e a roda de Íxion ficou
imóvel, nem abutres bicaram o fígado,212 e estiveram livres dos jarros as Bélides,213 e você
sentou, ó Sísifo,214 em sua rocha. Então, diz-se que, pela primeira vez, as faces das Eumênides,
vencidas pela canção, [45] estiveram molhadas pelas lágrimas, e nem a esposa real e nem o que
governa os infernos ousam dizer não ao suplicante, e chamam Eurídice. Ela estava entre as
sombras recém-chegadas e caminhou com o passo vagaroso em razão da ferida. E logo o herói
de Ródope recebeu esta ordem: [50] que não virasse os olhos para trás, até que tivesse saído
para os vales Avernos, ou a dádiva prometida seria inútil.
Um caminho íngreme, árduo, escondido e coberto com um nevoeiro sombrio é
percorrido por entre obscuros silêncios. Não estavam longe da fronteira da região mais elevada:
[55] nesta altura, receoso de que ela o deixasse e ávido por vê-la, o amante virou os olhos: no
mesmo instante, ela retornou, e estendendo os braços e lutando por ser segurado e por segurá-
la, o infeliz nada agarrou, a não ser os ares que recuavam.
210
Optamos por essa tradução adaptada do trecho visando o entendimento da leitura feita por Anderson (1972, p.
478): “usum: Ovid refers to a commonplace metaphor for life as a loan to be used, not a possession [...] so Orpheus
pleads with the ‘owners’ that they lend back to Eurydice her unfinished years”.
211
Mortal que ofereceu como jantar para os deuses o próprio filho, com o intuito de testar-lhes a divindade; sedento
e faminto, ele foi condenado à uma eternidade de tentar beber as águas de um lago e recolher as frutas de uma
árvore que fogem de suas mãos; cf. GREEK MYTH INDEX, 2016d.
212
A passagem refere-se a Títio, um gigante que atormentou a deusa Leto. Foi morto por um filho da deusa e
condenado a ser preso nos infernos, tendo o fígado diariamente reconstituído e, depois, destruído por abutres; cf.
ANDERSON, 1972, p. 478 e THEOI, 2016b.
213
As Bélides, ou Danaides, eram as filhas de Danaus. Elas se casaram com os cinquenta filhos de Egito – mas
cumprindo uma promessa que fizeram ao próprio pai, decapitaram os maridos na noite de núpcias. Foram punidas
pelo crime sendo obrigadas a, eternamente, tentar encher de água jarros furados; cf. GREEK MYTH INDEX,
2016a.
214
Rei de Corinto, Sísifo foi um homem fraudulento, avarento e ambicioso. Por consequência de seu caráter vicioso,
após a morte foi obrigado a empurrar, pela eternidade, uma enorme pedra de mármore até o topo de um monte,
somente para vê-la rolar para baixo novamente; cf. GREEK MYTH INDEX, 2016c.
64
E agora, morrendo pela segunda vez, não se queixou de algo sobre seu marido [60] (o
que, então, exceto se se queixasse de ser amada?) e, pela última vez diz “adeus”, o que ele já
mal escutou, e é devolvida, novamente, ao mesmo lugar. Orfeu estava aturdido com a dupla
morte da esposa, tal como aquele que, medroso, viu as três cabeças do cão que traz correntes
na do meio,215 [65] a quem o pavor deixou não mais do que a natureza anterior, com a pedra se
alastrando pelo corpo; tal como aquele Oleno que atraiu o crime para si, e quis ser considerado
culpado, e você, infeliz Lethea,216 convicta de sua imagem; os que, outrora, eram os corações
mais unidos, [70] mas [que] agora são pedras, as quais o Ida217 mantém úmidas.
E o barqueiro impediu o que inutilmente suplicava, desejando, novamente, atravessar [o
Estige]; por fim, durante sete dias, ele, esquálido, esteve sentado na margem sem ingerir comida;
o tormento, a dor do espírito e as lágrimas foram seus alimentos. [75] Lamentou os deuses do
Érebo serem cruéis, e se recolheu à alta Ródope e ao Hemo218 agitado pelos ventos do norte.
O terceiro Titã219 encerrara o ano limitado pelos marítimos Peixes, e Orfeu renunciara
a todo desejo feminino, ou pelo mal que sucedera a ele, ou porque proferira um juramento; [80]
contudo, a paixão trazia várias [mulheres] para se unirem ao poeta: muitas, repelidas, sofreram.
De fato, ele foi o primeiro entre os povos da Trácia a transferir o amor para os jovens do sexo
masculino antes da idade adulta, e a gozar da breve primavera da vida e das primeiras florações.
[85]
215
Anderson (1972, p. 480) explica a cena: “Ovid refers to an otherwise unknown man who saw Hercules bringing
Cerberus to Eurystheus […] and turned to stone. [...] Hercules has put a chain around one neck [...] and is probably
dragging the reluctant beast along. In other versions, Hercules carries him. The thematic link between Orpheus
and this man depends upon the fact that both had a fearful experience of death and been metamorphosed. Orpheus
is ‘petrified’ only for a short time”.
216
É Anderson (1972, p. 481) que novamente elucida a passagem um pouco obscura: “Lethaea, from the region of
Mt. Ida (Crete or Troy) was so proud of her beauty (confisa figurae 69) that she provoked the anger of some deity
like Venus with an invidious comparison. As a result, the goddess petrified the bauty. Lethaea’s devoted husband
Olenos wanted to save his guilty wife by assuming her punishment. The merciless goddess only allowed him to
share Lethaea’s fate as another stone. It is clear that Orpheus would long to share death with Eurydice […]”.
217
Monte da Frígia, célebre por um número de acontecimentos, como o julgamento de Páris ou o rapto de
Ganimedes.
218
Monte da Trácia.
219
O sol. Ao relacionar-se com os peixes, último signo do zodíaco e a marca do final do ano, Ovídio estava
pensando no antigo calendário romano e quis marcar o início da primavera; cf. ANDERSON,1972, p. 481.
66
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