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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Letras
Yasmin Schiess Miranda

DE ORPHEO:
UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE AS NARRATIVAS DO MITO DE
ORFEU NAS GEÓRGICAS IV DE VIRGÍLIO E NAS METAMORFOSES X
DE OVÍDIO.

Belo Horizonte
2016
Yasmin Schiess Miranda

DE ORPHEO:
UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE AS NARRATIVAS DO MITO DE
ORFEU NAS GEÓRGICAS IV DE VIRGÍLIO E NAS METAMORFOSES DE
OVÍDIO.

Trabalho elaborado como requisito parcial


para obtenção do título de Bacharel em
Língua Latina com ênfase em Estudos
Literários na Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais.

Orientadora: Dra. Heloísa Maria Moraes


Moreira Penna

Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2016
Para a Darla.
Tu es ubi felicitas mihi est.
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Jeanne e Tito, geradores, provedores, educadores, formadores e, acima de tudo,
melhores amigos, aos quais dedicar palavras nunca será o suficiente;

À minha avó, Ilva, minha segunda mãe, pelo incessante cuidado afetuoso (e, por que não, pelas
incontáveis preocupações);

À professora Heloísa, sem a qual o Latim não teria me encantado desde a primeira aula, não só
pela orientação aplicada, contínua e paciente nesta monografia, mas também pelo auxílio
sempre amigo em momentos de incertezas ou dificuldades ao longo do curso;

Ao professor Antônio, modelo de professor, pelas aulas absolutamente enriquecedoras, sempre


acompanhadas de um compartilhamento diligente de bibliografia e histórias;

À professora Sandra, pela sugestão do livro que embasou nosso primeiro capítulo e pela
inabalável boa vontade para com a minha assídua curiosidade pouco pragmática durante as
aulas;

Ao professor Matheus, exemplo de pesquisador, pelas aulas intelectualmente desafiadoras e de


um alicerce teórico extraordinário;

À professora Mônica, pela prudência em sempre revisitar conteúdos intrincados em suas


disciplinas, tornando o caminho de aprendizado do Latim mais fácil de ser trilhado;

À Izabela Lago, pelas tardes de trabalhos, pelos empréstimos de livros, pelos baralhos, canetas,
chás, bichinhos de pelúcia, receitas e confraternizações;

Ao Rafael Tavares, revisor oficial dos trechos em grego, interlocutor e indisputável


companheiro de programas de rádio;

À Sílvia Duarte, por nunca passar por mim sem tirar uns minutinhos para compartilhar histórias
e risadas (salvo, é claro, nos encontros na biblioteca);

Ao Pedro Brito, cujas saudações pelos corredores da faculdade nunca aconteceram sem fortes
abraços;

Aos meus alunos do CENEX, pelas constantes lições recíprocas de humanidade;

Aos meus colegas de sala e aos funcionários da faculdade de Letras, que de uma forma ou de
outra, colaboraram com a minha formação,

Ofereço o meu sincero e humilde reconhecimento.


RESUMO
Propomos, com este trabalho, a análise comparativa das narrativas literárias do mito de Orfeu
encontradas nas Geórgicas IV.453-527 de Públio Virgílio Maro e nas Metamorfoses X.1-85 de
Públio Ovídio Nasão. Objetivamos, dessa maneira, apontar as mais marcantes diferenças
estruturais, estilísticas e semânticas entre os dois relatos da história. Para tanto, buscamos
definir sinteticamente o significado de mito, revisitamos a figura de Orfeu em alguns textos da
literatura greco-latina, apresentamos as obras e a biografia básica de ambos os poetas – com
ênfase nas composições selecionadas –, e abordamos resumidamente a influência da tradição
na literatura latina. Partimos, então, ao exame dos versos e, embasados pelo pressuposto de que
Ovídio emulou seu predecessor, concluímos que ele, mesmo sem abandonar a memória literária,
recriou a narrativa órfica de maneira original e particular ao divergir de Virgílio não só em
pontos de elaboração do enredo e no estilo de linguagem, mas, sobretudo no tom e no tratamento
dado à sua versão do mito. Finalmente, apresentamos, também, a tradução em prosa integral
dos versos apreciados, acompanhada de notas auxiliares à leitura.
Palavras-chave: Orfeu, Ovídio, Virgílio, Geórgicas, Metamorfoses.

ABSTRACT
We propose, with this work, the comparative analysis of the literary narratives of Orpheu’s
myths found in the Georgics IV.453-527 of Publius Virgil Maro and in the Metamorphoses
X.1-85 of Publius Ovid Naso. We aim, in this way, to point out the most striking differences in
structure, style and semantics between the two accounts of the story. Therefore, we seek to
define synthetically the meaning of myth, revisit the Orpheu’s figure in some texts of Greek
and Latin literature, present the works and the basic biography of both poets – emphasizing the
selected compositions –, and briefly discuss the influence of tradition in Latin literature. We
start, thus, the examination of the verses and, based on the assumption that Ovid emulated his
predecessor, we conclude that he, even without abandoning literary memory, recreated the
Orphic narrative in an unique and particular manner, deviating from Virgil not only in the
elaboration of the plot and in the language style, but above all in the tone and the treatment
given to his version of the myth. Finally, we also present the unabridged translation in prose of
the appreciated verses, accompanied by supporting notes.
Key words: Orpheus, Ovid, Virgil, Georgics, Metamorphoses.
SUMÁRIO

ABREVIATURAS DOS AUTORES E OBRAS ...................................................................... 6


CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................................. 7
CAPÍTULO I: O MITO DE ORFEU ........................................................................................ 8
I.1. Sobre Mito e Mitologia Clássica ............................................................................. 8
I.2. Sobre Orfeu ........................................................................................................... 11
I.2.1. Origens e humanidade ............................................................................ 12
I.2.2. Etimologia e genealogia ......................................................................... 13
I.2.3. Principais feitos notáveis ........................................................................ 14
I.2.4. Catábase e relatos da morte .................................................................... 16
CAPÍTULO II: VIRGÍLIO E OVÍDIO ................................................................................... 19
II.1. Virgílio: vida e obra ............................................................................................. 19
II.2. Geórgicas ............................................................................................................. 21
II.3. Ovídio: vida e obra .............................................................................................. 25
II.4. Metamorfoses ....................................................................................................... 27
CAPÍTULO III: ESTUDO COMPARATIVO ........................................................................ 31
III.1. Tradição e Emulação .......................................................................................... 31
III.2 Análise dos versos 453-527 das Geórgicas IV e 1-85 das Metamorfoses X ...... 33
Primeira Parte: Virg. Georg. IV.453-466 e Ov. Met. X.1-12 .......................... 33
Segunda Parte: Virg. Georg. IV.467-484 e Ov. Met. X.12-48 ........................ 36
Terceira Parte: Virg. Georg. IV.485-520 e Ov. Met. X.48-85 ........................ 41
Quarta Parte: Virg. Georg. IV.520-527 e trechos de Ov. Met. XI .................. 47
CAPÍTULO IV: CONCLUSÃO ............................................................................................. 50
CAPÍTULO V: TRADUÇÃO ................................................................................................. 53
V.1. Algumas Considerações ...................................................................................... 53
V.2. Virg. Georg. IV.453-527 – Texto em Língua Latina .......................................... 54
V.3. Virg. Georg. IV.453-527 – Tradução em Prosa .................................................. 55
V.4. Ov. Met. X.1-85 – Texto em Língua Latina ........................................................ 60
V.5. Ov. Met. X.1-85 – Tradução em Prosa ................................................................ 61
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 66
ABREVIATURAS DOS AUTORES E OBRAS

Apol. = Apolônio de Rodes (Apollonius Rhodius)


Arg. Argonáutika.

Arist. = Aristófanes (Aristophanes)


Bat. Bátrachoi.

Cic. = Cícero (M. Tullius Cicero)


Inu. De Inuentione.

Eur. = Eurípides (Euripides)


Alc. Alkéstis.
Bac. Bacchae.

Hes. = Hesíodo (Hesiodus)


Theo. Theogonia.

Hor. = Horácio (Q. Horatius Flaccus)


Ep. Pis. Epistula ad Pisones.

Hyg. = Higino (C. Iulius Hyginus)


Ast. Astronomica.

Ov. = Ovídio (P. Ouidius Naso)


Met. Metamorphoseon libri.
Trist. Tristia.

Plat. = Platão (Plato)


Sym. Symphosium.

Quint. = Quintiliano (M. Fabius Quintilianus)


Inst. Institutio oratoria.

Rhet. Her. Rhetorica ad Herennium.

Serv. = Sérvio (M. Servius Honoratus)


Georg. Comm. Servii Grammatici qui feruntur in Vergilii Bucolica et Georgica commentarii.

Virg. = Virgílio (P. Vergilius Maro)


Buc. Bucolicae ou Eclogae.
Georg. Georgicae.
7

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Com o presente trabalho, intentamos estudar comparativamente as representações


poético-literárias do mito de Orfeu encontradas nos versos 453-527 do livro IV das Geórgicas
de Virgílio e nos versos 1-85 do livro X das Metamorfoses de Ovídio. Ao falarmos de mito,
contudo, desdobra-se diante de nós a esfera de um assunto que facilmente excederia os limites
físicos desta monografia e, quando adicionamos uma das obras mais elaboradas de Virgílio e
de Ovídio à equação, a situação não se torna menos desafiadora.
Com efeito, nossa proposta não poderia ser concretizada sem reduzir tais objetos aos
parâmetros modestos de uma monografia. Em função disso, fazem-se necessários alguns
esclarecimentos preliminares, que se concentram tanto na centralização e restrição de nossos
assuntos fundamentais aos interesses da análise vindoura quanto no desenvolvimento de um
alicerce conceitual suficiente para embasá-la. Para tanto, especial empenho foi dado aos
segmentos iniciais do estudo, onde apresentamos uma breve conceituação de mito,
introduzimos a figura de Orfeu e suas mais famosas representações ao longo da época clássica
(além de mencionarmos algumas de suas ressonâncias contemporâneas), apontamos alguns
dados biográficos de Virgílio e Ovídio e traçamos um panorama de suas obras, com ênfase
naquelas selecionadas para esta pesquisa.
Dessa maneira, optamos por dividir a monografia em capítulos, que podem se fracionar,
de acordo com as necessidades estruturais, em subtítulos. No primeiro capítulo, faremos uma
breve investigação da pergunta “o que é mito?”, visando melhor compreender a classificação
costumeiramente atribuída à história de Orfeu. Em seguida, procuramos traçar um perfil para
essa narrativa, exibindo seus primeiros relatos literários e suas mais comuns variantes e
inconsistências. No segundo capítulo, por sua vez, destinaremos alguma atenção às Geórgicas
de Virgílio e às Metamorfoses de Ovídio, buscando evidenciar algumas das particularidades de
cada obra e falar um pouco sobre a vida de cada autor. Interessa, ao terceiro capítulo, o efetivo
desenvolvimento da análise comparativa, não só colocando lado a lado os principais versos,
passagens e escolhas dos poetas, mas também investigando as semelhanças ou divergências
encontradas nas duas narrativas mítico-literárias.
Finalmente, o capítulo quatro contém as considerações finais do trabalho, onde
apresentamos as nossas conclusões e, no quinto e último capítulo, há a tradução integral em
prosa dos versos examinados, acompanhada do texto original em Latim e de notas explicativas.
8

I
O MITO DE ORFEU

I. 1. Sobre Mito e Mitologia Clássica

Ao longo deste trabalho, utilizaremos frequentemente o termo mito ao nos referirmos à


narrativa de Orfeu que, tradicionalmente, é parte da chamada mitologia clássica,1 uma coleção
de mitos gregos e romanos que, em conjunto, formam um intrincado sistema de narrativas
interconectadas. Mas o que seriam, então, as unidades constitutivas de tal sistema?
A palavra mito vem do grego μύθος (mýthos), vocábulo que admite inúmeras acepções,
dentre as quais: palavra, discurso, conversação, fato, matéria, coisa pensada, rumor, mensagem,
história, narrativa, conto, ficção, lenda, fábula, e, é claro, mito.2 A partir desses significados,
atualmente costuma concordar-se 3 que, genericamente, mito é uma história que pode ser
contada através de qualquer meio de comunicação, o que inclui representações verbais ou não-
verbais em qualquer tipo de mídia.4
Cotidianamente, tratamos mito como uma narrativa, mas certamente empregamos o
vocábulo de modo restrito, pois, na fala do dia a dia, mito não é só uma narrativa trivial, mas
uma narrativa de cunho fantástico ou mesmo uma história irreal, fictícia. 5 Haja vista, daí,
expressões correntes na língua como “isso é apenas um mito”, quando nos referimos, por
exemplo, a uma informação que, apesar de popularmente considerada verdadeira, não é um
conhecimento factual e carece de validade científica.6 Também é igualmente usual o emprego

1
Várias são as mitologias, pois incontáveis são os mitos e suas origens. Nas definições da presente seção,
contemplamos apenas a mitologia clássica, visto que trabalharemos apenas com um mito de versão greco-latina.
2
Cf. LIDDELL; SCOTT, 1996, p. 1151.
3
Estudiosos mais radicais pressupõem que as únicas narrativas passíveis de serem chamadas de mito são aquelas
de sociedades arcaicas e tradicionalmente orais, onde não há registros escritos, com o argumento de que tais
documentos contaminariam qualquer tipo de narrativa. Neste ponto, concordamos com a opinião de Mark Morford
e Robert Lenardon (2003, p. 16) sobre a abrangência oral e literária do mito: “we do not concour with those who
place such a narrow definition upon the word myth [...] first of all, a myth need not to be just a story told orally. It
can be danced, painted, and enacted, and this, in fact, is what primitive people do […] myth is no less a literary
form than it is an oral form. Furthermore, the texts of classical mythology can be linked to the oral and literary
themes of other mythologies.”
4
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 3.
5
Alguns dicionários de Língua Portuguesa, por exemplo, admitem definições relacionadas ao imaginário para mito:
“mi.to sm (gr mythos) [...] 5. Coisa inacreditável. 6. Enigma. 7. Utopia. [...]” (MICHAELIS, 1998, p. 1390); mito
s.m (1836) [...] 4. Representação de fatos e/ou personagens históricos, amplificados através do imaginário coletivo
e de longas tradições literárias orais ou escritas [...] (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1300); “mito. [do gr. mŷthos,
‘fábula’, pelo lat. mythu.] S. m. [...] 3. Representação de fatos ou personagens reais, exagerada pela imaginação
popular, pela tradição, etc. 4. Pessoa ou fato assim concebido [...] 5. Ideia falsa, sem correspondente na realidade
[...] 8. Coisa inacreditável, fantasiosa, irreal; utopia [...]” (FERREIRA, 2009, p. 1341).
6
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 4.
9

indistinto dos vocábulos lenda e mito – ainda que lenda tenha uma acepção própria.7
Tal equiparação popular de mito com ficção ou irrealidade foi uma constante teórica na
Antiguidade Clássica Romana, e, de acordo com Fritz Graf (2002, p. 108), “na República tardia
e no princípio da Roma Augustana, mitos (fabulae)8 eram universalmente entendidos como
ficções poéticas”.9 De fato, Cícero, em seu tratado De Inuentione I.27, ao dissertar sobre textos
narrativos, explica que eles podem ser de três espécies, duas das quais se relacionam com os
assuntos públicos e uma terceira que se afasta dessa premissa e é recitada ou escrita apenas para
o divertimento de um público. Essa última ainda se subdivide em outros dois tipos: um que lida
com a exposição de eventos e outro que lida com a exposição de pessoas. Para o primeiro,
existem mais três formas, uma das quais é a fabula:

Ea quae in negotiorum expositione posita est tres habet partes: fabulam,


historiam, argumentum. Fabula est in qua nec uerae nec ueri similes res
continentur [...] Historia est gesta res, ab aetatis nostrae memoria remota [...]
Argumentum est ficta res, quae tamen fieri potuit. (Cic. Inu. I.27)

Aquela em que é estabelecida a exposição dos eventos tem três formas: fabula,
historia, argumentum. Fabula é aquela [narração] na qual [não] estão contidas
nem verdades nem coisas semelhantes à verdade [...] historia, um registro a
partir de uma memória afastada de nosso tempo [...] argumentum, uma
narrativa fictícia, que, todavia, poderia ter acontecido (trad. nossa).

Quintiliano, em sua Institutio Oratoria, e o desconhecido autor de Rhetorica ad


Herennium corroboram a visão ciceroniana a partir de definições estritamente semelhantes.10
Além deles, há Lucrécio, que, segundo afirmação de Boyle (2007, p. 356-7), “condenou as
ficções do mito, mas usou tais ficções em seu argumento poético (ver, por exemplo, De Rerum
Natura 1.82-101)”,11 e Ovídio, que, interessado poeticamente no mundo mitológico, referiu-se

7
Junito Brandão (1986, p. 35) define: “Lenda é uma narrativa de cunho, as mais das vezes, edificante, composta
para ser lida (provém do latim legenda, o que deve ser lido) ou narrada em público e que tem por alicerce o
histórico, embora deformado”.
8
Decerto o vocábulo latino fabula, cujas origens etimológicas remontam ao verbo for (falar, dizer) tem, tal como
o grego mýthos, um significativo número de acepções (ainda que aqui o consideremos estritamente como mito):
fala, conversação, coisa dita, conto, história, fábula, conto narrado para entreter e, por fim, ficção e fofoca,
definições com as quais consideramos ser possível assegurar a tendência dos autores romanos a considerar fabula
uma narração fictícia, como as fábulas de Fedro ou as peças de teatro latinas, que eram chamadas fabula togata e
fabula paliata, sendo as primeiras de argumento romano e as últimas, de mais sucesso, de argumento grego. Para
mais detalhes, cf. GLARE, 1968, p. 665.
9
“... in late Republican and early Augustan Rome, myths (fabulae) were universally understood as poetic fictions”.
Todas as citações em língua inglesa são de nossa tradução.
10
“... fabulam, quae uersatur in tragoediis atque carminibus non a ueritate modo sed etiam a forma ueritatis
remota.” (Quint. Inst. 2.4.2), “... mito, que se trata nas tragédias e poemas, e que está longe não apenas da verdade,
mas até da verossimilhança.” (trad. Rafael Falcón); “fabula est, quae neque ueras neque ueri similes continet res,
ut eae sunt, quae tragoedis traditae sunt.” (Rhet. Her. I.13): “A fábula contém ações que não são nem verdadeiras,
nem verossímeis, como as relatadas na tragédia.” (trad. Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra).
11
“... condemned the fictions of myth but used those fictions in his poetic argument (see, for example, De Rerum
10

a mito como elemento ficcional em uma série de ocasiões.12


Contudo, faz-se necessário que ampliemos a nossa compreensão do conceito em relação
aos latinos e que tenhamos cautela ao afirmar que mito é simplesmente o oposto da realidade,
visto que ele “como arte, é verdade em um plano bastante diferente daquele do prosaico e
transitório conhecimento factual”13 (MORFORD; LENARDON, 2003, p. 4). Isto é, um mito
tem por característica intrínseca a demonstração de valores reais, mas imutáveis: enquanto os
fatos do mundo cotidiano são, em grande parte, passíveis de mudança, em função do progresso,
a esfera mitológica é absoluta.14
Fazer parte de um plano absoluto, entretanto, não anula o fato de que o fenômeno mítico
possa ter as mais diversas possibilidades de interpretação; ao contrário, as amplia. Ora, se os
próprios clássicos tentavam definir o que é mito, é natural que, depois de mais de dois séculos
de deliberações a respeito, nosso campo nocional sobre o assunto tenha se expandido
consideravelmente e, por conseguinte, dado origem a uma multiplicidade de teorias 15 que
buscam, à sua maneira, conceituar seu objeto e, a partir disso, interpretá-lo; não obstante, a
procura por uma singularidade teórica que contemple a totalidade mitológica nos parece ofício
impraticável, pois enquanto um viés teorético pode ser adequado para definir e interpretar
determinado mito, pode não obter o mesmo resultado com outro.16 Afinal, a prática de contar
histórias é uma característica permanente da humanidade; logo, tentar contemplar a
universalidade mitológica global segundo uma perspectiva única não traria, a nosso ver,
nenhum proveito metodológico.
A partir disso, concordamos que a história de Orfeu pode ser estudada sob diversos
ângulos e, consequentemente, gerar um prisma de significados segundo o enfoque escolhido
para sua análise. Não queremos aqui banalizar a complexa pergunta “o que é mito?”; todavia,
visando nosso propósito de analisar os aspectos literários presentes na adaptação narrativa de
Orfeu em dois autores latinos, reforçamos a ideia inicial de que o objeto de nosso estudo é, a

Natura 1.82–101)”
12
“... he refers to it [myth] as mendacium (Amores 3.6.16, Fasti 6.253) and licentia (Am. 3.12.41); he uses fabula
(with its connotations of unreliability) of ‘mythic’ narrative (Ars Amatoria 3.326, Fas. 3.738) and acknowledges
the unbelievability of his own Metamorphoses (Tristia 2.63–4)” (BOYLE, 2007, p. 357); também cf. AVELLAR,
2015, p. 142.
13
“... myth, like art, is truth on a quite different plane from that of prosaic and transitory factual knowledge”.
14
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 4-5. Atribuímos a perenidade dos mitos, em especial, a sua existência em
uma instância absoluta. Uma narrativa só continua a impactar seus receptores, milhares de anos depois de ser
contada pela primeira vez, se evidenciar algum aspecto humano definitivo.
15
Para citar apenas algumas delas, há a teoria etiológica, a metafórica, a ritualista e religiosa, a estruturalista e as
psicanalíticas. Para uma enumeração analítica e mais geral dessas e de outras, cf. COHEN, 1969, p. 337-353 e
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 5-22.
16
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 24.
11

rigor, como todos os outros mitos clássicos, uma história, e para restringir essa classificação e
buscar uma elucidação menos generalista e mais consoante com nosso intento, teremos em
mente a definição proposta por Morford e Lenardon (2003, p. 25):

Um mito clássico é uma história que, através de sua forma clássica, obteve
uma espécie de imortalidade por causa de sua beleza arquetípica inerente, por
sua profundidade e pelo poder que inspirou gratificante renovação e
transformação por sucessivas gerações.17

Cremos que o mito órfico 18 encaixa-se perfeitamente nessa elucidação. Orfeu é,


indiscutivelmente, o arquétipo máximo de um músico e um poeta; um herói genuinamente
diferenciado, que vivenciou uma das mais tristes histórias de amor da Antiguidade Clássica.
Seu talento e sua lira tornaram-se símbolos utilizados e/ou citados por poetas latinos em
variados contextos.19 Não é sem motivo que a narrativa de sua aventura nas regiões abissais
tenha chegado até nós e que, ao inspirar as mais diversas representações artísticas, 20
perpetuamente se renove e se transforme.

I. 2. Sobre Orfeu

Na introdução do capítulo sobre a história de Orfeu no livro Orpheus and Greek Religion:
a study of the Orphic Movement, William Guthrie (1952, p. 25) alerta-nos, de imediato, para
que não queiramos encontrar na narração do personagem uma história simples, sem variações
ou inconsistências,21 um aviso justificado pela disseminação do mito entre diferentes povos,
pela hipótese de uma possível existência humana de Orfeu em tempos remotos e, mormente,

17
“A classical myth is a story that, through its classical form, has attained a kind of immortality because its inherent
archetypal beauty, profundity, and power have inspired rewarding renewal and transformation by successive
generations.”
18
Observamos que a palavra órfico é usada neste trabalho com o significado adjetivo “de Orfeu” e não está, em
momento algum, salvo quando referenciado o contrário, relacionada à doutrina chamada Orfismo.
19
Como em Propércio, Elegiae I 3, 42 e III 2, 3; em Horácio, Carmina I 12, 8 e I 24, 13 e Epistula ad Pisones 392;
em Virgílio, Eclogae III 46 e Eneida VI 119-20, em Ovídio não só nas Metamorfoses X, mas em Amores III 9,
Ars Amatoria III 321-2 , Tristia IV 1, 17 e Epistula Ex Ponto II. 9, 53 e III 3, 41.
20
Poderíamos nos demorar indefinidamente ao revisitar as manifestações artísticas inspiradas pelo mito de Orfeu
desde os tempos antigos. Logo, apenas de forma ilustrativa, mencionamos a ópera L’Orfeo (1607), do italiano
Claudio Monteverdi; a pintura de Eugène Delacroix, A Primavera - Eurídice Colhendo Flores é Mordida por uma
Cobra (A Morte de Eurídice)(As Quatro Estações de Hartmann) (1853-63); a escultura em mármore do francês
Auguste Rodin, Orpheus and Eurydice (1893); a produção cinematográfica Orphée (1950) de Jean Cocteau; A
Invenção de Orfeu (1952), obra poética do modernista brasileiro Jorge de Lima; a peça musical para teatro, Orfeu
da Conceição (1956), de Vinícius de Moraes; o álbum da banda inglesa Nick Cave and the Bad Seeds, The Lyre
of Orpheus (2004) e a composição musical contemporânea da russa Sofia Gubaidulina, The Lyre of Orpheus (2006).
21
“we must not expect to find the legend of Orpheus told as a simple or singles story, without variations and
without inconsistencies.”
12

pela versatilidade de seu caráter22 – afinal, o vate não se relaciona apenas à poesia e à música.
A magia, o heroísmo, a engenhosidade artística e até mesmo a fundação de uma religião
permeiam o fértil imaginário popular a seu respeito. Nesta seção, investigaremos a figura órfica
e faremos uma breve seleção de narrativas que envolvem o personagem ao listar os mais
notórios relatos de suas façanhas nos autores gregos e romanos aos quais tivemos acesso por
meio de traduções. Visamos, com isso, conhecer melhor as representações de Orfeu que
circulavam pelo mundo greco-latino – e que, porventura, possam ter servido de influência ou
inspiração tanto para Virgílio quanto para Ovídio.

I.2.1. Origens e humanidade


Ainda que a obscuridade seja um traço inerente ao mito de Orfeu, sabemos com alguma
certeza que sua pátria é a Trácia, e não a Grécia, embora seus relatos primários sejam
helênicos.23 Para Junito Brandão (1987, p. 142), entre os antigos Trácios, não havia dúvidas de
que ele realmente existiu24 e Morford e Lenardon (2003, p. 362) confirmam que, no século V
a.C., o herói “era aceito como um homem, mestre de uma religião cuja doutrina foi transmitida
em escritos sagrados atribuídos a ele”;25 tal doutrina religiosa chama-se Orfismo26 e os escritos
são, dentre outros, os poemas ou hinos Órficos.
Porém, conforme Júlio Maria do Carmo Neto (2009, p. 20-1) elucida:

o orfismo e o mito de Orfeu, na verdade, são duas coisas muito diferentes entre
si. O mito de Orfeu [...] é remoto e mais antigo que a doutrina órfica. Explicar
por que os órficos adotaram Orfeu como seu pai-fundador, seu profeta
supremo, é tarefa de especulação.

De fato, sendo a origem do mito datada de uma antiguidade excessivamente remota,27 julgamos,
como Lee (1996, p. 3), que não há maneira de afirmar com segurança a veracidade da existência

22
GUTHRIE, 1952, p. 25.
23
Guthrie (1952, p. 26) comenta que alguns informantes deixam dúvidas quanto à exata localização da origem de
Orfeu, visto que dizem o herói ter nascido ou vivido nos arredores do Monte Olimpo, mas esclarece que tal detalhe
não é importante em seu desenvolvimento histórico: “One or two of our informants leave some doubt whether they
thought his true origin was Thracian of Macedonian, for the speak of him as having been born or as living in the
neighbourhood of Olympos; but this, though an interesting detail, is a matter of little consequence in history”.
24
“sua existência era tão real para o povo, que, em Anfissa, na Lócrida, se lhe venerava a cabeça como verdadeira
relíquia.” (BRANDÃO, 1987, p. 142)
25
“... by the fifth century B.C. he was accepted as a human religious teacher, whose doctrine was communicated
in sacred writings attributed to him”
26
Complexo movimento religioso histórico que contribuiu com três inovações para a religiosidade grega: a
cosmogonia, a antropogonia e a escatologia; cf. BRANDÃO, 1986, p. 150-156. Para mais detalhes sobre o Orfismo,
GUTHRIE, 1952 e MORFORD; LENARDON, 2003, p. 354-369.
27
GUTHRIE, 1952, p. 26.
13

humana de Orfeu,28 mas é necessário considerar que sua identidade significou mais para os
antigos do que atualmente significa para nós, visto que carregava, então, uma acepção mística.29
Há, para a figura órfica, portanto, uma natureza ambivalente: ela apresenta dois valores, na
medida em que é tanto uma figura de cunho mais lendário, sob a ótica do Orfismo, quanto uma
figura mitológica, construída ao longo dos séculos através de uma tradição literária,30 cerne de
nosso interesse neste estudo.

I.2.2. Etimologia e genealogia


A primeira menção órfica de que temos notícia localiza-se no século VI a.C., em um
fragmento de Íbico, um poeta lírico grego: onomáklyton Orphén, famoso Orfeu. 31 Não é
possível saber a qual Orfeu essas duas palavras se referem, porquanto mais da obra de Íbico
não sobreviveu e o fragmento está descontextualizado.
Não obstante, podemos tentar traçar uma etimologia para o seu nome. Para alguns, Orfeu,
do grego Orphéus, relaciona-se a órphne “obscuridade” ou orphnós “obscuro”, 32 talvez em
função do episódio de sua catábase.33 Para outros, na verdade, o seu nome advém de orphanós,
órfão,34 pela perda de Eurídice.35
Sobre sua genealogia, por outro lado, há maior concordância. Seu pai é tido como o rei
trácio Eagro, 36 ou o deus Apolo, 37 e sua mãe, na grande maioria dos relatos, 38 é a musa
Calíope39 – lado da descendência órfica que evidencia os seus atributos mais conhecidos: uma
profunda natureza artística e, acima de tudo, um talento musical imponderável.

28
Guthrie (1952, p. 1-4) comenta a possibilidade de que Orfeu tenha existido e, ao mesmo tempo em que aponta
estudiosos que consideram a humanidade do vate incontestável, também menciona que, na era clássica grega,
ninguém parecia estar muito preocupado com essa questão.
29
NETO, 2009, p. 19.
30
Idem, p. 20-21.
31
GUTHRIE, 1952, p. 1.
32
BRANDÃO, 1986, p. 141.
33
Do grego katábasis, que significa descida, caminho para baixo; cf. LIDDELL; SCOTT, 1996, p. 884.
34
Orphanós, em grego, possui um sentido menos restrito que órfão em português, podendo ser traduzido por:
“carente de...”, “desprovido de...”; cf. LIDDELL; SCOTT, 1996, p. 1257-8.
35
CHANTRAINE, 1968, p. 829.
36
GRIMAL, 1986, p. 315; MORFORD; LENARDON, 2003, p. 360; MARCH, 2001, p. 572.
37
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 360; MARCH, 2001, p. 572.
38
MORFORD; LENARDON, 2003, p. 360; MARCH, 2001, p. 572; há também aqueles que levantam a
possibilidade de a mãe do vate ser a musa Polímnia – matrona da dança e da poesia sagrada – ou até mesmo
Terpsícore – musa da poesia lírica e da dança; cf. GRIMAL, 1986, p. 315.
39
Ainda que as atribuições de cada musa sofram variações, Calíope é geralmente considerada a musa da poesia
épica e da eloquência. Hesíodo a considera como a maior das musas e a nomeia Belavoz: “ταῦτ᾽ ἄρα Μοῦσαι
ἄειδον, Ὀλύμπια δώματ᾽ ἔχουσαι, / ἐννέα θυγατέρες μεγάλου Διὸς ἐκγεγαυῖαι, / Κλειώ τ᾽ Εὐτέρπη τε Θάλειά τε
Μελπομέενη τε / Τερψιχόρη τ᾽ Ἐρατώ τε Πολύμνιά τ᾽ Οὐρανίη τε / Καλλιόπη θ᾽: ἣ δὲ προφερεστάτη ἐστὶν
ἁπασέων.” (Hes. Theo. 76-79) “Isso as Musas cantavam, que têm casas olímpias, as nove filhas do grande Zeus
geradas, Glória, Aprazível, Festa, Cantarina, Dançaraz, Saudosa, Muitacanção, Celeste e Belavoz: essa é a superior
entre todas” (trad. Christian Werner).
14

I.2.3. Principais feitos notáveis


Se algo existe de unânime nas diversas versões do mito de Orfeu é a sua aptidão musical.
Conta-se que ele tocava tanto a lira quanto a cítara, instrumento ao qual adicionou mais duas
cordas às sete originais, para homenagear as musas.40 De acordo com Higino,41 foi o próprio
deus Apolo quem o ensinou a tocar a lira e a presenteou ao herói depois de inventar a cítara.
Não há discordância de que a maestria musical de Orfeu era capaz de dotá-lo de poderes
sobrenaturais. Cantando ou tocando instrumentos, ele podia controlar o mundo natural: mudava
o curso de rios, encantava as pedras e até mesmo amansava os animais selvagens; Eurípides,
por exemplo, descreve o poeta atraindo árvores e feras bravias na tragédia As Bacantes,42 ao
passo que Virgílio o menciona acompanhado de suas “seguidoras selvas”43 nas Bucólicas e
Ovídio relembra, nos Tristia, que Orfeu chorava a esposa “ao arrastar matas e duras pedras com
o canto”.44 Ademais, tais poderes são detalhadamente ilustrados no episódio em que o herói
aventurou-se no navio Argo, 45 empreendimento narrado por Apolônio de Rodes 46 nas
Argonáuticas,47 onde Orfeu é apresentado como um personagem de realce. Ao mencioná-lo
pela primeira vez, o erudito autor grego “destaca a perícia de Orfeu em encantar as pedras e a
correnteza dos rios com seus cantos, enquanto os carvalhos selvagens se alinham em sequência
com o som de sua forminge” (RODRIGUES JUNIOR, 2010, p. 148):

πρῶτά νυν Ὀρφῆος μνησώμεθα, τόν ῥά ποτ᾽ αὐτὴ


Καλλιόπη Θρήικι φατίζεται εὐνηθεῖσα
Οἰάγρῳ σκοπιῆς Πιμπληίδος ἄγχι τεκέσθαι 25
αὐτὰρ τόνγ᾽ ἐνέπουσιν ἀτειρέας οὔρεσι πέτρας
θέλξαι ἀοιδάων ἐνοπῇ ποταμῶν τε ῥέεθρα.
φηγοὶ δ᾽ ἀγριάδες, κείνης ἔτι σήματα μολπῆς,

40
GRIMAL, 1986, p. 315.
41
“Apollo lyra accepta dicitur Orphea docuisse, et postquam ipse citharam inuenerit, illi lyram concessisse.” (Hyg.
Ast. II. 7), “conta-se que Apolo, após receber a lira, teria ensinado Orfeu, e depois que ele próprio inventou a cítara,
concedera-lhe a lira ” (trad. nossa).
42
“τάχα δ᾽ ἐν ταῖς πολυδένδρεσ-/ σιν Ὀλύμπου θαλάμαις, ἔν-/ θα ποτ᾽ Ὀρφεὺς κιθαρίζων/ σύναγεν δένδρεα
μούσαις,/ σύναγεν θῆρας ἀγρώτας.” (Eur. Bac. 560-564),“em arvoredos profusos, talvez aos remansos do Olimpo,
onde outrora Orfeu tocando cítara, com seus cantos, as árvores atraiu, atraiu as feras bravias” (trad. Maria Helena
da Rocha Pereira e Maria de Fátima M. Machado)
43
“Orpheaque in medio posuit, siluasque sequentes” (Virg. Buc. III. 46), “em meio a Orfeu com seguidoras selvas”
(trad. Odorico Mendes).
44
“Cum traheret siluas Orpheus et dura canendo saxa, bis amissa coniuge maestus erat” (Ov. Trist. IV. 1, 17), “e
ao arrastar matas e duras pedras com o canto, chorava Orfeu a esposa duas vezes perdida.” (trad. Júlia Avellar).
45
Nome do navio com o qual Jasão e seus companheiros navegaram pelo mar em busca do tosão de ouro; cf.
MARCH, 2001, p. 123.
46
Fernando Rodrigues Junior (2010, p. 148) complementa que: “Orfeu também é considerado um dos argonautas
por Píndaro Pítica IV, Heródoto (31F42-43 Jacoby), Apolodoro Biblioteca, Argonáuticas Órficas e Valério Flaco
Argonáuticas”. Importa saber: ainda que a obra Argonáuticas Órficas tenha por foco a participação de Orfeu na
viagem liderada por Jasão, é um texto de autoria anônima e de data de composição incerta – provavelmente, foi
escrito no século V d.C., o que o distancia consideravelmente do período clássico visado no presente trabalho,
motivo pelo qual não discorremos sobre ele.
47
Obra escrita no século III a.C. composta de quatro livros em versos hexâmetros.
15

ἀκτῆς Θρηικίης Ζώνης ἔπι τηλεθόωσαι


ἑξείης στιχόωσιν ἐπήτριμοι, ἃς ὅγ᾽ ἐπιπρὸ 30
θελγομένας φόρμιγγι κατήγαγε Πιερίηθεν.
Ὀρφέα μὲν δὴ τοῖον ἑῶν ἐπαρωγὸν ἀέθλων
Αἰσονίδης Χείρωνος ἐφημοσύνῃσι πιθήσας
δέξατο, Πιερίῃ Βιστωνίδι κοιρανέοντα. (Apol. Arg. 23-34)

Primeiro lembrarei o nome de Orfeu, o qual a própria


Calíope declara, deitando-se com o trácio
Eagro, próximo ao cume do Pimpléia, ter parido. 25
Contam que ele encanta as pedras duras
nas montanhas e o fluxo dos rios com o som de seus cantos.
Os carvalhos selvagens, ainda sinais desta dançante melodia,
na costa trácia de Zone abundante,
alinham-se comprimidos em sequência, os quais, 30
encantados com sua forminge, ele faz descer da Piéria.
Tal Orfeu, auxiliar de suas tarefas,
o Esonida, convencido pelas Ordens de Quirão
recebeu, chefe da Piéria bistonida. (trad. Fernando Rodrigues Junior).

Cabe aqui mencionar que, com a sedução de sua música e de sua poesia, o cantor e
argonauta de Apolônio de Rodes vai além de encantar elementos naturais: Orfeu é capaz,
também, de fascinar os homens. Através dos sons da forminge,48 ele dita o ritmo dos remos,
conforta a tripulação machucada e cansada e resolve situações de tensão, como por exemplo,
quando, ao cantar sobre o começo dos tempos e a era de dominação dos titãs,49 “põe fim à
discussão entre Idas e Idmão em um potencial momento de desintegração da tripulação na hora
da partida do porto de Pagasas” (RODRIGUES JUNIOR, 2010, p. 148-9), em uma passagem
de singular beleza poética.
Mas, como já mencionado, os grandes feitos de Orfeu não se restringem àqueles
relacionados à perícia musical. Seu caráter de educador e de poeta modelo, por exemplo, são
bem exemplificados em As Rãs, de Aristófanes, em que Orfeu é citado dentre os poetas
tradicionais, em meio a Hesíodo, Homero e Museu.50 Segundo Marina Peixoto Soares (2014,
p. 19), “Ésquilo e Eurípides concordam que um bom poeta deve ser admirado por sua habilidade
e por sua capacidade de proporcionar bons conselhos para a cidade”, o que “relaciona-se com
a concepção grega do poeta como professor”. Ao incluir Orfeu entre Hesíodo e Homero, o
dramaturgo – que viveu aproximadamente entre 447-385 a.C. – decerto nos ilustra com nitidez
a ambivalência lendário-mitológica do personagem, que se revela quando nos deparamos com

48
Também conhecido como fórminx, é um instrumento de cordas antiquíssimo, parecido com a cítara e com a lira.
(PERSEUS ENCYCLOPEDIA, 2016)
49
Apol. Arg. I.492-518.
50
“Ὀρφεὺς μὲν γὰρ τελετάς θ᾽ ἡμῖν κατέδειξε φόνωντ᾽ ἀπέχεσθαι” (Arist. Bat. 1032), “Pois Orfeu nos ensinou os
ritos e como se abster das matanças” (trad. Marina Peixoto Soares).
16

seu perfil de professor, fundador e iniciador. Essa interseção de caracteres é o ponto em que
conjecturamos haver um hibridismo entre seu eu mitológico, lendário e teológico.
Complementarmente às atribuições supracitadas, Orfeu chega a ser apontado até mesmo
como filósofo, iniciador do amor homossexual, da agricultura, do metro poético hexâmetro
datílico51 e, para os praticantes do Orfismo, introdutor dos mistérios da vida após a morte,
segredo vislumbrado após sua descida ao mundo dos mortos52 – ou, mais tecnicamente, depois
de sua catábase.

I.2.4. Catábase e relatos da morte


Hodiernamente, a catábase é, sem dúvida, o episódio mais célebre da narrativa de Orfeu.
Na versão de Virgílio, canonizada como a tradicional, Eurídice, ninfa e esposa do vate, morre
ao ser picada por uma serpente. Inconformado com a perda, o herói desce até as regiões
inferiores e convence, com uma maravilhosa canção, Plutão e Prosérpina a devolvê-la ao mundo
dos vivos. Emocionados com a música, os deuses aceitam devolver a vida à ninfa, com a
condição de que ele não olhasse para a esposa, que o seguiria, antes de alcançarem a superfície
da terra. Subitamente, movido pelo medo de perdê-la e pelo desejo de revê-la, o poeta não
resiste, vira os olhos para trás e perde seu amor para sempre.
Não obstante, nem sempre essa foi a versão corrente do relato.53 Com efeito, a primeira
menção à incursão órfica nos infernos localiza-se no século IV a.C., na tragédia Alceste, de
Eurípides.54 Na obra, Admeto diz para a esposa Alceste que:

εἰ δ᾽ Ὀρφέως μοι γλῶσσα καὶ μέλος παρῆν,


ὥστ᾽ ἢ κόρην Δήμητρος ἢ κείνης πόσιν
ὕμνοισι κηλήσαντά σ᾽ ἐξ Ἅιδου λαβεῖν,
κατῆλθον ἄν, καί μ᾽ οὔθ᾽ ὁ Πλούτωνος κύων 360
οὔθ᾽ οὑπὶ κώπῃ ψυχοπομπὸς ἂν Χάρων
ἔσχον, πρὶν ἐς φῶς σὸν καταστῆσαι βίον (Eur. Alc. 357-362).

se a voz e a melodia de Orfeu me fossem dadas para encantar com hinos a


filha de Deméter ou o seu esposo e arrebatar-te do Hades, ver-me-ias descer
lá, e nem o cão de Plutão, nem Caronte, o condutor dos mortos, curvado sobre
seu remo, me deteriam antes de te trazer viva para a luz do dia (trad. Manuel
de Oliveira Pulquério e Maria Alice Nogueira Malça).

É impossível saber, a partir dessa referência, se Orfeu obteve ou não sucesso na

51
LEE, 1996, p. 2.
52
BRANDÃO, 1987, p. 144.
53
Para informaçõs mais detalhadas sobre os primeiros relatos da história de Orfeu; cf. LEE, 1996.
54
NETO, 2009, p. 22.
17

empreitada, mas Hermesiánax, no fragmento de Leontium, 55 conta-nos como Orfeu logrou


instigar “os reis do inferno a lhe devolverem sua esposa, chamada aqui de Agríope, não de
Eurídice” (NETO, 2009, p. 22), e como foi bem-sucedido.
Platão, por outro lado, em O Banquete, ao reproduzir o discurso de Fedro sobre o amor,
contrapõe Orfeu diretamente a Aquiles, rebaixando aquele da categoria de herói. Narra, então,
o seu fracasso, assegurando que os deuses apenas o permitiram olhar para o simulacro de
Eurídice e que, por ter sido incapaz de morrer pela esposa, caiu em desgraça e sofreu o castigo
de ser assassinado por mulheres:

Ὀρφέα δὲ τὸν Οἰάγρου ἀτελῆ ἀπέπεμψαν ἐξ Ἅιδου, φάσμα δείξαντες τῆς


γυναικὸς ἐφ᾽ ἣν ἧκεν, αὐτὴν δὲ οὐ δόντες, ὅτι μαλθακίζεσθαι ἐδόκει, ἅτε ὢν
κιθαρῳδός, καὶ οὐ τολμᾶν ἕνεκα τοῦ ἔρωτος ἀποθνῄσκειν ὥσπερ Ἄλκηστις,
ἀλλὰ διαμηχανᾶσθαι ζῶν εἰσιέναι εἰς Ἅιδου. τοιγάρτοι διὰ ταῦτα δίκην αὐτῷ
ἐπέθεσαν, καὶ ἐποίησαν τὸν θάνατον αὐτοῦ ὑπὸ γυναικῶν γενέσθαι [...] (Plat.
Symp. 179d-e)

Orfeu, pelo contrário, filho de Éagro, eles o fizeram voltar do Hades sem nada
conceder-lhe; mostraram-lhe apenas o fantasma da mulher por causa de quem
ele ali fora ter, não a própria esposa, por o considerarem pusilânime: era um
simples harpista, que, não se dispondo a morrer por amor, como o fizera
Alceste, arranjara jeito de penetrar vivo no Hades. Por isso mesmo,
castigaram-no, determinando os deuses que viesse a morrer por mão de
mulheres. (trad. Carlos Alberto Nunes)

Todas essas versões, porém, excluem detalhes que foram adicionados por Virgílio, no
século I a.C., nas Geórgicas, e reforçados por Ovídio, também neste século, nas
Metamorfoses,56 tais como a razão para a morte de Eurídice, envenenada pela serpente que lhe
morde os calcanhares,57 a regra de Prosérpina que ditava a Orfeu não volver seu olhar sob a
pena de perder a esposa, a dramatização da quebra do juramento e o consequente insucesso da
missão de resgate.
Além disso, assim como Platão comenta o destino do personagem, que foi assassinado
por mulheres, ambos os poetas latinos concatenam às suas narrações o episódio da violenta
morte de Orfeu. Os relatos mais conhecidos do desfecho da vida do vate afirmam que ele foi
morto e despedaçado por mulheres da Trácia, seguidoras de Dioniso. Virgílio considera que
isso se deu por sua eterna fidelidade à Eurídice, pois, após perdê-la, Orfeu absteve-se do
relacionamento íntimo com mulheres e foi atacado por aquelas que o desejavam e eram

55
Obra elegíaca “que aparentemente se tratava de um catálogo histórias de amor” (NETO, 2009, p. 22).
56
NETO, 2009, p. 23.
57
Lee (1996, p. 13) considera que essa foi, de fato, uma inovação adicionada à história pela narrativa virgiliana:
“a final innovation of Virgil's – at least it is a detail never used by the predecessors in our canon – is the initial
death of Eurydice by a snake bite”.
18

constantemente recusadas. Ovídio admite esse mesmo relato e ainda adiciona que o herói,
evitando a companhia feminina antes de morrer, aproveitou-se, então, do amor de garotos
jovens.58 Brandão (1987, p. 143), por sua vez, denuncia Afrodite como a responsável pelo
trágico fim:

“[…] tendo servido de árbitro na querela entre Afrodite e Perséfone na disputa


por Adônis, Calíope teria decidido que o lindíssimo filho de Mirra
permaneceria uma parte do ano com uma e uma parte com outra. Magoada e
irritada com a decisão, Afrodite, não podendo vingar-se de Calíope, vingou-
se no filho. Inspirou às mulheres trácias uma paixão tão violenta e
incontrolável, que cada uma queria o inexcedível cantor só para si, o que as
levou a esquartejá-lo […]”.

Como narram Virgílio e Ovídio, após o esquartejamento, os membros e a cabeça de


Orfeu, que ainda cantava e clamava por Eurídice, foram lançados no rio Hebro. Posteriormente,
num relato expandido do mito, ele foi enterrado pelas musas na Piéria, onde, de acordo com
March (2001, p. 573), “dizia-se o rouxinol cantar mais docemente sobre seu túmulo do que em
qualquer outro lugar na Grécia”. 59 Por fim, conforme nos conta Higino, sua lira foi
transformada em uma constelação:

Cuius caput in mare de monte perlatum, fluctibus in insulam Lesbum est


reiectum; quod ab his sublatum et sepulturae est mandatum. Pro quo beneficio
ad musicam artem ingeniosissimi existimantur esse. Lyra autem a Musis, ut
ante diximus, inter astra constituta est. (Hig. Ast.. II, 7)

Cuja cabeça no mar, trazida da montanha, foi levada pelas ondas para a ilha
de Lesbos, recolhida pelos habitantes e mandada a uma sepultura. Em função
desta gentileza, foram apreciados com um talento natural para a arte da música.
Além disso, a Lira foi incluída entre as estrelas, como dissemos anteriormente,
pelas musas. (trad. nossa)

58
Higino – escritor latino que viveu aproximadamente entre 64 e 17 a.C. – corrobora essa versão ovidiana:
“nonnulli aiunt, quod Orpheus primus puerilem amorem induxerit, mulieribus uisum contumeliam fecisse; hac re
ab his interfectum.” (Hyg. Ast. II.7); “alguns dizem que Orfeu foi o primeiro a adotar o amor pueril, e pareceu ter
feito uma afronta às mulheres; por isso, foi morto por elas.” (trad. nossa).
59
“the nightingale was said to sing more sweetly over his grave than anywhere else in Greece”.
19

II
VIRGÍLIO E OVÍDIO

II.1. Virgílio: vida e obra

Públio Virgílio Maro nasceu no dia 15 de Outubro, no povoado de Andes, província de


Mântua, no ano de 70 a.C.,60 em uma família de pequenos proprietários de terra. Foi educado
inicialmente em Cremona e Milão e, posteriormente, em Roma, onde estudou retórica e se
preparou para a carreira política. No entanto, retirou-se para Nápoles e abandonou esses estudos
em favor da Filosofia e das Letras, suas grandes paixões.61 Ele mesmo o confessa, nas linhas
finais da sphragis do livro IV das Geórgicas:

Illo Vergilium me tempore dulcis alebat


Parthenope studiis florentem ignobilis oti,
carmina qui lusi pastorum audaxque iuuenta,
Tityre, te patulae cecini sub tegmine fagi. (Virg. Georg. IV. 563-6)

Naquela ocasião, a mim, Virgílio, a doce Parténope


nutria e florescente nos gostos do ignóbil ócio,
compus poemas de pastores e, audaz pela juventude,
te cantei, Títiro, sob a sombra da frondosa faia. (trad. Heloísa Penna)

Tímido e recatado, o poeta não se casou e nem participou ativamente da vida pública de
Roma.62 Conta-se também que a família de Virgílio teve os bens confiscados e posteriormente
devolvidos por Otaviano;63 deste modo, sua gratidão ao imperador estaria personificada em
Títiro, personagem de sua primeira Écloga, “a quem coube o perdão concedido por um deus e
a felicidade de poder habitar em paz seus campos com rebanhos” (TREVIZAM, 2013, p. 13).
Virgílio foi grande amigo de Horácio e de outros poetas que lhe eram contemporâneos,
além de ter feito parte do círculo literário de Mecenas,64 um patrono das artes e “ministro” de
Augusto, que encomendava poemas aos literatos e a quem Virgílio dedicou as Geórgicas:

Quid faciat laetas segetes, quo sidere terram


uertere, Maecenas [...] hinc canere incipiam (Virg. Georg. I, 1/5)

60
NETO, 2014, p. 9.
61
GRANDSDEN, 2004, p. 8.
62
Idem, ibidem.
63
TREVIZAM, 2013, p. 13-14.
64
GRANDSDEN, 2004, p. 9.
20

o que torna as searas alegres, sob qual astro convém volver a terra, Mecenas,
[...] começarei a cantar aqui. (trad. Matheus Trevizam)

Três são as obras virgilianas, todas elas escritas no metro hexâmetro datílico, 65 um
relevante padrão que nos permite observar o desenvolvimento métrico e estilístico do poeta:66

1) Bucolicae ou Eclogae, as Bucólicas, publicadas em 39 a.C.,67 são, consensualmente,


a primeira obra de Virgílio.68 Caracterizam-se por serem uma coleção de dez pequenas éclogas
de caráter pastoril, gênero sofisticado e autônomo em que os personagens pastores são alegorias
de poetas. Seus temas são “afetos, pequenas disputas e episódios cotidianos da vida dos pastores”
(TREVIZAM, 2013, p. 15);
2) Georgicon, as Geórgicas, finalizadas em 29 a.C.,69 cujo quarto livro constitui objeto
de nossa análise, serão abordadas mais detalhadamente na próxima seção;
3) Aeneis, a Eneida, que começou a ser escrita no mesmo ano da finalização das
Geórgicas, 70 um carmem perpetuum 71 divido em 12 livros, 72 nos quais Virgílio expõe os
eventos posteriores à Guerra de Troia. A narrativa acompanha, então, Eneias e seus
companheiros na jornada que os leva a alcançar a região da Itália onde, posteriormente, Roma
seria fundada.

Respeitado como um dos maiores poetas do período clássico romano, Virgílio trabalhou

65
O metro hexâmetro datílico consiste de seis pés dátilos ( ) e/ou espondeus ( ), com exceção do quinto pé,
que é, tradicionalmente, sempre dátilo (daí o nome hexâmetro datílico).
66
Como explicado por Gransden (2004, p. 20), a igualdade métrica das composições facilita a que Virgílio cite a
si mesmo, além de dar ao leitor uma sensação de continuidade entre as obras: “the fact that Virgil’s three
compositions are all in the same metre naturally facilitates self-quotation, and gives the reader a sense of continuity
from work to work. It is possible to trace the development and maturing of Virgil as an artist through his handling
of the hexameter”.
67
NETO, 2014, p. 9.
68
As assim chamadas obras da juventude de Virgílio, contidas na Appendix Vergiliana, não foram consideradas
aqui pela incerteza da autoria.
69
NETO, 2014, p. 9.
70
Idem, p. 10.
71
Um carmen perpetuum não é um poema eterno; é, antes, um poema contínuo: “a poem which lasts forever, but
a continuous or (to use a musical term) ‘through-composed’ work” (GRANSDEN, 2004, p. 36).
72
Usualmente considera-se que, em uma emulação das épicas homéricas, os seis primeiros livros da Eneida
rivalizam com a Odisseia e os seis últimos, com a Ilíada. Entretanto, é prudente mencionar que o valor inerente à
Eneida não reside nas obras que influenciaram Virgílio – há de se considerar igualmente as obras que foram
influenciadas por ele, como nos afirma João Angelo Oliva Neto (2014, p. 13-14): “por mais que ela [a Eneida]
pressuponha a Ilíada e a Odisseia homéricas, que lhe foram os modelos mais notórios, por quanto também dependa
das menos conhecidas Argonáuticas, de Apolônio de Rodes (século III a.C), que lhe foram, porém, como veremos,
modelo mais próximo, é no poema de Virgílio que se miraram Dante Alighieri, que faz de Virgílio guia do poeta
na Divina Comédia; Ludovico Ariosto, no Orlando furioso; Torquato Tasso, na Jerusalém libertada; John Milton
duplamente, no Paraíso perdido e no Paraíso reconquistado, e enfim este Camões, também nosso porque não
menos nos pertence a língua d’Os Lusíadas”.
21

a condição humana, poliu a filosofia em poesia, aperfeiçoou o verso hexâmetro latino e


demonstrou uma grande preocupação detalhista em suas composições, que, até hoje, mais de
dois mil anos depois de serem publicadas, continuam a encantar seus leitores. O poeta faleceu
em 21 de setembro de 19 a.C.,73 após pedir, conforme versa a tradição, para que queimassem o
manuscrito da Eneida, obra que ainda não fora concluída. Ele foi enterrado em Nápoles, onde
seu túmulo ainda hoje pode ser visitado.74

II.2. Geórgicas

Escritas no período entre 37-29 a.C., as Geórgicas constituem-se de quatro livros, com
um total de 2.188 versos. Seu tema é explicitado logo na abertura do poema:

Quid faciat laetas segetes, quo sidere terram


uertere, Maecenas, ulmisque adiungere uitis
conueniat, quae cura boum, qui cultus habendo
sit pecori, apibus quanta experientia parcis,
hinc canere incipiam. (Virg. Georg. I, 1-5)

O que torna as searas alegres, sob qual astro contém volver a terra, Mecenas,
e unir a videira aos olmos, que cuidado pedem os bois, que trabalho o rebanho
de alguém e quanta destreza nas abelhas frugais começarei a cantar aqui. (trad.
Matheus Trevizam)

Influenciada pelo modelo grego do autor Hesíodo, 75 a obra “se afasta do universo
pastoril das Églogas juvenis” e “daquele marcial da Eneida” (TREVIZAM, 2014, p. 58) e, à
primeira vista, é um poema agrário,76 cujos livros tratam sobre quatro tópicos específicos dessa
área – as plantações, a arboricultura, a pecuária e a apicultura, respectivamente. Ainda que
costumeiramente classificada como pertencente ao gênero épico didático,77 para Volk (2008, p.
6) as Geórgicas são, na verdade, um poema aparentemente didático, uma vez que “o trabalho
não pretende ensinar agricultura aos fazendeiros, mas sim transmitir uma mensagem maior”.78

73
NETO, 2014, p. 9.
74
GRANDSDEN, 2004, p. 7.
75
Poeta grego que viveu aproximadamente no séc. VII a.C., autor da Teogonia e de Os Trabalhos e os Dias.
76
Trevizam (2014, p. 57-8) observa que o título da obra recupera as palavras gregas georgós, camponês, e georgía,
agricultura.
77
Toohey (1996, p. 4) enumera as principais características da épica didática: “a didatic epic speaks with a single
authorial voice and this is directed explicitly to an addressee, who may or may not be named. It is usually a serious
literary form. Its subject matter is instructional rather than merely oratory. It may be, and often is, quite technical
and detailed. Included within the narrative are normally a number of illustrative panels. These are often based on
mythological themes. The meter of didactic poetry is that of narrative epic, the hexameter [...]”. Para uma discussão
sobre como tal gênero se desenvolve especificamente nas Geórgicas, cf. TREVIZAM, 2014, p. 57-99.
78
“the work is intended not to teach agriculture to the farmers but rather to convey a larger message...”
22

Essa mensagem, presente na conclusão do poema, indiscutivelmente diz respeito à existência e


à vida humana, embora segmente as interpretações críticas e possa ser apreciada de modo mais
otimista ou pessimista, a depender do leitor.79
Paulo Sérgio Vasconcellos (2013, p. 9-10) acrescenta que, além de refletirem sobre o
mundo e o homem, as Geórgicas também celebram a poesia:

a poesia é celebrada porque do embate com matéria tão difícil – o cultivo do


solo, a arboricultura, o gado, a apicultura – faz surgir refinadíssima arte,
tecnicamente impecável, que, ao falar dos desafiadores trabalhos do campo,
ao mesmo tempo parece estar sempre falando do próprio labor poético.

Para o professor, tal celebração acontece ainda que, no quarto livro da obra, o fracasso
do poeta-modelo Orfeu seja narrado em um epílion,80 – uma pequena épica inserida ao texto,
onde se localiza a passagem cerne de nosso estudo – considerado por Trevizam (2014, p. 91)
como “o mais bem elaborado artefato literário de todo o poema”.
Nesse epílion, a moldura da narrativa órfica, Virgílio conta-nos a história do apicultor
Aristeu, que perdeu os seus enxames em decorrência da fome e da doença e que, por isso, chora
seus infortúnios a Cirene,81 sua mãe. Respondendo às lamentações do filho, a náiade abre as
portas de seu místico reino aquático e o recebe com rituais e ambrosia. Ela afirma que é Proteu
– um deus marinho, ancião das profecias – quem terá as respostas para a razão da desventura
de Aristeu, e lhe dá as coordenadas para encontrar a deidade e obter as respostas que procura.
Seguindo a orientação materna, o jovem encontra Proteu e o subjuga: a partir disso, é pela voz
do deus marinho que escutamos a história de Orfeu e Eurídice, dado que a perda dos enxames
de Aristeu fora consequência de sua responsabilidade pela morte da ninfa, picada por uma cobra
ao fugir das mãos desejosas do apicultor. Posteriormente à narração de Proteu, Aristeu recebe
as instruções de sua mãe sobre como fazer renascer suas abelhas com um estranho ritual
chamado bugonia, em que ele sacrifica alguns animais em honra dos manes de Orfeu e Eurídice,
concluindo a fábula.
Conceber a motivação de Virgílio para ligar o mito de Orfeu à trama de Aristeu é tarefa
de especulação, e o entendimento da passagem divide os críticos das Geórgicas. Segundo Gian
Biagio Conte (1986, p. 130-131), alguns leem o epílion simplesmente como uma adição

79
VOLK, 2008, p. 7.
80
“O epílion, ou pequena épica, constitui-se numa invenção literária dos poetas alexandrinos (embora a designação
e o reconhecimento da categoria compositiva caibam aos teóricos modernos), caracterizando-se pela estrutura
narrativa de extensão razoavelmente breve, pelo emprego do hexâmetro, pela tematização de lendas míticas (vida
e amores dos heróis) e pelo desdobramento em mais de uma história, de modo que uma delas é contida pela outra”
(TREVIZAM, 2003, p. 32).
81
Uma náiade por quem Apolo se apaixonou e com quem gerou Aristeu; cf. GRIMAL, 1986, p. 59.
23

ornamental e elegante ao texto, que não se associaria com o resto da obra e cujo propósito seria
meramente explicar o ritual da bugonia; outros acreditam que ele seria uma mensagem
codificada e se referiria ao poeta Galo;82 por fim, há aqueles que buscam evidências para o
significado da passagem em seu próprio desenvolvimento e relacionamento com o resto da
obra.83 Cuidamos que os últimos apresentem a leitura mais sensata: há, na narração moldura de
Aristeu, uma correlação direta com a narração emoldurada de Orfeu,84 cuja apreciação é capaz
de nos guiar a uma compreensão satisfatória das razões pelas quais Virgílio optou pelo mito
órfico como narrativa encaixada.
Inicialmente, vale-nos pensar que as tramas de um e outro personagem são estruturadas
de forma muito similar: ambos perdem algo de importância, ambos sofrem uma catábase – no
caso do apicultor, ela se dá ao buscar a caverna aquática de sua mãe – e ambos vão até o final
para recuperar o que perderam.85 Entretanto, ao compararmos o desfecho de Aristeu com o de
Orfeu, é inevitável não atentarmos para o fato de que, enquanto aquele obteve o que buscava
(as abelhas), este perdeu o que alcançou (Eurídice).86 Tão evidente distinção faz com que, de
imediato, confrontemos os personagens através do desfecho de suas trajetórias. Afinal, Orfeu
frustra todas as expectativas quando ignora a ordem divina de Perséfone, mas Aristeu faz o
oposto: escuta Proteu atentamente e, em seguida, respeita, diligentemente, todos os comandos
de Cirene.87
Com isso, conclui-se que o paralelismo entre os dois personagens compartilha a
ideologia presente em todas as Geórgicas, na medida em que ele

tem a função de demonstrar uma distinta oposição entre duas atitudes e dois
modos de vida. Por um lado, existe o escrupuloso, pio “georgos” e de outro,
um amante que [...] é traído pelo próprio “furor” que o dominou. [...] nada
resiste diante da vontade dos deuses; qualquer triunfo sobre eles é ilusório.
Seus desejos têm de ser seguidos escrupulosamente e sua divindade e poder
devem ser reconhecidos (CONTE,1986, p. 134-35).88

82
Sobre a mensagem de Galo, Conte (1986, p. 131) explica: “Some believe it should be read as a message ‘in code’
referring to Gallus the poet (or else an indirect way of eulogizing him as an historical figure, treating him as
governor of Egypt rather than as the founder of a new kind of love poetry – elegiac poetry).”
83
CONTE, 1986, p. 131. Apesar de não ter sido elencada por Conte, há também a interpretação de Sérvio Honorato
– um comentador de Virgílio do séc. IV d.C. – para a inclusão da narrativa órfica no livro IV. Em um trecho de
seus comentários, Sérvio afirma que “sane sciendum, ut supra diximus, ultimam partem huius libri esse mutatam:
nam laudes Galli habuit locus ille, qui nunc Orphei continet fabulam, quae inserta est, postquam irato Augusto
Gallus occisus est.” (Serv. Georg. Comm. VI. 1); “certamente deve-se saber que, como dissemos acima, a última
parte deste livro foi mudada: na verdade, aquela passagem que suportou os elogios de Galo agora contém a fábula
de Orfeu, que foi inserida depois que Galo foi morto pelo irado Augusto” (trad. nossa).
84
Idem, ibidem.
85
Idem, p. 135.
86
Idem, p. 132.
87
Idem, p. 135/139.
88
“has the function of displaying a distinctive opposition between two attitudes and two ways of life. On the one
24

Trevizam (2014, p. 92-93) menciona o crítico italiano e explica que tal passagem
significaria, “em um poema tão carregado de reminiscências tradicionais quanto as agrárias
Geórgicas, o endosso da postura humana segundo os critérios do mos maiorum”, que dita, ao
homem de valor, uma postura módica em relação às futilidades e às paixões, uma postura de
integral respeito aos deveres e aos deuses – a partir disso, Aristeu seria, por excelência, a
personificação de um discipulus da poesia didática proposta por Virgílio; o personagem é
aquele que soube ouvir e que, assimilando o que lhe foi narrado, aprendeu o que deveria fazer
e como não deveria agir.89
Em consequência, a narração órfica possibilitaria a interpretação de um final otimista
tanto para o livro IV quanto para as Geórgicas como um todo, com a promessa de bem-estar
àqueles que aceitam a vontade divina e se dispõem a praticar o mos maiorum. Conforme declara
Gary Miles (1980, p. 281):

A história de Proteu sobre Orfeu e Eurídice não permite indiferença a seu


respeito. Ela demanda que nós respeitemos o sofrimento humano ocasionado
pela perda e pela mudança, pois é apenas através da sua aceitação e do seu
lugar na ordem natural das coisas que podemos ter esperanças em confrontar,
honestamente, o futuro.90

Por fim, é imprescindível mencionar uma última ideia proposta por Conte (1986, p. 138)
a respeito do epílion: a de que a narração órfica seria, no domínio metalinguístico, uma
“mensagem sobre os modos e a função da poesia”.91 Para o estudioso, Virgílio coloca Orfeu
não apenas como um amante, mas como um “poeta-amante”, uma distinção expressiva a partir
do momento em que consideramos o amor como o tema central da poesia órfica: seu canto é
essencialmente apaixonado e reduz-se sempre à Eurídice, o que pode ser percebido com muita
clareza no final da narração, quando a cabeça do vate continua a clamar repetidamente pela
esposa perdida.92 Sua poética, contudo, é improdutiva: a poesia romântica, mais precisamente
a elegíaca, para Virgílio, falha por estar distanciada da ação e por adotar um “modo
contemplativo” (CONTE, 1986, p. 137), uma poesia que, apesar de poderosa, serve apenas para
consolar quem a compôs e para distrair seus leitores ou ouvintes. Já a poesia geórgica, como

hand there is a scrupulous, pious “georgos” and on the other a lover who […] is betrayed by the very “furor” that
has seized him. […] nothing avails against the will of the gods; any triumph over them is illusory. Their wishes
must be fulfilled scrupulously, and their divinity and power must be recognized.”
89
CONTE, 1986, p. 135.
90
Proteus' story of Orpheus and Eurydice does not allow indifference toward it. It demands that we respect the
human suffering that loss and change entail, for it is only by acceptance of them and their place in the natural order
of things that we can hope to confront future honestly.
91
“... message about the modes and function of poetry”
92
CONTE, 1986, p. 136.
25

observamos (p. 23-24), endossa uma postura ativa e ilustra a vitória daqueles que confiam nos
deuses e conservam a pietas através das dificuldades, tomando Aristeu por modelo.93
Eis que a objetivação dessa postura “representaria, no plano metalinguístico, a recusa
do próprio Virgílio em filiar-se compositivamente às manifestações do gênero da elegia erótica
romana, justamente caracterizado [...] pelo infundido (e infrutífero) lamento amoroso por uma
mulher ‘difícil’” (TREVIZAM, 2014, p. 93). Logo, as particularidades da poesia órfica
traduzem exatamente a natureza poética da qual Virgílio, com as Geórgicas, intencionava se
afastar. 94 Tentaremos demonstrar, um pouco mais adiante, como essa interpretação pode
encaixar-se em nosso estudo comparativo. Antes, contudo, faz-se necessário conhecer um
pouco mais sobre Ovídio e sobre as Metamorfoses.

II.3. Ovídio: vida e obra

Públio Ovídio Nasão nasceu no dia 20 de março, na cidade de Sulmona, em 43 a.C.,


mas viveu grande parte de sua vida em Roma. Integrante de uma família abastada da ordem
equestre, desistiu de seu cursus honorum ao abandonar os estudos para se tornar senador com
a intenção de se dedicar integralmente à poesia.95 Tornou-se, então, um protegido de Marco
Valério Messala Corvino, um patrono artístico como Mecenas, e passou a fazer parte de seu
ciclo literário. Não tardou para que se tornasse famoso em toda Roma com seus versos elegíacos.
96

Diferentemente de Virgílio, Ovídio teve uma vida pessoal mais agitada: casou-se três
vezes, foi pai de uma filha e avô de duas crianças.97 Além disso, conta-se que ele foi exilado
pelo imperador Augusto em 8 d.C.98 As razões para seu possível desterro são incertas, mas é
provável que se relacionem ao teor predominantemente feminista, ousado e erótico de suas

93
Idem, p. 139.
94
Idem, p. 137.
95
VOLK, 2010, p. 22-23.
96
Ovídio notabilizou-se pela composição de elegias, poemas de metro elegíaco, tradicionalmente constituído por
um hexâmetro seguido por um pentâmetro.
97
VOLK, 2010, p. 23.
98
Há bastante controvérsia e dúvida não apenas em relação ao exílio de Ovídio, mas também sobre os outros
aspectos de sua biografia. Isso se deve ao fato de que a maior parte das informações sobre a vida do poeta advém
de sua própria obra; destarte, existe uma grande dificuldade em tentar dissociar a realidade da criatividade,
sobretudo pela constante “brincadeira” do poeta com a metaficção (em especial quando consideramos seu trabalho
“pós-exílio”). Refletindo sobre o assunto, Volk (2010, p. 22) conclui ser mais proveitoso ler a obra de Ovídio livre
de preocupações históricas: “extracting hard historical facts from the Ovidian corpus is difficult and always fraught
with methodological uncertainty; by contrast, reading the story of Ovid as a work of fiction, without worrying
about its relation to reality is comparatively easy”. Para mais sobre o jogo de ficcionalidade em Ovídio, cf.
AVELLAR, 2015.
26

primeiras publicações.99 Segundo o próprio poeta, ele passou o resto de sua vida de relegado
em Tomis, onde morreu, calcula-se, no ano 18 d.C. 100
Autor de uma obra consideravelmente vasta – atribui-se a ele um total de 11
composições – Ovídio desenvolveu, em sua literatura, três fases distintas: a dos poemas de amor,
a dos poemas longos e a das composições de exílio. Não necessariamente em ordem cronológica,
pois há considerável dificuldade em organizá-los temporalmente, mas a começar pela primeira
fase, eis abaixo a lista de seus trabalhos:101

1) Amores, os Amores, uma coleção de três livros contendo 49 elegias nas quais o autor
descreve sentimentos eróticos e românticos à sua musa Corina;
2) Heroides ou Epistulae Heroidum, as Cartas das Heroínas, 21 cartas ficcionais
escritas em metro elegíaco nas quais as remetentes são heroínas mitológicas e os destinatários,
seus amantes;
3) Medicamina faciei femineae, Os Medicamentos para a Face da Mulher,
presumivelmente um manual de cosmética de caráter didático, escrito em hexâmetro datílico e
do qual sobreviveram apenas fragmentos;
4) Ars amatoria, A Arte de Amar, um conjunto de três livros, descritos por Volk (2010,
p. 9) como uma “combinação do formato didático com o metro e o assunto elegíaco”, 102 nos
quais o poeta coloca-se como mestre do amor e elabora um tratado sobre como conquistar uma
paixão e, em seguida, como mantê-la;
5) Remedia amoris, Remédios do Amor, em que o poeta apresenta, em dísticos elegíacos,
dicas para livrar-se de amores indesejados;
6) Medea (Medeia), tragédia da qual restam-nos apenas dois fragmentos.

Já na segunda fase, temos os poemas longos:

1) Fasti, os Fastos, seis livros compostos em metro elegíaco (apenas metade da obra
chegou até nós – seriam, no total, doze livros),103 cada um dedicado a um mês do ano. Essa
produção conta com um conteúdo variado – o poeta faz listas de feriados religiosos, dá
informações astronômicas, menciona eventos históricos e reconta mitos;

99
VOLK, 2010, p. 30-32.
100
Idem, p. 6.
101
Idem, p. 6-19.
102
“combination of a didactic format with elegiac meter and subject matter”
103
VOLK, 2010, p. 13.
27

2) Metamorphoses, as Metamorfoses, obra integrante de nosso estudo e maior trabalho


de Ovídio, composta por 15 livros em hexâmetros datílicos, sobre a qual comentaremos mais
minuciosamente na próxima seção.

Por fim, são as obras da terceira fase:

1) Tristia, com cinco livros e 2) Epistulae ex Ponto, com quatro; ambas compilações de
elegias saudosas, onde Ovídio narra as desventuras de seu exílio;
3) Ibis, elegia de 642 linhas em que o poeta ataca um inimigo.

Irreverente e inovador, em sua literatura Ovídio demonstrou especial apreço à


metaficção, à mulher, ao amor e à mitologia, conseguindo, de fato, cumprir com as palavras
que adornam o final do último livro de suas Metamorfoses:

Iamque opus exegi, quod nec Iouis ira nec ignis


nec poterit ferrum nec edax abolere uetustas. (Ov. Met. XV, 871-872)

Concluí, agora, uma obra que jamais a ira de Júpiter ou o fogo


conseguirão apagar, ou o ferro, ou o passar do tempo voraz. (trad. de Paulo
Farmhouse Alberto)

II.4. Metamorfoses

Sem uma data de composição precisa,104 as Metamorfoses, como já mencionamos, são


um conjunto de 15 livros, com um total de 11.824 versos. Escritas, assim como as obras
virgilianas, no metro hexâmetro datílico, elas são comumente classificadas dentro do gênero
épico, ainda que sejam, reconhecidamente, uma épica inusual.105 De acordo com Volk (2010,
p. 53), isso se dá pois, enquanto a obra ovidiana apresenta cerca de 250 histórias individuais e
“move-se de uma história para a outra, abrangendo um vasto número de contos distintos e, na
maior parte, não relacionados”,106 os mais proeminentes poemas épicos – aqueles de Homero e

104
Elaine Fantham (2004, p. 3) afirma que não podemos precisar a data de publicação das Metamorfoses: “we
cannot date exactly the publication – that is, the circulation in manuscript form – of Ovid’s great epic of
transformation”.
105
VOLK, 2010, p. 53.
106
“moves from one story to the next, comprising a vast number of distinct and mostly unrelated tales”
28

de Virgílio – apresentam um escopo narrativo único, 107 um único herói, 108 e um corpus
igualmente restrito de personagens auxiliares.
Ainda para a professora (2010, p. 54), uma poesia “que trata de uma variedade de tópicos
ou conta uma multidão de histórias, não era, entretanto, desconhecida antes de Ovídio”, 109
porquanto já existia um “minigênero” chamado de “poemas de catálogo” cujo expoente foi o
grego Calímaco com a obra Aetia, “uma coleção de pequenos, alusivos e independentes poemas
em um volume cuidadosamente organizado que tirava proveito do equilíbrio e do contraste
interno” 110 (FANTHAM, 2004, p. 6). Alguns desses “poemas de catálogo”, inclusive, tratavam
diretamente de histórias de transformações mitológicas.111 Não obstante, ainda que claramente
influenciado pelo caráter de tais obras, Ovídio tinha a intenção de criar, com as Metamorfoses,
um poema de alçamento épico, disposição que pode ser depreendida dos primeiros versos da
composição, onde sua voz poética pede auxílio aos deuses ao mesmo tempo em que apresenta
uma proposta de produção, no mínimo, ambiciosa:112

In noua fert animus mutatas dicere formas


corpora; di, coeptis (nam uos mutastis et illas)
adspirate meis primaque ab origine mundi
ad mea perpetuum deducite tempora carmen! (Ov. Met. I, 1-4)

De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho


a falar. Ó deuses, inspirai minha empresa (pois vós
a mudastes também), e conduzi ininterrupto o meu canto
desde a origem primordial do mundo até os meus dias. (tradução de Paulo
Farmhouse Alberto)

Cantará, portanto, sobre plurais “formas mudadas” – eis aqui menção às metamorfoses
que intitulam o poema – mas, com o auxílio divino, conduzirá sua composição de forma
ininterrupta.113 É curioso apontar que, apesar do nome, nem todas as histórias narradas ao longo
da obra falam sobre transformações, ainda que, na prática, esse seja o tema principal do poema

107
No caso da Eneida, a fundação de Roma; no caso da Odisseia, a volta para casa; no caso da Ilíada, a ira de
Aquiles.
108
Respectivamente Eneias, Ulisses e Aquiles.
109
“that treats a variety of topics or tells a multitude of stories was, however, not unheard of before Ovid”.
110
“the collecting of short, allusive, self-contained poems into a carefully arranged volume that played on
internal balance and contrast”.
111
VOLK, 2010, p. 54.
112
Idem, p. 54-55.
113
Ovídio serve-se da expressão carmen perpetuum (Ov. Met. I.4) para descrever as Metamorfoses, uma
característica tradicionalmente atribuída à Eneida de Virgílio; é natural, portanto, considerar que as Metamorfoses
rivalizem com a suprema épica predecessora e respondam aos temas abordados por ela, conforme aponta Volk
(2010, p. 55): “Ovid’s Metamorphoses was the first major Latin epic after the Aeneid and obviously had to react
to Vergil’s work and – ideally – surpass it or, if this proved impossible, at least demonstrate how epic could also
be done differently.”
29

como um todo114 – afinal há, dentro do texto, uma progressão temporal e temática que pode ser
percebida a partir da divisão do poema: três blocos de cinco livros, com o primeiro tratando dos
deuses, o segundo, dos heróis e o terceiro, dos homens.115 Ora, não seria o próprio arcabouço
da composição, sui generis, a maior das metamorfoses presentes na obra?
Além disso, Ovídio tinge sua obra com outros tipos de transformações. É possível
perceber ao longo das Metamorfoses, por exemplo, não apenas a influência da “poesia de
catálogo”, mas também a presença de subgêneros que se alternam e se completam,
metamorfoseando o texto na medida em que lhe imprimem diferentes tonalidades, tais como o
trágico, o bucólico e o elegíaco,116 sendo este a especialidade ovidiana e um dos estilos mais
marcantes da sua composição, refletido até mesmo na seleção mitológica da obra:

o mais reconhecido contrapeso da grandeza épica nesse poema é com certeza


o mundo da elegia: amor supera a arma [...] Enquanto a elegia prosperou em
ciúmes, frustração e na separação dos amantes e na contemplação da morte,
Ovídio selecionou mitos que provocam tais emoções117 (FANTHAM, 2004, p.
123).

Mas não é só essa gama de estilos que individualiza o poema, uma vez que nele há uma
rede tão grande de diálogos com outros autores quanto o número de narrações retratadas:118
muitas das histórias contadas por Ovídio foram antes matéria de outros poetas, e Virgílio,
aparentemente, é tido como uma de suas influências mais marcantes: “qualquer que seja o seu
gênero, a escrita de Ovídio é repleta de reminiscências de Virgílio, muito mais alardeadas do
que ocultadas”119 (TARRANT, 2006, p. 62). Curiosamente, a história de Orfeu encontrada nas
Metamorfoses serve para exemplificar tanto o peso do gênero elegíaco quanto a presença
virgiliana na composição, características que se tornarão mais evidentes no próximo capítulo,
com base na efetiva comparação dos versos referentes ao mito de Orfeu em Virgílio e Ovídio;
antes, porém, é oportuno compreender o contexto no qual a trama órfica se desenrola nas
Metamorfoses.

114
VOLK, 2010, p. 12.
115
É Volk (2010, p. 11) quem percebe esse padrão e afirma que o poema pode ser dividido em três blocos de cinco
livros, de acordo com os assuntos tratados em cada um: “into three blocks of five books each, a structure that
corresponds to the chronological progression of the work's subject matter. Books 1-5 treat exploits of the gods,
Books 6-10 recount adventures of heroes, and Books 11-15 tell tales about mere men”.
116
FANTHAM, 2004, p. 125-128; VOLK, 2010, p. 54-55.
117
“the most recognizable counterweight to epic grandeur in this composite poem is surely the world of elegy:
amor outweights arma [...] As elegy thrived on the jealousy, frustration, and separation of lovers, and the
contemplation of death, so Ovid selects myths that provoke such emotions”.
118
Especialmente notável pela análise intertextual de várias passagens das Metamorfoses é a obra de Fantham; cf.
FANTHAM, 2004.
119
“whatever its genre, Ovid's writing is suffused with Virgilian reminiscence, often paraded rather than concealed”
30

A narração do mito dá início ao livro X da obra e é interligada com o final do tomo IX


através da figura de Himeneu, o deus do casamento, que, na história anterior, participava das
núpcias de Ífis e Iante. Ele é chamado por Orfeu para a celebração de seu matrimônio com
Eurídice, mas traz consigo um mau presságio que, de fato, será concretizado: Eurídice morre;
Orfeu desce aos infernos para comover os deuses inferiores, mas perde a esposa definitivamente
ao descumprir as ordens de Prosérpina. Ainda que reste ao herói apenas a morte, Ovídio não a
narra imediatamente; antes, faz com que Orfeu, poeta-modelo por excelência, cante algumas
histórias em meio à sua dor. O vate, então, narra os eixos temáticos de Ganimedes, Jacinto, os
Cerastas e as Propétides, Pigmalião, Mirra, Vênus e Adonis, Atalanta e Hipomenes120 antes de
encerrar o livro X.
Destarte, ainda que o mito órfico se desenrole apenas nos 85 primeiros versos do décimo
livro, é relevante que Orfeu posteriormente, ao longo do Livro X, se torne para Ovídio
exatamente o que Proteu é, nas Geórgicas, para Virgílio: não apenas um personagem em meio
à trama, mas, sobretudo, um narrador. Em concordância com Volk (2010, p. 57-58), “as
Metamorfoses não são apenas sobre histórias, mas sobre o contar histórias, apresentando quase
tanto interesse no ato de narrar quanto nas próprias narrativas”;121 Ovídio parece querer que nos
atentemos para os motivos pelos quais uma narrativa foi iniciada e de que forma ela está sendo
transmitida,122 e, a partir disso, dá um lugar de destaque narrativo a Orfeu.
Tal como Virgílio, parece-nos indiscutível que Ovídio também obteve êxito ao traduzir,
através da poesia, as mais variadas experiências humanas, sobretudo no caleidoscópio de
histórias apresentadas nas Metamorfoses. Conforme Elaine Fantham (2004, p. 15) resume:

As Metamorfoses nunca teriam conquistado séculos de leitores se Ovídio não


soubesse como apelar para ambos, mente e coração, para a imaginação assim
como para a emoção, para nosso sentimento pelo trágico e para nosso
deslumbramento pelo cômico, para a nossa resposta às artes visuais e à
vulnerabilidade humana.123

Dito isso, partirmos, finalmente, para a análise comparativa.

120
A história de Atalanta e Hipomenes é, em tese, contada por Vênus para Adônis. Entretanto, como é Orfeu quem
canta essa trama, é ele quem cria o discurso da deusa, em uma interessantíssima estrutura onde o “narrador Ovídio”
dá voz a Orfeu que, em seguida, dá voz a Vênus – que terminará dando voz a todos os personagens da história que
irá contar. Ulrich Eigler (2012, p. 355-368) faz uma excelente análise dessa construção narrativa nas Metamorfoses.
121
“the Metamorphoses is not just about stories but about storytelling, exhibiting nearly as much of an interest in
the act of narrating as in the narrative themselves”.
122
VOLK, 2010, p. 58.
123
“The Metamorphoses would never have won centuries of readers if Ovid had not known how to appeal to both
the head and the heart, to imagination as well as sentiment, to our feeling for the tragic and our amusement at the
comic, to our response to visual arts and to human vulnerability...”
31

III
ESTUDO COMPARATIVO

III.1. Tradição e Emulação

Liveley e Eigler concordam que a influência virgiliana nas Metamorfoses – a qual


apenas mencionamos no capítulo anterior – é extremamente marcante no que diz respeito à
versão de Ovídio do mito órfico. Enquanto Eigler (2012, p. 355) diz que “ao escolher o tópico
da história de Orfeu em seu décimo livro, Ovídio busca competir com Virgílio”, 124 Liveley
(2011, p. 100) vai além e garante que “na verdade, Ovídio parece desafiar cada detalhe da
famosa versão de Virgílio do mito de Orfeu e Eurídice”. 125 Não nos deteremos em uma
explicação aprofundada sobre tradição literária e emulação, mas, partindo dessas duas
afirmações, vale-nos aqui assinalar alguns pormenores sobre os dois conceitos antes de
partirmos à análise comparativa.
Acreditamos que a elucidação de Veiga (2011, p. 62) sobre tradição é muito
esclarecedora:

a literatura pode ser entendida como uma memória em que se encontram,


virtualmente, todos os textos, suscetíveis ao diálogo […] Obviamente, um
escritor sozinho não faz literatura, ele precisará de outros escritores. A poética
de um autor sempre tem vínculos com antecessores, ou seja, é sempre
preocupada com a memória.

De fato, ao tratarmos da literatura latina, verificamos quão significativos são o diálogo


intertextual e a memória e, por conseguinte, quão respeitada é a tradição (essa última, uma
característica fundamental da literatura latina desde suas origens, haja vista suas raízes na
literatura grega).126 Contudo, de que maneira esses “vínculos com os antecessores” acontecem?
Horácio comenta sobre eles em sua Epistula ad Pisones.127 Na carta, que posteriormente
ficou conhecida como uma Ars Poetica, discorre sobre as qualidades necessárias a um poeta e,
ao longo do texto, valoriza não só o uso conveniente dos metros poéticos, a presença do natural
ingenium e a aplicação à ars, mas frisa a necessidade de que um autor ou se atenha à tradição

124
“... by picking the topic of the Orpheus story in his tenth Book, Ovid seeks the competition with Virgil”.
125
“... in fact, Ovid seems to challenge every detail of Virgil’s famous version of the Orpheus and Eurydice myth”.
126
“Yet the historian of the language who is also a lover of Virgil must stress the fact that all Latin literary genres
with the exception of satire (‘satira tota nostra est’ is all that Quintilian can claim) owed their form and much of
their content to Greek practice and theory. So it is first to Greek literature that we must turn to reach an
understanding of the progress of literary Latin” (PALMER, 1954, p. 96).
127
Carta de caráter didático que o poeta escreveu aos Pisões, uma família romana patrícia, intencionando
aconselhar sobre o fazer poético.
32

ou seja, no mínimo, coerente ao trabalhar em uma proposta inovadora. Depois de citar o valor
das fontes gregas, mencionar que a literatura é como um bosque que constantemente perde
folhas antigas, mas que volta a vicejar com as novas, ele exorta: “ou segue a tradição ou cria
coisas em si convenientes, escritor!”. 128 Dessa maneira, Horácio defende a adequação aos
modelos literários: se há desejo, por exemplo, de recriar um Aquiles, que ele seja sempre “ativo,
irascível, inexorável, impetuoso, negue as leis que lhe são destinadas, atribua tudo às armas” 129
e que essas características sejam coerentes no decurso da obra. Tal amoldamento, porém, não
pressupõe que o autor se torne um intérprete servil ou um imitador de seus predecessores, pois
os temas tradicionais devem ser tratados de modo particular:

Difficile est proprie communia dicere, tuque


rectius Iliacum carmen deducis in actus
quam si proferres ignota indictaque primus.
Publica materies priuati iuris erit, si 130
non circa uilem patulumque moraberis orbem,
nec uerbo uerbum curabis reddere fidus
interpres nec desilies imitator in artum,
unde pedem proferre pudor uetet aut operis lex
(Hor. Epis. Pis.127-135)

Difícil é dizer o comum de forma particular, e mais


corretamente se encena um carme ilíaco que
se primeiro se exibissem assuntos ignotos e jamais ditos.
A matéria pública será de direito privado, desde que
não se demore em torno de um círculo vil e banal
nem, intérprete servil, cuide-se de traduzir palavra por palavra,
nem, imitador, lance-se num beco
de onde o pudor ou a lei da obra vetem tirar o pé.
(trad. Bruno Maciel et al.)

Essa é, per se, uma excelente descrição do fenômeno da emulação, ou seja, da


apropriação criativa de uma tema clássico – aqui com o sentido de “respeitado pela tradição” e,
consequentemente, trabalhado por autores precedentes – a fim de reinventá-lo em uma
composição que almeja superar todas aquelas que trazem o mesmo argumento.130 Percebe-se,
pois, que emular não significa imitar. Trata-se, na verdade, da ligação com um ou mais
antecessores literários a partir do uso do que é tradicional para o desenvolvimento de uma nova
obra, original em si mesma; trata-se de buscar rivalizar com os autores desses clássicos,

128
Trad. Bruno et al. “aut famam sequere aut sibi conuenientia finge scriptor” (Hor. Ars. 119-120).
129
Trad. Bruno et al. “impiger, iracundus, inexorabilis, acer iura neget sibi nata, nihil non arroget armis” (Hor.
Ars. 121-122).
130
Parece-nos interessante apontar que, em português, “emulação” advém do substantivo latino aemulatio, onis
que significa, dentre outras coisas, “esforço contínuo para igualar alguém em alguma coisa, rivalidade, desejo de
rivalizar, de igualar” (SARAIVA, 2006, p. 36).
33

compondo um trabalho que os adote como modelos, mas que, no final, conquiste um resultado
superior aos exemplos primeiros.
Diante disso, confirma-se a validade das afirmações de Liveley e Eigler no início da
seção, na medida em que, assim como consideramos Virgílio ter se utilizado da emulação
homérica na composição da Eneida e decerto ter se apoiado na tradição corrente para elaborar
sua própria narrativa de Orfeu, julgamos que Ovídio, nos mesmos moldes, tenha intentado
rivalizar com Virgílio, não apenas nas Metamorfoses como um todo,131 mas especialmente na
aventura órfica: eis a disputa que examinaremos na sequência deste capítulo.

III.2. Análise dos versos 453-527 das Geórgicas IV e 1-85 das Metamorfoses X

Primeira Parte
Virg. Georg. IV.453-466 e Ov. Met. X.1-12.

Non te nullius exercent numinis irae;


magna luis commissa: tibi has miserabilis Orpheus
haudquaquam ob meritum poenas, ni fata resistant, 455
suscitat et rapta grauiter pro coniuge saeuit.
Illa quidem, dum te fugeret per flumina praeceps,
immanem ante pedes hydrum moritura puella
seruantem ripas alta non uidit in herba.
At chorus aequalis Dryadum clamore supremos 460
implerunt montis; flerunt Rhodopeiae arces
altaque Pangaea et Rhesi Mauortia tellus
atque Getae atque Hebrus et Actias Orithyia.
Ipse caua solans aegrum testudine amorem
te, dulcis coniunx, te solo in litore secum, 465
te ueniente die, te decedente canebat.
(Virg. Georg. IV.453-466)

“As iras de algum poder divino o atingem; você expia grandes faltas: o
infeliz Orfeu, sem o merecer, está violentamente furioso pela esposa raptada
e, a menos que os fados se oponham,[455] instiga-lhe estes castigos. Pois ela,
garota que haveria de morrer, enquanto fugia de você, descendo o rio, não viu,
diante dos pés, uma horrível cobra d’água que habita as margens da alta relva.

131
Tarrant (2006, p. 61), menciona a postura ovidiana de rivalidade com Virgílio por meio de indicações
compositivas de que Ovídio, desde a publicação dos Amores, desejava alçar ao gênero épico, cuja obra mais ilustre
em Língua Latina era a Eneida: “His earliest published collection of poems, the elegiac Amores, opens with a poem
in which Ovid is deflected from epic to elegy when Amor removes a metrical foot from the second line of his
work-in-progress. The elegy (and presumably the imagined epic) begins with arma, and an allusion to the Aeneid
seems likely. Since Ovid, unlike other elegists, does not portray himself as unfit for grander themes, and his service
as a writer of elegy is from the outset temporary, the Virgilian echo may signal his ambition to emulate Virgil by
rising through the genres to epic. Certainly imitation (in parodic form) of the Georgics is one of the motivating
forces of the mock-didactic Ars amatoria, a work of Ovid's mid-career, while his largest and most ambitious work,
the Metamorphoses, is in several senses a response and counterpart to the Aeneid.”; cf. também THOMAS, 2009,
p. 294-307.
34

Logo, um coro harmonioso de Dríades [460] encheu os cumes dos montes


com um clamor; choraram as cidadelas de Ródope e o alto Pangeu e os
domínios belicosos do Reso, e também os Getas e Hebro, e Orítia da Ática. O
próprio [Orfeu], com a lira côncava, procurando aliviar o triste amor, a você,
doce esposa, no litoral, a você, ao nascer do dia, [465] a você, ao cair do dia,
cantava ensimesmado.”132

Inde per inmensum croceo uelatus amictu


aethera digreditur Ciconumque Hymenaeus ad oras
tendit et Orphea nequiquam uoce uocatur.
Adfuit ille quidem, sed nec sollemnia uerba
nec laetos uoltus nec felix attulit omen. 5
Fax quoque, quam tenuit, lacrimoso stridula fumo
usque fuit nullosque inuenit motibus ignes.
Exitus auspicio grauior; nam nupta per herbas
dum noua Naiadum turba comitata uagatur,
occidit in talum serpentis dente recepto. 10
Quam satis ad superas postquam Rhodopeius auras
defleuit uates [...]
(Ov. Met. X.1-12)

Daí, pela imensidão dos céus, envolvido em um manto dourado,


Himeneu se retirou, e aos litorais dos Cícones, chamado pela voz de Orfeu,
dirigiu-se em vão. Ele compareceu, certamente, mas nem as palavras festivas,
nem os olhos contentes, nem o feliz voto levou; [5] também a tocha que
segurava esteve sempre sibilante com o fumo que provoca lágrimas, mas não
acendeu fogo, apesar das sacudidelas.
O desfecho é mais triste do que o presságio. De fato, enquanto a recém-
casada vagueia pelas relvas, acompanhada por um grupo de Náiades, morre
com o dente de uma serpente cravado no calcanhar. [10] Depois que o poeta
de Ródope muito lamentou no mundo superior [...]

Como perscrutamos nos capítulos anteriores, Virgílio inicia sua versão do mito através
da voz do deus ancião Proteu, que avisa ao pastor Aristeu que as iras de algum poder divino o
atingem e, responsável pela morte da mulher de Orfeu, é a fúria do marido que recai sobre ele
(v. 453-455). O narrador imediatamente apresenta Orfeu pelo nome (v. 455), mas não faz o
mesmo com Eurídice, que é evocada apenas pelo epíteto moritura puella (garota que haveria
de morrer, v. 458); afinal, ao fugir de Aristeu, que a perseguia nas margens de um rio, Eurídice
se depara com uma hydrus (cobra d’água, v. 458) e é mordida. Dois pontos interessam aqui:
primeiro, a especificação de Virgílio ao chamar a serpente de hydrus, o que parece fator não só
relacionado ao cuidado do autor com a nomenclatura do mundo animal nas Geórgicas, tendo
em vista o locus da ação, mas também à voz de Proteu, um personagem caracteristicamente

132
Todas as traduções de Virgílio e Ovídio apresentadas neste capítulo são de nossa autoria, salvo quando citado
o contrário.
35

relacionado às águas, cujo conhecimento de mundo certamente o possibilitaria diferenciar uma


cobra d’água de outra serpente qualquer. Segundo, a tergiversação do enunciador ao dar
detalhes de como, na prática, aconteceu a morte de Eurídice. De acordo com Putnam (1979, p.
292), Proteu “não tem necessidade de mostrar a razão física para a morte dela”133 e, por isso, a
fatalidade só é efetivamente confirmada ao leitor com a hiperbólica reação de luto que se segue
ao encontro da jovem com a cobra (v. 460-466), em que choram as companheiras dríades, as
cidadelas de Ródope, o alto Pangeu, os domínios do Reso, os trácios Getas, o rio Hebro, a ática
Orítia e, obviamente, Orfeu.
Ovídio, por outro lado, de acordo com Anderson (1972, p. 475) “particularmente
esperava que a sua audiência se lembrasse da obra-prima das Geórgicas [...] de Virgílio”,134 e
opta um caminho original para iniciar o episódio. Na sua versão, a voz do narrador não é a de
personagem algum e Aristeu, conforme já mencionamos, sequer aparece no relato.135 Para criar
um ponto de conexão entre o Livro IX e o Livro X das Metamorfoses, o poeta traz Himeneu da
cena de um casamento, no final do Livro IX, para as bodas de Orfeu e se aproveita da
caracterização e da presença do deus para expressar um presságio de tragédia. Em vista disso,
a tocha nupcial, trazida pela divindade, não consegue adquirir fogo, mesmo com movimento, e
se mantém esfumaçante durante a cerimônia:136 fax, quoque, quam tenuit, lacrimoso stridula
fumo usque fuit nullosque inuenit motibus ignes (também a tocha que segurava esteve sempre
sibilante com o fumo que provoca lágrimas, mas não acendeu fogo, apesar das sacudidelas, v.
6-7).
Logo após o anúncio de tal agouro, Eurídice – que aqui, tal como na narrativa de Proteu,
não recebe imediatamente um nome, sendo chamada somente de noua nupta (recém-casada, v.
8) – é mordida por uma genérica serpens (serpente, v. 10) enquanto passeia com uma naiadum
turba (grupo de Náiades, v. 9). Concerne apontar a divergência entre os dois autores sobre as
companheiras da jovem ninfa: Ovídio as denomina náiades, que são as ninfas das águas (essa é
a única referência nas Metamorfoses de que Eurídice talvez estivesse às margens de alguma
fonte aquática), ao passo que Virgílio, ao descrevê-las em lamento pela amiga (v. 460-461), as
chama de dryades (dríades, v. 460), que são as ninfas dos bosques.
Adicionalmente, Ovídio é mais direto em relação à morte de Eurídice: descreve em um

133
“has no need to show the physical reason for her death.”
134
“particulary expected his audience to remember the masterpiece of Vergil's Georg. […]”
135
Afinal, como indicam os estudiosos do assunto, a ligação de Aristeu com o episódio da morte de Eurídice é
uma criação virgiliana.
136
Anderson (1972, p. 476) explica que a tocha fumacenta é a indicação de um mau agouro aos recém-casados:
“Hymenaeus carries a wedding torch, but the sputtering smoky flame brings tears to the eyes of the wedding party
and augurs tears for the couple”.
36

verso occidit in talum serpentis dente recepto (morre com o dente de uma serpente cravado no
calcanhar, v. 10) o “relato físico”137 da mordida, o que foi, como vimos, ocultado pela voz de
Proteu em Virgílio. Similarmente, além de ignorar o esmorecimento de qualquer outro ser que
não Orfeu, o narrador das Metamorfoses passa pelo pesar do vate tão rapidamente que encerra
a passagem em apenas duas palavras: satis defleuit (muito lamentou, v. 11-12); uma descrição
objetiva que opera como um indicador de como Ovídio pretende tonalizar o seu relato.138
Virgílio, enfim, dedica ao luto órfico mais que o dobro de atenção (3 versos, v. 464-
466). Num trecho esteticamente rebuscado,139 Proteu “parece esquecer, momentaneamente, que
ele começou endereçando a seu ouvinte, o jovem Aristeu” 140 (LEE, 1996, p. 111) e, numa
demonstração de empatia, volta-se para Eurídice. Nesta passagem, a tristeza do amante ganha
realce com a musicalidade grave dos espondeus e leve dos dátilos e com a seleção vocabular,
que indica uma desesperadora solidão. Nota-se, na construção rítmica da passagem, um verso
mais lento (v. 465), que comunica a tristeza, seguido de um que mistura quantidades longas e
breves141 e cria uma cadência mais musical de evidente contraste:

Īpsĕ cӑuā sōlāns aēgrūm tēstūdĭn(e) ӑmōrĕm


tē, dūlcīs cōniūnx, tē sōl(o) īn lītŏrĕ sēcŭm, 465
tē uĕnĭēntĕ dĭē, tē dēcēdēntĕ cӑnēbӑt

O próprio [Orfeu], com a lira côncava, procurando aliviar o triste amor, a você,
doce esposa, no litoral, a você, ao nascer do dia, [465] a você, ao cair do dia,
cantava ensimesmado.

Segunda Parte
Virg. Georg. IV.467-484 e Ov. Met. X.12-48.

Taenarias etiam fauces, alta ostia Ditis,


et caligantem nigra formidine lucum
ingressus Manisque adiit regemque tremendum
nesciaque humanis precibus mansuescere corda. 470
At cantu commotae Erebi de sedibus imis
umbrae ibant tenues simulacraque luce carentum,
quam multa in foliis auium se milia condunt,
Vesper ubi aut hibernus agit de montibus imber,
matres atque uiri defunctaque corpora uita 475

137
PUTNAM, 1979, p. 292.
138
“the hyperbaton and the flatly objective view of Orpheus' initial grief indicate the way Ovid intends to interpret
the entire situation” (ANDERSON, 1972, p. 476).
139
Sobre a construção vocabular da passagem, Lee (1996, p. 112) aponta o uso dos te… te… te… e das aliterações
em palavras como solans e dulcis: “the passage is written with great art: the echoing te … te … te … is interwoven
with the alliterative pattern, developed from solans and dulcis, of solo in litore secum, and with the assonance of
venien-te … decenden-te.”
140
“seems momentarily to forget that he began by addressing his listener, young Aristaeus”
141
PUTNAM, 1979, p. 294.
37

magnanimum heroum, pueri innuptaeque puellae


impositique rogis iuuenes ante ora parentum;
quos circum limus niger et deformis harundo
Cocyti tardaque palus inamabilis unda
alligat et nouiens Styx interfusa coercet. 480
Quin ipsae stupuere domus atque intima Leti
Tartara caeruleosque implexae crinibus angues
Eumenides tenuitque inhians tria Cerberus ora
atque Ixionii uento rota constitit orbis.
(Virg. Georg. IV.467-484)

“Até mesmo foi para as entradas dos infernos, atravessou as ilustres


portas de Plutão e caminhou no bosque obscurecido pelo sombrio medo, e se
aproximou dos Manes, e do rei que faz tremer, e dos corações incapazes de
cederem às súplicas humanas. [470]
“E vinham do fundo da morada do Érebo as sombras emocionadas
pelo canto e os leves fantasmas dos carentes de luz, tal como muitos milhares
de pássaros se escondem nas folhagens quando Vesper ou a chuva de inverno
os conduzem dos montes, mães e maridos e corpos com vida terminada [475]
de nobres heróis e meninos e castas meninas e jovens colocados nas piras
diante dos olhos dos pais; em volta dos quais o negro lodo e a disforme cana
do Cócito e o odioso pântano de vagarosa água se apertam, e o Estige, nove
vezes circundado, reprime. [480] E até a morada da própria Morte e o mais
fundo Tártaro estiveram entorpecidos, e as Eumênides, com serpentes
marinhas entrelaçadas nos cabelos, e Cérbero, ávido, conteve as três bocas e
a roda de Íxion parou com o vento.”

Quam satis ad superas postquam Rhodopeius auras


defleuit uates, ne non temptaret et umbras,
ad Styga Taenaria est ausus descendere porta;
perque leues populos simulacraque functa sepulcro
Persephonen adiit inamoenaque regna tenentem 15
umbrarum dominum pulsisque ad carmina neruis
sic ait: “o positi sub terra numina mundi,
in quem reccidimus, quicquid mortale creamur;
si licet et falsi positis ambagibus oris
uera loqui sinitis, non huc, ut opaca uiderem 20
Tartara, descendi, nec uti uillosa colubris
terna Medusaei uincirem guttura monstri;
causa uiae coniunx, in quam calcata uenenum
uipera diffudit crescentesque abstulit annos.
Posse pati uolui nec me temptasse negabo; 25
uicit Amor. Supera deus hic bene notus in ora est;
an sit et hic, dubito; sed et hic tamen auguror esse;
famaque si ueteris non est mentita rapinae,
uos quoque iunxit Amor. Per ego haec loca plena timoris,
per Chaos hoc ingens uastique silentia regni, 30
Eurydices, oro, properata retexite fata.
Omnia debentur uobis paulumque morati
serius aut citius sedem properamus ad unam.
Tendimus huc omnes, haec est domus ultima uosque
humani generis longissima regna tenetis. 35
Haec quoque, cum iustos matura peregerit annos,
iuris erit uestri; pro munere poscimus usum.
38

Quod si fata negant ueniam pro coniuge, certum est


nolle redire mihi; leto gaudete duorum!”
Talia dicentem neruosque ad uerba mouentem 40
exsangues flebant animae; nec Tantalus undam
captauit refugam stupuitque Ixionis orbis,
nec carpsere iecur uolucres urnisque uacarunt
Belides inque tuo sedisti, Sisyphe, saxo.
Tunc primum lacrimis uictarum carmine fama est 45
Eumenidum maduisse genas; nec regia coniunx
sustinet oranti, nec qui regit ima, negare
Eurydicenque uocant; [...]
(Ov. Met. X.12-48)

Depois que o poeta de Ródope muito lamentou no mundo superior


atreveu-se a descer, para que tentasse também as trevas, até o Estige, pela
porta de Ténaro e, através de povos insubstanciais e fantasmas que foram
sepultados, alcançou Perséfone e o Senhor das Sombras, [15] governante dos
horríveis domínios; e, tocando as cordas em versos, assim diz:
“Ó, divindades de um mundo situado sob a terra para o qual nós, todos
os que somos criados mortais, recairemos, se for permitido e vocês
consentirem, abandonando os rodeios de uma fala falsa, narrarei a verdade;
não desci até aqui para ver o Tártaro sombrio, [20] nem para domar as três
cabeças do monstro meduseu, eriçadas como cobras; a causa da viagem é a
minha esposa, na qual uma víbora, ao ser pisada, inoculou o veneno e da qual
arrancou os anos da juventude. Desejei ser capaz de suportar, e não negarei
ter tentado: [25] o Amor venceu! Ele é um deus bem conhecido na região
superior, e me pergunto se o é neste lugar. Mas, em todo caso, penso que ele
esteja aqui, [pois] se a fama do antigo rapto não é uma mentira, também o
Amor os uniu. Por estes lugares cheios de terror, por este vazio gigantesco e
pelos silêncios do profundo reino, [30] eu imploro, desfaçam o destino
precipitado de Eurídice! Todas as coisas lhes são reservadas, e mesmo com
um pouco de demora, mais cedo ou mais tarde, precipitamo-nos à única
morada. Todos nos dirigimos a este lugar, esta é a habitação última, e vocês
mantêm os mais extensos reinos do gênero humano. [35] Eurídice também,
idosa, quando tiver levado ao fim os justos anos, será do direito de vocês:
pedimos o usufruto [dessa vida] como um presente. Porque, se os destinos
negam o favor à minha mulher, é certo não me deixarem regressar: deleitem-
se com a morte de ambos!”.
Dizendo tais coisas e tocando as cordas junto das palavras, [40] as
almas desprovidas de sangue choravam; nem Tântalo buscou alcançar a água
fugitiva, e a roda de Íxion ficou imóvel, nem abutres bicaram o fígado, e
estiveram livres dos jarros as Bélides, e você sentou, ó Sísifo, em sua rocha.
Então, diz-se que, pela primeira vez, as faces das Eumênides, vencidas pela
canção, [45] estiveram molhadas pelas lágrimas, e nem a esposa real e nem o
que governa os infernos ousam dizer não ao suplicante, e chamam Eurídice.

Antes de prosseguirmos a análise, faz-se necessário distinguir duas qualidades poéticas


que ornamentam os textos de Virgílio e Ovídio: o pathos e o bathos. De acordo com Abrams
(1999, p. 204 e 20), em Glossary of Literary Terms, o primeiro é “uma cena ou passagem que
é projetada para evocar os sentimentos de ternura, piedade ou uma tristeza complacente na
39

audiência”, 142 enquanto o segundo é “um declínio não intencional na literatura quando,
esforçando-se para ser patético, ou apaixonado, ou elevado, o escritor ultrapassa a marca e cai
no trivial ou no ridículo”.143 Os dois atributos nos são marcantes pois, ao mesmo tempo em que
Virgílio objetiva o pathos, Ovídio mira, intencionalmente,144 na polaridade oposta, o bathos.
Vejamos, então, como essas qualidades são demonstradas na determinação órfica em descer às
regiões inferiores em cada uma das narrativas.
Ao passo que o tom virgiliano denota o grande empenho de Orfeu ao colocar que o vate
até mesmo atravessou a entrada dos infernos pela esposa, taenaria etiam fauces adiit (até
mesmo foi para as entradas dos infernos, v. 468-469), a entonação ovidiana, com uma dupla
negação ne non temptaret (para que tentasse também as trevas, v. 12), de acordo com Anderson
(1972, p. 477) “sugere uma nuance de deboche da parte de Ovídio. Lamentar-se para as
instâncias superiores não levará a nada, então Orfeu tentou as sombras”.145 O comentarista
inclusive se pergunta se o personagem não estava à procura de uma audiência para o seu
lamento, como um herói que se diz altruísta mas que, na verdade, almeja apenas
reconhecimento pessoal.
Ambas as descrições da descida zelam pelo detalhamento de como o músico chegou às
regiões infernais: Virgílio menciona as alta ostia Ditis (as ilustres portas de Plutão, v. 467) e o
caligantem lucum nigra formidine (bosque escurecido pelo sombrio medo, v. 468), em um verso
significativo, que denota “uma elegante mistura da aparência física e espiritual do lugar”146
(Thomas, em VIRGIL, 1988, p. 228) e cujo ritmo lento dos quatro primeiros pés espondaicos
(ēt cālīgāntēm nīgrā fōrmīdĭnĕ lūcŭm), para Putnam (1979, p. 295), “complementa a escuridão
da atmosfera”;147 Ovídio, mais direto, cita apenas a porta Taenaria (porta de Ténaro, v. 13),
mas ambos mencionam tanto os Manes, ou fantasmas, quanto os deuses do mundo inferior,
Plutão e Perséfone. Há, na sequência da passagem, entretanto, uma distinção vital entre as
narrativas: novamente Ovídio prefere as minúcias e detalha a canção de Orfeu às divindades

142
“a scene or passage that is designed to evoke the feelings of tenderness, pity, or sympathetic sorrow from the
audience”.
143
“an unintentional descent in literature when, straining to be pathetic or passionate or elevated, the writer
overshoots the mark and drops into the trivial or the ridiculous”.
144
A intencionalidade do bathos é, aqui, um fator decisivo; como poderemos constatar, a não intencionalidade
expressa na significação formal do conceito não pode ser aplicada a Ovídio, uma vez que, consoante a nossa leitura,
o poeta efetivamente tenciona ultrapassar esse ponto em que o elevado se transforma no ridículo; cf. BOYLE,
2007, p. 359.
145
“suggests a nuance of mockery on the part of Ovid. Moaning to the upper air can achieve nothing, so Orpheus
tried the Shades”.
146
“a fine blending of the physical and spiritual appearance of the place”.
147
“whose slowness of rhythm complements darkness of atmosphere”.
40

infernais em nada menos do que 23 versos (v. 16-39),148 enquanto Virgílio sequer reproduz a
canção, cuja eficácia só é constatada com as reações dos ouvintes.149 Para Boyle (2007, p. 359),
a razão pela qual o autor não expôs o discurso reside no fato de que “o protótipo mítico grego
de todos os poetas começa com uma linguagem cheia de qualificação, exegese e banalidade”,150
e um discurso órfico nesses padrões certamente não emocionaria os mortos de Virgílio.
Ovídio, por outro lado, mantendo seu tratamento “batético” do mito, aproveita a
passagem para transformar Orfeu em uma espécie de esnobe artificioso e a canção, que
comoveu os seres infernais, em um discurso excessivamente retórico, prolixo e trivial. 151
Ademais, o Orfeu virgiliano de fato “cantou” (canebat, v. 466), ao passo que o de Ovídio,
também acompanhado da lira, “proclamou de uma maneira solene e definitiva”152 (dicentem, v.
40), escolha léxica que corrobora a artificialidade do seu discurso.153
Existe, ainda, notável distinção entre os dois poetas na descrição das almas que
escutaram a música e em suas reações. Ovídio, depois de apenas mencionar em meio verso as
exsangues animae (almas desprovidas de sangue, v. 41), concentra-se em cinco personagens
infernais famosos: Tântalo, Íxion, Títio, as Danaides e Sísifo, cujos castigos divinos
teoricamente eternos puderam ser momentaneamente ignorados em uma resposta hiperbólica e
pungente à canção órfica154 (v. 40-46), que se torna ainda mais exacerbada com a imagem das
Eumênides chorando pela primeira vez.
Já Virgílio, em uma passagem que, para Thomas, “sugere o triunfo da poesia sobre o
Hades”155 (VIRGIL, 1988, p. 229), dedica especial atenção às almas comuns (v. 471-480) e
dramatiza o trecho com o relato de que a música não afetou apenas esses espíritos, mas também
a morada da morte (domus Leti, v. 481), o mais fundo Tártaro (intima Tartara, v. 482), as
Eumênides (Eumenides, v. 483) – ainda que o Proteu não as tenha descrito chorar –, o ávido
Cérbero (inhians Cerberus, v. 484) e, por fim, até mesmo a roda de Íxion, que parou com o

148
A canção de Orfeu é retoricamente habilidosa; o vate tanto se apropria da ideia de que a morte virá para todos
os seres, seja mais cedo ou mais tarde (v. 32-35), como também tenta ganhar a simpatia de Plutão apelando para
o rapto de Prosérpina, considerando que os deuses infernais também são tocados pelo Amor (ANDERSON, 1972,
p. 477-478).
149
PUTNAM, 1979, p. 296.
150
“The Greek mythic prototype of all poets begins with language filled with qualification, exegesis, and banality,
and decidedly not of the kind to make the Virgilian dead weep”.
151
BOYLE, 2007, p. 359.
152
MARTIN (1941, p. 58). Segundo esse etimologista, o verbo dicere, tem como raiz deic, que significa “apontar”,
e se especializou, no latim, língua fortemente religiosa e jurídica, no sentido de mostrar pela palavra: “la R. deic,
qui signifie montrer du doigt, s’est specialisée dans le latin, langue fortemente religeuse et juridique, au sens de
montrer par la parole.”
153
BOYLE, 2007, p. 359.
154
ANDERSON, 1972, p. 478-479.
155
“suggest the triumph of poetry over Hades”.
41

vento (Ixionii uento rota constitit orbis, v. 484).

Terceira Parte
Virg. Georg. IV.485-520 e Ov. Met. X.48-85

Iamque pedem referens casus euaserat omnis 485


redditaque Eurydice superas ueniebat ad auras
pone sequens (namque hanc dederat Proserpina legem),
cum subita incautum dementia cepit amantem,
ignoscenda quidem, scirent si ignoscere Manes:
restitit Eurydicenque suam iam luce sub ipsa 490
immemor heu! uictusque animi respexit. Ibi omnis
effusus labor atque immitis rupta tyranni
foedera, terque fragor stagnis auditus Auerni.
Illa: “Quis et me”, inquit, “miseram et te perdidit, Orpheu,
quis tantus furor? En iterum crudelia retro 495
fata uocant conditque natantia lumina somnus.
Iamque uale: feror ingenti circumdata nocte
inualidasque tibi tendens, heu! non tua, palmas.”
Dixit et ex oculis subito, ceu fumus in auras
commixtus tenuis, fugit diuersa, neque illum, 500
prensantem nequiquam umbras et multa uolentem
dicere praeterea uidit; nec portitor Orci
amplius obiectam passus transire paludem.
Quid faceret? Quo se rapta bis coniuge ferret?
Quo fletu Manis, quae numina uoce moueret? 505
Illa quidem Stygia nabat iam frigida cymba.
Septem illum totos perhibent ex ordine mensis
rupe sub aeria deserti ad Strymonis undam
fleuisse et gelidis haec euoluisse sub antris
mulcentem tigris et agentem carmine quercus. 510
Qualis populea maerens Philomela sub umbra
amissos queritur fetus, quos durus arator
obseruans nido implumis detraxit; at illa
flet noctem ramoque sedens miserabile carmen
integrat et maestis late loca questibus implet. 515
Nulla uenus, non ulli animum flexere hymenaei.
Solus Hyperboreas glacies Tanaimque niualem
aruaque Riphaeis numquam uiduata pruinis
lustrabat raptam Eurydicen atque inrita Ditis
dona querens; [...]
(Virg. Georg. IV.485-520)

“E o que agora refaz os passos livrara-se de toda a desventura e, [485]


com Eurídice restituída, voltava ao mundo superior. Ela seguia atrás (pois
Prosérpina dera esta ordem), quando súbita loucura apoderou-se do
imprudente amante, [loucura] que, todavia, deveria ser perdoada, se os Manes
soubessem perdoar: parou, já sob a própria luz do sol e, esquecido [da ordem]
[490] e vencido no espírito, ah! voltou os olhos para sua Eurídice. Aí, todo o
esforço se perdeu, pois rompidos os pactos do cruel tirano, três vezes um
estrondo foi ouvido nos pântanos do Averno. Aquela diz: ‘que enorme delírio
destruiu a mim, infeliz, e a você, Orfeu? Eis que, de novo, [495] os
42

implacáveis destinos me chamam de volta e o sono domina meus olhos


oscilantes. E agora, adeus! Sou levada, rodeada pela vasta noite, estendendo
as fracas mãos a você, não mais sua.’ Disse e, subitamente, como tênue
fumaça misturada aos ares, desapareceu dos olhos na direção oposta, [500] e
aquele, agarrando as sombras em vão e desejando dizer muitas coisas, não
mais a viu: ademais, nem o barqueiro do Orco lhe permitiu atravessar a
barreira do pântano. O que faria? Para onde iria, tendo a esposa duas vezes
raptada? Com que pranto moveria os Manes, que outros numes [moveria] com
sua voz? [505] Aquela, gelada, certamente já navegava na canoa do Estige.
“Contam aquele ter chorado sucessivamente por sete meses sob o
elevado rochedo junto da água do isolado Estrímon e ter narrado esta [história]
sob a gruta gelada, acalmando tigres e movimentando carvalhos com a canção.
[510] Tal qual a aflita Filomela que sob a sombra do choupo lamenta os
filhotes perdidos, os quais o rude lavrador vigilante arrancou, implumes, do
ninho; e ela chora a noite, pousada em um galho, e recomeça um canto digno
de compaixão, e com abatidas lamentações enche ares distantes. [515]
“Nenhum amor, nenhuma união mudaram o espírito. Solitário,
percorria a geleira hiperbórea, o nevado Tanais, os lavrados campos nunca
privados de geadas dos montes Rifeus, lastimando a raptada Eurídice e o
malogrado presente de Plutão; [...]”.

[...] umbras erat illa recentes


inter et incessit passu de uulnere tardo.
Hanc simul et legem Rhodopeius accipit Orpheus, 50
ne flectat retro sua lumina, donec Auernas
exierit ualles; aut irrita dona futura.
Carpitur accliuis per muta silentia trames,
arduus, obscurus, caligine densus opaca.
Nec procul afuerant telluris margine summae; 55
hic, ne deficeret, metuens auidusque uidendi,
flexit amans oculos et protinus illa relapsa est;
bracchiaque intendens prendique et prendere certans,
nil nisi cedentes infelix adripit auras.
Iamque iterum moriens non est de coniuge quicquam 60
questa suo (quid enim nisi se quereretur amatam?)
supremumque “uale,” quod iam uix auribus ille
acciperet, dixit reuolutaque rursus eodem est.
Non aliter stupuit gemina nece coniugis Orpheus
quam tria qui timidus, medio portante catenas, 65
colla canis uidit, quem non pauor ante reliquit
quam natura prior, saxo per corpus oborto;
quique in se crimen traxit uoluitque uideri
Olenos esse nocens, tuque, o confisa figurae,
infelix Lethaea, tuae, iunctissima quondam 70
pectora, nunc lapides, quos umida sustinet Ide.
Orantem frustraque iterum transire uolentem
portitor arcuerat; septem tamen ille diebus
squalidus in ripa Cereris sine munere sedit;
cura dolorque animi lacrimaeque alimenta fuere. 75
Esse deos Erebi crudeles questus, in altam
se recipit Rhodopen pulsumque aquilonibus Haemum.
Tertius aequoreis inclusum Piscibus annum
finierat Titan omnemque refugerat Orpheus
femineam Venerem, seu quod male cesserat illi, 80
siue fidem dederat; multas tamen ardor habebat
43

iungere se uati; multae doluere repulsae.


Ille etiam Thracum populis fuit auctor amorem
in teneros transferre mares citraque iuuentam
aetatis breue uer et primos carpere flores. 85
(Ov. Met. X.48-85)
Ela estava entre as sombras recém-chegadas e caminhou com o passo
vagaroso em razão da ferida. E logo o herói de Ródope recebeu esta ordem:
[50] que não virasse os olhos para trás, até que tivesse saído para os vales
Avernos, ou a dádiva prometida seria inútil.
Um caminho íngreme, árduo, escondido e coberto com um nevoeiro
sombrio é percorrido por entre obscuros silêncios. Não estavam longe da
fronteira da região mais elevada: [55] nesta altura, receoso de que ela o
deixasse e ávido por vê-la, o amante virou os olhos: no mesmo instante, ela
retornou, e estendendo os braços e lutando por ser segurado e por segurá-la, o
infeliz nada agarrou, a não ser os ares que recuavam.
E agora, morrendo pela segunda vez, não se queixou de algo sobre seu
marido [60] (o que, então, exceto se se queixasse de ser amada?) e, pela última
vez diz “adeus”, o que ele já mal escutou, e é devolvida, novamente, ao mesmo
lugar. Orfeu estava aturdido com a dupla morte da esposa, tal como aquele
que, medroso, viu as três cabeças do cão que traz correntes na do meio, [65] a
quem o pavor deixou não mais do que a natureza anterior, com a pedra se
alastrando pelo corpo; tal como aquele Oleno que atraiu o crime para si, e quis
ser considerado culpado, e você, infeliz Lethea, convicta de sua imagem; os
que, outrora, eram os corações mais unidos, [70] mas [que] agora são pedras,
as quais o Ida mantém úmidas.
E o barqueiro impediu o que inutilmente suplicava, desejando,
novamente, atravessar [o Estige]; por fim, durante sete dias, ele, esquálido,
esteve sentado na margem sem ingerir comida; o tormento, a dor do espírito e
as lágrimas foram seus alimentos. [75] Lamentou os deuses do Érebo serem
cruéis, e se recolheu à alta Ródope e ao Hemo agitado pelos ventos do norte.
O terceiro Titã encerrara o ano limitado pelos marítimos Peixes, e
Orfeu renunciara a todo desejo feminino, ou pelo mal que sucedera a ele, ou
porque proferira um juramento; [80] contudo, a paixão trazia várias [mulheres]
para se unirem ao poeta: muitas, repelidas, sofreram. De fato, ele foi o
primeiro entre os povos da Trácia a transferir o amor para os jovens do sexo
masculino antes da idade adulta, e a gozar da breve primavera da vida e das
primeiras florações. [85]

Comovidos pela canção órfica assim como os outros seres infernais, Plutão e Prosérpina
devolvem Eurídice. No verso 486 da passagem virgiliana, Proteu cita pela primeira vez o nome
da ninfa e Putnam (1979, p. 302) relembra que “nomear é ajudar a recuperar a
individualidade”.156 Contudo, em comparação com as Metamorfoses, Virgílio é econômico e
continua apresentando, por meio do ancião, um posicionamento narrativo enviesado. 157 Ele
indica a devolução de Eurídice apenas através do particípio reddita (restituída, v. 486) e, até
certa altura, parece-nos que a única regra estabelecida por Prosérpina foi a de que a jovem

156
“to name is to help restore individuality”.
157
VIRGIL, 1988, p. 230.
44

deveria seguir atrás do marido até que alcançassem as regiões superiores: “ela seguia atrás (pois
Prosérpina dera esta ordem)” (pone sequens (namque hanc dederat Proserpina legem), v. 487).
De fato, Proteu não esclarece diretamente quais seriam as consequências caso Orfeu olhasse
para trás. Logo, as implicações da regra imposta pela deusa só são vislumbradas versos à frente
(v. 490-502), através de seus efeitos, quando o vate efetivamente volta os olhos para a esposa e
ela, subitamentemente (subito v. 499), lhe escapa.158
Ovídio, por sua vez, brinca com a mordida da cobra nos pés de Eurídice ao afirmar que
ela estava entre as almas recém-chegadas e que andava devagar, incessit passu de uulnere tardo
(caminhou com o passo vagaroso em razão da ferida, v. 48-49), 159 uma passagem que
exemplifica o comentário de Tarrant (2006, p. 62) sobre a relação compositiva entre Ovídio e
seu predecessor: “as apropriações de Ovídio da linguagem virgiliana usualmente contêm um
elemento de travessura, frequentemente transpondo um material de contextos solenes para
cenários humorísticos ou vergonhosos”. 160 Em seguida, o poeta estabelece, prontamente, a
regra e suas consequências caso Orfeu não fosse capaz de cumpri-la, ne flectat retro sua lumina,
donec Auernas exierit ualles; aut irrita dona futura (que não virasse os olhos para trás, até que
tivesse saído para os vales Avernos, ou a dádiva prometida seria inútil, v. 51-52).161
É certo que ambos os autores elaboram o fracasso de Orfeu e sua consequente atitude
de voltar os olhos para Eurídice; no entanto, adotam razões distintas para justificar a falha.
Virgílio se apoia em uma subita dementia (súbita loucura, v. 489), “uma perda de controle
causada pelo amor” 162 (Thomas, em VIRGIL, 1988, p. 230), o que nos soa coerente e
significativo, uma vez que ao longo das Geórgicas (com destaque ao Livro III), o poeta recusa
as paixões; para ele, o amor desmedido invariavelmente leva à loucura e à perdição,163 um efeito
convenientemente ilustrado com a história de Orfeu.

158
Putnam (1979, p. 301), especificamente sobre essa passagem, diz que as formas verbais empregadas por
Virgílio contêm profunda significação para o desfecho trágico da narrativa: “the sequence of verbs conveys
something of the excitement at the crisis. Pluperfects list what had been done to gain this instant of grace. Present
participles and the imperfect veniebat show it coming to be, while reddita seems to give assurance to the outcome
of events begun by referens. These verbs all give place to three perfects that finalize the bitter turn matter take”.
159
Anderson (1972, p. 479) comenta que um detalhe como esse acabaria com o decoro de uma cena épica, caso a
obra se propusse a demonstrar tal característica – essa é uma verdadeira passagem “batética”: “Ovid a little too
realistically pictures Eurydice limping towards her husband, her foot still hurting from the snake bite! The detail
would spoil an epic scene if this were meant to have the decorum of epic”.
160
“Ovid's appropriations of Virgilian language usually contain an element of mischief, often transposing material
from solemn contexts to humorous or disreputable settings.”
161
É possível que Ovídio confiasse que o leitor já estaria à espera dessa informação, acostumado com a adição de
Virgílio à lenda.
162
“A loss of control caused by amor”.
163
Gary Miles (1980, p. 275) confirma a presença dessa noção destrutiva do amor nas Geórgicas III: “Proteus'
depiction of Orpheus as a lover who is overcome by madness (dementia), suggests an analogy between Orpheus'
fateful error and the kinds of helpless self-destruction that, in Georgic 3, was ascribed to the influence of amor”.
Para mais informações sobre o amor em Virgílio, cf. SILVA, 2016.
45

Em contraponto, Ovídio, um elegíaco por natureza, adiciona ao erro de Orfeu as cores


desse gênero164 e atribui sua razão ao medo e à necessidade de ver a esposa (metuens auidusque
uidendi, receoso de que ela o deixasse e ávido por vê-la, v. 56). Logo, este e aquele poetas
transportam a culpa da inadvertência de Orfeu a sentimentos (o amor, o medo, a necessidade)
que hipoteticamente seriam mais fortes que o autocontrole de qualquer homem mortal; com
isso, eles colocam a humanidade do herói em evidência. Para Putnam (1979, p. 302), Orfeu não
é um ser comum; entretanto, “seu lado imortal depende da maravilhosa combinação de palavras
e música, ordenada com um brilhantismo imaginativo para controlar a morte”, 165 um talento
que momentaneamente se perde quando o vate é fisgado pela força dos sentimentos que o
tornam humano (e, por conseguinte, mortal): “sua captura pela loucura significa que a operação
desse dom especial do espírito, que o eleva acima de todos os animais e de seus pares humanos
e que o alia aos deuses, não mais é possível”.166
Ademais, Ovídio ilustra uma Eurídice que em nada se queixa sobre o erro de Orfeu
(Thomas menciona que com isso o poeta “corrige” Virgílio)167 – afinal, do que ela poderia se
queixar? Quid enim nisi se quereretur amatam? (o que, então, exceto se se queixasse de ser
amada?, v. 61) –, e que só é capaz de dizer um tímido uale (adeus, v. 62) antes de retornar para
o lugar de onde veio. Anderson acredita que essa escolha ovidiana de praticamente emudecer a
jovem funciona como uma resposta irônica e brincalhona ao seu taxativo e mais longo discurso
em Virgílio, 168 onde o narrador Proteu dá voz à personagem em versos de uma linguagem
bastante semelhante à elegíaca169 (v. 494-498). Em sua fala nas Geórgicas, Eurídice pergunta
ao marido sobre o tantus furor (enorme delírio, v. 495) que destruiu os dois, o que retoma a
conexão entre o amor e sua resultante loucura; depois, a jovem explica que os destinos a
chamam de volta (crudelia retro fata uocant, os implacáveis destinos me chamam de volta, v.
495-496) e, então, se despede.
Em seguida, os poetas descrevem o desespero dos amantes, que tentam se abraçar para
ficarem juntos, sem sucesso (Georg. IV.501-02 e Met. X.58-59). Rimell (2006, p. 110) observa
que o trecho ne deficeret (de que ela o deixasse, v. 56) das Metamorfoses é ambíguo, podendo

164
BOYLE, 2007, p. 360.
165
“His deathless side relies on the amazing community of words and music, ordered with imaginative brilliance
to control death”.
166
“His capture by madness means that the operation of this special gift of spirit, which elevates him above all
animal and human peers and allies him with the gods, is no longer possible.”
167
“Ovid ‘corrects’ Virgil in claiming Eurydice made no complaint against Orpheus” (THOMAS, 2009, p. 305).
168
“Ovid comments ironically and playfully on the longer, somewhat plaintive speech assigned by Vergil (4.494-
98) to Eurydice. She explicitly there refers to Orpheus' furor and asserts that he has destroyed both her and himself.
Ovid goes to the other extreme and makes his Eurydice so uncomplaining and tight-lipped that she barely ekes out
vale.” (ANDERSON, 1972, p. 480).
169
Richard F. Thomas, em VIRGIL, 1988, p. 231.
46

se referir tanto à Eurídice quanto a Orfeu: “o medo é (ou/e) que ela possa ser fraca e cair para
trás, ou que talvez ele esteja se afastando dela e possa falhar em sua missão de retornar em
segurança para o mundo superior e de manter as condições impostas pelos deuses do mundo
inferior”.170 Nas Geórgicas, porém, não há a mesma reciprocidade descrita por Ovídio e apenas
o marido tenta segurar a esposa: neque illum prensantem nequiquam umbras (e aquele,
agarrando as sombras em vão, v. 500-501).
Após perder Eurídice mais uma vez, Orfeu, atordoado, pede para que Caronte o permita
atravessar o rio novamente, mas recebe uma negativa tanto em uma (Georg. IV.502-03) quanto
em outra obra (Met. X.72-73). O período de luto do amante, entretanto, é significativamente
distinto para os dois poetas e Veiga (2011, p. 73) observa que “Ovídio abranda o peso da dor,
em comparação ao relato virgiliano”. Realmente, nas Metamorfoses, Orfeu recolhe-se,
deprimido e sem alimento, na margem do Estige, por sete dias (v. 73-75), enquanto nas
Geórgicas relata-se que ele chorou a esposa sob um rochedo, junto ao rio Estrímon, por
hiperbólicos sete meses (v. 507-510)!
Após a desventura, Orfeu recolhe-se à solidão. Nas Geórgicas narra-se que sob a mesma
gruta em que o vate chorou Eurídice ininterruptamente, ele também moveu carvalhos e amansou
tigres com seu canto, mulcentem tigris et agentem quercus (acalmando tigres e movimentando
carvalhos, v. 510), uma evocação da divina capacidade órfica de influenciar a natureza com a
música. Nas Metamorfoses, por sua vez, relata-se que o herói se refugiou no monte Hemo (v.
76), onde acusava os deuses infernais de serem cruéis, esse deos Erebi crudeles questus,
(lamentou os deuses do Érebo serem cruéis, v. 76) e que, depois de três anos contínuos de
solidão, sofrendo por Eurídice e recusando as muitas mulheres que o desejavam, o vate abdicou
das relações heterossexuais, refugerat femineam Venerem (renunciara a todo desejo feminino,
v. 79-80) e foi o primeiro, na Trácia, a praticar a pederastia, amorem in teneros transferre mares
citraque iuuentam aetatis breue uer et primos carpere flores (a transferir o amor para os jovens
do sexo masculino antes da idade adulta, e a gozar da breve primavera da vida e das primeiras
florações, v. 83-85).
Virgílio, por outro lado, ignora a lenda de que Orfeu iniciou a homossexualidade entre
os trácios e relata que ele se manteve sozinho a vagar sem rumo, solus Hyperboreas glacies
Tanaimque niualem aruaque Riphaeis numquam uiduata pruinis (solitário, percorria a geleira
hiperbórea, o nevado Tanais, os lavrados campos nunca privados de geadas dos montes Rifeus,

“the fear is (either/both) that she might grow weak and fall back, or lest he might be pulling away from her and
170

might fail in his mission to return safely to the upper world and to keep the conditions laid by the gods of the
underworld”.
47

v. 517-18) enquanto lamentava Eurídice e desdenhava as mulheres Cícones, atitude que


terminaria por levá-lo à morte.
Cabe aqui, ainda, uma pertinente observação de Eigler (2012, p. 359). O teórico afirma
que Virgílio “apenas narra [...] que Orfeu renunciou a Vênus e moveu o frio do norte para cantar
seus miserabile carmine sobre a tristeza do seu amor aos animais e às árvores”,171 ao passo que
Ovídio, desviando-se da concisão virgiliana, dá voz a Orfeu para que ele componha – em
incríveis 600 versos! – uma canção que “retrata as Metamorfoses em uma pequena escala”,172
posto que ela é, na verdade, formada por várias histórias menores de relações problemáticas
entre amantes. Chamadas pelo crítico alemão de erotica pathemata, tais histórias são
consoantes com a descrição de Virgílio quando ele se refere a um miserabile carmen (um canto
digno de compaixão, v. 514) e, no contexto das Metamorfoses, pausam o enredo órfico,
integrando o restante do Livro X. 173 Como resultado, a morte de Orfeu, que é descrita nas
Geórgicas IV na sequência da narração, será desenvolvida, nas Metamorfoses, apenas no início
do Livro XI.

Quarta Parte
Virg. Georg. IV.520-527 e trechos de Ov. Met. XI

Para não concluirmos o trabalho sem a comparação do fechamento das duas narrativas,
utilizaremos a tradução de Paulo Farmhouse Alberto (OVÍDIO, 2007, v. 1-19, p. 265) de alguns
dos versos das Metamorfoses XI.

[...] spretae Ciconum quo munere matres 520


inter sacra deum nocturnique orgia Bacchi
discerptum latos iuuenem sparsere per agros.
Tum quoque marmorea caput a ceruice reuolsum
gurgite cum medio portans Oeagrius Hebrus
uolueret, Eurydicen uox ipsa et frigida lingua 525
ah! miseram Eurydicen anima fugiente uocabat;
Eurydicen toto referebant flumine ripae".
(Virg. Georg. IV.520-527)

“[...] as desdenhadas mulheres Cícones, [520] durante os sacrifícios ao


deus e as orgias do noturno Baco, espalharam o jovem despedaçado
pelos campos extensos. Até mesmo quando o Hebro de Eagro, levando
a cabeça arrancada do marmóreo pescoço, revolvia-a no meio do
turbilhão de água, ‘Eurídice’, a própria voz e a gelada língua [525]

171
“only narrates […] that Orpheus has renounced Venus and has moved the cold north in order to sing his
miserabile carmen about his love’s sorrow to animals and trees”.
172
“depicts the Metamorphoses on a small scale”.
173
EIGLER, 2012, p. 362.
48

clamavam com o sopro vital escapando; ‘oh! Infeliz Eurídice...


Eurídice!’, as margens ecoavam por todo o rio.”

Carmine dum tali siluas animosque ferarum


Threicius uates et saxa sequentia ducit,
ecce nurus Ciconum tectae lymphata ferinis
pectora uelleribus tumuli de uertice cernunt
Orphea percussis sociantem carmina neruis. 5
e quibus una leves iactato crine per auras,
'en,' ait 'en, hic est nostri contemptor!' et hastam
uatis Apollinei uocalia misit in ora,
quae foliis praesuta notam sine uulnere fecit;
alterius telum lapis est, qui missus in ipso 10
aere concentu uictus uocisque lyraeque est
ac ueluti supplex pro tam furialibus ausis
ante pedes iacuit. sed enim temeraria crescunt
bella modusque abiit insanaque regnat Erinys;
cunctaque tela forent cantu mollita, sed ingens 15
clamor et infracto Berecyntia tibia cornu
tympanaque et plausus et Bacchei ululatus
obstrepuere sono citharae, tum denique saxa
non exauditi rubuerunt sanguine uatis.
(Ov. Met. XI.49-85)

Conduzia o vate da Trácia, com tais canções enfeitiçados,


os bosques, as mentes dos animais e pedras que o seguiam,
quando eis que, do cimo de um outeiro, as jovens Cícones,
de peitos possessos, cobertos de peles de animais, avistam
Orfeu conjugando o canto com o dedilhar das cordas.
Uma de entre elas, as leves brisas sacudindo-lhe o cabelo,
vociferou: 'Eis! Eis aqui aquele que nos despreza!'; e o tirso
arrojou contra os melodiosos lábios do vate, filho de Apolo.
Este, bordando-se de folhas, faz-lhe uma marca sem o ferir.
O projéctil da outra é uma pedra: ao ser lançada, a pedra
foi conquistada em pleno ar pela harmonia da voz e da lira,
e caiu de rojo aos pés de Orfeu, como se suplicando perdão
por tão tresloucada ousadia. Porém, os ataques recrudescem
em temeridade. Já não há limites: reina a desvairada Erínia!
E todas as armas o seu canto teria amansado, não fora
o imenso clamor e as flautas Berecíntias de tubo encurvado,
as pandeiretas e as palmas e a gritaria do Bacanal abafarem
o som da cítara. Só então, por fim, as pedras se tingiram
do vermelho do sangue do vate, que já não se fazia ouvir.
(trad. Paulo Farmhouse Alberto)

Como podemos perceber, tal como Virgílio, Ovídio opta pela lenda da morte de Orfeu
pelas mulheres Cícones – entretanto, o primeiro poeta narra imediatamente que o corpo
dilacerado do vate é espalhado pelos campos (v. 522) ao passo que o segundo escolhe,
inicialmente, o apedrejamento; o esquartejamento de Orfeu acontece vários versos adiante,
49

membra iacent diuersa locis (os membros jazem por todos os lados,174 v. 50). Além disso, nas
Metamorfoses, a cabeça e a lira do vate foram atiradas no rio Hebro, caput, Hebre, lyramque
excipis (a cabeça e a lira, Hebro, tu acolhes,175 v. 50-51). Embora não mencione a lira, Virgílio
relata que a cabeça (caput, v. 523) foi lançada no Hebro (v. 524-25) e adiciona que ela
murmurava repetidamente o nome de Eurídice, o que encerra a trágica narrativa.
Não obstante, o desfecho das Metamorfoses para a história excede os limites impostos
pela tradição de Virgílio. Ovídio estende a cena por detalhados 66 versos do Livro XI e a encerra
com um derradeiro encontro de Orfeu e Eurídice nas regiões inferiores, escolha que, em última
análise, nos atesta uma das mais expressivas diferenças entre os dois poetas: se para Virgílio o
amor não prevalece, para Ovídio, ele é o único desfecho possível.

Vmbra subit terras, et quae loca uiderat ante,


cuncta recognoscit quaerensque per arua piorum
inuenit Eurydicen cupidisque amplectitur ulnis;
hic modo coniunctis spatiantur passibus ambo,
nunc praecedentem sequitur, nunc praeuius anteit
Eurydicenque suam iam tuto respicit Orpheus.
(Ov. Met. XI.61-66)

A sombra dele desce para debaixo das terras e reconhece


todos os locais que antes vira. Buscando no Campo dos Pios,
encontra Eurídice e abraça-a nos seus braços desejosos.
Ali passeiam os dois juntos, por vezes lado a lado, ou ela
vai adiante e ele a segue, ou ele a precede, indo diante dela.
E já sem receio, Orfeu olha para trás, para a sua Eurídice.
(Trad. Paulo Farmhouse Alberto)

174
Trad. Paulo Farmhouse Alberto.
175
Trad. Paulo Farmhouse Alberto.
50

IV
CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho, tentamos esclarecer o significado de mito; passamos por


algumas das narrativas órficas na literatura clássica Grega e Latina, tentando estruturar seu
enredo básico e obter um panorama da figura de Orfeu; apresentamos brevemente as biografias
e as obras de Virgílio e Ovídio, com foco nas Geórgicas IV e nas Metamorfoses X e XI; e,
finalmente, depois de expormos brevemente sobre emulação e tradição, analisamos e
comparamos os versos selecionados para o estudo (Georg. IV, 453-527 e Met. X, 1-85).
Logramos, então, perceber algumas das diferenças e das semelhanças mais expressivas
entre as duas narrativas órficas, a saber: Virgílio canoniza o mito em um molde que é
parcialmente seguido por Ovídio, cuja narrativa tem um final original e uma mudança
significativa de timbre, decorrente de seu uso intencional do bathos, através do qual retira todo
o decoro de uma épica “respeitável” e se opõe ao pathos e à seriedade compositiva de seu
predecessor. Nas Geórgicas, os discursos de Orfeu estão sempre implícitos e Eurídice se
pronuncia mais longamente; nas Metamorfoses, Orfeu ganha voz, mas sua esposa não diz nada
além de um “adeus”. O herói virgiliano sofre por sete meses e se abstém de ter uma vida sexual;
o ovidiano sofre por sete dias e, depois, busca a homossexualidade. À medida que Virgílio é
conciso, Ovídio detalha; à proporção que Virgílio é hiperbólico, Ovídio é comedido. Em ambas
as obras, contudo, Orfeu é morto por bacantes enfurecidas – mas enquanto nas Geórgicas tudo
o que resta ao herói é um eterno clamor improfícuo de sua cabeça por Eurídice, nas
Metamorfoses ele reencontra sua amada nas regiões inferiores.
Comprova-se, pois, que Ovídio transforma o contexto grave da história virgiliana em
uma espécie de brincadeira. 176 Como Liveley (2011, p. 100) e Anderson (1972, p. 475)
sintetizam, respectivamente:

Aqui não existe uma metamorfose física, mas essa versão da história de Orfeu,
narrada ao longo dos livros 10 e 11 das Metamorfoses (10.1-11.84) é
efetivamente a transformação da Geórgicas 4 de Virgílio, uma releitura que
transforma tragédia em comédia, e o pathos Virgiliano em um bathos
Ovidiano.177

176
Como afirma Thomas (2009, p. 305), sobre o tratamento estilístico de Ovídio para o mito Órfico: “Ovid’s
stylistic register is utterly differente from that of Virgil’s elevated epyllion, simpler and ‘profaning’ [...] at the
same time there is mischief at work, with humor deflecting the pathos [...]”.
177
“There is no physical metamorphosis here, but this version of the story of Orpheus, narrated across books 10
and 11 of the Metamorphoses (10.1–11.84), is effectively a transformation of Virgil’s Georgics 4, a re-reading that
turns tragedy into comedy, and Virgilian pathos into Ovidian bathos.”
51

Virgílio, através de Proteu, reconta com profunda simpatia o amor de Orfeu, seu
esforço para resgatar Eurídice da morte e a paixão que o levou a olhar para trás,
para ela, antes de alcançarem as regiões superiores. Ovídio, ao contrário, evita
qualquer simpatia convincente e aproveita quase todas as oportunidades de
burlar o pathos.178

Adicionalmente, o desenvolvimento do recorte mitológico de Orfeu nos permite


conjecturar um pouco a respeito da postura dos autores em relação ao amor, ao desejo e ao
canto romântico-elegíaco. Nas Geórgicas, por exemplo, Eurídice é uma das figuras
responsáveis por vários dos prejuízos causados pelo amor:

Ora, o apicultor Aristeu, tomado de desejo, persegue Eurídice que, durante a


fuga, pisa em uma serpente na relva, é picada e morre. A segunda morte é
causada por seu próprio esposo, Orfeu, quando este desce aos Infernos e,
igualmente tomado de desejo, não obedece à recomendação de Perséfone,
acabando por olhar para Eurídice antes do tempo. Com efeito, a própria Eurídice
ressalta o desejo excessivo de Orfeu [...] Em seguida, o próprio Orfeu é morto
pelas Bacantes devido ao seu desdém para com elas. (SILVA, 2016, p. 86)

Com efeito, a negação de um amor exagerado é uma característica marcante do último livro das
Geórgicas.179
Levando em consideração a teoria metalinguística de Conte para a interpretação da
narrativa órfica no poema em questão (p. 24-25), entendemos que a opção de Virgílio pelo mito
de Orfeu como a história encaixada do epílion se justificaria com o propósito de ilustrar a
oposição de duas formas de poesia, uma passiva e uma ativa, respectivamente figuradas pela
poética de Orfeu e pelo comportamento exemplar do mos maiorum de Aristeu. Como resultado,
o inútil clamor final e contínuo do vate por Eurídice representaria a rejeição de uma poética
caracteristicamente elegíaca, fundamentada no canto de um amor irracional e desregrado.180
Vale-nos lembrar, contudo, que Ovídio se estabeleceu como poeta exatamente por meio de
versos elegíacos.
Considerando todos esses aspectos e ponderando que Ovídio naturalmente estimava
desafiar e superar a obra virgiliana, nos questionamos se sua postura “batética” no tratamento
do mito órfico seria somente uma resposta antagônica ao patético de Virgílio, ou se seria, ao
mesmo tempo, uma resposta à recusa metalinguística da elegia pelo seu predecessor. Afinal,
Ovídio elabora um final inesperadamente feliz – e, por que não dizer, romântico? – para a

178
“Vergil, through Proteus, recounts with profound sympathy the love of Orpheus, his effort to regain Eurydice
from death, and the passion which led him to look back at her before reaching the upper air. Ovid, on the contrary,
avoids any convincing sympathy and exploits almost every opportunity to circumvent pathos.”
179
SILVA, 2016, p. 85.
180
CONTE, 1986, p. 136-138.
52

narrativa, com o reencontro dos cônjuges nas regiões inferiores, opondo-se vigorosamente ao
desfecho virgiliano de um lamento infrutífero de um Orfeu desolado, e mostrando, talvez, que
a poética elegia nem sempre é em vão.
Em resumo, Virgílio se apropria do mito órfico de forma singular e adiciona a ele
elementos que se consolidaram a ponto de chegarem aos dias de hoje como componentes
inexoráveis da narrativa órfica. Ovídio respeita a tradição e pressupõe que o leitor tenha
conhecimento da história narrada com maestria pelo poeta que o precedeu, mas não perde a
oportunidade de reinventá-la e de transformá-la. Desse modo, estamos certos de que ambos os
autores nos trazem sublimes versões para apreciação do mito de Orfeu.
53

V
TRADUÇÃO

V.1. Algumas Considerações

Apresentamos, a seguir, o texto original em Língua Latina e a tradução integral para a


Língua Portuguesa, em prosa, dos versos analisados. Optamos por tal formato por crermos que
a versificação seria desnecessária a uma tradução sem pretensões poéticas ou preocupações
métricas como a nossa, além de julgarmos que o modelo em prosa permite maior fluidez de
leitura e melhor assimilação do conteúdo, já que, na Língua Portuguesa, textos narrativos
geralmente são transmitidos através dessa configuração.
Por fim, adicionamos também notas explicativas às passagens que poderiam ser
consideradas mais complexas ou obscuras ao leitor menos familiarizado aos estilos de Virgílio
e Ovídio ou à cultura greco-latina.
54

V.2. Virg. Georg. IV.453-527 – Texto em Língua Latina

Non te nullius exercent numinis irae;


magna luis commissa: tibi has miserabilis Orpheus
haudquaquam ob meritum poenas, ni fata resistant, 455
suscitat et rapta grauiter pro coniuge saeuit.
Illa quidem, dum te fugeret per flumina praeceps,
immanem ante pedes hydrum moritura puella
seruantem ripas alta non uidit in herba.
At chorus aequalis Dryadum clamore supremos 460
implerunt montis; flerunt Rhodopeiae arces
altaque Pangaea et Rhesi Mauortia tellus
atque Getae atque Hebrus et Actias Orithyia.
Ipse caua solans aegrum testudine amorem
te, dulcis coniunx, te solo in litore secum, 465
te ueniente die, te decedente canebat.
Taenarias etiam fauces, alta ostia Ditis,
et caligantem nigra formidine lucum
ingressus Manisque adiit regemque tremendum
nesciaque humanis precibus mansuescere corda. 470
At cantu commotae Erebi de sedibus imis
umbrae ibant tenues simulacraque luce carentum,
quam multa in foliis auium se milia condunt,
Vesper ubi aut hibernus agit de montibus imber,
matres atque uiri defunctaque corpora uita 475
magnanimum heroum, pueri innuptaeque puellae
impositique rogis iuuenes ante ora parentum;
quos circum limus niger et deformis harundo
Cocyti tardaque palus inamabilis unda
alligat et nouiens Styx interfusa coercet. 480
55

V.3. Virg. Georg. IV, 453-527 – Tradução em Prosa

“As iras de algum poder divino o atingem; você expia grandes faltas: o infeliz Orfeu,
sem o merecer, está violentamente furioso pela esposa raptada e, a menos que os fados se
oponham, [455] instiga-lhe estes castigos. Pois ela, garota que haveria de morrer, enquanto
fugia de você, descendo o rio, não viu, diante dos pés, uma horrível cobra d’água que habita as
margens da alta relva. Logo, um coro harmonioso de Dríades181 [460] encheu os cumes dos
montes com um clamor; choraram as cidadelas de Ródope,182 e o alto Pangeu,183 e os domínios
belicosos do Reso, e também os Getas e Hebro, e Orítia da Ática.184 O próprio [Orfeu], com a
lira côncava, procurando aliviar o triste amor, a você, doce esposa, no litoral, a você, ao nascer
do dia, [465] a você, ao cair do dia, cantava ensimesmado. Até mesmo foi para as entradas dos
infernos, atravessou as ilustres portas de Plutão e caminhou no bosque obscurecido pelo
sombrio medo, e se aproximou dos Manes,185 e do rei que faz tremer, e dos corações incapazes
de cederem às súplicas humanas. [470]
“E vinham do fundo da morada do Érebo186 as sombras emocionadas pelo canto e os
leves fantasmas dos carentes de luz, tal como muitos milhares de pássaros se escondem nas
folhagens quando Vesper187 ou a chuva de inverno os conduzem dos montes,188 mães e maridos
e corpos com vida terminada [475] de nobres heróis e meninos e castas meninas e jovens
colocados nas piras diante dos olhos dos pais; em volta dos quais o negro lodo e a disforme
cana do Cócito189 e o odioso pântano de vagarosa água se apertam, e o Estige,190 nove vezes
circundado, reprime. [480]

181
Ninfas dos bosques.
182
Outro nome para a Trácia.
183
Monte entre a Trácia e a Macedônia.
184
“The Geatae are people, Hebrus is the river down which Orpheus’ head will roll (523-7), and Attic Orithyia
was the daughter of Erechtheus who married the North wind” (Thomas em VIRGIL, 1988, p. 227).
185
Aqui, as almas dos mortos.
186
Um dos nomes para os infernos.
187
A estrela da tarde.
188
“The shades are compared to the number of birds which settle in the foliage when evening or rain approaches
[…]” (Thomas em VIRGIL, 1988, p. 228).
189
Um dos rios do submundo.
190
Um dos rios das regiões infernais, no qual Caronte, o barqueiro, atravessa as almas para o outro lado.
56

Quin ipsae stupuere domus atque intima Leti


Tartara caeruleosque implexae crinibus angues
Eumenides tenuitque inhians tria Cerberus ora
atque Ixionii uento rota constitit orbis.
Iamque pedem referens casus euaserat omnis 485
redditaque Eurydice superas ueniebat ad auras
pone sequens (namque hanc dederat Proserpina legem),
cum subita incautum dementia cepit amantem,
ignoscenda quidem, scirent si ignoscere Manes:
restitit Eurydicenque suam iam luce sub ipsa 490
immemor heu! uictusque animi respexit. Ibi omnis
effusus labor atque immitis rupta tyranni
foedera, terque fragor stagnis auditus Auerni.
Illa: “Quis et me”, inquit, “miseram et te perdidit, Orpheu,
quis tantus furor? En iterum crudelia retro 495
fata uocant conditque natantia lumina somnus.
Iamque uale: feror ingenti circumdata nocte
inualidasque tibi tendens, heu! non tua, palmas.”
Dixit et ex oculis subito, ceu fumus in auras
commixtus tenuis, fugit diuersa, neque illum, 500
prensantem nequiquam umbras et multa uolentem
dicere praeterea uidit; nec portitor Orci
amplius obiectam passus transire paludem.
Quid faceret? Quo se rapta bis coniuge ferret?
Quo fletu Manis, quae numina uoce moueret? 505
Illa quidem Stygia nabat iam frigida cymba.
Septem illum totos perhibent ex ordine mensis
rupe sub aeria deserti ad Strymonis undam
fleuisse et gelidis haec euoluisse sub antris
mulcentem tigris et agentem carmine quercus. 510
57

E até a morada da própria Morte e o mais fundo Tártaro 191 estiveram entorpecidos, e as
Eumênides,192 com serpentes marinhas entrelaçadas nos cabelos, e Cérbero,193 ávido, conteve
as três bocas e a roda de Íxion194 parou com o vento.
“E o que agora refaz os passos se livrara de toda a desventura e, [485] com Eurídice
restituída, voltava ao mundo superior. Ela seguia atrás (pois Prosérpina dera esta ordem),
quando súbita loucura se apoderou do imprudente amante, [loucura] que, todavia, deveria ser
perdoada, se os Manes soubessem perdoar: parou, já sob a própria luz do sol e, esquecido [da
ordem] [490] e vencido no espírito, ah! voltou os olhos para sua Eurídice. Aí, todo o esforço se
perdeu, pois rompidos os pactos do cruel tirano, três vezes um estrondo foi ouvido nos pântanos
do Averno.195 Aquela diz: ‘que enorme delírio destruiu a mim, infeliz, e a você, Orfeu? Eis que,
de novo, [495] os implacáveis destinos me chamam de volta e o sono domina meus olhos
oscilantes. E agora, adeus! Sou levada, rodeada pela vasta noite, estendendo as fracas mãos a
você, não mais sua.’ Disse e, subitamente, como tênue fumaça misturada aos ares, desapareceu
dos olhos na direção oposta, [500] e aquele, agarrando as sombras em vão e desejando dizer
muitas coisas, não mais a viu: ademais, nem o barqueiro do Orco196 lhe permitiu atravessar a
barreira do pântano. O que faria? Para onde iria, tendo a esposa duas vezes raptada? Com que
pranto moveria os Manes, que outros numes [moveria] com sua voz? [505] Aquela, gelada,
certamente já navegava na canoa do Estige.
Contam aquele ter chorado sucessivamente por sete meses sob o elevado rochedo junto
da água do isolado Estrímon197 e ter narrado esta [história] sob a gruta gelada, acalmando tigres
e movimentando carvalhos com a canção. [510]

191
Localização mais profunda e horrível dos infernos.
192
Nome dado às três Fúrias, ou Erínias, Alecto, Megera e Tisífone, deusas da vingança e da justiça, puniam os
homens transgressores das ordens da natureza; cf. THEOI, 2016a.
193
Cão infernal de três cabeças.
194
Mortal que durante um banquete em que fora convidado por Júpiter, tentou conquistar Juno; como punição pela
audácia, foi preso em uma roda que está fadada a girar eternamente nas regiões infernais; cf. GREEK MYTH
INDEX, 2016b.
195
Vale onde se localiza um lago da Campânia, local em que os poetas consideram estar os infernos.
196
Outro nome para designar as regiões infernais.
197
Rio da Trácia.
58

Qualis populea maerens Philomela sub umbra


amissos queritur fetus, quos durus arator
obseruans nido implumis detraxit; at illa
flet noctem ramoque sedens miserabile carmen
integrat et maestis late loca questibus implet. 515
Nulla uenus, non ulli animum flexere hymenaei.
Solus Hyperboreas glacies Tanaimque niualem
aruaque Riphaeis numquam uiduata pruinis
lustrabat raptam Eurydicen atque inrita Ditis
dona querens; spretae Ciconum quo munere matres 520
inter sacra deum nocturnique orgia Bacchi
discerptum latos iuuenem sparsere per agros.
Tum quoque marmorea caput a ceruice reuolsum
gurgite cum medio portans Oeagrius Hebrus
uolueret, Eurydicen uox ipsa et frigida lingua 525
ah! miseram Eurydicen anima fugiente uocabat;
Eurydicen toto referebant flumine ripae.
59

Tal qual a aflita Filomela198 que sob a sombra do choupo lamenta os filhotes perdidos, os quais
o rude lavrador vigilante arrancou, implumes, do ninho; e ela chora a noite, pousada em um
galho, e recomeça um canto digno de compaixão, e com abatidas lamentações enche ares
distantes. [515]
Nenhum amor, nenhuma união mudaram o espírito. Solitário, percorria a geleira
hiperbórea,199 o nevado Tanais,200 os lavrados campos nunca privados de geadas dos montes
Rifeus,201 lastimando a raptada Eurídice e o malogrado presente de Plutão. As desdenhadas
mulheres Cícones, [520] durante os sacrifícios ao deus e as orgias do noturno Baco, espalharam
o jovem despedaçado pelos campos extensos. Até mesmo quando o Hebro de Eagro,202 levando
a cabeça arrancada do marmóreo pescoço, revolvia-a no meio do turbilhão de água, ‘Eurídice’,
a própria voz e a gelada língua [525] clamavam com o sopro vital escapando; ‘oh! Infeliz
Eurídice... Eurídice!’, as margens ecoavam por todo o rio.”

198
O pássaro rouxinol.
199
Setentrional.
200
Atualmente chamado Don, é o rio que separa a Europa da Ásia.
201
Montes na Cítia.
202
Um rio da Trácia.
60

V.4. Ov. Met. X.1-85 – Texto em Língua Latina

Inde per inmensum croceo uelatus amictu


aethera digreditur Ciconumque Hymenaeus ad oras
tendit et Orphea nequiquam uoce uocatur.
Adfuit ille quidem, sed nec sollemnia uerba
nec laetos uoltus nec felix attulit omen. 5
Fax quoque, quam tenuit, lacrimoso stridula fumo
usque fuit nullosque inuenit motibus ignes.
Exitus auspicio grauior; nam nupta per herbas
dum noua Naiadum turba comitata uagatur,
occidit in talum serpentis dente recepto. 10
Quam satis ad superas postquam Rhodopeius auras
defleuit uates, ne non temptaret et umbras,
ad Styga Taenaria est ausus descendere porta;
perque leues populos simulacraque functa sepulcro
Persephonen adiit inamoenaque regna tenentem 15
umbrarum dominum pulsisque ad carmina neruis
sic ait: “o positi sub terra numina mundi,
in quem reccidimus, quicquid mortale creamur;
si licet et falsi positis ambagibus oris
uera loqui sinitis, non huc, ut opaca uiderem 20
Tartara, descendi, nec uti uillosa colubris
terna Medusaei uincirem guttura monstri;
causa uiae coniunx, in quam calcata uenenum
uipera diffudit crescentesque abstulit annos.
Posse pati uolui nec me temptasse negabo; 25
uicit Amor. Supera deus hic bene notus in ora est;
an sit et hic, dubito; sed et hic tamen auguror esse;
famaque si ueteris non est mentita rapinae,
uos quoque iunxit Amor. Per ego haec loca plena timoris,
per Chaos hoc ingens uastique silentia regni, 30
Eurydices, oro, properata retexite fata.
61

V.5. Ov. Met. X. 1-85 – Tradução em Prosa

Daí, pela imensidão dos céus, envolvido em um manto dourado, Himeneu203 se retirou,
e aos litorais dos Cícones, chamado pela voz de Orfeu, dirigiu-se em vão. Ele compareceu,
certamente, mas nem as palavras festivas, nem os olhos contentes, nem o feliz voto levou; [5]
também a tocha que segurava esteve sempre sibilante com o fumo que provoca lágrimas, mas
não acendeu fogo, apesar das sacudidelas.
O desfecho é mais triste do que o presságio. 204 De fato, enquanto a recém-casada
vagueia pelas relvas, acompanhada por um grupo de Náiades,205 morre com o dente de uma
serpente cravado no calcanhar. [10] Depois que o poeta de Ródope muito lamentou no mundo
superior atreveu-se a descer, para que tentasse também as trevas, até o Estige, pela porta de
Ténaro 206 e, através de povos insubstanciais e fantasmas que foram sepultados, alcançou
Perséfone e o Senhor das Sombras,207 [15] governante dos horríveis domínios; e, tocando as
cordas em versos, assim diz:
“Ó, divindades de um mundo situado sob a terra para o qual nós, todos os que somos
criados mortais, recairemos, se for permitido e vocês consentirem, abandonando os rodeios de
uma fala falsa, narrarei a verdade; não desci até aqui para ver o Tártaro sombrio, [20] nem para
domar as três cabeças208 do monstro meduseu,209 eriçadas como cobras; a causa da viagem é a
minha esposa, na qual uma víbora, ao ser pisada, inoculou o veneno e da qual arrancou os anos
da juventude. Desejei ser capaz de suportar, e não negarei ter tentado: [25] o Amor venceu! Ele
é um deus bem conhecido na região superior, e me pergunto se o é neste lugar. Mas, em todo
caso, penso que ele esteja aqui, [pois] se a fama do antigo rapto não é uma mentira, também o
Amor os uniu. Por estes lugares cheios de terror, por este vazio gigantesco e pelos silêncios do
profundo reino, [30] eu imploro, desfaçam o destino precipitado de Eurídice!

203
Deus do casamento, ou mais propriamente, deus do hino nupcial. Por sua relação com a música, diz-se ser filho
de Apolo e alguma musa.
204
O presságio é aquele trazido pela tocha que, mesmo agitada, não se acendia.
205
Ninfas das águas. Vivem em rios, lagos e fontes.
206
Local da entrada dos infernos.
207
O deus Plutão.
208
Cérbero, o cão de três cabeças.
209
Sobre a relação de Cérbero com a medusa: “Medusaei: the dog had power similar to Medusa’s: a glance at him
turned one into stone” (ANDERSON, 1972, p. 477).
62

Omnia debentur uobis paulumque morati


serius aut citius sedem properamus ad unam.
Tendimus huc omnes, haec est domus ultima uosque
humani generis longissima regna tenetis. 35
Haec quoque, cum iustos matura peregerit annos,
iuris erit uestri; pro munere poscimus usum.
Quod si fata negant ueniam pro coniuge, certum est
nolle redire mihi; leto gaudete duorum!”
Talia dicentem neruosque ad uerba mouentem 40
exsangues flebant animae; nec Tantalus undam
captauit refugam stupuitque Ixionis orbis,
nec carpsere iecur uolucres urnisque uacarunt
Belides inque tuo sedisti, Sisyphe, saxo.
Tunc primum lacrimis uictarum carmine fama est 45
Eumenidum maduisse genas; nec regia coniunx
sustinet oranti, nec qui regit ima, negare
Eurydicenque uocant; umbras erat illa recentes
inter et incessit passu de uulnere tardo.
Hanc simul et legem Rhodopeius accipit Orpheus, 50
ne flectat retro sua lumina, donec Auernas
exierit ualles; aut irrita dona futura.
Carpitur accliuis per muta silentia trames,
arduus, obscurus, caligine densus opaca.
Nec procul afuerant telluris margine summae; 55
hic, ne deficeret, metuens auidusque uidendi,
flexit amans oculos et protinus illa relapsa est;
bracchiaque intendens prendique et prendere certans,
nil nisi cedentes infelix adripit auras.
63

Todas as coisas lhes são reservadas, e mesmo com um pouco de demora, mais cedo ou mais
tarde, precipitamo-nos à única morada. Todos nos dirigimos a este lugar, esta é a habitação
última, e vocês mantêm os mais extensos reinos do gênero humano. [35] Eurídice também,
idosa, quando tiver levado ao fim os justos anos, será do direito de vocês: pedimos o usufruto
[dessa vida]210 como um presente. Porque, se os destinos negam o favor à minha mulher, é certo
não me deixarem regressar: deleitem-se com a morte de ambos!”.
Dizendo tais coisas e tocando as cordas junto das palavras, [40] as almas desprovidas
de sangue choravam; nem Tântalo211 buscou alcançar a água fugitiva, e a roda de Íxion ficou
imóvel, nem abutres bicaram o fígado,212 e estiveram livres dos jarros as Bélides,213 e você
sentou, ó Sísifo,214 em sua rocha. Então, diz-se que, pela primeira vez, as faces das Eumênides,
vencidas pela canção, [45] estiveram molhadas pelas lágrimas, e nem a esposa real e nem o que
governa os infernos ousam dizer não ao suplicante, e chamam Eurídice. Ela estava entre as
sombras recém-chegadas e caminhou com o passo vagaroso em razão da ferida. E logo o herói
de Ródope recebeu esta ordem: [50] que não virasse os olhos para trás, até que tivesse saído
para os vales Avernos, ou a dádiva prometida seria inútil.
Um caminho íngreme, árduo, escondido e coberto com um nevoeiro sombrio é
percorrido por entre obscuros silêncios. Não estavam longe da fronteira da região mais elevada:
[55] nesta altura, receoso de que ela o deixasse e ávido por vê-la, o amante virou os olhos: no
mesmo instante, ela retornou, e estendendo os braços e lutando por ser segurado e por segurá-
la, o infeliz nada agarrou, a não ser os ares que recuavam.

210
Optamos por essa tradução adaptada do trecho visando o entendimento da leitura feita por Anderson (1972, p.
478): “usum: Ovid refers to a commonplace metaphor for life as a loan to be used, not a possession [...] so Orpheus
pleads with the ‘owners’ that they lend back to Eurydice her unfinished years”.
211
Mortal que ofereceu como jantar para os deuses o próprio filho, com o intuito de testar-lhes a divindade; sedento
e faminto, ele foi condenado à uma eternidade de tentar beber as águas de um lago e recolher as frutas de uma
árvore que fogem de suas mãos; cf. GREEK MYTH INDEX, 2016d.
212
A passagem refere-se a Títio, um gigante que atormentou a deusa Leto. Foi morto por um filho da deusa e
condenado a ser preso nos infernos, tendo o fígado diariamente reconstituído e, depois, destruído por abutres; cf.
ANDERSON, 1972, p. 478 e THEOI, 2016b.
213
As Bélides, ou Danaides, eram as filhas de Danaus. Elas se casaram com os cinquenta filhos de Egito – mas
cumprindo uma promessa que fizeram ao próprio pai, decapitaram os maridos na noite de núpcias. Foram punidas
pelo crime sendo obrigadas a, eternamente, tentar encher de água jarros furados; cf. GREEK MYTH INDEX,
2016a.
214
Rei de Corinto, Sísifo foi um homem fraudulento, avarento e ambicioso. Por consequência de seu caráter vicioso,
após a morte foi obrigado a empurrar, pela eternidade, uma enorme pedra de mármore até o topo de um monte,
somente para vê-la rolar para baixo novamente; cf. GREEK MYTH INDEX, 2016c.
64

Iamque iterum moriens non est de coniuge quicquam 60


questa suo (quid enim nisi se quereretur amatam?)
supremumque “uale,” quod iam uix auribus ille
acciperet, dixit reuolutaque rursus eodem est.
Non aliter stupuit gemina nece coniugis Orpheus
quam tria qui timidus, medio portante catenas, 65
colla canis uidit, quem non pauor ante reliquit
quam natura prior, saxo per corpus oborto;
quique in se crimen traxit uoluitque uideri
Olenos esse nocens, tuque, o confisa figurae,
infelix Lethaea, tuae, iunctissima quondam 70
pectora, nunc lapides, quos umida sustinet Ide.
Orantem frustraque iterum transire uolentem
portitor arcuerat; septem tamen ille diebus
squalidus in ripa Cereris sine munere sedit;
cura dolorque animi lacrimaeque alimenta fuere. 75
Esse deos Erebi crudeles questus, in altam
se recipit Rhodopen pulsumque aquilonibus Haemum.
Tertius aequoreis inclusum Piscibus annum
finierat Titan omnemque refugerat Orpheus
femineam Venerem, seu quod male cesserat illi, 80
siue fidem dederat; multas tamen ardor habebat
iungere se uati; multae doluere repulsae.
Ille etiam Thracum populis fuit auctor amorem
in teneros transferre mares citraque iuuentam
aetatis breue uer et primos carpere flores. 85
65

E agora, morrendo pela segunda vez, não se queixou de algo sobre seu marido [60] (o
que, então, exceto se se queixasse de ser amada?) e, pela última vez diz “adeus”, o que ele já
mal escutou, e é devolvida, novamente, ao mesmo lugar. Orfeu estava aturdido com a dupla
morte da esposa, tal como aquele que, medroso, viu as três cabeças do cão que traz correntes
na do meio,215 [65] a quem o pavor deixou não mais do que a natureza anterior, com a pedra se
alastrando pelo corpo; tal como aquele Oleno que atraiu o crime para si, e quis ser considerado
culpado, e você, infeliz Lethea,216 convicta de sua imagem; os que, outrora, eram os corações
mais unidos, [70] mas [que] agora são pedras, as quais o Ida217 mantém úmidas.
E o barqueiro impediu o que inutilmente suplicava, desejando, novamente, atravessar [o
Estige]; por fim, durante sete dias, ele, esquálido, esteve sentado na margem sem ingerir comida;
o tormento, a dor do espírito e as lágrimas foram seus alimentos. [75] Lamentou os deuses do
Érebo serem cruéis, e se recolheu à alta Ródope e ao Hemo218 agitado pelos ventos do norte.
O terceiro Titã219 encerrara o ano limitado pelos marítimos Peixes, e Orfeu renunciara
a todo desejo feminino, ou pelo mal que sucedera a ele, ou porque proferira um juramento; [80]
contudo, a paixão trazia várias [mulheres] para se unirem ao poeta: muitas, repelidas, sofreram.
De fato, ele foi o primeiro entre os povos da Trácia a transferir o amor para os jovens do sexo
masculino antes da idade adulta, e a gozar da breve primavera da vida e das primeiras florações.
[85]

215
Anderson (1972, p. 480) explica a cena: “Ovid refers to an otherwise unknown man who saw Hercules bringing
Cerberus to Eurystheus […] and turned to stone. [...] Hercules has put a chain around one neck [...] and is probably
dragging the reluctant beast along. In other versions, Hercules carries him. The thematic link between Orpheus
and this man depends upon the fact that both had a fearful experience of death and been metamorphosed. Orpheus
is ‘petrified’ only for a short time”.
216
É Anderson (1972, p. 481) que novamente elucida a passagem um pouco obscura: “Lethaea, from the region of
Mt. Ida (Crete or Troy) was so proud of her beauty (confisa figurae 69) that she provoked the anger of some deity
like Venus with an invidious comparison. As a result, the goddess petrified the bauty. Lethaea’s devoted husband
Olenos wanted to save his guilty wife by assuming her punishment. The merciless goddess only allowed him to
share Lethaea’s fate as another stone. It is clear that Orpheus would long to share death with Eurydice […]”.
217
Monte da Frígia, célebre por um número de acontecimentos, como o julgamento de Páris ou o rapto de
Ganimedes.
218
Monte da Trácia.
219
O sol. Ao relacionar-se com os peixes, último signo do zodíaco e a marca do final do ano, Ovídio estava
pensando no antigo calendário romano e quis marcar o início da primavera; cf. ANDERSON,1972, p. 481.
66

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