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Fio de Corte

I.
A primeira vista, a leitura me teve um quê de Graciliano Ramos, não sei por quê.
Não quero soar redutivo com a ideia de que quem escreve sobre cenários de sertão
são todos iguais (inclusive, fui pesquisar onde se passava Torto Arado nesse ponto,
e isso me fez lembrar que sempre que eu penso na Chapada Diamantina eu acho que é
em Minas Gerais nos primeiros dois segundos por causa do nome 'Diamente'. Enfim
fatos curiosos sobre o pensamento de um Oliver), mas existe alguma similaridade nas
descrições, pelo menos na minha memória que acho extremamente agradável. É uma
forma muito sensível de escrita - sensível no sentido de que flexiona os seus
sentidos. São descritos cheiros, texturas, mais do que visuais estereis. Isso me
lembra um tanto o que a Agatha Christie mesmo faz com os visuais, detalhando-os de
forma a torná-los vívidos na sua cabeça, e não apenas um cenário pouco renderizado
de videogame. Me demorei nessa análise mas é que eu acho escritas assim muito
agradáveis.
.
Logo ao começar a leitura pensei 'Fui traumatizado pela Conceição Evaristo!', pois
previ uma tragédia vendo as meninas pegando a faca. Um período lendo os contos de
Olhos D'Água me fizeram imaginar catástrofes com os personagens a todo o tempo.
O cenário todo me é muito familiar. Eu não cresci no interior e acho até estranho
comentar que acho familiar já que na minha percepção eu sou inserido nesse cenário
tal qual o primo loiro do Chico Bento. Mas não nego que é familiar. Minhas memórias
de infância das férias e, enfim, tempo em Arapiraca me rementem muito a isso tudo.
Volta ao sensível, são cheiros e ruídos similares. É um calor similar, e visões
também. É esquisito de descrever então não me atrevo a tentar ir mais que isso,
porém memórias foram despertadas.
Ao tocar no hábito de Donana de falar sozinha e a reação das pessoas a isso
reavivou uma discussão que está em alta em meu ciclo. A maioria dos meus parentes
aqui em Arapiraca tem mais de 60 anos. Minha tia mais velha que mora aqui com meu
pai fez 81 há dois dias, e essa semana levamos-a num geriatra, pois já faz um mês
que ela tem piorado no que diz respeito a sua ciência. Há um mês ela não reconhece
essa casa, em que vive há mais de 20 anos, como sua. Vive perguntando quando vai
voltar para casa de verdade. Ela se esquece do que comeu, se comeu, e tem muita
confusão com o tempo cronológico dos dias. Um dia, até acordou de madrugada e não
aceitava quem dissesse que era tarde e hora de dormir, para ela estavam todos
mentindo. Pensei então sobre como já tive uma tia cujo Alzheimer avançou muito,
esta já falecida, e como tenho outra cuja memória no momento não dura mais do que,
com sorte, uns 15 minutos, que é quando eu tenho que me apresentar outra vez para
ela quando vou visitar. Estávamos num debate sobre senilidade, sobre
envelhecimento. Sobre se o que sempre se chamou de demência não seria na verdade
alzheimer, só não tinhamos esse nome para denominar. No entanto todo esse processo
de procurar um geriatra para receitar medicamentos que ajudem a retardar esse
processo, ou fazer com que ele ocorra de forma mais suave, sutil, e o pavor que mi
parceire demonstrou quando eu relatei sobre toda essa situação, me fez pensar sobre
a naturalidade do envelhecer, e como é um assunto complexo e não muito debatido. Em
conversas casuais falamos nossas opiniões sobre a vida e sobre a morte e sobre
crescer e se reproduzir, mas não falamos sobre nossa visão do envelhecer. Lembrei
como existem pessoas que tem medo desse processo. Notei o quanto eu não tenho medo
desse processo, mas notei também o quão nuanceado ele é, e o quanto eu preciso
conversar sobre isso um dia. Com amigos ou colegas. E talvez trabalhar com/sobre
também. Me surgiu um interesse.

II.
Eu estava certo quando pensei que algo ia dar errado. Inclusive cortes na boca me
dão muita agonia estou aguentando firme aqui.
Salustiano era o nome do meu bisavô e o nome da rua onde eu estou agorinha. Eu vou
terminar esse livro ou esse livro vai me terminar?
Incrível o quanto sempre me demora uns segundos para visualizar pessoas pretas em
contextos de sertão. Não sei se porque minha família é majoritariamente branca e
descendente indigena, ou se foi a adaptação das mídias escritas para a TV e o
cinema que fizeram isso. Mas visão ajustada, seguimos a leitura.
Novamente, ferimento na língua meu deus que gastura.
Elas andando de carro pela primeira vez me lembra minhas primas que não tinham
costume de andar de carro e ficavam com enjoo e passando mal toda vez. Hoje em dia
isso mudou, Arapiraca mudou tanto em tão pouco tempo, mas até meus 9 anos eu lembro
como era difícil sair com elas.
E mais desgraças se seguem.
III.
Natimortos e crianças que não vingam são algo muito presente na história da minha
família. Minha mãe teve dois irmãos que não chegaram a nascer, meu pai teve alguns
que não chegaram a crescer.
Embora eu suponha que tenha sido a Bibiana que perdeu a língua, é notável o quanto,
principalmente agora, mas desde sempre durante a história, Belonísia e ela são
tratadas como uma unidade pela narrativa.
E isso se confirmou dois parágrafos depois, yay!
IV.
Donana está viva. Que bom.
Sem muitas análises específicas nesse pois acho que já as fiz no capítulo anterior.
V.
Donana não está mais viva. Que dó.
Deixo aqui novamente meu apreço por como livro nunca lhe revela quem perdeu a
língua, pelo menos até então. Estou no momento completamente comprado pela história
e apaixonado sinceramente. Baita escrita.
O texto continua nos fazendo pensar sobre individualidade, sobre a diferenciação de
indivíduos. A cena com as moças gêmeas. Wow.
VI.
Eu tinha escrito um bocado sobre como o texto fala do que nosso conhecimento chama
de saúde mental, e enfim, para não reescrever tudo, até porque não tenho capacidade
disso, queria apenas deixar aqui que admiro muito o conhecimento tradicional em se
tratando da cura, ou pelo menos do cuidar.
Eu acho toda a conexão com o 'misticismo' (não sei se gosto desse termo para isso,
porém é a melhor palavra que encontro no momento), dos encantos do Zeca e da forma
e da situação em que Crispiana foi encontrada. Minha avó diria que é uma alma, que
a verdadeira se foi e ficou uma alma habitando no lugar ou coisa parecida.
Ao mesmo tempo nesse capítulo reflito sobre, como aprendemos na disciplina do
Rodrigo recentemente, mas em tantas outras anteriores, como é vista a pessoa 'não
normal', a pessoa 'doente mental', e a animalização desta com o ato de laçamento.
Isso tudo me remete a essas discussões.

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