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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
HISTÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL
MÁRCIO LIMA DE ANDRADE FILHO

ENTRE A INSTITUCIONALIZAÇÃO E A CULTURA POPULAR:


TOMBAMENTOS DE TERREIROS DE CANDOMBLÉ

"A música é a língua materna de Deus. Foi isso que nem católicos nem protestantes
entenderam: que em África os deuses dançam. E todos cometeram o mesmo erro: proibiram os
tambores. Na verdade, se não nos deixassem tocar os batuques, nós, os pretos, faríamos do
corpo um tambor. Ou mais grave ainda: percutiríamos com os pés sobre a superfície da terra e,
assim, abrir-se-iam brechas no mundo inteiro".
"Sombras da água" - Mia Couto

No Brasil, o campo do patrimônio cultural começou a ganhar espaço e


estrutura no início do século XX, sobretudo, com a forte presença de Mário de
Andrade. O escritor foi requisitado pelo governo do Estado Novo para produzir um
projeto de preservação do Patrimônio Artístico Brasileiro, porém a sua orientação,
ao final, não foi a estrutura basilar da lei que se consolidou na esfera do campo
Federal da patrimonialização. O motivo se deu pelo fato das ideias e objetivos
culturais indagados por Mário estarem em real oposição a ideologia varguista do
período. A proposta de Mário tinha como fator preservar os bens culturais nacionais
como um todo, incluindo nesse conjunto os hábitos e crenças populares. Em suma,
observa-se, a título de exemplo, o anteprojeto do autor como o trabalho mais
corporativo dele, que resultou, posteriormente, na criação de Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Nessa perspectiva, de acordo com o que já
foi visto, o texto de Mário de Andrade é imensamente inovador e revolucionário nas
propostas, que vieram a ser inseridas na legislação brasileira alguns anos após a
elaboração do projeto, na Constituição de 1988.
Diante desta contextualização de como se formou a institucionalização do
campo do patrimônio cultural brasileiro, urge discorrer a cerca das problemáticas a
respeito do patrimônio negro, dando ênfase no tombamento dos terreiros de
candomblé e os impasses que este bem está imerso. É bem sabido que o racismo
brasileiro se instaurou tão solidamente na estrutura do país que alcança esferas
legislativas, culturais e sociais, e no campo da patrimonialização não foi diferente. O
protagonismo dado a uma classe social e a uma raça durante a escolha dos bens
culturais que mereceriam o tombamento, foram fatores expoentes na construção de
uma política de tombamentos concentrada na valorização de uma cultura branca e
uma subalternização do patrimônio da cultura afro-brasileira. Por esse ângulo,
diversos bens culturais de imensa importância para o povo preto brasileiro ficaram
de fora dos processos de tombamento. Com isso, nessa política de desvalorização
do Estado para com os patrimônios afro-brasileiros, ficou de fora ou foram
demolidos diversos terreiros de candomblé e umbanda, bem como outros espaços
de cultuamento de religião de matriz africana em solo brasileiro, não à toa, a
primeira casa de candomblé a ser reconhecida pelo IPHAN e tombada como
patrimônio imaterial foi o terreiro Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Ilé Áṣę Ìyá Nàsó Ǫká),
conhecido como Casa Branca, em 1984, há exatos 47 anos após a criação do
SPHAN.
A catalogação dos locais dos terreiros para realização dos tombamentos, em
um primeiro momento foi feita nos estados do Rio de Janeiro e no Distrito Federal.
Apesar de não ser um modelo oficial de preservação, o Inventário de Referência
Culturais (INRC) é um dos métodos do IPHAN que possibilita analisar e concretizar
essa justificativa de atuação da forma compartilhada com a sociedade, grupos e
indivíduos que compõem e preservam espaços culturais de origem material e
imaterial.
Em relação ao primeiro terreiro tombado, supracitado, diversos conselheiros
do Iphan que fizeram parte do processo de tombamento em 84, declararam que não
era possível produzir o tombado de uma religião, compreendiam que o
reconhecimento de vários templos da religião católica como patrimônio se deu,
unicamente, por razões estéticas e arquitetônicas. Naquela altura, não existia um
processo legal para a preservação do patrimônio imaterial, pois, esta ferramenta só
veio a ser criada em 2000, por meio de um decreto que passou a institucionalizar o
registro de bens culturais de natureza imaterial. Dessa forma, o tombamento era o
único modo de proteção, assegurada por meio do decreto de 1937 (ano criação do
SPHAN), que estruturava a preservação do patrimônio histórico e artístico.
Refletir acerca das práticas de tombamento dos terreiros de candomblé
encaminha, em uma primeira análise, ao método de preservação física do espaço.
O que gerou diversos debates no campo de patrimônio foi a questão da
dinamicidade do espaço geográfico dos terreiros já que, o bem material em questão
não é um espaço em que sua estrutura se estabiliza em uma inércia, pois, para os
adeptos da religião, o terreiro é um espaço vivo e repleto de energias dos orixás que
se modificam e que, consequentemente, altera a estrutura do espaço. O que se
analisa, hodiernamente, é que ainda se faz necessário a ampliação desse debate
devido ao fato de apenas 9 terreiros terem sido tombados até o momento. Outra
importante questão discutida no que se refere a esse tema é a importância do
tombamento para além da preservação do espaço e dos ritos, pois, os o
reconhecimento do local como patrimônio também servem para a proteção desses
lugares que são constantemente invadidos e deteriorados devido ao racismo e a
intolerância religiosa que assola o Brasil.
No que se refere à educação patrimonial, a partir da Lei n. 10.639 de 2003,
sancionada após diversas mobilizações e lutas do movimento negro, que tinha
como viés adotar a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e
africana nos currículos escolares da educação básica brasileira, urgiu uma
necessidade de repensar e remoldar os saberes difundidos nas escolas como
prioridade até então, por vezes, saberes brancos e europeus. Dessa forma, o cerne
dos debates pedagógicos passou por uma série de reformulações no campo do
patrimônio. O museu e os espaços, até então ocupados por brancos e que
privilegiam suas culturas, deram espaços a bens culturais do povo preto no Brasil.
Em suma, realizar a preservação de um patrimônio histórico e cultural quer
dizer determinar relações de afeto que resultam da herança cultural. Por
conseguinte, estes patrimônios culturais são experimentados nos signos e
simbologias, com sentimento de pertencimento e representatividade, com o laço
afetivo que nos abraça. Dessa maneira, urge que os terreiros de candomblé possam
ter a garantia de preservação para salvaguarda de pertencimento, heranças de
ancestrais, memórias, reconhecimento de uma cultura viva. Seguindo este caminho,
fugiremos da perspectiva tradicional de privilegiar apenas espaços que ora foram
lugares de hegemonia branca e europeia.

BIBLIOGRAFIA:

GAMA, Elizabeth Castelano. OS TERREIROS DE MATRIZ AFRICANA NOS


PROCESSOS DO IPHAN:: DEBATES NO CAMPO DO PATRIMÔNIO CULTURAL.
In: GAMA, Elizabeth Castelano. Lugares de memória do povo-de-santo: patrimônio
cultural entre museus e terreiros. 2018. Tese (Doutorado em História) - Universidade
Federal Fluminense, 2018.

NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Diversidade e sentidos do patrimônio cultural:


uma proposta de leitura da trajetória de reconhecimento da cultura afro-brasileira
como patrimônio nacional. Anos 90, 2008.

SANTOS, Walkyria Chagas da Silva. Patrimônio cultural dos espaços religiosos


afro-brasileiros: patrimônio subalterno? Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura e Sociedade, 2019.

SOUZA, Luciane Barbosa de. OS TERREIROS DE MATRIZ AFRICANA NOS


PROCESSOS DO IPHAN:: DEBATES NO CAMPO DO PATRIMÔNIO CULTURAL.
Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, 2018.

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