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Wannabee
Claudia Vaccaro

Capítulo 1 - A aluna de Hogwarts

Queridos,

Vocês me permitem conversar com vocês por esta carta? Preciso de algo que me
ajude, vocês sabem como eu gosto de escrever. Se não for assim, não vou conseguir.

Como começar? Já fiz tantas tentativas, tantas que nem tenho coragem de contar.
Se fizer isso vou desanimar, e não posso, nem devo.

Acho que devo começar me desculpando. Um pouco por ter sumido e preocupado
vocês, um pouco pelas ideias insensatas que atravessaram minha mente. Mas não
vou me desculpar pelas decisões que tomei, e por isso conto com todo seu amor
para que tentem me entender, mesmo não aceitando.

Eu sou a pessoa a quem todos recorrem quando precisam entender os fatos, que
sabe encadeá-los em uma ordem lógica, desvendar os intrincados fios que os ligam
e aos quais se subordinam, chegando a resultados exatos e irrefutáveis.

Mas por melhor que eu seja, não consigo usar essa qualidade para explicar o que
aconteceu com a minha vida. Talvez porque não tenha muita explicação lógica, por
mais que eu resista a admitir isso. É algo que precisa ser sentido.

Eu optei por abrir o meu coração para vocês e me mostrar em um nível em que não
tive coragem de fazer nem para mim mesma até hoje. É um gesto desesperado, mas
é o único que consigo pensar. Me desculpem se os magoo, ou se não atendo às suas
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expectativas. Essa sou eu, peço que compreendam. Não posso fazer diferente. Não
mais.

Depois dos últimos acontecimentos, em que todos fomos novamente testados de


formas que há muito tempo não experimentávamos, algo aconteceu. Um
significado repentino, invasivo e irrefreável irrompeu diante dos meus olhos. De
repente, tudo fez sentido, como quando descobrimos a solução de uma ilusão de
ótica e nunca mais conseguimos olhar a antiga imagem da forma como a víamos
antes.

Como reagir diante disso? Não sei, não consigo explicar, queria apenas que
entendessem como me sinto. Será que conseguem se colocar no meu lugar? Eu,
Hermione Granger, que fiz uma planilha para definir quando iria me casar,
concluir meu doutorado, engravidar, me tornar Ministra da Magia? Eu fui
vencida, e estou resignada a viver submissa a experiência da derrota. Estou
abatida aos pés do vencedor, e nada me resta a não ser aceitar o destino.

Eu fui vencida por algo contra o que sempre lutei: contra o ambíguo, a confusão, o
descontrole, a fraqueza, a submissão à paixão. Lutei com tudo que tinha ao meu
alcance, como uma autêntica gifinória. Lutei, mesmo avaliando que as minhas
chances eram mínimas, como a criança que está no mar e sente que não consegue
encostar mais o pé no chão, ao mesmo tempo que vê a onda se avolumando lenta e
inexorável na sua direção, e ainda assim se debate, luta para não ser tragada e
submersa. Ela sabe que é uma questão de tempo até ser engolida, mesmo assim não
quer admitir, e esses pensamentos a fazem demorar o suficiente para não conseguir
mais sair e voltar para um lugar mais raso, conhecido, em que possa respirar.
Quando a onda chegou foi pior do que tudo o que eu previ, do que eu achava que
sabia.

Eu sabia racionalmente o que ia acontecer mas não consegui me mover, me


libertar, como se estivesse presa num feitiço Petrificus Totalus, e percebi que lutar
contra isso significaria a minha morte, ao mesmo tempo que me entregar traria a
minha redenção. E eu já havia lutado tempo demais.

Eu fui tragada e submersa. Pensei que não fosse mais voltar. Eu desejei, me
perdoem, nunca mais voltar. Sei também que nunca mais vou voltar
completamente, como a pequena sereia que fez um pacto para poder andar na
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terra - só que no meu caso é o contrário, mergulhei no mar mais profundo, fiz um
pacto de renascimento e adquiri uma natureza marinha. Agora, não sou mais
capaz de andar em terra firme, preciso do oceano para continuar respirando.

Mas foi pela amizade que percebi que ainda tenho uma pequena chance de
conservar um pouco do que eu possuía, se a Deusa permitir, pois aprendi que devo
me submeter a ela. Se não, é mais umas das dores que terei que suportar, já que em
minha vida não há margem segura em que possa aportar, nem escolha possível
sem perdas e sofrimento.

Enfim, ouso, com o desespero dos desenganados, me mostrar a vocês. Não espero
seu perdão, mas não há outra saída para mim a não ser buscar a sua compaixão.

Vou começar do início.

*****

Sendo bem honesta, não posso dizer que senti algo especial quando conheci
Draco Malfoy. Revendo os dados e revisitando as minhas lembranças, não encontrei
nenhum indício inicial de que esse seria um encontro diferente de qualquer outro.
Não senti nada além de uma certa antipatia, nem muito sutil, nem muito intensa.
Descreveria como uma primeira impressão desagradável, nada mais.

À medida em que fui convivendo com ele nas aulas e presenciando sua forma
arrogante de tratar as pessoas, essa antipatia foi aumentando. Draco Malfoy andava
pela escola como um senhor feudal supervisionando sua propriedade, ora dando
alguma ordem sobre as cavalariças, ora esbofeteando algum serviçal.

Possuía a postura ereta, caminhando com uma elegância inesperada para seus
onze anos de idade, o queixo sempre acima da linha do horizonte e o olhar de
desdém dos bem nascidos. Sua marca era o risinho cínico, sempre com uma piada
maldosa sobre tudo, seguida da aprovação do seu cortejo - não se pode chamar
Crabbe e Goyle de amigos, mais pareciam guarda-costas, como um pano de cena
insosso, cinzento e bruto, colocado ali para destacar a prima-donna sob a luz
principal do palco que era Draco Malfoy.
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Um ingrediente que contribuiu de modo decisivo para aumentar essa antipatia


foi a forma como Malfoy tratava Harry e Rony. Apesar da nossa aproximação
improvável (afinal, meninas e meninos de onze anos não costumam ser melhores
amigos), desde cedo nos vinculamos, ligação que se tornou a cada dia mais profunda,
temperada pelos desafios que vivemos juntos.

Era óbvio que Malfoy invejava toda a atenção que Harry naturalmente recebia,
com seu jeito displicente de encarar isso, afinal ele era Harry Potter, a única pessoa
que havia sobrevivido a uma maldição de morte. Já Rony parecia odiá-lo, pura e
simplesmente, e era difícil impedir que ele partisse para cima de Malfoy, que sabia
disso e sentia um prazer especial em provocá-lo.

Assim, minha antipatia cresceu muito mais motivada por solidariedade aos
meus amigos do que por algo dirigido a mim de forma mais específica, pelo menos
no princípio. A bem da verdade, eu duvidava que Malfoy tivesse notado a minha
existência, o que não me causava incômodo algum, muito pelo contrário.

Minha vida em Hogwarts estava bem definida: frequentar as aulas, ler todos
os livros indicados e ir além, aprofundando minha aprendizagem, com uma
voracidade diante da qual a estupenda biblioteca da escola poderia tremer.

Essa sempre foi a minha verdadeira natureza: a aluna aplicada e sedenta por
conhecimento, querendo melhorar meu desempenho cada vez mais. Caso eu tivesse
que me apresentar a alguém, diria: "Olá, Sou Hermione Granger, aluna de
Hogwarts”. Essa descrição breve resumia o que eu era e me satisfazia de forma
completa. Ser a melhor aluna não era um papel que eu interpretava, era o que eu era,
minha identidade.

Não demorou para que eu chamasse a atenção dos professores, que notavam
minha inteligência e dedicação aos estudos. Nunca fui aquela aluna passiva, cujo
espírito estava em algum lugar distante do corpo sentado na carteira. Eu encarava as
aulas como um trabalho, como se eu e o professor fossemos co-responsáveis pelo
sucesso da aprendizagem.

Sempre me preparava, conhecia o assunto e já havia lido os livros de


referência antes mesmo do ano letivo começar. Era como uma coreografia bem
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marcada, uma espécie de pas de deux, em que eu executava meus passos com
precisão enquanto era conduzida pelo professor.

Eu não percebia nenhuma inconveniência disso. Para mim, era evidente que
esta deveria ser a postura de todos os alunos. Se eu tivesse que fazer uma pergunta
complexa a um professor um minuto antes de terminar a aula não hesitava, mesmo
sob o olhar de fúria dos demais alunos e até de Harry e Rony.

Eu não tinha dúvidas sobre quem eu era: uma aluna, stricto sensu. Estava ali
para estudar e aprender, e não ia ficar apreciando os anos escolares se desenrolarem
da arquibancada, como se fosse um jogo monótono. Eu estava imersa por inteiro,
estava dentro. E os professores, no geral, reconheciam e aprovavam a minha postura.

Quando disse no geral, quis me referir a um caso específico: o professor


Snape. Com ele, essa dança entre aluna e professor que me preenchia e aos meus
interlocutores docentes não funcionava. Isso me desapontou, pois considerava
Poções uma disciplina particularmente desafiadora, que eu estudava com devoção.

Snape era uma figura indevassável, mítica, uma verdadeira esfinge. Suas aulas
eram motivo de pavor para muitos alunos - uma fama não desmerecida, pois era
exigente até a fronteira do sadismo, equilíbrio que parecia manter sob controle de
forma disciplinada. Ele costumava rechaçar as contribuições que eu fazia para a aula,
ignorando intencionalmente minha mão levantada na tentativa de responder suas
perguntas à classe.

Eu atribuía essa antipatia ao fato de que eu, a melhor aluna dessa e das outras
disciplinas, pertencia à Grifinória. Mas isso não me intimidava. Eu não teria uma
reação emotiva à Snape como Neville, que alimentava um verdadeiro pavor, com
direito a pesadelos e suores frios.

Eu costumava atacar esse e os demais problemas de uma maneira racional. Fiz


uma lista comparando as vantagens e desvantagens de continuar levantando a mão
nas aulas de Snape, observei suas reações aos erros e (poucos) acertos dos alunos,
avaliei o impacto dos alunos da Grifinória em sua aula, enumerei suas escolhas
didáticas seguindo as regras da mais apurada metodologia científica.
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Ele poderia tentar me ignorar, mas conhecia seu papel de professor e


permanecia firme nele com uma autoridade natural - o que me deixava livre para
assumir meu papel de aluna, mesmo sob seu evidente desagrado.

O tratamento científico do problema me satisfez, já que eu ainda ignorava


outros motivos para Snape antipatizar comigo (como ser amiga de Harry Potter).
Assim, continuava a levantar a mão bem alto a cada pergunta que Snape fazia para a
sala - afinal, a coragem é uma marca de Grifinória.

As aulas de Poções também continham um outro ingrediente específico na


minha rotina de aluna. Era a única que frequentávamos junto com os alunos de
Sonserina, portanto, em que compartilhava a sala de aula com Draco Malfoy. Essa
convivência contribuiu para aumentar aquela antipatia que, até então, crescia
timidamente.

Fui tragada para dentro do jogo de provocações constantes entre Malfoy,


Harry e Rony, o que era extenuante. Se meus amigos valorizassem um pouquinho o
método científico e pudessem agir com o mínimo de racionalidade, veriam que reagir
às provocações de Malfoy era a melhor forma de agradá-lo. Tentava convencê-los
mas era inútil, então só me restava tentar evitar as brigas, sob o que se tornou uma
espécie de mantra inúmeras vezes repetido: “ignore-o”.

Devo confessar que a dificuldade da tarefa não se resumia apenas a conter


Harry e Rony, pois às vezes eu mesma tinha vontade de quebrar um cabo de vassoura
na cabeça de Malfoy. Quanto mais convivia com ele, mais o achava um menino
esnobe e mimado, temperado de forma generosa pela inconsequência típica dos
meninos da sua idade.

Malfoy era pouco confiável, delator em benefício próprio e especialista em


ridicularizar os outros, conseguindo atingir o oponente no nervo exposto da sua
vulnerabilidade. Mas o que mais me incomodava é que ele era covarde, do tipo que
provoca e não assume as consequências. A covardia é, com certeza, um dos defeitos
mais desprezados por nós, grifinórios.

Aquela primeira detenção que cumprimos juntos na Floresta Proibida foi bem
elucidativa em relação a isso. Nessas pequenas cenas do cotidiano, Draco Malfoy ia
sendo revelado para mim. Minha observação sobre ele ia se tornando mais
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meticulosa, e os dados confirmavam que suas histórias eram muito mais uma
expressão do menino corajoso que ele desejava ser do que do menino medroso que
ele realmente era.

É difícil localizar no tempo quando a nossa história foi mudando de rumo. É


um processo subjetivo e intrincado, com alguns saltos sutis, outros convulsivos. Mas
essa noite na Floresta Proibida, olhando retrospectivamente, foi uma espécie de
iniciação, condensando alguns elementos importantes do nosso enredo
compartilhado, ainda que eu não tivesse a menor consciência disso naquele
momento.

Quando fomos ao encontro de Hagrid, observei que sua barba estava suja de
mel. Ele lambia os dedos e tentava se limpar de forma desajeitada, passando as mãos
pela lateral do casaco e na barba uma e outra vez. Eu já gostava muito de Hagrid e
perdoava essas idiossincrasias tão características da sua personalidade.

O que mais ficou impregnado em mim foi o cheiro: um mel intenso, que
conseguia provocar um gosto doce já no aroma, produzindo uma coceira um pouco
irritante na garganta, provavelmente de alguma espécie selvagem e mágica, daquelas
a que Hagrid costumava ter acesso. Mas não perguntei nada, só fui dar importância a
esse detalhe muito tempo depois.

Foi na floresta que tive meu primeiro contato com Firenze. Assim como o mel,
não poderia imaginar o papel que ele teria na minha vida no futuro. Foi uma noite
fantástica, marcada pelo destino em um nível profundo da minha alma, e não apenas
pelo nosso primeiro encontro com Voldemort.

O destino, ou Fatum, estava além dos meus conhecimentos ou interesses


acadêmicos até então. Fatum é um conceito de Magia Antiga, um ramo dos estudos
mágicos pelo qual eu não me interessava e nutria um certo receio não admitido - o
que mudaria, mas só muito tempo depois.

Sempre me identifiquei com a Magia Racional, em que os atributos mágicos


eram canalizados pelo pensamento claro e comando adequadamente expresso do
conhecimento bruxo. A ideia de pensar em um destino a que fosse impossível escapar
era algo inconcebível para mim, mesmo que fosse bastante madura para a minha
idade.
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A Mitologia Mágica Grega oferece alguns dos primeiros e mais importantes


registros do Fatum, que datam de milênios: a determinação implacável, da qual não
se pode fugir, a punição inescapável para os erros cometidos nesse caminho ou para
a rebeldia.

O Fatum está acima das divindades e dos humanos, quer fossem bruxos ou
não. É uma força com a qual não se podia negociar, e contra a qual os feitiços, por
mais poderosos que fossem, nada podem fazer a não ser mitigar alguns dos seus
efeitos. A Magia Antiga estuda o Fatum e o caminho para conhecê-lo, que é o oráculo.
Naquele momento, tudo isso era ignorado por mim.

Nas minhas observações sobre o Fatum, uma coisa que eu pude notar é sua
ironia, seu ar de troça, e talvez esse seja um dos seus aspectos mais difíceis de
suportar, como se Grope estivesse se entretendo em arrancar as pernas de uma
aranha do tamanho de um pomo de ouro e achando isso a coisa mais divertida do
mundo.

No dia seguinte à detenção na Floresta Proibida, tudo continuava normal na


aula de Poções entre eu e Draco Malfoy. Nenhum oráculo havia se revelado,
nenhuma profecia havia retumbado nos céus. Apenas a tarefa na bancada de
produzir uma poção contra insônia valendo dez pontos. Não posso afirmar que
estivesse marcada pelo Fatum a ser a melhor aluna, mas o que aconteceu foi que
consegui os dez pontos para Grifinória - não sem certa dificuldade, devo admitir.

Snape não era muito discreto em aumentar as dificuldades para mim, mas
também não posso dizer que, nesse tipo de tarefa tão facilmente monitorável numa
observação de dados, ele tivesse muita oportunidade de favorecer Sonserina, o que
era mais provável de acontecer em episódios envolvendo punições pela indisciplina
dos alunos. Provas são provas, têm critérios de avaliação mais exatos, e uma poção
bem preparada é uma evidência irrefutável.

A despeito da pequena aproximação com Draco Malfoy no dia da detenção, ele


continuava a ignorar minha existência de forma completa, como de costume. Mas eu
não estaria sendo honesta se não contasse que já havia observado suas reações
quando eu tirava a maior nota da aula. Ele procurava manter uma cara muito séria, a
expressão impassível, ou então esboçava um sorrisinho de desprezo e ironia, sem
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conseguir disfarçar, no entanto, um rubor meio rosado na face e estreitar os lábios


num risco fino, um gesto característico que eu já havia notado há algum tempo.

O que eu só descobri muito tempo depois é que ele competia secretamente


comigo pelas melhores notas. Diferente de Harry e Rony, Draco sempre foi um
excelente aluno - mas, comigo na turma, ele não poderia almejar nada além do
segundo lugar.

Eu não tinha ideia do sofrimento que isso lhe causava - para mim, era a
oportunidade de uma pequena vitória, no meu campo e com as minhas armas, contra
suas atitudes esnobes - quem sabe assim ele não aprendia a ser um pouco mais
humilde?

Mas Draco era mais afetado por não tirar a maior nota do que deixava
transparecer, principalmente porque isso era motivo de comentários negativos de
seu pai, que esperava que ele fosse o melhor aluno. Quando o pai perguntou se ele
não se envergonhava de ser ultrapassado por “alguém como eu”, ele se sentiu
profundamente humilhado. Mas essa não seria a primeira nem a última vez que ele
vivenciou o impacto do que é não estar à altura dos parâmetros de excelência
exigidos de um Malfoy.

Ele me contou que costumava ter um caderninho, cuidadosamente oculto por


feitiços de desilusão, em que fazia tabelas comparativas entre as notas dele e as
minhas. Ele apreciava, em certa medida, o método científico, e o fato do caderninho
ser algo oculto de todos permitiu que ele fosse honesto nos registros - nada de
subterfúgios, trapaças ou ironias aqui, a comparação numérica era simples e exata.
Para o seu desgosto, eu não era uma aluna a ser ultrapassada com facilidade.

Apesar de muitas vezes ele ter conseguido tirar notas iguais às minhas, isso
não servia de consolo e, devido aos meus resultados acadêmicos, Draco Malfoy
passou a nutrir uma antipatia por mim quase tão grande à que nutria por Harry pelos
resultados no quadribol. Pelo menos, era assim que ele explicava, na época, o
estranho efeito que eu lhe causava.

Ao contrário de Harry, eu não tinha noção de que incomodava tanto assim


Draco Malfoy. Para mim, eram apenas pedrinhas que eu atirava com um feitiço
estilingue no seu pedestal de jovem herdeiro de uma família bruxa tradicional.
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Eu subestimava o impacto que isso tinha na sua frágil autoestima, pois


contrariamente ao que ele nos queria fazer acreditar, era uma criança insegura e
medrosa, que lutava com tenacidade para obter a aprovação de um pai frio e distante.
A mãe o superprotegia e mimava, e na soma desses vetores opostos de afeição o
resultado era zero. Nem boas referências de atuação no mundo, muito menos de
continência emocional, apesar de não haver dúvidas que os pais o amassem, ainda
que não conseguissem educá-lo de uma forma equilibrada.

O “fator Potter”, como ele costumava chamar para si mesmo, foi algo que o
marcou nessa construção de identidade, e com o qual teve que lidar sozinho, já que
não tinha amigos para poder dividir esse tipo de sentimento, que mal conseguia
definir para si mesmo. Acostumado desde sempre a receber todas as atenções, Draco
viu esse lugar ser usurpado pelo Menino Que Sobreviveu e por sua fama.

Logo de início, também, ficou claro que ele e Harry não seriam amigos e nem
ao menos próximos - amizade, para Draco Malfoy, tinha um sentido muito mais
utilitário. Amigos eram pessoas com as quais se compartilhava um status semelhante
e que poderiam ser mais ou menos proveitosas em algum momento. Além disso, ele
não admitia se envolver em um relacionamento em que não pudesse liderar.

Para Harry e ele, portanto, o papel reservado a desempenhar foi o de inimigos,


e eu logo fui incluída neste acordo tácito, dada minha proximidade com Harry Potter
e meus resultados acadêmicos. Enfim, nos posicionamos, desde o princípio, em
trincheiras opostas.

Independente deste e de todos os desafios que viriam depois, Hogwarts foi a


experiência mais transformadora de toda a minha vida. As histórias do mundo bruxo
sobre as quais eu havia lido se tornaram realidade para mim, que almejava uma vida
escolar dentro de parâmetros mais ou menos normais, não no sentido dos resultados
acadêmicos (estes, sempre quis que fossem extraordinários), mas no sentido das
experiências. Não imaginava enfrentar aventuras como as que enfrentei com Harry e
Rony na luta contra Voldemort - isso não tem nada de comum, e moldou meu caráter
de forma permanente.

Mas nos meus primeiros tempos de Hogwarts esse destino ainda não havia se
anunciado, e eu usufruía as delícias da vida acadêmica, e até mesmo as aventuras
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iniciais com Harry e Rony, sem maiores sobressaltos. A cada dia aprendia mais sobre
magia, história e feitiços, e queria aprender cada vez mais.

Mas nem toda experiência acadêmica é sublime e elevada, e pude comprovar


isso no dia em que aprendi uma expressão que não conhecia: “sangue-ruim”.
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Capítulo 2 - Sangue ruim

Era mais um bate-boca entre crianças - mas quem pode ser tão cruel quanto
as crianças? Na hora, não entendi do que Draco Malfoy havia me xingado. Foi só
depois, na cabana de Hagrid, enquanto estávamos esperando que Rony parasse de
cuspir lesmas, que ele me explicou o que significava.

Hagrid se sentiu ultrajado, e me disse para não ligar para isso, tentando
disfarçar que estava tremendo de indignação. Percebi que ele e Rony ficaram muito
incomodados, como se uma criança falasse algo na mesa de jantar e não entendesse
porque os adultos ficaram nervosos, mas percebesse que havia dito algo proibido. O
sentido da expressão escapava tanto a mim quanto a Harry, já que fomos criados
como trouxas, e não conhecíamos até então o significado de sangue ruim.

Com doze anos, por mais madura que eu fosse, não conseguiria entender a
profundidade daquele xingamento, e tenho certeza de que Draco também não o
compreendia. Só estava repetindo uma expressão habitual com a qual havia sido
criado, algo que herdou junto com os preconceitos da sua família, uma expressão
que tinha um efeito imediato, como um palavrão.

Ele não sabia direito como me ferir, era um aprendiz nessa estranha arte, e na
hora eu não sangrei. A expressão sangue ruim ficou alojada dentro de mim como um
feitiço irreversível, e foi destilando seu veneno à medida que o tempo passou.

Não era o tipo de palavra que eu encontrava nos livros didáticos ou nos de
referência que costumava consultar. Na biblioteca, encontrei-a nos livros de História
Bruxa que buscavam explicar as lutas pela supremacia no mundo bruxo, com o
discurso de submissão dos trouxas avançando e regredindo através das épocas, como
ondas em uma praia.

Eu havia estudado sobre o holocausto quando ainda estava na escola trouxa,


antes de Hogwarts, e li o diário de Anne Frank. Sangue ruim era uma expressão suja,
mordaz, como a palavra “judeu” cuspida por um nazista. Era a síntese de ideias
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supremacistas e fascistas, a melhor das sínteses, concentrada no pequeno slogan de


duas palavras.

Pensando cientificamente sobre o assunto, de um ponto de vista evolutivo é


praticamente impossível, ou pelo menos altamente improvável, que não haja
casamentos entre os bruxos nascidos trouxas, ou sangues ruins, e os bruxos de
sangue puro, descendentes de famílias tradicionais bruxas.

Na genealogia bruxa, é possível identificar os ramos “impuros” das famílias de


sangue puro pelos seus descendentes que abandonam a tradição e se casam com
bruxos nascidos trouxas. Com raras exceções (a família Malfoy era uma delas,
integrando o grupo das vinte e oito famílias consideradas de sangue puro), os bruxos
tendem a se misturar com bruxos nascidos trouxas ou mesmo com trouxas, o que, do
ponto de vista genético, é o correto a ser feito.

Na prática, acabava sendo quase impossível identificar um ancestral sangue


ruim muito distante, mesmo pelos mais ferrenhos defensores da ideologia do sangue
puro. Muitos bruxos que compartilhavam dessas ideias se esforçavam para ocultar
suas origens familiares duvidosas. É o caso do próprio Voldemort, cujo pai era
trouxa.

Mas essa reflexão viria apenas mais tarde. No momento, tinha problemas
mais práticos com que lidar, pois estava tentando junto com Harry e Rony descobrir
sobre os ataques que estavam acontecendo em Hogwarts pelo autoproclamado
herdeiro de Slytherin.

Aprendi logo que a questão do herdeiro estava ligada com os sangues ruins.
Draco Malfoy não se furtava a anunciar isso com certa satisfação, dizendo que o
herdeiro de Slytherin voltou para acabar com os sangues ruins. Harry tinha certeza
que Draco, se não estava envolvido, ao menos sabia de algo - por isso, eu tive a ideia
de usar a poção Polissuco para tentar extrair informações dele.

Numa perspectiva científica, pode-se dizer que o experimento foi bem


sucedido, uma vez que eliminou algumas hipóteses. A mais ingênua delas era a de
que Malfoy poderia estar articulando os ataques, no que eu nunca acreditei, pois não
achava que ele teria competência para isso. Era algo maior, que envolvia um tipo de
magia das trevas que nós desconhecíamos.
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Paguei um preço alto para eliminar essa hipótese, tendo que passar algumas
semanas na enfermaria fazendo uma lenta transição da forma felina (que eu tinha
assumido involuntariamente ao misturar pelos de gato na poção Polissuco), e
precisando usar todas as minhas habilidades de persuasão para convencer Madame
Pomfrey de que tudo não passava de uma série de coincidências terríveis e não
premeditadas.

Com tudo isso acontecendo, e depois do episódio do sangue ruim, Draco


Malfoy, com quem eu costumava antipatizar em níveis suportáveis, foi promovido ao
patamar de pessoa execrável na minha classificação de caráter.

Suas atitudes só faziam consolidar essa percepção dia a dia, como se ele
soubesse e estivesse se esforçando para manter o posto de pessoa mais desprezível
possível. Ele parecia fazer de forma intencional, sendo cada vez mais ousado na
tentativa de me atingir, como quando declarou em alto e bom som para o professor
Snape que ele deveria ser o diretor da escola, e que todos sangues ruins deveriam
continuar a morrer, começando por mim.

Se eu soubesse o que sei hoje, ou se nós não fossemos pouco mais que duas
crianças, talvez tivesse percebido que isso era uma intensificação dos sentimentos
que haviam entre nós, sentimentos que foram se tornando mais envolventes e
profundos, mesmo que não tivéssemos consciência deles. Entre o amor e o ódio há
uma linha tênue, não é o que se costuma dizer?

Mas eu não tive muito chance de refletir sobre isso, pois fui tirada de combate
de maneira literal quando fui petrificada ao ver o reflexo dos olhos do basilisco. É um
período do qual não tenho nenhuma lembrança, nenhum sonho. Algo parecido com
uma quase morte, ou com a Poção do Sono sem Sonhos mais potente do mundo.

Quando acordei, tudo havia se resolvido, e Harry mais uma vez havia se
provado um autêntico grifinório, vencendo um desafio muito além da capacidade de
um bruxo de doze anos ao matar o basilisco e atrapalhar os planos de ressurreição de
Voldemort pela segunda vez.

Rony e Harry me receberam com muita alegria. Contaram-me tudo que


aconteceu com todos os detalhes fascinantes. Eu fiquei muito empolgada com a
vitória deles.
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- E finalmente as mandrágoras ficaram prontas para a poção, para desespero


de Malfoy - Harry disse, rindo.

- Como assim?

- Eu percebi que ele não se alegrou como os outros quando Dumbledore nos
falou sobre as mandrágoras…

Respondi com a minha clássica revirada de olhos, que era o gesto equivalente
ao lema “ignore-o”.

Fui me deitar mais cedo, estava me sentindo um pouco cansada e ainda estava
me recuperando dos efeitos da petrificação. A professora McGonagall conversou
muito séria comigo, dizendo que eu não deveria tentar recuperar de uma vez o tempo
que fiquei na enfermaria, afinal eu estava adiantada em relação ao andamento das
disciplinas. Ela tinha razão, e também foi bem enfática. Resolvi respeitar esse tempo
de restabelecimento. De qualquer forma, em alguns dias iríamos para casa, e eu
poderia descansar o suficiente para repor as energias gastas em mais um ano em
Hogwarts.

Acordei num pulo de um sonho agitado, em que se misturavam paredes


pichadas com sangue, olhos amarelos num espelho, chão molhado, Gina, a espada de
Gryffindor e… Draco Malfoy. O que ele havia feito para ocupar um espaço no meu
sonho, disputando com o basilisco e Voldemort? Lembrei do que Harry me contou,
de que Draco não parecia ter ficado alegre ao saber que a poção de mandrágora
estava pronta.

Era isso, então? Draco Malfoy queria mesmo que eu morresse? Eu, que não
era mais que uma colega de classe que nunca havia feito nada contra ele, com quem
ele mal tinha trocado algumas poucas palavras em dois anos (apesar de algumas
bastante duras)?

Isso era tão injusto! O mais provável era que ele não me enxergasse de fato, eu
era só um rótulo no qual ele lia “sangue ruim”, e assim pouco importava se eu
estivesse viva ou morta - morta, aliás, significaria um pontinho a mais na sua
contabilidade preconceituosa, e isso devia ser uma ideia agradável para ele.
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Estava começando a ficar chateada de verdade, e então resolvi recorrer ao


meu habitual pensamento racional para lidar com isso. Foi quando a frase se formou
com uma clareza cristalina na minha mente: afinal, por que eu me importava com o
que Draco Malfoy sentia em relação a mim?

A frase, mesmo sendo clara e objetiva, provocou em mim o efeito contrário: ao


invés de me animar e dissipar as nuvens de pesar, ela me assustou: eu estava, de fato,
me importando com o que Malfoy sentia por mim, e saber que ele preferia que
estivesse petrificada ou mesmo morta me deixou arrasada, de um jeito que eu não
conseguia explicar.

“É a ideologia do sangue ruim”, minha mente racional dizia, “não é você. Ele
mal te conhece!”. Mas esse tipo de pensamento só piorava as coisas e não me
consolava. Ele mal me conhece, portanto, poderia me tratar como uma formiga em
que se pisa sem remorsos?

Eu me recusava a ficar pensando nisso, e como as minhas tentativas falhavam,


ficava me recriminando: como você pode se interessar por um ser repulsivo como
Draco Malfoy? O que diriam Harry e Rony se sequer imaginassem isso?

Comecei a ficar muito nervosa, a tremer e suar, algo que eu hoje identifico
como um ataque de pânico, e estava incapaz de pensar de forma racional. Corri para
a enfermaria e pedi ajuda para Madame Pomfrey, chorando. Ela ficou preocupada
quando eu disse a ela que tinha sonhado com o basilisco e havia ficado com muito
medo.

Passei aquela noite na enfermaria, e isso é algo que poucas pessoas souberam.
Dumbledore e a professora McGonagall vieram me ver. Segundo Madame Pomfrey,
eu estava com sintomas residuais do feitiço, que podem envolver sentimentos
aterradores, como uma espécie de estresse pós-traumático. Eles entenderam que eu
deveria ir mais cedo para casa, pois mesmo faltando apenas três dias para as aulas
terminarem eu estava precisando de descanso, havia sido um ano difícil.

Tranquilizei Harry e Rony na medida do possível, dizendo que tudo o que


tinha acontecido havia mexido muito comigo, mas que eu iria ficar bem. Dumbledore
conseguiu uma ambulância especial com o Ministério para me levar até Londres,
onde encontrei meus pais. Eu os abracei com tanta força, quase desesperada, e eles
17

ficaram preocupadíssimos. Eu dizia que não era nada, para não se preocuparem,
chorando cada vez mais. Foi uma cena terrível.

Pela primeira vez, passou pela minha cabeça como seria a minha vida sem
Hogwarts, e o que aconteceria se eu não voltasse nunca mais para a escola.
Felizmente, as poções curativas de Madame Pomfrey atuaram logo, ainda que eu não
tenha sido completamente honesta sobre o que causara a minha crise. A poção de
própolis regenerativa universal, especialmente formulada para as dores emocionais e
que Madame Pomfrey sempre incluía em suas prescrições (conhecedora da alma
humana como era), fez seus efeitos e em uma semana eu me sentia mais fortalecida,
reconhecendo em mim a velha Hermione de sempre, racional e corajosa.

Tomei a decisão íntima de não permitir que Draco Malfoy me machucasse


nunca mais, e sabia que eu era forte o suficiente para cumprir essa autodeterminação
à risca.

Quem era ele de verdade e o que sentia não eram perguntas que eu iria fazer
mais. Ele poderia continuar a me tratar como um rótulo o quanto quisesse, não
importava. Eu não permitiria mais que ele me atingisse.

O Fatum observava minha expressão determinada, divertindo-se.


18

Capítulo 3 - A aula de adivinhação

Os dias de embarque para Hogwarts eram sempre corridos e marcados pela


ansiedade de voltar para a escola e reencontrar amigos e professores. Eu, Harry e
Rony embarcamos juntos, vindos do Caldeirão Furado, em que estávamos todos
hospedados - nosso reencontro começou um pouco mais cedo, e eu me sentia muito
feliz de estar mais uma vez na companhia dos meus amigos.

Conseguimos uma cabine por sorte, apesar de haver um homem dormindo


nela - identifiquei pela bagagem que era o professor Lupin. Tentamos conversar sem
falar muito alto para não acordá-lo (o que era difícil).

Harry havia acabado de saber que a fuga de Sirius Black de Azkaban tinha
alguma relação com ele, de quem poderia vir atrás, o que era aflitivo - ainda que
soubéssemos que Hogwarts era o local mais seguro para Harry se proteger de um
eventual ataque. Por aqueles estranhos mecanismos que só quem já foi adolescente
pode entender, no entanto, Harry parecia mais preocupado com o fato de não ter
autorização para ir ao povoado de Hogsmead nas visitas a que os alunos do terceiro
ano em diante tinham direito.

Conversávamos sobre isso quando a bruxa com o carrinho de comida chegou.


Compramos alguns lanches, e os meninos, como sempre, compraram doces. Rony
não conseguia resistir aos feijõezinhos de todos os sabores - era uma espécie de jogo
com a sorte, uma roleta russa, em que você poderia saborear um pudim ou uma sola
de sapato. Era demais pra mim, e eu passava minha vez sempre que ele me oferecia
um. Rony colocou um feijãozinho na boca, prestando atenção no sabor, e disse:

- Mel! Finalmente uma coisa gostosa, pra variar!...

Na mesma hora, nossa atenção foi desviada para os risos no corredor. Draco
Malfoy, acompanhado dos seus habituais colegas brutamontes Goyle e Crabbe,
apareceu na porta da cabine provocando os garotos. Ainda bem que ele percebeu
logo que não estávamos sozinhos e se afastou, levando seus trasgos com ele.
19

Ele não me notou nem me dirigiu nenhuma palavra, o que me deixou aliviada.
Reparei que ele estava mais crescido e meio diferente, mais charmoso, não sei definir
bem, mas procurei não ficar prestando muita atenção nisso. Fiquei orgulhosa por
manter minhas emoções equilibradas na presença dele, e pensei que as férias tinham
me feito bastante bem.

O ano, no entanto, já havia começado mostrando que não seria nada calmo,
muito menos equilibrado. Harry estava ainda sob o impacto da notícia sobre Sirius, e
a entrada dos dementadores no nosso vagão o abalou bastante: ele desmaiou. Foi
muita sorte o professor Lupin estar conosco e ter conjurado um Patrono para nos
proteger daqueles seres nefastos. Tudo que eu não precisava era cair em depressão
de novo, e foi assustador como a mera presença dos dementadores na cabine
começou a me tragar para uma tristeza profunda.

Fiquei preocupada com a reação de Harry, eu precisava ser forte para


apoiá-lo. A notícia se espalhou, e Draco não perdeu a oportunidade de zombar de
Harry pelo desmaio. Pensei comigo: cara Hermione, preste bem atenção nesse
momento, grave-o na sua memória - esse é o desprezível Draco Malfoy, que não
merece um segundo da sua atenção. Ignore-o.

Esse era o compromisso que assumi comigo, e nada me demoveria de


mantê-lo. Além disso, esse ano seriam oferecidas muitas disciplinas que eu queria
cursar. Era um grande desafio em que estava me colocando, mas eu sou movida a
desafios, como uma autêntica grifinória. Queria estar no meu lugar preferido, que era
a carteira de aluna em Hogwarts, com toda a dedicação que isso merecia. E tinha um
plano ótimo.

Lendo um artigo sobre a professora McGonagall nas férias, soube que ela
usara um Vira-Tempo em seus tempos de estudante para conciliar a frequência às
disciplinas e treinos de quadribol - ela havia sido jogadora em sua época de escola.
Fui conversar com ela e a convenci a me emprestar seu Vira-Tempo para eu poder
assistir as aulas simultaneamente.

Ela concordou, desde que fosse autorizado pelo Ministério da Magia e que eu
mantivesse absoluto segredo. Ela confiou que eu teria responsabilidade para utilizar
o artefato, e não se enganou. Além disso, meus motivos eram os melhores possíveis -
estudar de forma disciplinada e dedicada.
20

Assim, pude me matricular em Aritmancia, Trato das Criaturas Mágicas,


Adivinhação, Estudo das Runas Antigas, Estudo dos Trouxas, Transfiguração e
Poções, tudo graças ao Vira-Tempo. Quem poderia imaginar que esse objeto teria um
papel tão decisivo nesse ano conturbado (e voltaria a ser importante mais uma vez,
num futuro ainda distante)?

Minhas expectativas eram as melhores, principalmente em Aritmancia e


Runas Antigas, pelas quais me encantei desde o princípio. Estudava o alfabeto rúnico
com afinco, principalmente a história dos símbolos e como chegaram na sua forma
atual, com cerca de mil anos.

Adivinhação já não me empolgava tanto - como comentei, preferia a corrente


teórica da Magia Racional, assim como a professora McGonagall, que era uma
especialista no assunto, bem como na transmutação enquanto um fenômeno
mágico-físico.

Para piorar, minha antipatia pela professora Trelawney foi imediata. Minha
impressão é que ela dizia qualquer coisa para passar a imagem de uma grande
vidente, o que certamente não era, tentando nos intimidar com aquele ar de charlatã.

Eu não conseguia disfarçar meu desagrado e ficava bufando durante a aula.


Além disso, tive que aguentar os olhares irônicos de Harry e Rony quando a
professora disse que os livros não ajudariam nessa aula. Como assim, livros não
ajudariam? Era inadmissível.

Nosso primeiro exercício foi a leitura da borra formada pelos resíduos de


folhas de chá na xícara. Neville era meu parceiro na mesinha redonda coberta com
uma longa toalha de veludo em que as duplas deveriam se acomodar na sala
enfumaçada em que a aula acontecia, e Harry e Rony ficaram juntos na mesinha ao
lado.

A tarefa era que tomássemos o chá e virássemos a xícara emborcada no pires,


o que faria com que a borra escorresse um pouco pelo fundo e pelas laterais,
supostamente formando imagens que deveríamos interpretar a partir dos gráficos de
referência do livro Esclarecendo o futuro, o texto de referência para as aulas. Depois,
trocaríamos de xícara, e Neville leria a minha sorte, e eu a dele.
21

- Ahn… pode ser um tipo de trevo… significa que você terá sorte no jogo - falei
para Neville, sem muita confiança

- Mas eu nunca jogo…

- Ou pode ser também que seja uma estrela. Ou um sapo. Ah, desisto…

- Deixa eu ver a sua. Tem alguma coisa com asas, eu acho que parece uma
abelha.

Neville me mostrou a xícara, e apesar do meu ceticismo, era impressionante


como a imagem sugeria uma abelha: as falhas na borra pareciam as pequenas listras
no corpo do inseto, e podia-se distinguir quatro asinhas, duas de cada lado.

- Não parece? O desenho está bem legível, o que, segundo o livro, indica que é
um presságio muito forte… Bem, diferente do meu… Vamos ver o que significa.

Eu já estava lendo o significado:

- Segundo o livro, a abelha é um sinal de vida em comunidade, uma indicação


de cargos de gestão - eu disse.

- Quem sabe você não vai se tornar uma política no futuro? Ou Ministra da
Magia? - Neville disse, bem humorado.

- Eu duvido muito.

- Ela também pode indicar infortúnios no amor… hã?... - Neville enrubesceu,


não era o tipo de assunto que conversaríamos numa aula nem fora dela.

- O quê? Deixa eu ver. Céus, quanta bobagem.

O livro dizia que a abelha era um símbolo da deusa grega Deméter, uma antiga
deusa feiticeira assimilada pela cultura trouxa também, e que, para aqueles a quem a
abelha aparecia nas folhas de chá, o amor equivaleria a uma descida aos infernos,
com muitas provações.

Puxei a xícara da mão do Neville para olhar melhor. A professora Trelawney


vinha se aproximando da mesa de Harry e Rony, e após ouvi-la falar tantos absurdos
e assustar Harry, a última coisa que eu queria era que ela visse a minha xícara e
ficasse prevendo a minha infelicidade afetiva.
22

Num momento de distração da turma (quando Neville quebrou sua segunda


xícara), deslizei minha xícara rapidamente para dentro da mochila, não sem antes
protegê-la com um feitiço imobilizante para que o desenho não se desfizesse. À noite,
no dormitório, com um controle de variáveis mais adequado, eu poderia examiná-la
com a atenção apropriada.

Ainda bem que a próxima aula foi com a professora McGonagall, cuja opinião
sobre Adivinhação era parecida com a minha. Ela tranquilizou Harry, dizendo que a
professora Trelawney previa a morte de um novo aluno a cada ano, e que até hoje
todos estavam vivos - não sem antes completar que, caso Harry morresse, ela
perdoaria que ele não entregasse o dever de casa. Todos rimos e nos sentimos mais
aliviados.

Após o almoço, teríamos a primeira aula com Hagrid. Apesar de estarmos no


início do outono, fazia um dia ensolarado, e no caminho que levava à clareira em que
a aula aconteceria fui atraída pelo som do zumbido, e percebi algumas abelhas
circulando em volta das últimas flores, que pareciam não se dar conta da mudança da
estação. “Abelhas, outra vez?”, pensei. Por acaso, era algum tipo de perseguição?

Esta primeira aula de Hagrid seria marcante em muitos sentidos. Foi aquela
em que nos apresentou aos hipogrifos, que são criaturas bastante apavorantes, pelo
menos na primeira vez que encontramos uma.

A aula era junto com a turma de Sonserina e sim, Draco Malfoy estava lá, se
comportando como um típico adolescente de treze anos, rindo com seus amigos e
provocando as garotas da sua turma, que davam gritinhos e risadas, escondiam o
rosto e voltavam a olhá-lo meio fascinadas, recomeçando o jogo. Ele agia de forma
especialmente desdenhosa e desrespeitosa com Hagrid, de quem não gostava e
entendia que não merecia o status de professor.

Na sua vez de lidar com o hipogrifo Bicuço Malfoy foi arrogante e displicente,
desconsiderando as orientações de segurança dadas por Hagrid, e acabou sendo
arranhado pela criatura - um corte feio no braço, que sangrou bastante. Fiquei
preocupada com ele e também com Hagrid, pois isso poderia significar sua demissão.

Harry e Rony tinham certeza de que Malfoy iria se aproveitar do fato de ter
sido ferido, exagerando na gravidade. Isso parecia bem típico dele, e estava claro
23

para todos nós, que assistimos a cena, que Malfoy foi o culpado. Segundo Hagrid nos
contou mais tarde (quando fomos visitá-lo em sua cabana para ver como ele estava
após essa história toda), Malfoy estava bem, apesar de ainda estar se queixando.

Eu me senti mais tranquila, mas pensei que só ficaria aliviada de fato quando
o visse novamente no salão ou nas aulas, ainda que fosse para presenciar suas
habituais atitudes esnobes e grosseiras. Como eu jamais teria a coragem de visitá-lo
na enfermaria, nem nenhuma justificativa convincente para isso, restava-me prestar
atenção aos comentários e tentar filtrá-los, dependendo do interlocutor, para obter
notícias de Draco.

Acho que este foi um dos dias mais longos que vivenciei em Hogwarts, cheio
de acontecimentos e reviravoltas - sem contar que, para mim, a jornada era dupla,
com todas as aulas que eu assistia com o Vira-Tempo. Foi um dia extenuante, e
quando cheguei ao dormitório só pensava em me atirar na cama e apagar. Joguei a
mochila sobre a escrivaninha e ouvi um tilintar de louça. Lembrei na hora da xícara
de chá.

Fiquei planejando como iria fazer. Eu precisava ser discreta, todas as meninas
já estavam no dormitório, e a última coisa do mundo que eu queria é que elas vissem
que eu havia retirado a xícara da aula. Tive um pensamento apavorante de Parvati
pegando a xícara da minha mão, e enquanto eu me atirasse para pegá-la ela a jogasse
para Lilá, entre risadas excitadas, com as meninas pulando sobre as camas e fugindo
de mim. Sacudi a cabeça para espantar essa terrível visão. Não, eu teria que procurar
um lugar mais seguro para fazer as minhas pesquisas. Poderia ser na biblioteca, mas
como eu levaria a xícara até lá? A resposta não veio - no lugar dela, o sono me
venceu, e eu dormi profundamente, como se faz após os dias cheios.
24

Capítulo 4 - Um tapa na cara

Pela manhã, eu tinha apenas a aula de Feitiços para assistir, e achei que seria
o momento ideal para programar o Vira-Tempo de forma que eu pudesse dedicar
esse período a estudar. Isso me daria três horas na biblioteca, o que parecia ser o
suficiente.

Esclarecendo o futuro não era um mau livro, mas era muito superficial, por
ser introdutório. Nos apontamentos que eu estava listando para pesquisar na
biblioteca, anotei que deveria procurar algum trabalho mais denso de Amelia Honey,
a autora, e pesquisar também suas referências. Duvidava que Prevendo o
imprevisível: proteja-se contra choques e Bolas rachadas: quando a sorte se
transforma em azar pudessem ajudar. Eram livros populares e mais superficiais
ainda, e eu estava buscando algo mais consistente e acadêmico.

Eu não tinha como levar a xícara na biblioteca. Se eu a mantivesse na mochila


e olhasse de vez em quando isso poderia ser visto como uma atitude suspeita, que
chamaria a atenção. Gelava com a simples ideia de que alguém pudesse me ver com a
xícara.

A solução que encontrei foi reproduzir o desenho o melhor possível com uma
pena pictográfica em um pergaminho, assim poderia levá-lo dentro de um livro. O
resultado ficou bastante bom, parecendo uma espécie de planeta - se alguém
encontrasse, jamais saberia que era uma xícara de chá vista de cima.

O desenho da abelha era bem nítido, mas quando copiei a xícara fui
percebendo outras formas, como um tipo de banqueta ou cadeira sem encosto, e uma
espécie de círculo com uma cruz interna. Escondi a xícara no meu malão, aplicando
pelo menos três feitiços de desilusão para que ela não fosse descoberta, e ela ficou
bem protegida, quase como uma Horcrux.

As três horas passaram em um instante, e foi a contragosto que saí da


biblioteca, pois já estava quase perdendo o horário de almoço. Fiz várias anotações e
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encontrei boas referências - sem dúvida, a biblioteca de Hogwarts tinha um ótimo


acervo sobre Magia Antiga, o que eu não havia notado antes. Eu teria que voltar.

Fiz meus deveres correndo, mas só consegui terminar às sete da noite, e


queria pegar a biblioteca aberta para concluir minhas pesquisas. Folheando o
Dicionário hermético de Aldebaran Megistus e o livro Magia Antiga: a arte
primordial, resolvi admitir que não conseguiria ler dezenas de obras de referência
em um dia. Estava na hora de invocar a Hermione objetiva, e foi o que fiz, separando
os textos mais informativos para meu objetivo de pesquisa, que era interpretar a
xícara.

O desenho do pequeno planeta estava na minha frente, no centro da mesa,


rodeado de livros e anotações. Pensei que poderia recortar as bordas do pergaminho,
assim não teria a tentação de olhá-lo sempre da mesma perspectiva, já que era
importante girá-lo para melhor interpretar as figuras.

Concluí que era um cuidado desnecessário, e me recriminei por isso: eu estava


procrastinando, procurando ganhar tempo antes de analisar as muitas anotações que
eu já havia feito. Minha praticidade venceu, e comecei a fazer uma síntese dos
achados mais importantes.

A abelha tem um simbolismo muito antigo, e é bem presente na história das


artes divinatórias. O mel tem um papel importante nas tradições celtas, pois está na
base da fabricação do hidromel, que tem uma origem milenar, inicialmente
vinculado com a cura tanto física quanto espiritual.

Na tradição celta a abelha é uma mensageira divina, e quando aparece é


portadora de mensagens importantes e poderosas. A abelha também é um inseto que
vive em coletividade, portanto é uma característica de uma pessoa que se dedica ao
bem da comunidade, como um professor ou um governante, não o fazendo em busca
de posições de destaque, mas para servir ao bem comum.

Tudo isso é muito interessante mas - Hermione Granger, seja sincera: o que
despertou seu interesse foi a questão amorosa. Vamos a ela.

A abelha é um dos símbolos da Deusa e do Sagrado Feminino. Era um assunto


muito profundo, com vários livros sobre ele na biblioteca. Fiquei surpresa ao
constatar que eu não sabia quase nada sobre isso.
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A interpretação ligada à deusa Deméter me chamou a atenção. Meu signo


solar astrológico é Virgem, relacionado à mitologia da deusa. Deméter estava ligada
com o simbolismo da mudança das estações, da morte e do renascimento. A ideia
geral é que, nos ciclos, há um momento em que é preciso morrer para depois
renascer, como a semente que germina somente após ser plantada sob a terra.

A questão do amor no simbolismo dessa deusa tem a ver com sua filha,
Perséfone, raptada por Hades, o senhor do submundo, e obrigada a viver com ele no
inferno. A história do rapto era controversa - uma interpretação era que Perséfone
cedeu ao seu desejo não admitido por Hades. Tinha a ver com iniciação sexual, o que
já estava me dando calafrios - hora de voltar a ser mais objetiva.

Na leitura dos oráculos, um símbolo ancestral como a abelha tem uma


interpretação muito genérica, pois ele poderia se manifestar em acontecimentos
diversos da vida. Era preciso associar com outros indícios, outros sinais. Por Merlin,
eu só queria saber se vou ser infeliz no amor, e não me tornar uma pitonisa.

Aquilo que eu tinha achado que parecia um banquinho agora estava mais para
um símbolo gráfico. Parecia uma runa, a runa Perth - seria possível? Parece que não
há muitas regras exatas em adivinhação (o que me irritava profundamente), e dois
símbolos de diferentes tradições poderiam ser associados em uma única
interpretação. Segundo Trimegistus, isso é admissível porque os símbolos têm raízes
culturais comuns que foram sendo interpretadas por diferentes povos durante
milhares de anos. Tudo bem, abelhas e runas.

Meus olhos ensombreceram quando li o significado. A runa Perth simboliza o


desconhecido, a transformação, a ação do destino. Na tradição esotérica, estava
associada às Norns nórdicas, o trio de deusas que representa o passado, o presente e
o futuro e que tece o destino das pessoas, ou o Fatum.

Os livros sobre o Fatum também eram numerosos da biblioteca, e entendi que


era outro tema importante em Magia Antiga sobre o qual eu não conhecia
praticamente nada. Um símbolo do Fatum numa leitura divinatória era quase tão
fatídico quanto o Sinistro, e suspirei aliviada por ter evitado que a professora
Trelawney tivesse acesso à minha xícara.
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Em resumo, a xícara indicava que o Fatum marcava a minha vida amorosa.


Havia algo nela que era um destino inescapável, para o qual eu seria raptada, como
Perséfone. Procurei o símbolo do círculo com uma cruz dentro. Também era um
símbolo com muitos significados. Na alquimia, um manual do século dezessete o
indicava como um símbolo para o mel. Outro, o apresentava como o símbolo das
provações na Terra e do destino. Também era um símbolo do Fatum e de um outro
conceito mágico chamado Synchro, que eu não conhecia e que precisava pesquisar
depois, pois o texto não dava mais informações.

Eu não conseguia mais pensar. Já estava quase tendo um ataque de pânico, e


tive que juntar todas as minhas forças para sair dali e ir para meu quarto, precisava
descansar. Deitei, mas não consegui dormir, a cabeça não parava.

Depois de horas olhando para as cortinas da cama, pensei que eu estava como
um siri dentro da lata, dando voltas e voltas sem chegar a lado algum. Eu precisava
falar com alguém que pudesse colocar um pouco de racionalidade nisso tudo.

Pensei em recorrer à professora McGonagall, ela seria a pessoa perfeita para


isso. O problema é que eu tinha vergonha - vergonha de estar impressionada por
oráculos, e mais do que tudo, vergonha de como esse interesse começou.

Resolvi que eu teria que ser a minha própria conselheira. Comecei a dialogar
com uma professora McGonagall interna, que falava exatamente o que a minha
mente racional já sabia: tudo isso é muito controverso, não há método científico em
Magia Antiga. Tudo pode ser, e também não ser. Então, tranquilize-se, viva a sua
vida, um dia de cada vez. Não tenha medo de amar. As frases da professora interna
funcionaram como uma canção suave, e quando as primeiras luzes do dia já
apareciam no céu finalmente adormeci.

A partir desse dia, desenvolvi o hábito de fazer esses diálogos internos e de


usar a minha mente racional de forma sistemática não apenas para problemas
acadêmicos, mas para tentar acalmar meus sentimentos. Funcionava com mais ou
menos sucesso. Também passei a estudar mais sobre Magia Antiga, a Deusa e o
Fatum, como a aluna aplicada que sou. Quem sabe o conhecimento não lançava luz
sobre essas previsões sombrias?
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Preferi guardar para mim meus recém adquiridos interesses, queria evitar
perguntas e gozações dos garotos. Eu continuava animada no estudo das runas, e
havia boas bibliografias sobre o assunto escritas em runas antigas, o que acabava
funcionando como um disfarce - estava estudando runas antigas, e não o sagrado
feminino ou o Fatum, para todos os efeitos.

Na escola, eu estava cada vez acumulando mais e mais tarefas, e a pesquisa


sobre Magia Antiga só fez aumentar essa lista. Andava cansada e mal humorada, mas
negava que tivesse a ver com o excesso de compromissos que eu havia assumido.

Para completar, Rony brigava o tempo todo comigo por causa de Bichento e
Perebas (o tempo mostrou que meu gato estava certo). E quando contei à professora
McGonagall sobre a Firebolt que Harry ganhou de um remetente anônimo e ela a
confiscou para investigar se havia feitiços na vassoura, Harry também ficou chateado
comigo, e eu me sentia mais sozinha que nunca.

Draco já havia voltado às aulas, o que me tranquilizou. Como prevíamos, ele


aumentou muito o episódio com Bicuço e não parava de falar disso e mostrar seu
braço enfaixado com caretas de dor, enfatizando que havia escapado por pouco de
uma amputação. Soubemos que seu pai entrou com uma queixa formal contra
Hagrid no Ministério, e as perspectivas não eram boas para ele.

Nesse meio tempo, Sirius Black havia invadido Hogwarts, e eu estava com
receio por Harry. Tudo piorou quando ele descobriu que Sirius era seu padrinho e
havia traído seus pais - pelo menos, é o que ele pensava. Foram tempos assustadores,
e os dementadores cercando a escola não contribuíam para melhorar o clima.

Como se tudo já não estivesse tão ruim, chegou a notícia de que Hagrid estava
sendo investigado pelo ataque de Bicuço a Malfoy. Ele deveria depor no Ministério, e
um resultado provável era que o hipogrifo poderia ser sacrificado. Hagrid estava
arrasado, e eu me prontifiquei a ajudá-lo com a sua defesa, ao que me dediquei
muito, sem me importar de acumular mais essa tarefa.

No entanto, por mais que eu tenha me dedicado não foi suficiente, e o


resultado do processo foi que Bicuço deveria ser sacrificado. Havia a possibilidade de
apresentar um recurso, mas eu sabia que não ia adiantar, apesar de não ter dito isso
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a Hagrid. O que mais me enfurecia nessa história toda era a injustiça, o que eu não
conseguia suportar, e fiquei com muita raiva de Malfoy.

Pelo menos, eu já havia feito as pazes com Harry e Rony, e estávamos


tentando animar Hagrid, que estava inconsolável quando nos encontramos na sua
aula. Estávamos conversando com ele enquanto fazíamos o caminho de volta para
escola, mas ele não aguentou mais falar e saiu chorando para a sua cabana. Eu
desconfiei que ele tinha andado bebendo demais, pois senti um cheiro forte de
hidromel quando ele passou por mim. Ele estava arrasado.

Foi nessa hora que ouvi Malfoy zombando de Hagrid. Tamanha falta de
sensibilidade terminou de me enfurecer, e é difícil explicar como me senti: o fracasso
da defesa, a preocupação com Hagrid e Bicuço, toda a situação com Sirius… e
também meus sentimentos confusos em relação a Draco e ao oráculo. Só sei que
avancei na direção de Draco e dei o melhor tapa da minha vida na sua cara, cuspindo
os maiores desaforos em que pude pensar. Fui tomada por uma fúria: eu espumava, e
Rony teve que me segurar.

Draco teve uma reação estranha - simplesmente foi embora. Não me ameaçou
nem me xingou de sangue ruim. Eu estava tão agitada que não pensei sobre o
assunto, mas depois achei que ele ia tentar se vingar de alguma forma. Precisei ficar
um pouco sozinha, tentando colocar os pensamentos no lugar. Será que eu tinha sido
impulsiva demais?

Mais uma vez, senti o pavor de ser descoberta, caso Rony e Harry
desconfiassem que eu estava reagindo de forma mais intensa do que deveria em
relação a Draco. Ou (a hipótese mais terrível) que Draco notasse alguma coisa
diferente em mim.

Fiquei tão envolvida por esses pensamentos que esqueci da aula de Feitiços!
Era imperdoável: por causa de Malfoy eu estava começando a falhar, deixando
brechas na minha couraça. Onde isso iria parar? Corri para me desculpar com o
professor Flitwick, que compreendeu e me aconselhou a ir mais devagar, me
passando prontamente o conteúdo tratado na aula.
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Meu humor continuava péssimo, mesmo assim. É claro que eu não reconhecia
todo o esgotamento que estudar demais estava me causando, e só conseguia achar
um culpado: Draco Malfoy e os malditos oráculos.

O último lugar em que eu deveria estar nesse estado de espírito seria a aula de
Adivinhação, e era justamente para onde eu tinha que ir. Acabei sendo impertinente
com a professora Trelawney, um comportamento inesperado para mim, uma aluna
exemplar em todas as disciplinas, que suportava até as piores humilhações nas aulas
do professor Snape, em que ele se comprazia em me deixar com a mão suspensa no
ar, aguardando autorização para falar.

Trelawney e seus oráculos e previsões, eu estava cheia. Definitivamente, este


não estava sendo um bom dia. Eu já havia explodido com Malfoy, mas quando
Trelawney disse que eu não tinha talento para Adivinhação e que a minha mente era
muito terrena foi a gota d'água: abandonei a sala de aula, abrindo a porta com um
pontapé.

Pensando na minha reação, depois, fiquei com muita vergonha - o que estava
acontecendo comigo? Eu estava desabando. Fiquei me censurando e ruminando o
que sucedeu, pois não tinha com quem compartilhar esses sentimentos. Eu estava
terrivelmente só, e a minha conselheira interna, na forma de professora McGonagall,
só conseguia me olhar com comiseração, balançando a cabeça com gentileza e
compreensão.

Como os pensamentos negativos parecem se acumular e crescer quanto mais


pensamos nas piores possibilidades, comecei a ficar cada vez mais tensa com a
perspectiva de Malfoy querer se vingar por causa do tapa. Sim, ele certamente iria, e
passei a tomar mais cuidado ao andar pela escola.

Estava esperando o momento em que ele ia me cercar em algum lugar, talvez


tentar jogar algum feitiço ou mesmo revidar na mesma moeda. Mas dessa última
hipótese eu duvidava - ele consideraria bater em mim algo indigno de alguém como
ele. Eu o observava discretamente no salão, e ele parecia continuar me ignorando,
como sempre.

Foi quando já haviam passado dois dias após o tapa que eu me dei conta de
duas possibilidades. A primeira, de que Draco Malfoy iria construir uma vingança
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cruel e premeditada, me atacando dentro de alguns meses ou anos de forma


inesperada. Era uma possibilidade remota, pois ele era mimado demais para esperar
tanto tempo por isso. Ou então não haveria vingança.

A segunda hipótese, que deveria me aliviar, me entristeceu, para minha


surpresa. Mais uma vez, eu deixei de enxergar o óbvio: Hermione Granger não existe
para Draco Malfoy, e nem um tapa na cara foi suficiente para que ele a notasse. Eu
não poderia estar mais enganada, mas como iria saber?
32

Capítulo 5 - Sincronicidade

Os exames estavam chegando, e essa era a pior época do ano para mim. Para
quem não me conhece, essa afirmação pode sugerir que eu não estivesse bem
preparada para as provas, mas era justamente o contrário. Mesmo com tantos
compromissos e estudos simultâneos, eu estava pronta para os exames e excederia
todas as expectativas, como de costume. Mas essa era minha natureza de aluna
perfeita. De forma justificada ou não, na época dos exames meus nervos ficavam à
flor da pele.

Passava a maior parte do dia e da noite estudando para as provas, e para


relaxar continuava a ler sobre Magia Antiga - por mais difícil que seja acreditar nisso,
essas leituras me distraíam. Além disso, eram a saída racional que eu havia
encontrado para tentar colocar alguma ordem nos meus sentimentos confusos.

Foi numa dessas pesquisas que achei um livro falando sobre o Synchro. Não
havia quase nada sobre o assunto, e ponderei que deveria se tratar de algo incomum
e raro. O Synchro é uma marca mágica, uma espécie de condição, algo com que a
pessoa nasce, como a cor dos olhos. É uma marca de ligação, e quem tem o Synchro
tem sua vida ligada a uma outra pessoa, cujo destino fica entrelaçado com o seu.
Essas duas pessoas têm algo a aprender juntas, e por isso se encontram por ação do
destino, mesmo sem se procurarem de forma intencional. É um laço mágico.

A ideia da casualidade significativa é a manifestação básica da marca do


Synchro. É algo tão forte que até mesmo os trouxas conseguem perceber seus efeitos.
O psicólogo trouxa Carl G. Jung, embora desconhecesse as raízes mágicas do
Synchro, estudou sua manifestação e criou o conceito de sincronicidade.

A sincronicidade pode ser definida como uma relação de significado entre dois
eventos que acontecem ao mesmo tempo, mas que não têm uma relação causal. Ele
os chamava de coincidências significativas. É o que acontece quando entramos numa
biblioteca e encontramos exatamente o livro sobre o assunto que procuramos sem
pesquisar.
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Outro exemplo são as visões de cachorros que Harry teve quando Sirius
apareceu na sua vida - a capa do livro sobre presságios, a história do Sinistro, a visão
de Sirius na sua forma animal no ponto de ônibus e no jardim com Bichento. O ponto
é que não é por acaso, é um sinal de um acontecimento significativo, como se o
mundo real respondesse a uma disposição interna que precisa da nossa atenção.

Na tradição mágica, o Synchro sinaliza algo que deve ser considerado e


interpretado, um sinal indicado pelos oráculos, que acontece num momento
específico no tempo e que nada tem de aleatório. Segundo essas tradições, aceitar o
que esse sinal está indicando é uma das transformações mais importantes para o
autoconhecimento, e também uma forma de ter respostas para as indagações,
confiando no Universo para saber o que fazer.

Esse tipo de pensamento está na base da existência de qualquer oráculo: a


carta, a vareta, a pedra ou as folhas de chá refletem um momento no tempo, e cabe
ao leitor interpretá-lo.

A associação do Synchro com a marca de Deméter era mais uma confirmação


de um relacionamento regido pelo destino, que é sinalizado pelas coincidências
significativas entre duas pessoas. Isso me deixou apreensiva - se eu estava marcada
pelo Synchro, quem era esse par que me acompanhava?

Minha intuição, por mais que eu achasse absurdo e não quisesse aceitar, me
fazia pensar em Draco. Será que a minha relação com Draco era marcada pelo
Synchro? Isso me atemorizava, eu não sabia direito o que pensar ou o que fazer com
essa informação.

Procurei me acalmar recorrendo à voz interna, dizendo a mim mesma que eu


ia conhecer melhor essas questões com o tempo, não precisava me desesperar. O
tempo, aliás, foi algo que passou ao primeiro plano naquele momento. Não pude
deixar de pensar que foi sincrônico aprender sobre o assunto justamente na época
em que o Vira-Tempo estava tendo um papel tão importante na minha vida.

Prometi a mim mesma que tentaria observar melhor as coincidências


significativas em meu dia a dia para tentar aprender como lidar com os sentimentos
desafiadores que estava experimentando.
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Os exames continuaram dentro do previsto. Ou quase. O professor Lupin


criou uma espécie de circuito de provas, em que a última era enfrentar um
bicho-papão com o feitiço Riddikulus. Quando viram minha reação, contei a Rony e
Harry que meu bicho papão tomou a forma da professora McGonagall dizendo que
eu havia tirado zero, o que aconteceu de fato e me assustou bastante.

O que não contei foi que, na visão, ela me mostrava um pergaminho com um
olhar de decepção e balançava a cabeça negativamente - o pergaminho em que eu
havia desenhado a xícara de chá que eu havia tirado da aula de Trelawney. Foi
apavorante.

Harry e Rony acharam divertido e não desconfiaram de nada - na inocência


deles, a única coisa que poderia me assustar era ser má aluna. Bem, eles não
deixavam de ter razão, mas havia sentimentos que me assustavam mais e que eu não
admitia nem para mim mesma. Fiquei imaginando como seria o bicho papão de
Malfoy.

Finalmente, chegou o dia do último exame, Estudos dos Trouxas. Mas não foi
um dia de alívio: a execução de Bicuço foi marcada para o pôr do sol. Procuramos
Hagrid, mas ele nos mandou embora, não queria que estivéssemos por perto na hora.
Chorei por Bicuço, por Hagrid, por toda a injustiça. E odiei Malfoy, por ser um garoto
insensível e cruel.

Mas a história não acabou aí, e numa noite cheia de reviravoltas, eu e Harry
conseguimos salvar Bicuço e libertar Sirius. Não vou detalhar os acontecimentos,
apenas direi que foi uma das aventuras mais empolgantes que vivi - e olha que não
foram poucas.

No dia seguinte, soube que Malfoy ficou enfurecido com a fuga de Bicuço, e
que atribuiu a Hagrid ter enganado a ele e seu pai. Minha raiva por ele continuava,
mesmo após a fuga de Bicuço. Garoto mimado. Para ele, o principal era atingir
Hagrid, pouco se importando com Bicuço. Por que ele tinha que ser tão cruel?

Eu me recriminava ainda mais por tentar entender seus motivos e não


conseguia encontrar uma justificativa aceitável para o seu comportamento.
Secretamente, desejei que a libertação de Bicuço fosse um pedido de perdão para
Draco Malfoy, ainda que ele não desejasse isso.
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O final do ano letivo se aproximava, e tratei de devolver o Vira-Tempo para a


professora McGonagall. Apesar de ter nos ajudado a salvar Bicuço e Sirius, eu não
queria mais saber de ficar voltando no tempo para estudar mais disciplinas ao
mesmo tempo, o que quase me enlouqueceu. Já havia tido a minha cota e me
desgastado demais. Um pouco de juízo e equilíbrio me faria bem, afinal.

No caminho de volta, encontrei com um bando de alunos da Lufa-lufa


comemorando o fim do ano, naquela alegria descompromissada em que todos
parecem ter sete anos de idade de novo. Pulavam e cantavam abraçados, agitando os
cachecóis listrados de amarelo e preto. Lembro de ter pensado que pareciam um
bando de abelhas gigantes e abobalhadas.

Quando pensei em abelhas, lembrei do Synchro e tudo se iluminou como se


um raio atravessasse a minha mente de uma maneira súbita e incontrolável. As
abelhas sempre apareciam quando meu caminho se cruzava como de Draco - as
lembranças começaram a jorrar, desde os feijõezinhos com gosto de mel de Rony, as
abelhas nas últimas flores, o cheiro de hidromel em Hagrid e o mel em sua barba,
tudo se encaixava.

Senti uma sensação de calor me envolvendo da garganta até as coxas, e tinha


certeza que meu rosto estava muito vermelho. Na mesma hora, pensei: aqui estou eu,
aqui estão as abelhas, onde está Draco?

Como se tivesse ouvido a minha pergunta e se apressasse em respondê-la,


Draco Malfoy surgiu na entrada do corredor em que eu estava parada. Quando ele
me viu, também parou. Estava a mais ou menos cinco passos de distância de mim.

Por eternos dois ou três segundos não dissemos nada, só ficamos nos olhando,
impassíveis. O silêncio era quebrado apenas pelos risos distantes dos alunos lá fora.
Estávamos sozinhos, desatentos à regra social de falar algo, por mais aleatório que
fosse, em uma situação dessas. Draco reagiu primeiro:

- Passeando sem os seus namorados, Granger?

- E você, passeando sem os seus? - Respondi, com a melhor ironia fingida


possível para o momento.
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O rosto dele ficou rosado, e o gesto de afinar os lábios surgiu imediatamente,


combinando com seus olhos raivosos.

- Você é uma sangue ruim bem atrevida, Granger. Não pense que eu esqueci o
tapa que você me deu.

- Estou morrendo de medo de você, Malfoy…

Ele se aproximou em passos rápidos, e parou a dez centímetros de mim. Meu


estômago deu um salto, mas eu me mantive firme, sustentando o olhar fixo no dele.
Eu senti o calor que emanava dele, seu perfume fresco e amadeirado, as inebriantes
notas de cedro, sândalo e musgo. Aquilo já estava começando a me perturbar, mesmo
tendo durado poucos segundos.

- Tudo bem por aqui?

A voz do professor Lupin quebrou a tensão. Automaticamente, nos afastamos,


dando um passo atrás. Respondi com todo o equilíbrio que consegui reunir:

- Tudo ótimo, professor.

Draco não falou nada. Olhou para Lupin com um misto de raiva e desprezo, e
foi embora pisando duro.

- Está tudo bem mesmo, Hermione? - perguntou o professor Lupin.

- Sim, foi apenas uma troca de gentilezas com Malfoy, para não perder o
costume.

Consegui encontrar forças para sair dali sem demonstrar o quanto estava
abalada. A descoberta de que a abelha era um símbolo do Synchro entre mim e Draco
já teria me desequilibrado o suficiente sem precisar ficar a centímetros dele. Eu só
queria sair de Hogwarts o mais rápido possível e não pensar mais em Draco, no
Synchro e em mais nada. Quase desejei poder sair de ambulância novamente como
no ano passado, só queria ficar longe de tudo… principalmente dele.

O dia de ir embora finalmente chegou, apesar de parecer demorar séculos.


Estava arrumando meu malão quando encontrei a xícara de chá. Por mais que eu não
quisesse pensar no assunto (pelo menos, estava me esforçando para isso), a
curiosidade foi mais forte: se eu utilizasse o Synchro de forma intencional, será que
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funcionaria? Ou: se eu usasse uma imagem ou evocasse de alguma forma uma


abelha, isso faria com que eu encontrasse Draco?

Esse tipo de hipótese não resistiria a uma revisão mínima, e nem valeria a
pena ser testada diante do que eu sabia sobre o Synchro. É claro que o meu raciocínio
científico falhava quando o assunto era Draco Malfoy, e resolvi fazer o teste.

Coloquei a xícara sob a capa e fui até o salão, depois dei uma volta curta no
pátio. Cheguei a passar perto da entrada das masmorras. Se eu pudesse me ver de
fora, raciocinando em estado normal, iria perguntar: você está verificando uma
hipótese ou está procurando Draco Malfoy?

Me senti muito idiota e envergonhada. Discretamente, limpei a xícara e a


deixei em um canto do salão. Mas guardei o desenho que fiz dela dentro de um livro,
meio sem saber por quê.

Conclusão do estudo: o Synchro não age de forma causal, como reação a uma
atitude intencional, e sim como um acontecimento significativo e inesperado.
Portanto, não se pode controlá-lo (como se eu já não soubesse disso).

Dumbledore disse a Harry que deveríamos aprender, com a experiência do


Vira-tempo, que as consequências dos nossos atos são muito diversas, e por isso
prever o futuro é uma tarefa muito difícil. Uma conclusão sábia, apesar de
profundamente irritante. Era uma lição que eu poderia dizer ter aprendido, ou pelo
menos estar me esforçando bastante para aprender.

Mas chega de experimentos científicos - pelo menos por este ano letivo. Eu
precisava de férias, mais merecidas do que nunca. Não apenas para descansar, mas
para planejar e colocar em prática um novo projeto.

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