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A arte é revolucionária, e é capturada. Mas a arte resiste, pois os meios nós criamos!

Gabriela Abrahão Masson1


Homero Pereira de Oliveira Junior2

I - Introdução:

Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está


fazendo – o novo, o notável, o interessante, que substituem a
aparência de verdade e que são mais exigentes que ela. […] A história
não é experimentação, ela é somente o conjunto das condições quase
negativas que tornam possível a experimentação de algo que escapa à
história. Sem história, a experimentação permaneceria indeterminada,
incondicionada, mas a experimentação não é histórica, ela é filosófica.
(DELEUZE; GUATARRI, 1992, p.133)

Esse trabalho consiste numa espécie de narrativa e contextualização de uma experimentação.


Na ocasião, eu tinha que apresentar um trabalho de Psicologia Social na faculdade. Junto dos amigos
de grupo, transpomos as delimitações da instituição Universidade Federal do Triângulo Mineiro
(UFTM) bem como de suas demais e eventuais instituições, lodos e pântanos: fizemos de suas paredes
pálidas e pobres, à época, e de sua estrutura panóptica e devidamente tecnocêntrica, nosso horizonte,
nossos pássaros e palco aberto. Produzimos realidade, resistimos ao tédio, plantamos uma flor na rua
de suas veias, desterritorializamos nossos corpos e mergulhamos na intempestividade de devires ...
nômades-continentais, transamos a história, gargarejamos a cronos-dialética, brincamos na poesia
dançarina que tocou acordes em cada rosto espantado e em cada corpo perfurado pela costura
imanente que reverberava afectos e sambava afetos. Nossa semente foi errante, andarilha. E, aqui neste
breve artigo, compartilho essa vivência como posso: como um menino que vem correndo, carregando
água na peneira, lambuzado de uma ansiedade nobre e potente, trazendo sua empolgação alegre pelo
resto do quintal. A todas as demais crianças do quintal, aqui vai meu sorriso!

1
Assistente Social, Doutoranda do Programa de Pós- Graduação da UNESP/ Campus de Franca e docente do
curso de Serviço Social da Universidade Federal do Triangulo Mineiro.
2
Discente do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Triangulo Mineiro.

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II – Desenvolvimento:

A flor nasceu na rua

A ênfase que eu dou ao teor criativo, crianceiro, guerrilheiro e potente dessa


apresentação de trabalho se deve ao fato de que a universidade a qual estudo, bem como às
ramificações decorrentes do próprio curso de psicologia da referida instituição, constitui um
calabouço. Um calabouço branco: sua arquitetura é médico-hospitalar, circular, panóptica,
com uma atmosfera sutilmente templaria - sobretudo pelas janelas e vidraças redondas
distribuídas pelas rampas espirais que dão acesso aos andares desse, que é um prédio.
Templo, também, por apresentar dispositivos modernos de transcendência e vigilância, e, por
conseguinte, toda uma amálgama privatizada, seletiva, elitista. É preciso apresentar crachá
para adentrar seus aposentos; há câmeras de vigilância pelos corredores; há uma agência
bancária, do Brasil, lá dentro. Mas não há espaços de vivência, culturais. Sua estrutura
seleciona o branco, rastreia, estranha, marginaliza e exclui a multiplicidade. Escoa as cores
por um ralo – a porta por onde entra e sai, os estacionamentos que dão vazão. Não é um
lugar, é um não-lugar – como diria Virilio (1993). E foi a partir dessa condição que
atualizamos as forças, virtuais, naqueles encontros, por frestas que enxergamos, canais que
ligamos; construímos planos de imanência. Como diz Deleuze (2006)

O virtual não se opõe ao real, mas apenas ao atual. O virtual possui


uma plena realidade como virtual. Do virtual, é preciso dizer
exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonância: ‘Reais sem
serem atuais, ideais sem serem abstratos’, e simbólicos sem serem
fictícios. O virtual deve ser definido como uma parte própria do objeto
real – como se o objeto tivesse uma de suas partes no virtual e aí
mergulhasse como numa dimensão objetiva. (p.294)

Ao tédio e ao ódio, como na poesia de Drummond, erguemos em trupe uma máquina


de guerra. Resistimos, além dos mecanismos que já mencionei, à instituição ‘aluno’.
Recusamos o papel normatizado, recusamos a ‘ausência de luz’, a condição reprodutora, de
possibilidades pré-estabelecidas que funcionam como não-possibilidades, engessadas por
slides e citações. Queríamos, de fato, flertar com as forças afirmativas que cintilavam nossos
corpos; tínhamos sede de violação, de mastigar transgressões e, daí, rangia os encontros em
que planejávamos nossa apresentação. Estava chata a separação das tarefas e falas, e
sentíamos que de alguma forma estávamos ficando tristes na monotonia discursiva que era tão
indigesta. Começamos, pois, a rabiscar e cartografar novas linhas, novos suspiros, e dar
potência àquele corpo-sem-órgãos! Precisávamos caotizar ( . . . )

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O plano de imanência é como um corte do caos e age como um crivo.
O que caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de
determinações que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e
se apagam: não é um movimento de uma a outra, mas, ao contrário, a
impossibilidade de uma relação entre duas determinações, já que uma
não aparece sem que a outra tenha já desaparecido, e que uma aparece
como evanescente quando a outra desaparece como esboço. O caos
não é um estado inerte ou estacionado, não é uma mistura ao acaso. O
caos caotiza, e desfaz no infinito toda consistência. (DELEUZE E
GUATTARI, 1992, p. 58.)

Para estabelecer cortes, costurar os fluxos e agenciamentos, e afetar os corpos, tanto


os nossos quanto os daqueles que nos assistiam, dispusemos a estética da apresentação a partir
de ‘atos’. De forma teatral, contextualizamos os atos, sem narrativa concomitante. A
contextualização acontecia entre os atos, e naqueles vacúolos demos consistência aos atos.
Dessa forma, coloco neste presente artigo os principais atos que foram criados e
usados.

ATO I - O sofismo da Grécia encobre a educação grega? A ágora se expressa!

Aqui esboçamos a educação grega. A Grécia Antiga exerceu e transpirou arte e


conhecimento durante toda sua impetuosa história. A educação grega estava centrada na
formação integral – corpo e espírito – e num primeiro momento as primeiras escolas eram
ofertadas apenas à aristocracia. Após a ascensão da classe dos comerciantes e o novo
exercício de poder estabelecido na Polis esse quadro começou a ser alterado, o que levou a
possibilidade de abrir a educação à coletividade. Os ofícios se aprendiam no próprio local de
trabalho, as exceções ficavam por conta da Arquitetura e da Medicina, consideradas artes
nobres. Dos sofistas (séc. V a.C) à episteme, a Grécia borbulhava sua ética e estética.
No primeiro ato, além da afirmação da educação grega junto à exaltação do espaço
público e do ideal da ágora, local máximo da relação política grega e que simboliza a
assembleia e cidadania, a arte é sobrepujada pelo opressivo gesto de desvalorização humana.
Na cena, um comerciante tenta se aproveitar da superioridade de sua posição social e retórica
sofista para pulverizar um raro talento. O artista, fundamentado por seu pensamento paidéio,
assustado e indignado ao ver sua belíssima arte músico-teatral sendo comparada a vis
mercadorias se subleva e pondera as atitudes do comerciante. Resiste bravamente, questiona e
grita para toda a Polis ouvir e, posteriormente, acaba sendo sufocado pela intempestiva espada

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do soldado romano. O Império de Roma já beliscava o que a Grécia transbordava (...) O
Coliseu aguarda o artista...!

II ATO – O “poder disciplinar”

O poder disciplinar está preocupado com a regulação e a vigilância, que seria


vinculado ao governo das populações, ao indivíduo e corpo. Seus locais são as novas
instituições que se desenvolveram ao longo do século XIX e que disciplinam e policiam as
populações modernas – escolas, prisões, quartéis, hospitais, clínicas, etc (HALL, 2000).
O objetivo do poder disciplinar é manter a vida, os prazeres, o trabalho, saúde física
e moral dos indivíduos, sob estrita regulamentação, controle e disciplina, com base nos
poderes administrativos, no conhecimento especializado dos profissionais das burocracias, e
no conhecimento fornecido pelas psicologias, pelas ciências sociais. A conservação dos
corpos, as técnicas disciplinares têm como objetivo reduzir o campo da subjetividade,
impondo padrões e controles de conduta aos sentimentos, imaginação, aos desejos e emoções.
No II ato o artista, capturado pela polícia romana diretamente da Grécia, cai no
Coliseu. Lá, vestindo uma camisa da CBF, ele tem que jogar bola, fazer embaixadinhas,
agradar e entreter o estádio. Seus gols lhe garantem audiência. Seu violão, sua arte, tomadas
outrora, deu lugar a uma espécie de ‘alegria em jogar futebol’. Sua peraltagem é repreendida,
disciplinada, transformada em eficiência. O profissionalismo, afinal, é algo sério (. . .)
O homem que não encontra sua subsistência deve absolutamente ser
levado ao desejo de procurá-la pelo trabalho; ela lhe é oferecida pela
polícia e pela disciplina; de alguma maneira, ele é obrigado a se
entregar; a atração do ganho o excita, em seguida: corrigido em seus
hábitos, acostumado a trabalhar, alimentado sem inquietação com
alguns lucros que reserva para a saída [ele aprendeu uma profissão]
que lhe garante uma subsistência sem perigo. Um corpo dócil é um
corpo manipulável e analisável. (FOUCALT, 2010, p.141).

As disciplinas, conforme Foucault (2010), aumentam a força do corpo em termos


econômicos de utilidade, e diminuem essas mesmas forças em termos políticos de obediência.

III ATO – Análise da dialética

O quarto e último ato, relatado aqui, corresponde à modernidade. Desde o período


renascentista, as reverberações literárias que culminaram na internalização do homem, na prosperidade
romantista advinda das revoluções burguesas, das transformações pós-feudalismo até os

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remanejamentos familiares das sociedades capitalistas ocidentais. O artista, aqui, se depara com o
divã, com a técnica clínica tradicional, edipiana, com a exploração capitalística de seu corpo e com os
tentáculos neoliberais que o aguardavam.

Freud – Oi, você que é o Karl Marx?

Markos – Não, sou o Markos trabalhador... e você é o Doutor Fred?

Freud – Doutor Freud!!!!!! Sigmund Freud!!!... mas espera, como você veio parar aqui?

Markos – Através do Marx do sindicato. Meu sindicato tem convênio com a sua clínica. A
gente dá o sangue e a alma da gente e ganha uma visitinha com o doutor.

Freud – Mesmo assim acho estranho, és o primeiro operário que analiso. Mas tudo bem,
vamos lá e me diga logo... O que está havendo?

Markos – Ah! Eu estou muito estranho ultimamente. Eu trabalho 18 horas por dia, algo
normal sabe? Não tenho tempo pra patroa, não tenho tempo pra fazer nada. Só trabalhar mesmo. E
estou achando estranho porque to me sentido culpado por isso. Parece que me falta alguma coisa. O
que está acontecendo comigo?

Freud - Olha Markos, o sentimento de culpa é natural em um pai de família que vive em
nossa sociedade, pois quando nossos ancestrais decidiram viver em sociedade, deixamos de realizar
nossas pulsões e passamos a recalcá-las e isso nos trás esse sentimento. Devemos investigar e
analisar sua relação com seu pai, o que acha?

Markos- mas será que isso num é conversa fiada não, heim!? Desde quando trabalhador têm
essas coisas? Eu só sei que sinto muita vontade de sair daquela fábrica e mostrar o que eu realmente
sei fazer, que é pintar quadros. Eu já pintei alguns, mas meu patrão quebrou na minha frente e me
chamou de baderneiro e vândalo... ah e também me chamou de comunista, mas sei lá o que é isso.
Assim num dá Fred!

Freud - Então comece a vender seus quadros! Assim você ganha dinheiro com sua arte e
quem sabe sai da fábrica...

Markos - mas o que eu ganho mal dá pra comer... como vou comprar meus materiais? O que
posso fazer? Eu já ouvi falar de uma tal luta de classes, mas não entendo isso. Na verdade eu sinto
que essa luta me acerta em cheio. Mas enfim, tô achando que vou passar num banco e pedir um
financiamento. Até porque a moda agora é essa tal produção em série... Como é que se diz mesmo? É
o Fordinho?

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Freud – Não, não. É Fordismo! E o Fordismo é um dos aspectos do mal estar da sociedade
em que vivemos. Sabe como é né !?... tempos modernos!

O que é verdadeiro para qualquer processo de criação é verdadeiro


para a vida. Um músico ou pintor está mergulhado em tudo o que foi a
história da pintura, em tudo o que a pintura é em torno dele e, no
entanto, ele a retoma de um modo singular. Isso é uma coisa. Outra
coisa é a maneira como essa existência, esse processo criativo será
depois identificado em coordenadas sócio-históricas; isso não coincide
com o sentido do processo de singularização. Ora, o que interessa à
subjetividade capitalística não é o processo de singularização; mas
justamente esse resultado do processo, resultado de sua circunscrição
a modos de identificação dessa subjetividade dominante.
(GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 68.)

À beleza da trupe

Nunca se compreendeu que o trágico era positividade pura e múltipla, alegria


dinâmica. Trágica é a afirmação: porque afirma o devir e, do devir, o ser; porque afirma o
múltiplo e, do múltiplo, o uno. Trágico é o lance de dados. (DELEUZE, 2001, p.19)
Quero agradecer os amigos que compuseram essa experimentação comigo. Renan,
Dani, Nat, Lú. Agradeço também aos companheiros e amigos que sempre me inspiraram - ao
Fer e a Angie. Foi um acontecimento, no ano de 2013. Um trabalho. À época estávamos no 4°
período da faculdade, e penso que só depois de algum tempo pude ter mais clareza do quão
fomos fortes, revolucionários, afirmativos. Esse trabalho foi lindo, e nós sabemos bem o
quanto tivemos coragem de romper diversas instituições do poder que teimam em colar em
nossos corpos. Teci estas reflexões justamente para compartilhar com os companheiros do
Seminário Conexões Deleuze. Agradeço também a minha amiga, companheira e amada, por
traçar comigo essa ideia. Foi ela quem me sugeriu, de fato, essa proposta: “Por que você não
compartilha suas impressões dessa experiência, mesmo que de forma breve?”, ao passo que
eu a respondi: “Pode ser, mas apenas se fizermos juntos!”. Afinal, como ela me diz: Um
sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é
realidade. (Raul Seixas)

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Referências

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

______ . Nietzsche e a Filosofia. Porto: Rés-Editora, 2001.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed, 1992.

FOCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2010.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. (1986). Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis:

Vozes. 1986.

HALL, Stuart. (2000). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora, 1993.

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