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ENSAIOS SOCIOSSEMIÓTICOS
UM BUFÃO NO PODER
ENSAIOS SOCIOSSEMIÓTICOS
Yvana Fechine
Paolo Demuru
Rio de Janeiro
2022
© 2022 Yvana Fechine e Paolo Demuru
Editores
Karla Melo
Victor Paes
Gerência editorial
Náfis Bressane
Projeto gráfico e capa
Pranayama Design
Imagem de capa
“Triunfo da Morte”, de Pieter Bruegel, o Velho
Diagramação e revisão
Rosana Almendares
Victor Paes
Comercial
Felipe Bressane
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Fabio Osmar de Oliveira Maciel – CRB-7 6284
F291b
Fechine, Yvana
Um bufão no poder: ensaios sociossemióticos / Yvana Fechine,
Paolo Demuru. – 1. ed. – Rio de Janeiro : Confraria do Vento, 2022.
188 p. ; 23 cm.
ISBN 978-65-5844-029-1
1. Semiótica. 2. Comunicação na política. 3. Ensaios brasileiros.
4. Democracia – Brasil. 5. Bolsonaro, Jair, 1955-. I. Demuru, Paolo.
II. Título.
466-038-22 CDD : 401.41
Índice para catálogo sistemático:
1. Semiótica 401.41
CONFRARIA DO VENTO
Av. Treze de Maio, 13/2010
Cinelândia - Rio de Janeiro/RJ 20031-007
(21) 2533-3587/ (21) 98900-3786
www.confrariadovento.com
comercial@confrariadovento.com
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
SUMÁRIO
Prefácio
Eric Landowski
7
Apresentação
Yvana Fechine
Paolo Demuru
11
Bolsonaro e o populismo bufão
Yvana Fechine
Paolo Demuru
17
Paixão e presença
Yvana Fechine
55
O homem comum
Paolo Demuru
93
Caos, conspiração e messianismo
Paolo Demuru
113
Regimes de interação na pandemia
Yvana Fechine
141
Uma retórica da desinformação
Yvana Fechine
Paolo Demuru
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PREFÁCIO
7
No entanto, este aspecto não dá conta do que constitui, a nosso ver, a
característica mais específica do fenômeno e, ao mesmo tempo, seu aspecto
menos explorado: o extraordinário poder de fascínio que este tipo de figu-
ras políticas exerce sobre considerável parte dos cidadãos. Ao esclarecer os
procedimentos através dos quais se exerce o domínio de um homem sobre
seus seguidores e, por esse caminho, indo além das problemáticas clássicas da
persuasão argumentativa, mas sem deixar de considerá-las, este livro desloca
o centro de interesse e cumpre um decisivo passo adiante, tanto do ponto
de vista da teoria quanto da análise.
*
Para tentar compreender este tipo de caso extremo, em que o laço político se
aproxima perigosamente de certas formas de fanatismo, os autores recorrem
8
a uma abordagem – a problemática sociossemiótica – que, por razões teóricas,
atribui uma importância decisiva à dimensão emocional, vivida, sensível (ou
“estésica”), das interações entre os indivíduos ou as coletividades. Uma tal
escolha metodológica é particularmente justificada face ao problema em pau-
ta, se admitirmos que, aquém dos dados contextuais, a relação de fidelidade
populista é, antes de tudo, em profundidade, uma questão de sensibilidade.
Como faz bem ver este livro, o que funda o credo populista é, com efeito,
o sentimento de um elo interpessoal que une intimamente, quase carnalmente,
o líder a cada um de seus apoiadores mais ou menos fanatizados. Para a par-
cela do eleitorado predisposta a se deixar fascinar, a crença na veracidade dos
discursos do bufão só depende secundariamente do conteúdo argumentativo
do que ele diz. Esta confiança quase inabalável resulta, acima de tudo, de
um sentimento de afinidade em relação à sua pessoa enquanto encarnação
de um determinado estilo existencial e de uma experiência pessoal preten-
samente compartilhada. Fazer crer nesse pertencimento comum – o fazer
sentir / fazê-lo sentir – constitui o coração da estratégia do bufão, mesmo
se, na realidade, a sua política só piora a condição dos mais desfavorecidos.
Consequentemente, o modo de o ídolo se colocar em cena, sua gestua-
lidade, seu tom de voz, seu ritmo de elocução, a aparente espontaneidade
de uma linguagem franca e direta, seu “jeito” familiar, tudo isso, aliado ao
apelo deliberado (e demagógico) ao “politicamente incorreto”, vale mais do
que qualquer demonstração argumentada. E, contrariamente a um raciocínio
articulado, a simpatia (ou antipatia) experimentada ao perceber estas marcas
sensíveis não se presta a nenhuma forma de refutação.
Decorre daí a absoluta ineficácia de todo e qualquer fact checking. Pois,
neste contato tanto intenso quanto ilusório entre um eu e um tu, quem diz a
verdade só pode ser aquele que, por sua maneira de ser, e de se fazer presente
para mim, consegue me dar a impressão de que, paradoxalmente, apesar de
sua posição no centro mesmo do Poder, ele encarna a maneira mesma de
estar no mundo que, supostamente, compartilham os mais humildes – em
particular, os mesmos ressentimentos, a mesma raiva face à “arrogância” das
“elites” de qualquer ordem (técnica, intelectual, cultural, social, econômica
etc.) que sejam.
O que o eleitor subjugado experimenta então, mediante uma forma de
inteligibilidade do sentir, é, portanto, muito mais do que a simples satisfação
de uma convergência de opinião: é o prazer intenso, “a flor da pele”, de uma
sintonia em relação ao ídolo. E isso determina a aceitação incondicional de
sua palavra.
9
Eis, pois, um livro que aborda de frente uma dimensão vivida do fenômeno
que, até hoje, foi raramente considerada por si mesma. Este esforço para
entender melhor como, na ótica populista, se dá a experiência sensível da
relação com “o outro” em geral, com a sociedade, com o político, e – no
centro de tudo – com o líder, é, certamente, apenas um primeiro passo.
Mas, para conceber uma contra estratégia eficaz, este passo inicial é
indispensável. Isso quer dizer que, ao apontar as contradições e desmontar
os mecanismos desta grande armadilha colocada (ou melhor, armada) pela
demagogia populista – uma armadilha astuciosamente articulada para enganar
as camadas da população as mais maltratadas economicamente e socialmente,
as mais frágeis culturalmente e, por esta razão mesma, politicamente as mais
facilmente manipuláveis –, os autores trazem uma contribuição essencial à
consolidação, ou à restauração de relações democráticas fundadas na razão.
Em suma, quando bem praticada, a semiótica pode se revelar útil!
Eric Landowski
Jovarai, Lituânia
20 de abril de 2022
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APRESENTAÇÃO
11
ele ganhou notoriedade depois que foi acusado de participar de um plano
para explodir bombas em quartéis e no sistema de abastecimento de água
do Rio de Janeiro como protesto pelos baixos salários pagos aos militares.
O julgamento e absolvição pelo Supremo Tribunal Militar, que tiveram
ampla repercussão em jornais e revistas, ocorreu pouco antes de Bolsonaro
sair do Exército, disputar eleições e assumir seu primeiro mandato como
vereador do Rio de Janeiro em 1989. A partir daí foram sucessivos man-
datos como deputado federal, ocupando por quase 30 anos uma cadeira
na Câmara Federal até se eleger presidente da República, período no qual
também emprestou seu capital eleitoral aos três filhos que fizeram carreira
política na sua sombra. Há aqui algo de paradoxal: como alguém que é
político profissional há tanto tempo e disputando a reeleição para a Presi-
dência da República Brasileira pode continuar fingindo ser “antipolítico”?
Em quais desenhos de comunicação se funda este projeto? Como, enfim,
um bufão consegue chegar e, sobretudo, se manter no poder?
Neste livro, buscamos responder a esta e outras perguntas. Analisa-
mos as formas e os caminhos através dos quais Bolsonaro construiu esta
identidade (anti)política. Desde já, vale dizer que a do bufão não é a única
estratégia utilizada para este escopo. Diversas são as modalidades por meio
das quais Bolsonaro imprime sua marca no campo do discurso político
contemporâneo, especialmente nas redes sociais. Entre elas, há diferenças
e analogias que constroem um verdadeiro emaranhado de sentidos, com-
posto por temas, valores e paixões diversas que Bolsonaro aciona isolada
ou conjuntamente conforme a exigência do momento.
No primeiro capítulo, escrito em coautoria, abordamos a caracteriza-
ção do Bolsonaro-bufão, enquadrando-o no contexto do assim chamado
“populismo digital”, que dominou, ao longo da segunda década do século
XXI, o cenário da política internacional. Procuramos desvendar o modo
como Bolsonaro desenvolve e articula suas técnicas de deboche, servindo-
-se tanto da linguagem verbo-visual, do meme e das táticas de “trollagem”,
quanto da linguagem do corpo. Paralelamente, identificamos outros papéis
que ele e os integrantes de seu governo assumem para contrabalancear as
incursões bufonas do presidente.
No segundo capítulo, a discussão é sobre a forma como Bolsonaro
consegue construir com seus seguidores um “espírito de corpo” e um
sentimento de pertencimento, um sentido de proximidade e um “sentir
junto”, cultivados pelos seus mais diversos modos de presença e prontidão
nas redes sociais.
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O terceiro capítulo analisa a estratégia discursiva do “homem co-
mum”, da qual Bolsonaro se serviu muitas vezes para construir a imagem
de um sujeito simples e autêntico, “gente como a gente”. Mostra-se como a
construção desta identidade se funda na exploração de diferentes recursos,
entre eles os gestos e a postura corpórea, a vestimenta e o comer. Pos-
tando imagens de baixa qualidade em suas redes sociais nas quais aparece
deitado no sofá de casa com a camisa do Palmeiras, comendo pão com
leite condensado ou frango com farofa, usando moletom e chinelos em
reuniões com ministros, Bolsonaro não apenas se apresenta como uma
“pessoa qualquer”, mas como um verdadeiro “usuário médio das mídias
sociais”, que expõe seu dia a dia no Instagram. Dessa forma, o aparato
ideológico do populismo de extrema direita, com seus valores autoritá-
rios, antidemocráticos e xenófobos, é camuflado e mitigado, tornando-se
mais leve e palatável.
No quarto capítulo, o enfoque é sobre o discurso conspiracionista
de Bolsonaro. A análise revela que o modo como o presidente mobiliza
teorias da conspiração tem por finalidade a construção e difusão de cená-
rios políticos, sociais e econômicos caóticos e apocalípticos, através dos
quais Bolsonaro mantém seus seguidores em estado de alerta. Segundo o
presidente, o Brasil e o mundo estão em perene colapso devido à atuação
de poderes ocultos que agem nos bastidores da sociedade. Nesse panora-
ma, Bolsonaro emerge como um verdadeiro “messias”, um “salvador da
pátria” ungido por Deus que pode resgatar o país de suas cinzas. Ou não,
pois se a crise se resolver definitivamente, o messias perde sua razão de ser.
Entre o messianismo e o catastrofismo, mostramos, no quinto capí-
tulo, como Bolsonaro conseguiu adesão de grande parcela da população à
sua postura negacionista e anticientificista no enfrentamento da pandemia
de covid-19, a partir da exploração e conjugação de diferentes regimes
de interação, que envolviam desde a programação de comportamentos
com a ajuda dos robôs da internet à manipulação sustentada pelo medo,
passando pelo ajustamento aos sentimentos do outro e pelo assentimento
frente à tragédia.
A retórica da desinformação utilizada por Bolsonaro para espalhar
notícias falsas ou distorcidas durante a pandemia de covid-19 teve também
um papel fundamental no convencimento de grande parte população que
passou, graças às pregações do presidente, a desconfiar até da eficácia
das vacinas. Foi este o foco do sexto capítulo, também em coautoria.
Nele, identificamos uma trama de falácias que vão desde os “argumentos
de autoridade”, o “apelo à ignorância” até a “generalização indevida” e
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o “argumento ad populum”, entre outros. Além de descrever o modo de
funcionamento dessas técnicas, a nossa intenção é mostrar como seu
conhecimento é fundamental para prevenir coletivamente surtos de de-
sinformação como aqueles que acompanharam a explosão dos contágios
causados pelo novo coronavírus.
Os dois capítulos escritos a quatro mãos foram concebidos original-
mente para esta publicação e são o resultado mais direto de uma interlocu-
ção que mantemos há muitos anos, especialmente nos ateliês e fóruns de
discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas (CPS), do qual fazemos
parte, mas também em grupos de trabalho da Associação Nacional dos
Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós). Os demais
capítulos foram elaborados a partir de uma inteira revisão e reorganização
de artigos publicados individualmente em revistas acadêmicas nacionais e
internacionais, mas sem que perdêssemos de vista os avanços que cada um
fazia em suas reflexões a cada momento. Embora sejam dotados de auto-
nomia, os ensaios são interdependentes e complementares. Sua ordenação
em capítulos, no entanto, não exige necessariamente uma leitura sequencial,
mas esta é desejável, já que há uma remissividade entre eles. E, como al-
gumas remissões são necessárias à melhor compreensão de determinadas
passagens, estas serão sempre apontadas. De resto, o leitor é soberano.
Em todo o processo que resultou neste livro, foi muito importante o
diálogo com o semioticista francês Eric Landowski, a principal referência
da corrente sociossemiótica, aquela que explica o sentido nas práticas
sociais a partir das interações, que constitui o norte de nossas reflexões.
O prefácio da obra, assinado por ele, dá provas não apenas de nossa par-
tilha de abordagens teórico-metodológicas, mas também de ideias sobre
um modus operandi na política que tem colocado em risco as democracias,
e não apenas no Brasil. Algumas das ideias aqui expostas, principalmente
aquelas apresentadas nos capítulos três e quatro, retomam parte do trabalho
desenvolvido, desde 2017, por Paolo Demuru em parceria com Franciscu
Sedda, professor da Universidade de Cagliari, sobre a morfologia semiótica
e as estratégias discursivas do populismo digital.
Por fim, vale destacar que, com os ensaios deste livro, buscamos mos-
trar a contribuição que a semiótica pode dar aos estudiosos da Comunicação
e das Ciências Sociais em geral no debate público atual. Enquanto discipli-
na que estuda o modo como os sentidos são construídos, interpretados e
compartilhados pelas pessoas em suas interações cotidianas, ela pode jogar
luz sobre as “disputas de narrativas” – como se costuma hoje dizer – que
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permeiam a esfera da política contemporânea. Explicando e mobilizando
as ferramentas da semiótica de modo simples e direto, buscamos trazer à
tona as engrenagens e as técnicas usadas pela extrema direita para tornar seu
discurso cativante e eficaz. Há nisso também uma certa intenção pedagógica.
Por esta e outras razões, este livro é também uma maneira de intervir, com
os meios ao nosso alcance, no combate às forças demagógicas e a todas as
formas de autoritarismo, conservadorismo e fascismo que surgiram neste
começo do século XXI no Brasil e no mundo.
Os autores
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BOLSONARO E O POPULISMO BUFÃO
YVANA FECHINE
PAOLO DEMURU
O POPULISMO DIGITAL
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hegemonia vigente é desestabilizada pela explosão de demandas insatisfeitas
capturadas por grupos e líderes que conseguem traduzir em um discurso
quase-messiânico as frustações e insatisfações pessoais e coletivas (Badie e
Vidal, 2018; Mouffe, 2018). Não por acaso, os porta-vozes de tais discursos
são, com frequência, aqueles que conseguem se apresentar como outsiders da
política, sustentam uma retórica de negação do “sistema” e constroem um
“inimigo” cuja derrota pode acabar com a crise.
Em segundo lugar, todo discurso populista funda-se no abuso de
“significantes vazios” (Laclau, 2005), como, por exemplo, o próprio termo
“povo”. Com sua amplitude e ambiguidade semântica, tais expressões servem
como recipientes potencialmente infinitos de valores, descrições, histórias,
pautas e reivindicações diversas, em torno dos quais se constrói o sentido
de pertencimento coletivo (Canovan, 2005). Especialmente no que tange
aos populismos de direita, a construção do “povo” reside na exploração do
ufanismo nacionalista. Nestes casos, é a “nação” (o povo brasileiro, norte-
-americano, italiano etc.) que se opõe a seus inimigos, sejam eles as elites
econômicas internacionais ou os migrantes que ameaçam sua identidade e
cultura. Em terceiro lugar, os populismos se erguem em torno do culto de
líderes carismáticos, que encarnam a “identidade” e às “vontades” do povo,
dando-lhe, finalmente, voz (Mudde e Rovira Kaltwasser, 2017; Moffit, 2016)
Na esteira de estudos seminais sobre as relações entre o populismo e a
mídia tradicional (Eco, 2006; Waisbord, 2013), alguns pesquisadores come-
çaram a observar os elos entre os populismos de direita do século XXI e a
internet, destacando, em particular, o papel das redes sociais digitais, como
Facebook, Twitter e Instagram, na redefinição das caraterísticas acima men-
cionadas (Da Empoli, 2019; Dal Lago, 2017; Gerbaudo, 2018; Waisbord e
Amado, 2017, entre outros).
Para esses autores, a natureza desses populismos é profunda e intima-
mente vinculada àquela das mídias sociais. Como aponta Paolo Gerbaudo
(2018, pp. 748-749), a razão dessa ligação depende do fato de que as redes
sociais digitais passaram a ser entendidas e fruídas como plataformas que
permitem a plena expressão da “voz do povo, em oposição à mídia mainstream,
acusada de estar em conluio com o establishment político e financeiro”.
Ao descrever esse novo modo de fazer política, Lioger (2018) emprega
a expressão “populismo líquido” por considerar que suas lógicas de exclusão
e seu objeto de rejeição podem mudar facilmente em função do contexto, o
que se explica, entre outras coisas, pela circulação volátil de conteúdos dou-
trinários, de frustrações e expectativas via internet. Ao mesmo tempo em que
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funcionam como ferramentas eficazes de mobilização, é pelas redes sociais
que as lideranças desses “novos populismos” encenam sua “comunicação
direta” com o “povo”, ensaiando com suas postagens contínuas o exercício
de um poder que almeja eliminar a mediação das instituições que garantem
o jogo democrático nas sociedades ocidentais.
O impacto das redes sociais nos processos políticos tornou-se tão evi-
dente que Dal Lago (2017) prefere chamar de “populismo digital” a essas
novas formas de governo nas quais os líderes, não apenas durante as campa-
nhas eleitorais, mas também ao longo do mandato, continuam a se comunicar
com os eleitores por meio das plataformas digitais. O populismo digital de
direita é caracterizado, portanto, pela “desintermediação” da relação entre o
líder e o povo (Waisbord e Amado, 2017). No campo da comunicação po-
lítica, o conceito de “desintermediação” designa o processo através do qual
os políticos aparentam dirigir-se ao público de maneira “direta” e “não me-
diada”, estabelecendo com ele, via redes sociais, um sentido de proximidade.
De um ponto de vista sociossemiótico, pode-se dizer que os populis-
tas digitais exploram a função dominante da linguagem das mídias sociais,
isto é, a “função fática”. De acordo com Jakobson (1976), a função fática é
aquela que define os modos pelos quais o destinador procura manter vivo
o contato com seus destinatários. Nas plataformas online, isso costuma ser
feito por meio de perguntas retóricas, exclamações, emojis e outros recursos
parecidos, graças aos quais o sentimento de pertencimento à comunidade é
constantemente alimentado (Marrone, 2017).
A ruptura das fronteiras entre a vida pública e privada, bem como o estilo
simples dos líderes populistas, que aponta para sua suposta autenticidade, é
também um ponto a se considerar se quisermos entender o funcionamento
do atual populismo digital1. Cada vez mais, os políticos populistas procuram
imitar o jeito aparentemente espontâneo e genuíno das “pessoas comuns” que
habitam o universo das mídias sociais: caminham, gesticulam, comem, se vestem
e postam como elas. Em certo sentido, podemos dizer que eles se mostram
como sujeitos “anônimos”: homens médios, banais, “gente como a gente”.
Cabe destacar, ainda, um outro traço distintivo do populismo digital de
direita: a sua dimensão estésica – isto é, sensível – e passional (Landowski, 2018).
O populismo digital de extrema direita é marcado por paixões negativas como
ódio, medo, ressentimento e raiva. Não é por acaso que os líderes populistas,
como Trump, Bolsonaro ou Salvini gritem, usando letras capitais em seus
posts nas mídias sociais (Viennot, 2018). Assim como não é casual o fato de
que postem fotos de seus corpos seminus, mostrando suas imperfeições e sua
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suposta autenticidade. Assim como a dimensão fática da linguagem verbal, tais
postagens também contribuem para o estreitamento de um vínculo afetivo e,
por assim dizer, epidérmico, entre o líder e seus seguidores.
Nesse contexto político que descrevemos, o populismo digital das di-
reitas apresenta-se como uma ideologia composta por uma série de temas e
figuras específicos: o “patriotismo”, a “família tradicional”, o culto do líder,
visto como um homem “bom”, “simples” e “forte” que protege o “seu
povo” contra o mal das “elites”, a “corrupção moral” das esquerdas e/ou
outras ameaças internas e externas.
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e as estratégias de proximidade que alimentam um sentimento de perten-
cimento a determinados grupos entre os seus seguidores2, e, por outro, ao
favorecerem a desinformação e os radicalismos identitários construídos nas
“bolhas” das redes sociais.
Há diversos líderes populistas que usam, entre outras, estratégias
bufonescas para dar corpo à sua imagem de “homens de povo” prontos
a lutar contra as elites políticas e financeiras. São exemplos disso: Matteo
Salvini do partido Lega, e Beppe Grillo, na Itália, este último ex-comediante
fundador do Movimento Cinque Stelle (Movimento Cinco Estrelas), que
com seus gritos, palavrões e gestos deu voz aos sentimentos antipolíticos
emergentes na sociedade italiana entre 2006 e os dias de hoje; Volodymyr
Zelensky, presidente da Ucrânia, também ex-comediante, protagonista de
uma série de televisão intitulada O servo do povo (nome que deu ao seu parti-
do), na qual interpretava um professor que, por uma constelação de acasos,
acabava eleito presidente; Boris Johnson, que já ficou suspenso de pernas
ao ar, em um teleférico de Londres, Donald Trump e, por fim, o presidente
do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, que, com suas risadas desmedidas, suas
piadas inoportunas, a linguagem do corpo, nega cotidianamente o “sistema
político” como um todo.
No entanto, a estratégia de condenar “tudo que está aí”, que tem se
mostrado eficiente nas campanhas eleitorais, impõe um desafio a quem,
como Bolsonaro, se elege e tem que, inevitavelmente, assumir o cargo e a
condição de político para governar. Como, então, ser político sem parecer
político? Ou melhor, como realizar o fazer político, negando-o? Cada líder,
em função de seus contextos específicos, responde a seu modo. Mas, é
importante lembrar que os líderes bufões não são apenas, nem se compor-
tam sempre, como bufões, podendo desempenhar também outros papéis,
que descreveremos adiante, exigidos pela necessidade de dar respostas aos
problemas práticos do país.
Por ora, pretendemos discutir a forma como Bolsonaro interpretou
e reinventou, à luz das linguagens e das práticas discursivas e interacionais
das mídias sociais, o papel do líder populista-bufão. Analisamos tanto o
discurso verbal, contemplando os disparates, as “piadas” e outras inter-
venções relativas ao discurso verbal, quanto os gestos e as diferentes pos-
turas – hexis corporal (Landowski, 2004) – através dos quais o presidente
do Brasil deu corpo a sua figura bufonesca. Em seguida, analisamos as
formas através das quais o presidente do Brasil, que prometeu durante a
campanha eleitoral não compactuar com a “velha política”, vem enfren-
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tando o desafio de comandar o país, oscilando, constantemente, junto aos
membros de seu governo, entre a necessidade de ser, ao menos em algum
grau, político e, ao mesmo tempo, antipolítico.
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analista, do ponto de vista assumido sobre o objeto. Assumimos o ponto de
vista do observador “de fora” que, posicionado na plateia diante do espetá-
culo da política, observa a conduta dos diversos atores que se movimentam
em torno do seu protagonista, o presidente da República. Para governar, ele
precisa eventualmente transitar por outras posições descritas por Landowski
(2002): o homem de ação, o herói mediador ou a vedete. Podemos admitir,
no entanto, uma predominância de papéis e é isso o que nos permite asso-
ciar nosso personagem, assim como outros populistas da era digital, a um
deles – o bufão. Para entendermos o comportamento de Bolsonaro nessa
posição, precisamos antes descrever melhor cada uma delas e já faremos isso
considerando-as à luz do contexto político brasileiro.
A política é, com efeito, ao mesmo tempo sistema de relações entre sujeitos – en-
tre representantes e representados –, e encenação – colocação em representação
– dessas relações. À lógica contratual da representação contratual que supos-
tamente liga eleitores e eleitos uns aos outros, ela superpõe figurativamente a
estética de um jogo teatral cotidiano em que cada “representante” se afirma e,
em última instância, constitui-se como tal, dando a ver teatralmente ao público
que ele o representa. A política, nesse sentido, é representação (dramática) de
uma representação (jurídica) (Landowski, 2002, p. 188).
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dowski (2002, pp. 191-192) lembra, no entanto, que, diferentemente do ator
de teatro que tem um espaço e tempo circunscritos de atuação – o palco –, o
político não se limita a representar o seu papel apenas num certo número de
circunstâncias convencionais. Quando se torna um político, o sujeito aceita
de antemão que todas as suas palavras e gestos, no domínio da vida pública
ou privada, são politicamente significativos. Pode-se assim distinguir três planos
nos quais o político se faz presente perante seu público. O primeiro é aquele
no qual o ele está propriamente “em cena”, ou seja, o espaço público ou o
“palco” previsto pela Política – debates, entrevistas, encontros e convenções
partidários etc. –, no qual cumpre “um papel funcional inscrito no interior
de uma trama narrativa ou de uma ação institucionalmente circunscrita e
previamente programada” (Landowski, 2002, p. 192). Há também a possi-
bilidade do político dar-se a conhecer, ao contrário, em um plano mais privado
no qual se mostra mais pessoalmente ao público, revelando sua intimidade
e sua “autenticidade”. A metáfora da representação teatral permite ainda
descrever um modo intermediário, na qual o político explora a dissolução
deliberada dos limites entre o “palco” e a “plateia”, investindo em uma rela-
ção de maior proximidade e contato com os eleitores-cidadãos como parte
da “cena” política pública que lhe sustenta.
Em função da maior ou menor ênfase nesses distintos planos, pode-
mos identificar distingue diferentes regimes de visibilidade e presença para
o outro, a partir dos quais os políticos constroem certos papéis na busca
por popularidade. Disso resulta a categorização proposta por Landowski (o
homem de ação, o herói mediador, a vedete e o bufão). O homem de ação
define-se pelo estilo minimalista na encenação pública de si, limitando ao
máximo suas aparições aos espaços de visibilidade institucional e no exercício
de suas funções políticas. Investe em uma racionalidade pragmática racional”
e no julgamento de suas ações. Dirige-se mais a outros atores colocados no
“palco” político (aliados, adversários, jornalistas etc.) e quando fala direta-
mente ao público assume uma postura mais impessoal.
Sua popularidade apoia-se mais no respeito, no reconhecimento de sua
competência e no cumprimento de sua função que na estima ou na proximi-
dade com o público, tão bem exploradas pelo herói mediador. Apostando em
uma ligação de caráter mais intersubjetivo, o herói mediador tenta produzir
um sentimento de “corpo social” na relação com o público. Procura reduzir
a distância entre os que “fazem” e os que “assistem” à política, mobilizan-
do valores, gostos e interesses partilhados para promover uma experiência
patêmica com qual mobiliza um “crer coletivo” que sustenta suas ações.
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Esse tipo de “herói” pode ser considerado um mediador justamente porque
consegue figurativizar em sua pessoa um projeto político impessoal que lhe
envolve, mas que lhe ultrapassa, já que está ancorado em processos sociais
dos quais participou. Ou seja, ele “encarna” um conjunto de expectativas
sociais e coletivas que sua atuação pública catalisa e sua história política
colabora para colocar “em cena”.
Se o herói mediador é um tipo de político identificado a figuras e a
momentos históricos nos quais se pode testemunhar uma adesão ao corpo
político, sustentado por essas esperanças e crenças coletivas, é nas épocas de
desencanto e confusão que surgem as vedetes e os bufões. Na descrição que
faz de vedetes e bufões, Landowski (2002, p. 202) considera que ambos são
o resultado dos “cosmeticistas da política”, dos “especialistas na encenação
das pessoas como mercadorias”, responsáveis pela reordenação da política a
partir de estratégias eleitorais que tiram proveito da indiferença e da rejeição
ao funcionamento tradicional do sistema político. Para ele, vedetes e bufões
fazem parte de uma mesma categoria, a dos “sedutores profissionais” que
se dirigem, sobretudo, aos decepcionados. No momento em que propôs a
descrição de tais papéis, Landowski associou ambos a uma “sócio-estética
do gosto” ancorada na representação de cenas mais pessoais, menos for-
mais e, supostamente, mais “verdadeiras”. Tanto a vedete quanto o bufão
apostam na negação da política, procuram guardar uma certa distância das
instituições, investem numa relação mais direta e empática com o público, a
partir, sobretudo, da encenação da sua intimidade e autenticidade. As vedetes
são o “produto” mais direto do marketing político, com discursos, gestos e
comportamentos minuciosamente estudados para atender às expectativas do
público e promover o efeito de proximidade. Na boca dos bufões, a suposta
sinceridade das vedetes transforma-se “numa liberdade de expressão que não
conhece limites” (Landowski, 2002, p. 204), dando lugar à vulgaridade deli-
berada nas expressões, a posições deliberadamente polêmicas e, no extremo,
a discursos de ódio. A popularidade do bufão resulta, paradoxalmente, da
aquisição de um prestígio político pessoal a partir dos seus ataques à Política.
O político associado ao papel do bufão que, no modelo que acabamos
de descrever, aparecia muito mais como uma faceta extremada da vedete,
parecia ter poucas chances de chegar ao poder, uma vez que seu maior atrativo
eleitoral era a negação do próprio jogo político no qual, geralmente, não era
muito levado a sério. Com discursos raivosos e antissistema, o bufão parece,
no entanto, ser um papel facilmente moldável a contextos de crises política
e econômica marcadas por profunda descrença e ressentimento sociais.
25
O homem de ação e a vedete dirigem suas estratégias comunicacionais para
os cidadãos individualmente, explorando, no caso do primeiro, a sua racio-
nalidade, e, do segundo, sua espécie de “encanto” de ordem mais pessoal,
seja qual for o modo como esse fascínio seja construído. O herói mediador,
embora também apoie seu prestígio em cima de um carisma pessoal, tem uma
trajetória histórica e política que lhe autoriza a falar para a Nação como um
todo, como um único corpo social. O bufão, ao contrário, é legitimado por
determinadas “tribos”, grupos com os quais partilha a recusa do “sistema”
e o combate a “inimigos”, inclusive imaginários. Tirando proveito da quebra
da “normalidade” da política, culpabilizada pelas crises, o bufão dirige-se
diretamente ao “bloco” dos insatisfeitos e, ao fazê-lo, colabora para seu reco-
nhecimento como parte de uma coletividade que se organiza em torno dele.
Tudo o que já descrevemos até aqui sobre os bufões nos permite não
apenas reputar Bolsonaro como um deles, mas também atualizar, a partir
do seu comportamento, a descrição desse tipo de papel político que, muito
frequentemente, pode ser identificado aos chamados “populistas digitais”.
Embora possamos considerar a eleição de Bolsonaro no quadro mais geral
de ascensão de políticos de extrema direita como resposta mais imediata à
crise do capitalismo face à uma economia cada vez mais globalizada e ditada
pelo mercado financeiro internacional, sua ascensão é também o resultado
de circunstâncias bem específicas da história recente do Brasil. Não se pode
esquecer que a disputa eleitoral de 2018 ocorre dois anos depois de um golpe
parlamentar que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, com base numa frágil
e controversa acusação de irregularidades fiscais, respaldada pelo Judiciário
e pela Mídia. A instabilidade política provocada pelo golpe de 2016 ocorre
concomitantemente – e associada – à operação Lava Jato, uma gigantesca
investigação deflagrada pelo Ministério Público, em 2014, que revelou o
financiamento ilegal de campanhas eleitorais e o pagamento de propinas a
políticos, elegendo como alvo preferencial o Partido dos Trabalhadores (PT)
e seu principal líder, o ex-presidente Lula, que acabou preso e impedido de
disputar a presidência.
A espetacularização da cobertura jornalística das investigações da Lava
Jato acentuou a criminalização da política e colaborou para a descrença nas
instituições. A sucessão de escândalos envolveu lideranças de praticamente
todos os grandes partidos brasileiros e abriu caminho para a eleição de Bol-
sonaro que, tendo os principais adversários fora da disputa, pôde assumir
com êxito a pregação contra a “velha política” e os discursos de apelo moral
e religioso que se traduzem em posições ultraconservadoras com pretensões
26
higienistas (acabar com “gays”, “bandidos”, “esquerdistas”, “antipatriotas”
etc.), impensáveis fora de um “momento populista”.
Como vimos, o bufão sustenta-se menos pelas propostas que apresenta
e mais pelos posicionamentos disfóricos (“contra tudo que está aí”) que são
úteis na campanha, mas não constroem alternativas para as crises quando
ele chega ao poder, como ocorreu com Bolsonaro. Isso exige que ele se
mantenha, mesmo na presidência, como se estivesse permanentemente em
campanha4. O principal trunfo que ele dispõe nesse jogo político é manter,
na perspectiva de quem observa semioticamente sua posição no xadrez da
democracia brasileira, sua própria condição de bufão. Para isso, nega, quando
lhe é conveniente, seu próprio papel de presidente, ora rompendo com a liturgia
do cargo ou ignorando estruturas institucionais, ora posicionando-se, diante de
medidas impopulares do seu governo, como se não fosse ele o responsável
ou culpando os demais poderes por seus insucessos. Vamos verificar, então,
como ele aciona essas estratégias.
O PRESIDENTE BUFÃO
27
fúrdias. Eleito com a promessa de acabar com a “velha política”, se há algo
realmente novo na conduta de Bolsonaro é a deliberada quebra da liturgia
do cargo com a qual alimenta sua condição de outsider, mesmo ocupando
agora o mais alto posto da República.
A lista de episódios envolvendo os impropérios e condutas inapropria-
das de Bolsonaro é grande5. Mas, alguns episódios merecem ser destacados
porque dão a exata medida dos disparates constrangedores para a Presidência
da República e do seu comportamento bufão. Um dos mais impactantes foi a
postagem de um vídeo com conteúdo obsceno durante o carnaval em março
de 2019. Irritado com os deboches dos foliões, Bolsonaro reagiu criticando a
depravação da festa mais popular do país e, como prova disso, postou o vídeo
de dois homens que, no desfile de um bloco carnavalesco, encenavam um
fetiche sexual conhecido como golden shower (nome em inglês para a prática
de urinar sobre um parceiro). Depois da repercussão negativa, inclusive na
imprensa internacional e entre seus apoiadores, o presidente apagou o vídeo
do seu perfil no Twitter6. Além das suas já conhecidas e frequentes declarações
homofóbicas, Bolsonaro parece também gostar de falar de pênis e outros
elementos de teor sexual7. Outro momento constrangedor em seu primeiro
ano no cargo foi a piada racista que fez com um homem de ascendência
asiática que foi abraçá-lo durante passagem, em maio de 2019, no Aeroporto
Internacional de Manaus, a caminho de uma viagem oficial aos EUA. Em
um vídeo que viralizou nas redes sociais, o presidente pergunta ao homem,
que não entende bem o português e posa sorridente ao seu lado: “Tudo
pequenininho aí?”. A pergunta zomba do tamanho do pênis dos orientais,
referência jocosa que ele repetiu em outra ocasião ao comentar dimensão da
reforma da previdência e advertir que não podia ser “de japonês”8.
Os disparates verbais do presidente não poupam nem mesmo as au-
toridades. Em um áudio que vazou e também viralizou nas redes sociais,
em julho de 2019, Bolsonaro tratou os governadores do Nordeste, região
em que perdeu na disputa presidencial, como “paraíba”, um termo usado
pejorativamente no Sudeste para se referir aos nordestinos9. A fala também
repercutiu negativamente e levou os governadores a dirigirem uma carta
aberta de indignação ao presidente. O educador Paulo Freire, um dos teóricos
brasileiros mais respeitados internacionalmente, é alvo dos xingamentos de
Bolsonaro desde a campanha eleitoral. Em suas lives costumeiras em frente ao
Palácio da Alvorada, em 16 de dezembro de 2019, ele referiu-se ao Patrono
da Educação no Brasil, como “energúmeno”.
O desrespeito não observa fronteiras. Bolsonaro já chamou a ado-
lescente sueca Greta Thunberg, conhecida mundialmente pela defesa ao
28
meio ambiente, de pirralha10; já acusou o ator Leonardo DiCaprio de apoiar
financeiramente organizações não governamentais que estariam provocando
incêndios criminosos apenas para comprometê-lo11; já endossou o comen-
tário no Facebook de um seguidor que atribuía as críticas feitas à política
ambiental pelo presidente francês Emmanuel Macron à inveja que o francês
teria do presidente brasileiro porque, na opinião deste apoiador, ao contrário
de Bolsonaro, que é casado com uma mulher mais jovem e bonita, sua
mulher é mais velha e feia. Curiosamente, ao repercutirem as fanfarronices
e grosserias do presidente, seus adversários e os veículos de comunicação
confirmam, por sua reação indignada, a construção da imagem antissistema
inerente aos bufões.
Para sustentar um populismo bufão, no entanto, não basta ofender e
perseguir “inimigos”. A promessa de enfrentar “tudo que está aí” exige que,
ao ocuparem posições dentro do “sistema”, desafiem os demais poderes e
poderosos. Bolsonaro seguiu a mesma cartilha. A incitação e a encenação de
conflitos são procedimentos frequentes e estratégicos que o presidente sabe
explorar habilmente. O conflito mais imediato – e provavelmente o mais fácil
– foi com a própria mídia que havia pavimentado o caminho para sua eleição.
Nas postagens em seu perfil no Facebook, os ataques a jornalistas e veículos
de comunicação estão entre os mais recorrentes12. Para fugir de perguntas
incômodas, já questionou a sexualidade de um repórter e insultou a mãe de
um outro13. Sem pudor, já dirigiu até gestos obscenos para os jornalistas14.
Qualquer cobrança ou informação negativa à sua imagem ou ao governo é
taxada como fake news e os veículos de comunicação acusados de fazerem
um “jornalismo porco” ou por “descerem às profundezas do esgoto”15. Inci-
tando seus seguidores a atacar a mídia para que “tome vergonha na cara”, o
presidente mesmo tratou de dar o exemplo cancelando assinaturas de jornais
nos órgãos públicos e estimulando o boicote aos anunciantes de veículos
de comunicação que adotam, ao menos parcialmente, uma postura crítica.
Bolsonaro também se meteu em sucessivos conflitos com parlamenta-
res, inclusive de partidos aliados e da sigla que o elegeu (PSL), e com a qual
rompeu pouco mais de um ano depois de assumir o cargo, colaborando para
o efeito “antipolítica”. Quando os parlamentares resistiam ou se recusavam
a aprovar projetos enviados pelo Executivo ao Legislativo, a reação de Bol-
sonaro, especialmente no início do governo, foi também, com frequência,
estimular abertamente a pressão dos seus seguidores sobre os deputados e
senadores. Em algumas postagens, ele chegou mesmo a publicar vídeos de
parlamentares de oposição, expondo-os à ação de suas “milícias virtuais”.
29
Pelo Facebook, o presidente também incentivou ou endossou manifestações
de rua que, embora fossem anunciadas como atos de apoio ao governo
Bolsonaro, protestavam contra o Congresso Nacional e Supremo Tribunal
Federal (STF), chegando a pedir ao presidente o fechamento dessas institui-
ções. O próprio Bolsonaro se encarregou de alimentar a hostilidade contra
os demais poderes ao compartilhar, por exemplo, o texto de um apoiador
que classifica o Brasil como “ingovernável” fora de conchavos16.
O deliberado confronto com as instituições ficou ainda mais evidente
quando o presidente compartilhou um vídeo tão polêmico que foi obrigado
a apagá-lo das suas redes sociais diante da crítica contundente do ministro
decano do STF, Celso de Mello. Nele, Bolsonaro é apresentado como um
leão acossado por hienas que foram identificadas a partidos, jornais, entidades
da sociedade civil e mesmo ao STF. Para defender o leão cercado por hienas
(figurativização bem clara do “sistema”), aparece um outro mais jovem iden-
tificado como o “patriota”, que espanta o bando inimigo17. As manifestações
de 7 de setembro de 2021, percebidas tanto pelos bolsonaristas quanto pelas
oposições como possível prelúdio a um iminente golpe de Estado, confirmam
esta postura. Nelas, Bolsonaro atacou mais uma vez o STF e, em particular,
o ministro Alexandre de Moraes, prometendo não cumprir nenhuma de suas
decisões e reforçando, ao mesmo tempo, sua imagem de presidente “antis-
sistema”. Ele também permitiu que pessoas próximas fizessem ataques até a
militares que participam e dão uma sustentação importante ao seu governo18,
inclusive o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, apontado como
mentor de supostas conspirações para tirá-lo do cargo19.
Entre os parlamentares, a melhor demonstração das dificuldades de
Bolsonaro para governar sem parecer que estava cedendo à inevitável con-
ciliação com os “velhos políticos” foram os sucessivos desentendimentos
com Rodrigo Maia (DEM-RJ) que, como presidente da Câmara dos Depu-
tados, foi responsável por conduzir a votação de projetos importantes para
a implementação da agenda econômica neoliberal afiançada pelo Ministro da
Economia, Paulo Guedes. Desconsiderando a importância e Maia nas articu-
lações políticas necessárias ao governo, Bolsonaro não apenas permitiu que
o filho e seguidores o atacassem nas redes sociais, mas ele próprio fez isso20,
impondo prejuízos à economia com a sucessiva troca de rusgas com Maia21
que, como veremos adiante, serviu bem ao seu jogo de papéis.
Pressionado, Bolsonaro terminou assumindo depois uma postura mais
conciliatória em relação a Maia que se tornou, de fato, um dos principais
responsáveis pela aprovação da reforma da previdência, um dos maiores
30
“feitos” do seu governo. A postura de Bolsonaro no decorrer da espinhosa
tramitação da reforma da previdência no Congresso Nacional revelou outra
característica importante do comportamento bufão do presidente. Quando as
medidas eram impopulares, como o endurecimento das regras para aposen-
tadorias, Bolsonaro recusava habilmente seu próprio papel e mantinha-se à
distância (Figuras 1 e 2). Ele chegou a declarar abertamente que não pretendia
se meter nas articulações políticas da reforma da previdência, alegando que já
havia feito a sua parte (entregar o projeto), agindo, diante do mais importante
projeto do seu governo, como se não fosse governo22. Além de se eximir da
responsabilidade, Bolsonaro ainda atrapalhou o processo com declarações
desastradas que provocavam nervosismo no mercado e no parlamento. As
trapalhadas na tramitação da reforma da previdência, embora tenha sido das
mais importantes, não foram fato isolado.
31
Figura 2 – Manchete no portal do grupo Folha, 01/04/2019.
32
Figura 3 – Manchete no portal do grupo Folha, 01/03/2019.
33
Ser e não ser político, eis a questão! Ser e não ser governo, eis a estratégia!
Ser e não ser presidente, eis a jogada! Os episódios e comportamentos que
descrevemos evidenciam o quanto Bolsonaro pavimenta sua popularidade
em cima dessas ambivalências sustentadas justamente pela sua condição de
bufão. O que desabona sua conduta institucional é também, paradoxalmente,
o que contribui para sua competitividade no jogo, já que lhe rende dividen-
dos de popularidade. É porque resiste a se comportar “como um Lord” que
Bolsonaro é chamado de “mito” pelos seus seguidores, que se comportam
costumeiramente frente ao presidente como fãs da internet27. Não por acaso
o apelido que lhe deram está associado à expressão “mitou”, muito usada
nas redes sociais quando alguém “manda bem”, “arrasa”, faz ou diz alguma
coisa considerada espetacular, como faz Bolsonaro, por exemplo, ao driblar
os seguranças para andar de motocicleta pelas ruas de Brasília ou de jet-ski
em praias populares, quando come “espetinho de churrasco” vendido na
rua por ambulantes ou quando simplesmente solta palavrões ou aparece
“zoando” os adversários políticos. É verdade que, para os seguidores mais
fiéis, Bolsonaro é também um “mito” porque enxergam nele “um herói”,
uma espécie “salvador da Pátria” ou mesmo um “enviado de Deus” (o
sobrenome Messias bem que ajuda junto aos eleitores religiosos!). Porém, o
mais frequente é que esta qualificação apareça nos comentários às postagens
em que ele, apesar de mais de três décadas como político profissional, rompe
deliberadamente com os comportamentos esperados nos cargos ocupados,
explorando também para isso um corpo bufônico.
não se limita, com efeito, a desmistificar dia a dia certos aspectos da atualidade
política por propósitos (e, de preferência, brincadeiras) que revelam supos-
34
tamente o absurdo, a insignificância ou a impostura dela: ele tem sobretudo
o gênio, por assim dizer físico, de rebaixar o jogo político em seu conjunto,
representando-o de novo à sua maneira, ao mesmo tempo esteticamente (se-
gundo uma estética do mau gosto, evidentemente) e no plano da estesia, tra-
duzindo e, se possível, tornando contagiosa a própria repugnância pela adoção
sistemática de uma hexis corporal voluntariamente chocante (2002, p. 205).
35
cional, para usarmos os termos da gramática narrativa de Greimas, cujo
programa se resume em atrapalhar os planos dos outros.
Cabe ressaltar que o comportamento bufão de Bolsonaro não se ma-
nifesta apenas através do corpo e seus gestos, mas também, de maneira
ainda mais específica e detalhada, por meio de suas expressões faciais e, em
particular, de seu sorriso e sua risada. Trata-se, em alguns momentos, de
uma risada descomedida, caricata, histriônica, picaresca, como aquela das
imagens a, b, c, que nega abertamente a formalidade exigida pelo contexto
político. Em outras ocasiões, Bolsonaro apresenta uma risada mais suave, a
qual, entretanto, não deixa de revelar matizes de escárnio e sarcasmo (ima-
gens d, f, h, i e k). Tais modulações remetem a uma figura popular das redes
sociais: o troll, cujos feitios tomaram forma através da imagem da trollface (a
cara do troll). Com seu sorriso aberto, exagerado e burlesco, a trollface lembra,
seja em seu aspecto plástico, seja sob aquele figurativo, o rosto de Bolsonaro
Criada em 2008, a trollface converteu-se, em pouco tempo, em um dos
memes mais populares da internet. Ao longo dos anos, surgiram diversas ver-
sões que exploravam outras referências fisionômicas, entra as quais destaca-se
a trollface asiática (imagem central da Figura 7). Como aponta Leone (2020),
o papel de troll nas redes sociais é essencialmente o do provocador. O troll
insere-se nas conversações de suas vítimas com o objetivo de desestabilizá-las
e irritá-las. Suas provocações buscam “aumentar o tom emotivo da resposta
do interlocutor, em termos de indignação, raiva e, inclusive, de fúria” (Leone,
2020, p. 148, tradução nossa).
Figura 7 – Trollface.
Fonte: Museu de Memes.
36
sários, um efeito de sentido similar àquele do troll e da trollface: provocam,
indignam, enfurecem, esvaziando de sentido o debate público. Pautas, temas
e valores perdem relevância. O que se impõe é o puro sentir, a dimensão
sensível e passional do processo de comunicação, típica do populismo
digital contemporâneo (Landowski, 2018; Sedda e Demuru, 2018; 2019).
A este propósito, cabe relembrar o sorriso, acompanhado pelo gesto da
pistola, das imagens k e p, como também a “banana” da imagem s. Essas
expressões e posturas podem ser consideradas como epitomes da atitude
irreverente e politicamente incorreta do troll. Graças a elas, Bolsonaro se
apresenta como um sujeito autêntico e alheio ao “sistema”, um homem
aberto e verdadeiramente antipolítico. Não por acaso, o sorriso burlesco de
Bolsonaro converteu-se em mais uma versão da trollface. É o que pode ser
observado nos inúmeros vídeos do presidente do Brasil que se encontram
no YouTube indexados sob a hashtag “risada opressora”, que mostram, as
vezes por mais de uma hora, imagens de Bolsonaro rindo escrachadamente28
para deleite dos seus fãs-eleitores.
37
dos seus traços (termos contrários situados nos eixos diagonais). Entre as
categorias situadas em cada eixo vertical do quadrado semiótico, há uma
relação de implicação, ou seja, uma tende para a outra.
Considerando o contexto político brasileiro e as quatro categorias já
definidas por Landowski, identificamos quatro papéis que garantem, a partir
de sua atuação conjunta e articulada, o governo Bolsonaro. São eles: os ope-
radores, os moderadores, os pregadores e os provocadores (Figura 8). Sua
atuação depende do deslocamento deliberado e contínuo entre os dois eixos
que, necessariamente, sustentam o governo populista dos bufões: a política
e a antipolítica. No governo Bolsonaro, este deslocamento dos atores entre
papéis contrários ou mesmo contraditórios pode ser desnorteador para quem
pretende enfrentá-los, já que cada um deles mobiliza valores e performances
distintas, como veremos na sua descrição.
38
p. 202), pelos “cínicos propriamente ditos” – os bufões. Por isso, descon-
sideramos a vedete na homologação com nosso esquema de papéis, já que,
no contexto que analisamos, é uma posição contida no bufão.
No governo Bolsonaro, os homens de ação descritos por Landowski
correspondem aos operadores, que são os atores com uma conduta bem
programada e em conformidade com as instituições e órgãos de governo.
Comportam-se, portanto, de acordo com seus “ritos” e cumprem, indepen-
dentemente de sua maior ou menor competência profissional, com as atribui-
ções que se espera dos que ocupam cargos públicos. No caso de Bolsonaro,
são eles que, na prática, conduzem propriamente o governo, encarregando-se
dos afazeres do poder executivo. Não admira que, diante do comportamento
bufão do presidente, o “governo” – ou melhor, os operadores e mediadores
– precisem contê-lo quando se recusa a assumir este mesmo papel.
No governo Bolsonaro, podemos identificá-lo aos quadros mais téc-
nicos da equipe ministerial e dos cargos de segundo e terceiro escalão, que
abrigam grande número de militares convocados para compor sua equipe.
No primeiro escalão, destaca-se o Ministro da Infraestrutura Tarcísio de
Freitas, engenheiro e militar da reserva do Exército Brasileiro. No entan-
to, especialmente no primeiro ano de mandato, o Ministro da Economia
Paulo Guedes foi quem melhor encarnou este papel, conduzindo, em uma
espécie de “parlamentarismo branco” junto com a Presidência da Câmara
de Deputados, o programa econômico que interessa às elites e motivou
seu apoio a Bolsonaro.
Contrariamente aos operadores, os provocadores encarnam perfeitamente
o comportamento dos bufões da política e têm no próprio presidente da
República a sua principal manifestação. Com exceção do próprio Bolso-
naro, no seu deslocamento contínuo de posições por exigência do cargo,
os provocadores situam-se um pouco à margem das ações propriamente
ditas do governo, embora sua atuação seja fundamental no populismo
digital. São “mestres” no uso das redes sociais digitais para provocar os
adversários e promover controvérsias, colaborando para alimentar as di-
vergências levantadas pelo presidente ou criando outras para “agradar ao
chefe”. Para isso, não hesitam em distorcer informações e propagar notícias
falsas ou em, deliberadamente, dar declarações ou exibir comportamentos
“politicamente incorretos”.
No caso de Bolsonaro, isso é feito pelos perfis pessoais do presidente
e dos filhos, mas também por parlamentares bolsonaristas e por uma rede
de blogueiros e youtubers de extrema direita cujas publicações frequente-
39
mente são compartilhadas pelo ex-capitão, entre os quais, por exemplo, o
canal Terça Livre, criado pelo blogueiro Allan dos Santos, que se tornou
depois um foragido da Justiça depois de uma ordem de prisão do STF por
incentivar manifestações antidemocráticas. Uma atribuição importante dos
provocadores é justamente atacar e minar a credibilidade dos “inimigos” do
presidente e, sobretudo, dos veículos de comunicação que “incomodam”
o governo. Não por acaso o presidente instituiu suas lives como meio pre-
ferencial e cercou-se de uma rede de veículos e jornalistas “amigos”, que
participam inclusive de suas transmissões nas redes sociais e aos quais dá
entrevistas exclusivas com perguntas bem combinadas.
Com o mesmo comportamento antissistema e “antipolítica” dos bufões
da política, os provocadores pouco se importam com o cumprimento de suas
responsabilidades institucionais ou em observar as prerrogativas dos cargos que
ocupam porque seu papel é, usando a metáfora teatral, “distrair a plateia”, fre-
quentemente, com discussões tangenciais, que desviam do mérito das questões.
Com seus disparates, os provocadores mobilizam passionalmente os especta-
dores do espetáculo político e garantem o engajamento que, na “economia”
das redes sociais rende visibilidade e popularidade nas “bolhas” de interesse.
Não é difícil identificar na equipe de Bolsonaro, além dele próprio, atores que
assumem este papel. É de conhecimento público a existência, inclusive, de
uma “turminha que controla as redes sociais”, ou o chamado “gabinete do
ódio”, que tem acesso direto e influência sobre Bolsonaro e cujo líder é Filipe
Martins, chefe da assessoria internacional do presidente da República30, ao lado
de Carlos Bolsonaro, filho do presidente que, mesmo sem cargo, comporta-se
como parte do governo, acompanhando-o inclusive em viagens oficiais.
Ridicularizado por suas sucessivas postagens com erros de ortografia, o
segundo ministro da Educação de Bolsonaro, Abraham Weintraub também
se prestou muito bem a esse papel: além de xingar e perseguir professores e
estudantes, estava permanentemente em pé de guerra com as universidades,
onde, segundo ele, tem muita “balbúrdia” e até plantios de maconha. Há
ainda provocadores “de carteirinha” que se intrometem abertamente no
governo de Bolsonaro e nas questões de Estado, como os filhos Eduardo
Bolsonaro, que age como se fosse uma espécie de “embaixador” do Brasil, e
Carlos Bolsonaro, que controla as redes sociais do pai31, além do “guru” da
extrema direita brasileira Olavo de Carvalho32, cujas provocações constantes
e a linguagem marcada por tons acesos e vulgares, manifestavam bem o estilo
bufonesco e “antipolítico” de se fazer “política” .
Em posição de negação dessa “turminha das redes sociais”, estão os
moderadores cujo papel se justifica também, em grande medida, por essa coe-
40
xistência contraditória com os provocadores, que, ajudam de um lado, mas
atrapalham de outro com os conflitos internos e externos que promovem.
No governo Bolsonaro, como o nome sugere, cabe aos moderadores ocupar
uma posição de mediação entre a Presidência e os demais poderes. Seu papel
é, sobretudo, de articulação no delicado xadrez de posições e na “costura”
política exigidos pelo presidencialismo de coalizão do Brasil. Neste papel,
os atores cumprem um importante papel de negociação entre os anseios do
mercado, do parlamento, das instituições e das ruas. Sua atribuição é, sobre-
tudo, o convencimento, a conciliação de interesses, a conduta manipulatória
ou, melhor, o fazer fazer necessário ao jogo democrático.
Quando um presidente se comporta, quando lhe é conveniente, como
não presidente, os moderadores tornam-se ainda mais importantes na sua
manutenção no cargo. Nesse papel, podem ser incluídos lideranças da base
aliada a Bolsonaro no Congresso Nacional que negociam as pautas do go-
verno, sejam aquelas de interesse da agenda econômica neoliberal, sejam
aquelas mais voltas à “pauta moral”, que envolvem mais diretamente os
pregadores. Embora o presidente sustente, mesmo depois de eleito, um
discurso “antipolítica” e anticorrupção, a sustentação do governo Bolsonaro
sempre dependeu do apoio, ora mais discreto, ora mais direto, do chamado
“Centrão”, nome dado a bloco de parlamentares conhecidos pelo fisiologismo
e por negociar votos em plenário por cargos e verbas.
No governo Bolsonaro, há também uma parcela de militares de con-
duta mais ponderada que assumem também esse papel. Basta lembrar que o
cargo de porta-voz da Presidência da República, um cargo fundamental para
balizar as posições oficiais do governo e “apagar incêndios”, foi confiado
inicialmente a um general, Otávio Rêgo Barros, de postura mais conciliadora.
Entre os militares, cabe também destacar o papel do vice-presidente, general
Hamilton Mourão, que, apesar das rusgas com Carlos Bolsonaro e com o
próprio Bolsonaro, assumiu um papel ao lado dos moderados, colaborando,
com entrevistas e palestras, para apaziguar os ânimos e acalmar o mercado
diante das idas e vindas do presidente em assuntos econômicos e de suas
posturas mais agressivas ou radicais.
O apoio de lideranças evangélicas – neopentecostais, sobretudo – foi
fundamental para a eleição de Bolsonaro e permanece sendo decisivo para sua
popularidade. O papel dos pregadores pode, por isso mesmo, ser imediatamente
associado aos evangélicos que integram a equipe do governo, sem falar na
primeira-dama Michelle Bolsonaro, que pertence a Igreja Batista Atitude de
Brasília e faz questão de tornar pública sua proximidade com os pastores.
41
Entre eles, ninguém encarna melhor este papel que a Ministra da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, uma pastora evangélica e
fundamentalista religiosa, que defende a abstinência sexual como método
contraceptivo entre jovens e usa o cargo para fazer campanha contra o aborto.
Embora tenha uma relação inequívoca com lideranças religiosas e suas
pautas, assim como com bancada evangélica fiel a Bolsonaro no Congresso
Nacional, o papel dos pregadores é assumido, de distintas formas, por todos
que sustentam o governo – ou, ao contrário, buscam se sustentar no governo
–, defendendo a “salvação” do Brasil, seja pelo combate à corrupção e às
negociatas da “velha política”, seja pela defesa da família tradicional ou pela
caçada ideológica às “doutrinas” da esquerda. Preocupados em vender sua
imagem de “cidadãos de bem”, o que se destaca no comportamento dos
pregadores é, sobretudo, o moralismo eleitoreiro sustentado pela imposição
de identidades, costumes conservadores e crenças religiosas.
Poderíamos também associar aos pregadores todos os integrantes do
primeiro ou segundo escalão do governo que se colocam mais diretamente
no “front” da guerra contra um suposto “marxismo cultural”, alimentado
pelo Olavismo. Exemplo disso são os nomes indicados por Bolsonaro para
ocupar, por exemplo, cargos na Secretaria Nacional de Cultura, a começar
pelo ex-secretário Roberto Alvim, demitido depois de defender a perspec-
tiva de arte do nazismo, e seu subordinado, o maestro Dante Mantovani,
ex-presidente da Fundação Nacional das Artes para quem “o rock leva ao
aborto e ao satanismo” e “os Beatles implantaram o comunismo”. Alvim foi
substituído pela “namoradinha do Brasil”, apelido da atriz Regina Duarte,
que não tinha nenhuma experiência de gestão, mas que emprestou a popu-
laridade obtida nas telenovelas da TV Globo para demonizar as esquerdas.
Ela foi depois substituída por outro ex-ator da TV Globo, Mário Frias, acu-
sado de praticar censura e de ser responsável por uma verdadeira “caças às
bruxas” entre funcionários da Secretaria e artistas considerados de esquerda.
Na presidência da Fundação Palmares, órgão responsável pela promoção e
preservação das manifestações culturais negras, Bolsonaro colocou um negro,
Sérgio Camargo, que enxerga virtudes na escravidão.
O papel dos pregadores não se limita apenas a difundir um certo conjunto
de valores da extrema direita que satisfaz os bolsonaristas mais radicais. Sua
expertise inclui também o estímulo a sentimentos mobilizadores, como medo,
raiva e indignação. Por isso, podem também ser associados àqueles atores encar-
regados de criar e/ou difundir teorias da conspiração ou de alertar à população
sobre o caos que as elites planejam instaurar no país e no mundo. Um exemplo
42
emblemático é constituído pelas intervenções de teor conspiracionista, como
as feitas pelo assessor Filipe Martins, que assume também frequentemente este
outro papel, e o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo.
De acordo com Araújo, Bolsonaro estaria lutando contra essas conspi-
rações esquerdistas-anticristãs como um verdadeiro messias, como fica claro
no comentário que fez. a respeito do discurso dele no Fórum Econômico
Mundial em Davos de 2019: “no discurso de abertura, o presidente Bolso-
naro, no final, falou de Deus. Eu não sei, não fui pesquisar, mas acredito que
provavelmente foi a primeira vez que um chefe de Estado fala, usa a palavra
Deus, acreditando nEle, sobretudo no Fórum de Davos (...) Então é isso:
Deus em Davos” (Araújo, 2019, p. 14).
AS JOGADAS DE BOLSONARO
43
ta; Cuevas Calderón, 2019). Não por acaso, diante de declarações divergentes
dentro da sua equipe (e mesmo do seu vice), ele insiste em afirmar, geralmente
em tom autoritário, que quem decide é ele, mesmo que depois o governo ado-
te medidas diferentes daquelas que o presidente defendeu ou que ele mesmo
mude suas posições. Para afirmar o papel de operador, o presidente costuma
fazer publicações em suas redes sociais, listando as ações do governo. Exemplo
disso é a postagem que informa sobre a “atuação do governo Bolsonaro (última
semana de outubro)”, postada pelo presidente em seu perfil de Facebook em 3
de novembro de 2019, que inclui 37 ações devidamente detalhadas (e há outras
com mais). Trata-se evidentemente de uma estratégia discursiva que impacta
mais pela quantidade que pela qualidade, procurando causar, no destinatário, a
impressão de que Bolsonaro é realmente um presidente que “faz”.
No que tange ao papel do moderador, vale lembrar os inúmeros “recuos”
feitos por Bolsonaro após seus disparates, que visam, de alguma forma, acal-
mar as águas previamente agitadas. Lembre-se, a este propósito, do pedido
de desculpas ao STF feito após a publicação do vídeo em que Bolsonaro
aparece como um leão circundado por uma hiena, uma das quais representa o
Tribunal. Em 29 de outubro de 2019, no dia seguinte à postagem, Bolsonaro
afirmou: “foi uma injustiça, sim, corrigimos e vamos publicar uma matéria
que leva para esse lado das desculpas. Erramos e haverá retratação”33. Vale
mencionar também a famosa “Declaração à Nação” na qual Bolsonaro se des-
culpa novamente perante o STF, afirmando que nunca teve “intenção de agredir
quaisquer dos poderes”, depois das ameaças golpistas nos atos que marcaram as
comemorações do 7 de setembro de 2021. Com a publicação da Declaração,
escrita em parceria com o ex-presidente Michel Temer e publicada logo após
às duras reações às suas participações nos atos antidemocráticos, Bolsonaro
age, por assim dizer, como moderador de si próprio.
Do outro lado, estão as posições daqueles que fazem política explo-
rando tão somente seus atributos pessoais e morais, ou seja, o seu ser – os
provocadores e pregadores –, papéis para os quais um político bufão, como
Bolsonaro, está mais vocacionado, mesmo quando é o ator que assume o
cargo mais almejado no palco da Política. Como o comportamento bufão
do presidente já foi aqui bem descrito, resta destacar sua conduta quando se
desloca para a posição do pregador.
Bolsonaro age tanto quanto defensor dos valores da família tradicional,
da boa moral e dos bons costumes (como no post sobre o golden shower, no
qual o presidente critica a “perversão” e a “imoralidade” do carnaval brasi-
leiro e do movimento LGBTQI+), quanto como uma espécie de “profeta”
44
divulgador de discursos conspiracionistas e apocalípticos. Tomemos, por
exemplo, o texto compartilhado pelo presidente em sua rede de WhatsApp
em 17 de maio de 2019. Nele, um autor anônimo prospecta uma iminente
“explosão nuclear (...) uma ruptura institucional irreversível, com desfecho
imprevisível. É o Brasil sendo zerado, sem direito para ninguém e sem
dinheiro para nada”. Há, no discurso do pregador Bolsonaro, o mesmo
tom escatológico que caracteriza o evangelismo neopentecostal: o caos está
sempre atrás da esquina, os poderes ocultos que governam secretamente o
mundo estão, a todo momento, prestes a lançar seu ataque derradeiro. O
que temos, então, são planos e ameaças diante dos quais Bolsonaro assume,
ao mesmo tempo, a postura da “vítima”, alegando que o “sistema” não o
deixa trabalhar, e do “Messias”, o “salvador da Pátria”, que livrará a nação
de seus males seculares34.
Nesse arranjo complexo, Bolsonaro desloca-se ora para um eixo ora para
o outro, dispersando o foco da oposição com essa falta de uma delimitação
clara de seus próprios papéis. Como nos ensina a semiótica greimasiana,
todo percurso narrativo consiste, numa visada mais geral, na busca de um
sujeito pela conjunção ou disjunção com um objeto-valor, seja qual for sua
natureza35. O percurso narrativo envolve ao menos três posições actanciais:
um destinador (aquele que faz o sujeito fazer), um sujeito (que realiza o fazer
necessário à relação de junção), os adjuvantes (que ajudam a performance do
sujeito). Como toda ação envolve uma contra-ação, existe para todo sujeito
um antisujeito (e, por pressuposição lógica, um antidestinador e um antiad-
juvante). Chega a ser mesmo curioso como, nessa alternância de papéis, o
governo Bolsonaro – e não somente o presidente – oblitera o próprio dis-
curso da oposição em meio a esse conjunto de atores que se contrariam e se
contradizem, principalmente quando o ex-capitão encarna por si só posições
aparentemente contrárias e mesmo contraditórias. Sem uma definição clara
dos seus papéis actanciais, Bolsonaro se move, enfim, entre ser e não parecer
presidente, entre parecer que comanda e não ser, de fato, quem comanda seu
governo. Nessa indefinição actancial, desnorteia também os percursos dos
demais actantes envolvidos na narrativa política.
A racionalidade do percurso pressupõe a existência de ao menos dois
actantes bem definidos, que partilham um consenso mínimo em torno de
quais são os seus papéis (sujeito e antisujeito) e do objeto-valor em torno
do qual se definem suas estratégias. Como Bolsonaro, a depender da reação
das redes sociais que alimentam seu populismo digital, desloca-se a cada
momento entre distintos papéis e, a cada deslocamento, pode empreen-
45
der um percurso narrativo diferente, torna-se mais difícil para a oposição
identificar suas estratégias e constituir-se, em cada uma delas, como o seu
antisujeito. Como definir, afinal, a estratégia se a cada movimento mudam os
papéis actanciais e o objeto-valor? Como eleger um sujeito “alvo” em meio a
articulação simultânea de tantas posições? Nesse tipo de estratégia, as redes
sociais, com sua aceleração e descontinuidade, fragmentação e descontrole,
são armas fundamentais para a produção da turbulência tão cara ao bufão.
Entender esse engenhoso jogo de papéis explorado pelo bufão quando
chega ao poder é uma precondição para enfrentá-lo politicamente e, nisso,
a semiótica pode dar também sua contribuição.
46
REFERÊNCIAS
BADIE, Bertrand; VIDAL, Dominique (éds.). Le retour des populismes. Paris: La Dé-
couverte, 2018.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1994.
DAL LAGO, Alessandro. Populismo digitale. La crisi, la rete e la nuova destra. Milão:
Raffaello Cortina Editore, 2017.
47
ECO, Umberto. A passo de gambero. Milão: Bompiani, 2006.
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. 22ª edição. São Paulo, Cultrix, 1976.
LIOGER, Raphael. Populisme liquide dans les démocraties occidentales. In: BADIE, Ber-
trand; VIDAL, Dominique (éds.). Le retour des populismes. Paris: La Découverte, 2019.
MOFFITT, Benjamin. The global rise of populism: performance, political style and represen-
tation. Stanford: Stanford University Press, 2016.
48
OYAMA, Thaís. Tormenta. O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2020.
NOTAS
1- Cf. Bracciale e Martella, 2017; Van Aelst, Sheafer e Stanyer, 2012; Ostiguy e
Roberts 2016; Moffit, 2016.
2- Analisamos melhor essas estratégias neste mesmo livro em “Paixão e presença”.
3- As lives semanais, todas as quintas-feiras à noite, servem, nas palavras de
Bolsonaro, para “trazer as novidades da semana”, “prestar contas” e “dar
resposta” às dúvidas e sugestões deixadas nos comentários. Já se tornaram
rotineiras também suas transmissões informais, e quase diárias, do Palácio da
Alvorada, residência oficial, onde costuma parar na entrada para conversar
com populares e jornalistas de plantão.
49
4- Cf. https://ndmais.com.br/noticias/o-presidente-precisa-descer-do-palanque-
diz-vice-presidente-da-camara/
https://revistaforum.com.br/politica/em-acao-pro-reforma-estadao-globo-
e-folha-pedem-em-editoriais-que-bolsonaro-desca-do-palanque/
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/03/politica-velha-ou-nova.shtml
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,procura-se-
um-presidente,70002767978
6- https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/apos-repercussao-
negativa-bolsonaro-apaga-video-de-golden-shower.shtml
7- https://brasilianismo.blogosfera.uol.com.br/2019/04/26/falas-de-
bolsonaro-sobre-gays-e-penis-dominam-noticiario-sobre-o-brasil/
8- https://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2019/05/tudo-
pequenininho-ai.shtml
9- https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/07/19/dentr-
os-governadores-de-paraiba-o-pior-e-o-do-maranhao-diz-bolsonaro.htm
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/termo-paraiba-usado-por-
bolsonaro-reflete-preconceito-ao-nordeste-e-cabe-punicao.shtml
10- https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/12/bolsonaro-chama-
greta-de-pirralha-e-diz-ser-contra-desmatamento-ilegal.shtml
11- https://www.facebook.com/jairmessias.bolsonaro/videos/533820083864876/
12- https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/bolsonaro-foi-autor-de-
58-dos-ataques-contra-jornalistas-em-2019-diz-entidade.shtml
14- https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/02/bolsonaro-se-queixa-da-
imprensa-e-faz-gesto-de-banana-para-jornalistas.shtml
50
15- https:/www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/folha-desceu-as-
profundezas-do-esgoto-diz-bolsonaro-sobre-suspeita-de-caixa-dois-em-
campanha.shtml
16- h t t p s : / / n o t i c i a s . u o l . c o m . b r / u l t i m a s - n o t i c i a s / a g e n c i a -
estado/2019/05/17/bolsonaro-divulga-texto-que-fala-em-brasil-
ingovernavel-fora-de-conchavos.htm
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/bolsonaro-admite-erro-
em-video-com-hienas-pede-desculpas-e-promete-retratacao.shtml
https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2019/04/22/bolsonaro-
critica-militares-de-seu-governo-pela-boca-de-olavo-de-carvalho/
19- https:/www.gazetadopovo.com.br/republica/maia-barra-impeachment-
mourao-camara/
https:/www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/nucleo-militar-ve-acao-de-
bolsonaro-contra-mourao-e-criticas-geram-desgaste.shtml
20- https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2019/03/25/bolsonaro-
publica-no-twitter-nova-critica-a-maia/
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/03/27/
bolsonaro-retruca-maia-sobre-brincar-de-presidir-e-irresponsabilidade.htm
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/05/20/nao-ha-
briga-entre-poderes-o-que-ha-e-uma-grande-fofoca-diz-bolsonaro.htm
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/03/24/
bolsonaro-maia.htm
21- https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/03/investidores-da-bolsa-
pisam-no-freio-apos-embate-entre-bolsonaro-e-maia.shtml
22- https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/brasil-tem-que-
mostrar-que-esta-fazendo-dever-de-casa-diz-bolsonaro-sobre-previdencia.
shtml
51
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/03/bolsonaro-diz-que-
atritos-com-congresso-existem-porque-alguns-nao-querem-largar-a-velha-
politica.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/apos-bolsonaro-
desautorizar-secretario-porta-voz-nega-divergencias-no-governo.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/bolsonaro-muda-tom-e-
diz-que-ideia-e-rememorar-e-nao-comemorar-golpe-de-1964.shtml
24- https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/bolsonaro-muda-tom-e-
diz-que-ideia-e-rememorar-e-nao-comemorar-golpe-de-1964.shtml
25- https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/03/apos-declaracoes-de-
bolsonaro-governo-faz-plano-para-limitar-falas-sobre-reforma.shtml
26- http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-03/presidencia-diz-
que-bolsonaro-nao-teve-intencao-de-criticar-carnaval
27- Uma evidência disso é o canal no YouTube Sr. Mito Bolsonaro, que tinha
280 mil inscritos até 13 de março de 2022. Cf. https://www.youtube.com/c/
SrMIT0B0LS0NAR0/videos. No Facebook, há também um grupo privado
com o mesmo nome com quase 5 mil participantes.
https://revistaforum.com.br/politica/em-acao-pro-reforma-estadao-globo-
e-folha-pedem-em-editoriais-que-bolsonaro-desca-do-palanque/
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/03/politica-velha-ou-nova.shtml
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,procura-se-
um-presidente,70002767978
30- https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2019/12/04/general-
santa-rosa-sobre-bolsonaro-governar-nao-e-acao-entre-amigos.htm
https://veja.abril.com.br/mundo/como-filipe-martins-virou-um-dos-
conselheiros-mais-proximos-do-presidente/
52
31- https://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2019/04/17/o-
homem-do-presidente/
https://epoca.globo.com/guilherme-amado/carlos-veta-acesso-de-jair-
bolsonaro-ao-twitter-23619613
https://theintercept.com/2019/02/22/carlos-bolsonaro-twiter-jair-
bolsonaro-presidente/
32- Depois de iniciar sua atuação na mídia como astrólogo, Olavo de Carvalho
autoproclamou-se filósofo (já que não tinha formação na área) e passou
a oferecer cursos online de filosofia, dos quais participaram os filhos de
Bolsonaro e vários de seus assessores, inclusive nomes indicados depois
como seus ministros – Abraham Weintraub (Educação) e Ernesto Araújo
(Relações Exteriores). Colecionador de armas, adepto do uso de palavrões
e propagador de discursos de ódio, como Bolsonaro, Olavo de Carvalho
costumava se gabar de ter ajudado “os direitistas a sair do armário” no Brasil.
Bolsonaro decretou luto oficial quando Carvalho, que morava nos Estados
Unidos, morreu em janeiro de 2022 pouco tempo depois de ser diagnosticado
com covid-19, doença diante da qual tinha a mesma postura negacionista de
Bolsonaro (a família omitiu as causas da morte).
33- https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-pede-desculpas-ao-stf-
e-diz-que-video-com-hienas-foi-1-erro/
53
PAIXÃO E PRESENÇA
YVANA FECHINE
55
suas redes sociais digitais deve se perguntar como o turbulento presidente
brasileiro mantém a fidelidade de uma parcela expressiva de eleitores, che-
gando como um dos candidatos mais competitivos nas eleições em que se
disputava sua sucessão. O apelo do bolsonarismo mesmo entre os segmentos
sociais que amargam as consequências da agenda neoliberal do seu governo
tem sido objeto de muitas análises nas mais diversas áreas do conhecimento.
Em sua maioria, essas análises se debruçam sobre as condições externas
que explicam a ascensão de Bolsonaro, especialmente, a operação pela Lava
Jato que, com base apenas em delações premiadas e sem provas concretas,
prendeu o ex-presidente Lula, que liderava as pesquisas de intenção de voto,
impedindo-o de disputar a eleição1. Há ainda, no entanto, um número redu-
zido de análises que se preocupam em entender como políticos populistas,
como Bolsonaro, constroem elos interpessoais e conseguem esta adesão fiel
de uma parcela do eleitorado sustentados pela maneira como mobilizam
estesias e paixões, a partir, sobretudo, das interações com seus seguidores
nas redes sociais digitais.
Para entender esses processos, a sociossemiótica oferece um bom ca-
minho, a partir do modelo interacional de Eric Landowski (2014), que será
acionado em boa parte das análises propostas neste livro. Neste modelo,
ele propõe a descrição teórica de princípios elementares relativos à maneira
pela qual o sujeito constrói suas relações com o mundo, com o outro, con-
sigo mesmo. Landowski configura, a partir da identificação e formalização
dessas relações, quatro regimes de interação que se intercambiam nas
distintas práticas sociais ou mesmo em uma única delas, formando um
sistema dinâmico que admite deslocamentos de um ao outro bem como a
sua conjugação. São eles: a programação, a manipulação, o ajustamento e o
acidente ou assentimento. É necessário então apresentá-los, ainda que breve-
mente, antes de apontarmos como tais proposições nos ajudam a entender,
os processos interacionais entre Bolsonaro e seus apoiadores.
O regime da programação, segundo Landowski (2014), é fundado nas
regularidades de comportamento de todos os tipos de atores possíveis (hu-
manos ou não humanos). Há formas de programação baseadas tanto em
causalidades físicas quanto em condicionamentos socioculturais que são o
objeto de aprendizagens e se exprimem em práticas rotineiras (ordem social).
No primeiro caso, o que se tem são regularidades físicas ou biológicas de tal
ordem que, para as mesmas ações, teremos sempre os mesmos efeitos. No
segundo caso, Landowski refere-se a regularidades de comportamento de
ordem social e simbólica – “boas maneiras”, práticas mecanicistas e deter-
56
ministas, comportamentos “automatizados”, estereotipias de todo ordem.
Esses comportamentos são tão internalizados ou “assumidos” que parecem
fazer parte de uma “ordem natural das coisas” ou, ao contrário, resultam
de coerções sociais. Nos dois casos, o sujeito e o objeto2 agem, portanto,
conforme um programa de comportamento determinado.
No regime da programação, as formas de ação entre sujeitos ou entre
sujeito e objetos se dão em termos de interobjetividade e de exterioridade.
Quando, ao contrário, a ação se dá em termos de intersubjetividade e de
interioridade, intervindo em algum grau na “vida interior” do outro já esta-
mos no regime de interação por manipulação. Landowski (2014) descreve
o regime da manipulação como aquele fundado sobre um princípio de
intencionalidade no qual se impõem as motivações e as razões do sujeito.
A manipulação exige, portanto, um “sujeito de vontade”, capaz de avaliar
os valores em jogo aos quais o manipulador apela para que ele faça suas
escolhas. Consiste em procedimentos persuasivos por meios dos quais um
sujeito age sobre o outro, levando-o a querer e/ou dever fazer alguma coisa, a
decidir segundo seus interesses.
Por isso, o regime da manipulação envolve necessariamente um sujeito
que deseja que o outro deseje; um sujeito que sabe e quer que o outro saiba,
um sujeito que crê e quer que o outro creia. A competência necessária para
manipular um sujeito qualquer corresponde, assim, a um fazer que o outro
queira, ou seja, um querer fazer que o conduz ao fazer. Mas, para que um sujeito
queira fazer algo – e, efetivamente, o faça – é preciso que o manipulador o faça
crer ou saber das vantagens daquele querer e fazer (não importa que o querer
e o fazer sejam provocados, objetivamente, por promessa ou ameaça, ou,
subjetivamente, por sedução ou provocação). O modo pelo qual um actante
(ou interagente) influencia o outro envolve, assim, uma troca de objetos-valor
entre eles; implica em um sujeito manipulado a partir dos conteúdos postos
em circulação por um sujeito manipulador. Essa lógica transacional – troca
de mensagens, de simulacros etc. – pressupõe necessariamente um contrato
entre sujeitos, pois vêm daí suas motivações. Por isso, a lógica transacional
da manipulação nos remete, segundo Landowski, a uma problemática de
ordem cognitiva e, de certo modo, “econômica”.
Se a manipulação depende do contrato entre os sujeitos, no regime de
interação por ajustamento, a maneira pela qual um ator influencia um outro
passa pelo contato (Landowski, 2014). Um sujeito não busca mais, unilate-
ralmente, fazer um sujeito fazer. O princípio agora é o da reciprocidade.
Busca-se agora fazer junto na medida em que sentem juntos. Em uma interação
57
programada, para se chegar a certos fins, é bastante que um actante se apoie
em certas determinações preexistentes, estáveis e conhecidas do comporta-
mento do outro. Nas interações por ajustamento, as posições são flexíveis e
plurais, suas identidades meramente prováveis. É na própria interação entre
os actantes – alçados agora à condição de parceiros – que os comportamentos,
papéis, posições emergem pouco a pouco. Um não planeja o que vai resultar
da sua interação com o outro, pois, nela, cada um dos interactantes desco-
bre uma forma de realização mútua. Landowski exemplifica o ajustamento
com aquele tipo de dança na qual cada parceiro se realiza como dançarino
no momento mesmo em que dança (se faz dançarino junto com o outro),
sentindo, apreendendo o movimento do outro.
No regime do ajustamento, o sentido está, portanto, na relação mesma
entre os actantes e nas transformações que neles se operam tão somente no
e pelo seu contato. A interação não mais se fundará sobre o fazer crer, mas sim
sobre o fazer sentir – não mais sobre a persuasão, mas sim sobre o contágio.
Nas descrições de Landowski3, o contágio designa um tipo de sentido cuja
particularidade é justamente ser sentido. Designa ora uma apreensão imediata
e em ato entre sujeitos, ou entre sujeito e objeto, por meio de suas propriedades
ou “qualidades” (physis e soma), ora um aprendizado entre os interactantes, fruto
de um contato contínuo e duradouro entre eles. Em todas as situações, no
entanto, depende sempre da presença de um ao outro – a presença contagiosa
que dá lugar ajustamento ente eles. O ajustamento não se define, no entanto,
apenas como um tipo de relação pregnante de natureza físico-somática ou
sensorial. Também pode ser pensado, em certas práticas sociais, como a
constituição de vínculos que resultam justamente do modo como os sujeitos
se (re)constroem em presença um do outro.
O último dos regimes descritos por Landowski (2014) é o acidente ou
assentimento, um processo interativo fundado sob o princípio da proba-
bilidade, da imprevisibilidade, da aleatoriedade. O autor define o acidente
contrapondo-o ao regime da programação no qual, ao contrário, o “mun-
do” é bem ordenado uma vez que os comportamentos são prefixados, os
papéis predeterminados. Na descrição genérica proposta por Landowski, o
acidente é sempre o efeito do cruzamento de duas trajetórias no qual não
se pode identificar nem causa (regularidade) nem finalidade (intencionalida-
de). O regime do acidente está relacionado à ruptura das regularidades de
qualquer ordem, configurando-se a partir do possível, mas absolutamente
incerto. Está associado, portanto, à ordem do puro risco: ao surpreendente,
a irrupções de descontinuidades radicais numa ordem social previsível ou
58
em comportamentos estandardizados. Em uma dimensão interobjetiva, o
acidente manifesta-se por meio da co-incidência e, consequentemente, da
coincidência, como a telha que cai na cabeça de um passante ou uma como
uma trombada entre frequentadores do metrô. Remete, por um lado, a proba-
bilidades matemáticas – o acaso “estatístico” – e, por outro, a probabilidades
míticas – o acaso dos “fatalistas” ou dos “supersticiosos”. Quando descreve
uma relação interacional deste domínio do transcendente (a sorte, o destino),
este regime também é denominado de assentimento.
59
desse “sentido sentido”, fica mais fácil entender a configuração, aparente-
mente paradoxal, de uma manipulação que depende de um ajustamento. É
preciso admitir, antes de tudo, que as redes sociais digitais instituíram um
outro modo de copresença. Não se trata, evidentemente, de uma interação
“face a face”, mas, como nestas, os actantes também se encontram em um
mesmo “lugar” aptos a estabelecerem relações entre si. Este “lugar”, no caso,
são os perfis e/ou grupos criados nas plataformas digitais. Nelas, estamos
imersos em um tempo “vivo”, em um enunciado em ato, que produz um efeito
de contato5. Participar ativamente de uma rede social implica, mesmo quando
não estamos online, na adesão a um estado de comunicação contínuo no qual
um está sempre virtualmente presente ao outro. Quando usa intensamente
seus perfis nas redes sociais digitais, como faz Bolsonaro, o político coloca-
-se no mesmo “lugar” dos seus seguidores e estabelece o simulacro de uma
reciprocidade enunciativa que, no final, faz os seus seguidores se sentirem
como se pudessem ter contato direto com o presidente. Cria-se, desse modo,
a condição semiótica necessária para o fazer sentir: o sentir-se junto e o sentir
junto que constituem o ajustamento anterior e necessário ao fazer político
manipulatório com o qual Bolsonaro nutre o bolsonarismo.
A consolidação do que os cientistas políticos chamam de bolsonarismo
– corrente ideológica, calcada no autoritarismo e conservadorismo, que se
articula em torno de Bolsonaro, mas que já o ultrapassa – depende desse
tipo de sentir-(se) junto precedido de uma combinatória particular entre o
fazer e o ser. Trata-se de um fazer fazer-ser: um fazer comunicativo a serviço
de um fazer ser. No caso, ser um adepto das ideias e um apoiador de Bolso-
naro, ou mais diretamente, ser um bolsonarista. Quando uma determinada
posição actancial pode ser assumida por uma pluralidade de atores que,
embora possuam características que permitem sua individuação, podem
ser pensados como conjunto por possuírem traços comuns, estamos diante
de um sujeito coletivo, e é como tal que o bolsonarismo pode ser descrito
semioticamente. Juan Alonso (2000) admite que, anterior à constituição de
qualquer sujeito coletivo, existe uma forma social “amorfa” e instável, um
“estar juntos” geralmente inquieto e impulsivo, mas sem a consciência do
“nós”. A constituição de uma estrutura actancial exige a demarcação de
limites e diferenciação dentro desse espaço social indefinido e isso depende
da aparição de um objeto-valor em comum cuja busca garante o processo
de identificação entre os indivíduos.
Essa aparição, segundo Alonso, deve-se ao “advento de um evento” que,
evidenciando o seu “sentir o mesmo”, garante sua coesão e, finalmente, a
estabilização na forma de um sujeito semiótico coletivo. No caso brasileiro,
60
esse evento foi a acirrada disputa eleitoral de 2018 pela Presidência da Re-
pública da qual Bolsonaro saiu vitorioso, encarnando a rejeição à corrupção
política e ao Partido dos Trabalhadores, que estava no poder há quase duas
décadas. A constituição desse sujeito coletivo que estamos chamando de
“bolsonarismo” começa, assim, durante a sua campanha à presidência e nas
redes sociais digitais, nas quais o então candidato concentrou sua comuni-
cação, apelando, principalmente, para bravatas e fake news.
Eleito sem um programa claro de governo, ele chegou ao poder às cus-
tas de um arranjo instável entre interesses, sobretudo, do capital financeiro
e empresarial, interessado na sua agenda econômica neoliberal, e de grupos
religiosos neopentecostais e católicos conservadores, dispostos a impor sua
agenda de moral e de costumes ao país. O apoio de todas essas forças é
sempre conjuntural e dependente de sua própria agenda de interesses. Dando
retaguarda ao governo, há uma parte expressiva dos militares, que ocupam car-
gos estratégicos e um “núcleo duro” e mais radical representado basicamente
pelo clã Bolsonaro com suas “milícias” nas redes sociais. O bolsonarismo, no
entanto, não encontra uma correspondência direta nem nesses atores mais
próximos ao presidente, nem tampouco nas diversas correntes representadas
no Congresso Nacional com as quais ele tem maior afinidade – as chamadas
bancada da bíblia (parlamentares ligados às igrejas), do boi (parlamentares
ligados ao agronegócio) ou da bala (ex-policiais e militares defensores do ar-
mamento da população) –, pois suas pautas coincidem apenas parcialmente
com as do governo.
Em suma, o projeto autoritário e conservador do bolsonarismo en-
contra abrigo em grupos sociais dispersos e conflituosos, que nem mesmo
se definem claramente frente ao espectro partidário e institucional. Por
isso, preferimos pensar o fenômeno do bolsonarismo não tanto a partir
de um referente político empírico – incumbência que, aliás, cabe a outras
disciplinas –, mas como esse sujeito coletivo cujo modo de existência é
semiótico e dependente, sobretudo, da sua coesão e sentimento de “corpo”
e de “família” construídos pelas redes sociais digitais (Quadro 1)6. É para
esse sujeito coletivo que o presidente se dirige por meio de seus perfis nas
redes sociais e é a ele que deve em parte sua sustentação política.
Comentário de S.B: Que legal! Nós eleitores de Bolsonaro não nos conhecemos
pessoalmente, mas nos tornamos uma grande família
Quadro 1
61
Bolsonaro possui perfis nas principais redes sociais digitais com con-
teúdos que se retroalimentam e transbordam também para aplicativos de
mensagens. Mas, foi no uso do Facebook, rede considerada pelos analistas
como uma das melhores para entrar em contato com os eleitores, que mais
se destacou. Em 2020, ano crucial da pandemia de covid-19 e de sua “baixa”
de popularidade, ele despontou como sexto líder político mais seguido no
mundo e o primeiro na América Latina7. Em volume de interações, ocupou
a segunda posição mundial, perdendo apenas para o ex-presidente dos
Estados Unidos, Donal Trump, um dos seus “gurus”, o que dá a medida
de sua influência nesta rede social. Além de fazer lives no Facebook todas
às quintas-feiras à noite, com um balanço da semana, já se tornaram roti-
neiras também suas transmissões informais, e quase diárias, do Palácio da
Alvorada, residência oficial, onde costuma parar na entrada para conversar
com populares e jornalistas de plantão. As lives no Facebook, reproduzidas
também em seu canal no YouTube e em outros perfis, tornaram-se uma
forma privilegiada e diferenciada de comunicação do presidente com seus
seguidores, razão pela qual concentramos nossa atenção nesta plataforma.
O que claramente predomina na comunicação presidencial no Facebook
é a alternância ou sobreposição entre manipulações de ordem patêmica e
ajustamentos com base estésica. Na descrição das interações manipulatórias,
a semiótica discursiva propõe que a relação do sujeito com os valores que
orientam seu percurso narrativo envolve um querer, um dever, um saber e um
poder. Estas estruturas são chamadas de modalidades e, como já vimos antes,
determinam o fazer, mas podem também modificar o ser do sujeito. Quando
se organizam entre si, surgem, então, arranjos modais que configuram certos
estados de alma tratados pela semiótica como paixões. Os estados patêmicos
– cólera, ciúme, frustração, amor, alegria, indiferença etc. – são descritos,
nesta perspectiva teórica, a partir de compatibilidades e incompatibilidades
das qualificações modais que determinam o ser do sujeito, e não pelo estudo
de temperamentos ou comportamentos.
62
relação contratual que nos permite explicar estados de alma tradicionalmente
associados à manipulação. Resta, no entanto, dar conta de certas “flutuações
de sentimentos” que escapam das “paixões com nome”, já inventariadas
pela semiótica, uma vez que não resultam propriamente de combinatórias
ou conflitos modais definidos pela junção do sujeito com certos objetos
valor. Landowski (2004) chamou-os de paixões “sem nome” por duas ra-
zões: primeiramente, porque tinha que distinguir esses estados de alma da
ordem do estésico e do “contágio” daqueles que podem ser descritos por
uma “matemática” modal, mas também porque, de fato, esses sentimentos
“não fazem parte das formações puras às quais a língua dá um nome”9. Ma-
nipuladores por profissão, os políticos que emergem nesses momentos de
crise da democracia sustentam sua popularidade às custas de paixões “com
nome” ou “sem nome”, que se intercambiam ou se conjugam, convocando
novas perspectivas de análise. Comecemos, então, pelo que tem nome.
63
para a realização de seus desejos e direitos (de modo geral, melhoria das
suas condições de vida), dirigindo a ele sua confiança (querer ser e crer ser). A
expectativa de um implica, portanto, na atribuição de um dever fazer do outro.
Quando o dever fazer não se realiza instaura-se a insatisfação em função da
carência do objeto desejado (falta objetal) e a decepção em função da falta
fiduciária (desconfiança em relação ao sujeito do fazer no qual depositava
a sua crença).
O ressentimento surge como a consciência aguda e reiterada da falta.
Não é uma paixão resultante tanto da insatisfação (falta objetal), mas, sobre-
tudo, da decepção (falta fiduciária) que, no caso brasileiro, está certamente
associado à operação Lava Jato. A espetacularização da cobertura jornalística
das investigações da Lava Jato acentuou a criminalização da política e cola-
borou para a descrença nas instituições. Embora o alvo preferencial tenham
sido o Partido dos Trabalhadores (PT) e o ex-presidente Lula, a sucessão de
escândalos envolveu lideranças de praticamente todos os grandes partidos
brasileiros e pavimentou o caminho para a eleição de Bolsonaro que, tendo
os principais adversários fora da disputa, pôde assumir com êxito o discurso
moralizador e antissistema.
Ainda que possa ser apontada como uma variável fundamental na dis-
puta presidencial de 2018, essa falta fiduciária não seria tão determinante se
não estivesse associada a outra forma de espera negativa, o medo. No caso
brasileiro, o medo assumiu ao menos duas faces bem visíveis: o medo das
perdas do poder aquisitivo e da posição social, impostas pela crise econô-
mica, e o medo da violência crescente, reflexo do caos urbano e da ausência
de políticas de segurança eficientes. O poder ser (a eventualidade) e não querer
ser (a recusa) atingido pelas perdas objetais resultou no medo. O querer ser e
não poder ser aquilo que se esperava – socialmente, economicamente, moral-
mente – produziu o caldeirão de ressentimentos alimentados pela decepção
e descrença com “o sistema” decorrentes da falta fiduciária. Para entender
essa profunda desconfiança institucional, não se pode esquecer que, con-
comitantemente à operação Lava Jato, o país viveu um golpe parlamentar
que destituiu a presidenta Dilma Rousseff do cargo, com base numa frágil e
controversa acusação de irregularidades fiscais, respaldada pelo Judiciário e
pela Mídia. Nesse cenário, o ressentimento e o medo de várias ordens funcio-
naram como pivôs passionais e, quando encadeados com outras conjugações
modais, conduziram ao ódio, que pautou a campanha eleitoral de Bolsonaro.
Diante da falta, o sujeito carente busca, como no conto popular10, um
sujeito do fazer (um herói) capaz de repará-la ou, então, resigna-se (mas isso
remeteria a outro regime interacional, o do assentimento, que não tem lugar
nesse contexto). Ao contrário da resignação, que não tem consequências prá-
64
ticas, o ressentimento e o medo conduzem à malevolência, que corresponde
a um querer fazer mal ao actante antissujeito a quem se atribui as faltas. É
nesse ponto que o ódio se transforma, desde a disputa eleitoral, no motor do
bolsonarismo. O antissujeito do bolsonarismo é um “inimigo” que assume
muitas faces. Foi figurativizado, principalmente, como os ex-presidentes
Lula e Dilma, mas também como todos os “petistas” que, graças à cobertura
midiática e a seletividade do Judiciário no julgamento dos processos da Lava
Jato, tornaram-se a figurativização mais imediata dos corruptos. A posição
de antissujeito ou “inimigo” logo passa também a ser ocupada no esquema
patêmico bolsonarista por todos os “esquerdistas” e “comunistas”, associados
não apenas aos petistas e militantes de movimentos sociais, mas também a
intelectuais, professores, artistas.
Para assumir a posição desse sujeito reparador da falta fiduciária, Bolsonaro
investe, tanto no ataque aos “inimigos” – e com tamanha agressividade verbal,
que incita seus seguidores à violência inclusive física contra seus adversários –,
quanto na construção da sua imagem como um “enviado” por Deus para esse
combate ou mesmo como um novo “messias”, comparação favorecida pelo seu
nome de batismo. Também colaborou para apresentar-se como o “escolhido”
para a missão de salvar o Brasil um atentado que sofreu durante a campanha
eleitoral e do qual sobreviveu, segundo ele, por “milagre”. O episódio da facada
que levou de um homem com problemas mentais é recorrentemente evocado
em suas publicações conotando o caráter “missionário” de sua eleição. Para
mostrar que tem a competência necessária para o “combate”, não hesita em
evocar nas suas postagens sua condição de ex-militar, razão pela qual costuma
ser tratado por parte dos seguidores como “capitão. Na figurativização do
“Messias” – estratégia aprofundada no quarto capítulo –, seus principais aliados
são as lideranças religiosas neopentecostais que, paradoxalmente, empunham
a bandeira dos valores cristãos ao mesmo tempo que apoiam a violência e
intolerância do bolsonarismo. No perfil do Facebook, as publicações que o
presidente faz em eventos ou celebrações religiosas, assim como a insistente
defesa da família tradicional e dos “cidadãos de bem” preconizados pelo elei-
torado conservador evangélico, mas também em parte católico, evidenciam a
eficácia desse papel “missionário” junto aos seus seguidores (Quadros 2 a 4).
Comentário de J.S: Lógico kkk o nome dele já diz: Messias. Veio pra salvar o país
se assim for, os petralhas e a mídia estão o dilacerando pouco a pouco, mas
acha que elevai desistir? Naaao, seria só mais um presidente que não fez nada,
mas as coisas mudaram
Quadro 2
65
Comentário de L.B: Deus está no controle de tudo. Esse sobrenome, MESSIAS;
não é por acaso. Que Deus lhe dê sabedoria, para conduzir o destino do Brasil.
Quadro 3
Postagem de Jair Bolsonaro (acompanhando vídeo dele sendo transportado numa maca hospitalar após
levar a facada durante a campanha)11
- Imagens inéditas, 07/set/2018
- Devo minha vida a Deus
- Obrigada pelas orações e confiança
- A missão de recuperar o Brasil é de todos nós.
Quadro 4
66
críticas de líderes europeus ao seu governo, ele preferiu, por exemplo, acu-
sar em sua live semanal no Facebook o ator Leonardo DiCaprio de apoiar
financeiramente organizações não governamentais que estariam provocando
incêndios criminosos apenas para comprometê-lo13.
Bolsonaro e os bolsonaristas, no entanto, raramente entram no mérito
de problemas que dominam a agenda pública (degradação ambiental, de-
semprego, recessão econômica, reformas previdenciária e tributária etc.).
Ao contrário, aproveitam qualquer oportunidade para promover discussões
tangenciais, que reforçam suas crenças e valores. Um bom exemplo desse
tipo foi o embate, em agosto de 2019, com o presidente Emmanuel Macron.
Cobrado pelo descompromisso com as políticas de proteção à Amazônia e
controle do clima, ele preferiu “desviar” o foco da discussão, reforçando o
comentário machista que um dos seus seguidores fez no Facebook atribuindo
as críticas de Macron à inveja que o francês teria do brasileiro porque, na
opinião deste apoiador, ao contrário de Bolsonaro que é casado com uma
mulher mais jovem e bonita, sua mulher é mais velha e feia. Diante de outro
grave desastre ambiental, a estratégia também foi tangenciar a discussão.
Desta vez, o problema foi o vazamento de óleo que, detectado no final de
agosto de 2019, atingiu 997 localidades, entre elas alguns dos principais
destinos turísticos no litoral brasileiro. Em resposta às críticas pela falta de
ações para descobrir a origem da gigantesca mancha de óleo, bem como para
impedir seu avanço e os consequentes prejuízos econômicos e ambientais
no litoral, Bolsonaro reagiu com mais uma teoria da conspiração sugerindo
que um navio do Greenpeace ou o presidente venezuelano Nicolas Maduro
poderiam estar estariam envolvidos em um “derramamento criminoso” de
óleo para prejudicar seu governo (Quadro 5).
Postagem de Jair Bolsonaro (acompanhando vídeo informando que o óleo encontrado nas
praias nordestinas é compatível com o petróleo das bacias venezuelanas)
- No mínimo estranho o silêncio de ONGs e esquerda brasileira sobre o
óleo nas praias do Nordeste.
- O apoio desses partidos ao ditador Maduro fortalece a tese de um derra-
mamento criminoso
Link no YouTube: https://youtu.be/USLsYQC-XvU
Quadro 5
67
Investindo-se do papel de sujeito reparador da crise fiduciária, o presi-
dente dedicou-se, em seu primeiro ano de governo, a alimentar uma “guerra”
contra o chamado “marxismo cultural” e a “depravação”, a “desordem” e a
“bandidagem”, fazendo desse seu papel actancial praticamente um fim em si
mesmo. Deslizava-se assim facilmente para as oposições identitárias (“nós”
contra “eles”). Essa conduta favorece, mais uma vez, o reforço dos conflitos
e a lógica conspiratória do “inimigo” que, a depender da situação, podem
ser os franceses ou venezuelanos, as organizações não governamentais ou
os militantes de movimentos sociais, os defensores de direitos humanos e
causas ambientais, os jornalistas, os professores “esquerdistas” ou até mesmo
os demais poderes da República.
Todo o percurso passional bolsonarista está a serviço, em suma, do
fazer demagógico que sustenta seu populismo digital. Não é por acaso que
o presidente insiste em publicações nas quais aponta o “povo como patrão”,
recebe denúncias, faz enquetes para saber a opinião dos seguidores sobre
determinados temas ou decisões (Figura 1, Quadros 6 e 7) ou anuncia medidas
que atendem a pedidos pontuais recebidos pelo Facebook, como a redução
de impostos sobre jogos eletrônicos (Quadros 8 a 11). Todo esse fazer de-
magógico, apoiado pelo modo como ele habilmente ocupou o papel de um
sujeito reparador de uma crise fiduciária – ainda que às custas, sobretudo da
provocação e desinformação –, não seria, no entanto, tão eficaz se não fosse
o “espírito de corpo” sedimentado entre os bolsonaristas, a partir também
do que estamos chamando aqui de “paixões sem nome”.
Figura 1
68
Comentário de M.B: Obrigada por perguntar Bolsonaro melhor presidente do Brasil
Quadro 6
Comentário de J.L: Reconhecer que o povo é seu patrão, isso sim é humildade.
Que Deus abençoe o Brasil, seu povo e o nosso presidente Sr. Jair Bolsonaro !
Comentário de A.L.R: O povo brasileiro agradece o seu trabalho logo logo vai
decolar os contra do Congresso vao ter que admitir que o POVO que manda
Comentário de D.D: Sim o povo tem orgulho de ter um funcionário como vossa
exelencia um cara onesto e acima de tudo patriota e religioso acima.de.tudo
Deus acima de todos!
Quadro 7
Quadro 8
Quadro 9
69
Comentário de M.A: É bom saber que os pedidos pelo face são também atendidos.
Isso mostra a preocupação com os seguidores também
Quadro 10
Comentário de A.Q: Cap. Pres. ESPETACULAR esse seu feedback com seus
eleitores. O Sr. Já entrou para história como o MELHOR E MAIS EMPÁTICO
Presidente do Brasil. VELAMMMEEEE
Quadro 11
Figura 2
70
A noção de presença também remete, dentro do seu leque semântico,
à participação em algo ou ao “se sentir parte” de algo. Podemos considerar,
ao tratarmos dos populismos, que esse modo de presença envolve certos
estados de alma que, embora não possam ser descritos por percursos modais,
promovem outros sentidos também da ordem do sentir. O jogo democrático
vem sendo transformado cada vez por tais processos interacionais susten-
tados, sobretudo, por uma “ligação” pessoal ou um laço emocional entre
o político e o eleitor. É preciso, portanto, entender e descrever como são
construídos esses vínculos que já não dependem tanto da relação contratual,
própria da lógica da representação política, mas do modo como um sente o
outro e sente como o outro numa dinâmica de proximidade e identificação
dependente justamente de uma presença recíproca e cotidiana.
Bolsonaro não descuida desse exercício de presença nas redes sociais
digitais. Pode-se mesmo dizer que isso é a sua mais marcante “atuação pre-
sidencial”. O noticiário político é constantemente pautado por declarações
que o presidente faz em suas publicações e lives diárias nas mais diversas si-
tuações. Os jornalistas eram obrigados a fazer plantão do lado de fora da sua
residência oficial em Brasília à espera dos momentos em que ele parava para
conversar com a claque bolsonarista que costumava se aglutinar na entrada
para saudá-lo ou tirar fotos. Esses momentos eram geralmente publicados
em vídeos gravados ou veiculados por streaming e era assim que o presidente
se dirigia preferencialmente aos brasileiros, já que esvaziou os ritos e meios
de comunicação oficiais e institucionais.
Não satisfeito com as lives, vídeos e outras publicações que permitiam
aos seus seguidores acompanhar o “dia a dia” do presidente – e de certo
modo participar –, o seu perfil no Facebook costuma postar suas fotos
acompanhadas apenas de cumprimentos como “bom dia”, “boa noite” ou
“bom final de domingo”, cujo propósito evidente é tão somente “marcar
presença” junto aos seus seguidores (Figuras 3 a 5). Nessas postagens, como
em outras, os comentários são numerosos e, em sua maioria, afetuosos, um
pouco nos moldes das mensagens que muitos costumam dirigir nas redes
sociais àqueles de quem são próximos. Essa proximidade é cultivada ainda
de outros modos. O presidente frequentemente responde a um ou outro
comentário entre os milhares que recebe, justamente para afiançar mais que
um “estado de comunicação” contínuo, um “estado de presença” permanente
(Quadros 12 a 14).
71
Figura 3
Figura 4 Figura 5
72
Comentário de J.P.S: Isso que o Brasil precisa.... De presidente presente com a
população... Tamos juntos até o fim
Quadro 12
Comentário de M.T: Nunca pensei que poderia mandar bom dia para um Presi-
dente do Brasil.
Quadro 13
Comentário de D.D: Continue nas redes sociais, não acreditamos nessa mídia
marrom, foi linda nossa campanha no face
Comentário de P.G: Temos um grupo no Whats feito desde a época das eleições
e estamos firmes e fortes apoiando vc presidente.
Quadro 14
73
Nos vídeos e fotos divulgados no seu perfil, aparece dirigindo moto de marca
barata usada pelos motoboys (Quadro 16), almoçando em churrascaria de
caminhoneiros, jogando videogame, assistindo a programas de humor na
TV bem ao gosto popular, recebendo amigos dos tempos em que esteve no
Exército, cantando ao lado da mãe ou de artistas populares14.
Comentário de R.B: Sr. Presidente, qual o seu palpite para domingo no jogo entre Corin-
thias e Palmeiras ??? Vai ter feijoada ?
Comentário de R.B: Pessoal, sem fazer bullying com o Sr. Presidente no meu comentário
hein... o cara é brother nosso, independentemente do time que torce.. avante Brasil !!
(Avante Brasil, não Palestra kkk).
Quadro 15
Postagem de Bolsonaro (acompanhando de vídeo em que aparece em um passeio de moto em uma praia
do litoral de São Paulo durante um feriado)16
- Uma voltinha de moto no Guarujá. Forte abraço a todos.
Comentário de A.L: Presidente adoro o Sr!!! Humilde demais, é isso aí!!! Deus te abençoe
sempre!!
Comentário de T.R: Aiiiii siimmmmmmm Já era fan agora ainda mais Manda um salve
pra nos motoboys aki de Curitiba presidente
Quadro 16
74
declarando, tacitamente, “eu sou um de vocês”, no que é correspondido com
um “você é um dos nossos”, ao ponto de um deles se exibir ao batizar o filho
com o mesmo nome (Figura 6). São inúmeros os comentários nas lives que
o elogiam por sua simplicidade, por falar a “linguagem do povo” e por sua
disponibilidade nas redes sociais (Quadros 17 a 20). A proximidade encenada
pelo presidente está claramente a serviço desse sentimento de pertencimento,
que mantém o bolsonarismo coeso, a partir de uma identificação pessoal – e
passional – com seu destinador.
Figura 6
Comentário de R.B: nunca nos sentimos tão próximos ao nosso presidente, como
agora com o nosso amado Jair Messias Bolsonaro. Ser um amante das redes
sociais, nos aproximou bastante (o governo e o povo). Não o vemos como um
cara engomado e inalcançável! Vemos o senhor como um de nós, mas que está
aí pra nos representar e nos salva! Te amo meu presidente
Quadro 17
75
Comentário de B.C: Legal a live. É nossa linguagem! Até a mais humilde pessoa que não
em estudos entende o que está acontecendo no Brasil. Nunca teve e nen terá no Brasil
um presidente tão povo como B1717.
Quadro 18
Comentário de O.S.S: Melhor coisa que existe é ter um presidente que fala direto
com o povo
Quadro 19
Quadro 20
76
Comentário de A.P : Pode ser criticado por algumas falas controvérsias, mas que
esse cara tem um coração enorme isso tem! Parabéns presidente
Comentário de S.C : Adoro quando ele chinga Vai que é sua preside... te amamos
Olhai por nós de Angra pelo amor de deus.. Angra pede socorro
Quadro 21
Comentário de V.T : Não precisa ficar dando resposta pra fake news nenhuma!
Continue o trabalho que está fazendo. O SR foi eleito por nós pq fala o que
pensa e assim queremos que dê sequência
Quadro 22
Comentário de R.S : Gente eu às veze fico meio P... com umas atitudes de Bolso-
naro, Mas neh... não tem como não amar e admirar essa pessoa kkkk
Comentário de I.S : R.S é o jeitão Bolsonaro de ser. Acho que é isso que me
encanta nele.
Quadro 23
Comentário de A.G : Tem como não amar esse maluco ? Com todo respeito
senhor Presidente
Quadro 24
Comentário de L.M: Boa noite, sr. Presidente. Por favor, compre um microfone
melhor. Na 25 de março vendem bem baratinho. O áudio está muito baixo!
Quadro 25
Comentário de A.B: Faz uma live mais profissional com áudio melhor e equipa-
mento agora você tem dinheiro kkkkkk
Quadro 26
77
Comentário de A.R: Coloque, água para o Presidente, ele está falando muito
pessoal, onde está quem o acompanha e prepara as LIVES ??????????
Quadro 27
Figura 7
78
peração, o cotidiano hospitalar19. Pelo Facebook, seus seguidores puderam
acompanhá-lo durante todo o período de internação como se fossem parte
do círculo mais íntimo, a ponto de agirem como se fossem mesmo parte da
família. Nos comentários, os seguidores não apenas demonstravam empatia
com o sofrimento do presidente, mas se sentiam à vontade para recomendar
cuidados que ele deveria tomar ou para dividir experiências que tiveram com
cirurgias semelhantes (Quadro 28). Bolsonaro não abriu mão nem mesmo de
fazer, no quarto do hospital, a sua live semanal de “prestação de contas”20 para
renovar seu compromisso com o “povo patrão”, provocando comentários
calorosos que elogiavam sua disposição para o trabalho e consideração com
os eleitores mesmo estando doente (Figura 8, Quadro 29).
Comentário de M.B: Vc, te chamo assim presidente porque acho que vc já faz
parte da minha família. Não devia pegar pesso. Quando vi vc pegar crianças
no colo falei pro meu filho ele não deveria fazer isso. Procure se conter e não
fazer esforços suas cirurgias não foram de brincadeira. Se cuida presidente
precisamos de vc.
Comentário de F.H: Nada de carregar peso. Juízo kkk Deus abençoe grandemente
estamos em oração
Comentário de M.R: E nada de galopar por aí também! Por favor ! Não nos deixe
aflitos ! Deus esteja contigo sempre!
Quadro 28
79
Figura 8
Quadro 29
80
entanto, outra dimensão associada à lógica do enfrentamento permanente,
tão explorada pelos “novos” populistas que parece particularmente favorecida
pela copresenca instituída pelas redes sociais. Trata-se do sentimento de
prontidão, que, de modo geral, corresponde à vivência de uma expectativa
duradoura em relação a algo ou alguém.
A prontidão também pode ser pensada como um modo de presença
no qual se estabelece uma cumplicidade entre aqueles que estão a postos e
esperam um pelo outro ou esperam juntos por um outro. Esse estado mútuo
de espera pode ser identificado à disponibilidade para o encontro propiciado
pelas plataformas digitais, especialmente nas suas formas de comunicação
online. Em redes sociais como o Facebook e outras, todos parecem, de al-
gum modo, prontos para a interação pelo simples fato de possuírem nelas um
perfil (um “estar aí”). Participar ativamente de uma rede social implica, antes
de tudo, na adesão ao já mencionado “estado de comunicação” no qual um
actante está, ao menos virtualmente, ao alcance do outro. Quando vivem
à sombra de um “inimigo”, essa espera envolve, no entanto, um estado de
alerta em relação àquilo que os ameaça reciprocamente e que devem juntos
enfrentar. No bolsonarismo, esse estado de prontidão, ao mesmo tempo que
reforça, é também reforçado pelo sentimento contínuo de risco que o presi-
dente inspira em seus seguidores, envolvendo-os em um estado paranoico,
já apontado em sua conduta21.
É interessante, certamente, observar o comportamento de Bolsonaro
considerando estudos com base na psicologia social já publicados, desde os
anos 50, sobre o “estilo paranoico” na política, um tema que chegou a ser
retomado por pesquisadores norte-americanos após a ascensão de Donald
Trump22, outro populista adepto das teorias da conspiração e de quem
Bolsonaro é um admirador confesso. Na perspectiva sociossemiótica, no
entanto, a conjugação entre prontidão e paranoia dá lugar a um estado de
incitação (pelo ódio) e excitação (pela expectativa) que parece bem próximo
daquela “espera pelo inesperado” descrita por Greimas (2002) ao tratar de
certas experiências estésicas. No contexto que analisamos, essa “espera pelo
inesperado” manifesta-se não tanto como fratura no cotidiano, mas como
uma ansiedade e uma tensão com um estar-por-vir: nada aconteceu ou está
acontecendo, mas algo ameaçador pode estar sendo gerado neste exato mo-
mento. O apelo a esse tipo de sentimento pode ser observado constantemente
em postagens em que Bolsonaro chama a atenção dos seus seguidores para
ameaças imaginárias, como, por exemplo, nas suas insistentes menções ao
“Fórum São Paulo”, uma suposta articulação entre lideranças de esquerda
81
para impor “ditaduras comunistas” em países da América Latina, incluindo
o Brasil (Figura 9, Quadro 30). Quando vivida coletivamente, essa espécie de
prontidão paranoica23 também fortalece o “espírito de corpo” que mantém
coeso o bolsonarismo. Para tudo o que possa vir, Bolsonaro, como cada um
deles, “está aí”, bem ao alcance no aqui-agora das redes sociais digitais, pronto
para entrar em contato e (re)agir.
Figura 9
Comentário de M.C: Sempre prontos para colocarmos em prática o que aprendemos no EB!
Comentário de J. E.S: Nós confiamos em DEUS e nas forças ARMADAS, vai firme
presidente estamos na luta!
Comentário de E.L: Nos chame pra rua presidente! Estamos de prontidão! Dia 26/05
todos na rua!24
Quadro 30
82
No primeiro ano de governo de Bolsonaro, houve outro episódio
revelador dessas disposições. Uma reportagem do Jornal Nacional da Rede
Globo, principal telejornal da maior emissora de televisão do país, divulgou
um depoimento de um à polícia do Rio de Janeiro no qual afirmava que,
no mesmo dia da execução da vereadora do PSOL Marielle Franco, um dos
milicianos preso teria visitado a casa de Bolsonaro no condomínio luxuoso
na capital carioca. Bolsonaro reage prontamente com uma live no Facebook,
feita na madrugada, direto da Arábia Saudita onde estava em viagem oficial25.
Nela, o presidente aparece completamente descontrolado, xingando a Rede
Globo, aos berros, com expressões e gestos violentos, pelo seu “jornalismo
porco”. No pronunciamento ensandecido, ele, como de costume, defende-
-se de denúncias e críticas, acusando a Globo não só de divulgar fake news,
mas de servir ao PT (o que é completamente non sense, já que a Globo tem,
historicamente, uma postura antipetista).
Além de desmentir a informação dada pelo porteiro no nebuloso pro-
cesso que investiga quem ordenou aos milicianos que matassem Marielle,
Bolsonaro afirma repetidas vezes, com a voz embargada de emoção, que ele
e sua família vêm sendo perseguidos por “patifes” e “canalhas” que querem
derrubá-lo e para os quais a prisão de um dos seus familiares seria um “or-
gasmo”. As acusações de envolvimento dos Bolsonaro com os ex-policiais
que assassinaram Marielle, assim como as denúncias de corrupção que pesam
sobre seus filhos, entram, mais uma vez no rol das teorias da conspiração.
Não por acaso, novamente, ele recupera o episódio da facada, reiterando sua
desconfiança na investigação policial que apontou o seu agressor como um
“lobo solitário”. Sem esconder a exaltação pela qual ele mesmo se desculpa ao
final da transmissão, Bolsonaro sugere novamente complôs da esquerda, da
Globo e até mesmo do governador do Rio, seu ex-aliado, contra sua família.
Comovidos com o desabafo do presidente, seus seguidores pareceram
estar igualmente a postos e, prontamente, reagiram demonstrando solida-
riedade com milhares de comentários à sua publicação. Desconsiderando
inteiramente o mérito e a gravidade da denúncia, apoiada em documentos
vazados do inquérito policial, as manifestações mais frequentes dos segui-
dores no Facebook reforçaram os seus delírios persecutórios. Merecem
destaque, no entanto, os inúmeros comentários nos quais uma parte dos
seguidores demonstrava grande empatia com o presidente, exprimindo a
mesma indignação e externando sensibilidade com seu sofrimento. Houve
demonstrações de preocupação inclusive com seu bem-estar físico, pois, foi
tão grande o seu abalo emocional, que alguns pediam para ele ter calma ou
poderia ser vítima de um enfarte (Quadro 31).
83
Comentário de Y.S: Tenho orado por você presidente, chorei quando o vi chorando
por causa da rede globo. Clamei ao Senhor pela sua vida vida, saúde e família.
Comentário de P.S: Estou contigo. Me coloco no seu lugar e acho que já teria
explodido. O senhor tem sido muito paciente.
Comentário de Y.S: Foi muito forte o que senti, pois sei que eu estava sentindo a
dor dele, tive uma crise de choro, daí então, levantei um clamor por ele. estão
tentando todo custo fazer nosso presidente perder a paciência, sair do sério,
mesmo pq sabem que ele é nervoso e não leva desaforo pra casa e muita coisa
que como presidente não fica legal ele fazer! Por isso essa esquerda infeliz usa
as mais terríveis armas contar ele, e isso tem abalado até os ossos do nosso
presidente ele precisa ser coberto de oração!
84
pronta e contundente reação nas redes sociais, colaborou para que o depoi-
mento do porteiro fosse revisto e a grave denúncia caísse no esquecimento.
Apesar de sua conduta desastrosa como presidente da República, a expres-
siva popularidade de Bolsonaro pode ser compreendida, numa perspectiva
sociossemiótica, quando atentamos para episódios como este. Nele, há uma
manifestação exemplar do tipo de estratégia política sustentada na manipula-
ção por ajustamento. Nessa articulação entre regimes de interação, os limites
entre estados de alma já conhecidos e outros que não sabemos ainda muito
bem como nominar são muito tênues e, por isso mesmo, desafiadores para
qualquer analista da política contemporânea.
O percurso passional que produz o medo, ressentimento e o ódio já é
conhecido na semiótica. No quadro teórico da nossa disciplina, a abordagem
que propomos aqui, inspirada nas ideias de Landowski (2008), nos permitiu,
no entanto, realçar uma condição fundamental para o êxito de populistas
como Bolsonaro: o sentido que emerge de sua presença nas redes sociais digitais
e que se manifesta, a partir dos seus vários desdobramentos, nos vínculos
emocionais e afetivos estabelecidos entre ele e seus seguidores. É a partir
desse simulacro de “ligação” pessoal que se explica, ao menos parcialmente,
como segmentos da sociedade brasileira atacados pela extrema direita – po-
bres, negros, mulheres, entre outros – aderem ao bolsonarismo, negando
sua condição de classe, raça ou gênero e se deixando levar pelo sentimento
de pertencimento tão bem explorado pelo presidente. A principal – e quase
exclusiva – “função” de Bolsonaro no principal cargo da República foi ser
o que é e é nesse ser que parece residir o seu fazer político, cujo principal
atributo é despertar as paixões, com nome ou sem nome, que pavimentam o
caminho do projeto político neoliberal segregador, conservador e autoritário
das forças sociais que ele representa.
Se há uma competência que se pode atribuir a Bolsonaro, geralmente
tratado pelos opositores e críticos como um político despreparado e dese-
quilibrado, é a competência semiótica. É um erro considerá-lo apenas como
uma figura risível, que não merece ser levada a sério, como ocorreu, aliás,
durante o período pré-eleitoral. São estéreis também as discussões sobre a
intencionalidade ou não de suas declarações e comportamentos estapafúr-
dios, que muitos consideram como “cortina de fumaça” para esconder os
reais problemas do país. Intuitivamente ou estrategicamente, ou ambos, os
processos interacionais que ele adota nas redes sociais digitais têm garantido
a parcela de popularidade com a qual ele tem desnorteado os adversários e
desafiado a própria democracia brasileira. Entender melhor como se dá essa
85
interação sustentada por procedimentos passionais e estésicos é uma etapa
necessária para propormos, com o olhar e instrumentos da nossa disciplina,
uma semiótica política propositiva. É este o desafio assumimos que neste
capítulo e nos próximos nos quais muitas das estratégias que aqui foram
apresentadas serão desdobradas e/ou aprofundadas.
86
REFERÊNCIAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Paixões e apaixonados: exame semiótico de alguns
percursos, Cruzeiro Semiótico, Associação Portuguesa de Semiótica. Porto, v.
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Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo, 51 (1): 9-22, 2007.
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balho e cuidado [livro eletrônico] Fortaleza: Editora da UECE, 2015. Disponível
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tal-%20POLI%CC%81TICA,%20TRABALHO%20E%20CUIDADO.pdf
NOTAS
1- Os processos da Lava Jato contra o ex-presidente Lula, que ficou preso 580
dias, foram posteriormente anulados pelo Supremo Tribunal Federal. O STF
também considerou o ex-juiz Sérgio Moro, que respondia pelos processos da
88
Lava Jato na 13a. Vara Federal de Curitiba, parcial no julgamento de processos
contra Lula. Moro pediu demissão para ser Ministro da Justiça de Bolsonaro,
mas depois se desligou do cargo e acabou trabalhando para uma consultoria
jurídica que atendia empreiteiras condenadas na Lava Jato.
https://twiplomacy.com/blog/world-leaders-on-facebook-2020/ e em:
https://twiplomacy.com/ranking/the-world-leaders-with-the-most-
interactions-on-facebook/
Cf. também:
https://www.bcw-global.com/insights/global/world-leaders-grow-their-
audiences-on-facebook-during-coronavirus-pandemic
89
Vale lembrar que, no Facebook, os algoritmos consideram como “interação”
qualquer tipo de reação dos usuários a uma postagem, desde os comentários
ao simples “clic” em um dos seus ícones. O significado é, portanto, distinto
do que empregamos na metalinguagem semiótica, embora remeta também a
um tipo de relação entre os actantes estritamente “programada”. Em abril de
2022, Bolsonaro contabilizava 14 milhões de seguidores no Facebook.
10- Sobre a relação entre relato populista e conto popular, ver Ahmed
Kharbouch (2019).
https://www.facebook.com/jairmessias.bolsonaro/videos/355715561762368/.
16- https://www.facebook.com/jairmessias.bolsonaro/videos/2139736676134528/
90
19- Sobre a exploração do corpo, veja Sedda e Demuru, 2018, além do capítulo
“Bolsonaro e o populismo bufão”.
21- O livro Tormenta. O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos, da jornalista Thaís
Oyama (Companhia das Letras, São Paulo, 2020) apresenta Bolsonaro como
um político paranoico que desconfia inclusive dos aliados mais próximos
e que vive tão atormentado por “tramas palacianas”, reais ou imaginárias,
que prefere ter determinadas conversas ao ar livre para não ser grampeado.
Também relata que a mania de perseguição de Bolsonaro é tamanha que,
mesmo antes de ser presidente, no apartamento funcional em Brasília, bebia
água direto da torneira, por medo de que, na geladeira, ela pudesse ser
envenenada.
23- Em estudos sobre saúde mental no trabalho, autores como Sampaio e Garcia
Filho (2015) empregam a expressão “prontidão paranoide” para designar
uma síndrome associada ao estado de tensão permanente provocada por
relações de competitividade diante das quais não se pode nem errar nem
perder tempo. Empregamos aqui um termo derivado, mas mantendo sua
correlação com a tensão e o tempo.
91
O HOMEM COMUM
PAOLO DEMURU
INTRODUÇÃO
93
mídias sociais (Cashmore, 2016; Couldry e Hepp, 2017; Hearn e Shoenoff,
2016; Campanella, 2018). Há algum tempo, seja no Twitter ou no Facebook,
seja no Instagram ou no TikTok, a construção de subjetividades aparente-
mente simples e verdadeiras é uma das artimanhas mais adotadas a fim de
obter e corroborar fama e consenso. Diversas são as celebridades que, para
se tornarem ainda mais queridas aos olhos do grande público, optaram por
revelar suas vidas privadas e as rotinas do dia a dia: atores, músicos, esportistas,
empresários, chefes de cozinhas (Marshall; Redmond, 2016). Nesse sentido,
pode-se dizer que o campo da política se serve de um recurso amplamente
testado, atualizando-o e adaptando-o às suas necessidades específicas (Gaden
e Dumitrica, 2015).
Neste capítulo, nos propomos a explorar as estratégias discursivas
através das quais Jair Bolsonaro se apresenta, nos perfis de suas redes
sociais, como uma pessoa “comum”, “simples”, “autêntica” e “espontâ-
nea”, ecoando e ao mesmo tempo reinventando, com suas referências ao
imaginário da cultura e da sociabilidade brasileira, as diretrizes traçadas por
populistas digitais como aqueles acima mencionados1. Em particular, discu-
timos como esse efeito de sentido de autenticidade é construído a partir de
três eixos temático-figurativos: (i) o corpo; (ii) a vestimenta; (iii) a comida.
Bem entendido: não se trata dos únicos âmbitos através dos quais a figura
de Bolsonaro enquanto “homem comum” foi sendo fabricada. Há outros
(Oliveira, 2021). No entanto, eles jogam, no discurso do presidente, um
papel de primeiro plano. Defendemos a tese de que, através da divulgação
de imagens relativas à sua postura corporal, às roupas e à comida de seu
dia a dia, Bolsonaro emerge e se consolida como um verdadeiro “homem
do povo”, “gente como a gente”, para retomarmos uma expressão muito
utilizada para se referir ao estilo do ex-capitão do exército brasileiro. Ar-
gumentamos também que os valores de “normalidade”, “autenticidade”,
“simplicidade” e “espontaneidade” são corroborados não apenas pelo
conteúdo das imagens postadas por Bolsonaro, mas também pelo seu
arranjo plástico, isto é, pelo conjunto de enquadramentos, formas, cores,
texturas e outros recursos expressivos que aludem à estética amadora do
“usuário médio” das redes sociais (Gerbaudo, 2014).
QUESTÕES DE MÉTODO
94
a sociossemiótica de Eric Landowski (2014), cujo modelo dos regimes de
interação e sentido foi abordado no segundo capítulo. O corpus analisado
contempla fotografias e vídeos extraídos dos perfis oficiais de Facebook,
Instagram e YouTube de Bolsonaro entre 2018 e 2021.
Com base neste arcabouço, buscamos identificar, inicialmente, os pro-
cessos de homologação entre as isotopias plástico-figurativas e as isotopias
temáticas presentes nas imagens de Bolsonaro. Consideramos que, segundo
Greimas, uma isotopia temática é a disseminação, isto é, a recorrência, ao
longo de uma narrativa, de valores semânticos específicos (Greimas; Courtés,
2008). Tais valores são normalmente ancorados em figuras e/ou formantes
plásticos do plano da expressão, aos quais é dada a tarefa de manifestá-los.
As figuras são os elementos do mundo natural reconhecíveis e nomináveis,
cujo sentido é válido apenas no universo sociocultural onde estão inseridas:
o corpo masculino, o corpo feminino, a mão, o braço, o mar, a areia, a água,
uma camisa, uma sandália e assim por diante (Greimas, 1984). Os formantes
plásticos são os traços eidéticos (curvos vs reto, redondo vs quadrado) cromáticos
(vermelho vs azul, saturado vs não saturados), topológicos (alto vs baixo, englo-
bante vs englobado, esquerda vs direita) e matéricos (sólido vs líquido, duro
vs macio) que compõem a imagem. Tanto as primeiras quanto os segundos
estabelecem correlações entre os dois planos da linguagem – no caso aqui
em análise, a linguagem visual.
Paralelamente, procuramos compreender, a partir do modelo intera-
cional de Landowski, como através da produção de imagens autênticas,
Bolsonaro constrói, com fins manipulatórios, um simulacro de ajustamento
com os seus enunciatários, isto é, de uma interação sensível e estesicamente
contagiosa, na qual o envolvimento afetivo-emocional prevalece sobre qual-
quer leitura racional. Conforme aponta Landowski (2014, p. 89), estamos
diante de uma dinâmica recursiva, de caráter oblíquo, entre os regimes da
manipulação e do ajustamento: a mídia digital proporciona um verdadeiro
processo de “manipulação por contágio”, ou, como explicamos anteriormen-
te, de “manipulação por ajustamento”, aparentando aproximar os cidadãos
e os políticos através da construção discursiva de sua suposta autenticidade.
A ruptura das barreiras entre a vida pública e privada tem sido um pilar das
campanhas dos líderes políticos do século XXI (Moffitt, 2016; Bracciale e
95
Martella, 2017). Cada vez mais, eles têm adotado estratégias de comunicação
que procuram imitar o estilo de vida supostamente autêntico e genuíno dos
homens e das mulheres comuns que habitam as mídias sociais. Figuras como
Bolsonaro, Salvini, Boris Johnson, entre outros, falam, se mexem, se vestem,
tiram fotografias, escrevem posts no Instagram ou no Facebook como se fos-
sem “usuários médios” das redes (Gerbaudo, 2014), “demonstrando possuir
um gosto popular e uma certa similitude com as pessoas, além de aparentar
uma certa proximidade com elas” (Diehl, 2017, p. 369). Dessa forma, eles
passam a serem percebidos como sujeitos “anônimos”, pessoas “banais”,
no sentido literal do termo, isto é, sem grandes qualidades específicas (Bar-
tezzaghi, 2019; Sedda e Demuru, 2019; Demuru, 2021;).
Apesar de ter sido apontada por muitos estudos como uma das principais
estratégias comunicacionais do populismo digital, poucas são as contribuições
que investigam a fundo os processos de construção discursiva do efeito de
sentido de autenticidade (Fisher e Vaz, 2020). A abordagem sociossemiótica
pode ajudar nesta tarefa, detalhando os recursos utilizados para esse escopo.
Em Oliveira (2021), identificam-se, por exemplo, os principais recursos por
meio dos quais os políticos brasileiros têm tentado assumir a imagem de
“pessoas comuns”. Com base em um corpus de 45 perfis no Instagram e
99.434 mil imagens, Oliveira aponta e analisa nove estratégias de construção
de autenticidade. As primeiras oito remetem a escolhas figurativas (o que é
representado nas imagens e como é acionado para “normalizar” a figura do
político), enquanto a última diz respeito a questões de natureza plástica (às
cores, aos tons, à luz e às demais qualidades matéricas, topológicas, cromáticas
e eidéticas das imagens). São elas: (1) a postura corporal e os gestos (2) o
vestuário, a comida e o comer; (3) as tarefas ordinárias do dia a dia; (4) a casa;
(5) a família; (6) os animais domésticos; (8) o espaço do comércio popular; (9)
a plástica amadora das imagens. Conforme defende Oliveira (2021, p. 143):
96
primeira vez em 2018 conseguiram, uns mais, outros menos, se distanciar
da política tradicionalmente entendida, àquela, por assim dizer, “de terno
e gravata”, com seus códigos comportamentais rígidos e supostamente in-
frangíveis. Nas seções seguintes abordaremos a forma como Bolsonaro tem
mobilizado as estratégias do corpo, da comida, do vestuário e da plástica
amadora para dar forma e substância à sua imagem de “homem comum”.
Nossa intenção é revelar os mecanismos semióticos que regem os processos
de produção do efeito de sentido de autenticidade, contribuindo, assim, aos
estudos sobre comunicação política que abordam o fenômeno do populismo
digital a partir de outros ângulos.
CORPO
97
conversa com o Major Vitor Hugo, então líder da bancada do governo na
Câmera dos Deputados. Usa calças de moletom, camisa polo e sandálias,
que revela seus pés nus. Este último detalhe, em particular, revela um cor-
po imprevisto, espontâneo, de uma pessoa que vive os espaços da política
formal como se fossem aqueles de sua residência particular. Um corpo
espontâneo, que parece ser ainda mais autêntico, pois não abre mão de sua
“normalidade” diante da exigência de seguir as etiquetas esperadas por um
presidente da República em ocasiões formais.
98
de janeiro a 13 de fevereiro de 2019 (17 dias). No total, são 23 os retratos
de Bolsonaro ao longo de suas duas internações. Destes, 13 exibem de ma-
neira mais ou menos explicita partes do corpo do capitão reformado: torso,
pescoço, peito, tórax, barriga, pernas e pés.
O corpo de Bolsonaro mostra, aqui, sua fragilidade, finitude e desejo de
resistência. Nas fotos, Bolsonaro exibe suas feridas. Na imagem k, o presi-
dente é enquadrado verticalmente. Seu tórax desnudo é atravessado por uma
sonda nasogástrica, um cateter de oxigênio e eléctrodos que monitoram o
ritmo cardíaco. Bolsonaro é aqui enquadrado de baixo para cima. Parece estar
de pé. O cabelo despenteado, a boca semiaberta e as sobrancelhas franzidas
dão a entender que o corpo está sob esforço, em movimento, ou buscando se
mexer. No texto ao lado, Bolsonaro – ou quem por ele – escreve: “Começa-
mos mais uma quinta-feira combatendo o bom combate. Temos uma missão
e vamos cumpri-la (...). Na quarta, postada em 28 de setembro de 2018, ele
encontra-se diante do espelho do banheiro, com o torso inteiramente nu. O
ventre é atravessado por uma cicatriz vermelha, exposta como marca tangível
da facada e das cirurgias dela decorrentes (imagem n).
Em outra (imagem l), ele caminha ao longo do corredor do hospital
apoiando-se nos ombros de seu filho Carlos. Ambos olham para o chão,
enfatizando, assim, o esforço necessário para se deslocar com os maqui-
nários. Através dos elos estabelecidos entre as luzes, as expressões faciais,
as sondas, os curativos e os hematomas, Bolsonaro emerge como um ser
humano frágil, cujo corpo, como todos os corpos normais, é sujeito à dor
e finitude. Mais do que isso: os nus hospitalares de Bolsonaro mostram um
corpo em luta, que aparenta enfrentar, com certa coragem, as intempéries da
existência. Não apenas na fotografia acima analisada, cuja legenda menciona,
de modo explícito, o tema do “combate”, como também em outras que o
retratam enquanto se dirige a seus destinatários com sorrisos e outros gestos
pacificadores, Bolsonaro se apresenta como um sujeito “resistente.” Trata-se
de um ponto que ecoa um dos estereótipos que permeiam o discurso do
caráter nacional brasileiro: o da resistência, da vontade de seguir em frente
independentemente de tudo, conforme o célebre slogan “sou brasileiro e
não desisto nunca”, também utilizado por Lula em seu primeiro mandato.
No que concerne aos traços plásticos da silhueta do corpo de Bolsonaro,
percebe-se que, tanto nas imagens da série hospitalar, como naqueles que
retratam a sua vida doméstica, predominam as curvas, os arcos e as diagonais.
A postura é arredondada e os gestos suaves. Trata-se de uma combinação
peculiar de elementos do plano de expressão que corrobora não apenas a
aparente autenticidade do presidente, como também a construção de um
99
vínculo afetivo íntimo, imediato e duradouros com os usuários comuns das
redes sociais. É aqui que nos parece residir a eficácia da estratégia de “popu-
larização” do corpo de Bolsonaro: na manifestação e na consolidação, por
meio das linguagens gestual e visual, de um sentir compartilhado, na exposição
pública de um modo de presença corporal no qual seus seguidores podem
se reconhecer. Pode-se dizer que, entre Bolsonaro e seus followers, ganha
corpo (literalmente, neste caso) um processo de reconhecimento recíproco
de natureza preeminentemente sensível. Em termos sociossemióticos, a
“preensão” que a hexis de Bolsonaro proporciona é uma preensão “impressi-
va” (Geninasca, 1997). Seu efeito de sentido é, antes de tudo, “epidérmico”.
Um efeito de sentido de natureza estésico-perceptiva que reforça, por sua
vez, o espelhamento entre o ex-capitão e o homem comum brasileiro, como
parece demonstrar um dos comentários à imagem i: “presidente povão, há
quanto tempo não via isso, só orgulho!”. Estabelece-se, assim, via corpo, o
simulacro de um contato direto e uma equivalência plástico-figurativa entre o
corpo do enunciador Bolsonaro e a massa de seus enunciatários-seguidores.
É a eles, pois, que ele, exibindo sua ordinariedade, imperfeições e fragilidades
físicas, dá voz e visibilidade. E, vice-versa, é no corpo ordinário de Bolsonaro
que eles se reconhecem, conforme aponta o comentário acima. Trata-se de
uma interação comunicacional cuja lógica não depende de algum tipo de
intepretação cognitiva, mas sim de um sentir compartilhado, do contágio
estésico (Landowski, 2014) que tais imagens promovem.
COMIDA
100
churrasqueira para receber família e amigos. Prática culinária sedimentada
que se tornou epítome da brasilidade (Cascudo, 2008), o churrasco é, aliás,
uma constante figurativa nas redes de Bolsonaro, como demonstram mui-
tas das imagens postadas em seus perfis de Facebook e Instagram. Ao lado
deste, há outras comidas simbólicas através das quais o presidente manifesta
o seu pertencimento à cultura popular brasileira. Entre elas, vale destacar: o
“Leite Moça”, da marca Nestlé, o “pão francês”, o “café coado”, o “queijo
minas”, “o cachorro-quente”, os “espetinhos de carne”, o “milho verde”,
comidas de rua que Bolsonaro fez questão de comer durante os períodos
de isolamento social determinados por muitos governos estaduais ao longo
da pandemia de covid-19 (Figura 2).
101
copo qualquer. Trata-se de célebre “copo americano”, o mais comum copo
brasileiro (Vila Nova, 2020). Junto aos talheres de plástico e metal, também
simples e baratos, estas figuras substanciam o imaginário da cultura popular
brasileira, ou melhor, do autêntico homem-médio brasileiro. Um sentido de
mundanidade que é corroborado, ao mesmo tempo, pela imagem do celular
plugado na tomada, apoiado na mesa em meio às migalhas, que reforça,
inclusive, a ligação de Bolsonaro com o universo das redes sociais.
102
um contato sensível direto entre Bolsonaro e o “povo”, o qual, neste caso,
não passa apenas pela comida, mas também pela proximidade física entre
o presidente e as pessoas que estão juntas na barraca do cachorro-quente,
com as quais Bolsonaro fez questão de comer de modo bem próximo,
apesar das restrições impostas pela pandemia.
Por fim, vale mencionar o episódio do vídeo do “frango com farofa”,
que viralizou nas redes sociais em janeiro de 2022. Gravado por Carlos
Bolsonaro, filho do presidente, e publicado pelo ministro das comunicações
Fábio Faria, o vídeo retrata Bolsonaro sentado em um banquinho de plás-
tico, em uma mesa ao ar livre, comendo um frango com farofa direito de
uma assadeira de metal. Bolsonaro come com as mãos. De vez em quando,
oferece pedaços de comida aos pombos que estão por perto. Suas calças
estão sujas. Com a finalidade, assim como aquelas previamente analisadas,
de sustentar a aparente aura de “presidente povão” de Bolsonaro, a peça
se revelou, no entanto, um tiro pela culatra. Muitos criticaram sua suposta
artificialidade, desmascarada pelas imagens de Carlos Bolsonaro dirigindo
a cena. Outros chamaram o presidente de “porco”2. Do ponto de vista
semiótico, isso aponta que a estratégia pode ter chegado a um certo esgo-
tamento, não convencendo mais como antes.
ROUPAS
103
Estamos diante de um “corpo acidental”, consciente e explicitamente “fora
de lugar”, através dos quais vislumbra-se a persona “bufonesca” de Bolso-
naro, abordada no primeiro capítulo.
Dito isso, há outros temas e valores que o figurino de Bolsonaro con-
cretiza, os quais podem ser explorados a partir de um traje emblemático
frequentemente usado pelo presidente: as camisas de futebol.
Ora, Bolsonaro costuma vestir não apenas a camisa do Palmeiras, como
também aquela da seleção e de outros clubes brasileiros. Nenhum presidente
da República havia exibido, com essa frequência, um rol tão amplo e diverso
de camisas de futebol. Em dezembro de 2020, Bolsonaro havia vestido, em
ocasiões oficiais e não oficiais, nas ruas e nas redes sociais, os uniformes de
81 equipes de futebol3.
Uma prática como essa não costuma ser muito bem-vista, em particular
pelos torcedores dos times rivais do Palmeiras, time para o qual Bolsonaro
afirma torcer. Quando se fez fotografar com a camisa do Corinthians Paulista,
adversário histórico do antigo Palestra Itália, muitos palmeirenses torceram
o nariz. Apesar disso, Bolsonaro continuou a postar selfies e outros retratos
nos quais ostenta camisas de clubes dos cantos mais recônditos do Brasil. Por
quê? O que Bolsonaro pretende comunicar com esse desfile de uniformes?
E o que isso tem a ver com seu discurso político, ou melhor, antipolítico?
Antes de mais nada, o uso dessas roupas reforça a suposta “simpli-
cidade” e “autenticidade” de Bolsonaro. Ora, sabe-se que vestir a camisa
do time pelo qual se torce é um hábito corriqueiro no Brasil, não apenas
quando se assiste aos jogos no estádio ou na televisão, mas também em
muitos outros momentos da vida cotidiana: na rua, no parque, no bar,
no supermercado. Ou seja, estamos diante de uma prática “comum”,
“ordinária”, que reafirma o pertencimento a uma coletividade através da
“encarnação” de um símbolo socialmente compartilhado (Toledo, 2019).
Renovando e conferindo prestígio a um gesto cumprido cotidianamente por
milhões de brasileiros comuns, Bolsonaro se coloca no mesmo nível destes
últimos. Mais do que isso: emerge, entre eles, um corpo a corpo estésico
que cria contágio e adesão. Bolsonaro é o povo e o povo é Bolsonaro.
Em certo sentido, pode-se dizer que Bolsonaro é “todos” e “ninguém”.
É um anônimo, na acepção literal do termo, alguém “sem nome”, que
não revela particularidade que o diferenciam das pessoas ordinárias. É um
líder “banal”, um homem “qualquer” que, como todos homem qualquer,
senta-se em frente à televisão para assistir seu time jogar enquanto xinga
os torcedores adversários no Facebook ou no Instagram.
104
Figura 4 – Os uniformes futebolísticos de Bolsonaro.
Fonte: https://www.uol.com.br/esporte/reportagens-especiais/bolsonaro-ja-exibiu-81-camisas-de-
-clubes-de-futebol-especialistas-apontam-uso-politico-/#page10
A ESTÉTICA AMADORA
105
uso inadequado da luz natural dos ambientes, criando obscuridade e iluminação
em excesso, em alguns casos esmaecendo os contornos e quase dissolvendo
as silhuetas, eliminando a profundidade que distingue figura e fundo. Em
outros casos, a saturação é tanta que algumas figuras roubam a atenção, além
de salientar algumas imperfeições. O foco de captação da imagem, funcio-
nalidade ajustável e disponibilizada por grande parte dos aparelhos, parece
não ser utilizado ou mesmo desativado enquanto função automática, já que
reiteradamente o desfoque surge enquanto traço plástico, criando um efeito
granulado e pixelizado.
106
figurativas, tais arranjos plásticos corrobora, a proximidade de Bolsonaro
não apenas com o homem comum brasileiro, mas com o “usuário-médio”
das redes sociais nacionais: tanto o primeiro quanto o segundo são pessoas
ordinárias, que não apenas comem, se mexem e se vestem como pessoas
simples e autênticas, mas que também postam em imagens esteticamente
despretensiosas suas experiências cotidianas (Gerbaudo, 2014).
CONCLUSÕES
107
ainda, para detalhar os procedimentos que fundam essa estratégia. A este
propósito, enquanto disciplina “ancilar” das ciências humanas e sociais, a
semiótica de inspiração greimasiana pode fornecer indicações interessan-
tes. Com efeito, a partir da semiótica discursiva, é possível mostrar como
determinados valores – como, neste caso, aqueles de autenticidade, simpli-
cidade, normalidade – emergem e se consolidam, isto é, como por meio dos
mecanismos de homologação entre expressões e conteúdos, arquiteturas
narrativas e dinâmicas interacionais, esses valores são capturados por seus
destinatários. É sob esta ótica que devem ser lidas as reflexões aqui desen-
volvidas. Longe de querer exaurir o assunto ou indicar caminhos prontos,
procuramos identificar algumas possíveis diretrizes de enquadramento e
análise do problema, no auspício de um futuro diálogo interdisciplinar no
âmbito dos estudos comunicacionais.
108
REFERÊNCIAS
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__________. Interações arriscadas. Trad. Luiza Helena O. da Silva. São Paulo: Estação
das Letras e Cores/CPS, 2014.
110
__________. Crítica semiótica do populismo. Galáxia, n. 44, mai.-ago. 2020.
MOFFITT, Benjamin. The Global Rise of Populism: Performance, Political Style, and
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MUDDE, Cas. The far right today. Cambridge: Polity Press, 2019.
OLIVEIRA, Ana Claudia (org.). Semiótica Plástica. São Paulo: Hacker, 2004.
NOTAS
1- Para uma panorâmica teórico-analítica do populismo digital remetemos ao
capítulo 1.
2- https://www1.folha.uol.com.br/blogs/hashtag/2022/01/bolsonaro-porco-
redes-repercutem-video-de-presidente-comendo-frango-com-farofa.shtml
3- https://www.uol.com.br/esporte/reportagens-especiais/bolsonaro-ja-
exibiu-81-camisas-de-clubes-de-futebol-especialistas-apontam-uso-politico-/
111
CAOS, CONSPIRAÇÃO E MESSIANISMO
PAOLO DEMURU
113
Tema recorrente nos circuitos da alt-right norte-americana e da extrema
direita brasileira, o globalismo é descrito como um projeto que pretende
“destruir a nação para favorecer os interesses políticos de uma elite transna-
cional ou pós-nacional, para acorrentar o pensamento humano, para privar
o homem da liberdade e do senso de propósito”, segundo a definição de
Filipe Martins, chefe da assessoria internacional de Bolsonaro1.
A Nova Ordem Mundial, citada por Bolsonaro em um texto divulgado
no WhatsApp nos primeiros dias da invasão da Ucrânia por parte de Putin2,
segue a mesma linha de raciocínio: segundo ela, existiria uma rede de elites
políticas e econômicas que planeja um governo mundial totalitário.
Há também o marxismo cultural, de acordo com o qual intelectuais de
esquerda estariam subvertendo os valores tradicionais do ocidente cristão
para promover o liberalismo, o multiculturalismo, os maus costumes e a
“ideologia de gênero”.
Não podemos esquecer, por fim, das teorias antivacinas, em particular
aquelas sobre os imunizantes desenvolvidos para fazer frente à covid-19;
daquelas sobre o “Vírus Chinês” e a assim chamada “Plandemia” (Plandemic),
que defendem que a pandemia do novo coronavírus eclodida em Wuhan
no fim de 2019 teria sido planejada pelo governo chinês; daquelas sobre as
fraudes eleitorais, tão caras a Trump e Bolsonaro.
De um ponto de vista semiótico, cabe ressaltar que as teorias da cons-
piração, mesmo abordando questões diversas, fundam-se nos mesmos es-
quemas narrativos, papéis temáticos e universos figurativos (Butter e Knight,
2020; Leone, 2016)
O eixo narrativo de base é dado pela oposição entre o povo e as elites.
As elites agem constantemente por trás das cenas da política tradicional. Há
sempre um plano secreto que está sendo implementado com o objetivo de
dominar o povo, seja aquele das elites de pedófilos adoradores de Satanás
ou o daqueles que pretendem substituir os ocidentais brancos com pessoas
de outras cores e culturas.
Esta aura de mistério é um outro traço distintivo das teorias da conspi-
ração (Eco, 1990). No entanto, para que o discurso conspiratório continue
vivo, o mistério não deve ser desvelado de maneira completa. Com base no
conceito de “semiose hermética” desenvolvido por Eco, poderíamos dizer
que as teorias da conspiração promovem discursos enigmáticos cujo sucesso
depende da sobrevivência dos mesmos segredos que elas dizem revelar. É
esta a razão pela qual, ao mesmo tempo que o mistério diz ser desvelado, o
segredo é sempre deslocado alhures.
114
Diante deste cenário, os líderes populistas emergem frequentemente
como verdadeiros salvadores da pátria, mostrando seu desejo, força e poten-
cialidade para combater as elites. Para tanto, eles costumam se apresentar, ao
mesmo tempo, como homens ordinários3 e extraordinários (Moffit, 2016).
Em alguns casos, como naqueles de Donald Trump e Bolsonaro, esta ex-
traordinariedade adquire contornos messiânicos: a batalha do líder contra o
establishment se torna uma espécie de cruzada político-religiosa.
A indeterminação semântica e a polissemia são também características
discursivas cruciais tanto para o discurso populista quanto para o discur-
so conspiratório (Sedda e Demuru, 2018). Como Eco defende (1990), as
teorias da conspiração dão lugar a uma “intepretação paranoica”, segundo
a qual qualquer signo aparentemente insignificante pode revelar os planos
secretos das elites. De modo similar ao que acontece no populismo clássico
e contemporâneo, os signos da narrativa conspiratória são sempre “signi-
ficantes vazio” (Laclau, 2005), que podem ser preenchidos com conteúdos
diversos conforme as necessidades do momento. Ademais, a intepretação
paranoica está sempre aberta para novas leituras do fenômeno que pretende
analisar. Não apenas os “poderes ocultos” que governam o mundo podem
permanecer vagos, mas podem também abarcar, vez por vez, atores diversos
(George Soros, Obama, os Clintons, a Rússia, a China, ou, em alguns casos,
todos eles juntos).
Paralelamente, populismo e teorias da conspiração abusam de meca-
nismos de manipulação por contágio, privilegiando a dimensão estésico-
-passional do processo de comunicação (Landowski, 2020; Sedda e Demuru,
2018), na qual o corpo, os humores e a busca por um vínculo afetivo entre
indivíduos e grupos de indivíduos estão em primeiro plano4.
Neste capítulo, exploramos o vínculo entre populismo e teorias da
conspiração no discurso de Bolsonaro e do bolsonarismo. Em particular,
procuramos mostrar como o messianismo de Bolsonaro é caracterizado pelo
uso constante de três estratégias discursivas: a escatologia, isto é, o apelo a
visões apocalípticas sobre fim dos tempos, o misticismo e a insistência na
dimensão estésico-passional da comunicação. Como veremos, o messianismo
bolsonarista guarda relações com o discurso evangélico de denominações
como a Igreja Universal do Reino de Deus (doravante IURD) e a Assem-
bleia de Deus Vitória em Cristo (doravante ADVEC), bem como de seus
respectivos líderes: Edir Macedo e Silas Malafaia.
115
DISCURSO CONSPIRATÓRIO E MESSIANISMO
Digamos que é um novo tempo. Eu não faço política, sou um pastor. Mas
acredito que temos que influenciar a política. A igreja não é apenas sobre rezar
pela manhã, tarde e noite. A igreja influencia a sociedade de modo positivo,
não apenas negativo. Na história da bíblia, havia políticos que foram defini-
dos por Deus. Um exemplo é um imperador da Pérsia, Ciro. Antes de seu
nascimento, Deus falou através de Isaías: “Eu escolho meu servo, Ciro”. E o
sr. Jair Bolsonaro é o Ciro brasileiro. Eu não moro aqui, mas falo por Deus.
Você aceite ou não, seja você de esquerda ou direita, Sr. Jair Bolsonaro é o Ciro
Brasileiro. Deus o escolheu para um novo tempo, uma nova época no Brasil.
116
nos últimos 30 anos8, assim como a sua participação no debate político,
especialmente nas mídias sociais (Cunha, 2019). Em segundo lugar, é pre-
ciso considerar o fim da Era Lula e do PT, culminada no impeachment da
presidenta eleita Dilma Rousseff, em agosto de 2016, e na prisão do próprio
Lula, em abril de 2018, no âmbito da assim chamada operação Lava Jato.
Tais fatos promoveram o crescimento de sentimentos antipolíticos, a ponto
que todo o sistema político brasileiro passou a ser visto como corrupto e
moralmente degradado. Além disso, tanto a derrota contra a Alemanha na
Copa do Mundo de 2014 (7-1) quanto as narrativas da mídia sobre a crise
econômica, contribuíram para a falta de credibilidade da política tradicional,
da administração pública e da grande mídia, assim como para a perda de
confiança na ideia de um Brasil “país do futuro”, propagada internacional-
mente durante os mandatos de Lula (Demuru, 2018).
O populismo messiânico de Bolsonaro surgiu nesse cenário. Seu relato
de salvação, repleto de referências ao universo evangélico cristão, preencheu
o vazio narrativo aberto pela crise acima mencionada. Aos poucos, Bolsonaro
abraçou publicamente o evangelicalismo. Seu batismo foi realizado no Rio
Jordão no mesmo dia em que o Senado brasileiro votava pela abertura do
processo de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff (12 de maio
de 2016). Da mesma forma, sua candidatura foi apoiada por Edir Macedo,
líder da IURD e dono do Grupo Record – empresa que inclui a TV Record,
a terceira maior audiência das redes de televisão do Brasil – e Silas Malafaia, o
líder espiritual da ADVEC, entre outros. A primeira coisa que fez enquanto
presidente eleito foi, não por acaso, uma prece coletiva, guiada pelo pastor
evangélico e parlamentar Magno Malta. Como disse Malta:
117
O globalismo é um tema recorrente no bolsonarismo. Além do próprio
Bolsonaro, alguns de seus principais colaboradores, como Felipe Martins,
chefe da assessoria internacional do governo, Olavo de Carvalho, seu
principal guia intelectual, e Ernesto de Araújo, ex-Ministro do Exterior,
descreveram o globalismo como uma “espécie de nova religião, com esses
pseudovalores, esses conceitos legítimos, mas que são extrapolados e trans-
formados em ideologia – como os direitos humanos, como a tolerância,
como a proteção ambiental, por exemplo” (Araújo, 2019: 12). Diante da
ascensão dessa ideologia, torna-se necessário “reintroduzir a Deus nessa
cidadela da sociedade liberal, em substituição a essa religião ateia do poli-
ticamente correto” (Araújo, 2019: 12).
Uma consequência do globalismo seria o fim do legado cristão-ocidental
do Brasil e do mundo. Trata-se de um ponto que aparece com frequência
nas falas de Bolsonaro. Em seu discurso nas Nações Unidas em setembro
de 2020, o presidente do Brasil defendeu a luta contra a ascensão daquilo
que denominou como “Cristofobia”. Um mês depois, ele postava em sua
conta no Instagram a foto de uma igreja em chamas em Santiago do Chile,
invadida durante os protestos que precederam o Referendo Constitucional de
2020. Assim Bolsonaro escreveu em seu post: “No meu discurso nas Nações
Unidas, eu denuncio a existência de uma grande perseguição dos cristãos ao
redor do mundo: a Cristofobia. Hoje, igrejas foram queimadas por grupos
esquerdistas no Chile”. A própria imagem é um exemplo significativo dos
perigos anunciados por Bolsonaro (Figura 1):
118
A mesma imagem foi compartilhada em grupos de WhatsApp bolso-
naristas ao longo da mesma semana, seguida pela mensagem e pelas hashtags:
#CristaoNaoVotaEmEsquerdista, #CristaoNaoVotaNaEsquerda, vamos
espalhar essa ideia”. Muitas outras, com a mesma temática e tom similar,
foram postadas nos dias sucessivos, o que evidencia a relação íntima entre os
discursos de Bolsonaro e aquele de suas redes de apoiadores no WhatsApp.
Seja de acordo com a narrativa presidencial, seja com aquela da mídia
social, Bolsonaro estaria lutando contra essas conspirações esquerdistas-anti-
cristãs assim como um verdadeiro messias faria. Novamente, a observação que
Araújo fez a respeito do pronunciamento de Bolsonaro no Fórum Econômico
Mundial em Davos de 2019, já mencionada no primeiro capítulo, é reveladora:
“no discurso de abertura, o presidente Bolsonaro, no final, falou de Deus. Eu
não sei, não fui pesquisar, mas acredito que provavelmente foi a primeira vez
que um chefe de Estado fala, usa a palavra Deus, acreditando nEle, sobretudo
no Fórum de Davos (...) Então é isso: Deus em Davos” (Araújo, 2019, p. 14).
O discurso messiânico-populista de Bolsonaro refere-se, portanto, aos
mesmos temas conspiratórios usados pelos movimentos e líderes populis-
tas nos Estados Unidos e na Europa. Suas alegações sobre Cristofobia e a
suposta perseguição aos cristãos ao redor do mundo ecoam não só QAnon,
mas também a teoria da conspiração da Grande Substituição, a qual Salvini
e Orbán frequentemente aludem. Especialmente esta tem alimentado a ideia
de uma nova perseguição cristão global, abraçando o cristianismo e usando
a religião como uma ferramenta política-discursiva poderosa.
O Bolsonarismo, contudo, tem especificidades particulares que de-
pendem da maneira através da qual as narrativas populistas-conspiratórias
globais são traduzidas estrategicamente dentro do contexto cultural, social
e político brasileiro, bem como do papel das mídias sociais nesse processo
de produção de sentido.
Nesse aspecto, pode-se dizer que o messianismo de Bolsonaro parece
estar relacionado ao evangelicalismo de modo ainda mais explícito do que
aquele de Trump está relacionado ao evangelicalismo dos Estados Unidos.
Mais especificamente, o Bolsonarismo abusa com frequência de três traços
distintivos do discurso evangélico: a escatologia, o misticismo e a carga
estésico-passional. A prece de Magno Malta, bem como a Figura 1 acima
reportada, são alguns exemplos emblemáticos desse recurso. Além disso,
o próprio Bolsonaro parece promover sua imagem de messias político-
-religioso de modo mais frequente e explícito que outros líderes populistas
atuais, a começar por Trump.
119
Procurarei mostrar, a seguir, como esse discurso é construído tanto nas
mídias sociais do presidente do Brasil, como também nos grupos públicos
bolsonaristas de WhatsApp. Antes de mais nada, abordarei a forma como
Bolsonaro constrói um discurso escatológico, isto é, fundando em visões
apocalípticas sobre o fim do Brasil. Sucessivamente, concentro-me no misti-
cismo que permeia a representação da figura de Bolsonaro. Por fim, investigo
a mobilização da dimensão estésica e passional da comunicação do presidente.
CAOS E APOCALIPSE
120
Seguindo na mesma toada, em 16 de abril de 2020, Bolsonaro alegou
ter em mãos um dossiê organizado pelo serviço secreto que provaria a exis-
tência de um plano organizado pelo Supremo Tribunal Federal, por Rodrigo
Maia, presidente da Câmara dos Deputados, e por João Doria, governador
do Estado de São Paulo, com o objetivo de removê-lo da presidência. Em
19 de abril de 2019, ele publicou um vídeo no qual o presidente do Partido
Trabalhista Brasileiro, Roberto Jefferson, seu aliado, revelava alguns detalhes
deste “plano”. Um projeto cuja realização levaria rapidamente, de acordo
com ambos, “ao desastre”, “à ruína” e “à depressão”. Grupos bolsonaristas
no WhatsApp são repletos de narrativas similares. Especialmente durante
a crise engendrada pela covid-19, as narrativas apocalípticas sobre o fim do
Brasil e a ascensão das elites globalistas tornaram-se ainda mais frequentes.
De modo análogo ao áudio anônimo mencionado na seção anterior, boa
parte das mensagens alegava que a pandemia era parte de um plano desen-
volvido pela China com o apoio dos oponentes políticos de Bolsonaro e que
essa implementação levaria rapidamente “ao caos”, “à violência” e “à crise
econômica”. De acordo com eles, a China iria comprar todas as empresas
e indústrias brasileiras, supermercados iriam ficar sem comida e bebida, e
bandidos saqueariam as cidades12.
121
A segunda diz respeito ao constante estado de alerta e urgência no qual
Bolsonaro, cumprindo seu papel de Destinador “Messias” do povo brasileiro,
se coloca e coloca os seus seguidores. Como tratado por Fechine no segundo
capítulo deste livro, o estilo do discurso bolsonarista é um estilo paranoico,
que se manifesta “como uma ansiedade e uma tensão com um estar-por-vir:
nada aconteceu ou está acontecendo, mas algo ameaçador pode estar sendo
gerado neste exato momento”. Diante desse risco, Bolsonaro está sempre
pronto e atento, como se vivesse (e fizesse viver) no âmbito de um persis-
tente estado de incitação e excitação, isto é, em um universo de ansiedades
e tensões parecidas com a “espera do inesperado” à qual se refere Greimas
em Da Imperfeição (1987): trata-se do estado de ânimo do sujeito que almeja
o advento de um acidente estésico suscetível de ressignificar, ainda que por
alguns instantes, a sua usurada cotidianidade.
Além disso, do quadro acima emerge uma outra caraterística, que diz
respeito ao elo indissolúvel entre previsibilidade e imprevisibilidade: o de-
sastre anunciado por Bolsonaro é sempre, ao mesmo tempo, previsível e
imprevisível, certo e incerto.
Em primeiro lugar, a catástrofe bolsonarista é imprevisível por três
razões: não se sabe exatamente (i) quando ela se realizará; (ii) o que ela causará;
(iii) como acontecerá. Sabe-se apenas que: (a) está sempre muito próxima; (b)
será algo de muito grave e disfórico; (c) o impacto será forte, mas de uma força a
priori não comensurável. É o caso da explosão nuclear prospectada pelo autor
anônimo da mensagem de WhatsApp antes discutida, mas também de outras
numerosas afirmações feitas via redes sociais. Escreve, por exemplo, Bol-
sonaro no dia 27 de março de 2019, comentando as dúvidas do Congresso
relativas à aprovação das reformas do sistema previdenciário: “negar que hoje
temos um problema que pode gerar uma catástrofe econômica que afetará
a todos, principalmente os mais pobres, seria total irresponsabilidade com
a população brasileira”13. Ou, ainda, em 25 de março de 2020: “se a política
de isolamento continuar, teremos o vírus e o caos juntos”14 (destaque nosso).
Esta leitura é, todavia, parcial. Paralelamente, este futuro avassalador
é inteiramente previsível, já escrito, parte, ou escopo último, de um plano
segredo e secular, seja este do Foro de São Paulo ou de outros sujeitos menos
conhecidos e definidos. O inimigo autor da suposta conspiração é escolhi-
do com argúcia e precisão conforme as exigências do momento. Durante
as eleições de 2018, por exemplo, os antissujeitos do Brasil eram Lula e o
PT, fundadores do Foro de São Paulo e principais expoentes do socialismo
internacional. Após o voto, ao longo de 2019 e 2020, o leque de opositores
122
torna-se mais amplo, passando a incluir, entre outros, o Supremo Tribunal
Federal, o governador do Estado de São Paulo, João Doria, o do Rio de
Janeiro, Wilson Witzel, e o filósofo Slavoj Zizek, responsável, de acordo
com o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, da difusão do
assim chamado “comunavírus”, bem mais concreto e perigoso de seu quase
homônimo coronavírus15. Em alguns momentos da narrativa bolsonarista,
tais inimigos agem de maneira conjunta, ao mesmo tempo e de comum
acordo. Cabe relembrar, neste sentido, um vídeo emblemático publicado por
Bolsonaro no Twitter em outubro de 2019, no qual um leão (Bolsonaro) é
circundado por uma manada de hienas prontas para atacá-lo: o PT, o PSDB,
o PCDB, o Supremo Tribunal Federal, a Folha de São Paulo, a Rede Globo
e até o PSL, seu próprio partido, entre muitos outros16.
Cumpre-se, aqui, um quiasmo alético-epistêmico, que nos remete
imediatamente ao tema da imprevisibilidade. Segundo as leis que regem o
discurso bolsonarista não é apenas o futuro que pode ser imprevisível, mas
também o passado. Se, pois, por um lado, a catástrofe é continuamente
anunciada como um evento iminente, por outro lado, o fato de que o
responsável pela ruína futura pode ser ora Fulano, Sicrano ou Beltrano
projeta e envolve o passado em uma nebulosa de possibilidade todas, a
priori, igualmente prováveis.
Alea iacta est. E pouco importa que se jogue o dado para frente ou para
trás, pois o passado é tão imprevisível quanto o futuro. Como dizia Eco em
relação à semiose hermética, em um universo discursivo em que vale tudo e
não existe uma ordem temporal estabelecida, ao princípio racional do post
hoc ergo propter hoc substitui-se aquele – oportunista – do post hoc ergo ante hoc
(Eco, 1990, p. 45).
123
cruciais entre o evangelicalismo brasileiro e o bolsonarismo, focando, em
particular, em como o segundo contribui para formar o discurso conspi-
ratório do primeiro, e vice-versa.
Como estudos da religião apontaram, a escatologia do evangelicalismo
brasileiro, assim como aquela do norte-americano, é pós-milenarista (Ro-
drigues, 2002). De acordo com esta visão, a segunda vinda de Jesus Cristo
deverá se concretizar após o “Milênio”, depois de um período de “tempos
difíceis”, “guerras, terremotos e pragas”, “perseguição e ódio contra as
pessoas de Deus”, “negação da fé”, e do advento de “falsos profetas”, para
citar as palavras exatas usadas por Silas Malafaia em um de seus sermões17.
Em seu blog, Edir Macedo usa expressões similares para descrever os
“sinais do fim do mundo”: “barulhos”, “guerra”, “pragas”, “terremotos”,
“ódio à Deus” e assim por diante18. Junto a isso, é interessante observar a
dimensão visual de tal discurso. Para ilustrar sua narrativa, o bispo da Igreja
Universal do Reino de Deus usa uma foto que nos remete àquela de Bolso-
naro sobre a Cristofobia, em que a figura do fogo e das chamas ocupa um
papel de primeiro plano.
124
Como consequência desta articulação temático-figurativa, Bolsonaro
emerge mais uma vez como um messias salvador da nação. Sua luta contra
as supostas “forças de destruição” anticristãs consolida-se, tanto no plano
do discurso visual quanto naquele do discurso verbal, como uma verdadeira
cruzada político-religiosa. A imagem à esquerda na Figura 3, que circulou
no WhatsApp no início de 2019, é um caso emblemático dessa estratégia. O
slogan de Bolsonaro “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” aparece
abaixo da imagem de um cavaleiro cristão carregando a bandeira nacional,
enquanto o texto acima – “Vamos salvar o Brasil” – sugere que o país deve
ser salvo dos inimigos anticristãos, portadores de ruínas e caos. O próprio
Bolsonaro adotou e corroborou essa imagem ao fazer, em maio de 2020,
uma aparição em cima de um cavalo em Brasília, cavalgando em direção a
seus apoiadores (imagem à direita da Figura 3).
125
movimento messiânico português segundo o qual o rei homônimo voltaria
para salvar Portugal. O Sebastianismo também exerceu um papel crucial no
desenvolvimento dos messianismos religiosos e políticos brasileiros (Chacon,
1990). Como Bonfim (2020, p. 12) argumenta, de modo semelhante à Dom
Sebastião, que lutou contra os Mouros no Marrocos para promover o futuro
reino de Deus na Terra, a figura cavalheiresca de Bolsonaro surge como uma
espécie de “rei do fim do mundo”, um guia militar-religioso-místico que
luta contra os poderes ocultos do anticristianismo que pretende dominar o
Brasil e o mundo.
Ambas as temáticas populistas do conflito entre o povo, as elites e
o salvador da pátria são, portanto, enquadradas dentro de uma narrativa
religiosa-messiânica, na qual os temas e as figuras globais da perseguição
globalista anticristã são mesclados com o imaginário político e religioso local,
do Sebastianismo ao messianismo evangélico.
CONFUSÕES MÍSTICAS
126
também manifestado pelo uso frequente do versículo 8:32 do Evangelho de
João. No bolsonarismo, a mistura entre hermetismo e vagueza ganha tons
místicos. Como um profeta evangélico, Bolsonaro fala como se mantivesse
um contato direto com Deus, de quem ele parece ter obtido a “Verdade”. Para
usarmos as palavras de Greimas, seu discurso se apoia em uma “dimensão
anagógica”, de acordo com a qual, para que um dado texto seja aceito en-
quanto “verdadeiro”, deve antes ser percebido como um “segredo” (Greimas,
2014, p. 108). Ou seja: estamos aqui diante de um estilo de comunicação
hermético-hermenêutico, similar ao discurso parabólico cristão, no qual o
destinador, falando em primeira pessoa, se coloca com um “Eu” onisciente,
“Fiador da Verdade” (Greimas, 2014, p. 123).
Além de serem marcos das narrativas populistas e conspiratórias, o her-
metismo e a vagueza são traços distintivos do discurso místico (Leone, 2014;
Ponzo e Galofaro, 2019). Tanto a linguagem, quanto a experiência mística,
podem ser lidas de muitas maneiras distintas. Como Eco (1984) demonstra
em seu ensaio sobre “o modo simbólico”, as palavras e visões do sujeito-
-místico estão abertas à uma ampla gama de conteúdos e interpretações, que
serão então filtrados de acordo com as relações de poder em jogo em um
determinado contexto cultural.
O misticismo conspiratório de Bolsonaro funciona de modo similar.
O que está acontecendo atrás da cena da política nacional e internacional
pode ser lido como uma consequência de causas múltiplas e diversas. A
“Verdade” a que ele se refere pode ser qualquer coisa. De tempos em tem-
pos, o inimigo pode vir a ser Lula, o Supremo Tribunal Federal, a China e
as elites globalistas anticristãs, ou todos eles juntos. O que é “verdadeiro”
e o que é “falso” é decidido de acordo com as necessidades do momento, e
sempre com o selo de Deus. Ao mesmo tempo, o que é verdade hoje pode
vir a ser falso amanhã. Não é casual, nesse sentido, que um outro aspecto
central do discurso de Bolsonaro é o uso sistemático da autocontradição23,
assim como não parece ser fortuito que ele se refira frequentemente à
“Verdade” usando o futuro simples: “então conhecereis a Verdade, e a
Verdade vos libertará”. De modo análogo ao que acontece no discurso
evangélico, a experiência da “Verdade” promovida por Bolsonaro é uma
promessa eterna de liberdade e prosperidade que nunca se deve realizar
por completo, pois ela deve manter vivo o envolvimento na batalha contra
os poderes ocultos que regem o mundo.
Seguindo os raciocínios de Eco e Greimas, pode-se dizer, portanto, que
o discurso místico de Bolsonaro coloca a verdade em um futuro inalcançá-
127
vel, do qual se deve constantemente se aproximar, mas nunca chegar. No
entanto, ao passo que a oculta, deslocando-a no tempo, o mesmo discurso
diz revelar “A Verdade”. Bem entendido, esta é revelada de forma obscura,
construindo a imagem de um leitor modelo competente, capaz de ler nas
entrelinhas, membro de um pequeno grupo de iniciados que “sabem”. Mas,
de todo modo, alega revelar “A Verdade”. Trata-se, conforme aponta Eco,
de uma das estratégias de manipulação mais eficazes da semiose hermética:
o segredo deve ser ao mesmo tempo velado e desvelado: “toda interrogação
dos símbolos e enigmas nunca conta a verdade definitiva, apenas move o
segredo para outro lugar” (Eco, 1990. p. 47). Um pouco como acontece nos
textos alquímicos, como aqueles de Antoine-Joseph Pernety, nos quais se
passa de signo em signo, de símbolo em símbolo, sem nunca poder identificar
com precisão os percursos e os processos que levariam à “verdade”, sem
que, “A verdade” possa ser, uma vez por todas, alcançada (Eco, 1990, p. 84).
Resumindo, no discurso de Bolsonaro, a verdade é uma tensão semiótica
rumo a um futuro inatingível, assim como o futuro é uma tensão semiótica
rumo a uma verdade inacessível. À verdade última nunca se pode chegar: se
pode apenas roçar, perseguir por via assintótica. Voltemos ao versículo de
João 8:32: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, escrito no
futuro do presente do indicativo. Mas qual seria a verdade que “nos libertará”?
Bolsonaro não o diz, ou o diz de maneira obscura e parcial: “poderosos se
levantaram contra mim. É uma verdade. Eu estou lutando contra um SIS-
TEMA, contra o ESTABLISHMENT”, afirma por exemplo em 24 de abril
de 2020, em seu discurso à nação sobre a pandemia24.
É aqui que residiu, até agora, a eficácia de seu discurso: no fato de se
colocar como um messias fiador de uma “Verdade” a ser ininterruptamente
(e nunca inteiramente) desvelada. Uma verdade dentro qual convivem temas,
figuras, objetos, sujeitos e valores diversos e até potencialmente contraditó-
rios, suscetíveis de serem rearranjados conforme as exigências do momento
(um dia o inimigo da nação é o PT, outro dia o STF, outro Doria, outro
Sergio Moro, outro o PSL, outro a OMS, outro o Sistema). No fundo, como
dizia Eco (1990, p. 83), o poder de quem anuncia conhecer e querer revelar
um “segredo” é exatamente este: possuir um segredo vazio.
É por isso que o misticismo de Bolsonaro ecoa a narrativa messiânica
de igrejas como a IURD. Ambos se baseiam em uma promessa de liberda-
de e prosperidade, bem como na dimensão polissêmica de seus discursos.
Tomemos, por exemplo, o messianismo da IURD que é, segundo Rodrigues
(2002, p. 78) “riquíssimo e polissêmico, tendo em vista que passa a ter várias
128
formas, faces e funções e possibilita uma vasta produção de sentidos”. Como
acrescenta o autor, trata-se de um messianismo
129
Figura 5 – Os retratos místicos de Bolsonaro no Instagram.
Fonte: https://www.instagram.com/jairmessiasbolsonaro/
PAIXÕES E ESTESIA
130
esfera do processo de comunicação (Greimas, 1987; Landowski, 2004; 2014),
o misticismo difunde-se e afirma-se via contágio (Ponzo e Garofalo, 2019).
As Figuras 4 e 5 acima analisadas são exemplos significativos dessa estratégia.
A natureza de seu significado é predominantemente somática. Em termos
greimasianos, elas procuram provocar uma verdadeira “apreensão estética”
(Greimas, 1987; Landowski, 2004), capturando não só a atenção cognitiva
dos observadores, mas também seus sentimentos e humores, fomentando,
assim, uma experiência sinestésica completa.
O vídeo do YouTube em que Bolsonaro incitava o jejum do Domingo
de Ramos é um outro caso emblemático de tal comunicação sensível-afetiva,
que remete, por sua vez, à estética das mídias sociais evangélicas (Cunha,
2019). O filme inicia com uma canção épica, que permanece ao fundo ao
longo de sua duração. O discurso de Bolsonaro, bem como aquele de outros
líderes evangélicos, é caracterizado por um tom fortemente emocional. A
maior parte deles levanta a voz para convidar seus seguidores a se unir a
Bolsonaro em sua luta pelo legado cristão.
Vale ressaltar que Bolsonaro recorre frequentemente a essas ferramentas
para comunicar de maneira mais eficaz seu papel na batalha contra as elites
nacionais e internacionais. É graças a este contorno estésico e passional que
suas visões conspiracionistas infiltram-se no corpo social.
Voltemos ao tema do caos precedentemente analisado. Como já observa-
mos, o futuro próximo que se prospecta no horizonte é sempre “desastroso”,
“trágico”, “tremendo”. Em uma palavra: apavorante. O medo é uma típica
paixão do futuro (Fiorin, 1992; Barros, 2016). Teme-se sempre algo que está
por vir, as consequências de ações e passadas e presentes nos dias que virão.
Contundo, como observa Marrone retomando Delumeau, o medo é também
uma paixão que oscila entre determinação e indeterminação, entre o vago e o
preciso (Marrone, 2019). Pode-se temer algo específico (Lula, João Doria, os
chineses, o Supremo Tribunal Federal) e, ao mesmo tempo, algo indefinido
(a catástrofe, o fim, a morte, sem saber exatamente do que se trata). Mas o
medo desemboca aqui na angústia, paixão incerta por excelência, sem uma
causa precisa, responsável pela caída do sujeito na espera perene de um mal
impreciso, suscetível de se manifestar a qualquer momento. A angústia é,
portanto, sob o perfil aspectual, uma paixão durativa.
É este o caso da catástrofe bolsonarista. Um futuro indeterminado e
ameaçador envolvido em uma nuvem de angústia. A imprevisibilidade e a
vagueza que caracterizam o futuro apocalíptico de Bolsonaro alimentam
essa sensação. Dizer que algo terrível está para acontecer sem revelar, no
131
entanto, do que exatamente se trata, é uma estratégia eficiente para manter
viva a tensão. Mais do que isso: o continuum da inquietude é atravessado pela
insurgência de paixões pontuais como, por exemplo, o terror. Há sempre,
na maneira como Bolsonaro anuncia a catástrofe a vontade e a exigência
de atordoar e desconcertar de modo hiperbolicamente negativo e disfórico.
Como na análise de Greimas sobre o senhor Palamor de Calvino, es-
tamos aqui diante de um guizzo, isto é, da emergência repentina de algo que
perturba os sentidos e o sentido da vida (Greimas, 1987) Há, todavia, uma
diferença entre este caso e o que estamos analisando. Enquanto nos textos
analisados por Greimas o acidente estésico emerge sobre um pano de fundo
de monotonia, atonicidade e usura perceptiva, no caso de Bolsonaro o pavor
e o terror surgem de um substrato emocional já fortemente excitado. É o
constante estado de inquietude ao qual se refere Fechine no segundo capítulo
desse livro, que transforma os seguidores de Bolsonaro em um exército de
soldados sempre alertas, ou o estado de ânimo do sujeito paranoico que
espera que uma profecia funesta se realize (Eco, 1990).
Entramos aqui em um universo no qual as paixões até agora descritas
começam a se confundir, desembocando em uma esfera tímica cujos con-
tornos são menos definidos. Para usarmos os termos de Landowski (2004),
passa-se das “paixões com nome” às “paixões sem nome”. O adepto do bol-
sonarismo vive em um constante estado de fibrilação. O que domina é uma
estesia intensa e indecifrável a priori, um borbulhar contagioso, uma espécie
de “massa tímica em movimento”, cujas trajetórias não são inteiramente
mapeáveis. Como foi recentemente observado, trata-se de uma caraterística
fundamental do atual populismo de direita, no qual o sensível, os humores
e as paixões sem nome estão em primeiro plano (Landowski, 2018).
Esse quadro de coordenadas estésico-passionais não caracteriza apenas
o estado de ânimo de quem aguarda o advento de uma catástrofe de formas e
proporções desconhecidas, como também aquele de quem sabe exatamente
o que vai acontecer. Segundo as leis que regem o discurso de Bolsonaro, o
“espanto” circunda também o concretizar-se do fato previsível. Assusta-se
não apenas diante do “não sei o que está por vir”, como também perante
ao “sabia”. Não por acaso, uma das estratégias preferidas de Bolsonaro diz
respeito à urgência: “URGENTE! ABSURDO!”, escreve-se muitas vezes, em
maiúsculo, quando se compartilha uma “notícia bomba” no Twitter ou no
WhatsApp. E pouco importa se a notícia seja ou não, de fato, uma bomba.
O que importa é aumentar a tensão e a carga estésica em circulação no corpo
social, alimentar seu alastramento.
A crença nos enredos conspiracionistas contra os quais Bolsonaro
alega lutar é construída, portanto, a partir de uma produção de sentido
132
estésico-passional, que a dissemina por contágio, sustentando e dando forma
ao laço coletivo-comunitário (Landowski, 2020; Madison e Ventsel, 2020;
Sedda e Demuru, 2018).
Ora, a prece conduzida por Magno Malta logo após a eleição de Bolso-
naro, já citada nas seções precedentes, demonstra como a base dessa estratégia
está profundamente enraizada nas práticas discursivas e interacionais evangé-
licas. Lembre-se que, em seu discurso, Malta anunciava que “os tentáculos da
esquerda jamais seriam arrancados sem a mão de Deus”. Como observado
anteriormente, tais palavras alimentam a imagem messiânica de Bolsonaro,
bem como a convicção a respeito da existência de uma suposta conspiração
contra ele. Contudo, deve-se acrescentar que a construção semiótica de tal
crença não se baseia apenas na linguagem e argumentação verbal. Pelo con-
trário, a sua eficácia é também garantida pela comunhão estética entre os
participantes (Marrone, 2001). Como se vê na imagem à esquerda da Figura
6, Malta, Bolsonaro e outras pessoas participam do ritual dando as mãos. A
conexão física e a participação emocional são dimensões cruciais do processo
comunicacional nos quais estão envolvidos de forma muito similar àquilo
que acontece nos cultos e cerimonias tradicionais evangélicas. A imagem da
direita na Figura 7, que mostra um grupo de seguidores evangélicos de Bol-
sonaro rezando por ele em Brasília em dezembro de 2018, também ilustra
o papel crucial dessa comunicação somática-afetiva para corroborar com a
ideologia bolsonarista.
133
construir e corroborar um discurso político-messiânico que se encaixa no
atual contexto social e religioso brasileiro, no qual a participação dos evan-
gélicos no debate público, bem como de suas práticas discursivas, cresceu
consideravelmente nas últimas duas décadas, ganhando espaço e visibilidade
na mídia tradicional e nas redes sociais (Cunha, 2019).
CONCLUSÕES
134
como QAnon, onde a narrativa messiânica é construída a partir de uma com-
binação de evangelicalismo e cultura imagética conspiratória estadunidense,
o bolsonarismo parece acentuar mais ainda a dimensão religioso-evangélica
da liderança presidencial brasileira. As alegações de Bolsonaro sobre Cris-
tofobia, suas orações públicas, as inúmeras citações do Evangelho de João
e os retratos “santificados” de seu Instagram são exemplos concretos de
como ele desenvolveu um populismo conspiratório-messiânico a partir de
um processo semiótico de tradução de expressões e conteúdos, humores e
paixões, práticas discursivas globais e locais.
A pandemia de covid-19 inseriu-se nesse quadro intensificando o dis-
curso catastrofista-conspiratório de Bolsonaro. Aos poucos, tornou-se mais
um recurso para reforçar à adesão à sua narrativa escatológica. Sendo descrita
como uma outra possível causa de iminentes flagelos e desastres planejados
pelos “sistemas” e pelos “establishments” que governam o Brasil, serviu
para consolidar, inteligível e sensivelmente, a crença sobre o (constantemen-
te) próximo “fim da nação”. Diante deste cenário, Bolsonaro cumpre um
dúplice papel temático, agindo como um oráculo do caos ao mesmo tempo
que como o providencial messias salvador da pátria. Um programador de
acidentes – sociais, econômicos, sanitários, pouco importa – cuja duração,
dimensões e intensidade ele mesmo afirma não saber, ainda que se diga
preparado para vislumbrá-los e enfrentá-los.
135
REFERÊNCIAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Margens, periferias, fronteiras: estudos linguísticos-discursivos
das diversidades e intolerância. São Paulo: Editora Mackenzie, 2016.
136
_________. Semiotica e filosofia del linguaggio. Turim: Eninaudi, 1984.
_________. Sobre o sentido II. Ensaios Semióticos. Trad. Dilson Ferreira da Cruz. São
Paulo: EDUSP/Nankin, 2014.
_________. Interações arriscadas. Trad. Luiza Helena O. da Silva. São Paulo: Estação das
Letras e Cores/CPS, 2014.
_________ (org.). Populisme et esthesie. Actes Sémiotique, 121, pp. 1-19, 2018.
LEONE, Massimo. Semiotica dello slancio mistico. Lexia, 15-16, pp. 219-282, 2014.
MOFFIT, Benjamin. The Global Rise of Populism: Performance, Political Style, and Rep-
resentation. Stanford: Stanford University Press, 2016.
137
PONZO, Jenny; GALOFARO, Francesco (org.). Semiotica e santità. Prospettive inter-
disciplinary. Turim: Circe, 2019.
NOTAS
1- https://twitter.com/filgmartin/status/1079342814352293888
2- https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/uma-mensagem-
olavista-delirante-que-bolsonaro-repassou-em-seu-grupo-de-zap.html.
Acesso em: 10 mar. 2022.
138
3- Sobre a imagem de homem comum construída por Bolsonaro veja-se o
capítulo 3.
5- https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/09/opinion/1520605105_073408.html
https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/28/sou-
messias-mas-nao-faco-milagres-diz-bolsonaro-sobre-recorde-de-mortes.htm.
6- https://www.youtube.com/watch?v=yoULwu1diHw
7- https://br.reuters.com/article/idBRKCN1OV1RI-OBRDN
8- https://revistapesquisa.fapesp.br/fe-publica/
9- https://www.youtube.com/watch?v=1qFi6pru4Gw&t=1s
10- https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-compartilha-texto-
de-autor-desconhecido-que-fala-em-pressoes-para-governar,70002832941
11- https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1242788888508272641.
12- http://www.whatsapp-monitor.dcc.ufmg.br/brazil/
13- https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1111028040648351749
14- https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1242786257354309632
15- https://twitter.com/ernestofaraujo/status/1252811093405122566
16- https://www.youtube.com/watch?v=Rd0H4x4MblM
17- https://www.youtube.com/watch?v=in3VTR4-cx4
18- https://www.universal.org/bispo-macedo/post/sinais-dos-tempos-2/
19- https://www.youtube.com/watch?v=5Zn2dv5FyFI&feature=youtu.be
20- https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1130797095122853888
21- https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1130797095122853888
22- https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/sem-apresentar-provas-
bolsonaro-diz-que-houve-fraude-eleitoral-e-que-foi-eleito-no-1o-turno.shtml
23- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55107536
139
24- https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1253795629777764353
25- https://www.youtube.com/watch?v=MV7vR1ZX19Q&t=7s
140
REGIMES DE INTERAÇÃO NA PANDEMIA
YVANA FECHINE
A “GRIPEZINHA” DE BOLSONARO
141
A péssima imagem internacional contrastava com as pesquisas nacionais
de opinião que indicavam uma relativa estabilidade na sua popularidade,
com percentuais que, com poucas oscilações para cima ou para baixo, indi-
cavam a aprovação de cerca de um terço dos entrevistados ao seu governo3.
Como explicar então esta aparente incongruência entre o comportamento
reprovável do presidente e sua aprovação por parcela ainda bem significativa
da população a despeito de tudo? Para grande parte dos analistas políticos,
essa popularidade foi o resultado direto do pagamento de um auxílio emer-
gencial de R$ 600 reais, por seis meses, aos trabalhadores prejudicados pela
paralisação das atividades econômicas impostas pelas medidas de distancia-
mento social. Embora a iniciativa tenha sido o resultado das pressões dos
movimentos sociais e do Congresso Nacional, Bolsonaro soube muito bem
rentabilizar os dividendos da política de transferência de renda, tanto assim
que, logo após o fim da medida, lançou outro benefício, o Auxílio Brasil,
com pagamentos destinados às parcelas mais pobres da população até o fim
de 2022, ano das eleições presidenciais.
É inegável o potencial que uma política de transferência de renda possui
para inflar a popularidade dos governantes, especialmente em países com
grandes desigualdades sociais e com processos políticos marcados pelo
clientelismo, como o Brasil. Mas, seria um auxílio financeiro a única, ou
mesmo a principal razão, para a fidelidade de parte do eleitorado a Bolsonaro
a despeito das circunstâncias? Além do cálculo eleitoreiro que consiste em,
de certo modo, “comprar” o favor popular por medidas pontuais de ajuda,
cabe enxergar a estratégia presidencial nas suas mais diversas dimensões. Por
isso, sem relativizar o peso que tem o dinheiro no bolso em momentos de
estrangulamento econômico, proponho aqui pensarmos também a impor-
tância capital do modo como o presidente se comunicou e interagiu com os
eleitores durante a pandemia. Para entender suas estratégias, vamos recorrer
novamente aos regimes de interação de Landowski (2014)4, observando como,
por meio de mais uma curiosa conjugação entre eles, Bolsonaro deu sentido
a ideias e comportamentos que pareciam completamente non sense diante da
maior crise sanitária e hospitalar da história do Brasil.
Por terem a conquista ou a renovação dos seus mandatos como objetivo a priori,
políticos raramente conseguem manter uma interação com seus eleitores que
142
não seja da ordem da manipulação. Como vimos, no modelo proposto por Eric
Landowski (2014), a manipulação é descrita como o regime de interação orien-
tado pela intencionalidade e por uma motivação com caráter fundamentalmente
“econômico”, um “cálculo” relativo ao valor dos “serviços” reciprocamente
prestados por cada parte envolvida em um tipo de contrato que se estabelece
entre eles – no nosso caso, um “cálculo” e um “contrato” políticos. Além da
manipulação, o modelo interacional prevê três regimes alicerçados em outros
princípios: a programação, fundado na regularidade das relações, e – o que
aqui mais nos interessa aqui – o ajustamento, sustentado pela sensibilidade
recíproca, e o acidente ou assentimento, baseado na aleatoriedade.
Na manipulação, a interação depende de um contrato entre os sujeitos;
no ajustamento, o que se impõe é o contato e a presença mesma de um ao
outro. Busca-se, no ajustamento, um fazer junto possibilitado pelo fato de que
os protagonistas sentem juntos (uma emoção, um sentimento, uma sensação ou
mesmo um tipo de intelecção) ou, pelo menos, têm a capacidade de sentir mu-
tuamente os respectivos estados afetivos, passionais ou até mesmo somáticos
por alguma forma de contágio entre eles. No regime do acidente, a relação
entre os interagentes é da ordem do imprevisível, inescapável, ininteligível,
inexplicável. Diante da ruptura das regularidades de qualquer natureza, que
nos coloca frente ao inevitável e, em certa medida incontrolável, resta, como
o nome sugere, o assentimento frente ao que se manifesta, muitas vezes e
inclusive, como algo transcendente.
Assumindo como pressuposto que a manipulação é, por excelência,
o regime de interação na política, é inevitável considerá-lo como ponto de
partida para analisar o comportamento do presidente brasileiro no enfren-
tamento à crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. Para a análise,
seguimos suas postagens do Facebook, plataforma na qual é campeão de
interações e pela qual costuma se dirigir aos seus seguidores por meio de
transmissões ao vivo quase diárias. Acompanhamos sistematicamente essas
transmissões entre abril e agosto de 2020, no auge da pandemia de covid-19.
Todavia, não vamos referenciar postagens específicas, preferindo tratar das
situações e efeitos mais gerais identificados no período de observação. De
forma complementar, o monitoramento do perfil do presidente foi ainda
apoiado pelo acompanhamento da repercussão de suas postagens e pronun-
ciamentos públicos (entrevistas, pronunciamentos oficiais etc.) noticiados
por jornais e portais na internet.
A observação dos posicionamentos do presidente sobre a pandemia
mostrou que as estratégias manipulatórias para convencer seus seguidores a
143
apoiar suas ideias envolveu, em diferentes momentos, um apelo aos demais
regimes de interação. Landowski (2008, 2020) já mostrou como a política não
mobiliza apenas por seu apelo à racionalidade ou passionalidade, mas, cada
vez mais, recorre a um contágio estésico, que não depende de argumentos ou
promessas eleitorais (contratos), e sim de um estar junto, de um sentir-se junto
ao outro. Ao tratar das estratégias dos populistas de extrema direita, ele já
apontou a manipulação por contágio como um modo preferencial de intera-
ção entre esses líderes e seus apoiadores. A observação do comportamento
do presidente brasileiro, no decorrer da pandemia, indicou, no entanto, uma
manifestação mais complexa da conjugação de regimes na qual a operação
de um deles depende do acionamento de todos os demais.
Isso significa dizer que podemos ter um “regime de base” que rege a
interação e em prol do qual os demais se manifestariam como “regimes auxi-
liares” a serviço do princípio geral que norteia a relação entre os interagentes.
Teremos, neste caso, uma interação complexa, na qual a manifestação global
de um determinado regime dominante passa pela ativação de um outro ou
de todos os outros, como ocorreu na estratégia comunicativa de Bolsonaro
durante a pandemia. É seguindo por esse caminho que pretendemos apontar
como, de modo alternado ou concomitante, o presidente sustentou suas estra-
tégias manipulatórias ao longo da pandemia em princípios que caracterizam
ora o ajustamento, ora assentimento, ora a programação. Podemos, em outras
palavras, tratar de uma manipulação por ajustamento, de uma manipulação
por assentimento, de uma manipulação por programação e, como não podia
deixar de ser, da manipulação por si só.
A descrição de cada uma das configurações que resultam dessa conju-
gação de regimes depende, no entanto, da alternância paradoxal dos papéis
assumidos pelo chefe de Estado. De acordo com o que é mais conveniente
para seu “cálculo” eleitoral, ele comporta-se ora como “presidente”, ora
como “não presidente”. Como se elegeu posando de político “antissistema”
e “contra tudo que está aí”, ele não hesita em desconsiderar, quando lhe é
conveniente, o cargo que ocupa, seja opondo-se às medidas impopulares do
seu próprio governo, seja culpando os demais poderes ou governantes. É
nesse jogo de papéis, sustentado frequentemente pela desinformação, que
Bolsonaro lastreia uma complexa dinâmica interacional com seus apoiadores.
O modo como se valeu dela para enfrentar a pandemia evidenciou mais uma
vez o quanto ela pode ser desnorteadora para seus opositores e eficiente
entre seus eleitores.
144
O FAZER MANIPULATÓRIO DE BASE
145
o fazer manipulatório do presidente que, às custas de uma verdadeira retórica
da desinformação, que trataremos melhor no próximo capítulo, convenceu
os seus apoiadores de que seu governo podia fornecer um “remédio mila-
groso” para a doença, desde que fosse solicitado pelos prefeitos, prescrito
pelos médicos e aceito pelo paciente.
146
o apoio recebido nas redes sociais, assim como os ataques virtuais aos seus
opositores, eram feitos por esses robôs da internet.
Em que pese seu caráter depreciativo ou satírico, as expressões “gado
bolsonarista” ou “robô do Bolsonaro” acabam indicando o tipo de intera-
ção “programada” mantida com ao menos uma parte de seus seguidores no
Facebook. No que dizia respeito à pandemia, o negacionismo presidencial
foi tão internalizado ou “assumido” pelos seus seguidores que os comentá-
rios às suas postagens pareciam fazer parte de uma espécie de “algoritmo”
de comportamento sustentado por determinações preexistentes, estáveis
e cognoscíveis dos valores do outro. Esse comportamento previsível está
condicionado à regularidade no papel temático de “bolsonarista”, designa-
ção dada aos seus apoiadores incondicionais. Mesmo quando o presidente
desafiava as evidências científicas em relação à evolução com informações
distorcidas ou quando suas declarações eram desmentidas por autoridades da
Organização Mundial de Saúde, os seus apoiadores continuavam a repeti-las.
As hashtags do tipo #FechadosComBolsonaro ou #BolsonaroTemRazao, que
acompanhavam frequentemente os comentários às postagens do presidente,
exemplificavam igualmente esse papel “programado” no processo interacio-
nal marcado por uma fidelidade dogmática diante da autoridade incontestável
do “mito”, modo pelo qual o presidente é tratado pelos bolsonaristas.
Essa obediência cega e automática, que beira o non sense, ganha sentido jus-
tamente quando o presidente se despe deste papel e aposta no contato não
apenas passional, mas pessoal, com seus apoiadores. Coloca-se no lugar do
“pai de família” impedido de garantir o sustento da família porque as medidas
de distanciamento social provocaram a paralisação das atividades econômicas.
Expressa sua solidariedade com os pequenos comerciantes, prestadores de
serviço autônomos, vendedores ambulantes e com várias outras categorias
de trabalhadores informais que perderam renda durante a pandemia. Apesar
das recomendações de distanciamento social, o presidente investiu, ao longo
de toda a pandemia, no contato direto e no “corpo a corpo” com populares.
Sem máscaras, abraçando ou apertando a mão de eleitores, ele visitou áreas
de comércio informal, frequentou padarias, lanchonetes, lojas e postos de
gasolina. Como já mencionado, também provocou inúmeras aglomerações
em frente ao Palácio da Alvorada, onde todo dia recebia grupos de apoiadores
147
para sessão de fotos e conversas informais que, invariavelmente, terminavam
culpando prefeitos e governadores pela perda de renda e empregos provocada
pelas medidas de distanciamento social.
Todos esses momentos eram impreterivelmente registrados em vídeos
ao vivo ou gravados veiculados pelo Facebook do presidente, repetindo
um procedimento que ele já adotava, antes da pandemia, e por meio do
qual reforçava o efeito de uma “ligação pessoal” e laço emocional com seus
eleitores. Na pandemia, Bolsonaro explorou igualmente suas redes sociais
digitais como um “lugar” de encontro diário e cotidiano com seus segui-
dores, construindo o simulacro de uma reciprocidade enunciativa por meio
da qual se sentem como se pudessem ter contato direto com o presidente6.
Não se trata, evidentemente, de um encontro “face a face”, como ocorre
com aqueles com os quais Bolsonaro conversa nas ruas ou em frente ao
Alvorada. Mas, o “lugar” de interação instaurado, sobretudo pelas transmis-
sões ao vivo pelas redes sociais, constrói igualmente o tipo de copresença
necessário ao sentir-se junto e o sentir junto que constituem o ajustamento a
serviço do seu fazer político manipulatório. Para promover esse tipo de in-
teração, Bolsonaro não hesitou em desrespeitar o isolamento social saindo
às ruas para o “corpo a corpo” com seus eleitores a pretexto de escutar suas
necessidades. As transmissões ao vivo pela web desses momentos serviam
para encenar a empatia e afinidades com o “povo”. Encenações deste tipo
são um procedimento recorrente na estratégia comunicativa de Bolsonaro,
mas, na pandemia, serviram adicionalmente para desafiar o “fique em casa”,
apregoado pelo “sistema”.
Pouco importavam as declarações repetitivas, esvaziadas e sustentadas
por clichês, pois o que as transmissões ao vivo desses encontros promoviam
era, antes de tudo, o efeito de proximidade com um presidente que, de igual
para igual, aparentava sentir o mesmo que cada um dos que ali se reuniam.
Na sua revolta contra o “sistema” – que, neste caso, era representado tam-
bém pelas próprias autoridades de saúde do governo –, viam em Bolsonaro
um parceiro com o qual se identificavam e podiam desabafar suas queixas,
sem atribuir, no entanto, qualquer responsabilidade ao presidente pelas di-
ficuldades enfrentadas pelo país. Incapaz de propor alternativas para gerar
emprego e renda e determinado a jogar o custo das medidas impopulares
de distanciamento social na conta dos prefeitos e governadores, o que Bol-
sonaro tinha a oferecer era uma forma de “empatia” (não em relação com
as vítimas do novo coronavírus, mas com os prejudicados pela paralisia
econômica). Nas lives em frente ao Palácio, ele se comportava como aquele
148
“cara comum” com quem se podia falar da situação do país, mas também
com quem podiam fazer piadas e brincadeiras para se distrair em meio aos
problemas. A reciprocidade que Bolsonaro estabelecia com os seus apoia-
dores nessas conversas descontraídas, feitas sob medida para divulgação nas
suas redes sociais, estendia-se também aos milhares que acompanhavam os
vídeos. Embora esses encontros “casuais” fossem claramente planejados, a
espontaneidade e o improviso assumidos pelo chefe de Estado sugeria sua
aposta em um sentido que emergia da e na interação mesma entre eles.
A RESIGNAÇÃO COMPARTILHADA
Essa ligação sensível, quase íntima, tornava-se ainda maior porque, mais que
valores e sentimentos, Bolsonaro demonstrava partilhar com seus apoiadores
da mesma fé. Frequentemente, as lives davam lugar a momentos coletivos de
oração com grupos de católicos ou, de evangélicos, embora estes últimos
fossem mais constantes. O apelo à fé religiosa ganhou um lugar relevante
na interação entre o presidente e os grupos bolsonaristas, levando-os a lidar
com a doença como algo da ordem do transcendente, do inesperado ou do
imponderável próprios ao regime do acidente ou assentimento. Neste caso,
o assentimento manifestava-se, sobretudo, como um certo conformismo e
resignação diante de um vírus cujo comportamento parecia aleatório e, por
isso, o contágio só podia ser acidental. Nessa perspectiva, não havia muito
o que fazer a não ser contar com a sorte ou com a “proteção divina”. Esse
comportamento esteve também intrinsecamente associado à convicção de
que o novo coronavírus foi algo enviado pelo “Mal”, termo que indicava
uma instância transcendental, o antissujeito do Bem encarnado na figura
de Deus. Diante do que não tem explicação nem motivação claras, restaria
aceitar desígnios de Deus – ou do Diabo.
Se há algo de transcendente nessa nova “peste” que abateu a humani-
dade, não há o que se cobrar de um presidente que, ao se apresentar como
um homem temente a Deus – um crente, como seus seguidores –, demons-
trava a mesma resignação. É com base nesse assentimento que ele declarou
repetidas vezes em entrevistas ou nas lives pelo Facebook que quase todas
as pessoas iriam ser contagiadas, sugerindo, como já citamos, que não havia
o que fazer frente ao inevitável. “Esse vírus é como uma chuva, vai atingir
você”, pregava o presidente7. Declarações dessa natureza costumavam ser
feitas em suas lives ao tratar do número crescente de mortos. Não raro, ele
149
completava esse tipo de comentário lembrando que há pessoas morrendo
todos os dias das mais variadas causas, pois este “é o destino de todo mundo”8.
Ao mesmo tempo em que alegava que esse tipo de risco é “da vida”, ele
próprio também se colocava na posição de quem estava sujeito ao mesmo
destino: “amanhã vou eu”, dizia. A inoperância presidencial diante da maior
crise sanitária da história do Brasil era tamanha que em uma de suas lives, ao
ser questionado sobre o fato do Brasil ter ultrapassado a China em mortos,
Bolsonaro acrescentou uma pitada de cinismo: “Lamento. Quer que eu faça
o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, disse, fazendo referência ao
próprio sobrenome (Jair Messias)9.
O assentimento assim demonstrado diante da ação do novo coronavírus
foi, sem dúvida estratégico, pois colaborou para que sua interação com seus
apoiadores fosse, nos momentos mais difíceis da pandemia, pautada pelo
mesmo regime interacional. Diante de uma força maligna e desconhecida,
quase sobrenatural – um vírus devastador que não se sabe bem nem como
chegou nem como vai desaparecer –, o que podem os homens, pobres
mortais? Resta apenas apelar para o Messias verdadeiro, já que o poder para
combater o vírus é transcendente, vem do Céu. Não por acaso, foram inú-
meras as lives em que os grupos religiosos que se concentravam em frente ao
Alvorada, dispostos a participar de suas transmissões ao vivo, rezavam junto
com o presidente pelo país. O apelo ao transcendente foi tão recorrente que,
em uma das transmissões, depois de conversar com líderes religiosos, ele
anunciou que faria a convocação para um dia nacional de jejum para livrar
o país do “Mal”10. A convocação foi, de fato, realizada por meio de vídeo
publicado nas redes bolsonaristas, no qual o presidente aparece ao lado de
vários pastores evangélicos, arregimentando o “exército de Cristo para a
maior campanha de jejum e oração já vista no país”11.
150
dar no domínio da transcendência. É o que ocorre, por exemplo, quando o
crente tenta negociar com Deus, fazendo promessas (uma oferenda qual-
quer) ou se impondo um sacrifício em troca de benção ou de uma graça
(Landowski, 2012). O jejum religioso revela essa relação quase “contratual”
de Bolsonaro e seus seguidores com “Deus” para resolver o problema da
pandemia. Esse caráter manipulatório se manifesta também quando o crente
busca encontrar no transcendente uma explicação para o que, racionalmente,
escapa a sua compreensão, mas que pode, de todo modo, ser motivado (ou
seja, intencional): neste caso, a causa pode ter sido, inclusive, o pecado cuja
consequência foi o aparecimento do novo vírus, precisamente encarado
por muitos bolsonaristas como um castigo divino. Neste “cálculo” da fé, o
arrependimento ou o sacrifício (o jejum) funcionam como a moeda de troca
com Deus. Diante da gravidade da pandemia, o que o próprio presidente da
República tinha a oferecer à Nação era uma bem encenada profissão de fé.
Quando faltam argumentos (mesmo os falsos), Bolsonaro apela nova-
mente para a tríade certeira da campanha – Deus, Pátria e Família –, uma
campanha constantemente realimentada pelos pastores e padres conservado-
res que batem às portas do Alvorada e reforçam o messianismo presidencial.
Na Páscoa de 2020, a pretexto de celebrar e orar pelo Brasil, o presidente
aproveitou para, mais uma vez, relembrar, com voz embargada, a facada
que levou durante a campanha de 2018 e que contribuiu para construir sua
imagem de predestinado por Deus para governar o Brasil porque sobreviveu
ao atentado “por milagre”12. Alternando entre o papel de perseguido (por
adversários políticos que queriam lhe tirar do cargo) e “profeta” (que pre-
viu os problemas do povo e anteviu a “cura” com a cloroquina), Bolsonaro
construiu com êxito, durante a pandemia, a narrativa do herói que – depois
de poupado por Deus – salva o povo da miséria provocada pelas medidas de
isolamento que paralisavam a economia. Assim chegou até a ser comparado
por alguns apoiadores a Moisés, enviado por Deus para guiar o povo.
O negacionismo frente à pandemia, no entanto, não foi alimentado
apenas pelo insistente apelo à religião. As redes bolsonaristas foram en-
corajadas a explorar as chamadas teorias da conspiração que costumam
atribuir aos fenômenos causas ocultas, cercando de mistério aquilo que
não se entende, não se sabe ou não se quer enfrentar. É fácil identificar na
dinâmica interacional entre Bolsonaro e seus apoiadores, a passagem do que
é da ordem do assentimento à manipulação: anulam a álea – o “destino” –
com explicações fantasiosas que, ao apontar um culpado, um inimigo ou
um conspirador, restituem a ordem narrativa “natural” da pandemia. Nesse
151
programa narrativo, basta descobrir a conspiração (um complô internacio-
nal, talvez) e eliminar o conspirador para que o mistério seja esclarecido e
se encontre algum sentido no caos. No caso, a China seria a responsável. O
filho do presidente (e um dos seus costumeiros porta-vozes), o deputado
Eduardo Bolsonaro, o então Ministro da Educação e até o seu Ministro
das Relações exteriores, amparados pelo silêncio conivente de Bolsonaro,
fizeram postagens que culpavam a China por ter fabricado o vírus em la-
boratório como parte de um plano mirabolante para quebrar os mercados
e assumir a liderança na economia mundial13.
Sem qualquer censura do presidente, o então Ministro da Relações
Exteriores, Ernesto Araújo, chegou mesmo a defender em um blog pes-
soal que a pandemia provocada pelo “comunavírus” podia estar sendo
usada para “instaurar o comunismo, o mundo sem nações nem liberdade,
um sistema feito para vigiar e punir”; o chanceler também sugeria que as
ações globais propostas pela Organização Mundial da Saúde são o primeiro
passo na construção do que ele chamava de uma “solidariedade comunista
planetária”14. Recupera-se assim o “inimigo perfeito” para a extrema direita
do bolsonarismo: o comunismo. Há, nessa narrativa conspiracionista, um
sujeito-herói bem definido (Bolsonaro e os bolsonaristas) que precisa des-
mascarar um antissujeito (a China comunista) para que o problema pareça
resolvido. A “China comunista” não foi, porém, o único inimigo eleito
pelo bolsonarismo durante a pandemia. Os “inimigos” mais plausíveis e
denunciados insistentemente foram governadores e prefeitos que adotaram
as medidas de isolamento social, respaldados por uma decisão do Superior
Tribunal Federal (STF), que reconheceu seus poderes para isso. Às teorias
da conspiração, somaram-se outras incontáveis estratégias de desinformação
a serviço do fazer manipulatório de Bolsonaro e seus adjuvantes.
O modo como Bolsonaro defendeu com êxito suas posições durante a pan-
demia está intrinsecamente associada ao fazer crer próprio da manipulação
que, operando em conjugação com os demais regimes, é o ponto de partida
e de chegada da sua estratégia política. Diante de uma situação tão extraor-
dinária, como uma pandemia, o fazer persuasivo não se sustenta apenas no
raciocínio argumentativo inerente a um exercício retórico, mesmo quando
este é sustentado pela desinformação. Frente a ameaça de um vírus que coloca
152
o mundo inteiro num estado permanente de perplexidade, o que fazemos
ou não fazemos, como agimos ou não agimos diante do que nos espanta
ultrapassa a lógica racional. O que parece mais desafiador na comunicação
populista, e que tentamos aqui apontar a partir do caso brasileiro, é como
entender a estratégia manipulatória da política em uma situação em que, a
depender do momento, se desliza do sentido para o não sentido. Cultivado
no terreno fértil da desinformação, aliada à religião, o dogmatismo do senso
comum, que caracteriza o bolsonarismo, manifestou-se também durante a
pandemia, como uma fidelidade cega ao presidente.
Decorre daí a adesão automática a todas as ideias e posições de Bol-
sonaro, dando lugar aos comportamentos irrefletidos e condicionados pró-
prios da programação. Mas essa lealdade e respaldo irrestritos ao presidente
perderiam logo o sentido se não fosse o contato direto, e mesmo o “corpo
a corpo”, que também marca a relação de Bolsonaro com seus apoiadores.
Por isso, sua presença e prontidão nas redes sociais são fundamentais na
sua estratégia política. Embora os encontros “casuais” com apoiadores fos-
sem claramente planejados, a espontaneidade e o improviso assumidos por
Bolsonaro sugeria sua aposta em um sentido que emergia da e na interação
mesma entre eles. É assim que, da programação, a interação entre Bolsonaro
e seus apoiadores se move rumo ao ajustamento. No entanto, para agir com
e como os outros, nem sempre bastam as estratégias passionais. Por vezes,
o que (co)move mais é o “espírito de corpo”, o sentimento de ser parte de
um todo coeso que sente o mesmo e, justamente por isso, constrói o sentir-se
junto que caracteriza o ajustamento. Pode-se dizer que, durante a pandemia,
manter este “corpo a corpo” junto aos apoiadores, nas ruas e nas redes, foi
mesmo a principal ocupação do presidente, já que sua maior preocupação era
manter sua popularidade, a despeito do colapso sanitário e hospitalar à época.
A passagem do ajustamento ao assentimento não é difícil – parece mes-
mo quase natural – quando o apelo à religiosidade possui uma centralidade
na dinâmica interacional, como ocorre no bolsonarismo. No catolicismo,
por exemplo, a fé convida à comunhão, carrega o apelo a fazer parte de um
só corpo com Cristo e com os cristãos. Em um tipo de interação marcada
pelo fundamentalismo religioso, como já identificamos no populismo de
Bolsonaro, o espanto diante do desconhecido e incontrolável posto pela
pandemia remete, de imediato, a tudo que é da ordem do transcendente,
místico e até um tanto mágico. A consequência desse modo de interação
dos sujeitos com o vírus e entre eles (Bolsonaro e apoiadores) resulta no
fatalismo e conformismo que, estrategicamente, justificavam a inoperância
153
do seu governo, já que não havia mesmo como evitar “o destino”, o acaso
e a inevitabilidade do contágio.
Para que um sujeito consiga escapar dessa situação caótica e perigosa
instaurada pelo vírus é preciso inventar a figura mítica de um destinador
(Deus, o Mal, um conspirador) que restitua o sentido àquilo lhe parece um
tanto absurdo. Reconhecido um destinador, instala-se o regime da manipu-
lação fundado na crença e na fidúcia que, no caso de Bolsonaro, envolve o
messianismo, que ecoou também durante a pandemia. Como vimos, desde
a campanha eleitoral, Bolsonaro assumiu o papel de um sujeito enviado por
Deus para cumprir a missão de mudar o Brasil. Além de reforçada pelo apoio
dos religiosos conservadores, essa imagem de predestinado por Deus, foi
ainda mais reforçado pelo tema recorrente da facada da qual se salvou, “por
milagre”. Esse messianismo deriva fácil, especialmente em momentos de
insegurança e medo, para uma espécie de glorificação de quem é portador
de uma “salvação” qualquer – um “remédio milagroso”, quem sabe.
Ao invés de tomar medidas efetivas de combate ao novo coronavírus,
Bolsonaro encarregou-se de construir “inimigos” para enfrentar, garantindo
sua posição de “herói” na batalha para defender “os pais de família” que
perderam emprego e renda. Nada melhor do que teorias da conspiração
para forjar um herói! Toda sua retórica da desinformação foi também, em
grande parte, dirigida ao enfrentamento desses “inimigos” – prefeitos, go-
vernadores, cientistas, ministros do STF e até dois dos seus Ministros da
Saúde, demitidos por discordarem de suas posições. Foi esta, de modo geral,
a estratégia contratual e englobante de Bolsonaro, mas, no interior dela, os
diversos procedimentos retóricos empregados às custas de falsos argumen-
tos constituíam, por si sós, práticas manipulatórias englobadas na dinâmica
mais geral de interação. Ainda que, aos olhos de alguém menos atento à
dinâmica interacional, o modo de agir do presidente pareça regido pela
fragmentação e incoerência, há, no plano mais global uma coesão subjacente
à sua comunicação política: explorando todos os regimes, em sintonia com
os “humores” ou juízos manifestos por seus seguidores nas redes sociais, o
que o presidente faz é renovar os contratos firmados com a parcela radical,
mas também a mais fiel, do seu eleitorado. Na perspectiva da comunicação
política, reconhecer e descrever a complexidade dessa dinâmica interacional
com a qual Bolsonaro garante popularidade mesmo nos contextos mais
adversos, parece ser também uma necessidade para enfrentar o populismo
dos bufões da política como ele.
154
REFERÊNCIAS
LANDOWSKI, Eric. Interações arriscadas. Trad. Luiza Helena O. da Silva. São Paulo:
Estação das Letras e Cores/CPS, 2014.
NOTAS
2- Cf. https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-volta-a-imitar-pessoa-
com-falta-de-ar-e-chama-mandetta-de-canalha/. Acesso em: 26 fev. 2021
3- Cf. https://www.nucleo.jor.br/arquivo/2020-04-01-popularidade-bolsonaro-
lideres-coronavirus/
155
https://www.jota.info/eleicoes/entenda-por-que-melhora-popularidade-de-
bolsonaro-18032022. Acesso em: 20 fev. 2022.
5- https://veja.abril.com.br/blog/radar/pf-descobre-o-que-muitos-
imaginavam-os-robos-bolsonaristas/. Acesso 26 fev. 2021
7- https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/07/07/e-como-
uma-chuva-vai-atingir-voces-diz-bolsonaro-sobre-covid-19.htm. Acesso em:
19 out. 2020.
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/a-gente-
lamenta-todos-os-mortos-mas-e-o-destino-de-todo-mundo-diz-bolsonaro.
shtml Acesso em: 19 out. 2020.
9- https://www.facebook.com/jairmessias.bolsonaro/videos/224343575329801/.
Último acesso em 20 abr. 2022.
11- h t t p s : / / w w w . f a c e b o o k . c o m / j a i r m e s s i a s . b o l s o n a r o
/videos/1568812446600579/. Último acesso em 20 abr. 2022.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51963251
156
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias
/2020/04/04/coronavir us-weintraub-usa-cebolinha-para
-provocar-china-e-web-nao-perdoa.htm ; Acesso em: 19 out. 2020.
157
UMA RETÓRICA DA DESINFORMAÇÃO
YVANA FECHINE
PAOLO DEMURU
159
realizadas no Brasil ainda em 20204. Um estudo realizado por Ajzenman,
Cavalcanti e Da Mata (2020), por exemplo, implementou um índice de dis-
tanciamento social a nível municipal, construído com base em dados anô-
nimos de geolocalização, e mostrou que nos municípios em que Bolsonaro
foi mais votado na eleição de 2018, houve uma diminuição significativa do
distanciamento social, especialmente depois de comportamentos públicos
do presidente que ignoravam a necessidade isolamento5.
Não é de hoje que sabemos do poder persuasivo que líderes políticos
exercem sobre as massas tanto pelo seu comportamento quanto pelo em-
prego de estratégias retóricas, apontadas por Aristóteles há mais de vinte
séculos, que também podem ser postas a serviço de uma “grande narrativa”
populista cuja base é a interação manipulatória (Kharbouch, 2018). Embora
seja inegável a influência das estesias, como temos demonstrado nos capítulos
anteriores, a adesão às ideias populistas, não exclui – ao contrário, comple-
menta – o peso da dimensão argumentativa sustentada por informações
duvidosas ou enganosas. Foi isso o que Bolsonaro mostrou exemplarmente
nesse momento de pandemia de covid-19 ao colocar a retórica a serviço da
desinformação, a partir de publicações feitas em seus perfis nas plataformas
digitais, que, na maioria das vezes, eram não apenas reproduzidas por seus
apoiadores, mas também repercutidas pela mídia comercial.
Esta “retórica da desinformação”6 corresponde a um conjunto variado
de estratégias discursivas adotadas pelo presidente para convencer à popu-
lação a aderir ao seu negacionismo e anticientificismo diante da pandemia,
explorando não apenas a notícias falsas, mas a argumentações falaciosas.
Trata-se, em uma perspectiva mais ampla, de um tipo de retórica que os
estudiosos qualificam de ardilosa porque visa “ludibriar os espíritos” (Ma-
teus, 2018, p. 35). É da identificação e análise desses procedimentos que nos
ocuparemos aqui, detalhando-os e exemplificando-os a partir das postagens
coletadas, sobretudo, nos dois anos mais críticos da pandemia (2020 e 2021),
nos perfis nas redes sociais de Bolsonaro – especialmente em suas lives sema-
nais –, mas recorrendo também, sempre que necessário, a textos publicados
por portais de notícias que repercutiram os posicionamentos e declarações
difundidos pelas plataformas digitais.
O caminho que seguiremos aqui começa por justificarmos o apelo
à retórica na discussão de tais estratagemas discursivos. Segundo Fiorin
(2014), a retórica ocupa-se, de modo geral, dos meios de persuasão criados
pelo discurso, bem como dos efeitos provocados pelo orador (enunciador)
nos ouvintes (enunciatários). Por isso, a relação entre retórica e democracia
160
é estreita, já que é próprio deste regime político a existência de um espaço
público no qual se disputa opiniões e posições, buscando que os indivíduos
se filiem voluntariamente a ideias que lhe são propostas. Como lembra Fiorin
(2015), os discursos são instâncias de luta entre as vozes sociais e, portanto,
o locus privilegiado da política. Segundo Amossy (2020, p. 11), “na relação
intersubjetiva, a fala eficaz não é somente aquela que manipula o outro, pois
ela é também aquela que compartilha do raciocínio e do questionamento”,
razão pela qual a autora considera que os termos “retórica” e “argumentação”
são permutáveis. Partindo desta premissa, nosso interesse aqui concentra-se
sobre os procedimentos argumentativos. Assumimos ainda que a retórica
pode ser pensada como “um conjunto de regras sobre as quais se explana o
método de determinar, em cada caso, os melhores elementos de persuasão”
(Mateus, 2018, p. 36), sejam estes explorados de modo consciente ou intui-
tivo. Cabe, no entanto, antes de tratar exatamente desses procedimentos,
recuperar um pouco da tradição retórica no atual contexto midiático para
que possamos, depois, estabelecer melhor sua relação com a desinformação.
RETÓRICA E PERSUASÃO
161
orador se dirigir de uma só uma vez para múltiplos auditórios em tempos e
lugares distintos produziu o que Mateus (2018) denominou de uma “retórica
midiatizada”, na qual a persuasão é organizada em torno da massificação
e padronização de discursos veiculados, por exemplo, para as grandes au-
diências do rádio ou televisão. O surgimento das plataformas digitais, ao
permitir uma maior segmentação e personalização dos públicos, favoreceu a
adequação e adaptação do orador ao seu auditório, pavimentando o caminho
para uma retórica da desinformação sustentada, entre outras coisas, pelo viés
da confirmação, a tendência de as pessoas acreditarem nas informações que
apoiam suas visões e valores, e desconsiderarem as que dizem o contrário
(Barros, 2020).
Sejam quais forem os meios empregados, toda a “técnica” retórica da
persuasão consiste, no final das contas, em um levar a crer e um levar a fazer,
que corresponde, também em termos semióticos, a um regime de manipu-
lação8. O modo como a desinformação tem sustentado interações políticas
manipulatórias e influenciado decisivamente o debate público no Brasil nos
leva a pensar, como Greimas (2014, p. 124), que o conceito de verdade tem
sido substituído cada vez mais pelo de eficácia. Na perspectiva assumida pelo
semioticista, a verdade é um efeito de sentido. Consiste em um fazer-parecer-
-verdadeiro que depende menos de uma correspondência entre o discurso e o
“mundo real” ou factual (referente) e mais de um fazer persuasivo e inter-
pretativo sustentado a priori pela permuta de crenças e valores:
162
proposições consideradas plausíveis. Um argumento é considerado válido
quando as premissas que sustentam a conclusão podem ser avaliadas como
verossímeis e razoáveis.
Enquanto os argumentos dirigem-se, sobretudo, à razão, os apelos se
valem mais das paixões. São, portanto, “estratégias simbólicas que visam
provocar uma resposta emocional, levando o auditório a comprometer-se
em termos das suas convicções, lealdades ou compromissos”, explorando
atalhos para as formas de sentir (Mateus, 2018, p. 42). Esta distinção é
relevante porque, em contextos de polarização política, os procedimentos
retóricos que recorrem ao apelo são ainda mais explorados, resultando em
discursos que nem precisam argumentar para persuadir. Já identificamos a
força persuasiva do bolsonarismo com seus apelos ao medo e o ódio, por
exemplo9. É preciso, no entanto, compreender melhor as práticas retóricas
de Bolsonaro quando ele recorre às técnicas argumentativas ainda que para
levar sua “plateia” a conclusões enganosas.
Pela própria natureza das “teses” anticientificistas e negacionistas
defendidas por Bolsonaro ao tratar da pandemia de covid-19, o seu êxito
argumentativo depende, antes de tudo, de um acordo prévio, uma das mais
importantes condições dentro das práticas retóricas. Para estudiosos de
tais práticas, o acordo prévio funciona como uma espécie de atalho para
persuasão, pois aproveita uma adesão prévia às premissas que conduzem às
conclusões. A persuasão argumentativa é obtida porque quem argumenta já
parte, portanto, de algo em que aqueles aos quais se dirige acreditam. Quando
o acordo prévio se junta ao chamado viés da confirmação estão dadas as
precondições mais importantes para a aceitação de qualquer argumento, até
mesmo dos falsos argumentos ou falácias.
Na retórica, considera-se falácia um argumento que chega a conclusões
sem que haja razoabilidade das premissas. Segundo Mateus (2008, p. 150),
as falácias podem, de qualquer modo, ser consideradas como argumentos,
porém, “são argumentos logicamente inconsistentes, uma vez que se ba-
seiam em raciocínios falsos ou errados ainda que aparentem ser verdadei-
ros”. Aristóteles já tratava disso em suas “Refutações sofísticas”, elencando
problemas que estão na base do que hoje consideramos como argumentos
falaciosos, cujos erros lógicos e desvios podem ser detectado no exame da
sua própria estrutura no contexto em que foram construídos. A classificação
das falácias comporta variação entre os estudiosos de retórica. A “retórica
da desinformação” que pretendemos aqui descrever é baseada, especialmente,
nas categorias apresentadas por Fiorin (2015) e Mateus (2018) ao tratarem das
técnicas argumentativas que, ao longo da história, foram consideradas de má-fé.
163
O “SURTO” DE DESINFORMAÇÃO10
OS ARGUMENTOS DE AUTORIDADE
Um dos recursos retóricos mais utilizados por Bolsonaro durante sua cam-
panha de desinformação sobre a covid-19 foi o argumento de autoridade
ou argumentum ad verecundiam, que, como o nome sugere, busca a aceitação de
um ponto de vista, baseando-se na autoridade de quem o defende, seja por
seu conhecimento sobre o que enuncia, seja pela sua integridade pessoal.
Ou seja, quem argumenta “introduz a si mesmo como prova no exame da
questão, mencionando seus conhecimentos ou quaisquer outras qualidades”
(Fiorin, 2015, p. 176). No caso de Bolsonaro, podemos distinguir ao menos
três tipos de figuras de autoridade mobilizadas para defender um argumento.
A primeira é a figura do próprio presidente. Neste caso, Bolsonaro
vale-se da autoridade de quem ocupa o mais alto cargo da República para
sustentar suas “teses”, como ocorreu em suas inúmeras postagens defenden-
do a cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19, mesmo sem
qualquer estudo que comprovasse a eficácia dessas substâncias e a despeito
da gravidade dos possíveis efeitos colaterais.
A segunda autoridade é encarnada pelos especialistas ideologicamente
próximos a Bolsonaro, cujas falas e posicionamentos corroboram seu ponto
de vista. Denominamos aqui de “especialista” aquele narrador ao qual é atri-
buído um “saber” específico ou técnico comumente outorgado àqueles que
ocupam determinadas posições sociais ou profissões de prestígio (médicos,
professores, jornalistas, empresários etc.) e que, em função de seus conheci-
mentos e/ou experiências profissionais, possuem acesso a informações que
164
a maioria não tem. São bons exemplos disso os depoimentos de Henrique
Prata11, diretor do desconhecido Hospital Amor de Barretos, publicado por
Bolsonaro no Facebook em 22 de setembro de 2020 ou da médica Raíssa
Soares12, que foi protagonista de postagens de Bolsonaro depois de ganhar
fama nas redes sociais por seus vídeos em defesa do chamado “tratamento
precoce” da covid-19, com medicamentos à base de cloroquina e hidroxiclo-
roquina, contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde
(OMS). Para reforçar ainda mais seus argumentos de autoridade, o presidente
também fez lives de seus encontros com a “Associação Médicos pela vida”13,
que chegou a pagar um anúncio publicitário em jornais de circulação nacional
divulgando igualmente um “tratamento pré-hospitalar” contra a covid-19.
Pesa, no caso dos especialistas, o ethos de pessoa “séria”, “respeitada”, “com-
prometida” com o que faz e com os outros, que sabe e pode discutir sobre o
tema e que, além disso, se apresentam como testemunhas de “fatos reais”,
como nos vídeos da Dra. Raíssa, nos quais costuma aparecer em trajes de
atendimento aos pacientes em frente a um posto de saúde (Figura 1).
165
A terceira figura de autoridade recorrente e de grande engajamento nas
postagens de Bolsonaro ao longo da pandemia remete a um tipo de falácia
que, nos estudos retóricos, é denominado de “apelo a uma autoridade anô-
nima” (Mateus, 2021, p. 125). Trata-se, neste caso, de procedimentos que
visam sustentar que algo é verdadeiro ou legítimo através da apresentação de
provas não identificadas de supostos estudos ou pesquisas, ou declarações,
depoimentos e opiniões de sujeitos desconhecidos que se apresentam, cada
um a seu modo, como referências a respeito do assunto do qual estão falando.
No que se refere a este aspecto, identificamos, no discurso de Bolsonaro,
dois tipos recorrentes de autoridades anônimas.
166
o nome, interpelando os seus destinatários, alertando-os contra os riscos
da “desinformação” propagada pela mídia tradicional, que estaria, segundo
seu depoimento, criando pânico com relação à pandemia de covid-19: “Eu
continuo no posto atendendo (...) quem me conhece sabe que meu interesse
maior não tem nada a ver com política (...) mas eu tenho honestidade para
conversar com vocês no olho a olho e dizer: gente, cuidado com a mídia, a
mídia não tem interesse na população, a mídia não costuma se preocupar com
pobre”. Em outro vídeo, entre as dezenas compartilhados pelo presidente,
um suposto empresário (Figura 3, à direita), que não se identifica e nem a sua
empresa, xinga governadores, convoca o povo a desobedecer a suas decisões
e chora afirmando que vai ter que demitir 22 dos seus 24 empregados por
causa das medidas de fechamento do comércio.
167
Figura 5 – Postagem no perfil de Bolsonaro no Facebook em 24/02/2021.
168
central de abastecimento mineira desmentiu imediatamente o testemunho, o
que obrigou Bolsonaro a apagar o vídeo de seus perfis e pedir desculpas pelo
erro. Quando reconheceu o erro, Bolsonaro já havia, no entanto, emprestado
a credibilidade de presidente da República a um tipo de discurso que circulou
e foi compartilhado amplamente antes de ser denunciado como notícia falsa.
Mesmo sem ter sua fonte identificada ou sua veracidade confirmada, vários
outros vídeos como estes, protagonizados por anônimos, foram publicados
e compartilhados pelos perfis de Bolsonaro com testemunhos, opiniões,
crenças e valores a serviço de sua argumentação falaciosa.
169
“mal” (a China, as elites globalistas, governadores e prefeitos que fecharam
os comércios etc.). As mensagens das pessoas comuns apelam, paralelamente,
para a construção de um actante coletivo supostamente “dono da verdade”,
o qual é chamado a agir para desmascarar as mentiras dos outros e difundir,
quase religiosamente, sua palavra. Este efeito é potencializado quando tais
mensagens são endossadas pelo líder político populista que, ao compartilhá-
-las, se junta à massa de seguidores.
Um traço comum às três figuras de autoridades mobilizadas por Bol-
sonaro para sustentar seus argumentos – ele mesmo como presidente da
República, os especialistas com nome e sobrenome e, por fim, as autoridades
anônimas, seja os especialistas não identificados, seja as pessoas comuns – é
o discurso em primeira pessoa. Empregado de modo frequente nos vídeo-
-selfies, este recurso retórico esteve também associado à produção de notícias
falsas que produzem efeito de verdade, sobretudo, pela inscrição explícita de
um “Eu” no enunciado. Este “Eu”, ainda que anônimo, apresenta-se como
um fiador de uma verdade aparentemente confiável, cujo relato em primeira
pessoa parece conferir, por si só, uma aura de autenticidade àquilo que ele
enuncia. Muitas vezes, esse relato assumia a forma de um verdadeiro teste-
munho, em suas mais variadas manifestações, o que confere ainda mais força
à peça desinformativa construída com base no argumento de autoridade.
Nestes casos, o regime de crença estabelecido depende, por um lado, de uma
tomada de posição em relação àquilo que é informado e, por outro, da con-
fiança do destinatário naquele que fala. A tomada de posição é, geralmente,
sustentada pela moralização daquilo que se narra com base em um acordo
prévio porque a persuasão apoia-se, antes de tudo, na partilha de valores.
Em inúmeras postagens de Bolsonaro, como nas exemplificadas acima,
o discurso em primeira pessoa é praticamente indissociável da interpelação.
A começar porque, se existe uma primeira pessoa marcada no enunciado
(um narrador) há também, logicamente, uma segunda pessoa a quem ela se
dirige (narratário). Basta tão somente a explicitação do “eu” para que o “tu”
para o qual este fala seja igualmente inscrito no enunciado de modo direto
ou não. Nos discursos interpelativos, esta segunda pessoa costuma também
ser explicitada por meio de vocativos. Há, geralmente, um chamamento ou
convocação ou diretos ao destinatário da comunicação que resulta no efeito
de proximidade e envolvimento almejados pelas postagens. Essa interpelação
assume, em boa parte dos conteúdos analisados, a forma de apelos permea-
170
dos por um senso de urgência, que incita um posicionamento imediato do
destinatário. Nos vídeos, em particular, o arranjo enunciativo da interpelação
que responde à lógica do “eu-tu”/“eu-vocês” é reafirmado pela linguagem
visual, em particular pelo olhar direto para a câmera.
Repleto de locuções assertivas e exortativas tais como “reajam”, “olhem
aqui”, “estou te falando”, tais peças possuem uma força ilocutória (Austin,
1975) capaz de trazer seus destinatários dentro da história que contam,
atribuindo-lhes um papel de co-testemunhas e co-protagonistas da narrativa.
Desse modo, o indivíduo é levado a crer que tem um lugar e um papel a
cumprir nesse jogo discursivo, ainda que seja propagando com a mesma ime-
diaticidade o conteúdo recebido. O destinatário é, de certo modo, intimado
pelo destinador a se posicionar e agir. Essa interpelação direta, constituída
por um “eu” que fala a um “tu” – que se manifesta mais comumente entre
nós como um você – favorece também a identificação deste último com o
primeiro, reforçando o elo de confiança no destinador da comunicação, que
sustenta os argumentos de autoridade.
O ARGUMENTUM AD POPULUM
171
suas lives semanais e, de modo mais geral, na sua estratégia de comunicação
política nas redes sociais15.
O APELO À IGNORÂNCIA
172
Figura 7 – Postagem no perfil de Bolsonaro no Facebook em 16/05/2020.
A FALSA DICOTOMIA
173
da austeridade nos gastos públicos, o governo desconsiderava na época, a
possibilidade de adotar um programa de transferência de renda que só viria
mais de oito meses depois e após muita pressão social. Esta falsa dicotomia
chegou a ser apresentada em uma campanha institucional da Secretaria de
Comunicação do governo, cujo slogan era “O Brasil não pode parar”21,
que acabou sendo vetada pela Justiça por contrariar as recomendações de
distanciamento social das autoridades sanitárias22.
A GENERALIZAÇÃO INDEVIDA
174
Figura 8 – Postagem no perfil de Bolsonaro no Facebook em 25/07/2020.
175
meiro ano da pandemia para responsabilizar governadores e prefeitos pelo
agravamento do desemprego e a crise econômica que já vinham, mesmo
antes, sendo enfrentados pelo Brasil. Como é próprio da ignoratio elenchi,
Bolsonaro se defendia da sua inoperância no enfrentamento à pandemia,
desviando o foco da tese em debate: a necessidade ou não das medidas de
distanciamento social.
Em muitas postagens de Bolsonaro, a igonoratio elenchi recorria também
a outro procedimento argumentativo, o argumentum ad consequentiam, que,
como a expressão latina sugere, defende uma determinada ação levando em
conta os efeitos que ela produz. Quando levado a extremos, como Bolsonaro
fazia ao defender o fim das medidas de distanciamento para que houvesse
a retomada da economia, os argumentos por consequência podem justificar
posições condenáveis, como a aceitação do risco de contágio por um vírus
extremamente letal antes da chegada das vacinas para, no plano individual,
garantir o emprego e, no plano mais geral, não prejudicar a economia do país.
Com muita frequência, o emprego da igonoratio elenchi era sustentado pelo
argumento ad hominem, aquele que consiste em atacar quem argumenta e não
o argumento. A máxima de que “a melhor defesa é o ataque” é, aliás, um
ditado popular seguido à risca pelo presidente desde sua campanha eleitoral.
Nos embates políticos em torno da pandemia, o governador de São Paulo,
João Doria, um dos mais ferrenhos críticos do governo federal, chegou a
ser tratado pejorativamente por Bolsonaro em uma das suas transmissões
no Facebook como o “calcinha apertada”, fazendo insinuações sobre sua
masculinidade pelo modo como ele se vestia25. Os xingamentos não se limi-
taram aos adversários políticos, mas a jornalistas e a todos que cumpriram
as medidas restritivas a quem ele qualificou de “idiotas”26.
Um outro caso de ignoratio elenchi que fez uso do argumento ad hominem
foram os inúmeros ataques ao Supremo Tribunal Federal por meio dos quais
Bolsonaro procurava justificar sua omissão. Como as medidas de distancia-
mento social eram impopulares, ele insistentemente alegava que o Supremo
Tribunal Federal havia decidido que a responsabilidade por tomar as decisões
não era do governo federal. O argumento falacioso foi repetido a tal ponto
que o STF se viu obrigado a reagir, de maneira inédita em sua história27,
acusando o presidente de propagar uma informação enganosa em um vídeo
divulgado em suas redes sociais em 24 de dezembro de 2021, no qual faz
uma alusão à frase atribuída ao ministro da propaganda do regime nazista,
Joseph Goebbels, de que uma mentira contada mil vezes se torna verdade:
Uma mentira repetida mil vezes vira verdade? Não. É falso que o Supremo
tenha tirado poderes do Presidente da República de atuar na pandemia. É
176
verdadeiro que o STF decidiu que União, Estados e Prefeituras tinham que
atuar juntos, com medidas para proteger a população. Não espalhe fake news!
Compartilhe as #VerdadesdoSTF. (Transcrição de trecho do vídeo publicado
pelo STF em 24/07/2021 nas suas redes sociais)
177
efeitos. Quando as práticas políticas são sustentadas pela polarização acirrada
de pontos de vista, o conhecimento de retórica, que tem merecido pouca
atenção, precisa ser considerado também um dos caminhos para enfrentar
o amplo processo de “desordem da informação”29.
É fato que, mesmo alguns anos antes da explosão das infecções pelo
novo coronavírus, vivenciou-se, ao redor do mundo, um verdadeiro boom de
desinformação, fomentado, sobretudo, pelo avanço de teorias da conspiração
de todo gênero. Com a pandemia, o fenômeno ganhou proporções ainda
mais significativas e, no Brasil, adquiriu um caráter mais particular, graças à
atuação do próprio presidente da República como um dos principais agentes
da desinformação.
Para fazer frente a este surto desinformacional, a estratégia mais utilizada
na esfera do debate público e do jornalismo tem sido o chamado debunking.
De acordo com o Oxford Dictionary, fazer debunking significa mostrar “por
que uma ideia ou uma crença são falsas e por que não são tão boas quanto eles
acham que é”. Isso costuma ser feito, via de regra, por meio da apresentação
de dados objetivos e argumentos lógico-racionais, utilizados para confutar
qualquer texto, fala, mensagem e discurso não fundados em evidências devida
e cientificamente comprovadas.
O melhor exemplo de debunking é o trabalho desenvolvido pelas agên-
cias de fact-cheking (checagem de fatos), cuja rotina se resume a desmontar,
passo a passo, as peças desinformativas que circulam no submundo das redes
sociais. Trata-se de uma verdadeira operação de desconstrução textual de
cunho quase jurídico: os checadores apresentam provas e contraprovas que
mostram por que mensagens de texto, áudio, fotos e vídeos que recebemos
em nossos celulares, por exemplo, são falsos, exagerados, distorcidos, e as-
sim por diante, para usarmos algumas das etiquetas utilizadas pelas próprias
agências para rotular a desinformação.
Embora necessárias, essas ações enfrentam o problema a posteriori.
Porém, o que nos parece mais importante é pensar em como agir a priori,
evitando o fazer persuasivo dos discursos enganadores. Diversos são os
estudiosos que se debruçaram, ao longo das primeiras décadas do século
XXI, sobre a literacia midiática (Buckingham, 2019). Institucionalmente,
iniciativas desta natureza têm sido especialmente promovidas por órgãos
internacionais como a UNESCO, que produziu manuais de aprendizagem
e ensino de crítica da mídia (Grizzlie et al., 2021).
Entre os diversos projetos nesse sentido vale lembrar também os que
foram desenvolvidos por Sander van der Linden e Jon Roozenbeek, pro-
fessores da Universidade de Cambridge, e suas equipes. No âmbito de suas
178
pesquisas sobre os métodos de combate à desinformação, eles produziram
dois videogames, cujo escopo é neutralizar a má informação antes de sua
difusão. No primeiro, Bad News (2018), o jogador cumpre o papel de um
verdadeiro profissional da desinformação, o qual deve construir e divulgar
uma série de notícias falsas e fantasias de conspiração. O segundo, Go viral
(2020), encomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), retoma
a mesma estrutura narrativa do primeiro, focando, desta vez, sobre a desin-
formação relativa às vacinas contra a covid-19. A estas operações deu-se o
nome de prebunking, justamente porque procuram desmontar preventivamente
as peças desinformativas, ensinando a reconhecer suas estratégias.
Entretanto, no âmbito da literacia midiática e do prebunking predomina
ainda um tipo de abordagem “sintomática” – no sentido literal do termo
–, que se concentra na identificação de sinais e marcas que podem ajudar a
desmascarar a inverossimilhança de uma mensagem: a ausência de fontes, a
falta de autoria, erros de português, títulos demasiadamente apelativos e assim
por diante. Apesar de serem uma das ferramentas de intervenção identificadas
pela UNESCO para prevenir os impactos sociais da desinformação (Grizzlie
et al., 2021, p. 214), as teorias da linguagem e do discurso têm sido ainda
pouco utilizadas para este fim, entre elas a semiótica discursiva e narrativa e
a retórica, que nos interessa aqui destacar.
Fiorin (2007) defende que, como outras teorias do discurso, a semiótica,
deve “herdar a retórica no estudo dos procedimentos discursivos”, desde
que estes sejam descritos por meio de princípios mais amplos e em acordo
com as suas bases teóricas. Entre as aquisições da retórica que devem ser
incorporadas à semiótica, segundo o autor, está justamente a dimensão
argumentativa presente nos enunciados. Quando o problema a enfrentar é
o dizer verdadeiro ou o fazer-parecer-verdadeiro, os procedimentos repertoriados
pela retórica vão bem ao encontro daquilo que a disciplina elege como um
dos seus pilares – “descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz
para dizer o que diz” (Barros, 1994, p. 7). Por se ocupar dos procedimentos
discursivos que possibilitam ao enunciador produzir efeitos de sentido que
pretendem fazer o enunciatário crer naquilo que foi dito, a retórica reforça
o aparato teórico-metodológico da semiótica que, igualmente, trata da cons-
trução da veridicção e da confiança, questões centrais para entendermos
melhor a eficácia do diverso leque de informações enganosas.
Para combater a desinformação não precisamos apenas saber reconhecer
as marcas de um dizer falso, mas, antes disso, as formas que regem o dizer de
modo geral, seja falso ou verdadeiro, pois são elas que definem o campo do
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debate público dentro do qual temos que nos deslocar para formar nossas
opiniões e crenças. Trata-se, nessa perspectiva, de democratizar os conheci-
mentos sobre os modos através dos quais os discursos são construídos, en-
tendendo como dizem o que dizem e como, afinal, agem para nos convencer
e comover. Nessa batalha, a semiótica e a retórica podem desempenhar um
papel importante, pois nos dão as lentes teóricas necessárias para enxergar as
bases e os mecanismos que regem os processos de produção e interpretação
do sentido. E, se o que está em jogo na política é, ontem e hoje, os sentidos
que se revelam e se escondem nos discursos, a retórica e a semiótica, de
mãos dadas com outras teorias da linguagem, podem contribuir com seus
saberes e ferramentas na construção de uma nova pedagogia da informação,
funcionando, nas palavras de Greimas (1995), com uma verdadeira “terapia
do social”. Este capítulo, bem como os outros que compõem o livro, tem
também esse escopo e desejo.
180
REFERÊNCIAS
AMOSSY, Ruth. A argumentação no discurso. Trad. Angela M.S Corrêa et. Al. São
Paulo: Contexto, 2020.
AUSTIN, John. L. How to do things with words. Oxford: Oxford University Press, 1975.
BUCKINGHAM, David. The Media Education Manifesto. Cambridge: Polity Press, 2019.
181
FIORIN, José Luiz. Argumentação. São Paulo: Contexto, 2015.
__________. Sobre o sentido II. Ensaios semióticos. Trad. Dilson F. Cruz. São Paulo:
Nankin/Edusp, 2014.
182
NOTAS
https://www.istoedinheiro.com.br/bolsonaro-mantem-discurso-negacionista/
https://oglobo.globo.com/opiniao/comeca-chegar-bolsonaro-conta-do-
negacionismo-1-24854637
https://noticias.uol.com.br/videos/2021/02/04/negacionismo-de-
bolsonaro-sobre-covid-influenciou-pessoas-diz-marcelo-ramos.htm
h t t p s : / / w w w. e m . c o m . b r / a p p / c o l u n i s t a s / b a p t i s t a - ch a g a s - d e -
almeida/2021/02/27/interna_baptista_chagas_de_almeida,1241554/
bolsonaro-insiste-no-negacionismo-da-covid-e-em-culpar-governadores.
shtml
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2021/02/governadores-
criticam-campanha-de-bolsonaro-contra-lockdown-e-falam-em-insensatez-
e-negacionismo.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2021/02/governadores-
criticam-campanha-de-bolsonaro-contra-lockdown-e-falam-em-insensatez-
e-negacionismo.shtml Acesso em: 28 fev. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/10/um-manda-
o-outro-obedece-diz-pazuello-ao-receber-bolsonaro-apos-crise-da-vacina.
shtml
https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/01/29/policia-federal-abre-
inquerito-para-investigar-ministro-eduardo-pazuello.ghtml
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,inquerito-pode-levar-
pazuello-a-perder-posto-e-patente,70003616952 Acesso em: 28 fev. 2021.
183
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/03/05/novo-
epicentro-brasil-tem-30-das-novas-infeccoes-no-mundo-em-24-horas.htm
Acesso em: 28 fev. 2021.
4- Cf. https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2020/10/estudo-
ufrj-comprova-efeito-bolsonaro-propagacao-coronavirus/
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/10/efeito-bolsonaro-
sobre-alta-nos-casos-de-coronavirus-surpreende-pesquisadores.shtml
Acesso em: 28 fev. 2021.
7- Como mostra Fiorin (2014), no seu estudo sobre as figuras de retórica, estas
não podem ser tratadas como mera “ornamentação”, mas como operações
enunciativas que visam intensificar o sentido de algum elemento do discurso
e, nesta perspectiva, possuem também uma dimensão argumentativa.
184
8- Na metalinguagem semiótica, a manipulação corresponde a um regime de
interação no qual um busca levar o outro a fazer alguma (um fazer-fazer),
sustentado por uma relação contratual entre eles baseada no querer e no
dever fazer, bem como no saber e poder fazer.
9- Cf., por exemplo, as discussões realizadas neste livro, sobretudo, nos capítulos
“Paixão e presença” e “Caos, conspiração e messianismo”.
10- Recuperamos aqui uma parte da discussão mais detalhada sobre estratégias de
desinformação encontrada em Demuru; Fechine e Lima, 2021.
15- Cf. Uma discussão mais aprofundada sobre este tema encontra-se no capítulo
“O homem comum”.
185
20- Cf. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/23/mp-de-
bolsonaro-revolta-a-web-ou-morremos-de-coronavirus-ou-de-fome.htm.
Acesso em: 10 abr. de 2022.
https://www.meioemensagem.com.br/home/comunicacao/2020/03/28/
justica-proibe-campanha-o-brasil-nao-pode-parar.html. Acesso em: 10 abr.
2022.
25- https://www.poder360.com.br/brasil/bolsonaro-chama-doria-de-
calcinha-apertada-e-critica-viagem-a-miami/ Acesso em: 10 abr. de 2022.
26- https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-critica-quem-faz-
isolamento-tem-idiotas-ate-hoje-em-casa/ Acesso em: 10 abr. de 2022.
27- https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/28/stf-reage-a-declaracao-
inveridica-de-bolsonaro-sobre-gestao-da-pandemia.ghtml Acesso em: 10 abr.
de 2022.
186
Este livro foi composto em Garamond corpo 12
e impresso sobre papel Pólen Soft 80g/m2,
para a Confraria do Vento, em agosto de 2022.