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WAIWAI YANA KOMO

Rotas de transformações ameríndias:


Um estudo de caso na região das Guianas

ALEXANDRE ANICETO DE SOUZA


É com grande satisfação que o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), da
Universidade Federal do Amazonas (UFAM), traz a público este livro, selecionado por comissão como um
dos melhores trabalhos defendidos ao longo do último quadriênio (2017-2020) em nosso Programa.

Ainda que um pouco atrasado pelos enfrentamentos da pandemia de covid-19 – tínhamos planos
de publicar em 2020 – estamos certos de que chega em boa hora. De resto, expressa-se com altivez mais
uma grande conquista do nosso PPGAS afirmando a antropologia na região Norte do Brasil.

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), que, por


meio da compreensão e apoio ao redirecionamento dos recursos (via edital POSGRAD-2019), nos per-
mitiu esta publicação.

Prof. Dr. Carlos Machado Dias Junior


Coordenador do PPGAS/UFAM
Gestão 2019-2020
WAIWAI YANA KOMO
Rotas de transformações ameríndias:
Um estudo de caso na região das Guianas

ALEXANDRE ANICETO DE SOUZA


Ficha Catalográfica elaborada por Rita Cintia Pinto Vieira - CRB 11/718

S729w Souza, Alexandre Aniceto de


WaiWai yana komo: rotas de transformações ameríndias: um estudo de caso na
região das Guianas / Alexandre Aniceto de Souza. – Manaus: EDUA, 2021.
74 p.; il. color.; 21 cm x 29,7 cm.

ISBN 978-65-5839-040-4

1. Índios WaiWai - Guiana Inglesa - Brasil. 2. Comunidades WaiWai. 3. Povos


ameríndios. 4. Etnologia indígena. I. Título. II. Série.

CDU 39(881:811)

Copyright © 2021 Fundação Universidade do Amazonas


Reitor: Sylvio Mario Puga Ferreira
Editor: Sérgio Augusto Freire de Souza

Imagens de capa: I) Imagem Drone MAVIC-PRO, Carlos M. Dias Jr., Comunidade Mapuera, 2018.
II) Niels Fock, 1963.

Projeto Gráfico e Diagramação: Felipe Costa


APRESENTAÇÃO

Apresentar este livro é difícil e estimulante. Por muitas razões. Em especial, pelo que envolve
um dos maiores desafios da antropologia contemporânea no Brasil: a presença dos alunos indígenas na
pós-graduação. Olhando para uma pequena parte da disciplina, a etnologia indígena produzida nas terras
baixas sul-americanas, acredito que é consenso entre os antropólogos afirmar que os alunos indígenas em
nossos programas são importantes, sobretudo, para além de certa justiça social. Eles podem mesmo trazer
grandes contribuições e, assim sendo, devemos concordar também que é necessário revermos mais do que
os processos de seleção para lhes garantir o acesso.
Grandes são os desafios e as experiências acumuladas pelos programas da nossa área junto à CA-
PES (antropologia e arqueologia), mobilizados para a abertura aos alunos indígenas, porém, uma troca
mais substantiva dessas experiências ainda aguarda um direcionamento institucional. Afinal, partilhar a
ideia de que é preciso fazer mais do que “abrir as portas” dos nossos programas implica levantar complica-
das, necessárias e justas questões: Qual formação oferecer? Qual produto esperar? Qual avaliação a fazer?
Qual o destino dos egressos? Essas e outras perguntas carecem de respostas institucionais elaboradas à luz
das experiências isoladas, como esta que o livro de Alexandre nos traz.
Conheci Alexandre ainda criança, em 1997, na comunidade WaiWai do Jatapuzinho, quando
iniciei a pesquisa de campo para meus estudos na pós-graduação, período em que acumulei cerca de dois
anos de convívio com os WaiWai, na Terrra Indígena Trombetas/Mapuera. A decisão de trabalhar com
os WaiWai foi um tanto aleatória, e concentrar meu campo na comunidade do Jatapuzinho mais ainda.
Seja como for, acabei indo parar em um lugar ideal para tratar de questões associadas às transformações
socioculturais vividas por aqueles coletivos associadas ao processo de “evangelização”, ou “waiwaização”,
como bem observou a antropóloga Catherine Howard (1993). Aquele aglomerado, a comunidade do
Jatapuzinho, havia sido instituído para atrair os últimos “enïhnï-komo”/“povo não visto”, os Karapawyana.
Cerca de 350 pessoas viviam no aglomerado quando cheguei, em abril de 1997, entre eles os Kara-
pawyana sob liderança de Palhareka. Uma pequena trilha, distante cerca de 200 metros, mantinha o grupo
do velho líder afastado dos demais moradores. Não tive muita oportunidade de conversar com eles, por mais
de uma razão. Não falavam nada de português e, mesmo quando tentei ajuda de algum intérprete WaiWai, a
comunicação era muito difícil e minhas perguntas mal entendidas. No fim dos meus trabalhos de campo, já
em 2003, quando conseguia entender um pouco a língua WaiWai, Palhareka havia se mudado com seu grupo
para a comunidade do Cobra e não pude fazer nada mais do que apenas registrar aquele deslocamento. Fiquei
com uma triste certeza de não ter conseguido registrar minimamente as muitas histórias do velho Palhareka e,
em especial, seu ponto de vista sobre o convívio no aglomerado WaiWai. Não podia imaginar que algum outro
antropólogo teria a chance de o fazer, menos ainda que poderia ser um antropólogo WaiWai.
O tempo passou, defendi meu doutorado em 2006 e vim morar em Manaus, contratado pela Uni-
versidade Federal do Amazonas para uma inspiradora tarefa. Em um grupo de dez novos antropólogos,
viemos montar um programa de pós-graduação em antropologia no Amazonas. Uma das razões que me
pareceu interessante era o fato de estar mais próximo dos WaiWai e poder, de algum modo, dar continuidade
aos meus interesses de pesquisa entre eles. Mas nada disso aconteceu. Acabei sendo envolvido por outras
demandas e passei dez anos sem retornar aos WaiWai. Já não pensava mais em um possível retorno, até o dia
em que fui surpreendido em minha sala por um jovem WaiWai. Era Alexandre, que havia sido aprovado no
processo de seleção do nosso programa e estava ali para me pedir orientação em seu mestrado. Não podia
recusar e, tampouco, imaginar que ali seria meu retorno de pesquisa entre os WaiWai.
Um retorno bem diferente, noutro formato mesmo. “Cruzado”, para usar a ideia da “nova” antro-
pologia que a experiência no PPGAS/UFAM havia me inspirado a pensar, em parceira com meu amigo e
colega Gilton Mendes (DIAS JR.; SANTOS, 2009). Agora não era mais apenas um pesquisador com a
máquina fotográfica, o caderno de campo e aquelas perguntas "sem sentido". Eu era também orientador
de pesquisador WaiWai. Com entusiasmo, pude retomar uma questão que me atravessou o mestrado e o
doutorado, ao longo de dez anos, sem que eu pudesse me sentir minimamente satisfeito em dar uma reposta
clara. Eu havia tentado, de muitas formas, explicar aos meus amigos WaiWai o que era um antropólogo,
qual o sentido daquelas coisas que me traziam de tão longe. Agora eu teria a chance de voltar à questão, de
um modo indireto, por meio da orientação de Alexandre, que poderia melhor do que eu explicar. Tarefa que
não é simples, sabemos, para nenhum antropólogo. Em especial para os que acreditam que, menos do que a
resposta, mais importa uma boa pergunta. A exemplo das minhas dificuldades com o velho Palhareka, apesar
de todo o esforço dele e meu, não consegui fazer perguntas claras.
Alexandre nasceu em dezembro de 1989, na comunidade do Jatapuzinho, Terra Indígena Trom-
betas/Mapuera. Ingressou no PPGAS/UFAM em 2017 e defendeu seu mestrado em setembro de 2018.
O presente livro, resultado da dissertação com as devidas alterações, chega em boa hora e nos deixa muito
orgulhosos. Trata-se do primeiro WaiWai a receber um título de mestrado em antropologia social, cujo
trabalho é uma bela contribuição para a literatura especializada sobre a região das Guianas. É preciso
informar que a construção do etnônimo WaiWai, entendido como uma identidade coletiva, é muito
semelhante ao que observa na quase totalidade dos demais povos ameríndios. Foi construído a partir do
convívio permanente com não índios. No caso específico, uma história iniciada em 1948 com a chega-
da de três irmãos, linguistas e missionários norte-americanos, em uma casa coletiva nas margens do rio
Essequibo, então Guiana Inglesa. Primeiro “converteram” Ewka, o líder da casa, um jovem xamã com
renomada reputação entre outras casas. A partir desse fato, no qual se deu o “bem-sucedido” processo de
evangelização do jovem Ewka, teríamos a “conversão” dos WaiWai.
Aquele jovem xamã era o avô de Alexandre. A história da “conversão” de Ewka e seus pares, iniciada
há 70 anos, revela um processo complexo de transformações que os missionários chamaram de “evangeli-
zação”. Processo este que os antropólogos passaram a chamar de “waiwaização”, a partir da etnografia da
antropóloga Catherine Howard (1993). Naquele momento, os moradores das casas coletivas aprendiam
que eram “cristãos” e, ao mesmo tempo, “WaiWai”. Rapidamente os próprios índios formaram-se “pastores”
e passaram a conduzir o processo. Nesse contexto, a história sempre foi passada para as novas gerações na
versão da “evangelização”, e os jovens de hoje, de certo modo, desconhecem a história de seus avós antes de
se “converterem”. Alexandre era mais um desses jovens e, como não podia ser diferente, ficou perplexo ao
tomar conhecimento de sua própria história a partir dos seus estudos no mestrado em antropologia.
Por sorte do acaso, ao longo de sua pesquisa, teve oportunidade de conversar com sua avó Ahmori
(esposa de Ewka), ainda muito lúcida, que faleceu pouco depois de narrar para o neto sua versão sobre a
história de Ewka. Mas não só, sorte dobrada, Alexandre também conseguiu conversar com o velho Palha-
reka, que, também, pouco antes de falecer, narrou-lhe sua versão sobre a história de Ewka. Palhareka era
o líder da última casa coletiva que Ewka havia atraído para viver junto aos “WaiWai”, em 1986, quando
iniciaram um novo aglomerado WaiWai, a comunidade do Jatapuzinho. E tem mais, Alexandre narra
também a viagem que realizou pela primeira vez, acompanhando um grupo de visitantes (pawanas) que
retornava para a comunidade do Mapuera depois de uma conferência religiosa na comunidade do Jata-
puzinho, encontro organizado pelas igrejas WaiWai, com apoio dos missionários não indígenas, para o
qual participantes se deslocam de suas aldeias, viajando por muitos dias, pelos rios e caminhos na floresta,
seguindo rotas realizadas por seus ancestrais há milênios.
A dimensão descritiva alcançada pela etnografia de Alexandre, dada pela língua nativa e por outras
qualidades, nos permite constatar que seu trabalho marca um novo momento para a literatura especializa-
da na região das Guianas, além de levantar também o debate sobre a presença indígena nos programas de
pós-graduação em antropologia e suas implicações. A experiência de Alexandre nos indica que o desafio
só está começando. E, além de estimulante, de quebra, trará novos ingredientes para repensarmos nossos
produtos (teóricos e metodológicos). Por fim, igualmente promissores parecem ser os efeitos do trabalho
entre os próprios WaiWai, nas aldeias. Sou grato por ter acompanhado os primeiros passos deste jovem
antropólogo WaiWai em sua carreira promissora. Este livro pode dizer melhor que eu a razão que tanto
anima. Seja para o já feito, seja para o que há de vir.

Carlos Machado Dias Jr.


Manaus, setembro de 2021.
WAIWAI YANA KOMO
Rotas de transformações ameríndias:
Um estudo de caso na região das Guianas
ALEXANDRE ANICETO DE SOUZA
Dedico este trabalho aos WaiWai, também aos
Karapawyana, Enxapu-Komo/“Povo Não Visto”.
Um coletivo humano que se transforma desde
o princípio e, a partir dos anos 1980, se juntou
aos WaiWai, se tornando os Karapawyana.

(Aos WaiWai)
AGRADECIMENTOS

Por meio desta meurixapu/escrita, venho agradecer cada um que tive comigo nesta caminhada de dias, noi-
tes, semanas… A todos que fizeram parte do meu trabalho, me incentivando a desafiar esse estudo e a conquistar
mais um objetivo, o de me tornar antropólogo. A experiência desse estudo para mim foi muito transformadora.
Para os WaiWai, a ideia de um indígena ser antropólogo não é uma coisa muito boa, mas passei a
acreditar que eles iriam entender e aceitar a minha pesquisa centrada no diálogo entre o universo WaiWai
e o mundo acadêmico. Descobri e afirmo para meu povo WaiWai que nós, como indígenas dentro da aca-
demia, temos a oportunidade de estudar, pesquisar e escrever sobre sua própria história. Agora podemos
também cruzar nossos conhecimentos indígenas, como WaiWai, com o conhecimento antropológico e,
depois disso tudo, retornar para oyeuton/casa com uma segunda visão que ajuda a enxergar melhor muitos
aspectos de nossa própria cultura e tudo que está em nosso entorno, refletindo sobre fatores do nosso
mundo e do mundo ocidental em que nós vivemos.
Foi um processo de aprendizado e maturidade profissional o percurso do mestrado, que culminou
neste livro. Um grande ritual de passagem, uma verdadeira transformação para mim, tanto como acadê-
mico como também enquanto um WaiWai em processo de conhecimento no mundo acadêmico.
E pela sensação de dever cumprido e pelo nível de satisfação pessoal e profissional, agradeço a
Deus, por ter me permitido escalar e alcançar o meu objetivo. Pelas tantas conquistas em minha vida,
acredito que, sem essa força sobre-humana, nada disso teria sido possível. Mesmo contra alguns WaiWai
que não queriam que eu estudasse antropologia, outros me deram incentivo e acreditaram na minha capa-
cidade, acreditam que somos capazes de levar o nosso conhecimento para fora. Sei que existem muitos que
acreditaram em mim e tenho certeza de que não decepcionarei ninguém, por isso tenho muito a agradecer.
Minha eterna gratidão à minha esposa Sydia e a meus filhos Aysha, Enzo e Hector, por existirem e ficarem
sempre ao meu lado, oferecendo forças para dar continuidade na construção desta obra.
Aos meus queridos pais Ñawñawa e Belinda, pelo incentivo e apoio em todos os momentos de
minha vida, ensinando-me que a coragem, a humildade e o bom caráter serão sempre virtudes funda-
mentais para conseguir realizar sonhos.
Agradeço também ao meu oyakrono/amigo e orientador Carlos Machado Dias Junior (Yawaka),
por sua paciência e respeito às minhas escolhas na definição de minhas orientações teóricas e também da
prática, por sua compreensão, possibilitando ampla discussão das minhas escolhas. Além de seu papel
brilhante de orientador no mestrado, acreditou na minha potencialidade para desenvolver esta pesquisa
complexa (e perigosa?) sobre os WaiWai. Tive todo o suporte necessário para que a dissertação que ora é
publicada como livro fosse concretizada a partir do meu esforço.
Agradeço, também, aos professores da Banca Examinadora de Qualificação do mestrado, Gilton
Mendes dos Santos e Rubens Caixeta de Queiroz, que muito contribuíram com brilhantes e importantes
pontuações de conhecimento para o melhor aperfeiçoamento de minha proposta de pesquisa.
Aos meus eternos amigos que estudaram comigo: Diego Darllison, Jaime Diakara, João Paulo Bar-
biere, Marla Elizabeth Reis, Jucelia Caroline, Romy Cabral Guimaraes, Dani Colares, Renato Fernandes,
Luana Villas, Natã, Bruno Caporrino, Ernesto Belo e aos amigos Tucanos, por existirem, pela amizade verda-
deira e pelo apoio nos momentos de aprendizagem na sala de aula, João Paulo, Dagoberto, Diakara, Gabriel,
Justino Tuyuka, Silvio Bará. E, resumindo, às turmas de Mestrado e Doutorado (2016-2017), pela amizade
construída, pelas discussões e reflexões antropológicas em sala de aula e pelos bons momentos de debate.
Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas –
PPGAS/UFAM e aos professores (em especial Raimundo Nonato e Ana Carla Bruno), pela receptividade,
por ter tido espaço fundamental de aprendizado teórico e metodológico, sobretudo, pelo desafio lançado
a mim de realizar uma Antropologia dialógica com conhecimento WaiWai. À secretária Franceane Corrêa,
sempre querida e prestativa. Aos pesquisadores do NEAI/UFAM. Também ao Conselho Nacional de De-
senvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq, por me conceder a bolsa para me manter em Manaus ao
longo do meu mestrado. E à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), pela
publicação do meu trabalho agora em livro e-book.
E, com muita gratidão, ao meu povo WaiWai, o povo da minha inspiração que por meio deste
busquei compreender suas dinâmicas, mudanças e transformações que vivemos. Agradeço às comunidades
WaiWai, que contribuíram e facilitaram a realização da minha pesquisa no Anauá, no Jatapuzinho e no
Mapuera. Prometo, ao final disso tudo, dar um retorno para os WaiWai sobre os conhecimentos adqui-
ridos na academia. A eles devo a possibilidade de compreensão dessa trajetória tão essencial para que eu
pudesse compreender melhor o universo WaiWai do qual faço parte.
Quero agradecer também muito especialmente à minha querida avó Ahmori, que faleceu pouco
antes de eu finalizar meu mestrado e nos seus últimos dias de vida, com coragem e sabedoria, contou-me
histórias que eu nunca tinha ouvido. Muito obrigado, minha querida avó. Descanse em paz eterna.
Do mesmo modo, meus agradecimentos especiais ao finado Pararaka, que também se foi pouco antes
de eu terminar meu mestrado. Ao Pararaka e aos meus amigos Wakara, Wayamari, Waykarawa e suas mulheres
Maxwo, Kuumi, Wepaxi. Pessoas queridas que, a partir de 1986, os WaiWai passaram a chamar de Karapauya-
na. Essas pessoas foram muito importantes para o desenvolvimento do meu trabalho, pois, a partir da amizade
que fiz com cada um deles, eu aprendi e comecei a entender melhor a história deste grupo: WaiWai.

Minha eterna gratidão.

Amñe Hara!
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Navegando pelos rios, a caminho da comunidade Mapuera


Figura 2: Partindo da comunidade Jatapuzinho
Figura 3: Acampamento de descanso, Marawa nherî
Figura 4: Mapa em rascunho, localização dos rios
Figura 5: Mapa em rascunho, localização e as margens da comunidade
Figura 6: Distribuição das casas
Figura 7: Posições das casas na comunidade
Figura 8: Yakayaka, a casa coletiva onde se inicou o processo de aglomeração
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
A pesquisa e a minha experiência de campo.......................................17
A partida pela caminhada na mata e a construção da pesquisa...........20
Seres da floresta no pensamento dos velhos.......................................23
Seres do rio antes da Waiwaização......................................................25
Os WaiWai no imaginário dos jovens de hoje.......................................26
Os WaiWai no imaginário dos adultos e velhos.....................................27
Os WaiWai no imaginário dos antropólogos..........................................28

CAPÍTULO I
Rotas de visitações. Do Jatapuzinho para o Mapuera: somos todos pawana.....34
As negociações para a viagem: na comunidade Jatapuzinho..................34
As recomendações do meu tio Kîrînau.................................................35
A palavra do pastor contra a minha pesquisa.......................................36
As conversas com os jovens amigos, parentes e conhecidos...............37
Os preparativos para a partida.............................................................38
Os acertos entre os líderes responsáveis pela viagem e os viajantes..........39
A viagem pela mata............................................................................40
Os grupos pelos caminhos...................................................................40
As paradas para refeições e descansos...............................................41
O igarapé Karapaw, lugar do velho Pararaka/Karapawyana.................42
A companhia dos velhos/pooco Xereu e Katwena................................42
As comunidades do caminho e a chegada ao Mapuera........................43
A comunidade Mapuera.......................................................................44
Pawanas.............................................................................................46
O retorno para Manaus e a organização do material............................47
Waiwaização: pawana segundo os WaiWai...........................................48
Pawana Pîn, o falso visitante................................................................50

CAPÍTULO II
Povo da água, história Karapawyana....................................................54
Os moradores da casa centro e seus vizinhos......................................57
A posição das casas em rotas de fuga.................................................59
Conflitos e estratégias de sobrevivência..............................................61
Os inimigos: Parîkwoto, Xerekma/Yanpotme/Waimiri-Atroari...................62
Povos misturados: as histórias a partir dos Karapawyana no igarapé Kikuó.........64
A chegada dos matadores WaiWai entre os Karapawyana..................................66

APONTAMENTOS FINAIS.........................................................68
Somos WaiWai, vocês que me chamaram de Karapawyana.................69

REFERÊNCIAS........................................................................73
INTRODUÇÃO
A pesquisa e a minha experiência de campo |
A partida pela caminhada na mata
e a construção da pesquisa
Seres da floresta no pensamento dos velhos |
Seres do rio antes da Waiwaização |
Os WaiWai no imaginário dos jovens de hoje |
Os WaiWai no imaginário dos adultos e velhos |
Os WaiWai no imaginário dos antropólogos |
16 WAIWAI YANA KOMO:
ROTAS DE TRANSFORMAÇÕES AMERÍNDIAS. UM ESTUDO DE CASO NA REGIÃO DAS GUIANAS

| Introdução

Podemos dizer que os WaiWai constituem um grupo de povos falantes do tronco linguístico Karib,
dispersos entre os dois lados da Serra do Acaraí, aquelas pessoas que viviam em casas coletivas espalhadas
entre os dois lados da Serra, divisa natural entre o Brasil e a Guiana. Esse mesmo povo, como informam os
registros, as etnografias e as fontes de documentos, vivia em casas coletivas chamadas Uumana, conectadas
por movimento antigo de “fusão/fissão”, “aglomeração/dispersão” entre corresidentes (HOWARD, 1993;
DIAS JR., 1999). A partir dos anos 1950, com a chegada dos missionários e o convívio permanente com
outros não índios, as casas coletivas foram agrupadas em grandes aglomerações que hoje são chamadas de
comunidades. Com essa chegada, muitas mudanças aconteceram e, apesar das relações e da dependência
das mercadorias do mundo dos brancos, ainda hoje aqueles povos mantêm as suas diferenças dentro e fora
do universo social maior e em constante transformação: os WaiWai.
Assim, podemos dizer que a cultura WaiWai é transformada desde seus antepassados e está situada
hoje em três estados do Brasil (Roraima, Pará e Amazonas) e em um território na Guiana. O rio Essequi-
bo, na Guiana, conhecido por ocupação milenar desses diversos povos, é um lugar importante para des-
crever esse processo de transformações. Foi lá que se deu o início do primeiro aglomerado, onde passaram
a construir uma ideia de que todos eram WaiWai (Cf. FOCK, 1963; DIAS JR., 2006).
Os WaiWai também são conhecidos como grupos que muito se interessam por expedições a ou-
tros grupos indígenas, próximos ou distantes, por meio de viagens que envolvem trocas de bens, rituais,
mulheres e guerras muito antigas (Cf. HOWARD, 1993). As histórias dessas migrações ainda hoje estão
vivas e acontecem transformadas na vida desses povos. Diante disso, proponho levantar alguns relatos a
partir de algumas pessoas importantes que vivem entre as terras indígenas WaiWai, Trombetas-Mapuera e
Nhamundá-Mapuera, para retratar essas rotas de visitações e trocas e, assim, abordar esse coletivo WaiWai.
Realizei uma viagem de campo acompanhando umas dessas rotas e descreverei com detalhes neste livro.
São temas importantes para a descrição dos WaiWai as formas de organizações da vida comuni-
tária. Formas que envolvem, além dos deslocamentos para outros lugares, as divisões de trabalho entre
os homens e mulheres para a produção das roças, das atividades coletivas na igreja, nas festas de Natal e
Páscoa, nas relações que mantêm com os parentes noutras comunidades, nas vilas próximas, também nas
cidades e capitais mais distantes.
É sabido que essas transformações ganharam um significado muito importante a partir dos anos
1950, quando os povos da região passaram a conviver permanentemente com os missionários e outros
não indígenas. Um dos resultados importantes foi a própria construção desse coletivo maior, chamado
WaiWai. Ele caracteriza o processo de transformações contínuo que alguns antropólogos chamaram de
“Waiwaização” ( HOWARD, 2001; DIAS JR., 2006, OLIVEIRA, 2010) e os missionários chamam de
“Evangelização” (HOWKINS, 1950).
Proponho abordar a construção desse processo de aglomeração no imaginário de alguns jovens,
adultos e velhos. A pergunta que faço é: o que é ser WaiWai? Quero mostrar que as viagens e os longos
deslocamentos eram (e ainda são) importantes na vida desses WaiWai, por muitas razões. Para fazer visitas
aos parentes; trocar mercadorias, presentes; casamentos; feitiços; guerras e vinganças; saberes, histórias e
festas etc. Essas coisas todas juntas, todas misturadas, estão no imaginário que eu quero abordar e descre-
ver sobre os WaiWai e, por isso mesmo, no meu imaginário também.
INTRODUÇÃO 17
A pesquisa e a minha experiência de campo

Duas ocasiões desses encontros que ainda hoje estão bem vivos na memória dos velhos, que eles
chamavam de Xorwiko e o Yamo, podem ser vistas como transformações do que hoje chamamos de Con-
ferências e Assembleias. As Conferências, organizadas por novas formas de lideranças, os “pastores WaiWai”,
são grandes encontros “evangélicos” que reúnem muitas conexões com planos perigosos da vida religiosa;
as Assembleias são encontros de tuxauas, que também representam essas novas formas de lideranças e, de
certo modo, se ocupam das questões políticas dos humanos (Cf. DIAS JR., 2008). Esses encontros muito
importantes eram realizados antes em épocas distintas que estavam associadas às estações do ano e aos seus
indicadores biológicos. Uma das diferenças importantes entre eles era que o Xorwiko era uma festa apenas
para os adultos, envolvia as roupas que escondiam as pessoas e era muito perigoso, pois estava presente a
figura de Kokenaw (FOCK, 1963, p. 172).
Portanto, a partir de alguns relatos, proponho levantar aspectos importantes do imaginário que
dão sentido ao coletivo WaiWai. Além disso, proponho também fazer uma descrição das conhecidas
rotas de deslocamentos que sempre realizaram, muito antes do convívio com missionários e outros não
indígenas. Essas rotas podem ser vistas como estrutura fundamental da vida desses povos e, por isso, são
importantes aqui também. Para falar dessas rotas, irei buscar a memória dos velhos e relatarei a viagem
que fiz acompanhando o grupo de parentes que retornavam para a comunidade do Mapuera, em julho de
2017, retornando de uma Conferência realizada na comunidade Jatapuzinho.
Acreditamos, meu orientador e eu, que tudo isso é muito importante. Cada ponto desses é impor-
tante para falar dos WaiWai, porque leva àquelas rotas antigas e à experiência vivida mais recentemente pelos
Karapawyana. Para minha felicidade e sorte, a viagem que fiz foi passando exatamente sobre os igarapés e os
locais onde meu avô Ewka havia-se encontrado, pela primeira vez, com os moradores do igarapé Karapaw,
aqueles que os WaiWai passaram a chamar de Karapawyana. Como veremos, eles não gostaram muito desse
nome, sobretudo depois que entenderam melhor o que significava aquela identidade. Tratei disso na minha
pesquisa de mestrado e vou mostrar aqui o que eu penso só agora. Depois que me propus retratar o imagi-
nário WaiWai a partir de um olhar da antropologia, mudei meu modo de ver tudo isso. Não quero dizer que
agora tenha a verdade, mas sim que tenho outras informações sobre a história dos meus antepassados e até
mesmo do meu próprio presente. Penso que todos devem saber disso, em especial meus próprios parentes.
Na introdução, acho importante eu falar sobre meus interesses de fazer um mestrado em antropo-
logia, dos aprendizados que tive no PPGAS/UFAM fazendo as disciplinas do curso, das ideias que eu tinha
e de como tudo isso foi sendo definido melhor em meus entendimentos com as orientações do professor
Carlos Machado. Falo também um pouco de algumas informações sobre os WaiWai (onde eles vivem, as ter-
ras, suas relações entre eles e os brancos nas vilas e nas cidades) e sobre os imaginários que foram construídos
sobre os WaiWai, pelos próprios WaiWai (jovens, adultos e velhos), pelos antropólogos também.

| A pesquisa e a minha experiência de campo

Minha experiência de campo, que pretendo pensar aqui a partir do modo que entendo a antropo-
logia, começa muito antes de eu ingressar na pós-graduação. De certo modo, tudo começa desde quando
passei a observar o mundo e fui aprendendo a ser o que sou com meu povo. É assim que eu entendo
e agora sei que a antropologia é um saber que todos os povos possuem e não é exclusivo dos brancos,
aprendendo as regras da comunidade local, falando a minha língua materna, trabalhando no coletivo, entre
18 WAIWAI YANA KOMO:
ROTAS DE TRANSFORMAÇÕES AMERÍNDIAS. UM ESTUDO DE CASO NA REGIÃO DAS GUIANAS

outras coisas comuns que fazem parte do meu cotidiano. Tudo isso faz parte de minha vida, mas não posso
ignorar que tudo mudou quando me coloquei na condição de pesquisador. Minha primeira experiência de
campo acadêmico, posso dizer, foi nas comunidades Anauá e Xaari, localizadas na Terra Indígena WaiWai
do Anauá, onde moro há mais de 10 anos. Foi ali que passei a fazer o exercício da antropologia acadêmica
de “transformar o familiar em exótico”, como descreveu o antropólogo Roberto da Mata (1987).
Quando iniciei meu mestrado, fui também fazer pesquisa na comunidade Jatapuzinho, na Terra
Trombetas-Mapuera, lá onde nasci e estive como antropológo no mês de julho de 2017. Essa comuni-
dade foi fundada em 1984, quando meu avô Ewka reuniu os últimos “Enîhnî-komo/índios não vistos”,
aqueles que foram chamados de Karapawyana pelos WaiWai. Seleciono alguns relatos importantes sobre
as histórias dos grandes encontros que os WaiWai realizam hoje, as Convenções evangélicas e as Assembléias
políticas, narrativas que estão na origem desse grupo que passou a ser identificado e a se autoidentificar
pelo etnônimo WaiWai.
Muitas coisas mudaram depois que passaram a ser chamados de WaiWai e depois que passaram
a conviver diretamente com os missionários, mas acredito que essas mudanças não surgiram apenas com
a chegada dos missionários. São transformações dirigidas pelos próprios índios WaiWai, como mostrou a
antropóloga Catherine Howard (1993). Por isso, diante desses assuntos históricos, pude entender e traduzir
esse processo de transformações a partir do que os WaiWai pensam, dizem e fazem hoje na sua vida cotidiana.
As informações sobre os WaiWai mostram que, durante muito tempo, eles vêm passando por um
processo de transformações e que, mais recentemente, passaram a construir uma ideia de “identidade ét-
nica”, associada ao novo modo de vida nos contextos aglomerados (HOWARD, 2001; DIAS JR., 2006).
Acho importante mostrar como todas essas mudanças foram conduzidas pelos próprios índios, que nunca
quiseram abandonar suas diferenças completamente, por isso até hoje, em muitas situações, eles não se
reconhecem como iguais, como se fossem um povo só, os WaiWai. Em muitas ocasiões, eles fazem questão
de marcar suas particularidades, são WaiWai, mas com muitas diferenças entre uns e outros.
Para abordar essas transformações, recortei com meu orientador alguns assuntos, que vou descrever
como as principais ideias e os pontos que achamos importantes levantar: as rotas de visitações que sempre existi-
ram entre esses grupos e as experiências dos últimos Enîhnî atraídos para viver em comunidade, os Karapawyana.
Quero mostrar as histórias de um Karapawyana nas palavras do velho líder Pararaka e de seus seguidores.
Quero falar um pouco também da minha dificuldade quando fui fazer a pesquisa de campo
no Jatapuzinho. Os problemas que tive quando informei para os meus parentes WaiWai que eu estava
fazendo mestrado em Manaus, estudando antropologia. Muitos não gostaram de saber que um WaiWai
escolhia estudar antropologia, porque eles acreditam que significa ficar estudando o passado. Antropólogo
é aquela pessoa que pede para contar como foi a história antiga, isso não é bom para o pensamento de
um jovem. Meu tio Kîrînau, que é líder e pastor, e minha tia Tukusunari não gostaram quando souberam
que eu estudava antropologia. Falaram para eu não ir adiante, que eu não devia ficar voltando ao passado,
perguntando coisas daqueles tempos em que vivíamos em guerras de feitiçarias e sem saber de Deus.
Outras especulações surgiram me desencorajando, como o líder e pastor da comunidade Jatapuzinho,
que também não gostou dessa ideia de um WaiWai estudar antropologia. Não era bom porque que logo eu
iria escrever as histórias do próprio WaiWai. O pastor também estava disposto a não deixar que eu participas-
se da viagem ao fim da Conferência com os moradores do Mapuera que retornariam para as comunidades de
lá pelos rios e picadas. Acompanhar aquela rota de viagem era importante para meu trabalho. O pastor disse
INTRODUÇÃO 19
A pesquisa e a minha experiência de campo

que eu tinha que entregar um documento de autorização para ele, alegando que eu ia fazer uma viagem até a
aldeia Mapuera com eles. Então, o primeiro desafio foi fazer essas lideranças entenderem o motivo da minha
ida e, com apoio da maioria das pessoas da comunidade, eu consegui fazer a viagem. O pastor me alertou:
“Tudo bem, dessa vez eu vou liberar para que possa fazer seu trabalho, mas só dessa vez.”
Todas essas regras que hoje estão presentes no cotidiano dos índios WaiWai são reinventadas
atualmente por parte dessas lideranças como forma de proteger a sua cultura do passado. Impedir que
um WaiWai acompanhe seus parentes em uma viagem faz parte do processo de transformações vividas
por nós, que eu quero entender durante essa caminhada toda. As lideranças obtiveram outra visão, outro
entendimento, diferente daqueles que antes tinham um pensamento mais “prático” nas épocas passadas.
Então esse foi meu primeiro obstáculo entre as lideranças WaiWai. Esse fato de um morador de uma co-
munidade ir como pawana/visitante para outra sempre foi perigoso e causou fofocas.
Portanto, faz parte da nossa história e é repassado para outras gerações. Para o líder maior hoje, o
pastor, tinha que ter um acerto anterior. Por eu ser jovem, os pastores diziam que tinha que ter um adulto
de acompanhante até eu chegar ao meu destino, mas, no entendimento de outras lideranças e pessoas,
não cabia essa regra que os novos líderes queriam impor para mim. Afinal, diziam que eu era WaiWai e
que tinha direito de visitar meus parentes em qualquer comunidade, sem ter que pedir permissão para a
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), como dizia o pastor.
Foi pensando nesse contexto histórico, de pessoas que seguem aquelas rotas com outras e conhe-
cem suas trajetórias, que resolvi acompanhar o retorno de alguns WaiWai para o Mapuera. Eles tinham
ido ao Jatapuzinho para participarem da Conferência. Ali eu estava escrevendo o meu trabalho de cam-
po sob um olhar WaiWai. Uma viagem que eu nunca tinha feito em minha vida até a Comunidade do
Mapuera e ali eu estava escrevendo o meu trabalho de campo, com um olhar WaiWai, em busca de um
entendimento acerca deles mesmos. A viagem durou dois dias de caminhada por dentro da mata e mais
cinco dias pelos rios Jatapuzinho e Mapuera. Segundo informações de um velho Xereu e um outro Katwe-
na, estávamos caminhando em uma das principais rotas dos antigos WaiWai.

Caminhos que nossos avós faziam quando ainda não conheciam Deus, e serviam apenas
o Kworokyam [espírito do mal]. (PORISWE, 2017, informação verbal).

Os dados construídos por mim no meio daquela caminhada como um pesquisador WaiWai e
estudante de mestrado em antropologia social chamavam muita atenção dos velhos. Cada informação
representava algo novo para mim.

Uma das rotas na festa de Yamo e Xorwiko nos tempos passados, e nos tempos em que
estávamos em outro contexto, umas dessas rotas era que nos saímos da cabeceira do rio
Mapuera, que durava quase um mês e duas semana, para participar desses encontros que
era obrigado pelos integrantes do grupo. Nesse caso saíamos da cabeceira e entramos no
afluente do rio até chegar ao Essequibo, na Guiana, para participar dessa festa que chama-
mos de Yamo. (TUUWI, 2017, informação verbal).

A conversa estava boa, mas sentimos que estávamos ficando para trás e deixamos para continuar
depois no acampamento. Nesse mesmo instante, um velho Xereu disse que a “caminhada que estávamos
fazendo era de um poñko/porcão do mato”, pois estávamos conversando e andando muito devagar. Parecia
20 WAIWAI YANA KOMO:
ROTAS DE TRANSFORMAÇÕES AMERÍNDIAS. UM ESTUDO DE CASO NA REGIÃO DAS GUIANAS

que alguém estava olhando a gente por trás da mata, e eu perguntei “quem está nós vendo?”, ao que ele me
respondeu “tooto/gente”. Pensei que estava se referindo aos “enîhnî-komo/índio não visto”. Nesse momento
da conversa, me falou que deveríamos passar adiante e chegar ao nosso destino.

Por isso devemos andar no passinho de pixko/jacamim para que esses tooto/gente não
ouçam nossos passos. Sem parar e sem cansar, para você chegar mais rápido e mais cedo
ao seu destino, todos nós sabemos disso, as mulheres Xereu e Katwena são muito fortes,
andam rápido demais como um pixko/jacamim assim como os homens também por
mais que os jamaxim estão pesados isso não interfere no nosso corpo, pois somos Xereu
e Katwena. (TUUWI, 2017, informação verbal).

Nessa viagem, que realizei como parte da minha pesquisa de campo, tive a oportunidade de buscar
mais informações que me pudessem auxiliar para explicar melhor esse coletivo que hoje chamamos de Wa-
iWai, aproveitando a oportunidade de examinar bem a história desse povo ao longo das transformações,
que, por muito tempo, reconstroem suas vidas cotidianas.

| A partida pela caminhada na mata e a construção da pesquisa

Com dois dias de caminhada na mata, chegamos ao nosso primeiro destino, o igarapé Iicawau,
que na língua dos Karapawyana significa pequeno afluente do rio Mapuera. Ali estavam as canoas e os
motores de popa que iríamos utilizar na longa descida pelo grande rio Mapuera. Essa viagem durou cinco
dias. Como já era esperado que fôssemos descer aquele rio, houve um momento em que o antomañe riñe/
líder da rota, um guia que conhecia o caminho, pediu que esperássemos uns aos outros, pois, além de
muitas cachoeiras onde teríamos que empurrar as 15 canoas carregadas, havia a preocupação do antomañe
riñe para que todos chegassem bem a suas comunidades.
Ele havia sido indicado para liderar o grupo naquela viagem, a preocupação do Kanawa kayarito-
mom/líder das canoas naquele momento passava a ser com os enîhnî-komo/índios não vistos que viviam por
ali. Estávamos entre dois afluentes, o Kikwo à esquerda e o Iicawaw à direita, onde é sabido que vivem
pessoas que o velho Pararaka conhecia há muito tempo, antes de os missionários e de Ewka chegarem lá.
Ali era o lugar em que todos sabem que Pararaka era um líder reconhecido.
Entre esses igarapés era onde, há muitos anos, os grupos se encontravam para fazer as trocas de
objetos, também de animais, como papagaio falante, entre outros artesanatos, aquilo que conseguiam
obter com facilidade. Por isso, fiquei muito curioso quando me contavam que era por ali que meu avô
Ewka andava em busca de Enîhnî-komo, os “índios não vistos”, como os missionários chamavam.
Essa viagem até a comunidade Mapuera, que durou sete dias, foi a maior experiência que
realizei no meu mestrado. Muitas vezes, fiquei pensando em como eu poderia começar a escrever o
que os velhos me contaram naquela viagem, pensando na minha própria cabeça como um WaiWai.
Depois, pensava que outro obstáculo seria escrever tudo isso na língua portuguesa. Mesmo assim, co-
mecei a escrever as histórias das rotas e a pensar, também, nos encontros antigos de Yamo e Xorwiko,
tudo isso seria importante no meu relato. Outra coisa que passava em minha cabeça é que eu tinha
que acompanhar os mais idosos, os velhos Xereu e Katwena para escrever melhor o meu trabalho de
campo. Eu pensava também que, posteriormente, eu devia diferenciar os modos de relações WaiWai,
como citado acima, por meio das rotas de transição que se davam a partir do Yamo e Xorwiko no
INTRODUÇÃO 21
A partida pela caminhada na mata e a construção da pesquisa

Figura 1. Navegando pelos rios, a caminho da comunidade Mapuera. Foto de Alexandre Aniceto de Souza, agosto de 2017.

passado. Mas isso precisaria de mais tempo e de conversas com os velhos, quem sabe depois, em um
doutorado. Eu pensava comigo.
Meu primeiro contato com os WaiWai do Mapuera foi muito bacana. Os WaiWai do Jatapuzinho
tinham passado informação por radiofonia de que o neto de Ewka, pela primeira vez, estava indo para
o Mapuera. Foi com uma sensação boa que senti, com a força da figura de Ewka, quando soube que o
pessoal esperava por nós. Éramos Pawana, um conjunto de grupos misturados, que estavam passando
por algumas comunidades WaiWai para mostrar o que tínhamos trazido do Jatapuzinho; o que tínhamos
aprendido em outras comunidades WaiWai.
Como Pawana, assim como todos nós, WaiWai, um dia somos quando estamos em outra comu-
nidade, sabemos que, de alguma forma, seríamos recebidos com festas, com bebidas, comidas, danças
religiosas, alojamentos, e tratados com o respeito que os Pawana merecem. Por eu ser um visitante e neto
de Ewka, fui recebido com muito respeito e admiração, mesmo não sendo tuxaua, mesmo não sendo um
doutor estudado, e sim como um Pawana especial, um visitante que jamais tinha passado naquele lugar.
Diferentemente da minha maneira usual de ver o outro, de modo direto e encarando nossas diferen-
ças, o que me marcou, chegando ao Mapuera, foi que me olhavam com aquela curiosidade de saber quem
sou. Filho de quem? Por parte das pessoas que moravam no Mapuera, esse olhar de curiosidade, para nós,
WaiWai, é a mesma forma de dizer eu sei quem é seu pai e sei do seu avô. Eu conheço você e seus parentes
mesmo sem eu falar dos meus pais, já sabiam como uma forma de reconhecimento quem eu era.
Nesse contexto, situo uma questão sobre o meu interesse em estudar meu próprio grupo WaiWai. Sur-
giu a partir da minha própria curiosidade de entender melhor: O que é ser WaiWai? O que é ser WaiWai para
aqueles que, ao mesmo tempo, acreditam e dizem que são Xereuyana, Katwenayana, Mawayana, Karapawyana,
Tarumãyana e Parîkwotoyana? Uma das diferenças que encontrei na comunidade Mapuera foi a presença de
yanas, que é muito forte, mas todos são WaiWai falantes da mesma língua e comem a mesma comida.

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