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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM


ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS

RYCHELMY IMBIRIBA VEIGA

MALDITO FRUTO ENTRE AS MULHERES:

PAI PROCÓPIO DE OGUM

Salvador – Bahia

2014
RYCHELMY IMBIRIBA VEIGA

MALDITO FRUTO ENTRE AS MULHERES:

PAI PROCÓPIO DE OGUM

Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar de


Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da
Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Estudos Étnicos e
Africanos, sob orientação do Prof. Dr. Jocélio Teles dos
Santos.

Salvador – Bahia

2014
Biblioteca CEAO – UFBA

V426 Veiga, Rychelmy Imbiriba.


Maldito fruto entre as mulheres: Pai Procópio de Ogum / por Rychelmy
Imbiriba Veiga. - 2014.
109 f. : il.

Orientador: Prof. Dr. Jocélio Teles dos Santos.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, 2014.

1. Procópio, de Ogum, pai. 2. Candomblé - Salvador (BA). 3. Feijoada – Aspectos


religiosos – Cultos afro-brasileiros. 4. Identidade de gênero. I. Santos, Jocélio
Teles dos, 1958- II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

CDD – 920.9299673
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiro a Olodumare.

A Esú, meu ancestral mítico e fonte do meu asé.

Agradeço (in memorian) ao meu avô Procópio e ao seu orixá Ogunjá, a razão desse
projeto.

Aos meus pais, gratidão e amor eterno.

Ao meu filho Rychardson, a certeza de minha continuação no mundo.

Agradeço aos meus mentores espirituais, Pai Gilson de Omolú, que me deu a alegria de
pertencer a essa raiz e Mãe Lurdes de Oyá.

Ao meu companheiro Gilmar Sampaio, pela paciência e horas, as quais eu não pude
estar disponível, por me encontrar “preso” ao projeto e, principalmente, pelo
conhecimento ancestral comigo dividido do universo afro brasileiro.

Ao Ilê Asé Ojisé Olodumare (Casa do Mensageiro), o meu agradecimento a todos os


meus filhos espirituais.

Aos meus amigos de curso, Valéria Lima, John Mundell, Marisa e Nelma.

A minha amiga e pupila espiritual, Daisy Santos, ainda bem que tive a felicidade de lhe
conhecer, seria impossível fazer esta jornada sem sua ajuda e companhia.

Ao meu colega do Pós Afro Marcos Rodrigues, pelas horas de conversa, leituras, dicas e
vivências, agradeço pelo afeto e disposição durante todo o meu percurso.

Aos babalorixás Waltinho de Logunedé, Farodê de Oxossi, Fábio de Oxaguiã e a


Ialorixá Jojó de Nanã (Asé Alaketu), pai Joelson, pai Antônio Penna grandes
conhecedores do universo afro-brasileiro.

Aos meus mais que amigos Josean Pierre e Maria do Socorro pela amizade que foi dada
por Deus, e não há distância que as apaguem.

Aos meus amigos Domingos Pereira, Josué Batista, Junior Bacelar, grandes ogans de
meu orixá, pelo carinho e zelo que cuidam de mim.

As minhas ekedes Telma Santana, Jaildes e Adriana, grandes mães da Casa do


Mensageiro.

A D. Edna, grande informante e guardiã do Ilê Ogunjá.


O meu agradecimento às professoras Maíse Couto e Monalisa Dantas que mesmo não
estando comigo nesse projeto foram essenciais na minha vida acadêmica.

Ao Centro de Estudos Afro Orientais (CEAO), onde tanto aprendi durante esses dois
anos.

Aos professores Claudio Pereira, Maria do Rosário, Lívio Sansone e Jeferson Bacelar.

Aos professores que participaram da minha banca de qualificação, Marcelo Cunha e


Miriam Rabelo.

A CAPES, por viabilizar esse projeto.

A Lindinalva, pelo carinho e apoio, tornando mais fácil a burocracia do curso.

Ao meu orientador Jocélio Teles dos Santos pela paciência, por acreditar no projeto
mesmo quando eu não mais acreditava, e pelo conhecimento dividido.
Os homens fazem a sua própria história, mas não o fazem como
querem (...) a tradição de todas as gerações mortas oprime como
um pesadelo o cérebro dos vivos.
(Karl Marx, 2014)
RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo o registro da história de vida de Pai Procópio de
Ogunjá, bem como a contextualização de eventos que marcaram sua trajetória. São
discutidos pontos como sua iniciação na tradição nagô e o diálogo com tradições que
não iniciam homens como filhos de santo que entram em transe. Para entender o
percurso do pai de santo faremos uma contextualização da cidade de Salvador e da
formação do candomblé baiano. Temas como o matriarcado afro-baiano e a
homossexualidade são questionados e problematizados. Também será abordada a
questão da feijoada de Ogum, uma cerimônia que nasce dentro do terreiro de pai
Procópio e se espalha pelos mais diversos terreiros de candomblé. Por fim,
contextualizar-se-á o terreiro após a morte de Pai Procópio e os desdobramentos e
influências que esse terreiro e este babalorixá deixaram para a religião afro-brasileira –
o candomblé.

Palavras-chave: Candomblé, gênero, feijoada, pai Procópio de Ogum

.
ABSTRACT

This research aims to record the life story of Father Procopius of Ogunjá and
contextualization of events that have marked his career. Points are discussed as his
initiation in Nago tradition and the dialogue with traditions that do not start as children
of holy men who go into trance. To understand the path of the holy father will do a
contextualization of Salvador Bahia and the formation of Candomblé. Themes like
african-Bahian matriarchy and homosexuality are questioned and problematized. It is
also address the issue of Ogun feijoada, a ceremony that is born within the yard Father
Procopius and spreads by several Candomblé. Finally, the yard will contextualize up
after the death of Father Procopius and the ramifications and influences that yard and
this babalorixá left for african-Brazilian religion – candomblé..

Keywords: Candomblé, gender, feijoada, Procópio de Ogum.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................11

CAPÍTULO I - O CANDOMBLÉ DA BAHIA.......................................................... 16

CAPÍTULO II - UM HOMEM NA CIDADE DAS MULHERES.......................... 35

CAPÍTULO III - FILHO DE OGUM, O PATRONO DA GUERRA...................... 47

- VÃO-SE OS DEDOS FICAM OS ANÉIS.................................................................. 54

CAPÍTULO IV - A FEIJOADA DE OGUM: A HERANÇA DE PAI PROCÓPIO


PARA OS TERREIROS AFRO –BRASILEIROS ...................................................66
- COMER COM FÉ: OS CAMINHOS DO FEIJÃO..................................................... 68
A feijoada de Ogum, no Ogunjá.................................................................................... 73
A feijoada de Ogum: um dia de festa no Ilê Axé Ibú Oya.............................................. 78

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................... 88

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................98

ANEXOS
1. Fluxograma da Família de Santo de Pai Procópio de Ogunjá.........................103
2. Roteiro para entrevista – Família (filhos de santo, sobrinhos e afilhada)........104
3. Roteiro para entrevista – Pais e mães de santo.................................................105
4. Roteiro para entrevista – Intelectuais...............................................................105
5. Documento de Inventário 01..............................................................................106
6. Documento de Inventário 02..............................................................................108
LISTA DE IMAGENS

Imagem 01. Pai Procópio de Ogunjá. Fonte: Acervo pessoal de Dona Edna (Afilhada e herdeira
de pai Procópio). P.35

Imagem 02. Cartaz do filme tenda dos milagres. Fonte: Cartaz desenhando e idealizado pelo
artista plástico Juarez Paraíso. P.48

Imagem 03. Pai Procópio de Ogunjá (a esquerda) ao lado do Presidente da Federação dos
Cultos Afro-Brasileiros à época (1945). Fonte: Vivaldo da Costa Lima. P. 54

Imagem 04. Artista plástico e neto de Procópio de Ogunjá, Hélio de Oliveira. Fonte: Acervo
Pessoal de Dona Edna. P. 56

Imagem 05. Xilogravura de Hélio de Oliveira (Saída de Yaô) Fonte: Acervo Pessoal de Dona
Edna. P. 58

Imagem 06. Dona Edna, conhecida como Mãezinha. (2013). Fonte: Fotografia de Rychelmy
Imbiriba Veiga. P. 60

Imagem 07. Visão da fachada do Ilê Ogunjá. Foto: Fátima Carvalho. 2014. P. 61

Imagem 08. Barracão do Ilê Ogunjá. Fonte: Fotografia de Andréia Magnoni. P. 62

Imagem 09. Maria Davina Pereira, Yá Davina. Fonte: Acervo pessoal de sua neta,
Meninazinha. P. 63

Imagem 10. Mãe Pastora. Fonte: Acervo pessoal de sua neta, Cecília Soares. P. 64

Imagem 11. Mãe Roxinha. Fonte: Ilê Axé Oxum Tadê. P. 65

Imagem 12. Alimentos preparados para ritual de limpeza (ebó) no terreiro Ilê Asé Ojise
Olodumare. Fonte: Fotografia feita por Rychelmy Imbiriba. P. 72

Imagem 13. Vista parcial da entrada do terreiro Ilê Axé Ibu Oyá. Fonte: Fotografia de Andréa
Magnoni. P. 79

Imagem 14. Imagem da área central do barracão do terreiro Ilê Axé Ibu Oyá no dia da feijoada
de ogum. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni. P. 80

Imagem 15. Filhos de santo carregam a feijoada de Ogum durante a cerimônia. Fonte:
Fotografia de Andréa Magnoni. P. 81

Imagem 16. Filha de santo carrega os pratos de najé para servir a feijoada de Ogum durante a
cerimônia. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni. P. 81

Imagem 17. Momento em que as filhas de santo servem a feijoada. Fonte: Fotografia de Andréa
Magnoni. P. 82
Imagem 18. O babalorixá Fábio Neves carrega o primeiro prato servido que será ofertado ao
Orixá Ogum. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni. P. 82

Imagem 19. Alguns dos sete homens que receberam os pratos de najé com feijoada comem com
as mão. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni. P. 83

Imagem 20. Filho de santo que estava “pagando” obrigação em transe do Orixá Ogum. Fonte:
Fotografia de Andréa Magnoni. P. 84

Imagem 21. Transe do Orixá Ogum nos filhos de santo. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni.
P.85

Imagem 22. Dança do orixá Ogum. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni. P. 85

Imagem 23. Momento de contato entre os fiéis e os orixás. Fonte: Fotografia de Andréa
Magnoni. P. 85

Imagem 24. Dona Edna (Mãezinha) em sua confirmação como Ekede de Ogunjá. Fonte:
Fotografia de Andréia Magnoni (20.07.2014). P. 95

Imagem 25. Dona Edna (Mãezinha) é confirmada Ekede do Ogunjá de Pai Procópio pelo Orixá
Exu (Babalorixá Rychelmy Esutobi). Fonte: Fotografia de Andréia Magnoni. P. 95

Imagem 26. Orixás Exu e Ogum. Na cosmogonia da nação Ketu Exu é o primeiro dos Orixás,
precedido por Ogum. Os dois Orixás são também considerados irmãos e Ogum sucedeu Exu no
comando do reino de Ketu. Fonte: Fotografia de Andréia Magnoni (20.07.2014). P. 96

Imagem 27. Dona Edna (ao centro); a Yalorixá Lurdes de Oyá e o filho carnal de Dona Edna(à
esquerda); Babalorixá Rychelmy Esutobi e outro filho carnal de Dona Edna (à direita). Fonte:
Fotografia de Andréia Magnoni (20.07.2014). P. 96
11

INTRODUÇÃO

O texto a seguir relata a construção da pesquisa que tem como objetivo resgatar,
a partir das experiências no trabalho de campo, a história de vida de Procópio Xavier de
Souza, sacerdote do candomblé, negro, homossexual, figura marcante na consolidação
da religiosidade afro-baiana. Para isso, apresento minha trajetória intelectual, que foi
relevante na escolha do objeto. Pedagogo por formação, na minha graduação, em 2008,
procurei meios de inserir a história e cultura afro-brasileira no ensino fundamental
escolar como determinava a lei 10639/03. Pesquisei e apliquei métodos baseados na
Pedagogia da problematização, tendo como principal teórico Charles Maguire. Com o
intuito de aprofundar minha pesquisa, participei do Curso de Formação em História e
Cultura da África e dos Povos Afro-brasileiros, realizado pelo Centro de Formação de
Professores FAPAZ em Natal/RN.
No decorrer de minhas pesquisas, deparei-me com trabalhos realizados no
Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO). Eram recorrentes minhas consultas a autores
como Vivaldo da Costa Lima, Júlio Braga, Nicolau Parés, entre outros. Foi assim que
em uma de minhas vindas a Salvador, deixei meu contato de email para receber as
malas diretas desta instituição e, em 2011, fiquei ciente do edital de seleção do
Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos. Não hesitei em me mudar temporariamente
para Salvador com o intuito de participar da seleção. Há algum tempo eu pesquisava os
terreiros de candomblé da Bahia, em especial os de tradição Ketu/ Nagô. Por diversas
vezes, em conversas, ouvi falar de um candomblé conhecido informalmente por Baixão,
devido a sua localização, onde hoje é o fim da Avenida Luis Anselmo, liderado pelo
falecido Pai Procópio. Procurei mais informações sobre o referido terreiro e descobri
que ainda não existia um estudo elaborado, apenas informações em pesquisas sobre esse
candomblé de um modo geral. Entretanto, o terreiro tinha fechado suas portas. Então,
elaborei um projeto que tinha como ideia inicial investigar o que acontece quando uma
casa de candomblé tradicional, no caso o terreiro Ogunjá, “fecha suas portas”. Para
classificá-lo como tradicional, parti da premissa de que, embora não tivesse uma
pesquisa elaborada, este terreiro já despertava, desde os anos 1930, o interesse de
antropólogos e estava sendo visitado pelos seus eruditos ao lado de terreiros
“ortodoxos” como Gantois, Alaketu e Casa Branca. Meu projeto foi elaborado em cima
da trajetória deste terreiro que tinha deixado de existir, se não de fato, mas, pelo menos,
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em atividades públicas e minhas interrogações me levariam a encontrar mais tarde o


destino dos objetos rituais deste terreiro.
Já na entrevista de seleção do projeto, o professor Jocélio Teles, que viria a ser
meu orientador, questionou se o objeto seria realmente o terreiro ou a persona de
Procópio de Ogunjá. No momento não entendi a observação, mas no decorrer da
pesquisa reconheci que todos os processos que envolveram o pai de santo fizeram dele
essa pessoa controversa e lembrada pelo povo de santo até a atualidade.
Toda a experiência acadêmica no Pós-Afro me motivou a ir pesquisando uma
persona que nos dá evidências escassas de sua trajetória, mas que teve uma importância
singular na estruturação da religiosidade negra baiana. Apesar de todas as dificuldades
no trabalho de campo e no seu cruzamento com o referencial teórico continuei a
pesquisa.
Lembro-me que quando criança, eu estudava numa escola batista, e todos os
meus amigos tinham uma bíblia. Intrigava-me o fato de que na minha religião, de
núcleo familiar, não precisássemos nada ler. Reuníamo-nos e ali era vivenciada uma
série de ritos da religiosidade afro-brasileira. Ora, Freire (1989) nos fala que a leitura do
mundo antecede a leitura da palavra, logo, eu, letrado no modo ocidental, senti falta de
livros “sagrados” no universo do candomblé. Não tardou para que logo no começo de
minha adolescência, caísse em minhas mãos um exemplar do livro Os Orixás na África
e no Novo Mundo, de Pierre Verger. Este foi o primeiro de muitos que li, ávido por
conhecer mais profundamente os ritos de origem africana. Assim, li textos de Juana
Elbein dos Santos, Roger Bastide, Vivaldo da Costa Lima. O mundo do candomblé
baiano me fascinava. Os escritos sobre candomblé eram sempre vinculados a uma
pureza africana, que ficava nos limites de terreiros “ortodoxos”. Tive o ímpeto de vir a
Salvador conhecer o Opô Afonjá, o Gantois e a Casa Branca do Engenho Velho. Porém,
minha ancestralidade mítica vinha de uma “raiz” que não se encontrava nos livros, a
não ser em pequenas referências. Minha família descendia de um terreiro denominado
Baixão, cujo fundador tinha sido Pai Procópio de Ogum. Fui iniciado por Pai Gilson de
Omulu, sobrinho carnal de Procópio, que em 1996, que na época tinha sessenta e
poucos anos. Ele me falava de sua infância no Ilê Ogunjá, das perseguições policiais, da
feijoada de Ogum e de tantas outras alegrias e dramas vivenciadas naquele terreiro de
candomblé.
13

A reflexão sobre o período pesquisado, contemporâneo a Pai Procópio, me faz


lembrar o mito da democracia racial, reflexão de estudiosos (Pierson, 1945; Landes,
2002; Frazier, 1942) evidente nas décadas de 1930 e 1940, e o discurso de uma
sociedade sem “linhas de cor” 1, que colocaram o Brasil sob a mira de estudiosos e
motivou a implantação do projeto UNESCO2. A academia americana queria entender
como o país superava as diferenças raciais. Essa mobilização acadêmica foi relevante
para minha pesquisa, pois o projeto ocorreu no momento em que o barracão de Pai
Procópio estava ativo e aberto ao público, inclusive foi um dos espaços visitados pelos
participantes no 2° Congresso Afro-brasileiro em 1937(CLAY, 2009, p 59). Muito
embora tenham visitado o terreiro, poucos escreveram sobre o mesmo, o que me
pareceu intrigante, e aguçou mais ainda minha reflexão.
Ficou evidente que a reconstrução da história de vida desse personagem iria
apoiar-se em um complexo trabalho de campo, pois a biografia era escassa, apenas
pontuando os momentos de repressão policial vivido por Pai Procópio, ou a eventos no
quais ele estivera presente, como no II Congresso Afro-Brasileiro. Nesta dissertação,
apontarei como a história de vida deste sacerdote foi relevante para a configuração do
atual candomblé baiano e brasileiro, desde sua iniciação à sua postura perante a
repressão social sofrida pelas casas de cultos de origem africanas entre 1920 e 1936 e,
particularmente, por ele ser um dos poucos homens a frente do sacerdócio de uma casa
nagô na época.
Na proposta do primeiro capítulo, farei uma análise do contexto histórico ao qual
Pai Procópio estava inserido. Uma leitura da cidade de Salvador na primeira metade do
XX, que era marcada por conflitos de negros que tentavam achar seu lugar na
sociedade, resgatando sua cultura e seu modo de viver, confrontando uma elite baiana
que tentava apagar quaisquer resquícios de uma Bahia escravocrata. Perpasso os

1
“A ideia de que o Brasil era uma sociedade sem ‘linhas de cor’, ou seja, uma sociedade sem barreiras
legais que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a cargos oficiais ou a posições de riqueza e
prestígio era já uma ideia bastante difundida no mundo principalmente nos Estados Unidos e na Europa,
bem antes do nascimento da sociologia. Tal ideia, no Brasil moderno, deu lugar à construção mítica de
uma sociedade sem preconceitos e discriminações raciais. Mais ainda: a escravidão mesma, cuja
sobrevivência manchava a consciência de liberais como Nabuco, era tida pelos abolicionistas americanos,
europeus e brasileiros, como mais humana e suportável, no Brasil, justamente pela ausência dessa linha
de cor.” Guimarães, Antônio Sérgio Alfredo. Democracia Racial. Departamento de Sociologia.
Universidade de São Paulo. 2006.
2
“(...) estudos patrocinados pela UNESCO (...). Esses estudos documentam pela primeira vez, de maneira
racional e científica (ou seja, utilizando-se das técnicas de observação desenvolvidas pela sociologia e
pela antropologia social), a situação do negro no Brasil. Guimarães, Antônio Sérgio Alfredo. Como
trabalhar com “raça” em sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1. p. 93-107, jan/jun. 2003.
14

caminhos que levaram a criação dos candomblés baianos, sua divisão em nações, o
cenário contemporâneo à época de Pai Procópio, bem como a questão do matriarcado e
a hegemonia da tradição nagô-centrista e as relações etno-históricas do candomblé no
processo da cultura brasileira. Este capítulo será construído também com base nos
escritos clássicos dos estudos afro brasileiros como os de Arthur Ramos, Edson
Carneiro, Ruth Landes Roger Bastide e Pierre Verger.
No segundo capítulo, farei uma análise sobre as relações de gênero que
permearam o candomblé, continuando a discussão sobre o matriarcado idealizado por
Ruth Landes (1947), bem como sua postura perante os homens lideres de candomblés e
suas supostas teorias sobre a homossexualidade masculina. Perpasso os conceitos
trabalhados por Matory (1988) sobre o simbolismo representativo da possessão, seus
conceitos iorubás e recriações na diáspora. No discurso sobre o papel da
homossexualidade nas religiões afro-brasileiras, bem como o peso e a dimensão destes
papéis nestes meios sociais, recorri a Birmam (1995) e Fry (1982) para entender as
transformações do lugar onde esses homossexuais são colocados.
O terceiro capítulo será direcionado para uma análise da memória do povo de
santo descendente do terreiro de Pai Procópio. A perseguição policial será trabalhada. O
drama vivido pelos envolvidos ficou marcado na memória dos filhos e filhas daqueles
que vivenciaram na pele o confronto e que passaram as suas histórias. Entrevistei
também alguns estudiosos e religiosos de outras famílias de santo que no decorrer de
sua existência foram próximos ou tiveram relação com o pai de santo. Esse capítulo será
baseado no trabalho de campo, nas entrevistas, na coleta da documentação dos
entrevistados. Neste capítulo, mostrarei também o mapeamento dos terreiros que
descendem do terreiro Ogunjá com uma breve contextualização de cada personagem.
No quarto capitulo, perpasso a antropologia da alimentação, analisando, segundo
as teorias de Hobsbawm (2001), como nasce a tradição. O ritual da feijoada de Ogum é
o objeto de análise. Essa cerimônia nasce no Ilê Ogunjá, e pode ser visto no caminho
percorrido pelo feijão até sua legitimação como elemento básico da alimentação
brasileira. Quais são as memórias dos atores sociais que vivenciaram a criação do rito?
E quais mudanças ocorreram no decorrer do tempo? Fizemos um relato etnográfico
sobre a cerimônia na casa de pai Fabio de Oxaguian, que se localiza em Arembepe com
o objetivo de comparar à feijoada originária no Ilê Axé Ogunjá e visualizar suas
continuidades e descontinuidades.
15

Nos anexos temos as fichas de roteiro das entrevistas, e um mapa da


descendência espiritual do terreiro e cópia de documentos.
Saliento que esta pesquisa é uma contribuição para o resgate de uma linhagem
familiar no âmbito das religiões afro-brasileiras. Embora a maioria dos integrantes do
Ilê Axé Ogunjá já não estejam mais vivos, e os poucos viventes já possuam uma certa
idade, foi deverás importante a série de entrevistas realizadas com esses membros da
família que resgataram de suas memórias pessoais momentos vividos neste terreiro e as
histórias de seus pais.. Essa proximidade me trouxe, também, uma relação amistosa com
a minha raiz sacerdotal, desencadeando frutos espirituais que fazem e farão, agora, parte
da minha memória e da minha trajetória religiosa.
16

CAPÍTULO I

O CANDOMBLÉ DA BAHIA

O candomblé, uma religião de formação iniciática, evoca uma tradição de


vivência, de procedência linear, onde cada família tem seus ritos, costumes, segredos e
tradições. Existe sempre um ponto de partida, que serve como norteador, que caracteriza
o modo de ser de determinada casa de santo, comumente chamada de “raiz”. O
candomblé é uma religião composta por laços familiares, não só consanguíneos, mas,
principalmente, de uma família mítica composta pelos antepassados e pelos presentes,
que através da iniciação se tornam filhos espirituais da comunidade. O espaço sagrado é
dividido em moradas para os antepassados longínquos, e aqueles que fundaram e
morreram no decorrer da existência do templo e os membros atuais.
As raízes do candomblé carregam memórias construídas de pertencimento
étnico, que geralmente não têm ligações com a origem biológica do grupo reivindicado.
Por exemplo, nada garante que um afrodescendente que se inicie na nação de
candomblé Jêje tenha em sua árvore genealógica algum ancestral da região do Daomé,
origem desse povo, mas sua iniciação nesta modalidade de culto lhe proporciona uma
condição de pertencimento:
A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações
do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas
mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes:
partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A
referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das
instituições que compõe uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua
complementaridade, mas também as oposições irredutíveis (Pollak, 1989
p.9).

Esta estruturação dos candomblés baianos, referente a modalidades de culto, é


relevante e há uma norma de conduta a ser seguida pelos candomblés de origens
distintas. A busca por uma suposta pureza e legitimidade são uma constante nesses
grupos.
O termo nação, que a princípio era utilizado para designar determinados grupos
de pessoas de uma mesma etnia africana vai perdendo sua conotação política, e passou a
significar uma determinada forma organizacional definida em bases religiosas. Logo,
17

essa ascendência étnica deixa de ser hereditária e passa a estar ligada a iniciação do
indivíduo em determinada modalidade de rito na qual o mesmo é englobado:

Os membros de qualquer instituição em processo, porque imersos na própria


dinâmica social, não percebem por vezes nitidamente, os momentos ou os
sutis estágios – para empregar um termo discutido – das modificações de que
participam. Isso ocorre sobretudo nos sistemas religiosos bem estratificados ,
especialmente quando, por motivos de ordem sociopolítica, eles representam
também um centro de resistência e de defesa cultural. Este parece ter sido o
caso das “religiões africanas” no Brasil: apesar da inevitabilidade do processo
de que eram parte e das óbvias mudanças ocorridas em suas estruturas, o
povo de santo se manteve firmemente – e sofridamente – fiel às suas crenças
ancestrais e aos mitos genéticos de seus grupos; a fidelidade que tem levado
alguns líderes religiosos a complicadas racionalizações genealógicas e a
fantasiosas interpretações com que se recriam uma história e uma carta de
comportamento ritual. (Lima, 2010, p.123)

É comum que a categoria nação seja utilizada de forma ideológica, atendendo


os interesses de legitimação social de determinadas casas de candomblé, funcionando
como identidade coletiva, através da qual é possível estabelecer alianças com casas
prestigiosas ou mesmo alimentar mecanismos de competitividade.
Esse quadro demarcado pela etnicidade inclui o problema ambíguo da
identidade, uma categoria movediça, seja no plano individual ou coletivo. Nesse sentido
percebe-se que a identidade é algo construído, negociado, móvel e revogável. Alguns
autores (Barth, 1998; e Munanga, 2003) partilham esse pensamento sobre a mobilização
dos grupos étnicos, cujas transformações ou novas organizações vão além do que se
apresenta como uma marca registrada por hábitos e nomeações em um determinado
território. Numa outra leitura contemporânea, Bauman (2005) afirma ser a identidade
algo apreendido pelo sujeito com função ambivalente do ponto de vista individual junto
ao fator do pertencimento.
As novas relações sociais estabelecem inúmeros papéis na sistemática
contemporânea de classificação. O advento da identidade preenche alguma expectativa
sob risco estrutural, no que se conhece como sociedade plural, num contexto que reúne
outros valores, reconhecido pelo nome genérico de diversidade, possivelmente uma
categoria gerada para amenizar os conflitos e as problemáticas inquietantes do
pensamento moderno. Stuart Hall (2005, p.8) apresenta a identidade como uma questão
mal resolvida e afirma ser um conceito “demasiadamente complexo, muito pouco
desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser
definitivamente posto à prova”.
18

A dinâmica dessas relações nos desdobramentos da etnicidade dificulta a fixação


de uma identidade espontânea. Trata-se de um fenômeno predominante num território
de diáspora em função dos deslocamentos, novos encontros e as resultantes das
mestiçagens. Os grupos se adaptam ao novo ambiente e reinventam suas práticas com
base no eixo ancestral. Ou seja, a identidade negociada é um dos produtos da
mestiçagem. Na forma diferente de ver o outro, o olhar antropológico está mais nas
fronteiras do que numa substância isolada. De acordo com a linha da escola
estruturalista, fonte de inspiração para F. Barth, as substâncias são móveis e o fenômeno
da etnicidade gera a perspectiva da história de origem, cultura, política, auto-definição,
alteridade, motivações internas e externas, enfim, uma dinâmica identitária.
As discussões científicas seguem uma abordagem sobre comunidade ou grupo
étnico, em que é pouco provável que se consiga encontrar uma identidade fixa, mesmo
que isso não tenha importância primordial. Os homens têm a necessidade primária de
classificar, de acordo com Comaroff (1987), que define a etnicidade como um sistema
classificatório que pode determinar o produto das forças estruturais históricas. Para ele,
a identidade está inscrita na cultura e o primordialismo da etnicidade está ligado à
classificação. F. Barth (1997; p.190) afirma que “somos levados a imaginar cada grupo
desenvolvendo sua forma cultural e social em isolamento relativo, essencialmente,
reagindo a fatores ecológicos locais, ao longo de uma história de adaptação por
invenção e empréstimos seletivos”. Em algum momento a identidade vem à luz da
investigação ou do debate, levando em consideração a ordem da análise cognitiva e o
caráter político da etnicidade.
O conceito de etnicidade produziu um novo debate que elimina o discurso da
pureza étnica, graças à compreensão da dinâmica e das fronteiras entre as identidades.
Em estudos antropológicos, as representações sociais são móveis, estão em
transformação e as respostas estão nos contextos históricos. Atualmente, as discussões
giram em torno das vertentes religiosas afro-brasileiras e de seu respectivo
desenvolvimento político.
Uma linha mais recente de estudos sobre as religiões afro-brasileiras traz à luz
do conhecimento outras leituras do universo religioso afro-brasileiro. Pode-se perceber
que a temática ainda está longe de ser esgotada com os estudos mais recentes. São
pesquisas com abordagens mais relativizadas, heterodoxas em relação à linhagem
antropológica das décadas anteriores. Trabalhos como Santos (1995), Silva (2000),
19

Lima (2005) e Castillo (2008) abrem discussões sobre temáticas ainda pouco exploradas
em torno de práticas menos observadas nos terreiros de candomblé. Sem dúvida, uma
série de trabalhos com caráter inovador na esfera dos estudos étnicos oferece outro olhar
e novas reflexões.
A origem das identidades étnicas na Bahia faz parte de um passado
estrategicamente esquecido pelo nacionalismo contemporâneo. Ao abordar sobre
comunidades imaginadas, certamente é preciso repensar a diáspora africana, como
propõe Matory (1999), uma vez que se torna indispensável o jogo da classificação além
das fronteiras ou dentro delas. É uma questão também abordada por autores que
discutem nação, transnacionalismo e globalização a exemplo de Anderson (1989). Aqui,
a intenção é rever a condição pós-colonial da diáspora como parceira do
desenvolvimento do conceito de identidade.
O debate sobre a noção de etnia e o conceito de nação demonstra que as
identidades se espalharam e em alguns casos se multiplicaram num processo de conflito
e negociação com o território. Em outros desapareceram ao se fundir a outras
identidades majoritárias e dominantes por conta da negociação ou das transformações
discutidas por Matory (1999). O rompimento dessas fronteiras originou uma nova
classificação que ficou conhecida na era contemporânea como identidade negra ou afro-
brasileira.
Matory discute a origem dos iorubas, cuja identidade passou a ser conhecida
entre nós com a participação de outros grupos que acabaram desfavorecidos no processo
político. Essa passagem se alinha ao que chama atenção Dantas (1988) sobre a aceitação
de uma cultura de origem africana como referência para um modelo tradicional de
africanidade. Aí, se verificam os desencontros de dados sobre a origem comum,
conforme enumera Matory. O autor esclarece como se deu a apropriação e utilização
desses termos na diáspora, talvez fora dos significados aplicados em nossos dias. A
descoberta do jogo político de alguns grupos para se beneficiarem da situação contribui
no entendimento da dinâmica social sobre a questão da identidade. Para acalmar um
pouco a ansiedade daqueles que buscam incessantemente uma identidade, o autor é
enfático quando afirma que todas as nações territoriais negociam com outras nações ou
impérios mais poderosos. Então o valor identitário é relativo. Esse argumento tem apoio
no discurso de Appiah (1997, p. 243), que diz: “toda identidade humana é construída e
histórica (...)”.
20

As manifestações afro-religiosas estavam presentes no Brasil desde o período


colonial, a princípio em modos de calundus, e com o passar do tempo começaram a se
organizar de forma mais sistemática, segundo Parés:
A minha hipótese é que foi a partir das tradições da Costa da Mina que, no
século XVIII, começaram a se organizar alguns calundus que iam além de
mera funcionalidade de cura e adivinhação, sem no entanto, prescindir delas,
Cabe lembrar que nesse século os jejes compunham o grupo
demograficamente mais importante daquela parte da costa africana na Bahia.
O culto de adoração de “ídolos” ou “figuras” com a presença de altares
implicava a necessidade de espaços relativamente estáveis para a prática
religiosa. Foi provavelmente a partir dessa tradição da África ocidental, em
oposição as tradições congo-angola, mais baseadas nas atividades individuais
dos curadores-adivinhos, que se organizaram os primeiros cultos domésticos,
em “casas e roças”, com uma estrutura social e ritual mais complexa, que
poderíamos chamar de tipo ‘eclesial’. (Parés, 2007, p.116)

Logo, a formação do candomblé foi sendo estruturada por todo século XIX,
nesse período começam a ser formados os embriões do que viriam a ser os candomblés
atuais:
A visualização espacial das roças tinha outros significados. As habitações
eram mais que construções físicas. Elas possuíam todo um conteúdo
simbólico que se manifestava na própria elaboração arquitetônica. As noticias
que nos chegam dos candomblés oitocentistas revelam uma criação e
distribuição de espaços que estão intrinsecamente relacionados com a
execução dos rituais públicos ou privados. Um exemplo era um candomblé
denunciado em maio de 1869, e situado na Cruz do Cosme que, longe da
estrada, tinha uma ‘extensa palhoça’ com uma grande concentração de
pessoas (O Alabama, 1869). Ali deve ter sido instalado o ‘barracão’ um
espaço retangular, coberto de telhas ou palha e com paredes de taipa onde se
realizavam as festas Publicas. (Santos, 2009, p. 4)

As pesquisas sobre os cultos afro-brasileiros, em especial na Bahia, ganham


impulso no final do século XIX e começo do século XX, e têm no seu pilar obras
clássicas de Nina Rodrigues, seguidos por Arthur Ramos, Edison Carneiro, Ruth
Landes, Roger Bastide e Pierre Verger.
Creio que, de início, as religiões afro-brasileiras exerceram um fascínio pela
conduta heroica de suas lideranças na luta pela legitimação de um discurso ocultado ao
senso comum e negociado para manter a sua linhagem histórica. As pesquisas
antropológicas realizadas desde o final do século XIX traduziam o interesse curioso de
uma sociedade permeada pela mentalidade escravocrata. Essa transição é vista até o
presente como fragmentos do processo histórico que contempla cada grupo, cada
momento retransmitindo a parcela de preconceitos advindos de um passado não muito
distante. Os estudos sistemáticos sobre a população negro-mestiça seguiram apenas em
21

torno das questões de raça, classe, identidade e preconceito sem uma palavra de ordem
de integração com dignidade da camada desfavorecida.
Quando Nina Rodrigues decidiu investigar terreiros de candomblé, a intenção
não era relatar a experiência de vida dos seus membros. Conduzido pelo marco
conceitual da teoria evolucionista na época, seu interesse estava em avaliar as relações
raciais na Bahia. Sua iniciativa pode servir de consolo pelo pioneirismo na antropologia
brasileira, mas não satisfaz na plenitude em revelar em primeiro plano as lideranças dos
terreiros que visitou e frequentou. Nesse sentido, Lima (2003) reconhece o valor
intelectual da investigação, mas ressalva que o trabalho de Nina Rodrigues poderia ser
voltado também para o aspecto da história de vida das pessoas que conheceu e
certamente entrevistou. Esse aspecto poderia dar outra dimensão ao processo histórico
da religiosidade afro-brasileira em nossos dias. Por tratar-se do primeiro trabalho
etnográfico feito na Bahia, seguiram-se outros deixando em aberto a lacuna em revelar
as experiências de vida das lideranças religiosas afro-brasileiras.
Um aspecto interessante nas ciências sociais brasileiras é que os estudos
antropológicos foram iniciados por profissionais da medicina, curiosos sobre as relações
raciais. Esses intelectuais são produtos de um tempo em que o evolucionismo fazia
valer suas tendências pelo mundo. Aqui são considerados pioneiros na pesquisa sobre o
negro brasileiro. Apesar da proposta inicial em fazer um diagnóstico sociorracial, tais
estudos parecem se firmar numa visão etnocêntrica sobre os africanos de origem nagô
como maior contingente da população. Reginaldo (2010), num interessante artigo, faz
uma interpretação sobre o principal argumento do discurso de Nina Rodrigues em
estabelecer o grau de superioridade social e demográfica da população ioruba na Bahia.
A outra parte dessa população, os demais grupos étnicos, de acordo com a autora,
parece nunca ter sido reconhecida nem pertencido a alguma linhagem histórica, logo
classificada como inferior.

O médico maranhense foi informado de ‘uns três congos e alguns angolas’


moradores nos arredores de Brotas e Cabula, mas parece não ter dado
nenhuma importância ao fato (Rodrigues, 1988 [1933]). O mundo dos centro-
africanos que ainda viviam na Bahia de seu tempo não despertou nele
qualquer curiosidade. Sua crença na superioridade intelectual e social dos
sudaneses foi certamente decisiva para este afastamento. (Reginaldo, 2010,
p.259)
22

De acordo com os estudos das relações étnico-raciais no Brasil, Nina Rodrigues


generalizou a predominância nagô na Bahia. Na verdade, sudaneses e bantos incluíam
uma gama de subgrupos que se incorporaram em maior ou menor escala e foram
adaptando seus hábitos conforme os aspectos conjunturais e os respectivos contextos. A
linha redutora dos trabalhos de Rodrigues (2005, escrito em1896; 2008, escrito em
1932) e Ramos (1940) tende a identificar a população afro-brasileira a partir de um
único modelo, o modelo cultural sudanês. Os pesquisadores que vieram em seguida a
Nina Rodrigues tratam do tema em suas impressões etnográficas na mesma linha de
conhecimento dos estudos afro-brasileiros, inclusive no plano da religiosidade.
Em meio à iniciativa da antropologia médica em estudar o negro a partir da
psiquiatria e das relações sociorraciais, figura a contribuição de Manuel Querino (1851-
1923), muito importante para a compreensão do panorama racial da época, embora esse
pesquisador tenha ficado esquecido por um longo tempo. Castillo (2008) lembra um
artigo de 1919, sobre o culto aos caboclos, bem anterior a Edison Carneiro, sendo este
considerado o primeiro a estudar aspectos da religiosidade afro-brasileira fora do olhar
centralizado de Nina Rodrigues.
A produção intelectual de Edison Carneiro (1991) desvia a linha de interesse
predominante de estudos sobre a religiosidade afro-brasileira com a investigação das
práticas rituais de origem banto, acrescidas das manifestações ameríndias. Carneiro
estava ente os baianos que se transferiram para o Rio de Janeiro em busca de espaço
para legitimar suas interpretações sobre a existência da cultura afro-brasileira. Apesar
das boas intenções, também não chegou ao ponto de revelar nos vários trabalhos
publicados a experiência de vida das lideranças afro-brasileiras que conheceu. No plano
institucional, foi um dos organizadores do II Congresso Afro-brasileiro, em 1937.
Apesar do interesse comum, havia o clima de rivalidades entre os estudiosos da época.
Pessoas de várias áreas do conhecimento trocavam correspondência sobre o
desenvolvimento de pesquisas etnográficas, mas com bases teóricas diferenciadas. Não
raro havia situações de desconforto entre os grupos nos anos de 1930.
Edison Carneiro (1991) explica que o candomblé reúne reminiscências africanas,
indígenas e católicas e sugere nas entrelinhas que toda cultura é híbrida, móvel e
mutável. Por ser a estrutura um campo dinâmico e relativizado, para um aspecto
classificatório, Martin Sokefeld (1999) chama atenção para o fato de que o conceito de
identidade na antropologia não a define como um elemento individual, mas como um
23

conjunto dentro do grupo étnico. É interessante atentar que toda identidade é social, é
relacional e às vezes escolhida ou imposta pela condição social de cada um. Todo ser
humano é portador de identidades múltiplas, geralmente complementares, conflitivas e
amplamente negociadas.
Pesquisadores estrangeiros chegaram à Bahia sob influência da repercussão
internacional da Escola Nina Rodrigues3. A pesquisadora norte-americana Ruth Landes
faz a diferença, nos anos de 1930 e 40, com seu modo de relatar experiências a partir do
mundo feminino em A Cidade das Mulheres, publicado no Brasil em 1967. Certamente,
é um trabalho fora dos propósitos dos intelectuais que até então detinham o
conhecimento da cultura afro-brasileira. O francês Roger Bastide e o inglês Donald
Pierson são fiéis a esse modelo único nagocêntrico, enquanto os demais grupos étnicos
eram ignorados com suas reminiscências fora dos seus focos preferenciais, dando
prosseguimento aos conceitos da escola antropológica vigente.
Nesse período existiu por parte dos pesquisadores uma procura por legitimação
das tradições nagôs, era uma tendência idealizar um modelo de culto que se
aproximasse dos ideais eruditos. Para valorizar a cultura negra buscavam valores muito
parecidos com o cristianismo. A postura da pesquisadora Ruth Landes, ao publicar
trabalhos que tratavam pontos de gênero, como a questão do matriarcado e da
homossexualidade provocou reações de contestação como a de Arthur Ramos:
Em resumo: as conclusões da Dra. Ruth Landes ressentem-se de erros de
observação, de afirmações apressadas e de conceitos falsos ou falseados no
concernente à vida religiosa e mágica do Negro no Brasil. É lamentável que
algumas dessas conclusões, como, por exemplo, do ‘matriarcado’ negro e
controle da religião pelas mulheres, na Bahia, e do homossexualismo ritual, nos
negros brasileiros, já estejam correndo os meios científicos e até anunciadas
para publicação em revistas técnicas. (Ramos, 1942, p. 189)

O questionamento de Ramos sugere uma suposta falsidade nos argumentos de


Landes. A busca pela legitimação dos terreiros nagôs também encontra seus percalços
no meio acadêmico.
Apesar de reconhecer as diferenças, uma geração seguinte insiste na valorização
da tradição nagô como modelo sistemático do ritual praticado na Bahia, porém dando

3
Nina Rodrigues foi alçado à condição de ícone histórico dos estudos sobre o negro no Brasil primeiro
por seus autoproclamados discípulos, a maioria médicos, também responsáveis pela publicação póstuma
de muitos de seus trabalhos sobre o tema, e depois pelos antropólogos que se dedicaram a pesquisar as
religiões afro-brasileiras. Arthur Ramos, especialmente, empenhou-se em ‘inventar’ como dizia Edson
Carneiro, a ‘Escola Nina Rodrigues’, inventando assim também um lugar para si na linhagem rodriguiana.
Corrêa, Mariza. Raimundo Nina Rodrigues e a “garantia da ordem social. Revista USP, São Paulo, n.68,
p. 130-139. Dezembro/fevereiro 2005-2006.
24

visibilidade às lideranças e personalidades como protagonistas. São integrantes desse


grupo os antropólogos Vivaldo Costa Lima e Júlio Braga. Mais recentemente, outros
estudiosos, Carvalho (2006), Echeverria (2006), Goldman (2003), desenvolvem
trabalhos etnográficos, no sentido de apurar a existência da diversidade de paradigmas
nos terreiros de candomblé. As abordagens destacam a experiência de vida de
personalidades que fizeram e fazem a história da religiosidade afro-brasileira na Bahia.
À medida que surgem novos trabalhos, são revelados pontos coincidentes que passam a
definir linhagens do segmento religioso afro-brasileiro, a face de um grupo, de uma
comunidade, de um território, até mesmo de pessoas ou questões sociais antes
negligenciadas.
Esse fato foi determinante para que houvesse por parte da antropologia e
também dos adeptos, leitores participantes, uma tendência a legitimar a nação ketu em
detrimento das outras nações, como as de origem banto ou jeje. Por décadas, a quase
totalidade de escritos na Bahia sobre a religião afrodescendente perpetuou essa prática.
Na contemporaneidade, a antropologia passou a reivindicar para si o papel de reparar
falhas acadêmicas e sociais, inclusive no campo historiográfico, em relação ao
segmento afro-brasileiro. A leitura interpretativa das etnografias tem marcado o avanço
dos estudos etnológicos, que vêm discutindo novos conceitos, haja vista o caráter
dinâmico do conhecimento científico. Se no início dos estudos antropológicos, o
evolucionismo era a palavra de ordem, hoje o estruturalismo substitui antigas visões e
fez surgir novas categorias. E o segmento afro-brasileiro se revela num contexto pleno
de categorias relacionais, de descontinuidades e variações, passível de mudanças, novas
leituras e novas interpretações. Até o momento tem sido de caráter renovador a
compreensão de aspectos da diáspora africana no Brasil, através do seu fragmentado
processo histórico, como também do recente desenvolvimento dos estudos étnicos.
Logo, segue uma área ainda sujeita a releituras e novas descobertas temáticas.

Esse processo de “nagôização” que foi recorrente nos escritos sobre o


candomblé, começa a ser moldado pelos próprios sujeitos em busca da legitimação de
suas práticas religiosas, na busca pelo espaço em uma sociedade cada vez mais
pluralista. A busca pela diferenciação de terreiros novos, num espaço de competividade
reforça a retomada de laços reais ou imaginários com as etnias africanas. Para Nicolau
Parés (2007, p.159) a afirmação de uma identidade africana, no caso, influenciados pela
25

tendência do poderio britânico, que confere ao povo ioruba um status superior à outros
povos, interfere também no modo como esse panorama é definido:

Na função legitimadora, a viagem (real ou imaginada) à África aparece


também em várias narrativas referentes à fundação de alguns dos terreiros
baianos mais famosos. Nesse sentido o final do século XIX parece
estabelecer as bases conceptuais para uma noção da África como o lócus
original de uma “tradição” que precisava ser recuperada, reinventando
continuidades de modo a superar um “passo traumático”. Essa idealização da
África também se apresentava como uma alternativa e uma reação ao viés
assimilacionista da cultura crioula. Sincronizada com a crescente visibilidade
da supremacia cultural ioruba no mundo afro-atlântico, o processo de
“reafricanização” consolidou-se, de fato, como um processo de “nagoização”.
Ao mesmo tempo, alguns setores da comunidade religiosa perceberam esse
processo como uma estratégia para obter poder político numa sociedade cada
vez mais racionalizada. (Parés, 2007, p.159).

Essa construção influencia também o meio acadêmico, e em uma análise de


clássicos, podemos traçar um panorama de campo usado por alguns destes estudiosos.
Edson Carneiro (1948) pesquisou a Casa Branca, Roger Bastide (1961), Pierre Verger
(1981) e Juana E. dos Santos (1975) pesquisaram o Axé Opô Afonjá, Nina Rodrigues
(2008), Ruth Landes (2002) e Arthur Ramos (1943) tiveram como objeto o Gantois,
Vivaldo da Costa Lima (2003, 2010) pesquisou o Alaketu e também o Axé Opô Afonjá.
Essa centralização nas casas de culto nagô indicou uma africanidade ideal e
influenciou um processo contínuo de construção de identidade que põe outras nações
em uma posição de poluído, não autêntico ou não evoluído.
Embora a maioria dos terreiros pesquisados na primeira metade do século XX
fosse de origem nagô – principalmente advindas da Casa Branca do Engenho Velho,
como o Gantois e o Axé Opô Afonjá, com exceção do Alaketu – existiam nesse período
outros terreiros desta nação, como o Terreiro Oxumarê e o Terreiro Ogunjá. Eram ativos
também terreiros jêje, como o Bogum, e os da nação angola, entre eles o Bate Folha,
Tumba Jussara, Tanuri Jussara, entre outras, que ficavam à margem das pesquisas feitas
na época4.

4
“O número de terreiros na cidade do Salvador, oitenta e um no período 1850/1897, pode parecer que
esteja além dos números fornecidos por Nina Rodrigues no final dos anos noventa. No entanto, se
levarmos em conta as suas informações de que somente nos ‘arrabaldes’ da cidade haveria quarenta ou
cinquenta terreiros, e na ‘capital’ existiria quinze, o número (...) estimado não para excessivo. Dois fatos
reforçam essa hipótese. Primeiro, ao longo da segunda metade do século, alguns terreiros podem ter sido
fechados devido a feroz repressão policial. O que proporcionaria uma queda do número verificado.
Segundo, nesse período devem ter surgido vários terreiros. Afinal de contas, a memória oral dá conta de
que, desde o século dezenove, as dissensões políticas internas aos terreiros ocasionaram o surgimento de
vários outros em diferentes locais soteropolitanos. A representatividade dos terreiros no tecido social
soteropolitano pode ser visualizada em relação ao número de habitantes da cidade. No inicio dos anos
26

É necessário frisar que apesar de enfrentarem problemas de origem intergrupal, a


consolidação do candomblé teve problemas mais profundos no século XX, que vinham
de imposições externas. Para entendermos o cenário da sociedade baiana nesse período,
ressalto que esta abrange o período da República Velha, e que para acompanhar as
mudanças que estavam ocorrendo no Brasil as elites baianas precisavam de um projeto
que as inserissem no contexto nacional, cujo eixo passaria, então, a ser o Rio de Janeiro
e São Paulo.
As primeiras décadas do século XX conhecem o ápice da perseguição policial
movida contra esses terreiros na cidade de Salvador. Era a marca do preconceito que se
instalava numa nova fase e se constituía na maior barreira para registro de fontes
históricas das lideranças populares daquele tempo. Daí a memória se constituir num
fenômeno entre famílias e grupos não alfabetizados, através da oralidade.
No início do século XX5, a cidade do Salvador respirava os novos ares da
República e se adaptava à nova política econômica de trabalho livre e assalariado.
Ainda vivia a fase áurea da sua função portuária, num período de intenso fluxo
migratório devido à fase inicial de pós-abolição. A população negro-mestiça, mão de
obra livre, também se movimentava em busca de novo rumo, emprego, outros espaços.
Esse trânsito se dava basicamente através do transporte marítimo. Entretanto, dentro da
dinâmica social de reorganização social, a religiosidade afro-brasileira seguia proibida,
na clandestinidade, alvo de perseguição policial. A modernidade mantinha os requintes
de crueldade para com seus praticantes.
As manifestações culturais de cunho profano ou religioso que contavam com a
participação expressiva de adeptos do candomblé foram questionadas de forma

setenta a população da capital aproximava-se dos cem mil habitantes. E pela estimativa acima haveria
mais de sessenta candomblés. O que indica uma proporção surpreendente de um terreiro para 1.700
habitantes. Ou se compararmos com o suposto número de igrejas católicas (365), um terreiro de
candomblé para cada seis igrejas. Ironicamente, isso pode ser visto como a inserção e resistência da
religiosidade de origem africana em um período marcado pela ideologia do progresso e do evolucionismo.
A cidade nos últimos anos do século XIX crescia paulatinamente, urbanizava-se, inseria-se num
pensamento liberal e, surpreendentemente, o número de terreiros de candomblés aumentava. As entidades
religiosas cultuadas pelos africanos e seus descendentes estavam, paulatinamente, a dominar a cidade”.
Teles Jocélio Teles dos. Geografia Religiosa Afro-baiana no século XIX. Revista VeraCidade, Ano IV,
nº5, Outubro de 2009.
5
Mesmo que a política de ordenação desse mundo das ruas remonte ao século 19, serão os governantes
republicanos que lhe darão um cunho mais sistemático no Brasil. Na Bahia, o primeiro governo de J.J.
Seabra (1912-1916) e o governo de Francisco Marques de Góes Calmon (1924-1928) constituíram-se nos
momentos áureos da intervenção sanitarista e disciplinar, em consonância com os conselhos médicos e as
queixas sistemáticas das elites letradas de Salvador. Ferreira Filho, Alberto Heráclito. Desafricanizar as
ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura popular em Salvador (1890-1937). Afro-Ásica, 21-22
(1998-1999).
27

expressiva por elites e apontadas como um dos motivos de impedimento do


desenvolvimento da cidade. Esta posição trouxe grande impulso com o apoio e a
circulação de jornais locais. As autoridades policiais foram incitadas a perseguir pessoas
e terreiros. Uma estratégia criada pelos terreiros foi fazer alianças com homens
influentes da sociedade, estratégia adotada desde o século XIX:
(…) No culto de origem africana, os ogãs compõem um sacerdócio
específico; são os membros masculinos do candomblé que nunca entram em
transe e se encarregam tanto de tarefas administrativas e diplomáticas, como
da música e dos sacrifícios. Na estruturação dos cultos da Bahia, este
sacerdócio foi mantido em toda sua complexidade, acrescentando-se um
ramo especial: certos brancos que detinham um estatuto elevado no seio da
sociedade oficial e que eram simpatizantes do candomblé receberam,
enquanto ogãs, a função de protetores do culto (...) (Braga, 2009, p.59).

Para citar um exemplo de como a imprensa se posicionava perante as casas de


candomblé, no dia 16 de agosto de 1921, o jornal A Tarde publica a seguinte matéria:
O pai de santo foi bater no xadrez - A Quinta da Barra vem de algum tempo
sendo transformada no melhor local para os candomblés. Talvez pela
escuridão que lá reina e por ser distante os ogãs lhe dão preferência. Mas, o
subdelegado local em boa hora organizou uma “canoa”. Às 22 horas,
recebendo queixa de vários moradores contra os incômodos que lhes
causavam a prática da magia negra, foi ao local e seu um cerco, prendendo o
pai de santo e doze fiéis. Chegando ao Posto Policial e como vissem que
tinham mesmo de pernoitar ali, declararam que aquilo era uma injustiça, pois
não acreditavam como a policia perseguia-os se um capitão da Brigada era
também ogã e na sua casa fazia batuques.

Outro exemplo foi coletado por Nina Rodrigues, no Diário de Noticias, no dia 9
de maio de 1905, e foi também confirmado por outros jornais da cidade:
Candomblés - Moça louca - A policia em ação - Cercos e capturas - Uma
procissão original...- O boato de que no candomblé enlouquecera uma
rapariga de família, à qual fora propinada, como medicação, certa beberagem,
célere chegou aos ouvidos do subcomissário 1° distrito de Santo Antônio,
cujos limites pertence a estrada de boiadas. A referida autoridade, no intuito
de averiguar o fato, anteontem, pela manhã, acompanhada do escrivão,
Esmeraldo Sutel, inspetor Amâncio Bacelar e de forças da cavalaria e
infantaria da policia, para ali se dirigiu, pondo cerco a roça em que
funcionava o nefando oráculo. Aproveitando o ensejo, o Sr. Capitão José
Estanislau Bahia, subcomissário, que teve ciência de existir no mesmo local
outra casa de feitiçaria , cercou esta também. Muito dos indivíduos que se
achavam nas duas casas tiveram, entretanto, tempo para escapar, fugindo no
numero desses o pajé Manuel Maneta. Aqueles a quem o santo e sua
veneração não protegeu com uma dose mais forte de agilidade tiveram de
cair, fatalmente nas mãos da policia. Feliz foi a mulata Hortênsia de tal, mãe
de um dos terreiros, a qual, logo que viu cercado o templo em que oficia, caiu
presa em um ataque de nervos, não sendo presa por isso. Efetuadas diversas
prisões, tratou a policia de dar buscas às casas arrecadando um verdadeiro
arsenal de bugigangas: contas, cajados, búzios, (...) pós de diversas
qualidades, perus, dois galos, duas cabras, etc. Cercada de pratos de barro
com azeite, foi encontrada também uma imagem de Nossa Senhora da
Conceição. Findo o trabalho de apreensão, organizou-se então um préstito
28

original; na frente da escolta, um individuo empunhando uma bandeira


branca, ornada de pena e pés de galinha, búzios, obis, órobos, etc. Em
seguida, como que o acolitando, os demais presos, sobraçando atabaques de
todos os tamanhos, agogôs e outros pertences da feitiçaria arrecadados. No
fim as duas forças da policia, em guarda de honra ao carnavalesco cortejo.
Essa ridícula procissão percorreu diversas ruas do distrito de Santo Antônio,
por entre a chacota de quantos afluíram às janelas e aos pontos de seu trajeto,
até a estação policial, onde foi recolhida com todo o pessoal que carregava as
charolas. (Rodrigues, 2008, p.224)

Toda essa pressão encabeçada pelas elites soteropolitanas buscava reordenar o


cenário, inspirada na missão republicana de modernização e civilização, visando o
retorno da Bahia a um contexto nacional. Era de suma importância controlar os
desdobramentos culturais e religiosos da cidade de Salvador.
Com a Abolição, era preciso encaixar o negro em uma sociedade que se
afirmava branca, elitista e cristã. Para explicar as desigualdades sociais, começam a vir
à tona diversas teorias racistas, que ganham espaço nas ações e representações sociais.
Quando o Código Penal da República foi promulgado, em 1890, legaliza-se o
combate aos feiticeiros, a magia e ao curandeirismo, práticas nas quais eram
enquadrados os sacerdotes de culto aos orixás. Essas ações eram resultados de um
discurso divulgado nos jornais e nos discursos de médicos cientificistas, promovendo
uma intensa caça aos adeptos das religiões afro-brasileiras. Mas o auge dessa
perseguição se dá no final do século XIX e começo do século XX, quando vieram à tona
as teorias médicas, a partir de Nina Rodrigues, que trata sobre a predisposição do
individuo negro, a “degeneração” no sentido que o aproxima da doença mental, a partir
do conceito criado na psiquiatria europeia na segunda metade do século XIX
(Giumbelli, 1997). Essa loucura seria então algo a ser procurado no interior de certos
indivíduos, algo que está relacionado com seu corpo e seus hábitos, que se relaciona
com suas vivências e ancestralidade. Embora Nina Rodrigues entendesse que essas
questões eram de competência médica, algumas de suas colocações alteraram a visão da
sociedade sobre o candomblé.
Contudo, apesar da perseguição policial e social, a primeira metade do século
XX foi marcada por um significativo aumento e consolidação de diversos terreiros na
região metropolitana. Os adeptos do candomblé também se organizavam para
manutenção do culto e da luta por seus direitos. A sobrevivência do candomblé estava
para o povo de santo, como um processo central de suas vidas:
A resistência, muitas vezes representadas pela insistência da retomada das
“funções religiosas toda vez que ocorria uma invasão policial, ou a busca de
29

lugares mais distantes do centro da cidade para reimplantação do terreiro, era


uma questão de vida ou morte. Acabar com o candomblé, para muitos de seus
membros, equivaleria de certa maneira, a condená-los à absoluta falta de
referência social, deixá-los desprovidos dos equipamentos simbólicos com os
quais eles teciam suas redes de sobrevivência numa sociedade sempre hostil.
Enfim, era negar-lhes a possibilidade de viverem dentro da sociedade baiana,
ainda que não se tenha por nítida essa formulação no discurso religioso que
lhes é próprio. Seus membros se davam conta, entretanto, de que pertencer
ao candomblé era uma prática social da qual não deviam se afastar e nem se
envergonhar, posto que isso representava uma maneira , ainda não muito
fácil, de buscar a integração na sociedade. Em um certo sentido, a luta se
realizava em duas frentes distintas mas complementares: a defesa do
candomblé como instituição e a defesa do direito de se integrarem na
sociedade sem perder sua especificidade e identidade cultural.(Braga,1995,
p.71-72)

Se por um lado havia uma pressão social externa que dificultava a vida dos
religiosos negros, as mudanças internas e as configurações do culto também começavam
a esboçar adaptações. As divindades que no continente africano eram cultuadas de
forma individual, por cada família, aqui tinham que dividir o espaço com divindades de
diversas etnias, configurando o candomblé. Os terreiros mais antigos de candomblé, que
na atualidade ainda estão ativos são o Ilê Axé Mariolaje (Alaketu) e o Ilê Axé Yá Nassô
Oka, conhecida como Casa Branca do Engenho Velho, embora as “células” de outros
terreiros complexas já existissem desde o século XVIII.
Houve uma mudança no panorama das lideranças religiosas que já organizavam
comunidades de culto desde o século XIX. A princípio, os africanos eram maioria e
foram decrescendo abrindo espaço a crioulos e pardos. No período em que, na sua
maioria, os terreiros de candomblé estavam nas mãos de lideranças africanas, ele
manteve sua característica patriarcal como na África. Segundo Parés (2007, p135), a
porcentagem de líderes homens era de 69%, de 51 registros no período entre 1863 a
1871. Já na primeira metade do século XX esta realidade se inverte, principalmente no
que diz respeito às casas de tradição nagô. As casas ditas ketu, com maior visibilidade,
estavam sob o comando de mulheres. Sobre o candomblé nesse período, Edson Carneiro
explana:

Os candomblés mais importantes são os de nação kêtu e , entre estes, os do


Engenho Velho, do Opó Afonjá (da falecida Aninha, atualmente sobre a
direção de Senhora), do Gantois (Menininha), do Alakêtu (Dionísia), do
Ogunjá (Procópio). (...) Entre os gegês, avultam os do Bôgúm (Emiliana), os
de Manuel Menês e Manuel Falefá.(...) Entre os de ijexá, o de Eduardo
Mangabeira, no X.P.T.O. Os de Angola o da falecida Maria Nenem e o
Tumba Jussara (Ciriáco). Entre os Congo, o do Bate-fôlha (do falecido
Bernadino, agora sob a chefia de Paizinho). Entre os de caboclo, o Ódé
Tayôcê (Otávio), o de Sabina, o de Areia da Cruz do Cosme (Miúda). Há
30

somente um candomblé muçurumim (male), a seita africana Potentiosa da


Bahia , de Pedro Manuel do Espiríto Santo, na estrada da Liberdade.
(Carneiro, 1948, p.28)

Logo, o candomblé contemporâneo se consolidou no sistema de matrifocalidade.


A mulher, que sempre teve um papel importante na tradição africana, em especial a
iorubá (Silveira, 2000:88), consegue um papel de destaque em termos de liderança na
religiosidade afro-baiana. Segundo Verger, as mulheres nagôs:
(...) e seus descendentes na Bahia têm o mesmo espírito empreendedor que as
caracteriza na África. Elas vendem no mercado e, boas comerciantes, ganham
dinheiro e mesmo enriquecem, tornam-se proprietárias de pequenas casas
onde elas habitam com seus compatriotas (Verger, 1981, p.221)

Já era uma tradição a participação feminina no comércio nas feiras e mercados


africanos, e isso as favoreceu na manutenção de uma mobilidade maior na diáspora:

As escravas ganhadeiras podiam residir ou não com os senhores, dependendo


da vontade destes e um pouco da delas também. Caso fosse permitida a morada
fora da casa do senhor, a escrava responsabilizava-se por sua alimentação e
moradia, mas os senhores recebiam sem maiores preocupações a quantia
estipulada, em dias pré-fixados. É provável que, nesses casos, a importância
devida ao senhor fosse menor do que nos casos em este desse casa e comida à
escrava. Segundo Wetherell, escrevendo em 1845, o produto do trabalho da
escrava em Salvador “permitia ao dono viver na ociosidade na medida em que
possuía de dois a três ou mais escravos”. Este sistema tornava os escravos,
conforme Spix e Martius, “capital vivo em ação”, já que, segundo leses, os
senhores recuperavam em três anos o valor pago por eles, principalmente nos
períodos em que a economia baiana favorecia o trabalho das ganhadeiras e
ganhadores. E os viajantes criticavam a ganância dos senhores, que tornava
“tristíssima a condição dos que eram obrigados a ganhar diariamente uma certa
quantia”. Apesar disso, o tipo d relação certamente interessava às escravas, se
não do ponto de vista econômico porque viver longe do senhor tornava-as mais
livres do seu controle. Além disso, o ganho era uma das principais portas para a
conquista da alforria. (Soares, 1996, p. 58).

As escravas ganhadeiras, as forras com seus tabuleiros conseguiam mais


facilmente comprar sua liberdade e assim restabelecer no novo mundo o culto aos
orixás.
Embora as mulheres negras tenham conseguido um espaço determinante no
culto, houve também, por parte do governo, uma preocupação em limitar as suas ações
comerciais. O papel da mulher urbana na República era de “moça virgem” e “senhora
de família”, que vivia para o matrimônio, zelava pelo esposo, e pela saúde e educação
dos filhos.
31

(...) a responsável pela saúde das crianças e do marido pela felicidade da


família e pela higiene do lar, num momento em que cresce a obsessão contra
os micróbios, a poeira, o lixo e tudo que facilita a propagação das doenças
contagiosas. A casa é considerada o lugar privilegiado onde se forma o
caráter das crianças, onde se adquirem os traços que definirão a conduta da
nova força de trabalho do país. Daí a enorme moral atribuída à mulher para o
engrandecimento da nação. (Rego, 1985, p. 8)

Essa construção do ideal feminino se choca com a realidade das mulheres negras
e pobres, que tinham que ganhar sustento e, na maioria das vezes, eram as chefes de
família. As elites letradas tentavam empurrar seus valores para a massa popular:
Os modernizadores acreditavam ainda que a sociedade baiana precisava passar
por um processo de branqueamento. Era preciso tirar das ruas todos os
elementos da cultura negra. As críticas são duras em relação ao pequeno
comércio desenvolvido pelos negros, sobretudo pelas mulheres negras.
Condenavam as iguarias vendidas na rua e a indumentária das baianas,
indubitavelmente de influência africana. Do ponto de vista religioso, a situação
era mais grave. A venda de comida afro-baiana, encorajada pelo candomblé,
tornou-se uma forma das filhas-de-santo obterem dinheiro para a realização das
suas obrigações rituais. Os jornalistas se referiam à vendedora de rua como a
mulher de saião .16 A expressão pejorativa servia para desqualificar a mulher
negra e pobre, cujas roupas lembravam a África, a escravidão, e em
conseqüência, a barbárie e o atraso da época colonial, da qual a elite queria a
qualquer custo se livrar. Os médicos, sanitaristas e higienistas tiveram uma
preocupação obsessiva com a qualidade dos alimentos vendidos nas ruas de
Salvador. Consideravam os pratos da cozinha afro-baiana, preparados muitas
vezes nas vias públicas e expostos em tabuleiros, bandejas e gamelas,
impregnados do suor, causado pelo trabalho e desprendido pelo contato manual
com a comida. Assim, esses alimentos gordurosos, condimentados e de
fabricação duvidosa,representavam uma porta de entrada para micróbios e
vírus que prejudicavam a precária saúde dos baianos. (Couto, 2005, p.02).

Apesar das dificuldades encontradas, pela pressão sofrida pela sociedade, as


mulheres conseguem se articular e estavam à frente de terreiros de candomblé.

Assim, as casas “ortodoxas” foram fundadas e mantidas por mulheres, a


iniciação e ocupação do mais alto posto só poderiam lhes caber. As casas matrizes da
tradição iorubá não iniciavam, no fim do século XIX e começo do XX, os homens como
“filhos de santo”. A estes eram destinados cargos políticos e funcionais dos terreiros, os
ogãs, e não lhes era permitido, nem bem visto o transe espiritual e estes zombavam
quando outro homem caia no transe. (Landes, 2002, p.92).
Falando na configuração do candomblé da Bahia, não se pode deixar de
mencionar o Babalawo Martiniano Eliseu do Bonfim, personagem central , tanto para os
terreiros como para a antropologia. Nasceu na Bahia em 1859, filho de africanos
libertos, da etnia iorubá, era profundo conhecedor do idioma materno, pois, tendo
voltado à África na adolescência, estudou em Lagos durante anos, dominando também o
32

inglês. Sua vida foi contada por ele mesmo, em uma entrevista ao linguista afro-
americano Lourenzo Dow Tuner em 1940 (Ayoh’Omidire e Amos, 2012, p.230) Após
retornar ao Brasil, retornou à África duas vezes (Braga, 1995; Castillo, 2010), e por
conhecimentos da língua e cultura iorubana lá adquiridos, viria a ser um dos grandes
informantes, e pode dialogar com diferentes gerações acadêmicas, de Nina Rodrigues,
passando por Arthur Ramos, Edson Carneiro, Ruth Landes que escreviam sobre a
religiosidade afro-brasileira na década de 1930. Martiniano era uma peça importante
para os terreiros de candomblé como o Opô Afonjá e a Casa Branca, devido a sua
experiência de vida e conhecimento da tradição ioruba. Porém, não caia no transe, como
viria acontecer com a nova geração de homens nos candomblés da primeira metade do
século XX, como o caso de pai Procópio.
De acordo com relatos bibliográficos (Penna, 2001, p.26) a trajetória de pai
Procópio começa a ser definida com o destino de uma escrava africana, alforriada,
chamada Marcolina, que possuía um terreiro no bairro denominado Cidade da Palha,
atualmente conhecido como Cidade Nova.
Marcolina chegou à Bahia ainda adolescente, segundo relatos orais de Antônio
Penna, religioso descendente da yalorixa. Era nascida na cidade de Abeokuta (Nigéria) e
seu nome africano era Osunwoyn. Foi propriedade da família Santos, da qual ganhou
seu nome ocidental. Não se sabe ao certo como se deu sua alforria, mas, após abolição,
se casou com um africano babalaô que pertencia à nação Igbomina, povo que viveu no
sudoeste da Nigéria. Esse ex-escravo pertenceu à família Pinheiro, e era consagrado a
Obatalá. (Penna, 2001, p.27).
Marcolina era uma mãe de santo, conhecida por seu temperamento quente; era
alta, forte, de canela fina (Penna 2008,p.19), ganhava a vida vendendo fato e moqueca
de fato de boi na feira de São Joaquim. Era conhecida como boa cozinheira e pelo seu
“pavio curto”. Porém, seus conhecimentos litúrgicos, o conhecimento das ervas, que
provavelmente aprendeu com seu esposo, fizeram dela famosa (Lopes, 2004, p. 544).
Marcolina é citada por Nina Rodrigues quando em uma batida policial se
averigua que uma moça por nome Eudóxia se encontrava em tratamento, por motivo de
loucura na residência no templo da referida mãe de santo, na Cidade da Palha, no 2°
distrito de Santo Antônio:
Candomblés – Moça louca - A polícia em ação – Cercos e capturas - Uma
procissão original... – O boato de que no candomblé enlouquerecera uma
rapariga de família, à qual fora propinada, como medicação, certa beberagem,
33

célere chegou aos ouvidos do subcomissário do 1º distrito de Santo Antônio,


a cujos limites pertence a Estrada das Boiadas. A referida autoridade, no
intuito de averiguar o fato, anteontem, pela manhã, acompanhada do
escrivão, Esmeraldo Sutel, inspetor Amâncio Bacelar e de forças de cavalaria
e infantaria de polícia, para ali se dirigiu, pondo cerco à roça em que funciona
o nefando oráculo. Aproveitando o ensejo, o sr.capitão José Estanislau Bahia,
subcomissário, que teve ciência de existir no mesmo local outra casa de
feitiçaria, cercou esta também. Muitos dos indivíduos que se achavam nas
duas casas tiveram, entretanto, tempo para escapar, fugindo no número
desses o pajé Manuel Maneta. Aqueles a quem o santo e sua veneração não
protegeu com uma dose mais forte de agilidade tiveram de cair, fatalmente,
nas mãos da polícia. Feliz foi a mulata Hortênsia de tal, mãe de um dos
terreiros, a qual, logo que viu cercado o templo em que oficia, caiu presa de
um ataque de nervos, não sendo presa por isso. Efetuadas diversas prisões,
tratou a polícia de dar buscas às casas arrecadando um verdadeiro arsenal de
bugigangas: contas, cajados, búzios, um vaso com uma bebida a que dão o
nome de jurema, pós de diversas qualidades, perus, dois galos brancos, duas
cabras, etc. Cercadas de pratos de barro com azeite, foi encontrada também
uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Findo o trabalho de apreensão,
organizou-se então um préstito original; na frente da escolta, um indivíduo
empunhando uma bandeia branca, ornada de penas e pé de galinha, búzios,
obis, órobos, etc. Em seguida, como que o acolitando os demais presos,
sobraçando atabaques de todos os tamanhos, agogôs e outros pertences de
feitiçaria arrecadados. No fim, as duas forças de polícia, em guarda de honra
ao carnavalesco cortejo. Essa ridícula procissão percorreu diversas ruas do
distrito de Santo Antônio, por entre a chacota de quantos afluíram às janelas e
aos pontos de seu trajeto, até a estação policial, onde foi recolhida com todo
pessoal que carregava as charolas. A autoridade policial abriu inquérito a fim
de descobrir a verdade sobre o fato propalado da loucura da moça, que deu
motivo ao cerco constando chamar-se Eudóxia, e já se achar em continuação
do tratamento no candomblé de uma tal Marcolina, na Cidade da Palha, 2º
distrito de Santo Antônio. (Rodrigues, 2008, p.235).

Marcolina veio da África iniciada no culto aos orixás (Penna, 2001). Entretanto,
não estava vinculada a nenhuma das raízes de candomblé nagô/ iorubá aqui vigentes à
época. Era malvista por terreiros como o Alaketu, Casa Branca e Gantois, como
podemos ver nesse exemplo:
Quem me contava sobre a mãe Marcolina era o finado Vicente do Matatu,
porque outras mães de santo não gostavam dela. Um dia encontrei dona Olga
(mãe de santo do Alaketu) no Rio e perguntei se ela conhecia Marcolina, ela
me perguntou de onde eu tinha ouvido falar daquela figueira do inferno, a
gente sabe que ela ajudou a plantar axés grandes mas não era subordinada a
ninguém e nós não somos descendentes de nenhum desses axés, essa era a
raiva, por isso falavam e “queimaram” a casa dela, por isso fazem questão de
esquecer (...). (Entrevista realizada em 12-07-2013 pelo pesquisador e pai de
santo Antonio dos Santos Penna)

Essa sacerdotisa não seguia as regras rituais dos candomblés da tradição nagô
aqui consolidadas, como o interdito da iniciação masculina por exemplo. Essa postura
inverte valores sociais prepostos e gera uma resposta. “Estes são grupos que são
rejeitados de forma ativa pela população hospedeira, em razão do comportamento ou de
34

certas características inegavelmente condenadas, se bem que frequentemente utilizáveis


em um plano prático especifico.” (Poutignat; Streiff-Fenart, 1997, p.217).
Essa postura resistente de Marcolina, e a relação com os demais terreiros, fica
mais delicada quando, no final do século XIX, ela inicia um homem, um dos primeiros
como yaô, em plena consolidação do matriarcado de tradição ketu no Brasil (Penna
2001, p.30). A tradição não admitia, na época, esse comportamento como podemos ver
em uma conversa entre Ruth Landes e Edison Carneiro:
Mas nenhum homem direito deixará que um deus o cavalgue, a menos que
não se importe de perder a sua virilidade. O seu espírito deve estar sempre
sóbrio e jamais atordoado ou tonto com a invasão de um deus (Landes, 1967,
p. 44).

Isso fez com que ao iniciar no culto o jovem Procópio, que recebeu o nome
iniciático de Ogunjobi, Marcolina caísse em ostracismo e em invisibilidade histórica.
Faleceu no início da década de 1940 e seu terreiro se extinguiu, porém seu jovem
iniciado deixou sua marca no candomblé baiano.
35

CAPÍTULO II

UM HOMEM NA CIDADE DAS MULHERES

Imagem 01. Pai Procópio de Ogunjá. Fonte: Acervo pessoal de Dona Edna
(Afilhada e herdeira de pai Procópio).

Segundo a tradição oral Procópio Xavier de Souza nasceu em Salvador,


aproximadamente entre 1840 e 18456, filho de ex-escravos, e foi levado ao candomblé
por problemas de saúde em meados da década de 18607. Uma característica comum nos
adeptos desta religiosidade, geralmente o apelo direto dos orixás se apresenta pela
doença ou algum tipo de infortúnio. Sobre a chegada a um terreiro:
A procura por um terreiro se dá pela decisão dos sujeitos acometidos por uma
doença, assim como de seus familiares de recorrerem à ajuda dos

6
Levando em consideração que pai Procópio faleceu em 1958 e que, segundo relatos, viveu por noventa
anos ou mais, o mesmo, então, nasceu na década de 40 do século XIX.
7
Levo em consideração a época de nascimento de pai Procópio e que o mesmo tenha sido iniciado no
candomblé quando já havia alcançado sua maioridade.
36

especialistas religiosos para equacioná-la e promover um bem-estar. No


entanto esses indivíduos já recorreram a outros itinerários e não surtiram os
efeitos desejados, desde a procura por outras agências religiosas, espiritismo,
catolicismo e neopentecostalismo, ao sistema biomédico, com consulta a
clínico e médicos especializados, exames laboratoriais, radiografias,
tomografias, ressonância magnética, uso de medicação alopática, consultas
periódicas com psiquiatras e psicólogos. (Lima, 2003, p. 39-40).

Nesses casos, a iniciação é relatada como algo inevitável, que está acima das
escolhas individuais, a vontade das divindades se impõem sobre a vontade dos homens.
“Os autores se referem à variedade dos sinais interpretados como um aviso do orixá que
deseja o sacrifício, as oferendas propiciatórias e mais que isso, a cabeça de seu eleito
para comunhão dramática e total da possessão”, como observa Lima (2003, p. 65). Para
Procópio de Ogum esse sinal foi dado através de uma enfermidade.
Dona Edna, afilhada de pai Procópio, e equede suspensa no Ilê Ogunjá relata
uma parte dessa história:

Quando meu avô era menino, ficou muito adoentado, saiam bichos do nariz,
levaram ele no doutor mas remédio nenhum deu jeito..., mas meu irmão
(Hélio de Oliveira) também teve isso, quando teve que fazer o santo, depois a
mãe dele (pai Procópio) levou ele numa velha que rezava, ela disse que isso
era Ogum, ai depois levaram ele na mãe de santo, ele tinha Ogum e Oxalá,
que queria a feitoria, ai ele fez santo, mas ele num sabia que ia ser pai de
santo não, só soube quando Ogum disse que era a hora. (Trecho de entrevista
concedida em 10-04-2013).

Acolhido pela mãe de santo Marcolina, segue fiel a todas as etapas da iniciação e
se torna pai de santo. Na convivência com a sacerdotisa, além dos segredos do
candomblé, aprende sobre ervas e mais tarde se torna dono de uma quitanda no bairro
do Gravatá (Lopes, 2004, p.544). Procópio assim prossegue na ritualística de suas
obrigações espirituais, e mesmo enfrentando as dificuldades pelo fato de ser homem em
um mundo matriarcal, chega ao sacerdócio, consegue um terreno e instaura, em 1906,
um templo ao seu orixá no bairro do Matatu de Brotas, o Ilê Ogunjá. O local fica tão
conhecido e acaba por dar nome a uma avenida e a uma localidade, o Ogunjá [Vale do]
(Dorea, 2006 p.36). Ele consegue ganhar respeito e prestígio, e durante sua existência o
terreiro passa a ser visitado por fiéis, antropólogos e estudiosos da cultura afro-
brasileira.
O barracão de Pai Procópio ganhou, em poucos anos de existência, grande
visibilidade. Em uma cerimônia na década de 50 do século passado, chegou a reunir
mais de 400 pessoas (Pierson, 1971 p.325). Por lá passaram e foram apontados como
37

ogãs, importantes personalidades do mundo acadêmico e literário, tais como Edison


Carneiro, Jorge Amado (Tonon, 2006, p.9) e Donald Pierson (Camurça, 2009, p.62).
Pai Procópio enfrentou as adversidades sociais da época, das quais já falamos no
primeiro capítulo que remete a perseguição da cultura do povo negro: a capoeira, as
rodas de samba e, principalmente, a religião.
Além do fato de ser homem, num universo que se consagrava como feminino,
Pai Procópio era homossexual, tendo de adequar sua sexualidade à sua postura
sacerdotal. A homossexualidade e sua relação com as religiões afro-brasileiras foi
objeto de análise em autores como, Ribeiro (1969), Landes (1940, 1947), Fry
(1968,1982), Birman (1985,1995), Leackock (1975), Santos (2013). Como observa
Matory:

A maioria dos estudos representa a homossexualidade como “patológica” e


como “desviante” em relação aos valores brasileiros hegemônicos. Essa
patologia e a rejeição de homossexuais em outras áreas de atividade são
então entendidas como a causa da presença dos homossexuais nos cultos.
Com efeito, os cultos afro brasileiros e espíritas tem mostrado mais
tolerância do que a igreja católica. Entretanto, este fator só é uma explicação
suficiente se ele puder explicar as percentagens de homossexuais serem em
certos cultos tão altas quanto 57%, na ambígua estimativa de Ribeiro. Os
homossexuais que se sentiram rejeitados pela igreja, correram todos
precipitadamente para os templos afro brasileiros? Poderíamos pensar assim
caso as duas tradições fossem mais semelhantes do que são, e se a igreja
fosse mais insensível para com os homossexuais do que é. (Matory, 1988,
p.218)

No universo dos terreiros de candomblé, quanto mais tradicional, mais tabu


existe em falar abertamente sobre a sexualidade de seus sacerdotes. Sendo assim,
mesmo quando em campo, com filhos e parentes de Pai Procópio, o assunto era uma
pauta delicada. Porém, este pai de Santo teve que lidar com uma exposição pública
causada por um artigo de Ruth Landes.
A autora esteve no Brasil nos anos de 1938/39 e usou como base para sua
pesquisa grupos religiosos de candomblé; acreditava que esses espaços da religiosidade
negra eram lugares onde a estrutura social diferia, e a mulher era o poste central do
poder, e que ela classificou como regime matriarcal.
Em texto publicado na década de 40, denominado “Matriarcado cultural e
homossexualidade masculina” (Landes, 2002, p.329), a autora faz uma relação entre a
prática homossexual passiva e as lideranças masculinas no candomblé e cita, entre
38

outros, Pai Procópio como exemplo. O enfoque da autora na homossexualidade se dá


porque pesquisava um modelo de sociedade especifica dita como tradicional, onde a
mulher era a figura central, logo associa a capacidade de homens liderarem o culto
como sendo resultado de um distúrbio cultural, possível apenas para homossexuais
passivos. Landes segue o raciocínio de seu mentor no Brasil, Edson Carneiro: “É pena
que os homens não sejam habilitados a essa experiência, exceto quando anormais;
imagina-se que sejam de matéria terrena e o mais que podem fazer é dançar nas ruas”
(Landes, 1967, p. 225).
Seguindo essa lógica, para Carneiro o transe masculino é uma anomalia, já que a
natureza do homem não é compatível com os instintos religiosos necessários para
dirigir uma casa de candomblé: “Diz-se que o espírito do homem está nas ruas, e não
voltado para dentro, sobre si mesmo, onde pode ser um instrumento dos deuses. É
sempre “quente”, excitado, mundano” (Landes, 1967, p. 225).
É, pois, uma característica que compromete a virilidade, uma vez que o homem
é possuído, penetrado pelo deus. Só atributos femininos poderiam ser características
sacerdotais:

Em termos de papéis sexuais, só a predominância numérica e hierárquica das


mulheres ultrapassa a preocupação dos etnógrafos do candomblé, xangô e
batuque pela abundância de ‘homossexuais’ e ‘afeminados’. Entretanto, um
peculiar grau de desdém etnocêntrico tem acompanhado essa preocupação.
Nos anos 40, Landes afirmou pela primeira vez que, embora os homens
fossem sistematicamente excluídos dos terreiros mais ‘tradicionais’, os
dirigentes masculinos de outros terreiros eram na sua maioria ‘notórios
homossexuais passivos’. Mantinha-se assim o ‘princípio fundamental’ de que
‘só a feminilidade podia alimentar os deuses’. (Matory, 1988, p.217).

A nível simbólico, Matory (1988) faz uma analogia entre gênero e a relação de
montaria. Os iniciados que recebem as divindades são chamados de cavalos, em ioruba
os iniciados são denominados de elegun, que quer dizer aquele que é montado. Logo
entre cavaleiro e cavalo, o que controla é o primeiro, e é a ele e não ao cavalo que se
atribui a vitória da batalha. O conceito de ser possuído através do transe desempenha
um papel central na ativação das relações sociais. Segundo a concepção ioruba:

(...) Um espírito ancestral conhecido como ori (literalmente “cabeça”)


originário de um ancestral, pode ser partilhado por diversas pessoas vivas e,
ainda sim, ser o conteúdo definitivo de cada pessoa – sua vontade, destino,
personalidade, consciência e capacidade. Durante a possessão, um orixá
desce do céu e substitui aquele espírito. Da mesma forma que o corpo se
ajoelha num gesto totalmente alusivo de submissão votiva, para receber seu
39

ori no céu o iniciado deve aprender a receber a divindade pelo abandono da


vontade e da consciência pessoais. A divindade se apropria do corpo
individual e a partir daí não só personifica, mas corporifica as tradições e os
padrões da comunidade humana. A divindade, na pessoa de seu sacerdote,
fala então com a autoridade de um rei. Assim, através da mediação de
sacerdotes mais experimentados, pessoas mais velhas da linhagens,
funcionários reais ou dirigentes de terceiros no Novo Mundo, a consciência
de uma comunidade maior substitui, de maneira mais extrema e gráfica, a
consciência consanguínea do individuo. A possessão é então paradigmática
da constituição de seres sociais e grupos sociais ordenados. Trata-se de uma
complexa invocação da integridade hierárquica numa ordem social e cósmica
onde, como pretendo demonstrar, a dialética das relações de gênero é
simbologicamente central. (Matory, 1988, p.220)

A submissão imposta ao ato de receber norteia a relação do fiel com a


divindade. No entendimento ioruba, receber o deus remete a conceitos de casamento,
assim como a esposa deve cozinhar pra seu marido o médium deve servir a divindade.
Ainda, em uma palavra usada tanto na diáspora (Cuba, Porto Rico, Brasil) como em
algumas regiões da Nigéria, o termo Iyawo orisa, do ioruba, pode ser traduzido como
“esposas dos deuses”. Essa nomenclatura é usada independentemente do gênero do
iniciado.
Em sua pesquisa Matory (1988) procurou desmistificar a argumentação de
Landes, na qual classifica como destrutiva a participação masculina no sacerdócio, um
desvio de papéis.

Para alguns praticantes da religião, a sujeição à possessão de qualquer tipo de


figura masculina é um anátema. Ainda assim, essa discussão apela
implicitamente para preocupações simbólicas iorubás e lança dúvida sobre a
validade da ideia de ‘desvio’ para explicar o recrutamento ao culto. Se o
‘desvio’ é vantajoso no sacerdócio, como Fry postula, por que são as bichas
desfavorecidas nos terreiros mais prestigiados do Nordeste? E se, como
Landes, observa, os sacerdotes homossexuais são ‘apoiados e mesmo
adorados por aqueles homens normais de quem eram antes objeto de piadas e
escárnio’, devemos concluir que eles são normais enquanto sacerdotes,
mesmo que sejam desviantes como outro coisa. As pessoas só são desviantes
em relação a expectativas de comportamento e contextos específicos.
‘Desvio’ é vago não só como uma construção multicultural mas como uma
construção multissituacional. É melhor que especifiquemos que variações são
desejáveis, quando e por quem. Mesmo que admitíssemos que em alguns
círculos brasileiros e em alguns períodos históricos tanto a homossexualidade
como os terreiros foram rotulados de desviantes, a invocação de Fry a este
fato como uma explicação suficiente requer que consideremos que diferentes
comportamentos desviantes ocorrem naturalmente juntos. A relação entre
bichas e o simbolismo iorubá pode ser descrita bem mais precisa e
logicamente. (...). (Matory, 1988, p.229-230).

O autor busca demonstrar que essa tendência homossexual no candomblé


brasileiro é normal frente aos conceitos iorubas de relações cósmicas e já era comum no
40

continente africano. Em sua análise (Matory, 1988, p. 222) afirma que os sacerdotes
africanos são mulheres ou homens travestidos que usam as vestimentas nupciais iorubas
do século XIX.
Na década de 30 a homossexualidade passiva foi objeto de análise, e Landes os
entendia como elementos proscritos da sociedade e procurava analisar sua relação com
o comando de alguns templos do culto afro brasileiro como um possível esquema
utilizado para que esses homens reinventassem um novo lugar nessa sociedade:

Na comunidade negra da Bahia, no Brasil setentrional, circunstâncias


incomuns encorajam certos homossexuais passivos a forjar um novo e
respeitado status para si mesmos. Disso resultaram mudanças individuais e
sociais importantes e fáceis de observar; mas o seu especial interesse para a
psicologia reside no demonstrar o modo pelo qual um grupo proscrito fez
nova adaptação, tirando vantagem das novas circunstâncias (Landes, 1967,
p.284).

A autora coloca a homossexualidade de homens no candomblé como uma


característica de homens que viviam na rua, eram delinquentes e malandros da cidade e
que, como pais de santo, não conseguem impor respeito, a não ser através da violência.
Sexo, transe, masculinidade vem a ter papéis fundamentais no entendimento construído
por Landes, pois eram vividos por homens e iam contra a idealização do modelo nagô
imaginado pela autora. De encontro ao pressuposto de Landes, o culto afro brasileiro
abre espaço para o sacerdócio masculino, que, porém, na sua concepção está longe do
centro da pureza africana das tradicionais casas dirigidas pelas grandes matriarcas e fica
na marginalidade, das casas de candomblé de caboclos e bantu, e é nicho de proscritos
que constroem uma religião deturpada e baseada na feitiçaria.
Outro autor que pesquisou a homossexualidade masculina e o sacerdócio foi
Peter Fry (1982 p.54-86). Ele analisou a religiosidade afro-brasileira de Belém do Pará
e sugere uma visão mais ampla no que diz respeito à homossexualidade e as autoridades
de culto afro brasileiro:
(...) Os templos tidos como mais ‘conservadores’ ou mais ‘puramente
africanos’ – os terreiros nagôs da Bahia – são controlados por mães e filhas
de santo. Essas casas alegam fidelidade a prática iorubá, o que lhes empresta
preeminência entre os demais templos. Não obstante, tem sido amplamente
observado que mesmo os terreiros de candomblé de origem não iorubá
imitam os ritos ‘nagôs’ ou ‘iorubás’. Os candomblés angola veneram deuses
iorubás em grande proporção. São esses terreiros não nagôs, bem como os
cultos em geral em outras áreas do Norte-Nordeste, que ostentam o maior
número de sacerdotes homossexuais. E é nos cultos menos identificados com
os modelos africanos, como a umbanda carioca e paulista, que mulheres,
41

bichas e travestidos masculinos são menos encontrados como sacerdotes. (Id.


p.228).

O autor dialoga com Landes, e também escreve sobre homossexualidade passiva


e ativa, porém, colocando essa perspectiva num segundo plano, onde a representação do
papel sexual não é relevante para o sacerdócio, sem deixar de frisar a notoriedade e
destaque de alguns homossexuais possivelmente passivos, existem também outras
possíveis categorias de papéis sexuais. Sendo assim, Fry propõe um novo olhar sobre o
assunto, divagando sobre os conceitos de Landes:

Existe outro problema relativo à caracterização de Landes do papel sacerdotal


no candomblé baiano como sendo tradicionalmente feminino. Podemos
tomar a afirmação de Herskovits de que tradicionalmente isso não acontece
nem mesmo na África ocidental. Entretanto, o fato é que a maioria dos
membros do culto são mulheres, e mesmo se Landes está errada em insistir
que o papel sacerdotal é exclusivamente feminino, as mulheres certamente
dominam os cultos. É difícil aceitar o argumento de Landes porque ela trata o
assim chamado homossexual passivo como se fosse “pior” ainda do que uma
“mulher de segunda categoria”. Novamente, seu argumento poderia ser
resgatado se ela tivesse sido capaz de citar as opiniões das pessoas envolvidas
(Fry,1982, p. 64-65).

Nessa construção, Fry desenvolve a percepção que os grupos tem de si mesmos,


e evidencia que o termo homossexual dificilmente é utilizado, encontrando o termo
“bicha” como classificação dos indivíduos com atitudes ou tendências homoeróticas
pelo grupo. Diferentemente de Landes, ele transpõe a homossexualidade de um lugar
marginal, excludente e negativo para uma posição mais positiva no que diz respeito aos
sacerdotes do culto afro brasileiro. Percorrendo uma interpretação diferente da autora
entende o papel homossexual como relevante para a formação de um campo legitimo de
representação da religiosidade afro brasileira.
A continuidade das discussões de Landes e Fry sobre a homossexualidade e as
religiões afro-brasileiras é retomada por Birman (1985), trabalhando a ritualística, como
a filiação ancestral relacionada com a definição sexual do sujeito, que está disposta em
um conjunto diverso de configurações possíveis. A autora conclui que existe uma
categoria, nativa, usada para os homossexuais, denominada “adé” que engloba diversos
valores que não coincidem inteiramente com o termo homossexual usado de forma
universal. No candomblé as frescuras e trejeitos do adé, que na sociedade geral é vista
com maus olhos, acontece, pois, nestes espaços, há a proteção dos orixás.
42

Birman (1995) retoma, portanto, a discussão sobre o lugar de mulheres e


homens no candomblé. A função masculina que foi praticamente desconsiderada por
Landes é revista. Sua análise encontra status de positividade em sujeitos que antes eram
acuados socialmente. O adé ganha espaço e legitimação no campo afro brasileiro, sua
condição sexual é reconhecida como possível e contribui na formação da religiosidade.
Se a homossexualidade masculina é algo que vem sendo discutida e analisada, a
invisibilidade de pesquisas na sua versão feminina é uma realidade no que se refere aos
estudos afro brasileiros. Exclui-se a sexualidade feminina:

Vale lembrar algo fartamente apontado na literatura sobre identidade, gênero


e sexualidade no tocante as expressões afetivo-sexuais das mulheres e que,
de certa maneira, parece organizar o pensamento de Landes e alimentar
ideias e comportamentos contemporâneos. Dessexualiza-se a mulher e
excluiu a sexualidade feminina (com sua variante lésbica) dos agenciamentos
afetivos-sexuais possíveis. A invisibilidade destas expressões é uma
consequência do processo de dessexualização/exclusão do desejo feminino e
parece resistir mesmo em grupos organizado de maneira peculiar, onde as
sexualidades poderiam ser expressas de maneira mais livre como,
supostamente, nos grupos de candomblé. (Mesquita, 2004, p 104).

Ao que parece, ainda que se reconheça mulheres homossexuais nos terreiros de


candomblé, não há um interesse em problematizar essa questão, como acontece no caso
dos homens. Elas são uma parcela significativa, ocupam muitas vezes cargos de
destaque no culto, algumas são inclusive reconhecidas mães de santo. A despeito das
diferenças de gênero, estão completamente adaptadas a dinâmica das casas. Segato
investiga as relações de gênero nos cultos afro-brasileiros da cidade de Recife,
conhecido como Xangô. A autora fala sobre a presença da homossexualidade feminina
nas religiões afro-brasileiras:

Sobre a homossexualidade feminina, as mulheres dos cultos afro-brasileiros


têm sido descritas repetidamente como poderosas e independentes (Landes,
1953, 1967; Bastide, 1978; Silverstein, 1979, entre outros), mas pouco foi
falado sobre sua sexualidade. De fato, a alta incidência de homossexuais
masculinos entre os membros do culto já é bem conhecida, havendo sido
apontada e analisada em muitos trabalhos antropológicos sobre ela em várias
cidades do Brasil (Landes, 1940, 1967; Bastide, 1945: 93-94; Ribeiro, 1969;
Leacock e Leacock, 1975; Fry, 1977, entre outros), enquanto que a presença
de comportamento homossexual entre as mulheres tem sido menos divulgada
e mereceu não mais que três linhas no total da vasta literatura sobre religiões
afro-brasileiras (Ribeiro, 1970: 129; Fry, 1977:121). Contudo, durante o meu
terceiro período no campo (...) vim a saber sobre a prática tradicional e muito
generalizada de amor sáfico entre a grande maioria das filhas-de-santo das
casas em que trabalhei. Estas mulheres são, geralmente, bissexuais e são
raros os casos de homossexualidade exclusiva. A homossexualidade feminina
constitui uma tradição, um costume transmitido de geração em geração e, de
43

acordo com as minhas observações, as mães não escondem dos seus filhos, e
até seus parceiros masculinos são cientes dela. A sua negação, por parte de
alguns pais ou mães-de-santo interessados em adquirir boa reputação frente
aos leigos que se aproximam do culto, deve-se a que eles sabem da
contradição existente entre este aspecto da tradição do Xangô e o sistema de
valores dominantes na sociedade brasileira. (Segato, 1989, p.76)

A autora reflete sobre questões de liderança nos núcleos familiares e sua influência
na formação estrutural das religiões afro-brasileiras:

Apesar da família patriarcal ter sido sempre característica das classes altas
brasileiras, entre as classes baixas e, particularmente, a população negra e
mulata, se encontram formas de organização familiar similares àquelas tidas
como típicas do parentesco afro-americano. O povo do culto reflete esta
tendência e muitos membros pertencem a famílias do tipo descrito na
literatura como ‘matrifocal’ (Smith, 1956), ‘família materna negra’ (King,
1945), ou ‘unidade doméstica consanguínea’ (em oposição à unidade
doméstica familiar’, Clarke, 1957). De qualquer maneira, a organização das
unidades domésticas apresenta uma variedade enorme de formas. (Segato,
1989, p.84)

A partir dessas conclusões passa a sustentar a ideia de que a estrutura familiar


vivida pelos negros durante a escravidão influenciou não só na estruturação familiar de
seus descendentes, mas também provocou reações de outras conotações:

De minha parte, uso o argumento de que a experiência da escravidão pode ter


abalado a oposição estrutura entre os conceitos de masculino e feminino que
estava na base da instituição da família nas sociedades africana e portuguesa,
oposição essa que parece ter sido logo reinterpretada por alguns grupos de
descendentes escravos no Brasil, tirando, ao mesmo tempo, o casamento da sua
posição central na estrutura social. De fato, com a escravidão, a família negra
foi desfeita, o que pode ter resultado numa transformação do significado e dos
valores tradicionalmente associados à oposição entre estas categorias. (Segato,
1989, p.100).

Ruth Landes, cujo foco principal eram mulheres nos candomblés, pareceu não se
importar com essa temática, embora em sua pesquisa mencione, rapidamente e sem dar
importância, um incidente de cunho sexual ocorrido entre duas iniciadas no terreiro do
Engenho Velho da Casa Branca, envolvendo uma mulher de nome Totônia, uma das
candidatas a futura mãe de santo da casa, (Landes, 1967, p.54). Quando poderia haver
um questionamento sobre a sexualidade, Landes ignorava ou não percebia, mas nas
entrelinhas pode-se concluir uma tendência homossexual: “Eram de pele escura, fortes e
grandes, e nada tinham dos modos recatados que a classe alta considera femininos e
sedutores. De fato, pareceram-me homens vestidos com saias de baianas” (Landes,
1967, p. 55). Não podemos afirmar que de fato essas mulheres poderiam ser
44

enquadradas em uma classe de homossexuais femininas, mas como a autora deu tanta
ênfase à homossexualidade masculina, parece inconsistente essa invisibilidade sexual de
suas personagens.
A postura de Landes em atacar uma parcela da comunidade afro brasileira, no
caso alguns pais de santo, causou a indignação de antropólogos que já pesquisavam o
candomblé e que buscavam construir uma imagem positiva sobre a religiosidade negra,
como Ramos (1942, p.188) e Herskovits (1947, p.125).
Nota-se no artigo que a autora tenha uma tendência, talvez inconsciente, de no
decorrer do texto, fazer uma diferenciação sobre os pais de santo, que incluem
Bernadino, Procópio e, algumas vezes, Ciriáco:

Em geral os pais são de grande frieza com as mulheres, um fato mais notável
no Brasil do que seria nos Estados Unidos. Mas Bernardino e Procópio
cultivam estreitas ligações profissionais e pessoais com importantes
sacerdotisas de outras casas de culto. Esta atitude é surpreendente, em vista
da amarga rivalidade e desconfiança que existe, normalmente entre os chefes
de culto. Ela se baseia, provavelmente, numa espécie peculiar de amor
dessexualizado e de culto herói, ao mesmo tempo, garante ao pai a admissão
num pequeno e seleto círculo de eminentes sacerdotisas. Bernadino gosta de
oferecer presentes caros a essas amigas, mas também se desmanda de modo
chocante. (Landes, 2002, p.330)

Embora coloque todos os pais em um mesmo patamar, a todo o momento faz


distinção dessas três personalidades das demais, como se eles quisessem um patamar
diferenciado. Porém a diferenciação era porque eles eram, de fato, iniciados no
candomblé, não como os demais que eram apenas de culto a caboclos. Logo as portas
de algumas casas estavam abertas para eles e o que na visão da autora são percursos
para aceitação, são, na realidade, etiquetas de quem pode ou não ser reverenciado
seguindo as normatizações das casas de santo.
O tabu em se falar sobre homossexualidade é tão impregnado no senso moral de
cada indivíduo que, em minhas indagações sobre a sexualidade pai Procópio a alguns
entrevistados na pesquisa de campo, essa informação foi negada ou não respondida com
exatidão. Pai Edinho, sobrinho de Pai Procópio e Ogan confirmado no Ogunjá, é um
dos poucos entrevistados que admite a homossexualidade do pai de santo, mas de
maneira vaga:

Meu tio era muito reservado, não era de falar muito, mas a gente sabia que
ele gostava dessas coisas, mas nunca vi ele com alguém não, a gente sabia
que era mas não sabia se tinha alguém, as vezes ele sumia e a gente não sabia
45

aonde tava, mas nunca trouxe pra dentro de casa, se tinha era fora.
(Entrevista realizada no dia 07/07/2012)

Todas as outras pessoas entrevistadas da mesma geração que Pai Edinho


negaram ou se esquivaram à pergunta sobre a homossexualidade do pai de santo.
Acredito que mesmo para Pai Procópio no começo do século passado, era difícil
uma colocação sobre sua condição sexual.
Um fato interessante é que no decorrer de quase cinco décadas que esteve à
frente de seu terreiro, o sacerdote tenha evitado iniciar outros homens em seu
candomblé, tendo apenas uma vez iniciado um indivíduo para o orixá Omolu. Esse
rapaz, apelidado “amorzinho” pelos entrevistados, foi protagonista de um episódio na
Casa Branca do Engenho Velho registrado por Landes:

De repente um branco, moço e magro, cambaleou para dupla fileira das


dançarinas. A fila escura moveu-se maciçamente, ignorando-o. Via-se que
estava possuído porque fazia as rígidas contorções de um cavalo do Deus
Omulu e as desenvolvia dramaticamente na horrenda representação de
alguém atacado de cólera. Olhei para Edson e vi que ele estava fascinado. O
moço tentou correr para porta, mas foi contido por duas velhas equedes. Elas
queriam retira-lo do circulo da dança, mas, sem lhes dar atenção, ele voltava
cambaleando muito, apertando as palmas da mão contra as orelhas na
manifestação habitual do transe. Todo mundo esticava o pescoço para ver.
Os ogans zombavam dele, pasmados: - Nunca vi uma coisa dessas! Que
descaramento!
Eugenia dava muxoxos de reprovação no circulo sagrado e gritou para
Edson:
- Eu sei quem é! È do candomblé de Procópio!
Enfim, como se contorcesse horrivelmente para todo lado, as equedes deram
por finda a luta e lhe permitiram dançar com as mulheres, tiraram-lhe sapatos
e meias- pois somente os pés descalços devem tocar o chão durante a dança,
afroxaram-lhe a gravata e o colarinho para que não sufocasse com as
contorções, tiraram-lhe o paletó e o relógio-de-pulso e arregaçaram-lhe a
boca das calças (Landes, 2002, p.92).

Possivelmente, o fato de ter enfrentado, em um contexto social mais amplo, a


quebra de regras, e ter vivido na pele as dificuldades de ser aceito pela comunidade de
candomblé, Procópio ficou resistente a iniciar homens, ou talvez por querer se legitimar
como um candomblé tradicional seguiu o modelo das casas “ortodoxas”.
É relevante entender como se dava o arranjo hierárquico nas casas de candomblé
na década de 30 e o fato de que as casas, eleitas por antropólogos como “ortodoxas”
estavam todas sob o comando das mulheres.
Reimaginar o poder religioso em mãos femininas é questionar a hegemonia do
poder masculino de dominação, que é exercido não somente sobre as mulheres, mas
46

sobre homens, e outras formas de vida. Criar alternativas para a imagem masculina de
poder e dominação é uma questão política e profundamente relevante, não somente para
as mulheres, como para os homens.
Mais delicado ainda é pensar a questão da homossexualidade, pois ao enaltecer
o mundo conforme sua gênese, onde a relação homem mulher é incontestável, e formar
a prole é uma questão de honra, a religiosidade ioruba reitera os significados sociais que
definem os papéis sexuais. Assim o candomblé ainda mantém certos entraves a
sexualidade, sendo em alguns terreiros muitas vezes um tabu. Por outro lado, o
candomblé é uma religião que se mostra mais aberta à homossexualidade.
47

CAPÍTULO III

FILHO DE OGUM, O PATRONO DA GUERRA

Sob o comando da Delegacia de Jogos e Costumes, as perseguições, as


manifestações da religiosidade negra em Salvador foram sistematicamente e
continuamente atacadas e perseguidas entre 1920 e 1942.
Essas perseguições em sua maior parte tiveram o comando do temido e famoso
delegado Pedro Azevedo Gordilho, conhecido como Pedrito, personagem central,
conhecido pela severidade e violência, por apreender objetos de rituais e prender os
integrantes dos barracões. Era o delegado responsável pelas incursões policiais ao Ilê
Ogunjá. Suas buscas e apreensões neste terreiro foram muito faladas, devido,
primeiramente, à atitude de resistência pacífica de Pai Procópio, sua persistência em
continuar com seu terreiro e, também, pelo fato dessas prisões terem algumas versões
com um desfecho de caráter místico. Isso resultou em trabalhos baseados nesses
acontecimentos, no meio cultural, seja na música, literatura e cinema.
A relação conflituosa entre Pedrito e Pai Procópio repercutiu na sociedade baiana,
rendendo até mesmo um samba de roda, (Luhning, 1996, p.196):

Não gosto de candomblé


que é festa de feiticeiro
quando a cabeça me dóe
serei um dos primeiros
Procópio tava na sala
esperando santo chega
quando chegou seu Pedrito
Procópio passa pra cá
galinha tem força na aza
o galo no esporão
Procópio no candomblé
Pedrito é no facão.
(Alvarenga, 1946, p.200)

Os conflitos neste período ficaram na memória coletiva, e viriam a ser


lembrados anos depois. A sua história continuou a ser contada através da obra de Jorge
Amado, “Tenda dos Milagres”, tanto em livro quanto na sua adaptação para um seriado
de televisão da TV Globo, filmado em 1985 e escrita por Agnaldo Silva e Regina
Braga. Na versão do livro, o terreiro de Procópio estava em festa com várias filhas de
santo incorporadas, bem como o próprio pai de santo. Então, inexplicavelmente, os
48

guardas que acompanhavam Pedrito para uma batida policial no barracão, caem em
uma espécie de transe e se voltam contra ele. Este ainda tentou se impor, mas é vencido
pelo espírito que tomou o guarda, segundo a narrativa, o implacável orixá Ogum.
Pedrito fugiu para o carro e teve os pneus furados pelo povo do terreiro. Sem
alternativas, ele saiu furtivamente, correndo e humilhado pelas ruas de Salvador:
Ogunhê, gritou, e todos os já responderam: Ogunhê, meu pai Ogum! – Ogum
Kapê Dan meji, Dan pelú oniban! – repetiu Arcancho: - Ogum chamou as
duas cobras e elas se ergueram para os soldados!
Ergueram-se os braços do orixá, as mãos de tenazes eram duas cobras: Zé
Alma Grande, Ogum em fúria, partiu para Pedrito... Depois, com toda força o
atirou no chão, de cabeça para baixo. A cabeça enterrou-se no pescoço, rotos
os ossos da espinha, fraturada a base do crânio defunto aos pés do delegado.
Zacarias da Goméia ia atirar, não teve tempo, levou um ponta pé nos
quimbas, no meio do urro desmaiou. Não serviu para briga nunca mais.
Zé Alma grande, cão de fila, assassino às ordens , homem de toda confiança,
virou Ogum e partiu para o delegado, Pedrito necessitou do orgulho inteiro
para erguer a bengala na última tentativa de se impor. De nada serviu. Os
pedaços de junco estalaram nos dedos do encantado- cabeça de serpentes
dirigidas contra o comandante da cruzada bendita, da guerra santa. Não
coube a Pedrito Gordo outro recurso se não correr vergonhosamente, em
pânico, gritando por socorro, em direção ao automóvel veloz que o levaria
para longe daquele inferno de orixás desatados em milagres. Mas, ai, os
macumbeiros haviam furado os quatro pneus. Nas ruas apinhadas todos
viram o delegado auxiliar Pedrito Gordo, a fera da policia, o sinistro chefe da
malta de facínoras, o mata mouros, o malvado sem alma, o terror do povo,
em triste fuga perseguido por um orixá de candomblé, pelo guerreiro Ogum
todo acesso em cobras. (Amado, 1995, p.309-311)

Na versão adaptada para filme, Tenda dos Milagres, em 1977, do cineasta


Nelson Pereira dos Santos, Pai Procópio foi encenado pelo pai de santo Luís Alves de
Assis, mais conhecido como Luís da Muriçoca.

Imagem 02. Cartaz do filme tenda dos


milagres. Fonte: Cartaz desenhando e
idealizado pelo artista plástico Juarez
Paraíso.
49

Em todos esses trabalhos, Pai Procópio era lembrado quando se falava da


perseguição policial e de como as forças sobrenaturais dos orixás agiram naquela
situação.
As versões orais para o relacionamento entre Procópio e Pedrito são muitas e
controversas, e a falta de documentação referente às prisões e ocorrências nas casas de
candomblé pela Delegacia de Jogos e Costumes dificultam o trabalho da pesquisa.
Porém, segundo relatos, eles já tinham desentendimentos pessoais e seriam velhos
conhecidos. Pedrito tinha “envolvimento” com o candomblé, e segundo Lima (1987) o
delegado seria irmão de santo do Pai Procópio e com este tinha rixas pessoais. O Oluô
Agenor Miranda, que conheceu Pai Procópio pessoalmente, conta um pouco da história:

A perseguição da polícia antigamente era tremenda e um dos pais-de-santo


que mais sofreu com ela foi pai Procópio de Ogunjá, que tinha as costas
inteiramente marcadas pelos chicotes dos policiais. Procópio enfrentava a
Polícia dizendo que enquanto fosse vivo iria festejar Ogum, o santo dele. A
polícia, que proibia o culto, ia na casa dele e o surrava. Pedrito Gordilho era o
delegado mais feroz naquele período. Entrava nos candomblés e levava os
assentos dos santos e os orixás que dançavam no salão. (Filho, 1998, p.28)

A violência com que era conduzida a apreensão comandada por Pedrito era tão
recorrente, que além de pilhagens, destruição de móveis e objetos, surrava os
participantes, tendo em pelo menos um caso, acabado em morte. Isso foi documentado
por Manoel Querino em um manuscrito de “Acontecimentos policiais nos candomblés
de 1920”:
No Matatu Grande, distrito de Brotas, nesta capital, uma casa, onde os
crentes do feiticismo festejam seus santos. Em noite de 18 de maio de 1920, o
delegado auxiliar, bacharel Pedro de Azevedo Gordilho cercou a dita casa,
com praças de cavalaria, e ahi commetteu as maiores arbritariedades
possíveis. Espancou os assistentes e levou presos, sendo que as mulheres
seguiram amarradas, acompanhando o trote dos cavalaríamos até a estação.
Os soldados, por ordem do referido delegado commetteram proezas: de
arrebentarem todo o vasilhame que encontraram, quebaram cadeiras, guarda
roupa, arrombaram os bahús e conduziram toda a roupa que encontraram,
dinheiro, objetos de prata, um anel de brilhante [ilegível] a mobília ficou em
estado deplorável. Foi mais um saque do que uma diligência policial. No dia
24 de agosto faleceu fulano de tal da Hora, proveniente da agravação de
moléstia que já tinha pelas pancadas que levou, sendo encontrado no
candomblé de Procópio. Em 16 de agosto do mesmo ano, a autoridade acima
cercou com o mesmo intuito a de Catharina na Barra e fez a mesma limpeza
nos objetos encontrados e mais cento e tantos mil reis que encontrou. Entre
outras coisas cand[rasurado] uma pequena caixa de 0,20 de altura por 0,40 de
[rasurado] comprido, tudo de metal. Em cima da caixa havia um pequeno
caboclo amarrado de arco e flecha rodeado por outros menores. A caixa
continha uma faca e diversos instrumentos agrícolas, todos de metal. [Em] 19
50

de junho de 1921 a senhora[ilegível] Lisberto fora preza pelo mesmo


delegado. (Castillo, 2010. p.42).

O homem que foi morto na batida policial na casa do Procópio, Inocêncio, era
ogã do Ogunjá, e com sua morte, Procópio cria seus dois filhos menores, Hélio e Edna,
que atualmente esta com oitenta e dois anos e é quem cuida do que restou dos objetos
sagrados do terreiro. O pai de Hélio e Edna e o pai Procópio tinham um relacionamento
um tanto quanto “ambíguo” (Lima, 2010, p.268). A filha relata as poucas lembranças
sobre o pai:

Quando eu nasci, com pouco tempo meu pai morreu, não conheci nem me
lembro dele, minha mãe também era da casa (Ilê Ogunjá), era ekede de
Oxum. Sei que meu avô também criou meu pai, e ele tava envolvido com o
negócio da policia... era muito ruim, porque derrubavam o Baixão, meu avô
sofria muito, eram tempos difíceis porque ele não tinha dinheiro, e vinha os
homens e derrubava tudo, batiam e levavam o pessoal preso, levavam e
quebravam os santos, roubavam as coisas, mas na minha época já não era
assim... eles respeitavam.. (Entrevista realizada no dia 17/09/2012)

Essas experiências foram marcantes, e embora nenhum dos entrevistados


estivesse nascido naquela década de 1920, cresceram ouvindo de pai Procópio, ou de
seus próprios pais, os dramas vividos naquela época. Pai Gilson, sobrinho de Pai
Procópio, que viveu os primeiros anos de vida brincando no terreiro do Ogunjá, relata
suas lembranças:

Eu sempre ouvia meu tio falando que quando eles eram perseguidos tinham
de correr, mas Ogum ficava, não abandonava, era muita coisa... tinha muito
assentamento que era escondido no mato, pra neguinho não saber aonde
estavam. Minha mãe (Mãe Roxinha) contava que uma vez a polícia veio,
quando o telhado era de palha, tocaram fogo no Baixão a casa desabou.
Minha mãe tinha que se esconder no mato. Uma vez eles levaram embora o
Exu da porta, ai eles foram assentaram de novo, com a maior pedra que
acharam, no tempo que eles iam de carroça pra Boca do Rio, acharam uma
pedra enorme, ai eles não tinham como carregar mais ele....Mas marcou
muito, minha mãe sempre teve cuidado, porque a história da polícia ficou na
cabeça dela, uma vez a polícia parou um carro no candomblé aqui da gente, a
pressão subiu na hora...( Entrevista realizada no dia 12/08/2011)

Destas batidas policiais realizadas por Pedrito e pelos delegados que o


sucederam, não foram encontrados registros e os objetos apreendidos não foram
catalogados, ou mesmo citados nos boletins de ocorrência. Os poucos objetos que foram
guardados ficavam no Instituto Médico Legal, em Salvador, porém sem deixar claro
suas procedências.
51

As atitudes e o discurso de pai Procópio mostram que, apesar de ser analfabeto,


ele se posicionou de forma incomum para a época. Em uma das incursões de Pedrito ao
seu barracão, Procópio procura um advogado e requer um habeas-corpus ao juiz Dr.
Álvaro Pedreira (Luhning, 1995/96). O fato foi noticiado e teve grande repercussão.
Nos autos, pai Procópio alegava que não descumpria a lei e que estava apenas
praticando o culto tradicional de seus antepassados. O escândalo decorrente deste
episódio resultou no pedido de afastamento do cargo, pelo próprio delegado Pedrito,
mas este foi negado pelo desembargador Antonio Seabra, secretário da Segurança
Pública na época.
Pai Procópio foi um personagem que não mediu esforços pra manter viva sua
tradição, resistindo à ação da polícia e às convenções sociais. Foi fiel aos seus
princípios, uma prática comum aos sacerdotes e sacerdotisas nas primeiras décadas do
século passado, o que foi positivo na consolidação do candomblé atual, como nos
mostra Braga:

No que se refere às reações da comunidade afro-brasileira contra as


sucessivas incursões policiais aos seus sítios sagrados, essas tecnologias
pacíficas de resistência foram, durante a primeira metade do século XX,
frequentemente utilizadas e se revelaram de extrema eficácia na política de
preservação dos bens religiosos afro brasileiros na Bahia. (Braga, 1996, p.
42)

O processo de força, poder e relações conflituosas foram uma característica da


formação da religiosidade negra em Salvador. Era comum que certos terreiros
negociassem com a polícia, por meios não oficiais, para conseguir proteção, isso gerava
a perseguição da imprensa, principalmente as veiculadas no jornal O Alabama, na
segunda metade do período oitocentista geravam verdadeiros impasses sociais:

(...) As autoridades com frequência se desentendiam. Nina Rodrigues, a


respeito do período colonial, observou que “a supressão ou a manutenção dos
batuques se constituiu em pomo de acesa discórdia”. Em linhas gerais, o
mesmo pode ser dito sobre a política de repressão ao candomblé no tempo de
Domingos Sodré. Nesse período, os chefes de policia geralmente investiram
num controle mais rígido das manifestações culturais africanas, ao passo que
muitos subdelegados- que tinham de tratar como o problema no corpo-a-
corpo do dia-a dia- optavam por uma politica de negociação, segundo
sugerem as numerosas denúncias de candomblés e de outros batuques que
ressoavam em diversos pontos da cidade. Como sugeriu Dale Graden,
algumas autoridades policiais “reconheciam os benefícios a serem ganhos de
uma diplomacia silenciosa”. A polícia e outras autoridades foram repetidas
vezes acusadas pela imprensa de conivência com os candomblés e batuques
africanos (...). (Reis, 2008, p.25)
52

Logo, as interações envolvidas no processo de formação do candomblé eram


teares de diferentes pontos sociais que se entrelaçavam. Os atores sociais não estavam
livres dos arranjos e alianças formadas por caminhos não oficiais. Por algum motivo, e
em alguns momentos na existência do Ilê Ogunjá, Pai Procópio não conseguiu formar
alianças que lhe desse uma proteção para o “andamento” de seu terreiro..
Sobre a realidade de alguns terreiros de candomblé, e a situação em que se
encontravam, vinha à tona, em um momento em que o cenário social começava a
mudar, a presença da academia, e a articulação de algumas comunidades.
Os antropólogos que já verificavam a importância dessa religiosidade de matriz
africana como patrimônio da população negra no Brasil perceberam a necessidade de
desenvolver pesquisas e ações. Desse modo, promoveram congressos sobre a temática,
o primeiro em Recife, em 1934, e o segundo em Salvador, em 1937, tentando articular e
trazer uma nova visão para as culturas negras no nordeste brasileiro. A relação dos
candomblés baianos com a polícia estava muito complicada, era necessária uma
mobilização de pessoas influentes no meio acadêmico. No II Congresso Afro-Brasileiro
que aconteceu em Salvador, a casa de Pai Procópio foi visitada pelos congressistas
(Clay, 2009, p.60), assim como o Alaketu, Gantois e a Casa Branca do Engenho Velho.
No livro Cartas de Edison Carneiro a Arthur Ramos, os autores em nota de
rodapé analisam esses conflitos:

Mas as relações de autoridade – às vezes grandemente repressoras – com


lideres religiosos dos candomblés, apresentam curiosas variáveis de
intensidade, que vão da violência predatória ao protecionismo mais
ostensivo. Um caso típico dessa ambigüidade – e que está igualmente a
merecer uma analise menos “mítica” – é o do famoso delegado Pedro de
Azevedo Gordilho, conhecido como Pedrito. Que era membro de conhecido
terreiro de candomblé e, de certa forma , irmão-de-santo do pai Procópio, do
terreiro do Ogunjá, havendo ficado famoso por suas perseguições a alguns
terreiros, inclusive ao do próprio Procópio. (Lima e Oliveira, 1987, p.153)

Logo houve uma mobilização para formar um órgão que controlasse e


legalizasse os terreiros. O movimento foi liderado por Edison Carneiro, como podemos
ver no trecho de uma carta que ele escreveu para Arthur Ramos em 1937:

Acho que já lhe escrevi que estou vendo si consigo a liberdade religiosa dos
negros. No dia 3 de agosto, vários ogans, Pais-de-santo e gente de
candomblé, convocados por mim, vão fundar o Conselho Africano da Bahia
(um representante de cada candomblé), que se proporá a substituir a policia
53

na direção das seitas africanas. No mesmo dia, todos assignaremos um


memorial ao governador, pedindo a liberdade religiosa e o reconhecimento
do Conselho como a autoridade suprema dos candomblés. Já fiz o memorial e
vou fazer os estatutos do Conselho. Acho que conseguiremos tudo, pois o
governador tem uma bruta admiração por você e por Nina (que eu, aliás,
invoco no memorial) e, como você sabe, prestigiou eficientemente o
Congresso. (Lima e Oliveira, 1987, p.152).

Esse foi provavelmente o primeiro documento redigido na Bahia que


reivindicava a proteção e liberdade religiosa dos negros. A tentativa de criação deste
Conselho foi pioneira na seara civil de reunir e organizar as casas de candomblés
existentes, viabilizando a defesa de seus interesses e tornando-se a única responsável
pelos cultos praticados por essas casas. Em outro trecho, desta mesma carta, Edison fala
da vontade de criar o Instituto Afro-Brasileiro da Bahia, o que só veio a se concretizar
em 1959, com a criação do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal
da Bahia.
Por coincidência ou não, a fama da resistência de Procópio, sua personalidade
forte, sempre foi associada ao seu orixá, Ogum, que rege as guerras, batalhas e é
famoso por ser sanguinário. Uma das histórias referentes a este orixá mostra como ele
se tornou rei de Irê:
Quando Odudua reinava em Ifé, mandou seu filho Ogum guerrear e
conquistar os reinos vizinhos. Ogum destruiu muitas cidades e trouxe para Ifé
muitos escravos e riquezas, aumentando de maneira fabulosa o império de
seu pai. Um dia, Ogum lançou-se contra a cidade de Irê, cujo o povo o odiava
muito. Ogum destruiu tudo, cortou a cabeça do rei de Irê e a colocou num
saco para dá-la a seu pai. Alguns conselheiros de Odudua souberam do
presente que Ogum trazia para o rei seu pai. Os conselheiros disseram a
Odudua que Ogum desejava a morte do próprio pai para usurpar-lhe a coroa.
Todos sabem que nenhum rei deve ver a cabeça decapitada de outro rei.
Ogum não conhecia esse tabu. Odudua imediatamente enviou uma delegação
para encontrar Ogum fora dos portões da cidade. Após muitas explicações,
Ogum concordou em entregar a cabeça do rei de Irê aos mensageiros de
Odudua. O perigo havia acabado. Ogum fora encontrado antes de chegar ao
palácio de seu pai. Como Odudua queria recompensar o seu filho mais
querido, presenteou Ogum com o reino de Irê e com todos os prisioneiros e
as riquezas conquistadas naquela guerra. Assim Ogum tornou-se o Onirê, o
rei de Irê. ( Prandi, 2001, p.88-89)

Assim, no imaginário do povo de santo, os filhos desse orixá são destemidos,


guerreiros e valentes. A fama de Pai Procópio de Ogunjá, devido às prisões e os
acontecimentos que resultaram dessas ações, marcaram o seu nome na história do
candomblé e no imaginário popular.
54

Imagem 03. Pai Procópio de Ogunjá (a


esquerda) ao lado do Presidente da
Federação dos Cultos Afro-Brasileiros à
época (1945). Fonte: Vivaldo da Costa
Lima.

Após o período de repressão, o Ilê Ogunjá volta aos poucos a fortalecer sua
tradição, que não fora parada, mas se realizava sob uma áurea de medo e terror. Nas
décadas de 1940 e 1950, as cerimônias continuaram a acontecer, com um ciclo de festas
regular. O Ogunjá florescia numa época mais tranqüila. Além da festa de Ogunjá, eram
feitas em novembro a Feijoada de Ogum, seguida meses depois dos três domingos de
Oxalá (curiosamente com a distribuição litúrgica que é feito atualmente na Casa Branca
e Gantois), seguido pelo Olubajé e festividades de demais orixás.

VÃO-SE OS DEDOS, FICAM OS ANÉIS

A trajetória de Pai Procópio tem fim em um dia chuvoso. No dia 28 de


novembro de 1958, de velhice, com noventa e poucos anos, falece o pai de santo. Dona
Edna relatou o acontecimento

Meu avô não ficou muito tempo doente, nem chegou ai no hospital, ele
morreu em casa, foi tudo de repente, deu um problema, os médicos que viram
falaram que era problema no fígado e nos rins ele trabalhou muito tempo
fazendo canoa, ai complicou e deu isso. Eu tava em casa, porque eu tava
55

casada e tal.., eu tava grávida do meu terceiro filho e morava em Cosme de


Farias, a pouco tempo, tava chovendo muito, foram me avisar eu vim
embora, não conseguiram achar Hélio na hora, eu tive de vir correndo. Num
foi um dia alegre, o pessoal já tava todo cansado. Cheguei num dia, no outro
meu avô faleceu. O corpo foi velado aqui mesmo, lá em cima, as coisas do
culto foram feitas, as obrigações foram todas feitas. Foi muito carro... veio
muita gente lá de cima. Eu passei um terno branco dele, porque Honória
queria que fosse branco, ela era a mais velha, também por causa do culto
neh? Ai as outras filhas de santo escolheram o caixão. Quando Hélio chegou
ele chorou muito, porque meu avô já tinha falecido, ele (Hélio) não tava
doente ainda. O pessoal todo foi organizar as coisas, se juntaram, uma filha
de santo enterrou ele na cova da família dela, no cemitério dos Lázaros e
depois de três anos a gente tirou e botou no ossuário, mas era de outra filha
de santo também (...) ai depois se perdeu. (Entrevista realizada no dia
03/07/2013)

Após sua morte, ninguém assumiu seu posto sacerdotal. Segundo alguns relatos,
esse posto seria assumido algum dia pelo jovem Assobá Helio de Oliveira, ficando o
terreiro nesse período sob os cuidado das filhas mais velhas da casa, Ebome Honória de
Oxossi e Maria da Natividade conhecida como ebome Iatu.
Sobre os tempos que a casa ficou temporariamente sob os cuidados de Iatu,
Lima diz:
O terreiro de Ogunjá, do falecido pai de santo Procópio, ficou
praticamente sem qualquer atividade publica durante vários anos, com
seu calendário litúrgico interrompido desde a morte do babalorixá, em
1958. Entre tanto, depois de um longo interregno, a casa voltou a
funcionar; o barracão foi reparado; os santos comeram, a hierarquia se
recompôs; as ebomes da casa voltaram a ajudar nos seus postos e uma
delas, é, hoje, a Yalasé da casa. (Lima, 1998, p.45-46)

O plano era que as ebomes tomassem conta da casa até o dia que Helinho
estivesse pronto para assumir o terreiro. O destino porém, mexeu com os planos feitos
pelos membros do terreiro, Hélio de Oliveira morre três anos após a morte de Pai
Procópio, aos 33 anos de leucemia. Os rumores sobre a morte inesperada do herdeiro do
Ilê Ogunjá suscinta boatos entre o povo de santo.
Incentivado desde cedo pelo avô, que percebeu sua aptidão para a pintura, Hélio
aos 13 anos foi enviado a um amigo pessoal de Pai Procópio, Frei Thadeu, e trabalhou
por um tempo na tipografia do convento, posteriormente concluiu o ensino médio e
conseguiu ingressar na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia.
Com Pai Procópio aprendeu os segredos do culto aos orixás, e transmitia suas
visões através da xilogravura. Seu legado consiste em cerca de 50 obras concluídas,
algumas fazem parte de acervo de museus como o Museu de Arte Moderna da Bahia,
em Salvador, e o Museu Afro Brasil no Parque Ibirapuera em São Paulo, a maioria da
56

temática de sua obra é a simbologia e imagens do candomblé. De toda sua breve


vivência com o pai de santo, o que Hélio tinha certeza era que tinha uma missão a ser
cumprida e, lembrava disso, como nessa conversa com o médico e professor da
faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, Dr. Clarival do Prado
Valadares, em seu discurso sobre o avô:

Imagem 04. Artista plástico e neto de


Procópio de Ogunjá, Hélio de
Oliveira. Fonte: Acervo Pessoal de
Dona Edna.

-Sim doutor; agora vou lhe explicar a missão e a mensagem. É a grande


teoria de meu avô. Ele depois de sofrer muitas perseguições durante muitos
anos, da polícia, do governo, do clero, sentiu a necessidade de se defender,
tanto a ele como todos os seus princípios, perante seus acusadores. E não
tinha meios. O sacerdote ioruba é sempre uma pessoa mais evoluída, é mais
do que um doutor, um técnico, um governador. Ele por exemplo, desde
menino se iniciou nos mistérios e nas forças, reuniu uma pratica tremenda.
Tinha teoria de um mundo de histórias e de coisas, conhecia a vida e a obra
de cada santo, era capaz de falar durante dias sobre cada uma das nações
africanas, ele parecia viver dentro de uma biblioteca e era, em relação a nós
outros, analfabeto. O senhor não imaginava o rio de coisas que ele sabia.
Assisti contar tantos episódios, guerras, conquistas, vinganças dos seus, com
distancia de cinco ou seis anos e não se contradizer. Ficava de olhos parados
em algum ponto, era sobre algum documento que ninguém via, movimentava
a mão como se folheasse, prosseguia e sempre terminava fazendo indagações
da matéria narrada, para ver se os outros tinham aprendido as intenções e as
virtudes. Uma vez ele me explicou que tudo aprendera de seus mestres, no
57

século passado, africanos que foram nobres e sacerdotes em suas nações.


Aquele americano que Dr. José traduzia para ele ficou encantado em
encontrar em meu avô as mesmas histórias que sabia da África. A vontade de
meu avô era traduzir tudo que sabia, todos os seus símbolos e forças para
mostrá-las a nós, da civilização branca. Com isto ele desejava mostrar que
seu culto não era arte diabólica. O maior sofrimento dele foi não poder
convencer os alheios que o candomblé nada tem haver com o demônio, a não
ser o seu domínio sobre o próprio demônio, afim de poder praticar o bem. O
fim era o bem, mas para atingÍ-lo era preciso conhecer as forças do mal, não
temê-las, enfrentá-las e dominá-las. É nisto que o culto africano tem sutilezas
que nós não temos (...). (Apud. Bacelar, Pereira, 2007, pp. 103-104)

Assim, o jovem estava disposto a falar sobre sua religiosidade e sobre as


inquietações que faziam parte da reflexão seu avô. Foi na academia que Hélio conheceu
o cineasta Glauber Rocha. No roteiro de Glauber, “Barravento”, um filme de 1962, um
jovem volta a sua aldeia, no litoral baiano, na praia de buraquinho, um reduto de
descendentes de escravos que mantém sua crença nos orixás. O rapaz tenta desconstruir
a visão fatalista e religiosa de seus conterrâneos. Para fazer o filme o cineasta precisou
se aprofundar no universo do candomblé e elegeu como seu consultor o jovem Hélio,
que, contrariando os orixás contou segredos e ritos do candomblé:
Neto de criação de um antigo e respeitado pai-de-santo da Bahia, crescer
entre “matanças” e “obrigações”, brincando em menino com as “yaôs”,
aprendendo-lhes a vida e o seu sentido. “Assobá” de Omulu, guardião da
“casa do velho”, sabedor de mistérios, fugindo, menino ainda, apavorado, das
batidas da polícia dirigidas por um “irmão de santo” de seu avô Procópio...
Este moço não obteve a permissão, a “licença” de seu santo para trabalhar
com Glauber. (Não será aqui o lugar de explicar a terrível imanência do axé
de Omulu, de seu poder, de seu rancor, de sua tremenda força e da sua
irredutibilidade). Mas ele “teimou e foi”. E Omulu não o perdoou, não o
poupou de seu castigo. Morto Hélio tão moço, aos 33 anos – o povo de santo,
a gente do candomblé, imediatamente atribuiu sua morte ao castigo de seu
orixá, que dessa maneira punia seu filho pela desobediência a quebra de uma
ordem ou de um impedimento ritual. E a inteligente e sutil mensagem do
filme de Glauber Rocha se perdeu para o povo, que não a entendeu, mas que,
pelo contrário, fortaleceu sua crença na força e no poder dos orixás.
Vulnerado por sua própria crença, Hélio Oliveira não ligava para sua
condição de doente, não lhe interessava a lesão cardíaca que o vitimou –
sabia-se condenado pelo orixá. (Costa Lima, 1962, pp. 4-6)
58

Logo que a doença se apossou de Hélio, o povo de santo, principalmente seus


irmãos, segundo dona Edna, atribuíram sua condição ao castigo dado pelo seu orixá,
pelo jovem ter aberto ao cineasta as portas e os segredos do Ilê Ogunjá.

Imagem 05. Xilogravura de Hélio de


Oliveira (Saída de Yaô) Fonte:
Acervo Pessoal de Dona Edna.

Foi nesse contexto, e entre idas e vindas ao hospital, amparado pela irmã Edna,
que no final de 1962, quatro anos após a morte de Pai Procópio, faleceu o jovem Hélio.
Segundo o diagnóstico médico a causa foi leucemia, e logo que foi identificada a
doença houve recusa de Hélio em começar o tratamento, o que dificultou sua cura e o
levou a óbito.
(...) Foi embora outro dia Hélio de Oliveira, jovem gravador em vias de ser
grande gravador, e, nas proximidades do cemitério, os homens da seita , os
velhos ogans vieram e tomaram do caixão levado pelo poeta Hélio Simões e
pelos plásticos da Bahia. Tomaram do caixão e o conduziram dentro de todos
os preceitos do candomblé, pois era o pai que morrera, o herdeiro de
Procópio”. (Amado, J. Hélio, Neto de Procópio. A TARDE, Domingo, 8 e
9/12/1962. Suplemento Literatura e Arte. p.6).

Mesmo antes de sua morte já haviam complicações com relação à herança do


Ogunjá. Os filhos de um irmão natural de Pai Procópio, dentre os quais, Pai Edinho,
que é ogã confirmado para o Ogum do Pai de Santo, reivindicavam a posse do Terreiro,
como podemos perceber nessa entrevista
Aquelas terra eram por direito da nossa família... assim porque ele (Procópio)
era nosso tio, minha mãe era uma das filhas velhas e eu era o ogan do
59

Ogunjá, mas ela (Dona Edna) queria acabar com tudo, vendeu muito terreno
do terreiro, ela não era feita, então se o Hélinho morreu, era a gente que era
da família que tinha de tomar de conta, mas ela é gananciosa, tanto que
acabou com tudo, e nem Ogum ela teve coragem de dar, mas assim que ela
morrer a gente vai pegar Ogum, pois ele tem de voltar pra familia que é
sangue, agora que ela acabou com tudo nem tem mais porque segurar
Ogum... Nos processos a gente ganhou, mas expulsaram a gente debaixo de
bala... foi coisa mandada. (Entrevista de pai Edinho colhida em 12/07/2012)

Sobre esse período, dona Edna prefere não comentar. O que consegui dela foi
apenas comentários de como esses parentes, segundo ela distantes, faziam confusão por
causa das terras. Em uma entrevista dada ao cineasta Geraldo Sarno, em 1983, ela
lembra de palavras de Pai Procópio:
Ele sempre falava comigo e com Hélio: Vocês peçam a Deus que antes de
Deus me chamar eu possa deixar a vocês tudo legalizado, porque tem muita
gente aqui com os olhos nisso. E se eu faltar vocês vão ficar feito barata no
terreiro de galinha. (Pereira, 2007, p.108)

Apesar destes conflitos, houve por parte de algumas filhas de santo a tentativa de
manter o terreiro em funcionamento. A princípio, temporariamente, quem ficou a frente
da funções religiosas foi Honória de Oxossi, uma das filhas mais antigas do Terreiro
mas ela faleceu logo após a morte de Hélio. Depois, o terreiro ficou sendo cuidado por
dona Maria da Natividade, conhecida como Iatu, que faleceu no fim da década de 1970.
Nenhuma das duas chegou de fato a serem empossadas como a mãe de santo do
Ogunjá, mas tomavam conta do terreiro provisoriamente. Em meio a essas disputas
auxiliadas por um pai de santo conhecido como Vicente de Matatu, conseguiram
cumprir as obrigações mortuárias do pai de santo, realizaram o rito do axexê que se dá
no dia da morte a 1, 3, 7,14 e 21 anos após a morte de um pai de santo ou pessoa
importante dentro de um terreiro.
Após a morte de Iatu, no começo da década de 1980, o pai de santo Domingos,
que freqüentava o Ogunjá na época de Pai Procópio, mas não tinha vínculo religioso
com o terreiro, tenta dar continuidade ao ciclo de festas da casa, mas é frustrado com a
caída do teto do barracão. É nesse período que o barracão é desativado definitivamente.
60

Imagem 06. Dona Edna, conhecida


como Mãezinha. (2013). Fonte:
Fotografia de Rychelmy Imbiriba
Veiga.

O grande espaço que era a propriedade do terreiro foi aos poucos sendo vendido,
tanto por Dona Edna quanto por Pai Edinho. Na época em que o teto do barracão
desabou, cerca de 300 metros do terreno, estavam preenchidos por casas em terras que
tinham sido vendidas, e que separava a casa de dona Edna do que restava do terreiro.
Sem recursos para levantar o teto do barracão novamente, é nesse período que ela leva
todos os objetos de assentamentos de Ogunjá e demais orixás para sua casa.
Segue em anexo no fim do trabalho os documentos do inventário, tanto o
primeiro que transferia os bens de pai Procópio para seus dois afilhados, Hélio de
Oliveira e Edna Souza Santos, quanto o inventario que oficializa todos os bens deixados
pra ela, já que era a única parente, ele não casou nem teve filhos.
Legalmente dona Edna sempre foi a herdeira das terras do Ilê Ogunjá, embora
ela não tenha assumido a parte religiosa, ela deixou que as iniciadas tomassem conta do
sagrado até quando o barracão desabou no começo da década de 1980.
61

Após o falecimento de pai Procópio, o terreiro chegou a realizar festas algumas


vezes, perguntei a dona Edna por que não se iniciou nessa época, já que tinha sido
suspensa equede em 1954 pelo orixá do pai de santo e sabia que tinha de cumprir o
chamado de Ogum:
Meu marido não gostava dessas coisas, e tinha meus filhos, eram seis pra eu
cuidar, e tinha também essa confusão, o povo brigando pra ver quem assumia,
tinha o pessoal sobrinho dele, filho da irmã que queria as terras, eu não queria
que eles fizessem as coisas pra mim, e... depois veio até o povo da finada
Davina, vieram, tiraram fotos, me mostraram fotos da casa deles no Rio, mas
eu nunca quis, achava que não era o tempo. (Entrevista realizada no dia 19-09-
2013)

É notável que havia uma preocupação por parte de dona Edna em não ficar
submissa aos membros do terreiro, porque existia da parte dela, outros interesses, como
manter seu próprio patrimônio e os de seus filhos por exemplo.

Ciente de sua obrigação com o Ogunjá de seu avô, ela reformulou sua própria
casa, que ficava abaixo do barracão, fez quartos de santos para Oxalá, Omolu, Exú e
Ogum. Fez um pequeno salão para festividade e através das últimas duas décadas faz
quase todos os anos a feijoada de Ogum nesse espaço sem, no entanto, tocar candomblé
devido a sua condição de não iniciada na religião.

Imagem 07. Visão da fachada do Ilê Ogunjá. Foto: Fátima Carvalho. 2014.
62

Imagem 08. Barracão do Ilê Ogunjá. Fonte: Fotografia de Andréia Magnoni.

Ao longo desta pesquisa, procurei mapear as casas de santo que descendem do


Ogunjá, algumas que estavam na memória dos entrevistados já estão extintas, como de
Beth de Oxalá e Manoel da Caixa D’água, como é lembrado por Antonio Penna e dona
Edna. Optei então por catalogar as casas de descendência direta, fundadas ou
idealizadas por filhas iniciadas por Pai Procópio e que ainda estão com suas atividades
ativas por suas descendentes.
Uma das primeiras mães de santo formada pelo Ilê Ogunjá foi Maria Davina
Pereira, conhecida como Yá Davina. Nascida em 1880, segundo os relatos de sua neta e
herdeira espiritual mãe Meninazinha de Oxum, mãe de santo do terreiro Omolu Oxum
no Rio de Janeiro, Yá Davina foi iniciada no dia 24 de julho de 1910 por Pai Procópio.
63

Ela se mudou para o Rio em 1920, já como mãe de santo acompanhada por seu esposo,
Teóphilo Pereira, ogan do Ilê Ogunjá.

Imagem 09. Maria Davina Pereira, Yá


Davina. Fonte: Acervo pessoal de sua neta,
Meninazinha.

Yá Davina, segundo sua neta, Meninazinha, ajudou na fundação de diversos


terreiros no Rio de Janeiro, pois sua casa funcionava como uma espécie de embaixada
baiana, servindo de apoio para os pais e mães de santo que chegavam no Rio. Ela
faleceu em 1964, coincidentemente no mesmo ano da morte de Hélio.
Outra mãe de santo descendente do Ilê Ogunjá é Pastora de Iemanjá, segunda
sacerdotisa do Maroketu. A casa foi fundada em 1942 pela mãe de Santo Cecília de
Brito, conhecida como Cecília Bonocô, devido a localização de seu terreiro no bairro de
Cosme de Farias, próximo a avenida Bonocô. A fundadora da casa foi iniciada pela
sacerdotisa Damiana Oxalafalaqué, que por sua vez era filha de santo de Yá
Magebassam, essa matriarca era mãe carnal de Martiniano do Bonfim. Mãe Cecília,
após o falecimento de sua iniciadora, recebeu os direitos de mãe de santo pelas mãos de
pai Procópio e a ele confiou a iniciação de sua filha carnal. A jovem Pastora, anos mais
tarde com a morte da fundadora viria assumir o posto de mãe de santo.
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Imagem 10. Mãe Pastora. Fonte:


Acervo pessoal de sua neta, Cecília
Soares.

Mãe Pastora faleceu em 2009, hoje quem assumiu o terreiro foi sua filha, que é
neta e tem o mesmo nome da fundadora, Cecília Soares e como a avó, também filha de
Obaluaiê.
Outra filha de Pai Procópio é a finada mãe Roxinha de Oxum , que inaugurou
seu terreiro de candomblé em 1942. O Ilê Axé Oxum Tadê atualmente tem por mãe
Ivonete da Mata Barreto, filha carnal da Yalorixá fundadora e sobrinha carnal de Pai
Procópio. Ivonete é irmã de dois dos principais informantes desta pesquisa. Porém por
ser a filha caçula de mãe Roxinha suas lembranças sobre o Ilê Axé Ogunjá não são tão
vivas quanto a de seus dois irmãos que viveram parte da infância e da adolescência
brincando nas dependências do terreiro e conviveram com o pai de santo.
65

Imagem 11. Mãe Roxinha. Fonte:


Ilê Axé Oxum Tadê.

È interessante refletir, sobre as casas descendentes do Ilê Ogunjá, que elas


mantém o matriarcado imaginado, seja pelo popular ou pela academia, e todas são
passadas de mãe para filha. Talvez a resistência de pai Procópio em iniciar homens
tenha marcado, também, de alguma forma o modo como se daria o prosseguimento das
linhagens de sucessão destes terreiros.
66

CAPÍTULO IV

A FEIJOADA DE OGUM: A HERANÇA DE PAI PROCÓPIO PARA OS


TERREIROS AFRO –BRASILEIROS

O ato de comer supõe-se que foi um instinto espontâneo do homem, a princípio


atraído pelas cores e aromas dos alimentos. Com a manipulação do fogo, acredita-se que
houve uma mudança na sua relação com a comida. Os conhecimentos sobre o preparo
que vieram com os processos de cocção foram acumulados e transformados através do
percurso histórico. Ao longo do tempo o homem vem desenvolvendo técnicas de
manipular o alimento, a inteligência e criatividade e, inseridos nessa relação, o que era
um instinto de sobrevivência começa a ser também fonte de prazer.
A alimentação é uma necessidade fisiológica, é preciso nutrir o corpo; porém, a
prática de comer não é uma ação solitária, ao contrario, é um elo de socialização, desde
o momento que o homem nasce essa pratica está presente de modo social, através da
dependência da mãe, depois a alimentação na escola, os jantares românticos e refeições
no meio profissional. Em determinadas sociedades esta relacionado com normas
religiosas, hierárquicas e políticas. Essas normatizações são assimiladas através das
gerações, e, na maioria das vezes não são questionadas pela cultura a qual pertencem,
mas respeitadas e mantidas. O interesse pelo estudo da alimentação não é algo recente
para a antropologia; os estudos sobre o tema no Brasil tiveram, pelo menos para autores
do nordeste, uma influência marcante da cozinha afro brasileira em suas pesquisas.
Desde o final do século XIX, Nina Rodrigues (1945) já apontava a relevância da
culinária africana para a cozinha baiana. Outro escritor, também nordestino, a trabalhar
uma antropologia alimentícia foi Gilberto Freire, em seu livro Casa Grande e Senzala
(1933) construído também, na perspectiva da contribuição da cozinha afro-brasileira .
Entretanto, segundo Lima (2010, p. 40), o primeiro trabalho realizado sobre o tema, foi
a monografia de Manuel Querino intitulada escrita em 1922, mas publicada em 1928,
após sua morte; sobre a qualidade de sua pesquisa Lima frisa que:
Neto de africanos, Querino teve informantes válidos para sua pesquisa, e isso
se verifica quando analisamos as receitas dos pratos que ele classificou como
‘puramente africanos’, e em que se nota o laconismo, a precisão cautelosa,
tão conhecida dos que praticam o candomblé, as pessoas de santo. (...)
Imagino que os informantes de Querino eram velhas tias nagôs,
67

possivelmente parentas suas, gente ligada ao terreiro de onde era certamente


ogã, o Gantois. (Lima, 2010, p. 54)

Outro trabalho elogiado por Lima (2010) foi escrito em 1939, por Sodré Viana
intitulado “Caderno de Xangô: 50 receitas de cozinha baiana do Litoral e do Nordeste”.
De acordo com Lima, “esse e o livrinho de Querino são os dois únicos trabalhos de
culinária baiana publicados, realizados com uma pesquisa de campo, como diríamos
hoje em metodologia de pesquisa” (2010, p. 61).
O sociólogo francês Roger Bastide publica, em 1947, o artigo A Cozinha dos
Deuses e faz um estudo sobre a readaptação da culinária africana no Brasil. Para ele, o
importante não era o prato em si, já que havia mudanças nos ingredientes, mas o nome
que eles mantinham que fazia com que os negros se lembrassem da África. Ele ainda
dizia que “Se a cozinha africana pôde manter-se fielmente na Bahia, contra a cozinha
portuguesa ou indígena, com base na mandioca, foi porque se encontrou ligada ao culto
dos deuses e que os deuses não gostam de mudar de hábitos”. (Bastide, 1960, p. 464). O
artigo levantou alguns questionamentos e críticas de Lima (2010, p. 55) e Souza (2009,
p. 57) contra seus métodos, fontes e raciocínio.
Outro momento importante da historia da antropologia alimentar legada pelos
negros foram o Primeiro e o Segundo Congresso Afro-brasileiro, em 1935 e 1937,
respectivamente. O primeiro aconteceu em Recife, organizado por Gilberto Freire e o
segundo em Salvador organizado por Edison Carneiro. Em Recife três autoridades do
candomblé, Oscar Almeida, Apolinário Gomes e a ialorixá Santa contribuíram
escrevendo duas listas sumárias de comidas sagradas. Já no Congresso de Salvador,
quem deu sua contribuição foi a ialorixá Aninha Obá Biyi, do Ilê Axé Opô Afonjá. Ela
listou vinte e cinco tipos de comidas e ingredientes usados na preparação da comida dos
orixás. A lista foi publicada nos anais do evento como “Notas sobre comestíveis
africanos”, porém ela não deu informações de como se dava o preparo dos pratos:

(...) esse despojamento nas “receitas” de Aninha indica claramente, no campo


da comida ritual, o que significa para o povo de santo, a reserva nas “coisas
de fundamento”. Pois as “comidas africanas” listadas por Aninha eram todas
elas, comidas de santo, oferecidas nas obrigações aos orixás, que tem suas
próprias preferências alimentares sempre associadas a seus mitos e a uma
complexa prescrição simbólica. (Lima; Oliveira, 1987, p. 60)

Sem revelar segredos, tão valorizados no campo iniciático do candomblé, mãe


Aninha, listou uma variedade de alimentos como acaçá, angu, abará, caruru, acarajé.
68

Ainda no âmbito da pesquisa alimentar afro brasileira nomes importantes


contribuíram com o tema, a exemplo de Lody (1979,1992, 2009), Cascudo (1983),
Brandão (1948), Vianna (1955) Tavares (1951) e Viana (1939).

COMER COM FÉ: OS CAMINHOS DO FEIJÃO

É importante destacar que as mais diversas religiões mantêm relação estreita


com o comer, o consumo ou o tabu de certos alimentos que acompanha toda a vida dos
devotos:
A identidade religiosa é, muitas vezes, uma identidade alimentar. Ser judeu
ou mulçumano, por exemplo, implica, entre outras regras não comer carne de
porco. Ser Hinduísta é ser vegetariano. O cristianismo ordena sua cerimônia
mais sagrada e mais característica em torno da ingestão do pão e do vinho,
como corpo e sangue divinos. A própria origem da explicação judaico-cristã
para queda de Adão e Eva é sua rebeldia em seguir um preceito religioso: não
comer o fruto proibido (Carneiro, p.72, 2005)

O candomblé é uma religião onde tudo se alimenta: homens, deuses, espaços e


objetos. É também,construído em cima de preferências e interdições alimentares:

Aí comem (e devem ser alimentados) não só humanos, orixás e caboclos, mas


também a cabeça (ori), o chão, os tambores, os colares de contas usados pelos
adeptos.A comida distingue os seres e os coloca em relação. Comida dos orixás
e comida de humanos diferem, assim como difere o que comem os adeptos
quando estão em obrigação no terreiro e o que comem no seu dia a dia. As
divindades distinguem-se por suas predileções alimentares, a cozinha abarca
um vasto receituário das iguarias prediletas de cada um dos deuses. E a comida
circula, não só distingue como também traça equivalências e reúne os
integrantes de um terreiro em eventos de comensalidade generalizada.( Rabelo,
2013, p.87)

È através da religião que seus seguidores evidenciam os mitos e acham meios de


explicar sua lógica alimentar, que é peculiar ao povo de santo. Sobre essa relação,
Magalhães (2007) afirma que:

(...) o que determinou a vida da religião foram esses cruzamentos culinários e


religiosos, essa mistura de paraísos comensais, esta ética pautada pelo prato,
(...). Isso porque as tradições espirituais que aqui [no Brasil] chegaram
mantiveram a experiência e a noção da vida e do sustento da vida. Com isto,
reivindicaram, por meio de suas normas e suas trapaças, os sustentos do
69

mundo. Contra o Deus sem entranhas e sem vida festiva, as tradições


religiosas conseguiram fazer sobreviver os ideários comensais e festivos. A
religião conseguiu manter viva a divindade relacionada com a alimentação
dos povos. (Magalhães, p.63, 2007).

Algumas cerimônias públicas acontecem ao redor da comida; é o caso do


Olubajé, banquete oferecido ao orixá Omolu, do Ipeté de Oxum e o Amalá de Xangô,
todos oferecidos e comidos em meio da cerimônia pública. O foco desse capítulo
também está inserido nesse modelo cerimonial, a feijoada de Ogum.
Para falarmos sobre a feijoada é interessante analisarmos todo o trajeto que ela
percorreu para que chegasse atualmente a ser considerada como patrimônio imaterial
nacional e alimento litúrgico da religiosidade do candomblé. O ato de se alimentar,
conseguir o alimento, prepará-lo e cozinhá-lo são atos sociais que estão imbricados de
valores culturais.
A feijoada é um prato genuinamente brasileiro, sua origem é motivo de diversas
especulações, a mais comum associada ao mito racial do Brasil, e seria elaborada pelos
negros com as partes menos nobres da carne de porco e boi; porém, todo processo que
constituiu o que a feijoada teve origem em outras fontes :

Na verdade, tanto os produtos (porco, leguminosas, alho e cebola) como a


técnica são de origem européia, mais especificamente ibérica e, se quisermos
buscar uma origem mais longínqua, judia sefardita. Pasmem! A feijoada tem
origem judaica(...) Mas e o porco? É claro que o porco vem depois. Mas,
vamos por partes (...) (Carneiro, p.76, 2005)

A palavra feijão é de origem portuguesa e foi registrada pela primeira vez no


século XIII (Elias, 2008 p.34), cerca de 300 anos antes da colonização do Brasil. O
feijão preto, de origem sul-americana, já era consumido pelos índios brasileiros antes do
“descobrimento”. A partir do século XVI começam a ser inseridos no Brasil feijões de
origem africana e também um feijão português conhecido como feijão fradinho.
Até o final do século XVII o feijão não estava inserido na lista básica de
alimentos contidos na dieta brasileira (Papavero, 2008), essa dieta, compunha-se apenas,
nessa época, de farinha de mandioca seca, de carne-seca, de peixe-seco ou de carnes e
de peixes salgados, substituídos às vezes por víveres frescos, carnes verdes, peixes
recém-pescados, raízes, grãos, folhas e frutas ou por preparos perecíveis como a farinha
de mandioca fresca:

(...) a base fundamental da subsistência do Brasil estava na mandioca, na


farinha, uma vez que todos, naturais e estrangeiros, se alimentavam de pão. As
70

mesas da cidade refletiam a hierarquia das farinhas: a fina, a copioba, para os


abastados; a de caroço, amarela, bolorenta, para os negros e pobres. Não
esqueceu do aipim, para El “ outra qualidade de mandioca”. Mas sem o seu
veneno, com a qual não se fazia farinha, porém era “gostosa assada no borralho
e comida quente com manteiga. (Bacelar, 2013, p 277)

O feijão era visto como alimento para classes menos favorecidas, carregando
status de desprestigio social. As diferenças de classe, de homens livres e escravos, de
homens ricos e colonos pobres determinava a realidade alimentícia de cada grupo.
Considerado um alimento difícil de digerir e flatulento era alvo de especulações
negativas em relação a saúde, como nesse relato do Médico do rei D. João V em seu
trabalho denominado “Âncora medicinal: para conservar a vida e a saúde” (editado em
1721):
Legumes chamou Galeno às sementes cereais de que se não faz pão, ainda
que se faça farinha. E costumam ser o mais comum alimento da gente rústica,
posto que pela graça de seu sabor, também sobem muitas vezes a mesas
nobres. Estes são as favas, as ervilhas, os grãos, as lentilhas, os feijões, os
chicharros, os tremoços, o arroz e o gergelim. Todos eles são crassos, térreos,
melancólicos, flatulentos, principalmente sendo verdes, por cuja causa se hão
de temperar com condimentos e cebolas, como corretivo de seu prado suco e
da sua muita flatulência. (Henriquezh, 2005, p.159)

. Sobre os malefícios, o médico do rei ressaltava:


Os feijões são quentes e secos, crassos, melancólicos e terrestres, e ainda que
haja entre eles alguma diferença, porque uns são grandes, outros pequenos,
uns são brancos, outros vermelhos, isto é em relação à cor e à figura, que em
relação à forma e temperamento substancial em nada diferem, se bem que
alguns querem que os vermelhos excedam no calor aos brancos. Todos se
cozem e digerem com dificuldade, são flatulentos e nutrem bastantemente.
Geram-se deles humores crassos e melancólicos, de que nascem obstruções.
Perturbam o sono com fantasias tristes, oprimem a cabeça e ofendem a
audição. (Henriquezh, 2005, p.159).

Vários fatores levaram, no decorrer dos séculos, a uma mudança em relação ao


lugar do feijão na alimentação brasileira. O rápido meio de produção da safra (em média
três meses de plantio), a praticidade de transporte dos grãos e o fato de se conservarem
bem após estarem secos foram fatores determinantes para sua consolidação como
alimento. É na metade do século XVII e nos primeiros anos do século XVIII que se deu
a transição de alimento de assimilação duvidosa para o alimento genuinamente nacional.
Nos séculos XVIII e XIX (Papavero, 2008) são inseridos na sua preparação toucinhos e
outras carnes e o feijão adquiriu uma nova roupagem, mais elaborada dando origem à
feijoada brasileira.
Já para o candomblé o ato de comer e socializar a comida esta fortemente ligado
à ritualística. Toda cerimônia comemorativa acaba em uma grande refeição que é
71

compartilhada por todos os presentes. Esse momento de socialização está não só ligado
ao ato de alimentar-se, mas embutido de valores míticos, de vivências de ritos que são
explicáveis através da concepção religiosa afro-brasileira. O alimento sagrado é parte
integrante de todas as cerimônias, é, pois, o ato de reviver certas práticas ancestrais
(Cornneton, p.70-71):

As cerimônias comemorativas têm duas características em comum com todos


os outros rituais: o formalismo e a performatividade. E, na medida em que
funcionam efetivamente como dispositivos mnemônicos, são capazes de
executar essa função em grande parte devido ao fato de possuírem essas
características. Mas as cerimônias comemorativas podem-se distinguir-se de
todos os outros rituais pelo fato de se referirem explicitamente a pessoas e a
acontecimentos protótipos, quer considere que estes têm uma existência
histórica ou mítica. Em virtude desse fato, os ritos desse gênero possuem uma
característica que lhes é definitivamente própria, que podemos descrever
como reencenação ritual. Essa característica é de importância fundamental na
memória comunitária. (Cornneton, 1993, p.70-71)

Assim, a cerimônia de candomblé se inicia como forma de explicar o mundo


através dos mitos e vivências do povo de santo. Tudo é motivo para festa, o transe, as
iniciações, os aniversários de tempo de iniciação, os festejos anuais fixos de cada orixá,
tudo isso acompanhado de toques, cantos, danças, folhas e principalmente de comidas.
O alimento é sacralizado e dividido com a comunidade. Nesse contexto o gosto dos
orixás é extremamente importante. A ira ou a graça de um orixá pode estar ligado a
determinada oferenda, por exemplo, o dendê é interdição para Oxalá, não podendo
jamais lhe ser oferecido, assim como a pipoca é a comida preferida de Omolu e é usada
pelos devotos para pedidos de saúde.
Logo toda a ritualística está intimamente ligada ao alimento, desde um simples
trabalho de limpeza a mais complexa cerimônia de iniciação são utilizados grãos, frutos,
leguminosos. Todo elemento contém certa energia, que aliado ao ato de falar e invocar a
ancestralidade favorece uma troca de forças entre os grãos, as pessoas ou objetos que no
alimento fica impregnado sendo mantido e renovado se preciso for, ao qual Santos
(2002, p. 40-42) se refere como “poder de realização” e o povo de santo chama de
“axé”.
72

Imagem 12. Alimentos preparados para ritual de limpeza (ebó) no terreiro Ilê Asé Ojise
Olodumare. Fonte: Fotografia feita por Rychelmy Imbiriba.

Na foto acima, podemos observar as diversas comidas utilizadas em um trabalho


para limpeza, no Terreiro Ilê Asé Ojise Oludumare. O feijão está presente em suas
variantes, preto, branco e fradinho, juntamente com grãos de milho e diversos bolinhos
de farinha.
Lima (2010) destaca a relação existente entre o alimento, o ritual e sua
adaptação no candomblé:

(...) foi certamente na estruturação das primeiras casas de santo da Bahia,do


modelo nagô, no fim do século XVIII começo do XIX, como disse, que essa
comida de santo terá sito recriada, codificada, reconstituída entre nós, com as
inevitáveis substituições, se por acaso os ingredientes, ou mesmo os animais,
não fossem encontrados no novo cenário ecológico dos orixás e voduns (...)
(Lima, 2010, p.26)

Assim percebe-se que houve uma adaptação do quadro de alimentos usados no


novo culto estabelecido na Bahia, a partir do momento em que substituições foram
necessárias, resultando na reelaboração de comidas e inserção de novos elementos. Esse
processo é naturalmente assimilado e é resultado do próprio contato de culturas
diferentes, não só no que diz respeito aos homens, mas também aos alimentos em si. O
feijão é um destes elementos adaptado e que está fortemente ligado ao candomblé.
73

Ingrediente básico das limpezas, grão base do acarajé, e de diversos pratos sagrados. É
utilizado em suas variantes, fradinho, mulatinho, branco e preto.
Para realidade de um povo onde o festejar e o comer são ações conjuntas, o
calendário e a importância de cada festa diferem de terreiro para terreiro. Em Salvador
cada terreiro ativo realiza ao menos uma dezena de festas por ano, e dependendo da
festa, as comemorações podem ser em um dia ou em semanas. E como existe uma
socialização, as festas são frequentadas por membros de famílias de santo de outros
terreiros construindo assim um ano cheio de atividades para os adeptos do candomblé.
Essas características das festas dos terreiros de serem constantes e repetitivas,
levou o candomblé a ser um laboratório para pesquisadores de grupos sociais e
religiosos. Para Rita Amaral (1992) o estudo das festas religiosas se insere no quadro
de análises de ritual, e não existe uma tendência para a sua queda, pois, cada vez mais
os grupos se organizam e produzem mais festas. A autora ainda afirma que nas festas de
candomblé não existe inversão de valores nem funções definidas e, por isso, servem
para tudo e para nada. Nesse contexto não são encontradas aspectos como o caos, a
violência e as transgressões de regras, comum em certos tipos de festa.
Cada festa tem seu grau de importância diferente para cada terreiro, se a festa é
do orixá dono da casa, ou do orixá da mãe ou pai de santo é provavelmente bem maior e
concorrida que as demais. Em casas de candomblé mais antigas esse processo é mais
complexo ainda, pois no decorrer de sua existência estiveram dirigindo o terreiro
diversas Yalorixás de orixás diferentes e seu poderio religioso continuou a ser
importantes mesmo após a morte da dirigente. No Ilê Ogunjá, os ciclos de festa eram
bem definidos. Dona Edna relata que o Ogum do pai Procópio já era festejado pelo
começo do ano, e era seguido de três domingos para Oxalá. Já o ritual da feijoada, nasce
depois deste arranjo fixo do ciclo de festas, e não é ligado a festa de Ogunjá, mas, sim, é
uma nova cerimônia com nova data no calendário para aquele orixá. Acontecia todo ano
no mês de novembro.

A feijoada de Ogum, no Ogunjá

Para a construção dessa seção, utilizei como fonte – além de parentes ligados à
pai Procópio – três babalorixás, um deles, pai Valter Ezidio (pai Valtinho) que na
74

adolescência foi frequentador do terreiro Ogunjá, e os outros dois, pai Fabio Mendes
Santos e pai Armando Tavares (Farodê) , que fazem em seus barracões a cerimônia da
feijoada.
Uma versão da feijoada de Ogum narra um contexto onde Pai Procópio tenta
explicar o seu cotidiano e daqueles que o rodeiam, através de um conflito interno de
uma ação exclusiva da vontade do orixá. Segundo um dos relatos de Mãezinha o ritual
nasce da seguinte forma:

Um dia Procópio estava comendo em sua casa. Chegou um filho de santo,


com quem ele tinha brigado. Então Procópio manda ele embora com outra
briga. Com isso comete um grande erro para o candomblé: negar comida a
um filho de santo. O santo pegou Procópio e falou que ele estava multado. Na
semana seguinte ele deveria fazer uma feijoada no terreiro convidando todo
mundo. 8

A versão acima pode ser confrontada com entrevista realizada à mesma pessoa
(Mãezinha) para esta pesquisa, mostrando versões diferentes no decorrer do tempo. A
mesma afirma que a feijoada não surgiu a partir de um conflito com um filho de santo;
Relata que na verdade a feijoada tem sua origem por conta de um compromisso firmado
por Pai Procópio com o Orixá Ogum para que o mesmo auxiliasse na manutenção do
barracão (que passava por problemas na sua estrutura física).
Porém, a versão da briga do filho também foi coletada por Lima:

Um fato bastante conhecido nos terreiros da Bahia ilustra um tipo raro de


conflito entre pai e filho-de-santo, motivado por uma falta considerada como
muito grave no candomblé: a da solidariedade de ajuda mútua dentro do grupo.
O fato aconteceu no terreiro do falecido babalorixá Procópio de Ogunjá. Um
seu filho de santo estava passando por certa dificuldade de vida e foi à casa do
seu pai de santo à procura de ajuda. Procópio o teria recebido mau, negando-
lhe qualquer auxilio e até mesmo se recusado a oferecer comida a seu filho.
Falta, por tanto, muito grave de uma pai para com um filho. Diz-se que logo
em seguida o Ogum de Procópio “multou ele porque tinha feito aquilo com seu
próprio filho de santo”, ordenando-lhe que fizesse uma grande feijoada no
primeiro dia consagrado a Ogum, convidasse especialmente o filho que ele
maltratará para o lugar de honra. Essa , aliás, a explicação para a “feijoada de
Ogum” oferecida todo ano naquele terreiro. Percebe-se ai o mecanismo da
sansão imposta sobre o próprio pai do terreiro pelo único poder capaz de puni-
lo, que era seu próprio orixá. Procópio, diz-se que arrependido de sua atitude
impensável de recusar comida ao seu filho de santo, aceitou com humildade a
punição e a transformou, com o tempo em mais uma “obrigação” do calendário
fixo de sua casa. (Lima ,1998, p.70)

8
Entrevista realizada com Mãezinha, afilhada de Procópio, por Ricardo Oliveira de Freitas, dia
12/11/2004 disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Proc%C3%B3pio_d'Ogum.
75

Uma versão sobre a caída do teto do barracão, sobre o nascimento do ritual, é


também contada por pai Valtinho:

Ele (Procópio) fez quatro barracão... os três caiu entendeu? Ai ele fez a
feijoada (...) deu certo (....) as que tem por ai não acredito, e olha que sou
religioso...tudo que é religião eu acredito, mas a feijoada de Ogum só tem ela,
e essa ai ninguém sabe, Ogum veio na antevéspera e disse, que se ele fosse
fazer isso, o feijão dele, botasse bastante toucinho, ai o pessoal faz a feijoada
de Ogum e só põe um pedacinho de toucinho eu não acredito, e outra.. deu
certo e o barracão ficou em pé.

Dona Edna, filha adotiva de pai Procópio e herdeira dos objetos rituais, ainda diz
que:

Ele (Procópio) contava como foi um pouco assim da história... mas o pessoal
inventava tanta coisa (...) na verdade não houve nada de castigo nem nada.
Ele mesmo queria arrematar a festa e fez uma feijoada com todas as
comidas... mas foi uma coisa dele (...) não teve nada de castigo (...).

A partir de um problema interpessoal nasceu uma ritualística que se repetiu ano


a após ano no terreiro de Ogunjá. Segundo dona Edna a feijoada nasceu logo após a
inauguração do barracão, provavelmente em 1910 ou um pouco mais. Isso é o que
Hobsbawm (1984) classifica como “tradição inventada” onde é possível definir seu
começo e onde a prática, tem como objetivo inculcar certos valores e normas de
comportamento através da sua repetição. As versões são de sujeitos que viveram uma
fase do Ogunjá onde a feijoada já estava consolidada, e todos três informantes eram
adolescentes ou estavam começando a vida adulta em 1958 (ano do falecimento de
Procópio). Porém, mais importante do que os fatos que levaram a sua criação é como
ela dialoga com a vontade do orixá Ogum e como se consolida como ritual e tradição9.
Como tudo no candomblé, e segundo o relato dos entrevistados, a cerimônia da
feijoada começa pelo sacrifício a Exu, orixá do principio dinâmico, da comunicação
entre os homens e os deuses e entres este e Olodumare, e, sempre tem a primazia no
culto. Não vou me aprofundar por ser um tema deveras trabalhado por Santos (1976),
Prandi (2001), Trindade (1985) Dopamu (1990), Silva (2013). Geralmente a oferenda
dada a Exu se constitui de bodes e galos. O ato de sacrificar animais aos deuses é uma
prática remota e que já era descrita no Antigo Testamento e em várias sociedades
denominadas de primitiva. O sacrifício representa uma troca, pois deuses e homens se

9
Nos relatos dos entrevistados fica claro também que a feijoada de Ogum oferecida por pai Procópio não
acontecia em concomitância com as obrigações e festas realizadas para celebração do seu orixá Ogunjá.
Eram, portanto, festejos distintos com intenções e modos rituais diferentes.
76

beneficiam mutuamente e satisfazem necessidades recíprocas. Essa relação deve ser


sempre respeitada, pois supõe-se estar além da escolha dos homens:

O sacrifício é alimento dos deuses e dos homens, autor da imortalidade de


uns e da vida efêmera de outros... É um processo que consiste em estabelecer
uma comunicação entre o mundo sagrado e o mundo profano, por intermédio
de uma vítima, isto é, de uma coisa destruída no decurso de uma cerimônia...
Não é sempre facultativo: os deuses o exigem. É um ato útil e uma obrigação.
(Maus e Humbert, 1981, p. 220).

O sacrifício é a parte mais reservada da cerimônia, sendo realizado em ambiente


restrito, longe de olhos curiosos, com a participação de alguns poucos iniciados
escolhidos pelo dirigente. È uma obrigação e exigência dos orixás, sempre encarado
nessa perspectiva. Cada detalhe dessa cerimônia privada é minuciosamente articulada.
Depois das oferendas a Exu, segue o sacrifício a Ogum, que também “come” um
bode e galos. No dia que antecede a festa começa, então, a preparação da feijoada.
Outro dado importante foi a unanimidade dos entrevistados ao apontar o toucinho como
ingrediente mais importante da feijoada, sem revelarem, no entanto o porquê desta
importância. Com algumas poucas variações, os ingredientes da feijoada são:

 Feijão preto ou mulatinho


 Carne seca
 Carne de boi (chupa molho)
 Orelha de porco
 Rabo de porco
 Pé de porco
 Costelinha de porco
 Lombo de porco
 Paio
 Linguiça portuguesa
 Toucinho
 Cebola
 Folhas de louro
 Alho
 Cominho

A quantidade de cada ingrediente varia de acordo com o tamanho da casa,


número de filhos de santo e a expectativa de convidados de cada terreiro. O banquete é
sempre muito esperado, sobretudo em comunidades mais pobres. É também um
77

momento no qual o terreiro abre suas portas para comunidade e sociedade em geral,
amigos e colaboradores. Tornando-se, então, uma oportunidade para o reconhecimento
público de seus dirigentes e dos próprios orixás homenageados. A característica
marcante é a fartura, todos devem comer bem e se possível deve sobrar para distribuição
aos colaboradores, ou mesmo para ser enviado àquelas pessoas que estão ligadas ao
terreiro, mas, que eventualmente não puderam estar presentes na festa.
O cozimento da feijoada começa um dia antes da festa, com a compra de todos
os ingredientes, geralmente é feito no fogo à lenha e carvão. É o próprio pai de santo ou
algum dos filhos de santo mais velhos que a preparam. A responsabilidade de cozinhar,
nesse momento, geralmente é um ato também de socializar, de aprendizado onde os
mais novos auxiliam os mais velhos. A preparação do fogo, catar o feijão, dessalge de
algumas carnes são feitos na véspera.
Da ritualística da feijoada no Ilê Ogunjá os mais velhos tem lembranças mais
consensuais. Fala-se que a feijoada era servida em uma esteira, forrada com um lençol
ou toalha branca, onde as filhas de santo sentavam e eram colocados seus pratos, essas
porém não chegavam a comer , pois no momento que iam levar o alimento a boca caiam
em transe, seus respectivos pratos eram postos no balaio, e levados para o mato.
Pai Valtinho relembra a feijoada:
Arrumava a mesa no barracão (...) de esteira, forrava com um pano branco
botava quantos pratos tinha de yaôs que iam dar santo e um balaio grande
forrado e rezava a reza de Yao comer, quando as yaôs pegavam, metia a mão,
o santo pegava, botava os pratos no balaio ninguém mexia naqueles pratos,
que a yaô virou e saia, era o santo que saia pra se vestir, depois botava a
comida no balaio, e o balaio saia pro mato. Tinha mato lá em cima do
Baixão Rezava o zambi lelê e tudinho, e os santos pegavam e depois dava ao
povo.

Pai Farodê descreve a cerimônia, sem muitas alterações:

A feijoada era um grande ebó, os filhos da casa não chegavam a comer a


feijoada. Era colocado uma esteira no centro do barracão, forrado com um
lençol branco, os pratos das yaôs eram postos, então quando as yaôs levavam
a bola de farinha e feijoada à boca caiam no santo, o prato era posto em um
balaio e as filhas de santo iam se vestir com as roupas do santo, era Ogum,
Oxossi, vinha todos. O balaio saia, mas ninguém sabia pra onde (....).

Desse modo, após o transe, a feijoada não era mais alimento do homem, mas,
parte do que devia ser ofertado, dentro do balaio, e para onde os convidados e até filhos
não sabiam aonde seria depositado.
78

Depois das rezas e da chegada dos orixás, estes eram levados para os quartos de
santo, que tinham acesso restrito aos que eram de fora, e voltavam vestidos com sua
roupa de festas. Pai Valtinho relembra que Ogum vinha na frente, com seus acessórios
de metal, espada,escudo e capacete, seguido de Oxossi e demais orixás que estivessem
presentes na festividade.

A feijoada de Ogum: um dia de festa no Ilê Axé Ibú Oya

O terreiro escolhido para uma etnografia no período de minha pesquisa foi teve
como critério de seleção não fazer parte das casas que descendem do Ilê Ogunjá. O
objetivo é analisar como uma tradição que nasceu naquela casa de culto, Ilê Ogunjá se
adapta em outros tempos e circunstâncias e se mantém viva através de décadas.
O Ilê Axé Ibú Oya é um terreiro de candomblé, liderada por pai Fabio Mendes
Santos. Ela começou a funcionar no bairro de Itapoan há duas décadas, e acerca de 10
anos está localizado em um ambiente residencial no município de Camaçari/BA. Está
localizado em Arembepe, região praiana de Camaçari/BA, especificamente em uma rua
com acesso pela pista da Linha Verde. A primeira rua, na entrada, ainda próximo a
estrada é asfaltada, mas as suas subsequentes incluindo onde o terreiro se encontra são
de barro.
O percurso da estrada até o terreiro foi sinalizado com laços verdes e brancos,
em cada poste durante todo o caminho a fim de sinalizar aos convidados que por
ventura não conhecessem a localização exata da festa e não viessem a adentrar em ruas
erradas até o local. A entrada tinha decoração de folhas de palmeira. Entramos no
ambiente do terreiro por um portão de madeira onde há alguns assentamentos de santos
logo na entrada bem como dois couros de bode colados a parede, provavelmente dos
animais que foram sacrificados aos donos da festa. O barracão é a primeira construção
avistada e os mesmo laços que foram avistados durante o percurso da estada até o
terreiro, eram também usados em sua decoração.
A festa da Feijoada ocorreu no dia 12 de março de 2014, e nesta mesma festa um
filho de santo, também de Ogum, estava “pagando” sua obrigação de 03 anos.
Chegamos ao terreiro ás 11 e 30hrs e o começo da festa estava marcado para 12hrs. O
clima era de movimento, algumas pessoas retocavam as decorações do lado de fora do
79

barracão, alguns ainda estavam com roupas rituais mais simples e teriam que trocar de
roupa antes do inicio da festa.
Os tambores começaram a tocar por volta das 12 e 40hrs, o pai de santo entrou
tocando uma sineta seguido, em fila indiana, por doze pessoas entre homens e mulheres.
Foram entoados pelo pai de santo, três cânticos para Exu, três para Ogum e três para
Oxossi. Nesse momento, o filho de santo que estava recolhido para “pagar” obrigação
de três anos, sai de dentro do quarto de santo, descalço e todo de branco, em cortejo
com alguns dos filhos de santo mais velhos e duas ekedes. Ele roda o barracão, sob a
orientação do pai de santo e dos mais velhos, cumprimenta a porta da rua, o poste
central do barracão, os atabaques, da mais uma volta dançando no barracão e é
recolhido novamente.
Seguem-se mais uma seqüência de cantigas, para os orixás Ossain, Oxumare e
Omulu e novamente o filho de santo volta, dessa vez ele dança com todos na roda,
algumas cantigas são entoadas, e de repente Ogum toma conta do corpo do devoto, seu
corpo treme, cambaleia e ele assume uma outra fisionomia, mais séria. Outros filhos de
santo também começam a entrar em transe, as ekedes “tomavam conta”, tirando os
óculos, sandálias e amarrando os orixás que “chegavam”.

Imagem 13. Vista parcial da entrada do terreiro Ilê Axé Ibu Oyá. Fonte:
Fotografia de Andréa Magnoni.
80

Os orixás masculinos eram arrumados com um pano ultrapassando os ombros e


os feminino com um pano rodeando os peitos. Todos os santos entraram dançando em
fila indiana, em direção aos quartos internos do terreiro. Seguem-se mais cantigas, para
Logunede, Xangô e Iansã e é chegada a hora de sair a feijoada. Segundo Alexandre, um
dos ogans da casa, a feijoada foi feita por Lindinalva que a prepara todos os anos. Ela é
filha de Oxum iniciada por pai Fabio e está prestes a tomar sua obrigação de sete anos, o
que vai lhe permitir fazer parte de um quadro de filhas mais graduadas no terreiro.
Ao centro do barracão estavam 03 (três) assentamentos do orixá Ogum, folhas,
uma tigela transparente contendo um líquido azul, uma escultura “vestida” com traje
verde e carregando uma conta do orixá da festa, flores azuis e pães de Santo Antônio
(uma das lembranças da festa); presos ao teto haviam mariôs10. Havia também uma
mesa com um bolo confeitado e algumas lembranças (canecas de alumínio).

Imagem 14. Imagem da área central do barracão do terreiro Ilê Axé Ibu Oyá no dia da
feijoada de ogum. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni.

Os toques dos atabaques ficaram mais expressivos, vieram em fila o pai de


santo, seguido de dois homens carregando uma grande panela de ferro decorada com

10
Mariô ou Mariwô, chamado de (igi ôpê), é o nome da folha do dendezeiro, nome científico "Elaeis
guineensis", desfiado, utilizado nas portas e janelas dos terreiros de candomblé. O mariô é consagrado
a Ogum, assim, é muito comum vê-lo nos assentamentos e nas vestes deste Orixá.A função do mariô é
espantar as energias negativas e espíritos perturbadores.
81

Imagem 15. Filhos de santo carregam a feijoada de Ogum durante a cerimônia.


Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni.

pano branco, seguido de várias pessoas carregando os seguintes utensílios: tijelas de


barro, panelas com farinha, coxa de frango e saladas, a esteira e um banco.
Como no Ogunjá, foi colocada uma esteira forrada com pano branco e todos os
objetos foram cuidadosamente arrumados em cima dela.

Imagem 16. Filha de santo carrega os pratos de najé para servir a


feijoada de Ogum durante a cerimônia. Fonte: Fotografia de Andréa
Magnoni.

Começa então uma sequência de rezas de saudações, acompanhadas por palmas,


como as que foram relatadas pelos entrevistados que participaram da feijoada do Ilê
Ogunjá. São louvados Ogum e outros orixás que tem ligação com aquele terreiro.
82

Imagem 17. Momento em que as filhas de santo servem a


feijoada. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni.

O pai de santo, então, profere algumas palavras, pega uma vasilha de barro
maior e coloca uma quantidade significativa de feijoada. Aquele prato é o primeiro, e é
oferecido a Ogum.

Imagem 18. O babalorixá Fábio Neves carrega o primeiro prato servido que será
ofertado ao Orixá Ogum. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni.

Logo após colocar o prato nos pés do objeto ritual de Ogum, o pai de santo
separa mais sete pratos de barro, esse é um momento peculiar da cerimônia, pois não há
relatos desta parte da feijoada no Ogunjá, convida sete homens, iniciados ou não, para
83

serem os primeiros a comer. Ainda neste momento, os filhos que “viraram” de santo
não voltaram ao barracão e não há transe de ninguém do lado externo, como havia no
Ogunjá. Sobre a razão do numero sete, o pai de santo afirma representar as sete
qualidades de Ogum e está ligado a um mito. Esse mito foi coletado por Prandi e
descreve o seguinte:
Antes de tornar-se esposa de Xangô, Oyá vivia com Ogun. Ela vivia com o
ferreiro e ajudava-o em seu ofício, principalmente manejando o fole para
ativar o fogo na forja. Certa vez Ogun presenteou Oyá com uma varinha de
ferro, que deveria ser usada num momento de guerra. A varinha tinha o poder
de dividir em sete partes os homens e em nove partes as mulheres. Ogun
dividiu esse poder com a mulher.Na mesma aldeia morava Xangô, ele sempre
ia à oficina de Ogun apreciar seu trabalho e em várias oportunidades
arriscava olhar para sua bela mulher. Xangô impressionava Oyá por sua
majestade e elegância. Um dia os dois fugiram para longe de Ogun, que saiu
enciumado e furioso em busca dos fugitivos. Quando Ogun os encontrou,
houve uma luta de gigantes. Depois de lutar com Xangô, Ogun aproximou-se
de Oyá e a tocou com sua varinha, e nesse mesmo tempo Oyá tocou Ogun
também, foi quando o encanto aconteceu: Ogun dividiu-se em sete partes,
recebendo o nome de Ogun Mejê, e Oyá foi dividida em nove partes, sendo
conhecida como Iansã, “Iyámesan”, a mãe transformou-se em nove. (Prandi,
2001, p. 305).

Logo, a escolha do numero sete não é escolhido ao acaso; é um numeral que


defini grandes ciclos, bem como seus múltiplos, em 7, 14 e 21 como relevante na
iniciação de qualquer adepto.

Imagem 19. Alguns dos sete homens que receberam os pratos de najé com
feijoada comem com as mão. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni.
84

Os homens comeram o alimento com as mãos. Os mesmos foram presenteados


com os pães de Santo Antônio e uma pequena caneca de alumínio (também brinde da
festa) contendo cerveja.
Só depois que os sete homens foram servidos e já estavam terminando de se
alimentar a feijoada passou a ser servida para os outros convidados da festa, também em
vasilhas de barro. Porém, para as demais pessoas a feijoada foi servida em outro local,
uma espécie de copa próxima ao barracão, na área externa do terreiro.
Terminando os homens de comer, os atabaques são tocados para sinalizar a
retirada de todas as panelas e objetos que estavam sobre a esteira.
Agora os orixás que estavam nos espaços internos do terreiro aparecem
paramentados, há seis filhos de Ogum, um deles o filho de santo que estava “pagando”
obrigação, voltam ao salão, todos vestidos com as roupas características desse orixá. É
um dos momentos mais esperados do festejo, quando Ogum vem reviver seus mitos
entre os homens através de sua dança:
A dança ritual desempenha de forma teatralizada as histórias dos deuses
africanos nos seus diferentes enredos mitológicos. Uns da guerra, outros das
matas, outros da água doce, do vento, do fogo, da terra, do mar, fazendo com
que as identificações de cada categoria divina sejam reconhecidas por cor,
material, quantidade, gesto, postura, ética corporal e coreográfica. (Lody,
2001, p.32).

Imagem 20. Filho de santo que estava “pagando” obrigação em


transe do Orixá Ogum. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni.
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É o momento de alegria para o terreiro, todos batem palmas e cantam. È o


momento que os homens recebem entre eles os deuses. Ogum vem com seu capacete de
metal, espadas e escudos nas mãos. Vem vestido também com um galho de mariwo.

Imagem 21. Transe do Orixá Ogum nos filhos de santo. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni.
Imagem 22. Dança do orixá Ogum. Fonte: Fotografia de Andréa Magnoni.
Imagem 23. Momento de contato entre os fiéis e os orixás. Fonte: Fotografia de Andréa
Magnoni.

A feijoada nascida no Ogunjá sofreu algumas mudanças no decorrer do tempo.


O Ilê Axé Ogunjá mantinha uma cerimônia que tinha uma ligação direta com as filhas
de santo. Ao pegar no prato elas tinham o corpo tomado pelos Orixás, Existia o balaio
que era parte do segredo e anos mais tarde ainda eram lembrados com curiosidade pra
86

nossos informantes, qual destino ele tomaria no meio da cerimônia. Esse detalhe pode
parecer pequeno aos olhos desavisados, mas para aqueles jovens que viriam a se tornar
pais de santo, anos mais tarde, cada detalhe de uma cerimônia ou a falta de
conhecimento de um determinado ato, pode vir a comprometer todo o ritual, logo era
extremamente importante saber qual destino seria dado aquelas porções de alimento que
não tinham conseguido ser digeridos pelas filhas de santo.
Outro fator relevante e recorrente é a inserção dos sete homens dentro da
ritualística. O terreiro é um espaço onde gênero é relevante em diversos momentos, seja
no âmbito humano ou em âmbito espiritual. Existem funções especificas para homens e
mulheres por exemplo mulheres não tocam em atabaques e homens não carregam
esteiras nas cerimônias públicas de iniciação.
Ogum é a representação da virilidade masculina, o homem que guerreia, que
conquista as mulheres e que não teme a ninguém. O surgimento dessa nova faceta do
ritual pode estar ligado a uma tendência de exaltar o masculino. O modelo patriarcal
brasileiro, formado historicamente, se encontra nesse nuance, o dono da casa, o homem
que deve ser servido primeiro, esse modelo brasileiro tem raízes históricas:

No Brasil, a história da instituição familiar brasileira teve como ponto de


partida o modelo patriarcal, importado pela colonização e adaptado às
condições sociais do Brasil de então, latifundiário e escravagista (Saffioti,
1979; Xavier, 1998). Apesar da desintegração do patriarcado rural, que ocorreu
de forma diferenciada em diversas regiões do Brasil, a mentalidade patriarcal
permaneceu na vida e na política brasileira através do coronelismo, do
clientelismo e do protecionismo... (Narvaz, koller, p.51, 2006)

Cabe ressaltar que o patriarcado não designa somente o poder do pai, mas sim o
poder do homem ou do masculino enquanto categoria social. Nesse modelo as mulheres
são hierarquicamente subordinadas aos homens e os jovens são subordinados aos
homens mais velhos.
A questão de serem sete homens servidos está intimamente ligada a natureza
desse orixá, como já foi mostrado na lenda coletada por Prandi, bem como a ligação do
número com ciclos rituais do candomblé. Para um terreiro, onde o poder centralizado
estava nas mãos de um homem, homossexual, que este era resistente a iniciar outros
filhos homens, talvez fosse impensável essa exaltação ao masculino, e parece que não
houve essa intenção na criação da feijoada. Porém os grupos dialogam e tentam cada
vez mais explicar o universo que os rodeiam, não estando imunes a transformações das
tradições no decorrer da história.
Mas se existem diferenças da feijoada nascida no Ilê Axé Ogunjá, existem
também similaridades mantidas através das décadas. A esteira coberta, o arriar a comida
no meio do barracão, a reza coletiva e a participação dos orixás são vivências que
87

acompanham a feijoada desde o seu nascimento, e que indiferente as transformações


vêm se mantendo vivo no ciclo de festas de vários terreiros de candomblé.
As tradições se mantêm, mesmo quando novos elementos são incorporados.
Antigos e novos costumes se mesclam e, segundo Hobsbawm (2001) “Não nos cabe
analisar aqui até que ponto as novas tradições podem lançar mão de velhos elementos,
até que ponto elas podem ser forçadas a inventar novos acessórios ou linguagens, ou a
ampliar o velho vocabulário simbólico” (p.15).
88

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algum tempo se passou desde que comecei a pesquisa. No início, imaginava que
todos os fragmentos materiais desta história estivessem perdidos. Para minha surpresa
descobri que os objetos sagrados do Ilê Axé Ogunjá continuavam sendo cuidados no
mesmo Baixão, do qual ele nunca saiu, no bairro de Luis Anselmo.
Em um primeiro momento, coletei uma série de informações e dados sobre Pai
Procópio e o terreiro. A intenção era conhecer a história do pai de santo através dos
registros já produzidos, e mais do que isso, compreender como ele era visto e entendido
em um contexto que são as redes de sociabilidades da religiosidade afro baiana. Em um
segundo momento, passo a analisar pai Procópio do ponto de vista dos sujeitos que
fizeram parte da vida deste sacerdote.
Assim, essas pessoas que conviveram com o pai de santo, falavam de suas
memórias e lembranças, os dramas vividos ou ouvidos pelo próprio pai de santo. São
pessoas que frequentavam o terreiro e admiravam sua liturgia. Dos envolvidos
diretamente com este terreiro, podemos observar diversos sentimentos que vão desde a
frustração à mágoa com outros membros.
Nas idas e vindas, ouvi falar que os objetos rituais do Ilê Axé Ogunjá, ainda
existiam e que uma afilhada de pai Procópio era quem tomava conta dos orixás. Assim
me aventurei com a única informação que possuía, além do nome de sua afilhada, de
que a casa ficava próximo ao terminal de ônibus do bairro Luis Anselmo. Deste modo,
peguei o ônibus e fui me deixando guiar até seu terminal. Ao descer, perguntei a
algumas pessoas que passavam se conheciam dona Edna ou pai Procópio ou mesmo um
candomblé, ao qual deduzi que ficaria mais fácil dialogar, sem, no entanto, obter algum
sucesso.
Comecei então a andar às cegas pelas ruas que rodeavam o terminal. A primeira
opção foi me encaminhar para uma rua de barro, pois em minha cabeça o candomblé
ainda está voltado para essa tendência natural, de lugares arborizados. Andei por quase
uma hora, perguntando a quem encontrava se conhecia alguns dos meus personagens,
conseguindo sempre uma negativa das pessoas indagadas.
89

Voltei ao ponto inicial e comecei a procurar do outro lado da rua, percorri


algumas ruas, onde o bairro já tinha uma configuração mais elitizada com prédios e
condomínios, percebi que naquela área não caberia um terreiro de candomblé.
Estava desistindo de procurar e me dirigindo novamente ao terminal de ônibus,
para pegar o transporte de retorno, quando avistei um bêbado. Para o povo de santo, a
bebida esta relacionada com os prazeres do corpo, logo está intimamente ligada a Exu, o
mais humano entre os orixás, e para o qual eu mesmo sou iniciado. Eu, também um
acadêmico, não podia deixar de fazer mais essa tentativa, aquele bêbado podia ter
alguma coisa a revelar, e como não custava nada fui abordá-lo.
Quando perguntei a ele sobre dona Edna ou Procópio ele ficou alguns instantes
pensando e negativou com a cabeça. Aí perguntei sobre a feijoada. Então ele perguntou:
- “É Edna do caruru?” – eu me apeguei a um fio de esperança e confirmei com a cabeça,
e ele disse: “Isso é no Baixão”. Nesse momento, veio à tona diversos sentimentos, pois
como meu pai Gilson sempre contava sua infância no Baixão, eu não cheguei a pensar
que encontraria um pedaço da história no mesmo lugar no qual ela foi vivida. O que era
tão óbvio não tinha por mim sido pensado, até mesmo porque ouvia falar que o Baixão
tinha desaparecido e na minha cabeça não era uma localidade, mas, sim que pertencesse
ao terreiro de Ogunjá.
De fato, o Baixão todo já pertenceu ao Ilê Axé Ogunjá. Hoje é uma localidade
bem povoada e não mais uma comunidade de candomblé. Assim, aquele homem bêbado
me orientou a andar mais um pouco, descer uma ladeira e lá em baixo procurar
Mãezinha, apelido pelo qual é conhecida dona Edna. Quando cheguei ao final da ladeira
perguntei aos moradores onde morava Mãezinha e fui orientado a bater na porta de
algumas casas logo à frente.
Era uma casa normal, não parecia um terreiro de candomblé, a única coisa que
poderia indicar que ali havia orixás era uma tímida bandeira branca que é comum em
quase todos os terreiros de candomblé. Bati palmas timidamente e fui atendido por uma
senhora desconfiada, pedi para falar com dona Edna e ela disse se tratar dela mesma.
Me identifiquei como aluno da UFBA e falei que estava fazendo uma pesquisa sobre
Pai Procópio. Ela me convidou a entrar e começamos ali o primeiro de muitos encontros
que aconteceriam nos próximos dois anos.
Assim, fui aliando minhas visitas ao campo com um mergulho nos trabalhos
existentes sobre candomblé. A intenção era descobrir a história do Ilê Axé Ogunjá
90

através dos registros já produzidos. Aos poucos fui percebendo que mergulhar na
formação do candomblé baiano era relevante para minha pesquisa, entender como as
células do culto, os calundus, viriam servir de base para o desenvolvimento do
candomblé contemporâneo. As características sacerdotais foram mudando no decorrer
da formação de caracterização dos cultos afros em Salvador. Se no inicio os sacerdotes
eram homens, a liderança vai passando no decorrer do tempo para as mãos das
mulheres. Entender esse fenômeno era crucial, já que pai Procópio nasceu em um
contexto que se afirmava matriarcal.
Outro fator específico deste estudo foi a análise da trajetória de pai Procópio em
um contexto específico de culto de origem iorubá denominado pelos adeptos de
candomblé de nação ketu. As subdivisões de grupos de candomblé se deram a princípio,
pelo fator etnia, dividindo as modalidades de acordo com a língua e ou, região
demográfica. No decorrer da consolidação do candomblé esses laços perdem a
conotação hereditária e passam a englobar a iniciação de qualquer individuo em uma
determinada modalidade de culto, com parâmetros definidos e geralmente fiéis às
crenças ancestrais e aos mitos genéticos de seus respectivos grupos (Lima, 2010, p.123).
Essa dinâmica em um contexto mais amplo de desdobramentos de etnicidade
dificulta a fixação de uma identidade espontânea, porém, é um fenômeno comum na
diáspora em função dos deslocamentos, de novos encontros e da própria mestiçagem.
Logo o conceito de etnicidade produz um novo discurso que elimina o discurso de
pureza étnica. As representações sociais são móveis e estão suscetíveis a transformações
em relação ao contexto histórico.
Os estudos das religiões afro brasileiras exerceram, a princípio, um fascínio pela
conduta persistente de suas lideranças, e as pesquisas realizadas desde o final do século
XIX traduziam um interesse curioso em uma sociedade que estava enquadrada na
mentalidade escravocrata.
Os primeiros trabalhos sobre a temática étnico-raciais no Brasil foram feitas por
Nina Rodrigues, e apesar de diversos grupos étnicos africanos que compunham a
população de escravos e seus descendentes, o autor tende identificar a população
afrobrasileira a partir de um único modelo, o do grupo nagô. Os pesquisadores pós
Rodrigues, seguem a mesma linha de conhecimento de estudos afro brasileiros,
inclusive no plano da religiosidade.
91

Essa tendência influencia a legitimação do candomblé de nação ketu, em


detrimento de outras nações do culto, como a nação jejê e a nação banto. As casas
eleitas como passíveis de pesquisa na maioria dos trabalhos da primeira metade do
século XX são de nação ketu. Na busca por uma suposta pureza de culto afro brasileiro
casas como Casa Branca do Engenho Velho, Alaketu, Gantois e Axé Opô Afonjá
servem como referência.
O que essas casas de tradição ketu têm em comum neste período é o fato de não
iniciarem homens como rodantes. O matriarcado é a característica de pureza de culto
afro brasileiro. Embora Procópio tenha sido iniciado na tradição nagô, ele não foi
coligado a nenhuma destas casas, foi iniciado por uma sacerdotisa, ex-escrava, que não
seguia o tabu de iniciar homens nem as regras dos candomblés vigentes. Devido a falta
de fontes, é difícil mensurar o quanto isso mexeu com a concepção de candomblé da
época, tendo em vista que os grupos estão inseridos em uma contextualização de
intergrupos, numa religiosidade que não segue livros sagrados e são autônomas, e a
fofoca serve como termômetro que diz o que deve ou não ser feito.
Provavelmente a invisibilidade e descontinuação do terreiro da mãe de santo de
pai Procópio, mãe Marcolina da Cidade Palha como era conhecida, pode ter sido
provocada pela atitude político-religiosa da mesma em quebrar com um paradigma
central de outras casas de santo. A trajetória de Marcolina foi singular, e acredito que
ainda a muito a ser descoberto sobre sua história de vida e com certeza virá a ser objeto
de pesquisas posteriores.
Uma situação de desconforto que percebi através dos relatos orais, foi o silêncio
que envolve as pessoas quando se toca na homossexualidade de pai Procópio. Talvez
sempre tenha sido um assunto proibido a essas pessoas que viveram com o pai de santo,
e que esse silêncio ficou tão marcado em suas memórias que existe um travamento. Isso
pode ser somado a uma educação de uma geração com idades mais avançada de nossos
informantes gerando negativas e desconversas quando tocávamos no assunto.
Apesar das adversidades, pai Procópio conseguiu instaurar o terreiro Ilê Axé
Ogunjá e consolidar-se como babalorixá. Em sua trajetória é possível perceber que
algumas cicatrizes ficaram desenhadas em sua mente. O fato de ser resistente à iniciação
de homens é, em minha avaliação, um resquício do trauma que viveu na pele em um
período de crescente predominância feminina. Os relatos orais tanto dos dois afilhados
quanto dos seus sobrinhos, revelam um sujeito que se preocupava com suas tradições,
92

em manter um culto mais fiel possível a um modelo, que provavelmente não foi o de
sua iniciação. Porém, ao menos naquela época, sua iniciação só foi possível devido ao
desligamento de Marcolina das regras dos demais terreiros nagôs.
Outro fator interessante, é que ele se afirmava como pai de santo em um
momento em que o culto de caboclo tem um crescimento específico, e os homens um
grande destaque nessa modalidade que não vai contra o candomblé tradicional, mas, na
maioria das vezes se soma a ele, Teles (1995). Contudo, não é uma prática, pelo menos
pública, de candomblés tradicionais. Há uma negativa de que esse culto exista em certos
terreiros ortodoxos. O fato de pai Procópio não cultuar nem receber caboclo podem ser
resultados de sua busca pela pureza.
Contudo, pai Procópio ainda sempre preocupado em manter a tradição, não se
esquivou em deixar sua marca no candomblé. O nascimento da feijoada de Ogum é um
exemplo importante disso. A feijoada se legitimou nos terreiros, sofrendo alterações no
decorrer do tempo mais sem perder a essência do ritual que nasceu no Ilê Axé Ogunjá.
Os fragmentos de memória sobre a cerimônia, seus detalhes, se mantiveram vivos na
memória dos sujeitos que em sua infância foram às festas do terreiro.
Quando vim a Salvador pesquisar a trajetória de meu avô de santo, deixei em
Natal-RN minha própria casa de santo. Como relatei no começo deste trabalho, fui
iniciado no final de minha infância no candomblé, logo muito cedo meu orixá
determinou que eu abrisse um terreiro de candomblé. Com minha vinda, parei
temporariamente as atividades no meu barracão. Porém, os caminhos que o orixá trilha
ou o mero destino fizeram com que no decorrer dos últimos dois anos algumas pessoas
me procurassem com problemas espirituais. Logo no final do primeiro semestre levei
três pessoas, para Natal, que precisavam se iniciar no candomblé. Isso gerou mais
procura por ajuda de outras pessoas, e em abril de 2013 levei para Natal dez pessoas
para se iniciarem no candomblé, duas delas inclusive eram minhas colegas do mestrado.
Esse processo desencadeou mais procuras, e foi inevitável a mim, devido a
necessidade de cuidar dos orixás, abrir um terreiro na cidade de Salvador. No dia 17 de
agosto de 2013 inaugurei, no bairro de Itapuã o Ilê Axé Ojisé Olodumare, o qual os
freqüentadores chamam de “Casa do Mensageiro” devido ao atributo de mensageiro
entre os deuses e os homens ser característico de meu orixá, Exu. A casa tem o mesmo
nome de sua matriz na cidade de Natal.
93

Quando comecei a pesquisa de campo e cheguei até dona Edna me apresentei


apenas como pesquisador da UFBA. Depois de ouvir suas histórias, já sabendo dos
problemas que envolviam a herança espiritual e material do Ilê Ogunjá, preferi a
princípio não me identificar como neto de santo de pai Procópio, tendo em vista que eu
pertencia à parte da família que brigava com dona Edna pela posse do terreiro, e isso
podia fazer com que ela se fechasse à pesquisa. No decorrer da construção do trabalho
fomos ficando mais próximos e quando inaugurei o barracão aqui em Salvador convidei
dona Edna para a festa.
Dona Edna não sabia que eu era pai de santo. Tenho certa timidez em falar sobre
minha condição religiosa, talvez devido a minha pouca idade, pois quando se pensa em
pai ou mãe de santo vem sempre à mente uma pessoa mais velha. Sendo assim, quando
dona Edna chegou à festa de meu orixá ficou surpresa em saber que eu era o sacerdote
do terreiro.
Alguns dias depois, dona Edna me ligou, pedindo que eu fosse ao Baixão, pois
queria conversar comigo. No outro dia fui à sua casa e ela falou-me que queria
conversar porque havia sonhado com o Ogum de pai Procópio, dizendo a ela que me
pedisse ajuda para cuidar dos assentamentos dos orixás do Ilê Axé Ogunjá. Foi então
que contei a ela que era filho de santo de pai Gilson, sobrinho de pai Procópio e que foi
iniciado na gestão de Ebome Iatu. Diante disso, Dona Edna afirmou que Ogum pediu
então, porque eu era neto e sabia que eu não estava interessado na disputa que eles
travaram entre si por toda a vida.
No momento fiquei com medo, me veio à cabeça toda história que envolvia a
personalidade de Ogum, sua força e tradição. Dona Edna já havia me mostrado os
assentamentos e quartos de santos que tinha adaptado em sua própria casa. Mas, pegar e
sentir nas mãos a energia daqueles orixás era algo que eu não tinha pensado até então.
Apesar de relutar me veio à cabeça algo em que eu acredito muito, que é o orixá. Sendo
assim pensei: que seja feita a vontade de Ogum.
Dona Edna me disse que havia anos que não fazia o ossé (ritual de limpeza) nos
quartos de santo, tinha dificuldade, devido aos seus 82 anos, pois não conseguia mais se
abaixar direito nem carregar peso. Reuni, então, dias depois, alguns dos meus filhos de
santo, comprei as ervas necessárias e fomos fazer a limpeza nos quartos de santo. Na
estrutura atual, a casa possui casa de Exu, quarto de Ogunjá, Oxalá, casa de Obaluaiê e
um pequeno salão para cerimônias públicas, que até então só tinha sido usado para a
94

feijoada que ela fazia todo mês de abril, quando tinha condições financeiras. A casa tem
cerca de 20 assentamentos de diversos orixás, todos de pessoas que já morreram,
incluindo o orixá de Hélio de Oliveira, Ebome Iatu, alguns do próprio pai Procópio e
outros de pessoas que dona Edna não lembra mais o nome.
Quando peguei Ogunjá para fazer o ossé, parecia que pegava o “peso” todo do
mundo, me passou pela cabeça flashes de tudo aquilo que esse pai de santo viveu, sua
iniciação, a perseguição policial, a feijoada de Ogum, as quedas do telhado do barracão,
diversas coisas que eu não vivi, mas que foram impregnadas em minha mente através de
minha vivência no candomblé e fortalecidas no decorrer da construção da pesquisa.
Cada peça daquela que eu pegava, que fazia parte do assentamento de Ogunjá,
me remetia a mais indagações, muitas daquelas ferramentas de ferro que compõem o
orixá estão enferrujadas, corroídas pelo tempo. No assentamento encontram-se moedas
que já estão tão desgastadas que é impossível saber o ano. Segundo Dona Edna,
Procópio fez santo na década de 60 do século XIX. Logo, Ogum estaria assentado há
mais de 140 anos. O que não sabemos é se essas peças que compõem o orixá são
originais daquele tempo ou se foram levadas e repostas na época das batidas policiais.
Os informantes não lembram ou não tiveram acesso a essas informações.
Desde o começo do ano de 2013 ajudo dona Edna a cuidar do Ilê Axé Ogunjá,
ela se prepara pra realizar algo para o qual Ogum a indicou há 60 anos. Sua confirmação
como Ekede, que ficou em segundo plano devido a falta de confiança dos membros do
Ogunjá, é decorrente das brigas pelos bens físicos e espirituais do terreiro. È uma
vontade dela, mesmo com a idade avançada, resolver sua pendência com o orixá. Eu,
como descendente, procurei ajudar como foi possível. Foi um dilema para mim assumir
essa responsabilidade, eu estava ciente de que ia encontrar pela frente problemas com
minha família de santo. A hierarquia diz que os mais velhos é quem devem estar à
frente dos rituais, porém se as brigas terrenas foram mais marcantes do que o
prosseguimento do sagrado, e as circunstancias levaram a meu encontro com dona Edna
e a missão de fazer a vontade de Ogum. Foi meu orixá Exu quem confirmou a Ekede
Edna para o Ogunjá no dia 20 de julho de 2014.
95

Imagem 24. Dona Edna (Mãezinha)


em sua confirmação como Ekede de
Ogunjá. Fonte: Fotografia de
Andréia Magnoni (20.07.2014).

Imagem 25. Dona Edna (Mãezinha) é confirmada Ekede do Ogunjá de Pai Procópio pelo
Orixá Exu (Babalorixá Rychelmy Esutobi). Fonte: Fotografia de Andréia Magnoni.
96

Imagem 26. Orixás Exu e


Ogum. Na cosmogonia da
nação Ketu Exu é o primeiro
dos Orixás, precedido por
Ogum. Os dois Orixás são
também considerados irmãos
e Ogum sucedeu Exu no
comando do reino de Ketu.
Fonte: Fotografia de Andréia
Magnoni (20.07.2014).

Imagem 27. Dona Edna (ao


centro); a Yalorixá Lurdes de
Oyá e o filho carnal de Dona
Edna(à esquerda); Babalorixá
Rychelmy Esutobi e outro
filho carnal de Dona Edna (à
direita). Fonte: Fotografia de
AndréiaMagnoni
(20.07.2014).
97

Por coincidência ou não, só consegui concluir essa pesquisa, quando entrei para
o terreiro Ogunjá, para a iniciação de dona Edna.
Não deixo, apesar de todos os acontecimentos, de refletir qual a minha função
enquanto pesquisador. O papel da pesquisa científica tem como finalidade conhecer um
fenômeno e a partir disso, essa pesquisa foi desenvolvida, seguindo essa perspectiva. No
entanto, ouvir as narrativas dos indivíduos abriram um campo de possibilidades, tanto
para eles quanto para mim, porque ao narrar eles se debruçaram sobre os
acontecimentos e buscaram sentidos para as experiências vividas.
98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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103

ANEXOS

1. Organograma da Família de Santo de Pai Procópio de Ogunjá


104

2. Roteiro para entrevista – Família (filhos de santo, sobrinhos e afilhada)

1. Como era Pai Procópio durante a sua infância? Como era como pai de santo?

2. Como era a relação dele com os candomblés da época?

3. Como era sua relação com os filhos de santo?

4. Conte um fato que acha interessante desse período...

5. Ela falava muito sobre sua mãe Marcolina? O que você lembra sobre?

6. Quando veio morar no Matatu de Brotas?

7. O que você sabe da fundação do Terreiro?

8. Lembram-se do calendário de festas, quais eram as principais?

9. Pai Procópio iniciou homens com yaôs?

10. Pai Procópio foi casado com alguém?

11. O que você sabe sobre as batidas policiais do Ilê Ogunjá?

12. Como foi o falecimento de Pai Procópio? Como foi o enterro?

13. Quem ficou responsável pelo terreiro?

14. Como foi a divisão e vendas da terra do terreiro?

15. Você tem algum documento, ou foto referente a Pai Procópio?

16. Onde estão os objetos ritualísticos de Pai Procópio (santos)?

17. Você lembra-se de alguém que foi iniciado ou conviveu com Pai Procópio?
105

3. Roteiro entrevista (pais e mães de santo)

1. Como você conheceu Pai Procópio?


2. Tinha aproximação dela? Podia se considerar amigo dela?
3. Quem foi Pai Procópio pra você?
4. Me fale sobre Pai Procópio com relação a religiosidade.
5. Você frequentava o Ogunjá?
6. Sabe ou presenciou alguma história interessante com ele?
7. O que ele representava?
8. Tem conhecimento de algum homem mais velho que Procópio iniciado
na nação Ketu?

4. Roteiro de entrevista (intelectuais)

1. Você conheceu Pai Procópio?


2. Em suas pesquisas e conversas com antropólogos mais velhos o que
souberam sobre Procópio?
3. Lembra-se de já ter visto algum material que poderia ajudar na minha
pesquisa?
4. Me fale sobre Pai Procópio com relação à religiosidade.
5. Como você o via a nível político e cultural?
6. Sabe ou presenciou alguma história interessante sobre ele?
7. O que ela representava?
106

5. Documento de Inventário 01
107

Termo de Fls. 7

Termo de Compromisso de Inventariante- Compromisso.

Aos vinte e quatro (24) dias do mês de abril do ano de mil novecentos e cinqüenta e
nove (1959), Nesta cidade do Salvador, Capital do estado da Bahia, na sala das
audiências do juízo de direito da 2ª. Vara de família e sucessões do Juízo de Direito da
2ª. Vara de Família e Sucessões, no 4º. Andar do Edfício “ Forun Ruy Barbosa”, à
Praça D. Pedro II, onde se encontrava o Meritíssimo Senhor Doutor Antônio de Seixas
Salles Filho, Pretor da Aludida Vara, comigo escrivão do seu cargo, adiante nomeado
compareceu, em nome do inventariante Hélio de Souza Oliveira – P Senhor Doutor
Edgard Pitangueira, a quem o mesmo juiz deferiu o compromisso de inventariante no
presente feito, para que faça as necessárias declamações, promovendo todos os demais
atos e termos do mesmo inventário até final sentença.

O compromisso foi aceito com a afirmação de se cumprir por parte do inventariante , na


forma da lei. Do que,para constar, lavro este termo. E , eu Aloysio da Costa Short
Junior, Escrivão, subescreví. ( Ass. ) Antonio de Seixas Salles Filho. Edgard
Pitangueira. ===================================

PEÇAS CONTANTES DO TERMO DE DECLARAÇÕES INVENTARIANTE DE


FLS. 8 / /=====================================================

INVENTARIADO - Que o inventariado PROCÓPIO XAVIER DE SOUZA,Brasileiro,


Solteiro, Residente nesta capital, com 90 anos de idade, falecido em 29 de novembro de
1958, tendo deixado dois filhos adotivos. Não deixou testamento. TÍTULO DE
HERDEIROS: Que o “de-cojus” deixou os seguintes herdeiros: HELIO DE SOUZA
OLIVEIRA, com 25 anos, solteiro residente e domiciliado nesta capital : EDNA DE
SOUZA SANTOS, com 27 anos de idade, casada com AGENOR EVANGELISTA
DOS SANTOS, ambos residentes e domiciliados nesta cidade.
108

6. Documento de Inventário 02
109

Helio de Souza Oliveira, dos quais é herdeiro universal, inventariante, afim de que
produza os seus devidos e legais efeitos, livrando-se, nesse sentido, o respectivo auto de
adjunção. Custas na forma do regimento. Publique-se e intime-se. Salvador, 24-01-66.
(AS.) Acy Ferreira Dias.==================

Auto de FLS, 48/ /==============================================

Auto de adjunção: Às 15,30 horas do dia 25 do mês de janeiro do ano de Mil


Novecentos e Sessenta e Seis (1966) Nesta cidade do Salvador, Capital do estado da
Bahoa, na sala das audiências do juízo de direito da 2ª. Vara de família e sucessões no
4º. Andar do Edifício Forum Ruy Barbosa, à Praça Don Pedro II, onde se encontrava a
Exma. Sra. Dra. Acy Ferreira Dias, Pretora plantonista da alud. Da vara comigo sub
escrivão do seu cargo adiante nomeado compareceu o Sr. Dr. Edgard Pitangueiras, na
qualidade de advogado e bastante procurador de D. Edna Souza Santos,inventariante e
herdeira dos bens deixados pelos falecidos Procópio Xavier de Souza e Hélio de Souza
Oliveira; Determinou a MM. Dra. Pretora que por mim sub- escrivão fosse lavrado o
presente auto, pelo qual adjudicado tem, a mencionada inventariante e herdeira
universal, na qualidade de filha e irmã dos inventariados, todos os bens inventariados e
constantes dos presentes autos, todos os imóveis descritos e avaliados no laudo de fls.
24 / 25, do exceção do terreno situado no lugar determinado “ Baixão “, vendido
mediante alvará de autorização expedido, a Dra. Rita Ferreira de Amorim; para que a
mesma dele possa livremente dispor, como seu que ficam sendo, para todos efeitos de
direito. E, como assim o disse e adjudicou, dou fé e lavro esse auto, que lido e achado
conforme, é assinado. É assinado. E eu, Aloysio Short Júnior, Sub- escrivão que o fiz
datilografar e subscrevo.( Ass.) Acy Ferreira Dias. Edgard Pitangueiras, nada mais se
continha nos ditos autos que de descrever transcrito. Dou fé. Dado e passado nessa
cidade do Salvador, capital do estado da Bahia , aos 13 dias do mês de agosto do ano de
mil novecentos e setenta (1970).

Escrivão que Datilografo e Subscrevo

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