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25 de Abril, Edição Nº 332 - Set/Out 2014

A Revolução Portuguesa – a interacção do


geral e do particular
por Maria da Piedade Morgadinho

Só nesse momento, e ao cabo de 48 anos de uma luta persistente e heróica do povo


português e do PCP, sempre presente, se conjugaram todas as condições que tornaram
possível o derrubamento da ditadura fascista. Confluíram, nessa data, a crise profunda em
que se vinha debatendo o regime fascista incapaz de dar solução aos problemas mais graves
que atingiam o povo e o país, a crescente agudização de todas as suas contradições internas
e externas, o seu isolamento internacional, o agravamento das condições de vida das massas
e o desenvolvimento impetuoso das suas lutas, em todas as frentes, e a existência de forças
sociais, políticas e militares revolucionárias organizadas e determinadas a conquistar a
liberdade.
A Revolução portuguesa, tal como o PCP a caracterizou, e a história comprovou, foi uma
revolução simultaneamente antifascista, antimonopolista, antilatifundista, anticolonialista e
anti-imperialista. Uma Revolução Democrática e Nacional. Uma revolução que teve como
objectivos fundamentais a instauração de um regime democrático e a construção de um
Estado democrático, a liquidação do poder dos monopólios e dos grandes agrários, melhorar
as condições de vida do povo em geral, pôr fim às guerras coloniais e reconhecer o direito à
independência dos povos das colónias, libertar Portugal do domínio imperialista estrangeiro
recuperando a independência e a soberania nacionais e o desenvolvimento de uma política
de paz e amizade com todos os povos do mundo.
A definição em 1964 (Rumo à Vitória) e 1965 (VI Congresso e Programa do Partido) da
etapa da nossa revolução como uma Revolução Democrática e Nacional suscitou vivas
críticas ao Partido. Pretendiam alguns detractores que o PCP havia desistido da revolução
socialista. Isto, quando o Programa do Partido era muito claro ao afirmar que a luta pela
Revolução Democrática e Nacional era parte constitutiva da luta pela revolução socialista.
Criticavam outros o facto de, na etapa democrática o PCP apontar como objectivos da
revolução profundas transformações sociais e económicas, como as nacionalizações e a
reforma agrária, que, normalmente, constituíam objectivos de uma revolução socialista.
Acusavam, então, o PCP de partir de esquemas pré-fabricados, de copiar modelos alheios,
neste caso a Revolução Socialista de Outubro de 1917.
Para a caracterização da etapa democrática da nossa revolução, o PCP não copiou modelos
ou experiências alheias. Apoiou-se, sim, e levou em conta essas experiências ao analisar as
condições concretas do nosso país, a sua história, as suas tradições. Apoiou-se e levou em
conta a teoria marxista-leninista da revolução social e os seus princípios essenciais, as leis
gerais do processo revolucionário mundial que se desenvolveu após o triunfo da Revolução
Socialista de Outubro. O PCP levou, igualmente, em conta os erros que podem vir a ser
cometidos e os prejuízos que causam à luta sempre que um partido os esquece ou abandona.
Aliás, lembramos que as revoluções que triunfaram após a Segunda Guerra Mundial numa
série de países da Europa e da Ásia distinguiram-se em muitos aspectos da Revolução de
Outubro, ao mesmo tempo que confirmaram as suas leis gerais e a aproximação de
transformações democráticas e socialistas na nossa época.
Ao caracterizar a etapa revolucionária, a definição da via para o derrubamento do fascismo e
os objectivos a alcançar, para a elaboração do seu Programa, aprovado no VI Congresso, em
1965, o PCP levou em consideração o nível de desenvolvimento do capitalismo em
Portugal, as classes que detinham o poder, a forma como exerciam o poder e a dupla
situação do país como detentor de um dos mais velhos e maiores impérios coloniais e ao
mesmo tempo colonizado pelo imperialismo estrangeiro.
Ao elaborar o seu Programa, o PCP teve em conta que Portugal apresentava as
características originais de ser um país atrasado, «subdesenvolvido» e, ao mesmo tempo, um
país onde as relações de produção capitalista estavam altamente desenvolvidas,
inclusivamente nos campos; de ser um país com uma indústria débil e com uma agricultura
primitiva, mas onde o proletariado (industrial e agrícola, no seu conjunto) tinha um peso
numérico relativo não inferior ao de países industrializados e onde o capital tinha um
elevado grau de concentração; de ser um país que esteve meio século dominado por uma
ditadura fascista terrorista com um aparelho de Estado forte, sólido e bem organizado mas
onde o movimento popular de massas e as suas lutas ganhou forças e raízes revolucionárias
profundas; de ser um país onde, apesar de um forte aparelho repressivo, da violência, dos
crimes e da repressão anticomunista, o PCP era a força política mais organizada, com mais
influência radicada nas massas trabalhadoras, nas massas populares. Foi destas condições
que o PCP concluiu que a ditadura, pela sua natureza de classe, só poderia ser derrubada
através de uma insurreição popular armada e que a instauração de um regime democrático
teria de estar ligado à possibilidade de resolver, simultaneamente, problemas de natureza
muito diversa que, no processo revolucionário de outros países, poderiam não estar
associados. Os factos viriam a provar a justeza desta análise e que o PCP, ao longo da sua
história, sempre teve em conta a realidade para a transformar constantemente e não para
capitular perante ela e tal como acontece na actualidade.
O processo revolucionário que se desenvolveu imediatamente a seguir ao derrubamento da
ditadura assumiu muitos aspectos particulares, muitas originalidades. Uma delas, e
fundamental, foi o facto de terem sido levadas a cabo profundas transformações sociais,
económicas e políticas revolucionárias sem existir um poder revolucionário homógeneo, um
Estado democrático correspondente a essas transformações. E como a Revolução de
Outubro nos ensinou, o marxismo-leninismo nos ensina, a história de todas as revoluções
nos tem ensinado e o PCP sempre considerou, a questão do Estado é a questão central de
cada revolução. As forças revolucionárias tiveram capacidade para realizar profundas
transformações democráticas, para impor modificações radicais nas estruturas económicas e
sociais, impor a sua participação em órgãos de poder, mas nunca detiveram o Poder. O
factor determinante dessas transformações revolucionárias foi a acção das massas populares
e a sua prodigiosa criatividade que antecederam sempre as decisões do poder político. O
PCP sempre alertou para esta situação. É por demais conhecida a sua advertência de que
pela sua força, pela sua luta, as massas podem alcançar importantes conquistas, mas se não
detiverem o poder essas conquistas estarão sempre ameaçadas. A história viria, mais tarde, a
dar plena razão ao PCP.
Original na nossa revolução foi o sistema de alianças, que demonstrou a possibilidade de
amplas alianças sociais, abrangendo numa base antimonopolista camadas muito vastas da
população. A aliança Povo-MFA, que foi o motor do processo revolucionário, constituiu
precisamente a expressão criadora de um vasto movimento que abrangeu, numa aliança de
características originais, a classe operária industrial e agrícola, as massas camponesas, a
pequena burguesia urbana e rural, sectores da média burguesia e camadas nacionais de
sentimentos patrióticos, designadamente nas Forças Armadas. O papel do MFA neste
sistema de alianças teve a particularidade de não ser apenas expressão da participação
directa de camadas militares de sentimentos patrióticos, mas ter sido, também, expressão e
factor de mobilização da adesão ao movimento antimonopolista das camadas da pequena e
média burguesia a que os oficiais patriotas pertenciam. Tão ampla aliança social, como
todas as alianças, não deixou de revelar as suas contradições internas que viriam a originar,
mais tarde, graves crises no decorrer do processo revolucionário. Mas confirmou a
possibilidade, na nossa época, de novos alargamentos do sistema de alianças do proletariado
na frente da luta antimonopolista e anti-imperialista.
Outra particularidade do nosso processo revolucionário foi, ainda, o facto de as profundas
transformações económicas e sociais (nacionalizações, Reforma Agrária, controlo de gestão,
intervenção do Estado em empresas capitalistas e empresas sob gestão pelos trabalhadores)
terem dado origem a uma situação em que as relações de produção capitalista eram ainda
predominantes, mas já não eram determinantes. Isto significou que o desenvolvimento da
economia portuguesa se realizava não no sentido do capitalismo, mas no sentido do
socialismo. E nesta situação original criada em Portugal, como o nosso Partido na altura
destacou, víamos nós a confirmação das teses leninistas da diversidade de vias de passagem
ao socialismo no mundo contemporâneo.
A história mundial comprovou que a marcha dos povos em direcção a transformações
revolucionárias profundas, rumo ao socialismo, constitui um processo revolucionário único
que se rege segundo leis universais: a questão do poder político; o papel das massas e o
papel da classe operária e do seu Partido como vanguardas; a aliança da classe operária com
o campesinato e, em geral, com as massas trabalhadoras; a abolição da propriedade privada
capitalista e a socialização dos meios de produção; a transformação socialista da agricultura;
a elevação do nível de vida das massas populares; a revolução na esfera da ideologia e da
cultura; a independência nacional; o estabelecimento de relações de igualdade e amizade
entre os povos; a solidariedade com a classe operária, os trabalhadores e os povos de outros
países – o internacionalismo proletário.
Mas o desenvolvimento do processo revolucionário mundial é complexo e contraditório.
Daí que Lénine, no seu tempo, se opusesse à ideia de que o desenvolvimento da revolução
decorresse em todos os países segundo o mesmo padrão. Numa das suas obras escreve:
«Todas as nações chegarão ao socialismo, isso é inevitável, mas chegarão todos de modo
não exactamente idêntico, cada uma trará uma peculiaridade, nesta ou naquela forma de
democracia, nesta ou naquela variedade de ditadura do proletariado, neste ou naquele ritmo
das transformações socialistas dos diferentes aspectos da vida social. Não há nada mais
pobre do ponto de vista teórico e mais ridículo do ponto de vista prático do que, "em nome
do materialismo histórico", imaginar o futuro neste aspecto de uma cor acinzentada
uniforme: isso não seria mais que uma borrada de Súzdal.» 1
A história comprovou que a negação da interacção dialéctica entre o geral e o particular tem
conduzido a interpretações erróneas quando da sua aplicação aos fenómenos sociais,
designadamente a revolução social.
Há concepções que, negando as leis gerais de desenvolvimento social, atribuem ao
particular, às condições concretas de cada país, um carácter absoluto. Por outro lado, há
concepções dogmáticas que, menosprezando as condições históricas concretas de cada país
no desenvolvimento dos processos revolucionários, atribuem valor absoluto às leis gerais.
Umas e outras são contrárias ao marxismo-leninismo. Do acerto com que se resolve a
correlação entre as leis gerais da revolução e as particulares nacionais depende o êxito da
revolução.
A Revolução portuguesa foi uma revolução inacabada. O processo revolucionário que se
desenvolveu impetuosamente a seguir ao derrubamento do fascismo em 25 de Abril de 1974
e que mudou radicalmente a face de Portugal, foi brutalmente interrompido pelo avanço da
contra-revolução. A questão do poder político, o não se ter conseguido destruir toda a
máquina do Estado fascista e não ter sido possível construir um Estado democrático; a
fragilidade da aliança da classe operária com o campesinato e não se ter resolvido os seus
problemas; as contradições que levaram a divisões no seio das forças democráticas e no seio
do MFA; o papel do esquerdismo; a acção do imperialismo (CIA), da social-democracia
europeia, das forças reaccionárias, do papel do PS e da sua ligação aos sectores mais
conservadores e à direita facilitaram e abriram as portas ao avanço da contra-revolução.
A história mundial conhece fluxos e refluxos de revoluções, etapas da sua vitória decisiva
mas também de triunfos transitórios da reacção.
A propósito da derrota da Comuna de Paris em 1871, K. Marx dizia em carta a L. Kugelman
datada de 17 de Abril desse ano:
«A história mundial seria, aliás, muito fácil de fazer se a luta fosse empreendida apenas sob
a condição de probabilidades infalivelmente favoráveis». 2
E Lénine mais tarde, numa das suas obras, sublinhando que o caminho da revolução não é
simples nem recto, escrevia:
«Imaginar a História mundial avançando suave e regularmente sem dar por vezes saltos
gigantescos para trás, não é dialéctico, não é científico, é teoricamente incorrecto.»
A Revolução portuguesa mostrou, como aliás outras revoluções já haviam demonstrado, que
o desenvolvimento do processo revolucionário depende do curso da luta de classes, da
correlação de forças em cada momento, em cada fase. Mas seja qual for a forma que cada
revolução assuma, o seu conteúdo fundamental será sempre a destruição do sistema sócio-
económico e político caduco e a sua substituição por outro mais avançado, revolucionário.
As conquistas históricas da Revolução de Abril, que este ano comemora o seu 40.º
aniversário, porque corresponderam a necessidades objectivas do desenvolvimento de
Portugal no caminho da democracia, do progresso, do socialismo, porque corresponderam
às mais profundas e velhas aspirações do nosso povo, continuam hoje vivas na consciência
das massas.
E hoje, tal como sempre, o PCP está presente e sempre atento e activo perante o desenrolar
dos acontecimentos em Portugal e no mundo.
E como Álvaro Cunhal sublinhou numa Conferência em Ponte da Barca, em 21 de Maio de
1993 («O comunismo hoje e amanhã»):
«Está condenado a ser ultrapassado pela História qualquer projecto político que se mantenha
fixo, imóvel, incapaz de dar resposta às novas situações, aos novos fenómenos, aos novos
acontecimentos.»
Notas
(1) V. I. Lénine, «Sobre uma caricatura do marxismo», in Obras Escolhidas em seis tomos,
t. 3, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1985, p. 50.↲
Nota: a expressão «borrada de Súzdal» significa um trabalho grosseiro e feito sem gosto.
Durante o tsarismo na cidade de Súzdal faziam-se ícones baratos gosseiramente pintados.
(2) Carta de K. Marx a L. Kugelman, Londres, 17 de Abril de 1871, in Obras Escolhidas de
K. Marx e F. Engels em três tomos, t. 2, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-
Moscovo, 1983, p. 458.↲

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