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Paulo Roberto de Almeida

Guia Politicamente Incorreto das


Falácias Acadêmicas
Ensaios sobre alguns mitos persistentes

Hartford
2014
Paulo Roberto de Almeida
Doutor em ciências sociais.
Mestre em economia internacional.
Diplomata.

Guia Politicamente Incorreto das


Falácias Acadêmicas
Ensaios sobre alguns mitos persistentes

Hartford
2014
Copyright © Paulo Roberto de Almeida, 2014
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Almeida, Paulo Roberto de


Guia Politicamente Incorreto das Falácias Acadêmicas: ensaios sobre
alguns mitos persistentes / Paulo Roberto de Almeida. — Hartford: Edição do
autor, 2014.
265 p.

ISBN: 85-xxxxxxxx-x

1. Política internacional. 2. Relações internacionais. 3. Economia. 4.


História. 5. Sociologia. 6. Globalização 7. Brasil. 8. Marxismo. 9. Título

CDU:

Contato com o autor:


pralmeida@me.com
Tels.: (1.860) 989-3284 (Hartford, Connecticut, USA)
Facts are stubborn things; and whatever may be our wishes,
our inclinations, or the dictates of our passions, they cannot
alter the state of facts and evidence.
John Adams

“There are four types of most common fallacies:


1. Zero-Sum Fallacy; 2. Fallacy of
Composition; 3. Chess-Pieces Fallacies; 4.
Open-ended Fallacy.”
Thomas Sowell,
Economic Facts and Fallacies
(New York: Basic Books, 2008), p. 3-10
Sumário

(provisório)

Apresentação: O que são falácias e como incorrem nelas os acadêmicos?

Primeira Parte: As falácias mais comuns


1. Como não incorrer em falácias, sem deixar de ser acadêmico...
2. O neoliberalismo cria desigualdade, pobreza, recessão
3. O Consenso de Washington é uma imposição do capitalismo global
4. O Estado precisa necessariamente corrigir os desequilíbrios de mercado
5. O mundo é injusto e desigual, baseado na força e na prepotência dos poderosos
6. Há um complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres
7. O Brasil é um país periférico e dependente das nações mais poderosas
8. O protecionismo comercial dos países ricos prejudica os países pobres
9. A globalização capitalista é assimétrica e perversa; teria de ser justa e igualitária
10. Precisamos de um novo Bretton Woods, com controle dos capitais voláteis
11. As multinacionais impedem nosso acesso a tecnologias de ponta
12. Só podemos abrir nossa economia se os outros países o fizerem também
13. Assimetrias estruturais precisam ser corrigidas para haver integração
14. Alianças estratégicas devem ser feitas entre países situados no mesmo nível

Segunda Parte: Mitos e utopias


15. O que são mitos, o que são utopias?
16. O colonialismo como causador de subdesenvolvimento
17. A exploração capitalista e o empobrecimento do proletariado
18. A utopia marxista da emergência de um mundo novo
19. A transição do capitalismo ao socialismo
20. A transição do socialismo ao capitalismo
21. O socialismo de mercado na China
22. A revolução cubana e o embargo americano
23. O mito do socialismo do século 21
24. As “reformas de base” do governo Goulart
25. O golpe Estado de 1964 e a ditadura militar

9
26. A aliança dos povos do Terceiro Mundo
27. A reciprocidade nas relações internacionais
28. O modo de produção do marxismo vulgar no Brasil

Referências bibliográficas

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Índice

(provisório)

Prefácio

Introdução: o que são falácias e como incorrem nelas os acadêmicos...

1. O mito do neoliberalismo
Da pouco nobre arte de ser falaz
As novas roupas do velho imperialismo, em sua fase neoliberal
O neoliberalismo como produto de uma imaginação confusa
O neoliberalismo produz miséria e é sinônimo de barbárie?
O neoliberalismo é um mito, mas alguns ingênuos não sabem disso

2. O mito do Consenso de Washington


Mais um poderoso inimigo, mas algo fantasmagórico
As famosas regras do Consenso de Washington, em versão resumida
As regras do Consenso de Washington, explicadas em detalhe
1. Disciplina fiscal
2. Prioridades nas despesas públicas
3. Reforma tributária
4. Taxa de juros de mercado
5. Taxa de câmbio competitiva
6. Política comercial de integração aos fluxos mundiais
7. Abertura ao investimento direto estrangeiro
8. Privatização de estatais ineficientes
9. Desregulação de setores controlados ou cartelizados
10. Direitos de propriedade
O que aconteceu, antes e independentemente do Consenso de Washington?
Concluindo de forma inconclusiva: não existem soluções-milagre em economia

3. O mito do marco teórico


Tente entender...
A praga do marco teórico
O que é e o que não precisa ser o tal de marco teórico

4. O mito do Estado corretor dos desequilíbrios de mercado


Os mercados sempre provocam desequilíbrios e crises?
Os mercados são incapazes de se autocorrigir?
São os Estados os “corretores” ideais dos desequilíbrios de Mercado?
O sistema financeiro só funciona bem com muita regulação dos Estados?

5. O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres
A busca de culpados (sempre deve existir algum...)
Friedrich List: versão século 21
Uma história secreta do capitalismo?
Políticas estatais como fator de desenvolvimento?
A arte de chutar escadas: uma fábula fabulosa

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6. Os mitos da Revolução Cubana
O mito fundador: a revolução que se transformou em reação
A especificidade cubana: uma ilha que é quase uma fazenda pessoal
Os mitos entretidos pelo regime e por seus admiradores
O mito do socialismo
O mito das conquistas sociais
O mito do imperialismo como ameaça
À guisa de conclusão: um manifesto a favor do povo cubano

7. Os mitos em torno do movimento militar de 1964


Ossificação ideológica e revisionismo histórico: interpretações abertas
O maniqueísmo em torno do golpe de 1964: triunfo de uma escola
Mitos do governo Goulart: reformas de base e autonomia frente ao império
Desmontando os mitos: instabilidade política e incapacidade de reformar
Desmontando os mitos: uma análise das ‘reformas progressistas’
Balanço econômico do governo Goulart: uma visão pouco complacente

8. Os mitos da utopia marxista


O que é uma utopia e como o marxismo se encaixa no molde?
Utopia marxista e falácias acadêmicas: qual sua importância relativa?
Quais são os mitos da utopia marxista?
As falácias econômicas do marxismo

9. O mito do socialismo do século 21


O que é o socialismo original e quais as suas definições básicas?
Quais são as características do alegado socialismo do século 21 e em que medida ele
difere do original?
Quão novo é, de fato, o socialismo do século 21 e quais suas chances de dar certo, onde o
velho fracassou miseravelmente?
Do socialismo mais eletricidade do século 20 para o socialismo mais informática do
século 21: alguma inovação genial?
A história se repete? Talvez, mas não precisaria ser como tragédia...

10. Mitos sobre o sistema monetário internacional


Os órfãos de Keynes em busca de um Bretton Woods mítico
A ilusão da liquidez perfeita, do equilíbrio contínuo e da moeda estável
À procura de uma ‘tia rica’ para cobrir o seu déficit de pagamentos
OK: na ausência de uma nova moeda internacional, usemos as moedas locais
Um outro Bretton Woods é possível?; não é proibido sonhar...

11. O mito da transição do capitalismo ao socialismo


O socialismo vai emergir a partir do capitalismo?
A teoria da transição e os caminhos divergentes do socialismo e do capitalismo
A China e a maior ‘invenção’ da humanidade: capitalismo ou socialismo?
A Rússia e a maior ‘catástrofe’ do século 20: 1991 ou 1917?
A transição inexistente: enterrando um mito conceitual

12
(a completar...)

12.

13.

Conclusão: como não incorrer em falácias, sem deixar de ser acadêmico...

13
Prefácio

Thomas Sowell é um acadêmico americano, nem por isso sujeito certas peculiaridades
típicas da comunidade acadêmica:

(a completar)

15
Introdução

Da pouco nobre arte de ser falaz


Falácia, segundo os bons dicionários, é a qualidade ou o caráter do que é falaz, que, por
sua vez, é um adjetivo sugerido como sendo o equivalente de enganador, ardiloso ou
fraudulento, ou, ainda, quimérico, ilusório ou enganoso. Pois bem, ao longo de minhas
“peregrinações” acadêmicas, tenho tido a oportunidade de deparar-me com exemplos de
afirmações, argumentos, postulações, teses ou artigos inteiros que correspondem ao caráter
enganador ou, até mesmo, fraudulento contido nesse adjetivo. Comecemos esta série por um
dos mais recorrentes em nossos tempos.
Como sabem todos aqueles que convivem com a literatura acadêmica na área de ciências
sociais, nenhum conceito tem sido tão equivocadamente mencionado no ambiente universitário,
nas últimas duas décadas, quanto o epíteto “neoliberal”, junto com o seu correspondente
coletivo e doutrinal, o “neoliberalismo”. A incidência estatística de seu (mau) uso é tão notória,
que se poderia falar de uma verdadeira epitetomania anti-neoliberal, dirigida contra todas as
políticas econômicas associadas, de perto ou de longe, ao chamado mainstream economics, este
representado pelas correntes ortodoxas de pensamento e suas práticas econômicas
correspondentes.
Junto com o substantivo usado e abusado de globalização, ou, ainda, o tão mais
detestado quanto praticamente desconhecido programa econômico do “consenso de
Washington”, o neoliberalismo converteu-se, simultaneamente, em um xingamento e em um
slogan de uso praticamente obrigatório por todos aqueles que pretendem desqualificar e
condenar as políticas e as práticas da escola econômica convencional. Eles o fazem,
supostamente em nome de uma outra orientação, de uma doutrina ou de uma escola, que seriam,
alegadamente, heterodoxas, alternativas e até mesmo opostas às primeiras. Os argumentos e
teses utilizados para esse tipo de condenação são pouco compatíveis com um trabalho analítico
sério, ou seja, capazes de passar pelos testes da coerência, relevância, compatibilidade com os
dados da realidade e passíveis de aferição, independentemente dos próprios argumentos que
sustentam a acusação.
Nesse sentido, o neoliberalismo já se converteu em um mito acadêmico, isto é, deixou
de significar uma realidade empírica, aferível por dados extraídos de alguma situação concreta,
para passar a representar uma entidade nebulosa, definida de modo muito pouco precisa,
aplicada a diferentes conjunturas de países e políticas vagamente caracterizadas como
pertencendo ao domínio dos “livres mercados”, em oposição ao que seria uma regulação estatal

17
mais estrita. Não se é neoliberal por vontade própria, mas apenas por ter sido assim catalogado
por aqueles que detêm o monopólio dessa classificação, que são, invariavelmente, os opositores
de supostas ideias “neoliberais”.
Por certo, existem muitos outros abusos acadêmicos em relação a diversos conceitos
que são usados indevidamente no panorama pouco rigoroso das nossas “humanidades”, entre
eles o de classe, o de imperialismo, o de burguesia e vários do mesmo gênero. Contudo, o
manancial de falácias que brota sem cessar a partir do uso inadequado do adjetivo “neoliberal”
é provavelmente o mais abundante e o mais disseminado de que se tem registro desde os anos
1980. São tantas as variedades de uso e as manifestações qualitativas – ainda que superficiais –
em torno desse termo, que fica difícil ignorá-lo como o campeão absoluto de referências numa
série analítica que pretende, justamente, examinar alguns exemplos de falácias acadêmicas. Seu
uso é tão corrente e banal que pode ser espinhoso selecionar uma “falácia” representativa de
toda uma corrente de pensamento que se propõe aqui submeter ao crivo da crítica argumentada
e sistemática.
Encontrei, porém, no contexto de minhas leituras, um texto suficientemente
representativo de uma falácia acadêmica associada ao dito conceito e perfeitamente ilustrativo
do mito mencionado no título deste ensaio. Vou proceder à citação do texto em questão,
submetendo o trecho selecionado à crítica que pretendo fazer de toda uma orientação doutrinal
muito comum nos meios ligados à comunidade universitária que se move em torno das
chamadas humanidades. Os únicos critérios que me guiam na releitura crítica do texto em
questão são aqueles que se espera encontrar em todo e qualquer trabalho acadêmico: clareza na
descrição ou exposição dos fatos, coerência na apresentação dos argumentos, relevância do
discurso para a realidade de que se pretende tratar e sua adequação aos dados dessa própria
realidade.

(...)

18
1. As novas roupas do velho imperialismo, em sua fase neoliberal

Deparei-me, num típico volume que deve figurar entre as leituras obrigatórias ou
recomendadas de vários cursos dentro dessa área, com a seguinte afirmação:
“...o produto social da globalização, o neoliberalismo tem sido o mais dramático
possível. Em pouco tempo esse novo regime de acumulação desagregou sociedades, tornou os
ricos mais ricos e ampliou a pobreza em praticamente todos os cantos do mundo, especialmente
as nações da periferia, onde a barbárie social vem esgarçando o tecido social e incrementando a
violência em todos os sentidos.” (autor: Edmilson Costa; artigo: “Para onde vai o capitalismo?
Ensaio sobre a globalização neoliberal e a nova fase do imperialismo”; in Pedro Bohomoletz de
Abreu Dallari (coord.), Relações Internacionais: Múltiplas Dimensões; São Paulo: Aduaneiras,
2004, p. 201-233; cf. p. 206.)

Existe ainda outra frase extraída do mesmo artigo que me parece adequada ao propósito
de avaliar criticamente o mito do neoliberalismo em certo pensamento acadêmico
contemporâneo, embora esta acima me pareça uma perfeita síntese de tudo o que existe de
equivocado e falacioso no “pensamento” universitário em torno desse conceito onipresente e
polivalente. Vejamos em todo caso o complemento ideal a ela:
“O neoliberalismo é a síntese de todo esse processo de mudanças profundas que estão
ocorrendo no sistema capitalista: funciona como uma espécie de gerenciador ideológico, político,
econômico, social e cultural dessa nova fase do imperialismo. Trata-se de uma ideologia primitiva
para os tempos atuais, com postulados do século XVIII e meados do XIX, época do capitalismo
concorrencial, mas com um apelo espantoso ao senso comum. A ideologia neoliberal procura
manipular os sentimentos mais atrasados das massas, revigorando os preconceitos, açulando o
individualismo, distorcendo o significado das coisas, reduzindo os fenômenos à sua aparência, de
forma a ganhar os corações e mentes para o jogo do livre mercado e da livre iniciativa.” (Idem,
op. cit., p. 219)

Não vale a pena alertar para a incoerência de se destacar o caráter “primitivo” de uma
ideologia que, sendo de meados do século XIX, tem mais ou menos o mesmo grau de
“primitivismo” que o marxismo, nem para a inconsistência de se vincular a defesa do livre
mercado e da livre iniciativa a “sentimentos atrasados das massas”, já que a mesma ideologia
estaria, supostamente, “açulando o individualismo”. Pedir um mínimo de coerência analítica
seria exigir demais de um autor que, manifestamente, distorce o “significado das coisas”, reduz

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o fenômeno do liberalismo à sua aparência, com o provável objetivo de ganhar os corações e
mentes de alguns estudantes para o livre jogo dos seus argumentos ilusórios. Passemos,
portanto, a examinar cada uma das partes dessas afirmações, elas mesmas espantosas, em
relação ao neoliberalismo, com a atenção que nos requer este exemplo consumado de fraude
intelectual (se é verdade que este último adjetivo se aplica ao caso em questão).

O neoliberalismo como produto de uma imaginação confusa


Em primeiro lugar, o neoliberalismo nunca foi um “produto social da globalização”.
Esta é um processo tão velho quanto os empreendimentos marítimos dos mercadores fenícios
da antiguidade e as aventuras em mares desconhecidos dos navegadores ibéricos do final do
século XV. Em suas manifestações mais comuns, ela vem sendo aceita tranquilamente até pelos
mais empedernidos opositores desse processo, aqueles que, sob inspiração francesa, acreditam
que “um outro mundo é possível” e que pedem por “uma outra globalização”, que deveria ser
não assimétrica e, preferencialmente, não capitalista. Quanto ao neoliberalismo, a rigor, ele não
tem nada a ver com a globalização, podendo ser teoricamente encontrado em diversos sistemas
econômicos, bastando com que as práticas econômicas se ajustem ao que se tem, via de regra,
como os fundamentos do sistema liberal: liberdade de iniciativa, pleno respeito à propriedade
privada e aos contratos, defesa do individualismo contra as intrusões do Estado e, de modo
amplo, um conjunto de instituições e práticas que buscam garantir, tanto quanto possível, a
liberdade dos mercados.
A rigor, o neoliberalismo não existe, sendo apenas e tão somente um revival, ou
renascimento, de uma velha escola de pensamento econômico e de orientações em matéria de
políticas econômicas que se filiam ao antigo liberalismo doutrinal que surge na Grã-Bretanha a
partir dos séculos XVII e XVIII. Aliás, nenhum “neoliberal” consciente e consequente se
classificaria dessa maneira: ele apenas diria que segue os princípios do liberalismo (econômico
ou político, não vem ao caso diferenciar aqui os dois sistemas, que não são idênticos, mas
tampouco estranhos um ao outro) e ponto final; todo o resto seria dispensável. Neoliberal é,
como já referido, um epíteto criado pelos opositores do liberalismo ou, se quisermos, um
conceito que busca evidenciar, justamente, o retorno do antigo liberalismo, depois de um longo
intervalo marcado por práticas e orientações claramente intervencionistas e estatizantes.
Mas continuemos. Deixemos de lado a caracterização de “dramático” aplicada a esse
“produto”, pois isto corresponde a uma apreciação inteiramente subjetiva do autor, carente de
qualquer fundamentação empírica. Esclareça-se, de imediato, que o “produto” não conforma,
absolutamente, um “novo regime de acumulação”, que seria, supostamente, uma forma de

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organização social da produção e da distribuição de bens e mercadorias historicamente inédita
para os padrões conhecidos do capitalismo. Ora, o liberalismo – e seu sucedâneo
contemporâneo, que seria “neo” – está longe de ser novo e menos ainda de conformar um
regime de acumulação, posto que configurando uma filosofia ou orientação geral nos terrenos
da política e da economia. Acumulação é um termo geralmente associado ao pensamento
econômico marxista, que denota formas genéricas de apropriação dos resultados sociais do
processo de produção, o que pode ocorrer em regime de livre concorrência, de monopólio, de
propriedade estatal ou de modalidades mistas dessas configurações produtivas. Aparentemente
este autor demonstra pouco rigor na sua utilização do ferramental conceitual marxista; em
benefício próprio, deveria ser mais cuidadoso com sua terminologia estereotipada.
Pretender, agora, que esse “novo regime” desagregou sociedades equivaleria a afirmar
que o neoliberalismo foi responsável pela desestruturação de várias nações que conheceram a
aplicação de políticas neoliberais. Olhando-se, honestamente, um mapa dinâmico do planeta, o
que poderíamos constatar é que as únicas sociedades verdadeiramente desestruturadas da
atualidade são algumas nações africanas que conheceram processos traumáticos de
instabilidade política e social, algumas até atravessando guerras civis abertas e conflitos étnicos
ou religiosos intermitentes, ou surtos violentos de conflitos tribais que se arrastam na quase
indiferença das nações mais ricas do planeta, estas efetivamente “neoliberais” ou simplesmente
liberais.
Com efeito, se podemos caracterizar algumas sociedades como mais liberais do que
outras, estas parecem ser as nações do chamado arco civilizacional anglo-saxão (Estados
Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Irlanda, Austrália, Nova Zelândia), sendo elas seguidas como
menor rigor doutrinal (e maior pragmatismo) pelos países nórdicos ou escandinavos (Noruega,
Suécia, Dinamarca e Finlândia). Quanto aos países da Europa ocidental, essencialmente
capitalistas em seu “modo de produção”, eles têm alternado práticas e políticas liberais – ou
politicamente “direitistas”, para sermos simplistas – com outras tantas práticas e políticas mais
social-democráticas, geralmente conduzidas por partidos de esquerda ou progressistas. No
fundo, não se vê bem como distinguir essas políticas entre elas, a não ser no plano da retórica
eleitoral.
Em nenhum outro continente ou região podemos distinguir países e sociedades
verdadeiramente “neoliberais”, se formos rigorosos na utilização desse conceito. De fato,
pretender que países latino-americanos, que empreenderam programas de ajuste e de
estabilização macroeconômica depois de longas e recorrentes crises econômicas trazidas por
processos inflacionários e de desequilíbrio no balanço de pagamentos, sejam ou tenham sido

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“neoliberais” – qualquer que seja o entendimento que se dê a esse conceito – representaria
abusar em demasia desse conceito, retirando-lhe qualquer precisão metodológica e adequação
à realidade empírica que nos é dada observar ao longo das últimas décadas.
Olhando com lupa, talvez se pudesse dizer que o Chile se apresenta como um país mais
“neoliberal” do que a média dos latino-americanos. Ora, não se pode dizer que a sociedade
chilena esteja “desestruturada”, a qualquer título. Colocando a lupa em outras sociedades da
região, o que se observa é que existem, sim, alguns países bem mais desestruturados: os
primeiros que aparecem são a Bolívia, a Venezuela e o Equador, com a possível inclusão da
Argentina nesse conjunto. Pois bem, dificilmente se poderia dizer que eles estão assim por causa
do neoliberalismo. Ao contrário. Em cada um deles, o que se observou, ao longo dos últimos
anos, por acaso coincidentes com seus respectivos processos de desestruturação, foi,
justamente, a aplicação de políticas dirigistas, estatizantes, intervencionistas, heterodoxas e, até,
socialistas; ou seja, tudo menos políticas liberais. O autor deve estar com suas lentes embaçadas
por preconceitos ideológicos, o que o impede de constatar a simples realidade de políticas
econômicas que são efetivamente aplicadas nos diversos países considerados.

O neoliberalismo produz miséria e é sinônimo de barbárie?


O que dizer, em seguida, da suposta ação do neoliberalismo, que teria ampliado “a
pobreza em praticamente todos os cantos do mundo, especialmente as nações da periferia”?
Trata-se, mais uma vez, de afirmação desprovida de qualquer fundamentação empírica, não se
podendo apoiá-la em praticamente nenhum exemplo de sociedade reconhecidamente
“neoliberal”, qualquer que seja. A África, como vimos, afundou de fato na pobreza e na
desesperança – embora ela venha crescendo novamente nos últimos anos –, mas essa evolução
dificilmente poderia ser creditada à ação do neoliberalismo. Desafio o autor do texto
selecionado a provar o contrário.
Quanto às duas nações “periféricas” que mais progressos fizeram na elevação gradual
de uma miséria abjeta para uma pobreza aceitável, a China e a Índia, o que se observou, nas
últimas duas décadas, foi um conjunto de reformas, várias ainda em curso, conduzidas
justamente na direção de mecanismos de mercado, não de orientações estatizantes ou de
planejamento centralizado. A renda per capita tem se elevado, progressivamente, em ambos os
países, especialmente na China, que deu saltos espetaculares na redução da pobreza e na
abertura de setores inteiros de sua economia à livre iniciativa e ao capital estrangeiro (todo ele
capitalista e, supostamente, neoliberal). Quanto à Cuba socialista, ela conseguiu realizar a
proeza de passar da maior renda per capita da América Latina em 1960 – não escondendo o fato

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de que ela era bem mal distribuída – para um patamar abaixo da média, em 2006, confirmando
o consenso de que o socialismo é bem mais eficiente em repartir de modo relativamente
igualitário a pobreza existente do que em criar novas riquezas.
Pode-se, talvez, alegar que as mudanças econômicas ocorridas na China vêm sendo
feitas sob a égide do planejamento estatal e sob a firme condução do Estado chinês, que mantém
controle sobre setores ditos estratégicos da economia do país. Essa realidade não elimina o fato
de que todas as reformas operadas apresentam um caráter essencialmente capitalista e, portanto,
tendencialmente neoliberal, ainda que não na versão “quimicamente” pura do modelo original
anglo-saxão. O estilo ou a forma não pode sobrepor-se à essência do sistema, caberia registrar.
Neste caso, nosso autor ou é cego ou é intelectualmente desonesto, ao não querer reconhecer
esses dois processos de “enriquecimento capitalista”, que se desenvolvem sob os olhos de todo
o planeta há aproximadamente duas décadas. Suas lentes estão completamente fora de foco ou
muito sujas, aparentemente. Um pouco de estatística não lhe faria mal.
O fato de que, em vários desses processos – tanto em países desenvolvidos quanto em
países em desenvolvimento –, os ricos estejam se tornando mais ricos não impede o outro fato
concomitante de que os pobres estejam se tornando menos miseráveis. Quem não quiser tomar
minha afirmação como um argumento de fé, pode conferir os dados apresentados por estudiosos
da distribuição mundial de renda, como Xavier Sala-i-Martin, cujas evidências e conclusões já
resumi num artigo a esse respeito. 1
Se existem sociedades nas quais a “barbárie social vem esgarçando o tecido social e
incrementando a violência em todos os sentidos”, como pretende o autor, elas estão longe de
representar um modelo de “acumulação” ou de organização social da produção que seja liberal
ou neoliberal, sendo mais efetivamente caracterizadas pelo autoritarismo político e pelo
extremo intervencionismo econômico do Estado, quando não entregues à violência política,
religiosa ou tribal, pura e simples, como parece ser o caso de alguns países do continente
africano ou do Oriente Médio.
A afirmação carece, assim, de qualquer embasamento na realidade, sendo uma
construção puramente mental de um autor manifestamente enviesado contra o que ele crê ser
“neoliberalismo”, quando nenhum exemplo concreto desse sistema é discutido ou sequer
aventado. Para um autor como esse, ser contra o neoliberalismo significaria se posicionar contra

1
Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Distribuição mundial de renda: as evidências desmentem as teses
sobre concentração e divergência econômica”, Revista Brasileira de Comércio Exterior (Rio de
Janeiro: Funcex, ano XXI, n. 91, abril-junho 2007, p. 64-75; disponível:
http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1716DistMundRendaRBCE.pdf).

23
o livre comércio, contra o ingresso do capital estrangeiro, contra a administração em bases de
mercado de inúmeros serviços públicos, contra a fixação dos juros e da paridade cambial pelo
livre jogo da oferta e demanda de crédito e de moeda, enfim, preservar o controle estatal de
inúmeras atividades com impacto social.
Se formos examinar, contudo, os dados econômicos relativos à renda, riqueza e
prosperidade de um conjunto significativo de países, estabelecendo duas colunas, nas quais se
colocaria, de um lado, os mais “neoliberais” – abertura ao comércio e aos investimentos, menor
regulação estatal de atividades de produção e distribuição, fluxo livre de capitais e fixação dos
juros e câmbio pelo mercado – e, de outro, os países menos propensos à abertura e mais
inclinados à regulação estatal, e certamente quanto ao movimento de capitais – como são em
grande medida os da América Latina, do Oriente Médio e da quase totalidade da África –
teríamos uma correspondência quase perfeita entre maiores coeficientes de abertura, isto é,
maior grau de “neoliberalismo”, e maior renda e prosperidade. O “quase perfeita” vem por
conta de países de grande mercado interno – como os EUA – que apresentam pequeno
coeficiente de abertura externa (apenas no que tange ao peso do comércio exterior no PIB), sem
no entanto deixar de serem abertos às importações e atrativos aos capitais estrangeiros. Ou seja,
a liberalização em comércio e em investimentos e um ambiente de negócios favorável à
iniciativa privada constituem, sim, poderosas alavancas para a formação de riqueza e a
distribuição de prosperidade.

O neoliberalismo é um mito, mas alguns ingênuos não sabem disso


Em qualquer hipótese, porém, o neoliberalismo é um mito, tanto pelo lado das acusações
infundadas dos anti-neoliberais, como pelo lado dos promotores da própria doutrina liberal,
uma vez que todos os Estados modernos, sem exceção, apresentam graus variados de
intervenção no sistema econômico e de regulação da vida social. Uma série estatística sobre
níveis de tributação e gastos públicos, ao longo do século XX, revelaria um avanço regular e
constante da intermediação estatal nos fluxos de valor agregado e de dispêndio total,
confirmando o papel sempre relevante do Estado na repartição setorial da renda total e na
correção das desigualdades mais gritantes introduzidas pelos regimes puros de mercado. Aliás,
falar em “Estado liberal” é uma total contradição nos termos, tanto o substantivo desmente o
seu suposto adjetivo.
O que estava, contudo, em causa na análise conduzida neste ensaio de simples avaliação
crítica de um dos mitos mais difundidos na academia não era, propriamente, a evolução
econômica das modernas sociedades de mercado, e sim a afirmação – que vimos totalmente

24
desprovida de qualquer fundamentação empírica – de que existe algo chamado neoliberalismo
sendo ativamente praticado pelos Estados modernos e de que essa doutrina e prática seriam
responsáveis por todas as misérias da sociedade contemporânea. Trata-se de uma das fabulações
mais inconsistentes de que se tem notícia na produção acadêmica tida por séria e responsável.
Os dados disponíveis, revelados por organismos internacionais e por uma variedade
razoável de organizações independentes, confirmam a melhoria sustentada dos padrões de vida
em diferentes regiões do planeta, tanto mais rápida e disseminada quanto mais integrados estão
esse países e regiões aos fluxos mundiais de comércio, tecnologia e investimentos. Assim,
considerar que a “acumulação” neoliberal ampliou a pobreza em todos os cantos do mundo,
aprofundou as desigualdades e provocou o cortejo de misérias que são registradas em áreas
jamais tocadas por políticas e práticas neoliberais – qualquer que seja o entendimento que se dê
ao conceito em questão –configura um tipo de fraude que só consegue ser repetido
impunemente em salas de aula universitárias porque a academia brasileira é pouco responsável
no “controle de qualidade” dos cursos da área de humanas e nos métodos de avaliação de
docentes manifestamente despreparados para cumprir o programa do qual são encarregados.
Para sermos mais precisos, estamos em face de uma desonestidade intelectual que só encontra
paralelo em apresentações de mágicos de circos mambembes.
Termino por aqui minha primeira análise de uma falácia acadêmica detectada em livros
utilizados em universidades brasileiras. De fato, o mito do neoliberalismo – que não guarda a
mínima correspondência com a realidade verificável – oferece um exemplo concreto desse tipo
de prática, mais comum do que se pensa, aliás, em nosso ambiente universitário. A um simples
trecho selecionado de um artigo do autor aqui examinado pode-se aplicar o conjunto de
caracterizações dicionarizadas e conectadas ao termo “falácia”: enganador, ardiloso,
fraudulento, quimérico e ilusório. Outros exemplos certamente existem: eles também serão
trazidos a exame no momento oportuno. Concluo com um aviso à maneira dos franceses: à
suivre...

Brasília, 26 de julho de 2008.

25
2. O mito do Consenso de Washington

Mais um poderoso inimigo, mas algo fantasmagórico


Continuando minha série sobre as “falácias acadêmicas” – inaugurada por artigo sobre
o mito do neoliberalismo 2 – pretendo agora tratar do segundo mito mais abusado dos últimos
20 anos, aquele que pretende que, em algum momento, a América Latina se dobrou a um
conjunto de injunções vindas de Washington e aplicou esse pacote “neoliberal” com uma
inconsciência ingênua que teria beirado a irresponsabilidade. Esse “pacote” de prescrições
relativas à condução macroeconômica nos países latino-americanos recebeu o nome – inclusive
porque ele foi auto-atribuído – de “Consenso de Washington” (doravante: CW). Os problemas
reais e supostos do CW – e o mito daí decorrente – começam justamente por esse “acidente
geográfico”, não puramente circunstancial, posto que reveladores de uma coincidência infeliz:
o selo de origem o condenou a ser visto, desde o início, com desconfiança, quando não o situou
no limite da rejeição e do repúdio ideológico por parte de toda uma categoria de “produtores
acadêmicos”.
Caberia registrar, com efeito, que as famosas regras de política econômica – na verdade,
tão desconhecidas quanto vilipendiadas – jamais teriam assumido a importância que podem ter
assumido no debate político-midiático do continente se o fato de elas terem sido elaboradas
(não necessariamente aplicadas concretamente) e divulgadas a partir da “capital do Império”
não trouxesse esse estigma de nascimento, quase um pecado original, que praticamente
converteu o CW numa entidade virtual, numa figura metafísica, geralmente vazia de conteúdo,
mas inacreditavelmente repleta de ataques condenatórios e de slogans acusatórios que beiram
o ridículo, pela superficialidade das diatribes e a inconsistência das acusações.
Leio, por exemplo, num livro do marxista paquistanês, mas exilado em Londres desde
sempre, Tariq Ali, recentemente editado no Brasil, Piratas do Caribe (Rio de Janeiro: Record,
2008), o seguinte trecho: “A América Latina é um continente em que uma alternativa
essencialmente social-democrata ao capitalismo neoliberal está crescendo a partir das bases e
contaminando a política por todos os lados.” (p. 9)
Como alternativa, Tariq Ali se refere aos atuais “piratas” do Caribe: Hugo Chávez, da
Venezuela, Daniel Ortega, da Nicarágua, Rafael Correa, do Equador, e Evo Morales, da Bolívia.
Os dois últimos, aliás, seriam dificilmente enquadráveis na categoria “piratas do Caribe”, mas

2
Ver na Espaço Acadêmico n. 87, agosto de 2008, link:
http://www.espacoacademico.com.br/087/87pra.htm.

26
podemos deixar esse outro acidente geográfico de lado e ir ao essencial, uma vez que esse livro
representa uma condenação explícita do CW e um libelo contra as políticas e medidas
econômicas identificadas com tal “receituário neoliberal”. O mais surpreendente no livro de
Tariq Ali – provavelmente decepcionante para o governo brasileiro – é a condenação formal da
administração em curso no Brasil, como estando justamente identificada com o CW. O que
afirma Ali, que deve descontentar absolutamente os governantes atuais do Brasil?
“Há uma ironia no fato de que tanto seus aliados em Washington e na Europa quanto
seus opositores em casa concordam em ver Lula como um Tony Blair tropical. Como seu
equivalente inglês [Ali escreveu quando Blair ainda era o primeiro-ministro britânico],
está pronto a agradar praticamente em qualquer nível, cercado de assessores e camaradas
totalmente leais ao CW e corruptos até a alma”. (p. 53) [Lula] “De fato se tornou um Tony
Blair tropical, sucedendo a Tatcher protagonizada por Fernando Henrique Cardoso.” (p.
54)

Acredito que muitos no Brasil, e em outros países da América Latina, tenderiam a


concordar com o que escreveu Tariq Ali, uma vez que os “manifestos de oposição” contra a
política econômica do governo Lula – muitos deles circulando pouco tempo depois da
inauguração do governo – receberam significativo volume de assinaturas, demonstrando grande
adesão nas faculdades de ciências sociais aplicadas e de humanidades em geral. 3 Acredito,
também, que a rejeição demonstrada por esses acadêmicos à política econômica do governo
brasileiro atual – e, de forma geral, aos supostos ditames do CW – represente, em primeiro
lugar, uma ignorância parcial ou total do que sejam, efetivamente, as medidas de política
econômica preconizadas no tão famoso quanto desconhecido consenso.
Em vista dessa realidade, pretendo, no presente ensaio, apresentar o CW em sua
integralidade original e discutir, em seguida, alguns exemplos práticos de sua aplicação (ou
falta de) em países selecionados, tratando inclusive de alguns casos considerados
paradigmáticos. Estes estão muito próximos de nós, sendo representados, respectivamente, pelo
Chile – como suposto exemplo de adesão ao CW – e pela Argentina, que seria um eloqüente
exemplo de seu fracasso. O mesmo Tariq Ali, por acaso, afirma o seguinte sobre a Argentina:
“A Argentina é um caso interessante a ser estudado. O seu colapso foi uma mensagem para o
mundo como um todo, não apenas para a América Latina. Se você seguir os ditames de
Washington, isso é o que pode acontecer também com você.” (p. 57). Tariq Ali está,
obviamente, equivocado sobre o que ocorreu exatamente na Argentina, mas o seu

3
Para uma visão geral dos argumentos mais recorrentes nesses manifestos, e uma crítica a eles, remeto
a meu artigo: “Onde foram parar os manifestos econômicos de oposição?”, Espaço Acadêmico, nº 41,
outubro de 2004; link: http://www.espacoacademico.com.br/041/41pra.htm.

27
“indiciamento” constitui, aliás, um típico exemplo da superficialidade, dos equívocos e da
ignorância sobre o CW, de resto fartamente exibidos por outros críticos em nossas academias.
Tendo já abordado, parcialmente com base nas regras do CW, da suposta adesão do
Brasil ao que seria o “neoliberalismo” desenhado em Washington – ver meu artigo “A
indiscutível leveza do neoliberalismo no Brasil: uma avaliação econômica e política da era
neoliberal”4 – pretendo dispensar aqui um novo tratamento do caso brasileiro, pelo menos em
detalhe. Vamos ao que interessa, portanto, em relação a essas famosas regras.

As famosas regras do Consenso de Washington, em versão resumida


Trata-se de dez regras de ajuste econômico, formalizadas por ocasião de um seminário
realizado em Washington, no final dos anos 1980, ao cabo de dez anos de reformas econômicas
conduzidas em diversos países da América Latina. O encontro tentava, justamente, fazer o
balanço do que, exatamente, tinha sido aprendido na região (e fora dela) como experiência
prática da penosa fase de crises recorrentes dos anos (e décadas) anteriores, ademais dos
problemas estruturais e características sistêmicas desde sempre: inflação renitente,
emissionismo irresponsável, choques do petróleo, crise da dívida, moratória, desequilíbrios
cambiais e de balanço de pagamentos, pobreza generalizada, desigualdades extremas etc.
O que ocorreu, portanto, não foi uma decisão dos órgãos oficiais de Washington,
vinculados de alguma forma à elaboração de “prescrições” de política econômica – que seriam
as duas “sisters in the woods”, FMI e BIRD, e o Departamento do Tesouro dos EUA –, mas
sim um “resumo-síntese” de um consenso puramente acadêmico, que não pretendia ser
apresentado como “receituário” obrigatório de implementação de políticas econômicas
“neoliberais. Tratava-se apenas como um trabalho de reflexão e uma colaboração intelectual ao
esforço de ajuste e de reformas.
O CW deve, portanto, ser entendido exatamente pelo que ele foi, ou é, e não pelo que
seus supostos inimigos ideológicos pretendem que ele seja: uma contribuição ao esclarecimento
de políticas que “deram certo”, não um “pacote” imposto desde o alto. Este é o quadro
situacional e o contexto intelectual pelos quais devem ser avaliados o CW – e seus
desenvolvimentos posteriores – e como tais considerados em qualquer trabalho de avaliação
que se pretenda fazer em torno dele, como o que agora se empreende. Vamos, agora, à sua
substância.

4
In Espaço Acadêmico, nº 10, março de 2002, link:
http://www.espacoacademico.com.br/010/10almeida.htm.

28
Resumidamente, ele toca nos seguintes pontos: disciplina fiscal, reorientação das
despesas públicas, reforma tributária, liberalização financeira e comercial, taxa cambial,
abertura aos investimentos estrangeiros, privatização, desregulação e garantia de contratos e
direitos de propriedade. Caberia recordar, desde já, que as regras do CW não foram
estabelecidas por economistas liberais para orientar governos desejosos de uma política
econômica “ortodoxa”. Trata-se de um conjunto de prescrições de política econômica,
formalizadas a posteriori – como acontece geralmente com os modelos econômicos, que nada
mais são do que a formalização genérica de uma experiência passada, geralmente bem-
sucedida, pois raramente se constroem modelos a partir de fracassos –, para tentar sintetizar o
que estava acontecendo com países como Chile e México, que desde o início dos anos 1980
tentavam enquadrar-se no chamado mainstream economics, depois de décadas de políticas
erráticas e experiências substitutivas.
O autor das propostas foi o economista John Williamson, que, num artigo intitulado “O
que Washington entende por reforma da política [econômica]”, 5 fazia o balanço de quase dez
anos de ajuste na América Latina, depois da crise da dívida externa, em 1982. Os países mais
avançados nesse processo de ajuste eram o Chile e o México. Ao contrário do que muitos
pensam, portanto, foram as políticas já adotadas de forma independente por países da região
que serviram de “modelo” para que o economista, a partir das medidas concretas de política
econômica de seus governos, apresentasse seu esquema de “receitas bem-sucedidas de ajuste”.
Essas receitas cobriam dez áreas de reformas econômicas e políticas, nomeadamente as
seguintes:
1) disciplina fiscal;
2) prioridades nas despesas públicas;
3) reforma tributária;
4) taxa de juros de mercado;
5) taxa de câmbio competitiva;
6) política comercial de integração aos fluxos mundiais;
7) abertura ao investimento direto estrangeiro;
8) privatização de estatais ineficientes;
9) desregulação de setores controlados ou cartelizados;

5
Cf. Williamson, John, “What Washington Means by Policy Reform”, in idem (org.), Latin American
Adjustment: How Much Has Happened? (Washington: Institute for International Economics, 1990, p.
7-20): http://www.petersoninstitute.org/publications/papers/paper.cfm?ResearchID=486; acesso em
setembro de 2008.

29
10) direitos de propriedade.

Em sua versão original, as regras enunciadas por Williamson pouco se ocupavam de


equilíbrio no balanço de pagamentos, da liberalização financeira, de desregulação bancária, não
implicavam a diminuição do papel do Estado (como acusam, sem razão, muitos críticos
apressados) e não necessariamente condicionavam o sucesso dessas políticas à manutenção de
uma baixa taxa de inflação. John Williamson afirmava expressamente que suas regras eram
mais “instrumentos de política”, do que um conjunto de objetivos ou resultados que devessem
ser elevados à categoria de dogma. Elas estavam longe, portanto, de representar um remédio
para economias doentes, pois que tinham sido concebidas como um conjunto de princípios para,
justamente, manter as economias latino-americanas em estado “saudável”, sem a necessidade
de correções de rumo brutais, com intervenção do FMI e pacotes de ajuda “impostos de fora”.
Em relação à acusação de que essas regras condenavam as economias latino-americanas
à recessão, cabe registrar que o CW nunca pretendeu, nem poderia, ser um “receituário de
desenvolvimento”; ele estava unicamente destinado a fornecer “instrumentos de política
econômica” para facilitar o processo de reformas e de ajuste num momento de crise, como era
o caso da dívida externa. Esses instrumentos deveriam, assim, fornecer as condições mínimas
da estabilidade, após a qual políticas especificamente desenhadas para estimular ou facilitar o
desenvolvimento econômico deveriam ser concebidas e implementadas pelos governos da
região.

As regras do Consenso de Washington, explicadas em detalhe


Vejamos agora cada um dos pontos de maneira mais argumentativa.

1. Disciplina fiscal
Todos aqueles que conhecem a história econômica da América Latina têm presente o
quadro de descalabro financeiro cercando as finanças públicas da maior parte dos países. Na
verdade, nem precisaria conhecer essa história trágica para saber que desequilíbrios
orçamentários levam à acumulação de dívida pública, sustentada em emissões contínuas de
títulos governamentais, daí à elevação dos juros e a um ciclo infernal de novas emissões apenas
para cobrir o serviço (juros) da dívida. Basta considerar apenas o orçamento doméstico, ou suas
próprias receitas e despesas, para saber que déficits contínuos na conta corrente produzem uma
conta salgada que corre o risco de se tornar inadministrável. Como, a rigor, governos não vão
à falência, e sempre possuem a capacidade de avançar sobre as rendas dos cidadãos e das

30
empresas, o processo pode levar a conseqüências extremas, deixando uma “herança maldita”
para o governo seguinte ou as futuras gerações.
Não se trata, propriamente, de um problema confrontando escolas econômicas ou
orientações políticas distintas, ainda que o próprio Williamson se permita cutucar alguns crentes
do “estímulo fiscal”. Diz ele que “os crentes de esquerda no estímulo keynesiano, por meio de
grandes déficits orçamentários, são quase uma espécie em extinção”. Trata-se, basicamente, da
sustentabilidade das contas públicas, e aqui o ideal seria não permitir que o déficit orçamentário
não excedesse uma dada relação entre a dívida pública e o PIB. Pelos critérios de Maastricht,
como se sabe, o déficit orçamentário permitido é de, no máximo, 3% do PIB, sendo que a dívida
pública não deveria exceder 60% do PIB. Talvez sejam relações razoáveis, mas tudo depende
de como está sendo construído esse déficit – se for para investimento é obviamente melhor do
que para novas despesas correntes continuadas – e de qual é o perfil da dívida em função do
nível dos juros e do calendário de amortização.
Uma trajetória que contemple, por exemplo, aumentos generosos de salários para o
funcionalismo público – em total desproporção do que se paga no setor privado – e criação de
novos cargos públicos em função de critérios totalmente políticos, sem correspondência quanto
ao nível e qualidade dos serviços públicos, pode constituir uma receita segura para uma bomba-
relógio de natureza fiscal, da mesma forma como a concessão de aposentadorias e pensões em
clara dissociação com os recolhimentos havidos na fase ativa dos beneficiários. O Brasil,
justamente, parece enfrentar alguns desses problemas na presente fase, o que certamente vai ter
repercussões mais graves alguns anos mais à frente. Tampouco adianta, como também se
pratica por aqui, cobrir essas novas despesas buscando novas fontes de arrecadação ou
aprofundando a “extração” fiscal sobre os contribuintes e as empresas: o único resultado desse
tipo de medida é reduzir o espaço da poupança privada – que deveria ser usada para o
investimento empresarial – o que obviamente terá efeitos negativos sobre a taxa de criação de
empregos, de crescimento da renda e outros impactos que os economistas chamam de convite
à irresponsabilidade política: inflação e fuga de capitais.

2. Prioridades nas despesas públicas


Deixando de lado despesas militares – que são consideradas um domínio da segurança
nacional, fora, portanto, do alcance de simples tecnocratas – todas as outras despesas são
passíveis de racionalização e, eventualmente, de redução, pela via dos ganhos de eficiência.
Existem três fontes de gastos públicos que parecem inevitáveis em toda e qualquer
circunstância: gastos previdenciários (supondo-se um regime de repartição, e não de

31
capitalização); investimentos públicos, sobretudo em infra-estrutura; saúde e educação,
considerados corretores de desequilíbrios existentes no mercado (devendo, portanto, beneficiar
os mais pobres).
É óbvio, mesmo para o mais “direitista” dos economistas, que prioridade nas despesas
públicas não quer dizer redução de gastos sociais, e sim eliminação ou pelo menos diminuição
de outras despesas evitáveis, como os subsídios públicos. Existem muitos subsídios, diretos e
indiretos, que poderiam ser cortados ou reduzidos, e nem todo mundo têm consciência de que
eles existem. Quando o governo, por exemplo, escolhe não aumentar o preço da gasolina em
compasso com a cotação do petróleo nos mercados internacionais, ele pode estar subsidiando o
transporte da classe média, em detrimento do número muito maior que usa transporte público.
Quando ele concede empréstimos governamentais a industrias “estratégicos”, aplicando uma
taxa de juros que é a metade daquela que ele mesmo usa para remunerar seus títulos da dívida
pública, ele está subsidiando uma categoria privilegiada da população.
Mas mesmo os gastos com saúde e educação podem estar profundamente distorcidos
por um perfil exageradamente concentrado destes últimos na educação superior, por exemplo,
que no Brasil contempla, como sabemos, muito mais recursos do que os alocados aos dois níveis
anteriores. Da mesma forma, quando o governo permite que operações de mudança de sexo
sejam cobertas pelo sistema geral de saúde pública ele pode estar, ipso facto, retirando recursos
que poderiam ir para cuidados preventivos ou saneamento básico para populações de baixa
renda.

3. Reforma tributária
Não existe, a rigor, nada de liberal no sistema tributário, um expediente a que recorrem
todos os governos conhecidos desde a noite dos tempos. Trata-se de uma extração forçada, para
fins supostamente públicos, mas cuja incidência repercute de modo diferenciado segundo a base
escolhida e a forma de “captura” da renda pessoal.
Existem, basicamente, duas grandes formas de coleta de recursos pelo Estado: de
maneira direta sobre a renda dos cidadãos individualizados (com uma aplicação progressiva das
alíquotas definidas), e de maneira indireta sobre o consumo de todos os cidadãos (o que
recomendaria taxar menos produtos básicos, que serão os mais amplamente, e talvez
exclusivamente, adquiridos pelos mais pobres, e de forma mais “agressiva” produtos supérfluos
ou de consumo conspícuo). Outras taxas são cobradas sobre serviços específicos, dependendo
de quem os use (estradas, aeroportos, etc.).

32
Com relação ao imposto de renda, o consenso parece ser de que a base deveria ser ampla
e as alíquotas marginais reduzidas (para evitar elisão e evasão fiscal, fuga de capitais, etc.). Por
outro lado, impostos indiretos excessivos acabam penalizando os mais pobres de maneira
desproporcional, que podem pagar mais impostos (em relação à renda pessoal) do que os ricos.
Esse fenômeno é muito conhecido em vários países latino-americanos, mas poucos governos
têm a coragem de enfrentá-lo, uma vez que os impostos sobre os consumos são mais fáceis de
cobrar e passam quase despercebidos (quando sua incidência não está expressa no preço dos
produtos). Não é preciso dizer nada sobre o imposto de transações financeiras, que é cumulativo
ao longo da cadeia produtiva e, portanto, altamente irracional do ponto de vista social e da
capacidade competitiva de um país.

4. Taxa de juros de mercado


Isto significa, simplesmente, que ela não dever ser manipulada pelos governos e sim
determinada pelo equilíbrio da oferta e da procura por dinheiro na economia. Se o governo
precisa fixar alguma taxa, que ela seja positiva (ou seja, superior à inflação, caso contrário
provocaria fuga de capitais). Ela também deve ser moderada, de forma a estimular o
investimento e, se possível, neutra entre os desejos dos poupadores por uma taxa estimulante e
os dos investidores por uma taxa adequada ao seu retorno. Uma taxa muito “positiva” pode ter
um efeito devastador sobre a dívida pública.
Um mercado de créditos extremamente concentrado ou cartelizado tende a produzir
altas taxas de juros, razão pela qual um setor financeiro aberto à competição representa um bom
estímulo à manutenção de taxas de mercado moderadas. Se o governo, por outro lado, pretende
determinar de forma muito intrusiva o que os banqueiros podem ou devem fazer com seus
depósitos – ou seja, estabelece muitas regras para o crédito direcionado a setores, ademais do
alto volume de depósito compulsório – ele pode contribuir para juros anormalmente elevados.

5. Taxa de câmbio competitiva


Da mesma forma como os juros, o câmbio também deve ser determinado pelo mercado,
o que parece coincidir com a escolha da vasta maioria dos países que adota o regime de
flutuação de suas moedas. John Williamson diz preferir uma “taxa de câmbio em equilíbrio
fundamental”, o que, no caso de um país em desenvolvimento, significa que ela deve ser
“suficientemente competitiva para promover uma taxa de crescimento das exportações que faça
a economia crescer à taxa máxima permitida pelo seu potencial de oferta, ao mesmo tempo em
que mantém o déficit de transações correntes em uma proporção tal que possa ser financiado

33
em bases sustentáveis”. Ele acrescenta que a taxa de câmbio não deveria ser mais competitiva
do que essa relação; do contrário, ela poderia produzir pressões inflacionárias desnecessárias,
assim como limitar os recursos disponíveis para o investimento doméstico.
Essa taxa de câmbio competitiva é o elemento essencial de uma política econômica
orientada para fora, na qual as restrições de balanço de pagamentos são superadas
essencialmente pelo crescimento das exportações, não por um programa de substituição de
importações. Uma orientação para fora e exportações crescentes – sobretudo em setores não
tradicionais – constitui uma fórmula de sucesso para uma economia dinâmica.

6. Política comercial de integração aos fluxos mundiais


A visão mercantilista da maior parte dos políticos – em especial na América Latina –
faz com que eles vejam com bons olhos as exportações, mas condenem como se fosse um
pecado as importações. Na verdade, abertura às importações é relevante para ajustar o setor
produtivo a um setor exportador que possa ser competitivo internacionalmente, do contrário o
excesso de proteção penalizará a oferta doméstica e tornará o país mais pobre. Licenciamento
de importações constitui, aliás, uma fonte inevitável de corrupção, cabendo tão somente um
sistema tarifário transparente.

7. Abertura ao investimento direto estrangeiro


Como já indicado, a liberalização dos fluxos financeiros não é considerada uma
prioridade. Em contrapartida, o fechamento ao investimento direto estrangeiro pode ser visto
como propriamente contraproducente. O IED traz não apenas capital, mas conhecimento e é
um grande indutor de ganhos de produtividade. Ele pode ser conseguido, também, por
conversão da dívida; mas tende a ser desestimulado em virtude de reações nacionalistas que
podem ser economicamente prejudiciais. Em geral, empresas estrangeiras contribuem muito
mais para o desempenho exportador e, portanto, o IED é também um gerador de divisas.

8. Privatização de estatais ineficientes


Como regra geral, empresas privadas são geridas de forma mais eficiente do que suas
equivalente estatais, inclusive por uma questão de estímulos ligados ao lucro e pela falta de
uma fonte fácil de recursos baratos. A privatização também traz ganhos fiscais diretos e
indiretos, uma vez que o Estado se desobriga de fazer investimentos para os quais o seu Tesouro
pode estar depauperado. Com exceção de muito poucos setores públicos (como o fornecimento
de água, por exemplo), serviços “coletivos” podem ser fornecidos de maneira eficiente por

34
empresas privadas, sob um regime de concessão monitorado por um sistema regulatório
preferencialmente aberto a regras de competição em mercados relativamente abertos.
Não é necessário, tampouco, lembrar o assalto a empresas públicas conduzido por
políticos ávidos por práticas clientelísticas, o que por sua vez redunda em desvios financeiros,
quando não em corrupção aberta. Empresas públicas tendem a distorcer as condições de
concorrência e as regras do jogo num setor determinado, em função do acesso que elas podem
conseguir aos mecanismos decisórios do Executivo. Por fim, nas condições atuais de
capacitação técnica e educacional dos recursos humanos e de amplo acesso a capitais e
tecnologia, a rationale que presidiu ao estabelecimento de tantas estatais na América Latina e
alhures – qual seja: a falta de capacidade técnica e de capitais no setor privado – não mais se
justifica em bases racionais.

9. Desregulação de setores controlados ou cartelizados


A América Latina é uma das regiões mais reguladas e burocratizadas no plano
internacional, com tantos controles estatais que o “capitalismo de compadrio” e os estímulos à
corrupção aparecem quase como inevitáveis. Monopólios e cartéis, ou seja, falta de competição,
são uma das fontes mais comuns de preços altos, má qualidade nos produtos e serviços,
corrupção e comportamentos rentistas inaceitáveis numa economia moderna. A regulação não
se exerce apenas no fornecimento de bens ou serviços, mas também no cipoal de regras que
determinam a entrada e saída de capitais, a remessa de lucros, os fluxos de tecnologia sob
licenciamento, o ingresso de investimentos diretos, a existência de barreiras à entrada em novas
atividades, bem como taxas e contribuições de todo tipo.
Para exercer o devido controle – que ele mesmo se impôs – sobre todos esses setores, o
Estado precisa contar com um exército de funcionários, nem sempre pagos adequadamente e,
portanto, abertos, em princípio, a possibilidades de corrupção ou a condutas pouco
transparentes. A desregulação não significa descontrole ou ausência de regras; ao contrário: ela
costuma andar junto com agências reguladoras, criadas em função de uma visão de longo prazo
das necessidades do país, não na perspectiva de um governo temporário, e mantidas de forma
independente à equipe que ocupa por um tempo limitado os mecanismos do Estado.

10. Direitos de propriedade


O CW não pretende tanto se referir aqui à propriedade intelectual – embora esta também
seja insuficientemente protegida na América Latina – quanto chamar a atenção para o respeito
aos contratos e para a estabilidade de regras. A instabilidade jurídica aumenta os custos de

35
transação e é responsável por uma perda concomitante do PIB da região. Juízes que pretendem
fazer justiça social terminam por “criar” leis, em lugar de apenas interpretar e aplicar a
legislação em vigor.

O que aconteceu, antes e independentemente do Consenso de Washington?


A “interpretação” deformada feita por certos setores acadêmicos na América Latina a
propósito de processos de ajuste e reforma empreendidos por alguns países pretende que o CW
tenha sido responsável por todos os problemas acumulados na região ou pelos desafios na
agenda dos atuais governantes. Eles atribuem a “onda neoliberal” que percorreu alguns países
desde o início dos anos 1980 a uma espécie de diretiva emitida em Washington e implementada
de forma canônica por governos submissos ou suficientemente enfraquecidos economicamente
para não resistir às pressões combinadas dos EUA e das entidades do capitalismo global.
Como vimos anteriormente, o CW foi, na verdade, estabelecido a posteriori, depois que
alguns países decidiram se lançar na penosa via dos ajustes e da reforma, a começar pelo México
– a primeira vítima da crise da dívida de 1982 – e depois pelo Chile – o que não tem nada a ver
com a ditadura de Pinochet, orientada por uma visão anacrônica, tão dirigista e estatizante
quanto certos modelos “desenvolvimentistas”, estimulados antes e depois desses experimentos
inovadores. Como todo modelo, o CW é em grande medida artificial, consistindo numa
tentativa de síntese das medidas que supostamente teriam resultado em desempenho econômico
satisfatório nas fases seguintes. Trata-se, obviamente, de uma simplificação de uma complexa
realidade e de um conjunto de variáveis bastante sensíveis a um “mix” determinado de políticas,
que jamais pode se desenvolver da mesma forma em dois países diferentes.
Interpretações de processos complexos são naturalmente sujeitas a caução, na medida
em que não se pode isolar experimentos reais para fins de simulação ou teste controlado.
Espíritos ingênuos tendem a confundir o CW com essa coisa diáfana chamada neoliberalismo
e este, a rigor, não tem quase nada a ver com o CW, pois eles pertencem a dois universos
diferentes. Em todo caso, em qualquer discussão sobre o “neoliberalismo” latino-americano
sempre são trazidos em evidência os casos da Argentina, como exemplo de “fracasso”, o do
Chile, como modelo supostamente bem sucedido – embora nem sempre com medidas em
sintonia com a “ortodoxia” presumida do CW – e, eventualmente, o do México, o país que,
alegadamente, teria iniciado o ciclo de conversões “neoliberais” desde o início dos anos 1980.
O que parece evidente, numa análise prima facie, é que há uma concentração quase
obsessiva sobre o caso argentino para “demonstrar” o fracasso das receitas “neoliberais” para
promover crescimento e igualdade na América Latina. Não se pode analisar em profundidade

36
o desenvolvimento do ciclo completo do ajuste e reformas nessa vasta região; mas se pode, ao
menos, examinar o caso argentino, para verificar se ele se conforma, ou não, ao suposto modelo
prêt-à-porter, que seria disseminado pelos “profetas” de Washington como via milagrosa para
o crescimento sustentado.
Vejamos, portanto, como se pode avaliar a experiência argentina, em função dos
mesmos critérios que orientaram a primeira versão do CW (existem, pelo menos, duas outras,
mais centradas sobre as políticas sociais ou sobre o papel das instituições na implementação
das políticas recomendadas). Como julgar a Argentina, por meio do benchmark das regras
estabelecidas no CW?
O “neoliberalismo” argentino:
1) disciplina fiscal: a Argentina esteve longe de cumprir este requisito básico do CW, de
que são prova os contínuos déficits provinciais – problema associado ao federalismo
também presente em outros países –, bem como o crescimento irresponsável da dívida
pública, até o ponto inevitável da ruptura e do calote;
2) prioridades nas despesas públicas: o governo do presidente Menem passou toda a
primeira metade dos anos 1990 empenhado em modificar a Constituição para sustentar
seu projeto de reeleição, embora não tenha obtido um mandato com a mesma extensão
que pretendia;
3) reforma tributária: ela foi feita de forma parcial, tanto que a capacidade “extratora” do
Estado argentino sempre foi muito baixa, comparativamente com a carga fiscal do Brasil,
cuja burocracia da Receita sempre foi muito eficiente para fechar vários “buracos” na teia
tributária;
4) taxa de juros de mercado: de fato, os juros foram liberalizados, mas os desequilíbrios
crescentes acumulados do lado fiscal e a falta de competitividade dos produtos argentinos,
por força de uma inflação ainda importante, levaram o Estado a aumentar
progressivamente o nível dos juros, em descompasso com as necessidades de
investimento no país;
5) taxa de câmbio competitiva: trata-se, provavelmente, da mais eloqüente negação de uma
regra tida como essencial pelo autor do CW. A Argentina, ou melhor, o ministro Domingo
Cavallo, fixou formalmente o valor do peso em dólar (1 por 1), no plano que teve início
em 1991, preservando a mesma camisa de força durante dez anos seguidos. O regime de
conversibilidade, assegurado por um sistema de “currency board”, constituiu,
provavelmente, a mais significativa ruptura da Argentina com um elemento central do
CW;

37
6) política comercial de integração aos fluxos mundiais: de fato, ocorreu uma significativa
liberalização comercial ao início do processo de estabilização; mas os desequilíbrios
cambiais e inflacionários acumulados ao longo do tempo levaram a forte perda de
competitividade externa, o que determinou nova onda de protecionismo tarifário, de
expedientes para-tarifários (como uma “taxa de estatística”, por exemplo), além de outros
mecanismos defensivos (antidumping e salvaguardas extensivas);
7) abertura ao investimento direto estrangeiro: de fato ocorreu, numa primeira fase, mas
inviabilizada depois pela alta valorização do peso e a perda de competitividade adquirida
em função da amarra cambial;
8) privatização de estatais ineficientes: o processo ocorreu, nem sempre de forma
transparente, ou aberta à concorrência pública, e os recursos auferidos não serviram de
abatimento da dívida pública, que continuou numa trajetória de crescimento;
9) desregulação de setores controlados ou cartelizados: ela foi conduzida sem preparação
ou planejamento adequados, processo que resultou em novos monopólios privados, não
controlados por nenhuma agência reguladora;
10) direitos de propriedade: o “capitalismo de compadrio”, a transformação dos sindicatos
em negócios rendosos para as máfias nele encasteladas e diversas outras práticas
arbitrárias dos agentes públicos continuaram a alimentar um ambiente de negócios pouco
propício a um crescimento sustentável no país platino.

Muito antes desses processos pouco condizentes com a estrita racionalidade econômica
ocorrerem na Argentina, o Chile já tinha enveredado pelo caminho dos ajustes e da reforma,
itinerário por certo facilitado pela ausência de “perturbações” democráticas, mas nem por isso
isento de percalços próprios da ideologia militar, tão centralizadora, estatizante e dirigista
quanto a ideologia econômica de outros regimes militares na região. Na verdade, o processo de
“disciplinamento” econômico dos militares chilenos se deu apenas após uma grave crise
bancária, a persistência de focos inflacionários importantes, alto desemprego e desequilíbrios
no abastecimento alimentar, o que determinou o apelo a economistas identificados com a
“escola de Chicago” e os princípios liberais da escola “austríaca” de Von Mises e Hayek.
O importante a registrar é que muito tempo antes de qualquer “consenso” se formar em
Washington, ou de técnicos do FMI ou do Tesouro americano virem a Santiago – o que, aliás,
nunca ocorreu, fora das visitas de trabalho do FMI para fins de artigo IV – formular
recomendações ou prescrições de política econômica, o Chile já tinha decido empreender vasta
reforma de seu sistema econômico, num sentido amplamente liberalizante. Em outros termos,

38
foi o Chile quem deu a “receita” para a construção de um “modelo” de ajuste e reformas, não o
contrário. Foram essenciais em seu processo de ajuste e reformas, a manutenção da disciplina
fiscal, a liberalização comercial e financeira – o que não significou, em absoluto, liberdade
completa para os capitais, mas, sim, mecanismos de esterilização dos fluxos puramente
financeiros, como a famosa “quarentena” –, políticas de atração de investimentos diretos e uma
cuidadosa gestão monetária que trouxe a inflação chilena a níveis “europeus”. Em suma, o Chile
fez o seu “dever de casa”, mas isso não significou converter-se de forma acrítica ao
“neoliberalismo”, seja lá o que isso queira dizer. O Chile de fato desregulou, privatizou,
liberalizou, mas tudo isso de forma planejada, consciente e administrada pelo Estado.
A julgar pelo desempenho respectivo de cada um dos países, não é preciso lembrar quem
acumulou crescimento ao longo de mais de dez anos 6 – a ponto de ter sido chamado de “tigre”
ou “puma” latino-americano – e quem soçobrou na crise e na moratória, derrubando presidentes
como quem brinca com um castelo de cartas. Longe de representar uma “derrota” do
neoliberalismo, como pretendem alguns, de forma totalmente equivocada, o caso argentino é
um exemplo cabal de reformas incompletas, mal conduzidas ou de erros primários de gestão
macroeconômica, a começar pelo câmbio fixo e pela indisciplina fiscal, em total desacordo com
as prescrições – se houvesse – do CW. De outra parte, longe de representar qualquer tipo de
“vitória” para o mesmo CW, o caso do Chile é um modelo de pragmatismo e de cautela da
implementação de medidas – elas sim – ortodoxas de política econômica, que asseguraram seu
crescimento durante praticamente toda a década de 1990 e a estabilidade do poder de compra
de sua moeda.

Concluindo de forma inconclusiva: não existem soluções-milagre em economia


Como examinado ao longo deste breve ensaio analítico do famoso CW e sua não-
aplicação, de fato, na maior parte dos paises latino-americanos, o panorama regional é
suficientemente diversificado para descartar qualquer explicação simplista do tipo pretendido
por certos “analistas acadêmicos” para o sucesso de alguns e o fracasso de outros. A Argentina
não fracassou devido ao CW, assim como o Chile não foi bem sucedido devido a uma aplicação
submissa de suas recomendações, ainda que muitas das “receitas” empregadas neste país andino
guardem uma grande interface filosófica e prática com aquelas regras (mais de puro bom senso,

6
A economia chilena foi a economia que mais cresceu comparada com as grandes economias latino-
americanas: no período entre 1983-2007, ou seja, em 25 anos, o Chile cresceu 230%. E foi, também, o
país que mais absorveu, em termos relativos, investimentos estrangeiros.

39
ou de julgamento sereno das experiências econômicas bem sucedidas, do que de aplicação cega
de alguma “pomada maravilha” macroeconômica).
Muito da “agitação intelectual” em torno do suposto neoliberalismo desses países não
encontra, assim, suporte na realidade. Dessa forma, o mito do CW pode ser considerado uma
criação da esquerda latino-americana, que precisava dispor de um novo inimigo ideológico, na
figura do neoliberalismo, depois que outros velhos mitos – como, por exemplo, aquele preferido
pelo mais “perfeito idiota latino-americano”, o escritor uruguaio Eduardo Galeano: o do
subdesenvolvimento induzido pela dominação imperialista – entraram em desuso, por uso e
abuso na fase anterior. O que sobrou, finalmente, de toda essa agitação em torno de um conceito
que não merecia essa publicidade mal concebida e mal dirigida? Praticamente nada, a não ser:
slogans de um lado, e silêncio do outro.
Isso não impediu, obviamente, o manancial de bobagens que continuam a ser
disseminadas em torno de um suposto neoliberalismo dominador, que teria ocupado todos os
desvãos das políticas econômicas dos países latino-americanos ao longo de duas décadas.
Quando se vai examinar a realidade, a única constatação possível de ser extraída é que os
supostos inimigos ideológicos do neoliberalismo e do CW não sabem do que estão falando,
nem apresentam dados fiáveis para confrontá-los à realidade. Nessas condições, qualquer
diálogo racional é impossível. Mas diálogo é provavelmente a última coisa que desejam os
agitadores de slogans...

Brasília, 3 de setembro de 2008

40
4. O mito do Estado corretor dos desequilíbrios de Mercado

Dando continuidade ao exame crítico dos equívocos conceituais e empíricos mais


facilmente encontráveis na academia – cuja série já contemplou questões como os mitos do
neoliberalismo, o do Consenso de Washington e o do marco teórico 7 –, vamos tratar agora de
uma das falácias mais disseminadas e recorrentes na imprensa e nos artigos de universitários
que circulam pela internet atualmente: o mito do Estado como “salvador” de economias
supostamente contaminadas pelos “desequilíbrios” de mercado e como “garantidor” de
sistemas financeiros estáveis e mais previsíveis.
O argumento levantado segue uma linha conhecida: já que a crise financeira se
aprofunda e cria o espectro de uma nova depressão ao estilo daquela dos anos 1930, os
“analistas” da crise do capitalismo liberal proclamam recorrentemente a notória incapacidade
dos mercados se auto-regularem, o que cria, portanto, a necessidade de o Estado corrigir os
desvios nocivos do “laissez-faire” mediante medidas apropriadas de controle. Não apenas isso:
criticam-se os excessos da fase anterior, supostamente “desregulamentada”, e se pede uma
estrita regulamentação dos mercados, para – ao que se proclama – impedir que as bolsas e os
mercados financeiros se transformem no que foi chamado de “cassinos abertos à jogatina dos
especuladores”.
A rigor, a questão aqui selecionada para análise tem a ver com existência de várias
outras falácias que continuam a freqüentar o discurso acadêmico, como: o mito da especulação;
o da mão invisível do mercado (e sua contraparte funcional: o mito da mão visível do Estado);
o mito da volatilidade financeira e o próprio mito mais “mitômano” – se me permitem a
redundância – que possa existir: o mito das crises terminais do capitalismo. Trataremos de todos
eles oportunamente, mas, tendo em vista, justamente, as demandas reiteradas por maior
regulação estatal dos mercados financeiros, examinaremos agora a falácia em questão com
maior grau de detalhe.
Vou proceder, como de hábito, por meio de afirmações ou de questionamentos que
repetem os argumentos mais usados no período recente, submetendo-os, de minha parte, a
outros questionamentos com base em dados empíricos aferíveis e levando em conta a
experiência histórica do capitalismo no último século, deixando de lado as explicações “doutas”

7
Disponíveis, respectivamente, em: http://www.espacoacademico.com.br/087/87pra.htm,
http://www.espacoacademico.com.br/088/88pra.htm e
http://www.espacoacademico.com.br/089/89pra.htm.

41
que não fazem senão repetir opiniões consolidadas no imaginário coletivo de economistas de
academia (nem por isso menos equivocadas).
De fato, o que mais se ouviu ou se leu, nos últimos tempos, foram invectivas contra os
mercados e demandas por intervenção estatal. Como se as crises financeiras deslanchadas nos
EUA em 2007, agravadas em 2008, e que acabaram atingindo um pouco todo mundo nos meses
de setembro-outubro desse ano, tivessem sido causadas exclusivamente pelos mercados
“desregulados”, bastando agora submeter todo o setor a normas estritas de vigilância
governamental – ou internacional – para que o sistema passasse a funcionar de forma
perfeitamente equilibrada e tranqüila. Acredito que seja importante abalar essas convicções
equivocadas, introduzindo algumas pitadas de contestação intelectual a esse tipo de déjà-vu
falacioso.

Os mercados sempre provocam desequilíbrios e crises?


Provavelmente, mas nem sempre... Instabilidade e desequilíbrios são inerentes a toda e
qualquer economia dinâmica (como costumam ser as economias de mercado). Estas inversões
de ciclos ascendentes e descendentes constituem, justamente, algumas de suas características
mais interessantes e, ao mesmo tempo,... mais desejáveis. O que caracteriza uma economia de
mercado é a tensão constante entre: de um lado, desejos infinitos – como podem ser as
“necessidades” humanas em bens “supérfluos”; de outro, as possibilidades limitadas – dadas as
restrições físicas e as limitações tecnológicas (temporárias) – de aumento imediato da oferta.
Normalmente, o detentor de um bem valioso – provavelmente escasso, ou resultante de
alguma inovação tecnológica que torna esse bem atraente – estará em condições de “extrair”
renda do conjunto dos compradores e, com isso, maximizar a sua renda e bem-estar. Como
outros produtores e inovadores desejarão igualmente aumentar a sua renda, logo haverá uma
corrida para aquele setor com taxa de retorno mais elevada, equalizando, portanto, o nível de
lucros e aumentando a satisfação de todos. Os mercados financeiros costumam atuar da mesma
maneira, com algumas variantes: poupadores preferirão investir seus recursos em ativos de
maior rendimento relativo – ouro, terras, imóveis, moedas ou, mais freqüentemente, em
economias dinâmicas, ações de companhias de bom desempenho – ao passo que os investidores,
ou seja, os tomadores desses recursos querem ativos ao menor custo possível. Dessa interação
resulta a taxa de juros de mercado, que tende a ser aquela de equilíbrio entre a quantidade de
ativos oferecida e a demanda por crédito de alguns agentes.
Em economias de mercado aberto – isto é, sem barreiras políticas ao ingresso de novos
competidores – essas taxas se formam pelo livre jogo da competição, entre a “ganância” dos

42
poupadores por um rendimento máximo pelos seus ativos e o cálculo racional dos tomadores
quanto ao retorno dos seus investimentos. Um sistema desse tipo poderia funcionar numa
perspectiva ascensional sem maiores turbulências, se não fosse: por um lado, a “cupidez” de
alguns por uma taxa de retorno mais elevada – daí a colocação de sua poupança em ativos de
maior possibilidade de lucro e, portanto, com maiores riscos, igualmente, como podem ser
certas ações; e, por outro lado, a interferência dos governos nos mercados de capitais. Governos
atuam de maneira desastrada, seja ao manter taxas de juros artificialmente reduzidas, seja ao
produzir déficits orçamentários, que depois precisam ser financiados com a tomada de recursos
na economia a taxas de juros mais elevadas do que o mercado normalmente pagaria.
Déficits fiscais e juros irrealistas estão entre as causas mais freqüentes dos
desequilíbrios de mercado, como os recentemente observados em economias de países ricos. O
próprio sistema econômico de mercado vive em instabilidade estrutural, posto que convivendo
sempre com assimetrias de informação entre os detentores de ativos, de um lado, e os tomadores
de crédito, de outro. O capitalismo – nada mais do que uma economia de mercado – apresenta,
portanto, a característica de instabilidade constante. Mas é isso que o torna particularmente
interessante. Como as perspectivas de crescimento são sempre mais freqüentes do que aquelas
de descenso ou de estagnação, todos os agentes são levados a acreditar que, sim, poderão obter
lucros excepcionais de algum investimento arriscado, que, sim, poderão adquirir aquele bem
mais desejado – casa, carro, objetos de luxo –, antecipando gastos que só serão pagos com a
renda futura, o que é permitido justamente pelo mercado de créditos.
Resumindo: economias dinâmicas produzem tensões entre os detentores de diferentes
tipos de ativos – alguns mais líquidos, outros existindo em estado “virtual”, ou seja, sob a forma
de riqueza futura – , tensões que podem ser acomodadas em fases de crescimento, isto é, quando
todos acreditam que ganharão. Quando alguém duvida de que o retorno não será aquele
esperado e opera uma saída repentina do mercado em questão, o pânico pode se instalar e todos
acabam perdendo, pois a crise de confiança se instala no coração do sistema. Esta é a origem
mais freqüente desses surtos de queda brusca dos mercados, que são sempre precedidos por
uma abundância inusitada de capitais – privados, ou produzidos inflacionariamente pelos
governos. O resultado é o enxugamento temporário de parte da liquidez – certamente aquela
parte valorizada artificialmente, mas algum patrimônio real, também – até que o ciclo seja
retomado mais adiante, com nova euforia de crédito e possível crise mais adiante.
Este é o destino de (quase) todas as economias de mercado, pelo menos as mais
dinâmicas. Um sistema blindado contra crises e turbulências certamente não será um sistema
de mercado aberto, mas um fortemente regulado pelo Estado. Se a regulação estatal fosse

43
garantia de crescimento infinito, sem crises, então os sistemas socialistas – que foram os mais
pesadamente regulados pelo Estado que se conhecem na história econômica mundial do século
XX – teriam sido as economias mais ricas e poderosas do planeta, e não o desastre econômico
e tecnológico – sem mencionar os custos humanos e políticos da falta de liberdade e da opressão
– que foram, de fato. O socialismo, pela “estabilidade” que pretendia criar, foi direto da história
das utopias políticas do século XX para a paz dos cemitérios dos modos de produção...

Os mercados são incapazes de se auto-corrigirem?


Absolutamente errado: os mercados sempre corrigem a si mesmos, em toda e qualquer
circunstância. Esse tipo de frase, não sob a forma de pergunta, mas de afirmação presunçosa,
não poderia estar mais errada, conceitual ou empiricamente. São os governos ativistas que,
atendendo aos apelos de cidadãos, empresas e bancos, eventualmente desesperados pela corrida
para o “abismo”, impedem os mercados de se auto-corrigirem.
Se os mercados produzem desequilíbrios, como explicado acima, e até crises – algumas
devastadoras –, é óbvio e ululante que esses mesmos mercados corrigirão os excessos, podando
o retorno de alguns, cortando o lucro esperado de outros, ou seja, destruindo e redistribuindo
ativos líquidos e até bens físicos. Sempre é assim e sempre será assim, não fosse a interferência
dos governos. Estes impedem os mercados de se auto-corrigirem pela eliminação “natural” dos
desequilíbrios, mas num outro patamar, não previamente determinado, de criação e de
destruição de riquezas. A realização dos lucros de mercado será integral para os que
conseguiram antecipar o movimento inverso, e fatalmente punirá os incautos ou simplesmente
lentos e mal informados.
Os mercados não são entidades morais e, por isso, não são automaticamente inclinados
a premiar alguns e a destruir ativos da maioria. Eles atuam de forma cega, como sempre, mas
alguns “sábios” pretendem corrigir isso. Justamente, economistas “morais” – e alguns
tecnocratas de governo, que são convencidos pelos primeiros – pretendem corrigir essas
“imperfeições” de mercado, sugerindo ações governamentais que aumentem retornos e
minimizem perdas de mercados (que são inerentemente instáveis). O que eles conseguem fazer
é retirar do mercado aqueles fatores dinâmicos que, justamente, permitiram a criação de
riquezas, mesmo que de forma arriscada.
Governos sensatos – mas nem todos o são – normalmente não interferem nos
movimentos dos mercados de valores mobiliários, como as bolsas de ações. Ascensos e
descensos nos valores mobiliários são constantes e inevitáveis, indo desde o anúncio de
balanços de empresas, até movimentos mais importantes nos valores de um setor da economia,

44
como um todo. Nem por isso os agentes econômicos acreditam estar sendo manipulados por
um bando de capitalistas inescrupulosos (embora possa haver, também). Independentemente
dessa volatilidade natural dos mercados de ações, as pessoas continuam a depositar confiança
nesse tipo de investimento, entregando suas poupanças aos emissores de títulos (uma ação sem
retorno, isto é, unilateral, baseada unicamente na confiança de um retorno futuro). De fato,
países que possuem esse tipo de mercado em larga escala, são os que criam mais riqueza e
empregos, posto que as ações sempre se valorizam mais do que quaisquer outros ativos, no
longo prazo.
Diferente, obviamente, é a situação dos mercados financeiros, em especial do setor
bancário, pois aqui estamos falando de “bens públicos”, como podem ser as moedas nacionais
e os sistemas de poupança e de crédito, que atuam de forma muito interligada, tanto no plano
nacional, como em escala mundial. Ou seja, perturbações nesses mercados são suscetíveis de
enviar ondas de choque muito além do próprio setor bancário e por cima das fronteiras
nacionais, com efeitos potencialmente graves para tomadores e provedores de crédito. Não que
os mercados sejam incapazes de se auto-corrigirem neste caso também, pois eles podem fazê-
lo, eventualmente com a quebra de alguns bancos e o desaparecimento das poupanças de
milhares de pessoas. A auto-correção, neste caso, pode ser devastadora para muitas famílias e
as próprias contas públicas, que normalmente se abastecem nos mercados privados (emitindo
títulos para o financiamento de investimentos de mais longo prazo, embora alguns governos o
façam também para gastos correntes, numa típica irresponsabilidade que mereceria, sim, ser
sancionada pelos mercados).
Essa característica específica dos mercados de créditos – economistas dizem que o
crédito é o sangue que circula nas veias de qualquer sistema econômico – é que explica a ação
dos governos no sentido de “injetar liquidez” quando ocorre uma crise desse tipo, embora a
causa dos desequilíbrios tenha sido exatamente um excesso de liquidez, na fase anterior, e,
conseqüentemente, com investimentos arriscados feitos por particulares, banqueiros e os
próprios governos. Registre-se que os mercados não foram deixados ao seu “bel prazer”, como
acreditam alguns, posto que regulamentos nacionais e alguma regulação internacional (normas
prudenciais ditas de “Basiléia 2”) existem para serem cumpridas. Pode ocorrer que elas não
sejam observadas por alguns atores do jogo, mas muitos governos não exercem o seu papel
fiscalizador.
Ao contrário, governos podem criar ou agravar o problema, ao manter juros
artificialmente baixos durante muito tempo – aumentando, portanto, a liquidez do sistema – e,
depois, injetando mais recursos quando crises de solvência de bancos mais frágeis se colocam

45
concretamente. São os governos que criam o chamado moral hazard, ou seja, a incitação à
irresponsabilidade. O Federal Reserve, por exemplo, manteve o juro em 2% durante
praticamente três anos (de 2002 a 2005), incitando ao crescimento desmesurado do mercado
imobiliário, além da capacidade dos tomadores de honrar seus compromissos em caso da subida
de juros (o que ocorreu em 2005).
Se os mercados fossem verdadeiramente livres, os juros JAMAIS teriam sido mantidos
a um nível inferior a um piso real – que historicamente, no capitalismo, se situa em torno de
3,5% reais, ou seja, 5 a 6% nominais – e empresas garantidoras de crédito – obviamente não
apoiadas pelo governo, como era o caso da Fannie Mae e do Freddie Mac – JAMAIS teriam
alavancado hipotecas em um nível desproporcional às suas garantias em capital próprio. Ou
seja, na ausência de sinalizações inadequadas dos governos, os mercados SEMPRE se corrigem
naturalmente, embora possam fazê-lo em bases realistas, isto é, penosas para os incautos e os
espíritos especuladores...

São os Estados os “corretores” ideais dos desequilíbrios de Mercado?


Talvez, mas não necessariamente da forma mais eficiente possível. A rigor, não se pode
falar aqui do Estado, entidade inerentemente abstrata e impessoal, mas do governo, que é o
Estado posto em movimento por um grupo de pessoas, comandadas por algum líder vitorioso
nas eleições ou por um partido político que conseguiu reunir a maioria no parlamento. Esses
detentores ocasionais do “poder de Estado” adotam medidas com base em sua percepção do
que sejam “desequilíbrios de Mercado” e de quais ações seriam as mais apropriadas para
remediá-las. Eles o fazem misturando uma parte de ideologia político-econômica e outra de
pragmatismo circunstancial.
Keynes já havia afirmado que os decisores políticos são sempre prisioneiros de algum
economista defunto. Aparentemente, todos agora são prisioneiros do próprio Keynes e de suas
receitas “anti-cíclicas”, mesmo quando foram elas, justamente, que provocaram os problemas
enfrentados atualmente. A força dos mitos é tão poderosa que não se quer reconhecer que as
medidas keynesianas adotadas por quase todos os governos – estímulo à construção civil,
teoricamente para estimular um importante setor da economia; manutenção de juros baixos para
induzir investimentos (mesmo sob risco de desestimular a poupança); gastos governamentais
além e acima das receitas correntes (gerando, portanto, déficit e dívida pública); políticas de
salário real protegido da inflação, para estimular o consumo; enfim, um manancial completo de
ferramentas anti-cíclicas – estiveram em vigor durante muito tempo em todas essas economias,

46
que de resto convivem há muito tempo com o peso avantajado do Estado – em média 38% do
PIB – para serem tachadas, a qualquer título, de “liberais”.
Aliás, essa noção de “Estado liberal” é uma contradição nos termos: nenhum Estado é
liberal, por mais liberais, ideologicamente falando, que sejam os ocupantes ocasionais de
funções estatais. A lógica estatal é a da concentração de poderes, tanto no plano político como
no econômico, o que significa ausência de competição, práticas conservadoras de gestão,
imposição de barreiras ao ingresso de novos competidores e uma série de outras medidas que
estão no exato oposto de uma economia de mercado animada por princípios liberais. Ideólogos
ingênuos acreditam que capitalistas sejam “naturalmente” liberais, quando na verdade todo
capitalista concreto aspira ao monopólio em seu setor de atividade, de preferência com a ajuda
da mão visível do Estado. De fato, o capitalista só se sente realizado quando ocupa o Estado,
quando consegue “ser” o Estado.
A outra ilusão de alguns acadêmicos ingênuos é a de acreditar que os Estados, por meio
dos seus tecnocratas e outros responsáveis setoriais, consigam fazer com que os mercados
funcionem “melhor”, ou em todo caso sem os sobressaltos trazidos pelas crises financeiras
recorrentes. (Parênteses: se medidas de regulação estatal, que vêm sendo aperfeiçoadas desde
o New Deal, servissem de obstáculo a crises financeiras, o mundo não teria conhecido as crises
que conheceu em 1971-73, em 1987, nos anos 1994 a 2001 e novamente a partir de 2007-2008;
mas, claro, alguns sempre poderão argumentar que essa regulação não foi ainda “suficiente”.)
De fato, com a exceção da liberalização relativa dos fluxos de capitais – que também
corresponde a uma política por parte dos Estados, tendente simplesmente a reconhecer que
nenhum Estado comprometido com a economia de mercado consegue, na verdade, controlar
esses fluxos, pois teria de manter juros permanentemente altos e taxas de câmbio sempre baixas
–, a maior parte das atividades do setor financeiro já se encontra regulada, tanto por normas
nacionais como por regras multilaterais (como as já referidas “medidas prudenciais” de
Basiléia, aliás, aplicadas pelo Brasil acima dos requisitos).
Trata-se, efetivamente, de uma ilusão acreditar que normas traçadas no plano legal por
burocratas nacionais – ou mesmo internacionais – consigam controlar toda uma indústria
financeira extremamente flexível, inovadora e, por definição, volátil. Na verdade, não é o setor
financeiro que se torna volátil por deformação congênita, posto que capitais líquidos estão
sempre circulando de um canto a outro do planeta, em busca da melhor remuneração possível,
já que isto corresponde à sua natureza intrínseca. São os legisladores e burocratas nacionais que
criam a volatilidade, quase que por acaso, ao pretenderem, justamente, controlar as regras do
jogo econômico e impor condições restritivas aos detentores do capital, que decidem, assim,

47
“evadir-se” de tais controles. Não é segredo para ninguém que os países dotados de maiores
índices de volatilidade são, justamente, aqueles mais restritivos no plano financeiro, como uma
consulta ao Economic Freedom of the World: 2008 Annual Report pode facilmente comprovar
(www.fraserinstitute.org e www.freetheworld.com).
Deveria, por outro lado, ser matéria de simples bom senso uma constatação facilmente
verificável quanto à capacidade de os mercados se auto-corrigirem muito mais facilmente e
mais rapidamente do que pela via dos Estados: enquanto aqueles distribuem rapidamente
ganhos e perdas, realizando num curto espaço de tempo os lucros (ou prejuízos) associados aos
investimentos (bons ou maus) efetuados, estes precisam enfrentar a via crucis do debate
legislativo (em regimes democráticos, entenda-se). É evidente que existem países onde o
processo é efetuado por simples decreto executivo, muito mais autoritário, pouco transparente
(e, portanto, sujeito ao jogo da corrupção) e mais arbitrário do que no primeiro caso. As normas
reguladoras da atividade financeira então implementadas dificilmente conseguem ser mudadas
rapidamente, caso a dinâmica econômica assim o aconselhe. Os mercados o fazem de forma
muito mais rápida – ainda que não sem dor – daí sua vantagem relativa: enquanto a retomada
pode ser delongada durante anos a fio, no caso de sistemas muito regulados, os mercados
operam uma reversão mais imediata ao crescimento.
É evidente, aos olhos de qualquer pessoa medianamente bem informada, que as
condições econômicas estão permanentemente mudando em qualquer país – pelo menos
naqueles de economia não estagnada ou totalmente fechada –, em função do ritmo de
crescimento econômico, dos ganhos de produtividade e de competitividade e de rendas
extraídas do sistema internacional, todos esses fatores podendo ser medidos facilmente através
dos principais indicadores das contas nacionais, dos movimentos cambiais e do balanço de
pagamentos. Parece, também, evidente que nenhum governo moderno, por mais eficiente que
seja, consegue acompanhar essa dinâmica, se tiver de regular toda e qualquer atividade por via
legislativa, para levar em conta inumeráveis fatores e variáveis que intervêm no jogo econômico
real. É igualmente evidente que os países mais “livres” – como registrados no relatório
anteriormente citado – são os que ostentam os mais altos níveis de renda per capita e de bem-
estar, na medida em que eles conseguem, justamente, “capturar” parte da riqueza circulando no
mundo através de sistemas financeiros modernos, flexíveis e, sobretudo, livres.
Acreditar, nessas condições, que Estados “bem intencionados” conseguirão, por meio
de medidas legais de disciplinamento do sistema financeiro, criar riqueza e prosperidade e, ao
mesmo tempo, garantir a estabilidade operacional do sistema como um todo parece uma
manifestação de suprema ingenuidade. O que esses Estados conseguem fazer, na verdade, é

48
encerrar seus banqueiros e financistas numa camisa de força legal, atar seus pés com bolas de
ferro regulatórias, tornando, assim, todo o sistema bem mais pesado, mais lento e menos
eficiente, pouco apto, portanto, a cumprir sua função de prover liquidez rapidamente a todos os
agentes econômicos desejosos de ter acesso a um mercado de capitais dinâmico, flexível e
irrigado com um fluxo regular e permanente de novos recursos. Não se trata aqui de uma opinião
pessoal, mas de uma simples constatação empírica…

O sistema financeiro só funciona bem com muita regulação dos Estados?


Duvidoso que assim seja, e mesmo que assim fosse, deve-se pensar, também, no custo-
oportunidade... Talvez sistemas financeiros regulados possam desempenhar seu papel com
menos exposição a riscos e turbulências, mas será certamente um sistema muito lento para
disseminar recursos e para oferecer oportunidades de novos negócios a empreendedores
especialmente ativos em aproveitar as chances de ganhos que são criadas – geralmente por
falhas de governo, embora possa haver, também, as falhas de mercado – intempestivamente,
numa rápida mudança dos equilíbrios de mercado (por fatores naturais, como colheitas ou
descobertas de novos recursos, ou sociais, como anúncios de balanços de empresas, de taxas de
inflação ou resultados de contas correntes). O custo-oportunidade pode ser definido,
precisamente, como o valor associado a uma renúncia deliberada ou involuntária – como no
caso de uma regulação muito estrita nos mercados financeiros – a uma determinada aplicação
ou investimento, ou, então, a perda acarretada pela não possibilidade de se empreender uma
determinada atividade alternativa, em face, justamente, de barreiras levantadas por um ambiente
regulatório extremamente intrusivo e restritivo.
Esse tipo de situação parece tão óbvio no caso do Brasil que nem seria preciso
mencionar os mais gritantes: produtores e comerciantes perdem dinheiro pela carência da infra-
estrutura nacional, não apenas pelos custos incorridos da não existência de boas estradas e bons
portos, como também pela impossibilidade de investir nesse tipo de atividade, que continua sob
estrito controle estatal. As telecomunicações, também, no regime anterior, eram um exemplo
notório de custo-oportunidade, assim como são, ainda hoje, as mesmas telecomunicações, que
foram liberalizadas parcialmente, mas que continuam sendo exemplos de cartéis ultra-regulados
pelo Estado, ao lado do transporte aéreo comercial, que se especializam, na verdade, na extorsão
do cidadão, antes que no provimento de serviços abundantes e baratos. É claro e notório que a
abertura desses setores a maior número de empresas redundaria em maior benefício ao
consumidor, algo que não parece estar previsto nos planos do Estado regulador.

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Pode-se alegar que o sistema financeiro constitui um “serviço especial”, que não pode
se submeter às mesmas regras da plantação de trigo ou da fabricação de pão, mas é duvidoso
que seja assim. O Brasil ostenta um dos sistemas financeiros mais regulados do mundo, com
alto nível de depósito compulsório sobre os valores à vista deixados pelos clientes dos bancos,
o que redunda, obviamente em taxas de juros mais elevadas. Ele também tem notórias barreiras
à entrada de novos ofertantes de serviços financeiros em geral, o que resulta nas mais altas
tarifas bancárias que se conhecem: estes são dois exemplos de custo-oportunidade em
detrimento dos consumidores. Não podemos escapar dos juros altos – em grande medida
determinados pelo governo e sua enorme dívida pública – como tampouco conseguimos escapar
das tarifas bancárias, posto que não existem alternativas fáceis, dada a cartelização do setor.
No plano internacional a situação pode não ser exatamente a mesma, mas não faltam
aqueles que também pedem mais regulação e maior controle de capitais. Leio, por exemplo,
numa matéria-sintese sobre um encontro de economistas regulacionistas a seguinte
recomendação: “A atual crise financeira global demonstra que a cultura da especulação chegou
ao seu limite e aponta para a urgente necessidade de se criar um novo mecanismo internacional
de controle das finanças e fluxos de capital”. Essa foi a mensagem transmitida por “renomados
economistas” que participaram do simpósio internacional “Perspectivas para o
Desenvolvimento no Século XXI”, organizado pelo Centro Internacional Celso Furtado e
realizado nos dias 6 e 7 de novembro no Rio de Janeiro.8
Dispenso-me de citar o nome desses economistas, pois eles podem achar que o repórter
não transmitiu exatamente o pensamento de cada um, mas se trata, é claro, da mais coerente
manifestação de pensamento incoerente, tal como costuma figurar nessas falácias acadêmicas
de que estamos tratando nesta série. Em todo caso, um desses economistas fez uma dura crítica
ao pensamento econômico neoliberal: “A macroeconomia neoclássica é inútil e perigosa, ela é
ideológica. A Teoria Econômica Neoclássica é uma meta-ideologia que, em sua forma
moderna, legitimou a apropriação do excedente econômico por uma classe de tecnocratas,
associados aos capitalistas, que ganham bônus e comissões e mais bônus e comissões em cima
desse processo especulativo”. O mesmo economista acrescentou que, nos últimos anos, a
especulação “foi criando uma montanha de créditos e inventando riquezas fictícias”.
O único comentário suscetível de ser feito em face de tão clara manifestação de saber
econômico é que se trata da mais pura manifestação do espírito acadêmico reinante em nossas

8
Ver “Simpósio Celso Furtado: Economistas sugerem controle internacional das finanças”, Maurício
Thuswohl, Carta Maior, 8.11.2008; disponível no link:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15363&editoria_id=7.

50
universidades, onde conceitos e impressões subjetivas substituem uma análise fundamentada
da realidade. Nem sequer se poderia chamar esse tipo de argumento de manifestação de
pensamento, posto que se trata apenas de uma opinião impressionista de alguém que tem
dificuldades notórias em aceitar o livre jogo do capital financeiro, considerando, então, que se
trata de maquinações perversas de capitalistas gananciosos, de especuladores despudorados,
exatamente como afirmam, aliás, alguns políticos demagogos.

Em conclusão, é triste constatar que a academia brasileira, ao cabo de tantos anos de


formação pós-graduada, não tenha conseguido produzir elaborações mais sofisticadas sobre o
funcionamento dos mercados financeiros, do que essas repetidas invectivas contra
especuladores e banqueiros, e que tantos acadêmicos ingênuos não consigam reconhecer que
muitos dos problemas constatados foram mais causados pelo ativismo de certos Estados do que
pela disfuncionalidade dos mercados. Incrível ainda que tais acadêmicos parecem acreditar que
a “sapiência” de burocratas estatais seja superior à flexibilidade e adaptabilidade dos mercados,
mesmo se os agentes que atuam nos mercados não se distingam por uma inteligência superior
à média. O mais patético, ainda, é constatar que as “soluções” propostas por tais acadêmicos
vão na direção contrária à de sistemas financeiros modernos, flexíveis e abertos à competição
e à inovação, se contentando em preconizar uma versão repassada, atrasada e caricata de um
keynesianismo de fachada, que estacionou nos controles de capitais, no câmbio manipulável e
na determinação política da taxa de juros.
Acadêmicos assim não prestam apenas um desserviço à própria academia – dado o
primitivismo de suas “recomendações”. Eles também são um ameaça a uma gestão responsável
da política econômica, pois parecem querer fazer rodar para trás a roda da história. Nesse
sentido, eles são reacionários econômicos, ou simples caricaturas de economistas. Pena, pois
que o Brasil mereceria melhores economistas...

Brasília, 16 de novembro de 2008

51
5. O mundo é injusto e desigual, está baseado nas relações de força e na
prepotência dos poderosos
Talvez, mas menos do que antes e menos do que se pensa.

O mundo sempre foi desigual e os países menos poderosos têm de fazer um esforço
singular para garantir que seus interesses sejam pelo menos ouvidos, como já clamava Rui
Barbosa na segunda conferência da Haia, em 1907. Ele continua desigual, mas com o
surgimento da ONU e a expansão do direito internacional em áreas cada vez mais amplas dos
sistemas normativo e regulatório – anteriormente deixadas à competência exclusiva dos Estados
– ele tende a tornar-se administrado mais pela força do direito, do que pelo direito da força. Ele
deve continuar sendo desigual, até onde o horizonte histórico nos permite visualizar, mas a
imposição da força bruta tende a ser relegada a casos extremos (e marginais) de litígios entre
países ou dentro de países (guerras civis). Mesmo o moderno sucedâneo dos poderosos impérios
de outrora não pode atuar com base apenas na sua vontade unilateral e tem de fazer legitimar
determinadas ações pelo corpo político por excelência (por certo imperfeito) da comunidade
das nações, representado pela ONU (e seu Conselho de Segurança).
Nesse sentido, o mundo contemporâneo é menos injusto do que aquele conhecido até
meados do século 20, mas ele continuará sendo desigual, estruturalmente falando, na medida
em que o desempenho relativo dos países continua apresentando diferenciais enormes, no que
respeita educação, direitos humanos, democracia, avanços tecnológicos, oportunidades de
progresso social etc. O mundo era por certo menos desigual quando a maioria das nações tinha
sistemas econômicos baseados na agricultura de subsistência ou em processos manufatureiros
simples. A divergência aumentou a partir da primeira e da segunda revoluções industriais –
vapor, primeiro, química, eletricidade e motor a explosão, depois – e tornou-se propriamente
abismal com o aprofundamento da terceira, baseada nos sistemas de informação e na economia
do conhecimento.
A distância atual não tem a ver, entretanto, com os velhos mecanismos imperiais ou
coloniais do passado, uma vez que o desempenho nestas novas áreas não se baseia na extração
de recursos primários, mas sim no acúmulo de conhecimento, algo que pode estar ao alcance
de qualquer sociedade que se disponha a fazer da educação a alavanca principal de sua
organização econômica e social. A “acumulação primitiva” requerida por esse tipo de
prioridade social não pode ser obstada por nenhuma desigualdade estrutural baseada no poder
da força bruta; ao contrário, os menos poderosos podem aprender muito com as potências mais

52
avançadas e a maior parte do conhecimento humano encontra-se hoje livremente disponível nos
sistemas de informação abertos.

53
6. O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países
pobres

A busca de culpados (sempre deve existir algum...)


Dentre todos os mitos já explorados e a serem examinados nesta avaliação serial dos
equívocos mais renitentes no meio acadêmico, nenhum parece tão poderoso quanto o que
pretende que os países ricos, que teriam outrora alcançado o seu desenvolvimento graças a uma
série de políticas por eles hoje recusadas aos países emergentes, estariam agora ativamente
empenhados em impedir que esses países, eufemisticamente ditos em desenvolvimento, possam
galgar, igualmente, a escada da prosperidade econômica e os degraus da capacitação industrial
e tecnológica, tornando-se, como eles, desenvolvidos.
Continuemos, pois, o exame dos equívocos selecionados nesta série 9 pela análise crítica
de um dos exemplos mais notórios da “teoria conspiratória da história”, a tese do complô dos
ricos contra os pobres, a presumida ação mancomunada dos desenvolvidos contra o crescimento
e o progresso material dos países pobres ou menos desenvolvidos. O conjunto de “teses”
defendidas pelos partidários do que classifico desde já como mais uma falácia, não deixa de
apoiar-se em exemplos históricos que estariam aparentemente em linha com os argumentos dos
defensores dessa teoria conspiratória, em especial no que se refere às políticas setoriais
(industrial e comercial, em especial) e à suposta ação clarividente do Estado “empreendedor”.

Friedrich List: versão século 21


O mais conhecido defensor contemporâneo dessa teoria é o economista coreano,
atualmente na Cambridge University, Ha-Joon Chang, que se utiliza da famosa imagem forjada
pelo seu predecessor alemão de 150 anos atrás, Friedrich List, para afirmar que os países ricos
estão querendo “chutar a escada” que os levou a ser o que hoje são. Este é, aliás, o título de um
de seus livros mais famosos.10

9
A relação dos ensaios já publicados na Espaço Acadêmico e uma lista sugestiva de temas a serem
eventualmente tratados em trabalhos futuros podem ser encontradas em meu site pessoal, neste link:
www.pralmeida.org/05DocsPRA/FalaciasSerie.html.
10
Cf. Ha-Joon Chang, Kicking Away the Ladder: Development Strategy in Historical Perspective
(Londres: Anthem Press, 2002), já publicado no Brasil: Chutando a Escada: estratégia de
desenvolvimento em perspectiva histórica (São Paulo: UNESP, 2004).

54
Sua obra mais recente, Bad Samarithans, também publicada no Brasil, segue na mesma
linha.11 Promovida pela Ordem dos Economistas do Brasil, a obra constituiu o centro de atração
de um seminário realizado em São Paulo, em janeiro de 2009, sob a responsabilidade da Ordem
e da Fundação Getúlio Vargas, em torno de um programa de estudos focado na revisão do
pensamento econômico sobre o desenvolvimento.
Seguindo as idéias de Chang, o coordenador da Escola de Economia da FGV-SP, Paulo
Gala, acredita que “as experiências de maior sucesso observadas nos anos recentes, Coréia do
Sul e Taiwan, nos anos 70 e 80, e China e Índia nos 90, basearam-se justamente em políticas
contrárias às recomendações de Washington”. 12 Como já tratamos do problema do Consenso
de Washington em ensaio anterior desta série, 13 não iremos nos debruçar novamente sobre mais
esse mito do pensamento acadêmico. Mas caberia registrar os “seis mitos neoliberais” que este
professor brasileiro considera que vêm sendo propostos pelas instituições símbolo da
globalização capitalista e que, em sua opinião, se revelaram incapazes de produzir os resultados
prometidos.
Os “seis mitos neoliberais”, vários deles fictícios, seriam os seguintes: “1) os países
ricos atualmente alcançaram seu sucesso através de políticas comprometidas com o livre
mercado; 2) o neoliberalismo funciona; 3) uma globalização neoliberal não pode e não deve ser
interrompida; 4) o modelo americano de capitalismo neoliberal representa o ideal, o qual todos
os países em desenvolvimento devem replicar; 5) o modelo do Leste Asiático é idiossincrático,
o modelo americano é universal; 6) países em desenvolvimento precisam de disciplina
fornecida pelas instituições internacionais e por instituições politicamente independentes
(Banco Central, por exemplo)”. 14 Não vou agora rebater argumentos que são mistificadores, em
sua maior parte, inclusive porque o autor em nenhum momento traz qualquer comprovação de
que esse tipo de proposição simplista venha sendo defendido pelas organizações “neoliberais”
(eu apenas recomendaria que ele lesse mais história do mundo, estudasse um pouco mais de
economia e observasse a realidade, simplesmente). Para preservar o foco, vamos tratar aqui
apenas dos argumentos centrados sobre a “teoria do complô”, que constitui todo um capítulo
na história das falácias acadêmicas.

11
Cf. Ha-Joon Chang, Bad Samarithans: The Myth of Free Trade and the Secret History of Capitalism
(Londres: Bloomsbury, 2007); Maus Samaritanos: o mito do livre-comércio e a história secreta do
capitalismo (Rio de Janeiro: Elsevier, 2009).
12
Cf. Paulo Gala, Apresentação a Maus Samaritanos, op. cit., p. ix.
13
Ver, deste autor, “Falácias acadêmicas, 2: o mito do Consenso de Washington”, in Espaço Acadêmico,
n. 88, setembro 2008; link: http://www.espacoacademico.com.br/088/88pra.htm.
14
Cf. Gala, idem, p. x.

55
Uma história secreta do capitalismo?
O subtítulo do mais recente livro de Ha-Joon Chang já constitui, por si só, uma prova
eloqüente em favor de uma tese, aliás, uma verdadeira teoria, muito disseminada em certos
meios acadêmicos. Colocada de maneira simplista, mas nem por isso menos correta (a
colocação, não a tese), essa tese diz mais ou menos o seguinte: os países ricos – durante os
momentos iniciais de sua decolagem econômica, e na fase de consolidação do desenvolvimento
social – puderam exercer toda a latitude de políticas econômicas: desde as mais liberais –
quando podiam, ou precisavam – até as mais protecionistas e subvencionistas – estas últimas,
de maneira mais intensa ou freqüente, e sem que alguma entidade “ortodoxa”, do tipo do FMI
ou o Banco Mundial, viesse lhes dizer o que deveriam ou poderiam adotar como políticas
macroeconômicas e setoriais – até que puderam garantir para si um processo de crescimento
sustentado, marcado pela autonomia tecnológica e a plena soberania sobre suas principais
políticas públicas.
Uma vez alcançado o estágio em que se encontram, ou seja, de países líderes nas
classificações de prosperidade econômica e do avanço tecnológico, eles se empenham todos –
como se tivessem combinado tudo em algum local secreto de planejamento de maldades
capitalistas – em impedir que países retardatários e os subdesenvolvidos, de maneira geral, os
imitem, copiem o que fizerem, enfim, que os alcancem, do alto de seu progresso econômico e
capacitação tecnológica. Numa reedição prolongada da falácia original de List e, de maneira
tão perversa quanto calculada, os países ricos “chutam a escada” que permitiria aos atrasados
chegar onde eles chegaram; constroem, assim, um fosso intransponível entre eles, um grupo
pequeno de egoístas desenvolvidos, e todo o resto do mundo, um imenso conjunto de eternos
condenados ao atraso e à pobreza (e, no mesmo movimento, levados a transferir renda para os
de “cima”, como agravante).
Trata-se de uma caricatura, claro, mas apenas em parte. Vejamos a síntese que faz seu
principal defensor, e prefaciador, no Brasil, Luiz Carlos Bresser Pereira, desse tipo de teoria
propagada com maior competência por Chang: “Em Maus Samaritanos, Ha-Joon Chang faz
uma critica devastadora da teoria econômica ortodoxa ou neoclássica ao mostrar que suas
propostas de política econômica são para uso externo, não sendo utilizadas pelos países ricos
que as propagam” (p. xiii). Não contente em aderir à teoria conspiratória da história, Bresser
Pereira agrava o seu caso, insistindo na tese do complô dos ricos contra os pobres seguidores
infelizes do terceiro mundo. Vejamos o que ele diz, numa reconstituição histórica do processo
de desenvolvimento econômico em escala mundial: “Desde a Revolução Industrial a teoria

56
econômica tem sido um instrumento para justificar internamente o capitalismo e para evitar que
os demais países que ficaram atrasados no seu processo de industrialização também cresçam e
lhes façam concorrência” (p. xiii). Trata-se, sem dúvida alguma, de uma grave acusação a todos
os teóricos da economia ortodoxa ou neoclássica, que poderiam invocar, se fosse o caso, o
sentido moral de sua atividade, posto que transformados em simples feitores de uma espécie de
“colonização mental” conduzida a partir de seus centros de estudo. Seria risível, se não fosse
eticamente questionável.
O professor da FGV-SP parece apreciar piadas históricas, já que Bresser Pereira tem
prazer em reincidir na teoria: “A onda ideológica neoliberal que tem início nos anos 1970 tem
como uma de suas motivações essa neutralização [dos concorrentes dos países em
desenvolvimento], como objetivo nunca confessado, e jamais plenamente consciente” (p. xiv).
Todos os elementos da teoria conspiratória estão presentes, posto que, segundo Bresser, Chang
não hesita em “criticar os ‘maus samaritanos’ – os agentes dos países ricos e do neoliberalismo
que aconselham mal os países em desenvolvimento, que afirmam estarem ajudando-os quando,
de fato, estão criando obstáculos ao seu desenvolvimento” (p. xv). Esses agentes seriam uma
combinação de professores adeptos da teoria neoclássica, os funcionários e consultores das
organizações internacionais mais importantes na área econômica (FMI, BIRD, OMC) e os
representantes dos países ricos que conduzem programas de ajuda e de cooperação técnica para
os países pobres.
Mas não vale a pena continuar a falar da tese principal por meio de intérpretes de
segunda mão; melhor ir direto ao original. Dois equívocos parecem estar em causa na
construção desse tipo de mito que recebeu a poderosa contribuição de um economista que se
lança de maneira ousada (embora leviana) nos caminhos da história: (a) a falácia de que os
países ricos se tornaram o que eles são atualmente em virtude de um conjunto racional de
políticas direcionadas a tal objetivo, aplicadas de forma sistemática e consciente, a despeito de
contrariarem o pensamento econômico liberal de sua época; (b) e outra falácia, já pertencente
à “teoria conspiratória da história”, é a de que esses países têm-se empenhado, desde então, em
impedir que os pobres os alcancem, armando ardilosamente um complô para obstar a que os
atrasados cheguem ao topo da escada.
Esses dois argumentos se baseiam numa leitura seletiva, incompleta e deformada da
história, e são incapazes de se sustentar pela lógica de funcionamento do sistema capitalista (na
verdade, da economia de mercado), ou pelo seguimento da experiência concreta de diferentes
países engajados desde então no caminho do desenvolvimento, alguns bem sucedidos, outros,
infelizmente, não.

57
Políticas estatais como fator de desenvolvimento?
Chang, tanto no seu livro anterior, Chutando a Escada, como neste atual, Maus
Samaritanos, conta a mesma história, embora com argumentos ligeiramente diferentes, mas por
meio do mesmo uso seletivo dos dados históricos. Na verdade, não é tanto da história que ele
pretende falar – inclusive porque não se trata de um historiador econômico, nem de um
economista historiador, aliás – mas da “história” presente, ou o que ele pretende por tal. Essa
“história” seria dominada pelas políticas neoliberais e pela imposição das “regras do Consenso
de Washington” aos países em desenvolvimento, o que resultaria, assim segue a teoria do
complô, em que estes não possam fazer o que antes fizeram os países ricos.
Todos sabem quais são essas políticas e não seria preciso estender-se em demasia em
sua descrição: políticas macroeconômicas estáveis e responsáveis, redução do peso do Estado,
liberalização comercial e do regime de investimentos estrangeiros, defesa dos contratos e dos
direitos de propriedade intelectual, banco central independente, etc. Existe em vários setores
críticos – mas que provavelmente nunca leram os textos originais – uma grande confusão entre,
de um lado, o que pode ser eventualmente recomendado pelos conselheiros das instituições de
Bretton Woods e, de outro lado, as regras originais do economista John Williamson, que detém
o copyright – ou pelo menos os moral rights – sobre o chamado Consenso de Washington. Este
“consenso”, em sua versão original, não compreendia nem a taxa de câmbio fixa (ele
recomendava flexível), nem a liberalização do setor financeiro (ou dos movimentos de capitais,
para ficar em algo mais tangível).
Não é o caso de dirimir essa confusão neste momento, tanto porque isto não parece
preocupar aqueles que criticam de maneira leviana as “regras” de Washington, em primeiro
lugar o próprio Chang. Sua principal missão é a de desmantelar essas regras, posto que elas
seriam prejudiciais aos interesses atuais dos países em desenvolvimento. Usando mais suas
impressões do que a pesquisa histórica, Chang recomenda o contrário: sua sugestão é a de que
os países pobres façam aquilo que ele imagina que os países hoje ricos teriam feito nas etapas
iniciais de crescimento e consolidação de seus processos de autonomia tecnológica.
E quais seriam essas políticas? Elas são muito diversas, obviamente, sendo que em
alguns casos sequer houver políticas claramente definidas ou implementadas de maneira
contínua segundo um plano pré-determinado. Mas Chang, em sua leitura seletiva dos dados
históricos, identifica basicamente dois conjuntos de políticas que teriam sido usadas pelos
países ricos em sua caminhada racional para o desenvolvimento: políticas industriais, do tipo
“indústria infante” – tal como recomendado por List e, antes dele, pelo Secretário americano

58
do Tesouro, Alexander Hamilton –, e comerciais. As principais medidas seriam o apoio direto
às indústrias nacionais na fase inicial de instalação, por meio de subsídios, incentivos fiscais,
proteção tarifária e outros tipos de defesa comercial e dirigismo setorial. Ele é bastante
detalhista na coleta de medidas governamentais, ao longo do século 19 (e mesmo antes), que
teriam sido mobilizadas para sustentar a industrialização desses países. O resultado entusiasma
os dirigistas de várias épocas e de vários países, sobretudo aqueles que também pretendem
criticar o suposto complô dos ricos e dos “washingtonianos”.
O fato é que os argumentos de Chang são distorcidos, seus “fatos” são incompletos e
falham, lamentavelmente, em estabelecer as relações causais efetivas entre as medidas
industrializantes apontadas por ele e o desenvolvimento dos países considerados, processo
necessariamente mais complexo do que sua visão simplista da história. Ele não considera uma
série imensa de outros fatores institucionais – tal como destacada por historiadores econômicos
como Douglass North, por exemplo – e passa completamente por cima dos fatores culturais e
educacionais que sustentaram – não apenas a industrialização, mas – a transformação
tecnológica abrangente que teve lugar em vários desses países (alguns deles não
necessariamente industriais, mas “essencialmente agrícolas”, como Dinamarca e Nova
Zelândia).
É, por outro lado, igualmente simplificadora sua visão de que foram aquelas medidas
estatais que provocaram a industrialização e o crescimento econômico; como se os países ricos
tivessem “planejado” racionalmente seu processo de desenvolvimento, por uma série de
medidas encadeadas no tempo, e estruturalmente integradas umas às outras, todas elas com o
objetivo expresso – e talvez pré-determinado – de provocar essa modernização. Ele certamente
não considera a contraditória e muitas vezes improvisada colcha de retalhos que constitui a
trama da história real, na qual, indivíduos, grupos de pressão, ideologias e, não menos
importante, reações defensivas ou “imitativas”, interagem de modo desordenado, ao sabor das
relações de forças que se estabelecem na sociedade, para produzir um resultado que está longe
de ser aquele desejado por categorias específicas de atores sociais.
A história não é certamente um livro branco, no qual governos supostamente
esclarecidos podem ditar ordens e regras para sua implementação racional: ela é, bem mais, um
pesado carro de bois que avança lentamente por uma estrada esburacada, com interrupções e
deslizes que pouco têm de intencional ou planejado. Mesmo admitindo-se a existência de
políticas claras para favorecer este ou aquele resultado antevisto – como costumam ser as
medidas de subsídio industrial, de proteção tarifária ou de apoio logístico – é muito difícil ao
honesto historiador econômico separar fatores estruturais e contingentes no complexo processo

59
de desenvolvimento dos países atualmente ricos; a começar que eles não estavam desenhando
políticas de desenvolvimento e sim respondendo a impulsos que lhes vinham de dentro e de
fora, e nem sempre, aliás, pela mão dos governos.
Haveria muito mais a dizer sobre a peculiar leitura da história do professor Chang. Mas
a discussão poderia nos levar muito longe, no espaço limitado deste ensaio. Bastaria, talvez,
dizer isto: se o protecionismo comercial e as políticas dirigidas em apoio ao setor industrial
fossem o sucesso que ele alega, nesse caso, os países da América Latina, que, durante várias
décadas, praticaram ambos em doses altamente concentradas, deveriam ser hoje não apenas
nações altamente industrializadas, como tecnologicamente desenvolvidas, o que obviamente
não é o caso. Por outro lado, em sua própria Coréia natal, Chang deixa de ver todos os fatores
institucionais e educacionais que favoreceram o seu desenvolvimento, e se concentra
unicamente nas políticas industrializantes e de cunho comercial, que teriam, supostamente,
impulsionado o crescimento e a transformação tecnológica. Em conclusão, como economista,
Chang pode até ter seu valor de mercado, mas como historiador ele falha miseravelmente em
comprovar as suas teses.

A arte de chutar escadas: uma fábula fabulosa


O que dizer, então, da outra parte deste mito ridículo, que consiste em afirmar que os
países na vanguarda do progresso industrial atuam deliberadamente para impedir outros de os
seguirem na “escada” do desenvolvimento? Essa tese é tão ridícula – como compete a uma
“boa” teoria conspiratória da história – que nem valeria o esforço de desmenti-la, se não fosse
a existência de tantos crédulos nos países retardatários, sempre em busca de um bode expiatório
para culpá-lo pela sua industrialização deficiente ou seu desenvolvimento insatisfatório. Mais
uma vez Chang falha em trazer as “provas históricas” desse tipo de argumento, e apenas avança
as recomendações dos atuais “conselheiros washingtonianos” como a evidência de que os países
ricos desejam manter todos os demais no fundo do poço do não-desenvolvimento: para isso,
eles “chutam a escada”, num sentido metafórico, claro, pois a única coisa que fazem seria
recomendar políticas que inviabilizariam a “subida da escada”, mantendo os retardatários na
eterna dependência dos que estão no topo.
Curioso que esses mesmos “alpinistas industriais” investem nos retardatários, e não
apenas para contornar barreiras comerciais e outras restrições ao capital estrangeiro, como
sabemos por todos os exemplos dos movimentos de capitais de risco na história econômica
mundial. Mais curioso ainda é que todo esse ardor obstrucionista não impediu os Estados
Unidos e a Alemanha, no século 19, e os demais países avançados, na passagem da segunda

60
revolução industrial – grosso modo a partir dos anos 1870 – de galgarem eles também a escada
da industrialização e do desenvolvimento econômico. Seria por que a história só começa, de
verdade, quando as ex-colônias pretendem se industrializar? Mas tanto o Japão “feudal”, como
a Coréia “colonial” desmentem a visão conspiratória do bloqueio dos ricos exercido contra os
pobres periféricos, como isso também é cabalmente desmentido por outros exemplos atuais em
outras regiões.
Certo, Chang e seus seguidores poderiam argumentar que os “asiáticos” – que são os
exemplos que ele seguidamente invoca para comprovar a sua “teoria” – justamente não
seguiram as recomendações do Consenso de Washington e por isso puderam se desenvolver
com base em políticas ativas; aquelas mesmas supostamente utilizadas outrora pelos países
ricos e que agora eles não mais recomendam aos retardatários (ao contrário, buscam impedir
por todos os meios). A história é, contudo, mais complexa. Assim como Chang não conseguiu
estabelecer relações de causalidade entre as suas “políticas ativas” e o progresso industrial e
tecnológico nos países hoje ricos, ele tampouco consegue provar de maneira cabal que são essas
políticas que estão na origem do desenvolvimento relativo dos países asiáticos.
O fato é que os países de desenvolvimento rápido na Ásia – e também em algumas
outras regiões, como no Brasil, tempos atrás – conseguiram “construir” condições institucionais
que puderam atender, eventualmente, a alguns dos “requerimentos” – talvez necessários, mas
certamente não suficientes – que os colocaram no caminho da autonomia tecnológica e
industrial; entre eles fatores de natureza fiscal, tributária, logística e, acima de tudo, de cunho
cultural e educacional compatíveis com as “regras” do desenvolvimento. O processo é
certamente complexo e reduzi-lo a medidas de política industrial ou comercial, quaisquer que
sejam os méritos respectivos dessas últimas, pode tornar impossível o ato de manter-se fiel ao
registro histórico e à realidade de determinadas experiências concretas.
De resto, existem tantos exemplos de sucesso quanto de fracasso na história da
industrialização contemporânea – como a Europa do Sul ou a América Latina, até um período
ainda recente da história econômica mundial – e estes últimos, curiosamente, não são
enfatizados por Chang em sua “reconstituição” do desenvolvimento de uns e outros. O trabalho
do historiador – a fortiori do “planejador” de desenvolvimento, também – envolve
presumivelmente a consideração de todos os casos relevantes, e não apenas os de sucesso. É
verdade que aprendemos tanto, ou mais, com os casos de fracasso – e mesmo com desastres
espetaculares – pois são eles que podem nos indicar a combinação errada da “receita” do
desenvolvimento – se é que ela existe –, quando os fatores de sucesso podem ser múltiplos e
difíceis de determinar.

61
Como, aliás, indica a história da própria humanidade – na qual a maior parte dos povos
ainda vegeta em baixos níveis de prosperidade e de bem-estar – o mundo é feito bem mais de
“fracassos” que de “sucessos”, ainda que esses conceitos sejam altamente dúbios, para não dizer
completamente equivocados. Dos 35 a 40 bilhões de seres humanos que já viveram na
superfície do planeta, provavelmente um número muito reduzido, equivalente, digamos, a 5%
desse total, desfrutou, até hoje, de uma esperança razoável de vida, com o gozo simultâneo de
bons padrões de alimentação e de bem estar. A afluência material – isto é, a “libertação” da
penúria, da fome e da doença – ainda é algo relativamente “recente” na história da humanidade,
correspondendo, talvez, aos últimos dois ou três séculos de avanços na agricultura e de
progressos industriais.
Ao se questionarem “por que o mundo todo não é desenvolvido?”, 15 os historiadores
economistas acabam chegando aos verdadeiros fatores de progresso material e de avanços
tecnológicos que, longe de terem sido provocados por “políticas industriais e comerciais”, têm
a ver, basicamente, com os ganhos de produtividade do trabalho humano ao longo do tempo e
em diferentes sociedades, aspecto eminentemente vinculado ao desenvolvimento cultural, de
modo geral, e à educação básica e técnica, de modo particular. Estes são fatores que um
economista historiador – mas Chang não é um – deveria considerar na avaliação das diferentes
experiências nacionais de desenvolvimento, não um aspecto, apenas, da ação governamental
em favor deste ou daquele ramo industrial.
Quanto ao complô dos países ricos para “chutar a escada” dos retardatários, bem, ficou,
é verdade, faltando tratar desse “aspecto” da história com maior grau de detalhe. Mas a crença
é tão ridícula que me constrange ter de levantar argumentos para derrubar hipótese tão
fantasiosa. Para começar, ela contraria a “lógica” – se alguma existe – da economia de mercado
(e do capitalismo, diriam alguns marxianos mais razoáveis) que consiste em ampliar
continuamente a “esfera da acumulação” – para retomar esse linguajar barroco – e conectar os
mercados de forma contínua. Como já tinha explicado Marx em 1848, o capital busca sempre
derrubar barreiras feudais e muralhas de modos de produção ancestrais, para instalar suas

15
Ver, a este propósito, o trabalho, já antigo, de Richard A. Easterlin, “Why Isn't the Whole World
Developed?”, The Journal of Economic History, vol. 41, n. 1, The Tasks of Economic History, (Mar.
1981), p. 1-19; disponível: http://links.jstor.org/sici?sici=0022-
0507%28198103%2941%3A1%3C1%3AWITWWD%3E2.0.CO%3B2-Y. Cabe reconhecer que esse
autor foi excessivamente otimista em suas suposições mais importantes – sobre a disseminação cada vez
mais rápida dos elementos culturais e educacionais que “produziram” desenvolvimento em vários países
–, mas talvez ele tenha razão no longo prazo. Infelizmente, esse prazo tem-se revelado
desnecessariamente mais longo do que o desejável para muitos povos, mas fatores políticos, não técnicos
ou econômicos, podem explicar esse atraso inexplicável para os padrões da racionalidade ocidental.

62
máquinas infernais, que seriam teoricamente suscetíveis de submeter à sua dominação
implacável os povos de todo o mundo, ainda que convertidos em um “exército industrial de
reserva” (logicamente, para deprimir os salários dos trabalhadores na pátria de origem do
capital; para o que mais seria?). Por que, nessas condições, desejaria o capital restringir as
possibilidades de desenvolvimento capitalista na periferia? Deixo a resposta – se é que existe
alguma, racional, quero dizer – aos adeptos da teoria do bloqueio capitalista.
A rigor, essa tese já era inoperante, inaplicável e “fantástica” na época do próprio mentor
de Chang, o economista alemão Friedrich List – que publicou seu livro de economia política
em meados do século 19 – e parece-me que ela continua a ser tudo isso, 150 anos depois. De
fato, a teoria conspiratória não se sustenta, e só consegue desmoralizar seus partidários, a
menos, claro, que eles sejam imbuídos dessa crença numa “história secreta do capitalismo”, que
só consegue causar frisson naqueles imbuídos do “secreto desejo” de enterrar o (mal)dito
sistema. A verdade é que, numa economia de mercado, que combina diversos tipos de
capitalismos, o processo de desenvolvimento adota caminhos diversos, nenhum deles
controlável por alguma força social específica, e muito menos por governos ou atores sociais
estrangeiros. Nessas condições, imaginar que capitalistas e burocratas do FMI e do Banco
Mundial se reúnam na calada da noite – ou talvez nas reuniões anuais do Fórum Econômico
Mundial – para encontrar maneiras de impedir países pobres de ascender na escala do
desenvolvimento, cozinhando para eles receitas de não-desenvolvimento, acreditar nisso
representa bem mais do que defender alguma teoria conspiratória da história e redundaria,
simplesmente, em ofender a mais comezinha inteligência econômica (além de fazer pouco caso,
obviamente, da própria inteligência dos burocratas e dirigentes de países pobres, ou pelo menos
daqueles que não foram “comprados” pelos primeiros).
Quem adota esse tipo de postura – histórica ou econômica – também costuma enveredar
por outras teorias fantasiosas para explicar o sucesso de alguns e a “derrota” de outros, posto
que as teorias conspiratórias se retro-alimentam e produzem, de contínuo, novas razões para
velhos fracassos, como, por exemplo, a persistente pobreza e a imensa desigualdade na maior
parte dos países latino-americanos. Muitos – espera-se, ao menos, que este número seja
decrescente – acreditam que isso se deve à exploração imperialista e à existência de estruturas
capitalistas produtoras de miséria e de desigualdade; mas eu não preciso antecipar o que penso
a respeito, não é mesmo? (disso tratarei em futuro ensaio). Os que assim “pensam” – se o verbo
se aplica – não estão apenas ofendendo a simples verdade dos fatos e distorcendo a natureza do
processo histórico; eles também estão diminuindo suas próprias chances de ascenderem a uma
explicação mais consistente sobre as verdadeiras causas do atraso de alguns povos e do

63
progresso de outros. De certa forma, eles estão “chutando a escada” que os levaria a um patamar
superior de conhecimento.
Mas este parece ser o destino de muitas falácias acadêmicas: baseadas num contato
superficial com a realidade, elas acabam desenvolvendo uma explicação de “senso comum”
que não é apenas redutora e simplista, mas que se alimenta de suas próprias crenças
equivocadas.

Brasília, 20 de janeiro de 2009

64
7. O Brasil está situado na periferia, por razões históricas e estruturais, e,
portanto, forçado a uma situação de dependência em relação às
poderosas nações centrais
Certo relativamente, mas errado absolutamente, válido num passado distante, não
muito válido depois de quase 200 anos de independência.

Trata-se aqui de uma derivação da afirmação anterior, pois que supostamente


implicando a preservação de laços de “exploração” e de “extração de recursos” em benefício
do sistema central. Ainda que a acumulação sempre se faça em proveito de uma economia
central, como ocorre historicamente em qualquer sistema estruturado de produção e distribuição
de bens e serviços escassos, nada impede elites conscientes de organizarem seu próprio sistema
de acumulação produtiva em bases propriamente nacionais. Se elas não o fizeram, ou ainda não
o fazem, não se deve buscar culpados – os “bodes expiatórios” das antigas religiões sacrificiais
– fora de seu próprio ambiente histórico de organização social, quando minimamente dotado de
autonomia política, como parece ser o caso do Estado brasileiro a partir de 1822.
A “dependência”, empiricamente, é um outro nome para a acomodação das elites em
relação a um sistema que lhes permitia desfrutar de relativo conforto material, sem a obrigação
de criar novas formas de organização social da produção baseada num “modo inventivo” gerado
de forma endógena. Não há dúvida de que o Brasil emerge a partir de uma estrutura colonial
extrovertida, mas o rompimento dos laços políticos e econômicos de dependência formal está
quase completando dois séculos, sem que no entanto algumas de suas elites tenham decidido
romper com a “dependência mental” que as faz atribuir a uma “dominação estrangeira” as
razões de certos males e deficiências que se situam inteiramente em nosso controle remediar,
sobretudo mediante a educação ampliada das grandes massas e a introdução de ganhos
incrementais nas atividades produtivas básicas do sistema econômico nacional (exportamos
café há 200 anos, por exemplo, sem que se tenha consolidado uma marca própria nessa área).
Quanto à “teoria da dependência”, não há porque lhe atribuir maior importância
analítica, e de fato ela não possui nenhuma, pelo menos no que se refere a nossos próprios
problemas de desenvolvimento. Trata-se, meramente, numa comparação ex post, do
“neoliberalismo do marxismo vulgar”, aquele imperante nos anos 1950 e 60 e que justamente
procurava explicar nosso “subdesenvolvimento” devido à “exploração” das nações centrais
(isto é, mais avançadas). O que essa “teoria” – na verdade uma tentativa de “explicação” não

65
convencional, mas corrigindo a velha teoria do imperialismo – buscou “demonstrar” foi que,
justamente, a despeito da “exploração capitalista”, algum desenvolvimento era possível, no
quadro da mesma situação de “dependência”. Para todos os efeitos práticos, pode se deixar o
passado em paz, esquecer a “teoria” e dedicar-se à tarefa de “desenvolver” o país pela aplicação
das “velhas” e provadas receitas dos países centrais: educação, capacitação técnica e
profissional, instituições compatíveis com as necessidades de “acumulação”, elites menos
parasitárias ou prebendalistas, moeda saudável, Estado e sistema político funcionais para os
fins do progresso econômico e social da Nação.

66
8. O Brasil não consegue exportar devido ao protecionismo dos países ricos
que protegem seus setores estratégicos ou sensíveis. O Brasil deveria fazer
o mesmo
Muito relativo: o protecionismo talvez tenha uma incidência marginal nos fluxos
globais e não seria ele um obstáculo absoluto ao dinamismo das exportações brasileiras, que
dependem de outros fatores vinculados à produtividade geral e competitividade da economia
nacional. Imitar práticas protecionistas não é necessariamente receita para o desenvolvimento
econômico e social do Brasil.

O protecionismo virou o conceito da moda de nossa época, junto com a “deterioração


das relações de troca” e o “intercâmbio desigual”. Ele está na boca de todos os dirigentes
nacionais e representantes de organismos internacionais, mas sempre acompanhado de alguma
conotação negativa, como algo a ser evitado em seu próprio país e combatido nos demais. Sua
realidade é, todavia, completamente esquizofrênica, pois se trata do mais mal-amado conceito
sub-repticiamente praticado por todos aqueles que se dão ao trabalho de rechaçá-lo.
Com efeito, não há economista sensato que se posicione contrariamente ao livre-
comércio, seja com base em argumentos ricardianos, do tipo clássico, seja com base em teorias
mais modernas do comércio internacional (vantagens comparativas dinâmicas). Mas existem
poucos políticos sensatos – isto é, com interesse em preservar o mandato – que o defendem
abertamente, ainda que acrescentem, com ar de espertos, que eles são a favor em teoria mas que
na prática é difícil garantir o livre-comércio. Todos esses políticos sustentam versões mais ou
menos edulcoradas de medidas protecionistas, pois se trata, obviamente, de preservar empregos
na sua circunscrição eleitoral. Nenhum deles prega abertamente o protecionismo, mas todos
eles o praticam de uma forma ou de outra.
O protecionismo dos países ricos geralmente se exerce naqueles setores de maior
intensidade laboral, isto é, os ramos da “velha” indústria ou de primeira geração, ainda que
alguns deles contem com máquinas e equipamentos modernos e com processos produtivos
automatizados segundo os requisitos mais atuais da integração indústria-serviços. Trata-se das
indústrias têxteis (fiação, tecelagem e confecções), de calçados, siderúrgicas, processamento
alimentar e uma série de outras derivadas do primeiro capitalismo, ademais, como é notório, de
todo o setor agrícola (com poucas exceções). Chega a ser risível, se não fosse trágico, observar
o comportamento atávico de políticos e agricultores europeus defender a sua “segurança

67
alimentar” e o caráter “multifuncional” do setor agrícola, quando a única ameaça ao equilíbrio
alimentar europeu parece derivar de procedimentos irracionais como a alimentação animal a
partir de ração preparada com os próprios restos dos animais, o que redundou na enfermidade
da “vaca louca”, ou então da preservação de métodos “tradicionais” de processamento
alimentar, que colocam em risco a sanidade animal ou vegetal do produto sendo oferecido ao
grande público. A tal de “multifuncionalidade”, por sua vez, nada mais é senão uma
racionalização a posteriori de práticas nefastas do ponto de vista econômico, que teimam em
continuar existindo graças à chantagem de um punhado de agricultores contra seus
representantes políticos e da incapacidade dos dirigentes nacionais em se dobrar às realidades
do processo de liberalização comercial em escala mundial (que eles próprios pregam, aliás, em
direção dos países emergentes).
Existem obviamente outras formas de protecionismo, que se exercem também em
setores de ponta, como a indústria aeronáutica por exemplo, que combina tecnologia avançada
com práticas monopolistas e de cartel público, em benefício de um ramo dito “estratégico” para
a indústria e os serviços nacionais. Nesta área, o protecionismo vem geralmente combinado a
uma outra forma nefasta de comércio desleal, que é o subvencionismo explícito e implícito dos
programas governamentais de sustentação dessa indústria, quando ela não está ligada ao setor
de defesa, o que é compreensível, até certo ponto. Nessas circunstâncias, o protecionismo e o
subvencionismo vêm sustentados em teorias de defesa da “indústria infante”, à la List, muito
embora algumas empresas sejam tão velhas como a própria aviação comercial. Economias de
escala são então invocadas para defender as mesmas políticas, suscitando uma nova teoria do
comércio estratégico.
Não cabe aqui desenvolver argumentos teóricos em favor do livre comércio, pois
estaríamos repetindo os manuais de economia política dos últimos dois séculos. Mas devemos
simplesmente chamar a atenção para o argumento tantas vezes repetido de que o Brasil não
consegue expandir o seu comércio por causa do protecionismo dos países ricos. Esse argumento
é válido, em seus méritos próprios, mas não é suficiente para explicar as deficiências gerais do
sistema econômico brasileiro, independentemente dos sinais negativos ou positivos da balança
comercial e do grau maior ou menor de nossa dependência de eventuais saldos nessa frente para
compensar os déficits crônicos em serviços e em algumas rubricas da conta de capitais.
O Brasil é notoriamente um país pouco aberto ao comércio exterior, menor em todo
caso do que foi no passado e do que será no futuro. Todos concordam em que o Brasil precisa
se abrir mais ao comércio internacional e tornar-se mais competitivo em suas trocas externas,
ainda que não haja concordância imediata sobre as formas de se atingir tais objetivos. Alguns

68
recomendam políticas ativas na área comercial e em setores industriais selecionados, bem como
o uso apropriado de políticas fiscais e de incentivo tecnológico para aumentar o volume e a
qualidade de nossa pauta exportadora.
Concordo basicamente quanto aos objetivos finais, ainda que não exatamente quanto
aos meios, pois essas políticas ativas costumam redundar em benefícios excessivos para alguns
poucos beneficiários, ademais de causar distorções no processo produtivo de maneira geral, ao
induzir os setores não beneficiados a tentar compensar as desvantagens mediante expedientes
pouco ortodoxos e certamente desvantajosos para o Estado ou sistema econômico em causa
(como preços de transferência, práticas de sub ou superfaturamento no comércio exterior,
criatividade contábil nos mecanismos tributários e obrigações fiscais etc.).
Por todos esses motivos, não se deveria reagir a políticas e práticas protecionistas com
o emprego do mesmo arsenal de medidas distorsivas, ainda que a tentação de “dar um pouco
de proteção” (justificada como temporária e destinada a compensar não se sabe bem que
vantagem do competidor externo) seja grande em diversos setores privados e nos círculos
governamentais. O custo do protecionismo, como indicado por economistas de diversas escolas,
sempre é danoso do ponto de vista do consumidor em geral (pois que a proteção acaba sendo
paga pelo comprador nacional, sob a forma de preços mais altos), assim como impede ou
delonga os necessários esforços de aumento de produtividade para qualificar os agentes
produtivos na luta competitiva.
Por outro lado, a tarefa de definir o que seja um setor “estratégico” nem sempre é fácil,
pois os critérios são variados e complexos. Geralmente os setores de maior valor agregado são
geralmente considerados como estratégicos, mas isso pode se aplicar a muitos serviços, onde o
que está em causa é mais a inteligência nacional do que grandes investimentos em bens de
capital ou infra-estrutura. Por outro lado, o critério do déficit na balança comercial setorial é
extremamente falho, pois além de ser irracional pretender apresentar saldo comercial em todo
e qualquer setor, pode induzir algum setor mais “esperto” a alterar sua alocação de insumos de
modo a produzir saldo negativo e assim justificar a introdução de medidas de apoio setorial. Os
ramos de alta tecnologia seriam definidos como naturalmente “estratégicos”, mas o que dizer
da agricultura, hoje formada por uma agregação complexa de variados insumos das áreas
industrial, de pesquisa tecnológica, de comercialização etc.? Todo industrial, ou agricultor-
capitalista, vai querer que o seu setor seja definido como estratégico, o que abre as portas de
uma luta insana em favor das prebendas estatais.
Do meu ponto de vista, eu definiria como de caráter estratégico apenas a educação de
crianças e jovens, com a alocação conseqüente de investimentos maciços nas escolas públicas

69
de primeiro e de segundo grau e no ensino profissionalizante. Afinal, não há nada mais
estratégico do que capital humano e é ele que deve beneficiar-se de eventuais medidas
“protecionistas” por parte do Estado, embora num sentido mais concorrencial e o mais aberto
possível, sem qualquer política de reserva de mercado ou de fechamento nacional. Afinal de
contas, a inteligência costuma florescer em ambientes abertos e competitivos, não na estreiteza
das políticas setoriais de proteção.
O que seria, então, uma política “protecionista” inteligente? Aquela que, voltada
essencialmente para a formação educacional e a capacitação técnica do conjunto da população,
se dedicasse a “proteger” as chances dos menos afortunados nessa corrida competitiva pela boa
formação. No plano global, o estoque de conhecimento acumulado pela humanidade, e
disponível nos sistemas abertos de informação, seria suficiente, desde que mobilizado
corretamente, para participar dessa política de “proteção” à inteligência.

70
9. A globalização acentua as desigualdades dentro e entre as nações. Por isso
o Brasil deve evitar uma abertura excessiva à economia mundial
Errado. O contrário é verdadeiro, mas a inserção internacional não exime a
capacitação endógena.

O chamado “senso comum” costuma refletir um determinado conhecimento prático da


sociedade, emergindo algumas vezes da experiência passada, ou de “abalizadas pesquisas” ou
opiniões de “especialistas”. No caso da globalização, parece haver certo “consenso” de que esse
processo acarreta, no longo prazo, conseqüências positivas em termos de modernização, mas
que, no curto e médio prazos, ele seria responsável por tendências à divergência econômica e à
concentração de ativos na economia mundial, pelo suposto aumento da pobreza global, por uma
indução perversa às crises financeiras (produto da abertura comercial e aos “capitais voláteis”)
e pela mais do que “inevitável” (aos olhos dos críticos mais acerbos) exacerbação das
desigualdades na distribuição de renda entre países e dentro dos países, isto é, entre os vários
estratos de cidadãos.
Pois bem: esse “consenso” em torno do “senso comum”, sustentado ou não em “análises
comprovadas” de economistas e mesmo, eventualmente, de organizações internacionais, está
errado e, contrariamente ao que se crê e se afirma correntemente, a globalização não provoca
pobreza e concentração, como estudos mais abalizados podem comprovar. Ao contrário, ele
desconcentra riqueza e renda, e tende a contribuir para a elevação dos padrões sociais ao
sustentar taxas mais elevadas de crescimento e de integração na economia mundial (e portanto
de modernização tecnológica). Uma discussão detalhada, com apresentação de estatísticas e
dados comprobatórios se revelaria pouco factível aqui, mas vou remeter a trabalhos importantes
que devem ser consultados em qualquer debate sério sobre o assunto.
Como demonstra o economista e professor da Columbia University (catalão de origem)
Xavier Sala-i-Martin (website: http://www.columbia.edu/~xs23/home.html), em lugar das
supostas tendências ao crescimento das desigualdades (refletidas até em documentos como o
Relatório do Desenvolvimento Humano, por exemplo), as taxas de pobreza e as desigualdades
globais na repartição de renda têm na verdade declinado em escala global nas duas últimas
décadas. Sala-i-Martin, com base em novas metodologias e um diferente foco analítico (o
indivíduo, não o país; o consumo, antes que a renda), traz evidências contundentes nesse
sentido: elas podem ser conferidas em seu estudo “The disturbing ‘rise’ of global income

71
inequality”, preparado para o National Bureau of Economic Research (disponível no link:
www.nber.org/w8904).
O que ele “descobriu”, basicamente, depois de ingentes pesquisas e refinadas
simulações econométricas, é que ocorreu uma redução geral das desigualdades de renda entre
1980 e 1998 e que a maior parte das disparidades globais são encontradas entre os países, não
dentro dos países. Tendo estabelecido funções para a distribuição mundial de renda, ele
constatou que, se em 1970 o mundo apresentava uma larga fração da população num renda
modal próxima da linha de pobreza – isto é, subsistência à razão de um dólar por dia –, essa
fração começou a definhar e o mundo hoje se encaminha para uma “larga classe média”, em
suas palavras. Tanto as taxas de pobreza quanto o número de pobres decresceram
dramaticamente: o critério de um dólar por dia caiu de 20% em 1970 para apenas 5% em 1998
da população mundial, enquanto que pelo critério de dois dólares por dia a taxa reduziu-se de
44% a 8%. Em termos de “volume” humano, isso representou uma subtração de
aproximadamente 400 milhões de pessoas ao “estoque mundial” de pobres entre aqueles dois
anos. Ou seja, o “dramático e perturbador” aumento da pobreza e nas desigualdades no período
recente da globalização simplesmente não ocorreu, ao contrário do que afirmam os
antiglobalizadores e mesmo entidades aparentemente sérias e respeitáveis como o PNUD.
Em termos desagregados, as evidências são interessantes do ponto de vista das regiões
e países. O exemplo mais ilustrativo da tendência global por ele revelada é obviamente o da
Ásia, onde os índices de pobreza caíram de forma espetacular. A China e a Índia, ainda
socialistas nos anos 1970, foram os países que mais progrediram do ponto de vista da
diminuição da pobreza e da convergência em relação aos indicadores de países mais avançados.
Nos EUA, por sua vez, simplesmente inexistem aquelas faixas de renda correspondendo a
pessoas que vivem com 1 ou 2 dólares por dia, que constituem as medidas padrões utilizadas
pelos organismos internacionais para medir a pobreza. A Indonésia representou a mais
dramática mudança na história econômica da humanidade, com redução sensível da pobreza e
da desigualdade, mesmo a despeito da crise financeira de 1998, quando o PIB foi reduzido em
mais de 15%. A América Latina não foi uma região particularmente feliz em termos de
diminuição do número de pobres, embora tivesse conhecido, igualmente, uma certa redução da
pobreza, mas em décadas anteriores. No Brasil, os progressos efetuados nos anos 1970 foram
freados nos anos 1980 e, nos anos 1990, com exceção de alguns anos, os ricos melhoraram mais
do que os pobres.
As pesquisas e regressões matemáticas de Sala-i-Martin confirmam, por sua vez,
estudos do economista indiano Surjit Bhalla, para quem a globalização não resultou em taxas

72
menores de crescimento, nem em aumento da pobreza ou da desigualdade, mas ao contrário,
numa diminuição sensível das desigualdades mundiais, dos índices de pobreza e num
crescimento da renda dos estratos mais pobres, relativamente aos mais ricos. Os interessados
em uma discussão mais detalhada sobre as relações entre crescimento, desigualdade e pobreza
na era da globalização, assim como nos principais avanços metodológicos introduzidos por
Surjit Bhalla podem ler o seu livro Imagine There’s No Country: Poverty, Inequality and
Growth in the Era of Globalization (Washington: Institute for International Economics, 2002)
ou na apresentação feita no Banco Mundial (links: http://www.worldbank.org/wbi/B-
SPAN/sub_poverty_globalization.htm e
http://poverty.worldbank.org/files/12978_Surjit_Bhalla_Two_Policy_Briefs.doc).
Os trabalhos de Surjit Bhalla são efetivamente importantes pela sua contribuição ao
avanço dos métodos de pesquisa em terrenos clássicos da economia política como o da
distribuição de renda e riqueza (que não são obviamente sinônimos). Mas ele também não deixa
de tocar nas implicações políticas de suas teses, como a questão de saber quem perde com a
globalização. De um modo geral, as evidências sobre a convergência entre sistemas econômicos
nacionais parecem agora bem estabelecidas, sobretudo do ponto de vista da equalização de
salários em níveis similares de produtividade, o que deve beneficiar os mais capacitados no
mundo em desenvolvimento (que alguns chamam de burguesia, ou de elite, do Terceiro
Mundo). Os únicos, talvez, a perderem com esse processo impessoal seriam os trabalhadores
pouco qualificados dos países desenvolvidos e uma difusa classe média que sente que lhe estão
sendo retirados os benefícios do “velho” welfare State. São exatamente estes grupos que
compõem o grosso da massa mobilizada pelos movimentos da antiglobalização: “velhos”
sindicalistas e jovens de classe média, todos eles bem alimentados e já inseridos na
globalização. Alguma surpresa nisto?
Todas essas evidências são válidas no plano global, mas elas não resolvem, obviamente,
a situação de países ou indivíduos ameaçados pela perda de competitividade e de emprego
trazida pelo processo de globalização. O Brasil, reconhecidamente um país “classe média” em
termos de renda mundial, se vê ameaçado, como tantos outros, pelo imenso “dumping social”
provocado pelo exército industrial de reserva da China, tendo de aumentar constantemente o
conteúdo tecnológico de seus produtos ou a produtividade de seus processos produtivos para
fazer frente a essa ameaça crescente vinda do Oriente.
Fugir da globalização, ou seja, da abertura aos intercâmbios globais, não constitui
resposta apropriada a esse tipo de ameaça, pois isso só nos conduziria à defasagem tecnológica
e ao atraso econômico absoluto: os empregos preservados hoje seriam perdidos amanhã, com a

73
baixa da competitividade geral da economia e a pressão interna sobre os custos. Dura realidade,
mas a ela só se pode responder fazendo esforços pela melhoria geral da qualidade da nossa força
de trabalho. Como regra geral, a exposição à globalização é que é geradora de avanços
tecnológicos e de progresso social, não o insulamento e a política do avestruz. De resto, são as
classes médias já globalizadas que, por inércia, acomodação ou medo, tendem a recusar a
intensificação desse processo, ao passo que os pobres, pouco globalizados, tendem a votar com
os próprios pés, emigrando celeremente para os centros da globalização contemporânea.
Miragem para alguns, pesadelo para outros, este parece ser o destino da globalização capitalista.
Pode-se protestar contra ela, frear-lhe o curso impessoal é que parece difícil.

74
10. Mitos sobre o sistema monetário internacional

Os órfãos de Keynes em busca de um Bretton Woods mítico


A atual crise econômica internacional – que emergiu da crise financeira americana de
2007-2008 e que rapidamente se espalhou pelo mundo, atingindo países ricos e alguns
emergentes –, tem suscitado um curioso renascimento de idéias e propostas de corte
keynesiano, algumas mais originais do que outras. Os verdadeiros cultores do mestre de
Cambridge, num estilo não muito diferente de uma seita de adoradores de fetiches do passado,
não hesitam inclusive em recorrer às propostas por ele formuladas em Bretton Woods, em
1944; como se essas propostas tivessem o poder mágico de encerrar as atuais turbulências,
acabar com a recessão e contribuir para a retomada de um crescimento sustentável, sem os
sobressaltos típicos das economias de mercado (que alguns interpretam como sendo uma
fatalidade dos sistemas capitalistas, no que eles, aliás, não estão totalmente errados).
Entre os que mais professam esse tipo de liturgia econômica estão membros da
apropriadamente chamada Associação Keynesiana Brasileira (AKB), que, legitimamente ou
não, acreditam que a crise atual “tem gerado um consenso acerca da necessidade de se
reestruturar o sistema monetário internacional (SMI), condição imprescindível para que a
economia volte a experimentar períodos de estabilidade e de crescimento dos níveis de
produto e emprego”.16
Os autores apontam recentes sugestões de “substituição do dólar como moeda de
conversibilidade internacional por uma moeda universal, soberana e independente dos bancos
centrais nacionais”, assim como o aumento das linhas de crédito emergenciais do Fundo
Monetário Internacional (FMI), a reforma das instituições financeiras internacionais e o
estabelecimento de novas regras relativas ao sistema financeiro – como restrições a paraísos
fiscais e a movimentos de capitais – para sugerir, por sua vez, o resgate das idéias de Keynes
e a reforma completa do sistema monetário internacional. “As propostas acima”, escrevem
eles, “nos remetem à proposta de Keynes apresentada na conferência de Bretton Woods, em
1944, qual seja, a criação de uma autoridade monetária internacional, International Clearing
Union (ICU), emissora de uma moeda de reserva internacional (bancor) não passível de

16
Cf. Fernando Ferrari Filho e Luiz Fernando de Paula, “A reestruturação do sistema monetário
internacional”, jornal Valor Econômico, 22 de junho de 2009, p. A-12; disponível:
http://www.valoronline.com.br/ValorImpresso/MateriaImpresso.aspx?dtMateria=22/6/2009%200:00:0
0&codMateria=5630361&codCategoria=96.

75
entesouramento e especulação por parte dos agentes econômicos e com o objetivo específico
de lastrear as relações comerciais e financeiras do SMI” (idem, loc. cit.).
Como eu não acredito que haja qualquer consenso em torno dessas propostas, e como
também acredito que as idéias de Keynes são totalmente inadequadas para tratar das
realidades econômicas e financeiras do mundo contemporâneo, proponho-me a, neste novo
ensaio da série “Falácias Acadêmicas”, examinar as sugestões que vêm sendo feitas para
reformar ou aperfeiçoar o SMI – se é que existe algo do gênero – e dar-lhes um tratamento
analítico (e crítico) bem mais realista do que o que vem sendo efetuado em diferentes artigos
de acadêmicos publicados em torno dessas questões no período recente.

A ilusão da liquidez perfeita, do equilíbrio contínuo e da moeda estável


Os principais mitos dos keynesianos sonhadores referem-se à tripla possibilidade de
uma paridade estável entre as moedas, de manutenção de um nível de liquidez adequado ao
bom funcionamento das economias nacionais – isto é, um que realizasse o equilíbrio perfeito
entre as decisões de investimento e de aplicações puramente financeiras – e da existência de
um mecanismo capaz de assegurar o equilíbrio automático entre credores e devedores
internacionais, de maneira a minimizar crises de balanço de pagamentos e, portanto, a
necessidade de intervenção emergencial de algum emprestador de última instância. Não digo
que esses objetivos não possam ser buscados em seu mérito próprio, ainda que sua
manutenção ao longo do tempo, dadas as dinâmicas das economias de mercado, seja uma
perfeita ilusão. Mas considero que essas propostas – que os keynesianos ingênuos da
atualidade consideram como sendo idéias sensíveis do economista de Cambridge – não foram
formulados como se fossem sugestões desinteressadas para o perfeito equilíbrio da economia
mundial e de seu sistema financeiro, como se Keynes fosse um genial benfeitor da
humanidade, e não o defensor do império britânico que ele foi. De fato, todas as propostas
feitas pela delegação britânica em Bretton Woods – aliás, bem antes disso, desde a Carta do
Atlântico e os acordos de lend-lease – não estavam em nada desvinculadas da situação da
Grã-Bretanha daquela conjuntura e de seus interesses específicos em mecanismos salvadores
de uma situação de pré-bancarrota previsível. Talvez uma leitura do terceiro volume da
biografia de Keynes por Lord Skidelsky pudesse esclarecer aos keynesianos atuais sobre as
circunstâncias da época e sobre os dilemas e preocupações de Keynes em Bretton Woods. 17

17
Ver Robert Skidelsky, John Maynard Keynes, vol. 3: Fighting for Freedom, 1937-1946 (New York:
Viking, 2000). Uma consulta ao estudo clássico sobre as negociações bilaterais em Bretton Woods
também ajudaria: ver Richard N. Gardner, Sterling-Dollar Diplomacy in Current Perspective: The

76
Como reconhecem os keynesianos da AKB, “a idéia central de Keynes, com sua ICU,
era tornar a liquidez internacional mais elástica para expandir a demanda efetiva mundial.
Para tanto, o bancor, em conjunto com as sistemáticas de taxas de câmbio administradas e de
cerceamento da capacidade desestabilizadora dos fluxos de capitais de curto prazo, sinalizaria
a convenção estabilizadora das expectativas dos agentes econômicos, fundamental para, ao
reduzir o grau de incerteza acerca do comportamento futuro dos preços dos ativos e/ou
contratos, induzir as suas tomadas de decisão de gastos, sejam de consumo, sejam de
investimento, expandindo, por conseguinte, a atividade econômica e o nível de emprego em
nível mundial” (op. cit.). Não cabe dúvidas: toda vez que encontrarmos alguém pedindo
expansão da liquidez, crescimento do emprego, controle do câmbio e dos fluxos de capitais,
independentemente da situação fiscal do país em questão, ou dos efeitos de toda essa política
expansionista sobre as taxas de inflação, podem ter certeza: estamos em face de um
keynesiano puro, um produtor do moto contínuo do crescimento virtuoso.
Na verdade, os esquemas propostos em Bretton Woods por Keynes, de um lado, e por
Harry White, de outro, não eram muito diferentes em suas vertentes cambial e financeira.
Como escrevem os atuais representantes da espécie, “[p]ara que essa moeda [o bancor]
pudesse dinamizar as operações econômicas entre os países, a estabilidade do SMI, segundo
Keynes, deveria ser assegurada pela adoção de regras cambiais fixas, porém ajustáveis, e pela
implementação de controle dos fluxos de capitais de curto prazo, essencialmente
especulativos.” Ora, o que resultou de Bretton Woods não foi algo muito diferente disso: a
paridade cambial, legalmente colocada sob a jurisdição do FMI, foi declarada estável, embora
ajustável. Os movimentos de capitais, por sua vez, foram mantidos à margem de seu mandato,
submetidos, portanto, às jurisdições nacionais. Como se sabe, o regime de paridades estáveis
foi rompido diversas vezes pela ação unilateral de vários membros importantes do FMI ao
longo de sua primeira fase – inclusive pela Grã-Bretanha e pela França, em proporções muita
vezes superiores ao que seria autorizado sem consulta ao board da instituição – e de maneira
decisiva, em 1971, pelo seu membro garantidor por excelência, os Estados Unidos. Como se
sabe também, o FMI jamais ganhou mandato para administrar – ou melhor, liberalizar – os
movimentos de capitais, embora tentativas frustradas tenham sido feitas em meados dos anos
1990.

origins and the prospects of our international economic order (New York: Columbia University Press,
1980).

77
Na parte monetária, contudo, o bancor imaginado por Keynes nunca viria a existir,
sendo substituído pelo padrão ouro-dólar, tendo como única garantia a palavra – bem, as
supostas reservas ‘fabulosas’ em ouro – dos Estados Unidos. Seria pedir muito aos EUA, país
incapaz de delegar qualquer poder real a qualquer organização internacional que seja, que este
renunciasse à sua capacidade soberana de utilizar sua própria moeda nas transações externas.
Em termos práticos, o papel de ‘emprestador de última instância’ desempenhado pelos EUA –
através do FMI – durante grande parte da existência do regime de Bretton Woods era
condicional à capacidade americana de sustentar os seus próprios desequilíbrios fiscais e de
balança de transações correntes, algo dependente de políticas econômicas nacionais que nunca
seriam delegadas a uma autoridade mundial (e nem o Plano Keynes previa isto).

À procura de uma ‘tia rica’ para cobrir o seu déficit de pagamentos


E quanto à ‘idéia central’ de Keynes, sua International Clearing Union (ICU), que
deveria realizar o ajuste automático das balanças dos credores e devedores, ou entre
superavitários e deficitários? Os keynesianos da AKB não explicitam, mas é sabido que
Keynes pretendia estabelecer um mecanismo de compensações imediatas entre os
exportadores crônicos e os importadores contumazes – como a sua velha Grã-Bretanha – de
maneira a que a carga do ajuste caísse automaticamente sobre os primeiros, como num
sistema de vasos comunicantes em que os excedentários tivessem a obrigação de colocar os
seus saldos à disposição dos temporariamente insolventes. Ora, longe de ser uma generosa
idéia com propósitos universais, capaz de “tornar a liquidez internacional mais elástica para
expandir a demanda efetiva mundial”, como escrevem os nossos keynesianos, tratava-se de
um expediente de puro desespero contábil, pelo qual a Grã-Bretanha estava procurando um
financiador compulsório para os seus previsíveis déficits de transações correntes do pós-
guerra.
Em linguagem coloquial, seria como se um adolescente farrista tivesse, à sua
disposição, uma tia rica e generosa, capaz de sempre cobrir o seu cartão de crédito, depois de
muito abusar no consumo. Os EUA, como se sabe, recusaram-se a posar de tia rica e
desempenharam, ao contrário, o papel de um cobrador severo, que impõe um regime de pão e
água aos devedores inadimplentes. Este é todo o sentido das condicionalidades estritas do
FMI em sua fase ortodoxa clássica: estabelecer um regime de emagrecimento e de ajuste
monitorado, para que o adolescente mal comportado não pense em recorrer muito
frequentemente aos cofres do FMI.

78
Na verdade, os EUA foram, sim, uma tia generosa quando isso se revelou necessário:
durante a penúria de dólares do imediato pós-guerra e da ameaça de ‘sovietização’ de países
europeus. O Plano Marshall – que não deve ser considerado um programa de
desenvolvimento, e sim de reconstrução e de reorganização de economias de mercado –
representou um aporte de aproximadamente 450 bilhões de dólares (atualizados) para os
diversos países que se beneficiaram de seus esquemas de dons e financiamentos. Aliás, nem o
FMI, atualmente, consegue ser, ainda, aquela tia severa que impunha programas de ajuste aos
recalcitrantes: ele hoje está quase heterodoxo, emprestando grandes somas sem quaisquer
condicionalidades e disposto a perdoar os pecadilhos keynesianos de quase todos os seus
membros, ricos e pobres.
Não é provável hoje, nem nunca o foi aos tempos de Bretton Woods, que uma
entidade como a ICU venha a ser jamais estabelecida. Poucos países sérios estariam dispostos
a colocar seus excedentes de transações correntes à disposição de uma autoridade mundial,
com problemas enormes de gestão coordenada das políticas comerciais e cambiais e de
administração conjunta dessas reservas. Pouquíssimos, então, desejariam “uma moeda
universal, soberana e independente das decisões dos bancos centrais nacionais”, como
escrevem os keynesianos da AKB, no aparente seguimento do presidente do banco chinês,
que teria sugerido a substituição do dólar por uma nova moeda conversível
internacionalmente. Tratava-se apenas de um balão de ensaio exclusivamente político, para
que os americanos fosse mais responsáveis na gestão de sua economia (o que interessa
sobremodo aos dirigentes chineses).
Nossos keynesianos não se dão conta de que os chineses estavam apenas fazendo um
pouco de ‘terrorismo monetário’ contra os EUA, e que eles não pretendem, pelo menos por
enquanto, sabotar o papel internacional do dólar. Os chineses foram veementes, na reunião
dos Bric de Ekaterimburgo (junho de 2009) ao recusar qualquer discussão sobre uma nova
moeda de reserva internacional, ao mesmo tempo em que eles continuavam a acumular
reservas em dólar e a sustentar as emissões do Tesouro americano. Ironicamente, a China
parece atualmente ter se convertido nessa tia rica que financia as loucuras consumistas do seu
sobrinho irresponsável dos EUA, sem o qual, aliás, ela não conseguiria manter ativa sua
gigantesca oficina de manufaturados. A Inglaterra de Lord Keynes não tinha, em Bretton
Woods, nenhuma importância econômica para os EUA, que na verdade queriam desmantelar
as preferências imperiais estabelecidas na conferência de Ottawa (1932), que privavam as
exportações americanas de novos mercados.

79
OK: na ausência de uma nova moeda internacional, usemos as moedas locais
O que dizer, então, dessa proposta aparentemente ‘genial’ de substituir o dólar por
uma nova moeda de reserva internacional – que os nossos keynesianos pretendem que seria
uma espécie de sucedâneo do bancor milagroso do velho tio economista de Cambridge – ou,
na sua ausência, da utilização das moedas locais para efetuar os pagamentos comerciais e as
compensações financeiras? Se a idéia de uma moeda universal – que supõe, ipso facto, a
existência de um banco central mundial, algo impensável no horizonte histórico previsível –
já parece, por si mesma, estapafúrdia, a proposta de escapar ao multilateralismo financeiro em
direção a um sistema de compensações bilaterais entre moedas inconversíveis não é apenas
aloprada; ela é anacrônica e propriamente reacionária, pois implicaria em voltar oitenta anos,
depois da penosa construção de um sistema multilateral de pagamentos que, por mais
imperfeito que seja – posto que baseado em grande parte numa moeda doente, o dólar – ainda
cumpre muito bem suas funções monetárias e financeiras.
Por razões que independem largamente dos arranjos efetuados em Bretton Woods, o
dólar converteu-se, desde a Segunda Guerra Mundial, no padrão de referência e no veículo
efetivo da maior parte das transações monetárias, financeiras, cambiais e, sobretudo,
comerciais no mundo. Sua parte nas reservas em divisas dos bancos centrais pode ter
diminuído significativamente nas últimas décadas – grosso modo, de 75% para algo próximo
a 60% das reservas totais, com um crescimento concomitante do euro. Mas ele ainda é
imbatível nas bolsas de mercadorias, nas transações de todo tipo entre empresas e indivíduos
de todo o mundo e no registro contábil que países e organismos internacionais mobilizam para
comparar contas nacionais e valores de diversos tipos. Pode-se pensar que seu papel em todos
esses fluxos venha a ser ainda diminuído, mas não é crível imaginar que países ‘não-
hegemônicos’ possam construir uma moeda substituta apenas por força da retórica política ou
da simples vontade econômica expressa em comunicados de cúpula.
A libra foi, durante um século e meio aproximadamente, a moeda universal por
excelência, na ausência de qualquer imposição unilateral e de qualquer arranjo institucional
em bases intergovernamentais, apenas como resultado do poderio econômico da Grã-Bretanha
– durante a vigência da primeira revolução industrial – e da garantia de conversão dada pelo
Bank of England sob o regime do padrão ouro. Na verdade, a libra nem precisava circular
fisicamente para garantir sua hegemonia absoluta nas transações comerciais e financeiras
mundiais: bastava que os capitães de navios trabalhassem com letras de câmbio denominadas
em libras no transporte de suas mercadorias, e que os pagamentos fossem compensados no

80
mercado financeiro londrino pelo ‘wireless’ da era vitoriana – o telégrafo, primeiro com fio,
depois sem – para que essa dominação universal se estabelecesse de forma indisputada.
Da mesma forma, o dólar não foi imposto ao mundo por alguma medida de força, ou
por algum tratado decidido unilateralmente pelos EUA. Trata-se apenas do simples
reconhecimento da sua importância econômica, da confiança que os agentes econômicos e os
próprios países têm na manutenção do dólar como instrumento confiável, de sua capacidade
em atender aos requisitos básicos de uma moeda. Não custa nada lembrar quais são eles: 1)
unidade de conta; 2) instrumento de troca; 3) reserva de valor. Até aqui o dólar deu conta
dessas funções, aparentemente sem muitas reclamações de seus usuários. Isso não impede,
obviamente, que outras moedas sejam usadas internacionalmente, como é o caso do euro nos
países membros da UE, e entre esta e uma multiplicidade de parceiros. O iene, a libra e
algumas outras moedas também são utilizadas para determinadas transações ou entre um
número seleto de países. Mas não parece provável que qualquer uma delas, e muito menos o
yuan, o rublo, a rúpia ou o real, atualmente inconversíveis, possam ocupar o espaço hoje
preenchido pelo dólar nas transações internacionais (e bilaterais).
Pois bem: o mundo demorou anos, décadas, para construir um sistema multilateral de
pagamentos e um regime de trocas que facilitasse as transações entre os países, com o mínimo
possível de restrições. Bretton Woods, aliás, foi feito para isso mesmo e, mesmo se a
estabilidade cambial saltou pelos ares, o compromisso com a liberalização multilateral dos
pagamentos correntes continua viva e atuante. Trata-se, aliás, de uma obrigação jurídica
relevante de todos os membros do FMI.
O multilateralismo monetário, por imperfeito que seja – posto que as autoridades
monetárias americanas podem decidir dar um calote no mundo, deixando de honrar seus
compromissos externos: os compradores de títulos do Tesouro, por exemplo –, ainda é o
melhor sistema possível na atualidade; ele permite, facilmente, que a mesma moeda seja
usada com diferentes parceiros em todas as transações que eles desejem, sem se amarrar a um
instrumento único, como ocorria ainda com o bilateralismo estrito dos anos 1930, baseado em
compensações diretas entre os países. À luz desta realidade, não parece compreensível que
países que procuram manter um sistema aberto de comércio, como parece ser o compromisso
dos Bric, planejem agora recuar do multilateralismo monetário – ou seja, da liberdade cambial
e financeira – para um bilateralismo míope, no qual eles só poderiam utilizar a moeda de um
parceiro com esse mesmo parceiro. Trata-se de uma restrição incompreensível.
Não se concebe um keynesiano razoável que seja capaz de recomendar um recuo dessa
magnitude nas relações comerciais e financeiras externas de qualquer país. A rigor, uma

81
medida extrema desse tipo só seria concebível se o dólar estivesse muito doente, ou seja,
deixando de preencher adequadamente qualquer uma das três funções referidas acima, o que,
hipoteticamente, não é impossível: bastaria que a inflação americana e o aumento do risco-
país – eventualmente provocados por excessos de emissão e de dívida externa – enfraquecesse
o dólar em grau suficiente para provocar a rejeição dessa moeda.
A despeito de que alguns governos americanos – inclusive de conservadores
republicanos – tenham sido irresponsáveis ao ponto de agravar o déficit orçamentário e os
desequilíbrios externos, não se imagina que os EUA continuem a trilhar um caminho
insustentável no plano fiscal e o da inadimplência anunciada na dívida pública. Mas como
moeda é, basicamente, uma questão de confiança, é provável que muito antes disso acontecer,
os países busquem, responsavelmente, diversificar suas reservas em divisas, o que seria do
toda maneira muito saudável.

Um outro Bretton Woods é possível?; não é proibido sonhar...


A despeito do que possam acreditar os true believers na palavra sagrada do mestre,
não é razoável pensar que o mundo do século 21 venha a conceber soluções para os
problemas monetários e financeiros da atualidade com base em expedientes rapidamente
concebidos numa situação de crise fenomenal e de conflitos militares como aquela existente
ao tempo de Bretton Woods; se tratava de um mundo no qual ainda se acreditava num retorno
ao padrão ouro, na possibilidade de estabilidade cambial sob um regime universal e no
controle estrito dos movimentos de capitais.
Os que pensam assim querem fazer girar para trás a roda da História. O que diz a
AKB?: “A ironia do mundo globalizado e alicerçado no ‘fundamentalismo’ da lógica
autorreguladora dos mercados é que a solução para a crise financeira internacional passe, em
termos práticos, pela implementação, por parte das principais autoridades econômicas
mundiais, de políticas fiscais e monetárias contracíclicas keynesianas, e ainda por uma
proposição de reestruturação do SMI de algum modo similar à apresentada por Keynes
quando da conferência de Bretton Woods” (op. cit.). Para desespero dos keynesianos
brasileiros, não existem ‘autoridades econômicas mundiais’, apenas autoridades monetárias
nacionais que tentam, por vezes desesperadamente, coordenar suas políticas
macroeconômicas e setoriais. Desde a criação do G7, quatro décadas atrás, elas vêm tentando,
mas ainda não conseguiram: o que não foi obtido a sete, dificilmente o será a 20, ou mesmo a
13 ou 14 membros ‘influentes’ da comunidade financeira internacional. Que os mercados não
tenham capacidade de se autorregular é óbvio: eles não são instituições dotadas de comando

82
central. Em contrapartida, os keynesianos podem ter certeza de que eles sempre se corrigem a
si mesmos, por vezes da maneira mais brutal: são os governos que interferem em seu
funcionamento, distorcendo ou impedindo as correções naturais que seriam necessariamente
feitas em função dos desequilíbrios acumulados.
Resumindo, os keynesianos contemporâneos podem continuar o seu culto ao mestre de
maneira quase religiosa. Não é sensato, porém, que eles reinterpretem a história passada e se
ponham em marcha em busca de um Santo Graal keynesiano que nunca existiu em Bretton
Woods ou em qualquer outra instância negociadora do sistema monetário internacional. Um
pouco de realismo nunca é demais...
Brasília, 23 de junho de 2009

8. Os capitais voláteis são responsáveis pela desestabilização de nossas contas externas e


devem ser estritamente controlados.
Pura bobagem, que não resiste à menor análise empírica. A volatilidade está implícita
nas políticas econômicas dos países emergentes e medidas de controle teriam como resultado
fuga de capitais e ágio cambial.
Pense na seguinte situação: você acaba de casar, mas ainda mora em apartamento
alugado (melhor em todo caso do que na casa dos pais do cônjuge) porque a sua poupança não
lhe permite dar entrada no financiamento de um apartamento próprio, ainda que seu salário seja
suficiente para cobrir as prestações do possível imóvel. Falando com o seu gerente de banco,
ele lhe oferece a possibilidade de sair da poupança, que oferece total garantia mas um
rendimento muito modesto, para uma aplicação de maior risco, que lhe dará praticamente o
dobro da poupança em um ano e meio, o que permitirá, finalmente, a conclusão do sonhado
contrato da casa própria.
O que você acharia se, no meio da aplicação em títulos do Tesouro (esta a opção
oferecida pelo seu banqueiro), o governo resolve estender o prazo compulsoriamente e, não
reduzir a taxa fixada do rendimento mas, impor uma taxação adicional sobre os ganhos finais,
o que de toda forma reduzirá o retorno esperado? Triste, não é mesmo, mas estas são as
possibilidades derivadas de aplicações atrativas mas arriscadas, geralmente feitas em mercados
emergentes, de países que precisam financiar desequilíbrios fiscais ou de balanço de
pagamentos e que por isso se prontificam a pagar juros relativamente elevados aos que se
dispõem a emprestar-lhes dinheiro. Aquele contrato só poderá sair seis meses ou um ano adiante
e, de toda forma, você precisará continuar a comprimir as suas despesas – e portanto o seu atual

83
nível de bem-estar – pois os ganhos finais não serão tão altos quanto as previsões do seu
banqueiro.
Vai brigar com o banqueiro?: ele poderá dizer que foi o governo quem mudou as regras
e que, como tinha alertado, a aplicação envolvia certo risco, comparativamente à poupança. Por
isso, como ainda advertido pelo banqueiro, muitos aplicadores preferem ganhar menos e, para
minimizar o risco, fazem aplicações com prazos menores mas em volumes maiores,
movimentando intensamente os capitais entre diferentes produtos.
Resumindo: essa situação se chama volatilidade e o que você acaba de praticar se chama
especulação. Algo similar ocorre no plano internacional, onde trilhões de dólares circulam sem
cessar todos os dias, ou praticamente todos os minutos, de um lado a outro do planeta, mudando
constantemente os instrumentos de aplicação, de títulos de governo a papéis de companhias
privadas, de certificados sobre compras futuras de mercadorias a moedas estrangeiras, enfim,
em todas as modalidades possíveis de bens fungíveis e menos fungíveis (por vezes a aplicação
de curto prazo no mercado financeiro se converte em investimento direto em alguma atividade
produtiva). O capital financeiro é o ativo mais “volátil” que se conheça, uma vez que sua
liquidez é quase imediata e, dependendo do grau de liberdade das fronteiras nacionais, pode ser
transportado de um lado a outro praticamente sem restrições, geralmente sob forma eletrônica.
Não há novidade nesse cenário, a não ser o aumento dos volumes e a aceleração dos
movimentos desses capitais. Eles geralmente pertencem a fundos de investimentos ou
investidores institucionais, que “manipulam” recursos de terceiros, em muitos casos resultando
da concentração dos haveres individuais de milhares de pequenos investidores que não têm, na
maior parte das vezes, a mínima idéia de que suas poupanças foram parar no outro canto do
planeta, em alguma bolsa asiática ou título de algum governo da América Latina. O que os atrai,
obviamente, é a perspectiva de um lucro mais elevado do que a simples aplicação em títulos do
Tesouro americano, provavelmente o investimento mais seguro do planeta mas aquele que,
igualmente, paga os rendimentos mais baixos.
Se as aplicações nos chamados mercados emergentes se revelassem seguras, esses
capitais de investidores estrangeiros seriam obviamente bem menos “voláteis” do que a
experiência nos indica. Mas onde exatamente se situa essa volatilidade?: no caráter desses
capitais, exclusivamente, ou no ambiente econômico dos países emergentes? Por que um país
se vê levado a depender desses capitais voluntários a ponto de não poder prescindir dos influxos
e de não poder aplicar uma taxa desincentivadora da entrada? A resposta se situa evidentemente
no comportamento conjuntural das contas públicas desses governos e na situação de suas contas
externas, geralmente em desequilíbrio ou déficit crônico. E por que isso ocorre?: geralmente

84
porque o governo gasta mais do que arrecada, se vê obrigado a adotar medidas emergenciais ou
descobrir novas fontes de receitas para cobrir suas necessidades ou porque os indicadores de
produtividade e o nível do câmbio são insuficientes ou não refletem um determinado ponto de
equilíbrio da economia.
O que se pode concluir é que a volatilidade preexistia e continua em paralelo aos fluxos
de capitais estrangeiros, mas que ela é essencialmente interna, não importada ou introduzida ao
arrepio das autoridades econômicas. Estas possuem instrumentos, se assim desejarem, para
“esterilizar” uma parte do capital indesejado, geralmente pela via do imposto ou do depósito
não remunerado. Medidas contra a saída de capitais, por sua vez, se dirigem mais contra os
próprios residentes nacionais do que contra os estrangeiros, que em princípio disporiam do
direito de repatriamento, em face de restrições aplicadas à liberdade de circulação de
rendimentos obtidos no mercado interno.
O mais provável, contudo, é que medidas de controle ou de monitoramento dos fluxos
de capitais, internos e externos, aumentem o grau de volatilidade da economia, e portanto da
tendência aos movimentos ilegais, geralmente de residentes nacionais. Uma situação de
abertura, por sua vez, tende a constituir um mercado de capitais mais amplo, com taxas de juros
menores, com a possibilidade de mobilização acrescida, mesmo pelo governo, quando tal se
fizer necessário. As únicas justificativas para a manutenção de medidas (que se espera
temporárias) de controle são aquelas derivadas de desequilíbrios agudos de balanço de
pagamentos, geralmente associadas também à inconversibilidade da moeda nacional. Mas, estes
também são sinais da volatilidade implícita à economia, mais do que do caráter perverso dos
capitais estrangeiros.
Quanto às “receitas-milagre” para combater a volatilidade, como a famosa proposta
Tobin Tax – aliás recusada pelo economista que lhe deu o nome –, elas são incapazes, por si
só, de reduzir a volatilidade global da economia financeira mundial, servindo apenas e tão
somente para aumentar o custo dos capitais que tenham de ser mobilizados ou transferidos para
mercados emergentes como o do Brasil. Além de ser totalmente inócua para diminuir nossa
própria volatilidade, ela atuaria contra os nossos interesses imediatos, ao aumentar o preço das
emissões ou o dos aportes voluntários.

85
11. A dominação econômica de empresas multinacionais atua como obstáculo
para nossa independência tecnológica e se reflete em relações desiguais
na balança tecnológica
Totalmente errado. Os efeitos são exatamente no sentido contrário, mas o trabalho
principal tem de ser feito em casa.

As “empresas multinacionais” do primeiro capitalismo, isto é, antes mesmo da


Renascença, eram representadas pelos banqueiros italianos e seus agentes comerciais
espalhados pelas principais cidades europeias e portos das costas comerciais vinculadas entre
si pela rede incipiente de negócios do sistema mercantilista. Eles foram depois suplantados
pelos banqueiros germânicos e holandeses, que passaram a atuar em mares mais distantes ou
financiando as empresas comerciais e os entrepostos longínquos dos aventureiros ibéricos. O
monopólio holandês do comércio de alto mar foi logo depois desafiado e vencido pelos
capitalistas britânicos, fazendo de Londres o centro do primeiro sistema econômico
verdadeiramente mundial da história.
As “empresas multinacionais”, até então, eram empreendimentos mercantis e
financeiros, como as companhias de comércio, muitas delas dispondo de “monopólios estatais”
(com reservas de mercado legalmente atribuídas) ou mesmo de verdadeiros exércitos (como a
que conquistou o Nordeste do Brasil). Com a primeira revolução industrial, fundamentalmente
britânica até meados do século 19, surgem as primeiras grandes companhias devotadas ao setor
industrial: locomotivas, motores a vapor, máquinas têxteis, ou mesmo grandes empresas
manufatureiras para os bens correntes (tecidos e roupas, porcelanas, artigos da metalurgia,
processamento alimentar etc.). O sistema patentário se desenvolve contemporaneamente,
buscando precisamente preservar “segredos tecnológicos” que até então circulavam com os
mestres de fábrica ou eram apropriados sem maior respeito pela “propriedade intelectual”
representada pelo “gênio inventivo” de algum engenheiro isolado. O sistema financeiro também
se expandiu de modo inédito, junto com serviços de seguros e transportes, mas o setor foi
durante um certo tempo dominado por empresas inglesas de alcance mundial, na medida em
que o padrão ouro se confundia com a própria libra britânica.
O sistema fabril se expandiu enormemente desde então, colocando em segundo plano
as velhas companhias de comércio e navegação e dando origem aos famosos “trustes” do final
do século 19 e início do seguinte: tinham nascido as empresas multinacionais típicas do século

86
20, ou seja, empresas integradas, verticalizadas, voltadas para a fabricação completa de um
determinado produto ou máquina (como as máquinas de costura, por exemplo). O capitalismo
se concentra – no setor automobilístico essa tendência é evidente – e produz alguns dos gigantes
industriais, vários deles ainda presentes no cenário das “companhias gigantes” de nossa época.
O fato de que a maior parte dessas empresas multinacionais fosse, na verdade, a expressão
mundial de firmas da Europa e dos Estados Unidos não impediu que o Japão e, no devido tempo,
a Coréia passassem também a contar com o seu pequeno ou grande lote de “multinacionais”,
assim como países considerados em outras épocas como periféricos (Finlândia, por exemplo).
Como isso se deu? Obviamente pela cópia de tecnologias bem sucedidas – em alguns
casos, pirataria de patentes, para ser claro e direto –, pelo licenciamento de know-how e de
técnicas de fabricação e comercialização de produtos ou processos, mas basicamente pelo
investimento pesado em mecanismos e instituições próprios de inovação tecnológica, o que
geralmente começa pela disseminação democrática de sistemas educativos amplos e criativos,
mobilizadores de TODAS as energias nacionais. Esse é o caminho da constituição de
“multinacionais nacionais”, sem que haja, a rigor, nenhum obstáculo tecnológico ou político à
repetição de experiências bem sucedidas em outros lugares. O fato de que grandes empresas
estrangeiras desloquem a produção nacional em algum setor específico não é um impedimento
absoluto à capacitação tecnológica nesse setor, pois que a transferência de tecnologia sempre
se dá, de modo direto ou indireto, tanto mais rapidamente quanto o país receptor não criar
obstáculos “soberanistas” ao livre jogo das forças de mercado.
Não há, nem pode haver, imutabilidade no campo da tecnologia, como o provam as
novas multinacionais do século 21, empresas nascidas no bojo da terceira revolução industrial
que estão deixando para trás algumas gigantes manufatureiras da era elétrica ou química. Essas
novas multinacionais são, aliás, relativamente independentes dos antigos processos
manufatureiros e criam sua própria estrutura da oferta e da demanda, sem se preocupar com os
monopólios do passado. Monopólios temporários na área do software, por exemplo, serão por
sua vez erodidos pela própria lógica do sistema aberto da economia do conhecimento, algo que
está ao alcance da mão de países hoje relativamente “atrasados” como o Brasil ou Índia.
Quanto à desigualdade tecnológica e seus efeitos no balanço de pagamentos, não há
motivo para maiores preocupações a médio ou longo prazo. Um país importador líquido de
tecnologias, mesmo já desenvolvido, sempre terá uma balança desfavorável, em determinadas
conjunturas, pois que confrontando seu próprio estoque de conhecimentos, necessariamente
limitado, ao do resto da humanidade, infinitamente mais vasto. Num determinado momento,
ele passa a ser exportador de uma determinada modalidade de produto ou serviço, no qual

87
ostenta maiores vantagens comparativas – música, por exemplo, ou ainda jogadores de futebol
– e passa a auferir ganhos derivados dessa situação de excelência frente a todos os demais rivais.

88
12. Só podemos abrir nossa economia e liberalizar o comércio na base da
estrita barganha recíproca e com o oferecimento de concessões
equivalentes e substantivas
Trata-se de um dos maiores absurdos econômicos já ouvidos, só justificável
politicamente pelo dito “não se dá nada de graça, sem algo em troca”.

Como já poderá ter ficado claro pelos argumentos desenvolvidos anteriormente, não há
um cálculo simples, ou linear, das vantagens ou desvantagens das situações e processos de
abertura limitada ou ampliada da economia, pela simples razão de que os sistemas econômicos
– com exceção daqueles totalmente fechados – estão sempre se adaptando aos desafios
recorrentes colocados pela competição local, regional ou mundial. Isto é válido, obviamente,
para as economias capitalistas, nas quais a maior parte do PIB é formada na iniciativa privada
– ainda que a punção fiscal exercida pelo Estado se exerça, por vezes, sobre mais de um terço
do produto bruto – e nas quais os agentes econômicos dispõem de relativa liberdade para
deslocar unidades produtivas, capitais, know-how e outros bens intangíveis acima e além das
fronteiras políticas, podendo portanto compensar “desvantagens” introduzidas por razões não
racionais do ponto de vista micro pelas autoridades econômicas nacionais.
O argumento da abertura recíproca e das vantagens equivalentes só tem sentido no
mundo não-ricardiano das reservas de mercado e do mercantilismo estatal, onde se comprazem,
mesmo de maneira inconfessável, a maior parte dos políticos, obrigados a defender uma
determinada clientela eleitoral que por acaso se identifica a empregados e empregadores de uma
determinada indústria local. Existem, obviamente, aqueles que teimam em recusar a teoria das
vantagens comparativas, alegando, não sem uma certa razão aparente, que a maior parte dos
países não pratica de verdade o livre-comércio e que portanto uma teoria não implementável
em seus próprios termos não pode servir de base a políticas públicas e setoriais de abertura
indiscriminada de mercados. Trata-se de um problema tão velho quanto a própria teoria
econômica aqui exposta, cujos benefícios são disseminados por uma ampla gama de
consumidores “invisíveis” ao passo que seus custos são imediatamente determinados por um
certo número de desempregados muito “visíveis”. Não existe uma resposta fácil ou uma solução
rápida a esse tipo de problema, a não ser apontar as evidências históricas e o registro das
estatísticas econômicas de ganhos de bem-estar, que no entanto podem se exercer sobre um
período mais amplo do que o mandato de um eleito local ou nacional e numa circunscrição

89
geográfica que se estende além do “curral” de votos do tomador de decisões políticas em
questão.
O maior problema prático de se conseguir uma reciprocidade estrita ou “perfeita”, como
gostariam os “planejadores do futuro”, deriva do caráter extremamente mutável e também
maleável das conjunturas e estruturas econômicas em sociedades caracterizadas pela liberdade
de iniciativa e de decisão. Como indicou um economista inovador, as pessoas respondem a
incentivos, todo o resto é comentário (Steven E. Landsburg, The Armchair Economist:
Economics and Everyday Life; New York: The Free Press, 1993). O século 20 foi no entanto
caracterizado por um crescimento constante do espaço atribuído às responsabilidades estatais
em detrimento dos puros incentivos de mercado, a ponto de a liberalização do comércio
internacional ter caminhado pari-passu com o aumento do campo regulatório e das intervenções
tópicas na atividade econômica. Em nenhum outro terreno como a agricultura essa situação é
mais visível, onde a margem de incentivos não dirigidos diminui notavelmente em relação aos
diversos mecanismos de sustentação e de proteção.
Tanto as situações de fechamento como as de abertura econômica respondem a dois
diferentes tipos de “incentivo” feitos aos agentes econômicos como aos simples consumidores,
num caso de ganhos monopólicos e de restrição de oferta, no outro de competição
“desenfreada” e de ampliação das demandas, num quadro de relativa “instabilidade” das regras
operacionais. Não resta dúvida que a abertura oferece um maior número de oportunidades
individuais, como também os maiores incentivos para a inovação e para ganhos de
produtividade. Esses fenômenos se dão, contudo, num cenário de “anarquia” parcial do jogo
econômico, o que é positivo para o sistema como um todo mas traz instabilidade no plano dos
itinerários individuais dos agentes econômicos. Os políticos profissionais podem ser vistos
como os agentes “públicos” encarregados de reduzir o grau de instabilidade nas situações
pessoais de seus constituintes, atuando para reduzir as ameaças de desemprego, de diminuição
de renda e, ao contrário, para atrair empregos e novas oportunidades para sua região.
Do ativismo político em prol do preservação do “conhecido” derivam não apenas as
dificuldades dos processos de liberalização comercial como igualmente todas essas demandas
para “favores especiais” em apoio a tal ou qual atividade econômica, sob a forma de isenções
fiscais, empréstimos facilitados, oferta gratuita de utilidades públicas em infra-estrutura e
comunicações etc. Encontram-se aí os principais focos de oposição aos acordos de livre
comércio, que supostamente perturbam a tranqüilidade das situações estabelecidas, como
também os fatores de demanda por compensações estritas às vantagens oferecidas aos
competidores estrangeiros no acesso aos mercados locais.

90
Como resolver o problema da demanda por reciprocidade e por concessões ditas
equivalentes é um dilema que assusta economistas e “planejadores estatais” desde a
disseminação dos acordos de comércio no curso da segunda revolução industrial (quando os
instrumentos bilaterais tendiam a incorporar a cláusula de nação-mais-favorecida, ainda que de
forma condicional e limitada) e mesmo posteriormente, no âmbito do atual sistema multilateral
de sistema. No regime do GATT esse problema era encaminhado mediante as negociações
paralelas e simultâneas entre pares de parceiros negociando esquemas parciais de liberalização
dos produtos de seu interesse, cujos resultados eram depois consolidados e multilateralizados
para o conjuntos dos participantes do exercício negociador, isto é, as partes contratantes ao
GATT-1947. No quadro da atual OMC, o processo tende a seguir uma metodologia mais linear
e uniforme, mas apenas quanto à derrubada de barreiras tarifárias, uma vez que um conjunto de
outros campos veio agregar-se às meras discussões em torno de bens industriais da primeira
fase do GATT: se trata dos novos temas como serviços, propriedade intelectual e investimentos,
ademais de uma complexa teia de normas e regulamentos tratando de subsídios, salvaguardas,
barreiras técnicas ao comércio (fitossanitárias ou normas industriais, por exemplo) e o
espinhoso problema do antidumping, utilizado abusivamente por grande parte das economias
desenvolvidas.
O cálculo da “reciprocidade” complicou-se enormemente, portanto, pois não se trata
mais de negociar commodities agrícolas contra bens industriais, como era o caso
tradicionalmente, mas o acesso a mercados antes protegidos para produtos alimentares ou
industriais intensivos em trabalho contra a concessão de tratamento nacional em serviços
transfronteiriços nas áreas financeira, de seguros, de publicidade ou telecomunicações. Como
medir eventuais ganhos de bem-estar se os países avançados se comprometem com permitir um
acesso limitado aos seus mercados agrícolas, mas exigem em contrapartida a concessão de
tratamento nacional para telecomunicações ou serviços de saúde? Qual economista “profético”
poderá predizer as conseqüências futuras de uma liberalização simétrica – isto é, nas mesmas
bases de desgravação tarifária gradual – para indústrias eletro-eletrônicas de um lado e calçados
e roupas de outro? Que burocrata nacional pode prever com certeza que a concessão de uma
proteção extensa e reforçada aos direitos de propriedade intelectual interessando aos produtores
de obras audiovisuais e das indústrias químico-farmacêuticas dos países avançados – resultando
portanto no pagamento ampliado de royalties e serviços técnicos – será compensada com o
afluxo oportuno e enriquecedor de novos investimentos nas indústrias de alimentos e de bens
duráveis?

91
As estimativas sobre o comportamento futuro de todos esses setores em regime de
liberalização progressiva são portanto difíceis, senão impossíveis de serem feitas. Por outro
lado, uma pergunta se coloca de imediato: esse cálculo deve ser feito pelos próprios empresários
interessados em investir em tal ou qual setor de sua preferência ou deve ser deixado a algum
burocrata governamental? Por que considerações de balanço de pagamentos devem
necessariamente ser consideradas no planejamento microeconômico dos empreendedores
privados? A eficiência econômica está melhor entregue aos grupos de interesse setorial e aos
planejadores públicos ou deve ser deixada aos mecanismos alocativos dos mercados?
São dilemas que não encontram respostas fáceis ou simplistas, mas que freqüentam as
reuniões governamentais e os conselhos privados praticamente desde o nascimento do moderno
sistema capitalista. Na verdade, escolhas entre políticas econômicas alternativas e duros jogos
de barganhas setoriais entre os parceiros sociais são feitas todos os dias na vida de uma
sociedade, apenas que não se dá a devida atenção a eles porque se considera que isso faça parte
da “administração econômica normal”. Apenas nos poucos momentos de negociações
econômicas externas, quando concessões comerciais e outras têm de ser feitas, é que os
problemas da reciprocidade e da “igualdade de concessões” passam a ser avaliados com
redobrada atenção pela sociedade e pelos responsáveis governamentais.
Na medida em que nenhum político gostaria de ser acusado, pelos seus eleitores, de ter
feito concessões aos “adversários” – ou seja, os concorrentes estrangeiros – sem ter obtido “algo
em troca”, as negociações comerciais são levadas a se arrastar num estéril debate sobre abertura
recíproca que impõe um custo tão inútil quanto irrelevante ao processo de negociações e aos
próprios beneficiários dos supostos esquemas de liberalização. As medidas de derrubada de
barreiras (externas) e de uniformização de normas regulatórias (internas) não são pensadas em
seu mérito próprio, ou seja em sua capacidade de produzir um maior volume riqueza social a
partir de novos investimentos, do aumento da concorrência e da melhor eficiência alocativa,
mas apenas e tão somente em função do foi oferecido em contrapartida: “só lhe dou tal abertura
e acesso aos meus mercados se você me permitir tal atividade para minhas empresas em seu
território”.
Ainda que possa existir uma certa “lógica de senso comum” nessa postura de apenas
abrir seu próprio mercado contra algum tipo de abertura equivalente ou similar por parte do
“adversário”, ela não se justifica a nenhum título do ponto de vista do processo produtivo ou da
organização econômica da sociedade, sendo provavelmente causadora de mais distorções do
que de benfeitorias. A lógica da “reciprocidade estrita” faz parte do mesmo tipo de medidas de
intervenção econômica na sociedade que resultou, ao longo do século 20, na assunção pelos

92
governos de cada vez mais responsabilidades na administração da vida em sociedade e que, em
seu extremo, manifestou-se nas mais diversas modalidades de coletivismo econômico e de
planejamento estatal.
No que se refere especificamente às negociações comerciais, o conceito de
reciprocidade nos remete ao universo do mercantilismo, quando os soberanos regulavam o
comércio exterior com o objetivo de obter vantagens absolutas nas trocas externas, ou pelo
menos manter uma balança equilibrada na balança das transações. Naqueles tempos, o objetivo
maior dos conselheiros econômicos dos príncipes era o entesouramento de ouro, concebido
como o equivalente de riqueza e poder. Teríamos voltado a esses tempos de dirigismo explícito
da vida econômica?

93
13. Processos de liberalização entre parceiros muito desiguais beneficiam
principalmente os mais poderosos, por isso devemos primeiro corrigir
assimetrias estruturais
Não necessariamente, uma vez que todos os processos de interdependência – a fortiori
de integração – sempre se dão entre parceiros relativa ou absolutamente desiguais e os mais
exitosos são justamente aqueles que mobilizam países em estágios diversos de
desenvolvimento.

A geografia e a história distribuíram fronteiras, agrupações humanas, sistemas


econômicos e regimes políticos aleatoriamente pelos diversos continentes, não havendo um
padrão comum a dois países, mesmo vizinhos. Obviamente, traços civilizacionais e aspectos
culturais tendem a aproximar os vizinhos de uma mesma sub-região, mas ainda assim as
unidades nacionais diferem bastante em tamanho, recursos naturais, organização interna ou na
propensão à inovação e ao progresso econômico e social. O arco cristão deslocou-se ao longo
dos séculos, do Oriente Médio ao conjunto da Europa e daí para o Novo Mundo, ao passo que
o islâmico expandiu-se na África e na Ásia do Sul, o que não implicou necessariamente em
homogeneização dessas sociedades, dos seus estados ou de seus substratos materiais.
Em duas palavras: diferenças históricas e assimetrias estruturais entre as várias
formações nacionais são uma constante em qualquer época ou região, sendo as mais importantes
aquelas que decorrem do “volume” relativo de cada uma delas e das suas respectivas dotações
em termos de poder e riqueza. Algumas dessas dotações são “naturais”, outras “herdadas” ao
longo dos séculos, outras ainda criadas ou desenvolvidas em períodos históricos relativamente
curtos, como alguns exemplos podem demonstrar.
O glorioso Império Britânico representava, ao início do século 20, o maior conjunto
populacional, territorial e econômico da história da humanidade, mas ele não durou mais de um
século, se tanto. A “massa atômica” da jovem república americana, por sua vez, cresceu
continuamente ao longo do século 19, mas salvo alguns pequenos experimentos coloniais –
como no Caribe e nas Filipinas – seu imperialismo foi basicamente econômico e virtual. A
Rússia conforma um caso único de crescimento fragmentado: ela expandiu-se tremendamente
sob o czarismo, continuou a crescer sob a forma de União Soviética, mas implodiu sem
nenhuma glória numa miríade de novos estados independentes depois que o socialismo deu dois
suspiros e morreu de esclerose múltipla.

94
Mais próximo de nós, os sonhos bolivarianos de uma confederação de estados ordeiros
deram lugar a instáveis repúblicas caudilhescas, ao passo que a centralização bragantina do
Império do Brasil logrou preservar a unidade nacional do maior país sul-americano. Falando do
Brasil, justamente, ele tinha, em 1960, o dobro da renda per capita da Coréia do Sul, ao passo
que os coreanos ostentam hoje um renda média bem superior à dos brasileiros, aliás muito
melhor distribuída, sem mencionar a excelência do avanço tecnológico coreano.
Independentemente, porém, do tamanho, cor ou religião, o fato é que essas várias
formações nacionais passam a interagir entre si, de modo mais ou menos pacífico, até se
alcançar, eventualmente, uma eliminação das fronteiras físicas e a unificação dos espaços
econômicos nos fenômenos da integração e até mesmo da união. Invariavelmente, todos esses
experimentos se dão entre parceiros “desiguais”, ainda que, em vários casos, traços comuns de
desenvolvimento econômico e social sejam evidentes entre os parceiros. A Comunidade (hoje
União) Européia reuniu desde o começo a “enorme” França e o minúsculo Luxemburgo, assim
como ela colocou em confronto zonas relativamente ricas como a Holanda e Bélgica e outras
bastante pobres como o mezzogiorno italiano. Esses países não esperaram a eliminação das
“assimetrias estruturais” entre eles para dar a partida na integração, mas, ao contrário, elas
foram sendo corrigidas e eventualmente eliminadas no decorrer do próprio processo. Alguém
ouviu dizer que o sul da Itália foi “explorado” pela rica Alemanha, ou que Portugal e Espanha
tivessem exigido a mudança de regras da então Comunidade Européia para então decidirem
ingressar num bloco decididamente “assimétrico”?
Aqueles que agitam o perigo das assimetrias numa futura (e ainda hipotética) Alca
acenam precisamente com o princípio do tratamento “diferenciado e mais favorável” que
recebem os sócios menores ou relativamente menos desenvolvidos no esquema europeu de
integração, para exigir o mesmo tipo de “compensação” no âmbito americano. Não importa
aqui as demandas contraditórias pela preservação da “soberania nacional” nesse espaço de livre
comércio hemisférico em construção, quando um dos elementos característicos da experiência
européia é, precisamente, a renúncia quase total de soberania “em troca” desses mecanismos de
correção de desigualdades estruturais ou coetâneas ao processo de integração.
O que pretendem, na verdade, os defensores da “teoria” das desigualdades assimétricas
é “provar” que a existência de uma economia “elefantina” como a dos EUA faz correr, aos
demais países, um risco insuportável de fragilização (“sucateamento” e “depauperamento”) das
atuais estruturas econômicas nacionais na América Latina. Sem dúvida, a maior parte dessas
economias são pouco competitivas (com várias exceções, entre elas a do Brasil), o que
justificaria, segundo o argumento, que o mandato de Miami seja necessariamente

95
complementado por um programa (gigantesco?) de correção dessas desigualdades estruturais.
Simples, não é mesmo?
Sem considerar o importante aspecto político de que estamos falando de dois animais
completamente diferentes – um mercado comum completo de um lado, uma mera zona de livre
comércio, de outro – e a circunstância institucional de que tal tipo de tratamento compensatório
não se encontra previsto no mandato de Miami – a não ser para as chamadas “economias
menores” –, atente-se para o fato de que nenhum processo de integração, nem mesmo o europeu,
ocorreu na ausência de “desigualdades estruturais”. São elas, aliás, que justificam e dão todo
sentido à construção integracionista, ao mobilizar parceiros desigualmente dotados num mesmo
empreendimento de unificação (e também de crescente homogeneização) de mercados e
espaços econômicos.
São as desigualdades estruturais que estão na base das “vantagens comparativas” de
cada país – ainda que alguns tenham horror a tal expressão ricardiana – e que passam a estimular
a circulação de pessoas, capitais, bens, serviços e tecnologia num ciclo ascensional de
economias de escala e de ganhos de competitividade. Ainda que muitos não acreditem, mesmo
o país mais miserável do planeta também possui “vantagens comparativas”, ainda que neste
caso ligadas à miséria (sempre relativa) de grande parte de sua população e, portanto, ao custo
infinitamente menor de sua mão-de-obra fabril ou agrícola, comparativamente ao parceiro mais
desenvolvido. Todo e qualquer país, mesmo em áreas insuspeitas, possui um imenso manancial
de vantagens comparativas, sejam elas a densidade e a concentração de seu capital financeiro,
a potência de suas empresas, ou, mais geralmente, a inventividade de seu povo, que pode
manifestar-se na música, no futebol, na sua natureza bem explorada e até na sua joie de vivre,
como seria o caso do carnaval ou da própria “afetividade” e “cordialidade” da sociedade em
questão.
Resumindo – e retomando uma das lições do grande historiador economista russo
Alexander Gerschenkron –, o “atraso” tem suas vantagens, mais não fosse para explorar esse
diferencial de custos e também o potencial de superação do atraso saltando etapas no processo
de desenvolvimento. Aos que se apressam em condenar como “capitalistas” ou “burguesas”
estas idéias das vantagens do atraso, não custa lembrar que elas provêm diretamente do
pensamento marxista, ou mais especificamente trotsquista, sendo conhecidas como “teoria” do
desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo (e do socialismo também, pode-se
acrescentar).
Enfim, nada como uma “boa” desigualdade para estimular a emulação (cópia) e a
competição (nessa ordem), virtudes válidas tanto no plano individual como no nacional. As

96
situações de igualdade, absoluta ou relativa, tendem a ser aborrecidas, quando não a gerar
acomodações regressistas, como já demonstrado por setenta anos de transição do socialismo ao
capitalismo. Em todo caso, no longo prazo, o capitalismo dos processos de abertura e de
liberalização tende a produzir o socialismo do livre comércio. Que outra prova da excelência
da teoria marxista da sucessão dos modos de produção poderíamos pretender de melhor?

97
14. Devemos reforçar os laços com os grandes países em desenvolvimento
(China, Índia, Rússia) e com os da América do Sul, onde podemos
dispor de vantagens comparativas
Talvez, mas vejamos os custos e benefícios desse tipo de política de “aliança com os
pobres”.

O problema dos países médios, ou “emergentes”, é que eles dispõem de um estatuto


incerto no sistema mundial. Não constituem, obviamente, grandes potências, dotados de meios
militares ou econômicos suscetíveis de influenciarem decisivamente a agenda internacional,
mas tampouco são países irrelevantes ou desprovidos de meios para fazer pender, por vezes, a
balança das relações internacionais em determinadas direções. O Brasil certamente se insere,
com vários outros países, nessa categoria pouco precisa dos “países médios”, cuja classificação
pode ser dada a partir de vários atributos físicos e econômicos. Vejamos, em primeiro lugar,
características próprias a esses países, passemos em seguida às recomendações de política
externa tais como formuladas no cabeçalho e discutamos por fim as implicações dessas
orientações sugeridas.
Os países médios constituem geralmente grandes extensões territoriais, dotados de
importante população, com economias não totalmente desenvolvidas ou avançadas do ponto de
vista tecnológico, participando ativamente da vida diplomática internacional e podendo
desempenhar um papel relevante na definição de alguns dos problemas que freqüentam a
agenda mundial. Este é certamente o caso da Rússia e da China, mas esses países não são
normalmente identificados a países médios ou emergentes, uma vez que já são (ou já foram)
grandes potências, detêm armas nucleares e são membros permanentes do Conselho de
Segurança das Nações Unidas e podem, portanto, ainda que com um certo esforço, tentar
desafiar o monopólio estratégico da única superpotência remanescente no atual contexto
mundial pós-Guerra Fria.
Mas seria certamente o caso da Índia, da Indonésia, da Coréia do Sul, do México, da
África do Sul e talvez do Egito e do Irã, assim como do próprio Brasil, no mundo em
desenvolvimento, ademais do Canadá, da Espanha, da Itália e de alguns outros, no clube dos
países ricos. As definições são entretanto ambíguas, uma vez que a “assemblagem” dessas
potências “médias” num mesmo conjunto recobre realidades e potencialidades muito diversas.
Senão vejamos.

98
A Índia é o segundo país mais populoso do mundo, é dotada da arma nuclear e se
encontra envolta em cenário estratégico de tensões recorrentes e perigosas que conforma um
dos maiores focos de instabilidade internacional, junto com o Oriente Médio e algumas partes
da África (mas aqui já afastado esse continente dos interesses estratégicos que o marcaram
durante grande parte da Guerra Fria). A Indonésia constitui, por sua vez, um mundo à parte,
cujos focos de tensão são propriamente internos, ainda que ela tenha provocado ela mesma
situações de instabilidade no cenário regional (Timor Leste, por exemplo). A África do Sul já
foi uma emergente potência nuclear, mas decidiu renunciar a esse status ao iniciar-se o período
de transição para o fim do regime de apartheid. O Brasil já ostentou uma economia bem mais
pujante, em fases de crescimento sustentado ou de valorização cambial, chegando a superar
alguns membros do G-7, como seria o caso do Canadá, mas no início do século 21 chegou a ser
superado em termos de PIB pelo México, país que tem uma projeção meramente regional.
Por outro lado, determinadas potências econômicas, como a Alemanha, o Japão ou
mesmo o Canadá e a Itália, não ostentam um poderio militar à altura de sua presença no
comércio e nas finanças internacionais, ainda que elas possam ser ativas em missões de
manutenção de paz da ONU. Todos elas estão no G-7 e podem ser consideradas potências
médias apenas do ponto de vista de sua limitada capacidade a determinar um cenário
estratégico, da mesma forma como, por exemplo, a Rússia, a China ou mesmo a Índia (mas esta
se vê “dissuadida” pelo Paquistão, também nuclearizado). Em todo caso, o que identifica todas
essas potências médias é o fato de possuírem “alguma” capacidade de “moldar” cenários
regionais ou mesmo determinadas conjunturas internacionais, mas um poder limitado no que
se refere ao recurso “último” à arma nuclear no caso de uma confrontação estratégica. Nesse
particular, talvez apenas EUA, Rússia e China sejam relevantes, todos os demais sendo atores
de segunda ou terceira linha.
O Brasil aparece como claramente situado num escalão modesto das potências médias,
daí o freqüente apelo – ou recomendação – de muitos de seus dirigentes políticos (e conselheiros
diplomáticos) a algum tipo de “relacionamento especial” com outros países médios, na
suposição de que essa interação aumentará nosso poder de tentar influenciar, modificar ou
moldar em nosso favor determinadas vertentes da agenda internacional (no caso do Brasil,
claramente no sentido de se impulsionar um projeto de desenvolvimento econômico e
tecnológico, concebido como a base de maior projeção política e militar internacional). O
pressuposto é o de que o relacionamento com as grandes potências comporta situações
assimétricas que não são facilmente superáveis, o que confirma nossa situação de desigualdade
ou mesmo de dependência nos terrenos financeiro, tecnológico ou militar. De fato, não se

99
afigura como factível qualquer diálogo de igual para igual com os EUA, assim como não são
isentos de percepções assimétricas as relações com a Franca e a Grã-Bretanha, os outros dois
membros ocidentais – e plenamente capitalistas, como o Brasil – do CSNU.
Mas, também no caso da Rússia e da China, os outros dois parceiros apontados como
estratégicos nessa recomendação de “alianças privilegiadas”, o fato nuclear e o pertencimento
ao CSNU coloca alguns constrangimentos para um diálogo aberto a considerações de natureza
estratégica ou militar. Essas duas potências não plenamente desenvolvidas encontram-se por
sua vez envoltas em situações potencialmente conflituosas que têm pouco a ver com os
interesses do Brasil no sistema onusiano ou mesmo no plano do diálogo político ou cultural (em
matéria de direitos humanos ou de cooperação direta entre instituições governamentais,
científicas e culturais). Existe, por certo, um espaço e potencial para o desenvolvimento de áreas
de cooperação de caráter semi-estratégico – como no caso do programa sino-brasileiro para a
construção e lançamento de satélites – ou mesmo para a expansão do comércio e de outras
trocas econômicas, mas as diferenças de sistemas sócio-econômicos, culturais e sobretudo de
caráter estratégico são fatores limitantes na ampliação da interface.
Considere-se, por exemplo, que não é da China, da Rússia e muito menos da Índia que
virão os capitais, o know-how e os investimentos de ponta que permitirão ao Brasil avançar
ainda mais na escala de sua industrialização ou no da sustentação de sua relativa fragilidade
financeira (presumivelmente perdurável no futuro próximo). Esses países tampouco poderão
conformar, com o Brasil, uma agenda comum para a reforma das instituições multilaterais
políticas e econômicas – seja o funcionamento do CSNU, seja o do FMI ou do Banco Mundial
– que atenda os interesses supostamente comuns (mas de fato diferenciados) de todos eles.
Resta a intensificação dos laços comerciais e econômicos de todo tipo com esses países
mencionados, sem descartar a cooperação tecnológica e científica, mas reconheça-se, desde
logo, a limitada capacidade transformadora desses vínculos no quadro de um sistema
econômico já relativamente complexo como o do Brasil, inserido, por sua vez, numa rede de
ligações de toda sorte com empresas e instituições dos principais países capitalistas avançados.
No campo dos valores, por outro lado – direitos humanos, democracia, tratamento de minorias,
identificação cultural – não é preciso ressaltar a intensidade, a diversidade e a fluidez naturais,
inclusive por razões humanas dotadas de fortes raízes históricas, dos laços afetivos e materiais
que nos unem a esses países.
Deixando o plano longínquo das “estepes asiáticas” pode-se apontar, no lugar de um
investimento relativamente custoso nas duas potências nucleares não-ocidentais, a forte indução
à intensificação dos laços de cooperação e de integração, inclusive política e social, com os

100
países vizinhos da América do Sul, ou mesmo, por razões talvez mais sentimentais do que
lógicas, com os latino-americanos em geral, como se a América Latina fosse uma realidade
“manipulável”, no plano operacional, para qualquer tipo de diplomacia concreta por parte do
Brasil (descontando aqui a retórica política dos grupos regionais nos foros multilaterais, muito
pouco “rentável” em si mesma). Ainda que essa vertente tenha sua razão de ser, sobretudo do
ponto de vista da projeção econômica brasileira no plano regional, deve-se atentar, uma vez
mais, para os custos e limites desse tipo de investimento regional e integracionista.
A integração não pode ser considerada como um fim em si mesmo, uma vez que ela não
se destina a corrigir nenhum grande obstáculo de natureza estratégico, militar ou econômico
que se interponha no bom desenvolvimento das relações de todo tipo entre os países da América
do Sul. Existem limitações do ponto de vista da infra-estrutura ou derivadas do caráter
“excêntrico” da maior parte de nossas economias, resultado de alguns séculos de história
colonial e da dominação subseqüente de nossas relações econômicas externas por um ou outra
das grandes potências capitalistas avançadas. O não desenvolvimento de nossas sociedades e
economias, por outro lado, não se explica pela ausência de integração, e sim pela ausência de
estruturas internas de geração endógena de tecnologia, que por sua vez é determinada pelas
insuficiências de caráter educacional e no plano das instituições públicas. Um pouco mais de
integração pode ampliar as vantagens de escala de determinados ramos econômicos, sobretudo
industriais, mas não permite, por si só, um upgrade notável na intensidade tecnológica ou uma
reforma das estruturas educacionais e de administração pública em cada um dos países.
Assim como no caso das potências nucleares não-ocidentais, não será do Paraguai, do
Uruguai ou mesmo da Argentina, do Chile e do México, que virão os capitais, tecnologia e
outros recursos tangíveis e intangíveis que permitirão acelerar o ritmo de desenvolvimento
econômico e social do Brasil. No máximo esses países nos proverão de oportunidades
adicionais para empresas brasileiras competitivas que possam não estar em condições de
enfrentar a concorrência no plano mais amplo da economia internacional, mas que podem sim
deslocar congêneres da própria região. Trata-se contudo de uma relação que pode não ser
julgada ideal por esses países, que estariam supostamente em busca de ganhos não recíprocos,
o que lhes pode ser assegurada por uma grande economia “imperial” mas não necessariamente
por uma potência “média” como o Brasil. É o que se observa, precisamente, no caso das
negociações da Alca, nas quais até o Brasil está procurando uma abertura comercial não
recíproca por parte dos EUA e confessa temer o poder de fogo das grandes empresas americanas
em áreas como serviços e compras governamentais.

101
A grande potência hemisférica, de seu lado, teme a “vantagem comparativa” dos baixos
salários latino-americanos em todos os ramos dotados de forte componente laboral ou em
recursos naturais, dados os baixos custos desses fatores nos países do Sul. Para o Brasil,
paradoxalmente, a melhor relação custo-benefício estaria numa relação de intensificação
“administrada” dos laços econômicos e tecnológicos com a potência do Norte, mais até do que
com os seus parceiros regionais, mas os riscos percebidos são considerados muito altos numa
avaliação essencialmente política – isto é, envolvendo cálculos de “soberania” – feita pela maior
parte de suas lideranças políticas. Como se vê, não existe situação ideal, fora do crescimento
sustentado e da plena autonomia tecnológica, o que significa, tão simplesmente, uma situação
de desenvolvimento real.

102
15. O que é uma utopia e como o marxismo se encaixa no molde?

Utopia, no sentido original do criador da expressão, representava uma crítica indireta


(ou alegórica) da situação existente, pela descrição imaginária de um lugar diferente – situado
em lugar nenhum, como corresponde ao sentido do vocábulo, mas que era, presumivelmente,
uma ilha do Novo Mundo, não muito bem localizada geograficamente. Em seu sentido mais
amplo, a obra pode ser lida como a expressão de um desejo consciente de que a realidade
corrente, feita de misérias e injustiças, pudesse ser transformada pela ação de homens
racionais, aproximando-se, assim, de um cenário mais conforme aos desejos da maioria. De
fato, a maior parte das leituras feitas a partir do texto original – durante os séculos de
exegeses e interpretações que se seguiram – sustenta que a obra é um argumento em favor da
reforma social e em defesa da propriedade privada, embora também existam aqueles que a
consideram um manifesto pregando uma sociedade autoritária, dominada por um Estado todo-
poderoso, na qual não mais existiria a propriedade privada, considerada por um dos
personagens da ‘história’ como a fonte de todo o mal social. 18
Thomas More (ou Morus, na versão latina), o autor da ‘fábula’ – terminada em 1516 e
publicada em latim, em 1518, para atingir um público mais vasto –, estava, obviamente,
criticando a Inglaterra do seu tempo, e propondo uma organização política e social na qual a
justiça, a verdade e a equidade pudessem prevalecer, sem o temor da violência arbitrária dos
soberanos, a corrupção dos juízes ou a perversão dos líderes espirituais. Não terminou sua
vida na cama, como é sabido, mas deixou uma lição de moral que se converteu em símbolo
literário universal da busca pelo bem comum através da organização racional de uma
sociedade ideal. Aliás, considerado um mártir da causa católica – ou melhor, da Igreja oficial
–, Thomas More foi beatificado pelo Vaticano em 1886 e canonizado pelo Papa Pio XI em
1935.
Nos séculos seguintes, o sentido original da expressão foi perdendo seu significado de
crítica a uma situação perversa e de exposição de um estado ideal, atingível pela ação racional
dos homens, para converter-se em seu contrário, isto é, a de uma exposição idealista de

18
Ver, por exemplo, a crítica de Alexander Marriott, “A Slave State: Society in Sir Thomas More's
Utopia”, Capitalism Magazine (12 Janeiro 2004; <http://www.capmag.com/article.asp?ID=3380>;
acesso em abril 2009). Para outros ensaios e estudos sobre esta obra de Thomas More, recomendo este
site de estudos renascentistas, que, aliás, traz o famoso quadro de More por Hans Holbein, o jovem,
pertencente à coleção Frick, de Nova York: <http://www.luminarium.org/renlit/tmore.htm>.

103
objetivos inatingíveis, misto de ingenuidade e de ilusionismo, promessa vazia de uma
organização impossível de concretizar-se, posto que fundamentada em objetivos e metas
irrealistas, próximos do fantástico ou da pura ficção filosófica. Foi com esta interpretação
negativa que Marx e Engels designaram, em meados do século 19, todas as propostas
anteriores de realização de uma sociedade socialista, colocando em seu lugar o que eles
pretenderam classificar como a única modalidade factível de socialismo, o “científico”, que
seria o deles mesmos. Socialismo “utópico” tornou-se, assim, sinônimo de ingenuidade,
idealismo e ilusão, devendo ser necessariamente descartado em benefício de uma versão auto-
justificada de organização socialista, apresentada como suscetível de romper séculos de
miséria e sofrimento, encerrando, portanto, uma etapa da história para dar início a uma outra,
alegadamente mais avançada ou mais conforme um mundo supostamente ideal.
É desde já curioso constatar que a proposta marxista de um socialismo “científico” se
aproxima bastante, pelas suas motivações e propósitos idealistas, de uma ‘utopia’ terrena,
pertencendo, portanto, ao mesmo gênero das propostas (ou ‘fantasias’) criticadas. Em defesa
de sua posição, Marx e Engels argumentavam que não estavam partindo de propostas
totalmente imaginárias ou de reformas da organização social existente, artificialmente
construídas pela ação idealista de homens de boa vontade – como as de More, de Tomaso
Campanella, de Charles Fourier, de Robert Owen ou de Pierre-Joseph Proudhon – mas, sim,
formulando as bases da sociedade futura a partir de uma crítica radical da situação existente,
com base, portanto, em suas próprias premissas capitalistas. A partir da constatação – óbvia,
para eles, de que o capitalismo encerra em si mesmo uma contradição fundamental, qual seja,
a da natureza social da produção e sua apropriação privada – eles estavam simplesmente
tirando as consequências lógicas do desenvolvimento necessário das contradições em curso na
sociedade para prefigurar a futura organização social.
O caráter “científico” do socialismo marxista foi exposto em diferentes ocasiões, mas
sua evolução natural a partir do capitalismo realmente existente é bastante conhecida a partir
da descrição sintética feita na Introdução à Crítica da Economia Política: a partir de uma
certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade entram em choque com
as relações de produção existentes – capitalistas, obviamente – e essas contradições acabam
provocando uma ruptura entre a superestrutura da sociedade, já correspondendo ao caráter
social das relações de produção, e a sua base, ainda dominada pela apropriação privada dos
meios de produção. Uma era revolucionária então se abre e a nova sociedade emerge da velha
para realizar a reconciliação entre forças produtivas e relações de produção, sem os grilhões

104
da propriedade privada e da opressão política das classes dominantes sobre a maioria da
população (necessariamente formada por trabalhadores assalariados).
Independentemente, porém, da correção (ou não) dessas considerações sociológicas
sobre os processos de mudança social, o fato é que o marxismo, enquanto doutrina política, se
aproxima basicamente da essência do modo de organização social existente na ilha utópica de
Thomas More, qual seja, um modo de vida comunal, com base numa economia totalmente
‘desmonetizada’, o que, ao fim e ao cabo, representa o objetivo último do comunismo, etapa
superior do socialismo marxiano. Nesse sentido, o marxismo se encaixa inteiramente no
mesmo molde messiânico das utopias que ele pretendia criticar, em primeiro lugar no modelo
original exposto na fábula de More (mas que este, no íntimo, rejeitava, pelas mesmas razões
pelas quais se opôs ao autoritarismo de Henrique VIII).

105
16. O mito do colonialismo como causador de subdesenvolvimento

1. Introdução: uma inversão parcial na metodologia das falácias


Antes mesmo de expor a falácia, e os “argumentos” que a apoiam, peço licença a meus
(poucos) leitores para inverter meus procedimentos habituais e explicitar aqui, desde já,
minha refutação: não, o colonialismo não produziu subdesenvolvimento. Ao contrário, ele
promoveu o desenvolvimento dos povos submetidos a esse “fenômeno”, facilitou sua
modernização socioeconômica e acelerou a inserção internacional dos países e regiões outrora
incorporados à economia mundial através do processo de dominação colonialista.
(Um alerta preventivo, rápido, mas necessário: não, este texto não pretende oferecer
um elogio do colonialismo, não acredita que ele tenha sido um “fenômeno” positivo na
história da humanidade, não pretende desculpar os colonialistas por todos os malfeitos e
sofrimentos incorridos pelos povos colonizados e não quer, tampouco, apresentar uma visão
rósea dos processos reais; ele apenas pretende fazer uma leitura histórica realista, talvez
“revisionista”, desse fenômeno tão equivocadamente avaliado na literatura corrente,
estabelecendo um balanço que acredito mais conforme ao que efetivamente se passou, e
tentando efetuar uma avaliação tão honesta quanto possível sobre o papel efetivo do
colonialismo no destino ulterior dos povos e nações submetidos pelos impérios mais
conhecidos.)
Desculpo-me desde logo pela inversão metodológica desta peça numa série dedicada
às falácias acadêmicas mais comuns – cuja lista e remissão às demais se encontra neste link:
http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/FalaciasSerie.html – mas é que as evidências a favor
desta postura (apenas levemente “revisionista”) são tão evidentes, se arrisco a redundância,
que me parece quase uma inutilidade ter de desmentir, de modo explícito, um dos mitos mais
arraigados do pensamento acadêmico, de maneira geral, e anticolonialista em particular. O
mito que pretendo desmontar, aparentemente “progressista”, é amplamente disseminado na
comunidade universitária, com forte ênfase, obviamente, no chamado Terceiro Mundo (cuja
morte acaba de ser “decretada” pelo presidente do Banco Mundial, mas que já era desprovido
de qualquer significado prático há muito tempo, talvez desde sempre).
Muito bem: voltemos agora ao perfil usual desta série, expondo inicialmente, e de boa
fé, os argumentos falaciosos que pretendemos desmantelar na sequência, como também é o
hábito desta série, aliás, sua raison d’être. Não vou remeter a um autor especial ou me referir

106
a uma citação específica, já que são muitos os que professam a crença nas características
absolutamente perversas do colonialismo, como sendo ele o responsável pelo
subdesenvolvimento atual de tantos países ditos periféricos ou dependentes. Segundo a
concepção geral dos defensores da falácia, o colonialismo possui todos os vícios – geralmente
associados ao capitalismo, não é preciso dizer – e nenhuma “virtude”, se por este conceito
entendemos uma contribuição benéfica aos próprios povos colonizados: ele estaria no centro
da condição atual das nações pobres.
Ainda inicialmente, como todas as normas editoriais das revistas acadêmicas exigem
bibliografia e “marco teórico” – sim, também tenho uma falácia sobre essa típica perversidade
acadêmica – vou me contentar com algumas poucas referências.
Começando pelas abordagens de amplo espectro histórico, recomendo, a todos aqueles
que pretendem adquirir algum conhecimento sobre a história econômica mundial e o
desenvolvimento comparado dos povos e civilizações, a leitura das seguintes obras de síntese
geral: Jared Diamond, Armas, Germes e Aço (diversas edições em inglês; também disponível,
mas mais caro, em português); David Landes: A Riqueza e a Pobreza das Nações (idem);
Rondo Cameron, A Concise Economic History of the World (várias edições; ao que eu saiba,
jamais traduzido e publicado no Brasil, mas disponível em espanhol); Alan Beattie, False
Economy: A Surprising Economic History of the World (idem). Informações editoriais ao
final.
Saindo do genérico para o particular, permito-me remeter agora a alguns autores que
se ocuparam dos impérios mais conhecidos e também do colonialismo, embora com
finalidades diversas. Um dos historiadores britânicos mais prolíficos da atualidade é Niall
Ferguson, que tem dois livros especialmente indicados para quem pretende ter uma visão mais
equilibrada sobre os mais maiores impérios da era contemporânea: Empire, sobre o de sua
pátria de origem, e Colossus, sobre sua terra de adoção (na Columbia University). Posso citar
também o economista indiano Deepak Lal, já autor de um excelente livro sobre a “pobreza da
economia do desenvolvimento” – criticando certos economistas desenvolvimentistas por
inconsistências elementares no raciocínio econômico – e que comparece com um provocativo
In Praise of Empires (2004).
Indispensável, também, citar o decano ou patrono de todos eles, o húngaro
naturalizado britânico Peter Bauer, um dos raros economistas que conheceu por dentro o
funcionamento do sistema colonial no momento da descolonização, e que recomendou
vivamente que não se iniciasse um programa de ajuda oficial ao desenvolvimento nos moldes
assistencialistas que se desenhavam; mas que, ao contrário, se procurasse integrar as futuras

107
nações independentes na economia internacional pela via do comércio e da especialização
produtiva. Bauer é o autor de livros desmistificadores sobre o colonialismo e a economia do
desenvolvimento (não daquela desmantelada por Lal; a séria, que, aliás, em nada se distingue
da economia “normal”); cito apenas três: antes mesmo de iniciado o processo de
descolonização ele publicava um livro com recomendações específicas sobre a integração das
colônias no sistema econômico mundial, Economic Analysis and Policy in Underdeveloped
Countries (1957); uma síntese de suas críticas ao planejamento centralizado como resposta
aos problemas dos países em desenvolvimento pode ser encontrado em Dissent on
Development (1971); finalmente, em Equality, the Third World, and Economic Delusion
(1981), ele repassa todos os erros cometidos pela ajuda externa como solução milagre à
pobreza e à desigualdade nesses países.
Indo agora para a bibliografia falaciosa, creio que um autor em especial, muito
utilizado no Brasil, poderia sintetizar toda uma comunidade de pretensos acadêmicos
anticolonialistas, valendo a designação para todos aqueles que partilham um conjunto básico
de premissas (equivocadas, por certo) que pretendem que o colonialismo atrasou o
desenvolvimento dos países vítimas da conquista e dominação, criando o que alguns autores –
entre eles Celso Furtado – chamam de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. O
representante típico, em nível de vulgarização – no bom sentido da palavra – dessa tendência,
é o uruguaio Eduardo Galeano, jornalista demagogo que passa por historiador e antropólogo,
seguido de perto por esse monumento do anti-imperialismo acadêmico que se chama Noam
Chomsky. Os dois são, como não poderia deixar de ser, caricaturais e seria constrangedor,
num ensaio com pretensões acadêmicas como este, sequer pretender citá-los expressamente;
eu o faço de maneira genérica, por duas razões muito simples: conheço as obras de ambos e
também sei que elas são, inacreditavelmente, recomendadas, adotadas, seguidas
religiosamente por legiões de professores universitários, por esse continente afora; os dois,
aliás, se beneficiam de copyrights ultracapitalistas graças aos anticapitalistas...
Existem, é claro, versões elegantes e refinadas, e também intelectualmente mais
consistentes, dessa “teoria do colonialismo subdesenvolvedor”; elas estão representadas por
nomes como André Gunder Frank, Immanuel Wallerstein (na vertente do capitalismo
enquanto sistema-mundo), além de outros, mais vinculados ao “capitalismo periférico”, como
Raul Prebisch, Celso Furtado e (bem abaixo, no plano intelectual) Theotonio dos Santos, sem
esquecer o “marxismo neoliberal” (avant la lettre) da tão dispensável quanto inútil “teoria da
dependência” de Fernando Henrique Cardoso, que não é bem uma teoria e muito menos da
dependência. Com a possível exceção deste último autor, todos os demais se encontram na

108
“teoria do colonialismo” como produtor de subdesenvolvimento estrutural e irremediável.
Vejamos agora a teoria mais de perto.

2. O cerne da teoria do colonialismo: o que dizem os proponentes do mito?


O que têm a dizer todos esses “pensadores” e acadêmicos? Serei obrigado a sintetizar
uma vasta literatura compulsada ao longo de anos; os leitores não têm a obrigação de acreditar
em mim, por isso podem ir a algumas das fontes citadas. Mas existem também muitos autores
estrangeiros com os quais “trabalhei” durante muito tempo. Essencialmente, as teses tendem a
afirmar as “realidades” seguintes.
O mundo, tal como o conhecemos desde o início da era moderna (e mesmo antes), é
feito de muitas sociedades, todas desiguais nos níveis de desenvolvimento socioeconômico,
diferenciadas em sua relação com os recursos naturais e dotações adquiridas, diversas em
disponibilidade de insumos e energia e, sobretudo, em meios técnicos de apropriação desses
recursos e sua transformação produtiva, eventualmente em mercadorias capazes de competir
internacionalmente. Isso é elementar e não tem tanto a ver com o fenômeno do colonialismo;
mas forma a base a partir da qual certas sociedades vão conseguir dominar sobre outras,
menos dotadas tecnologicamente.
Esse mundo, acreditam os partidários da “teoria”, é dividido em “centro” e “periferia”
– na verdade, qualquer coisa, a partir de uma mesa redonda, por exemplo, pode ser dividida
em centro e periferia – sendo que as economias mais avançadas se colocam no centro de um
sistema de dominação, de exploração e de extração de recursos das economias “periféricas”,
submetendo e subordinando essas economias e sociedades menos avançadas
tecnologicamente e que, por isso mesmo, são militarmente mais débeis. Historicamente, esse
fenômeno assumiu as formas do imperialismo e do colonialismo, dois processos diferentes na
forma e na motivação, mas que muito frequentemente estiveram associados nos mesmos
movimentos e ambos concorreram para conformar o mundo tal como o conhecemos hoje
(aliás, nos últimos cinco séculos): um núcleo reduzido de impérios coloniais e de potências
imperiais, marcado quase exclusivamente pela dominação europeia sobre milhões de pessoas,
centenas de povos dispersos nas periferias colonizadas, praticamente todos os países que hoje
constituem o que passou a ser conhecido como Terceiro Mundo.
A parte crucial da “teoria do colonialismo” segue estas linhas: esses povos,
estruturados segundo princípios econômicos não capitalistas – eventualmente pré-capitalistas,
ou pertencentes a outros “modos de produção, “insuficientemente” capitalistas – tiveram o seu
desenvolvimento autônomo interrompido e bloqueado pela invasão – frequentemente brutal e

109
com imensos sacrifícios humanos – e ulterior dominação das potências capitalistas da época
(portuguesa, espanhola, francesa, holandesa, inglesa ou britânica, episodicamente belga ou
alemã, etc.), situação que impediu e cerceou completamente suas possibilidades de
desenvolvimento e de transformação soberana. O regime colonial instalado de maneira mais
ou menos completa segundo as experiências históricas concretas – indo da sujeição mais
brutal, nos exemplos ibéricos, até o indirect rule de algumas modalidades britânicas – não
apenas desestruturou integralmente as sociedades assim submetidas, como deformou de modo
indelével os sistemas econômicos e seus circuitos produtivos, constituindo, em quase todos
eles, sistemas de plantação ou de extração primária inteiramente voltados para os mercados
externos, situação que persistiu até a atualidade.
Essa extroversão das sociedades colonizadas marcou profundamente sua incorporação
à modernização capitalista, determinando uma situação de dependência estrutural que as
converteu em simples abastecedoras das economias centrais e inteiramente subordinadas a
elas, no que respeita mercados, circuitos mercantis e fluxos de capitais (financiamentos ou
investimentos). A transferência de capitais – principalmente sob as formas de investimentos
diretos e empréstimos soberanos – aprofundou os laços de dependência e amarrou, de maneira
profunda, as economias periféricas às centrais, criando fluxos de transferência negativa de
renda – pelo “intercâmbio desigual”, remessas de lucros, pagamentos de royalties, serviço da
dívida, etc. – que aprofundaram a drenagem de recursos reais dessas sociedades, agora
“neocolonizadas”, em benefício das potências imperiais.
Existem, obviamente, variantes históricas específicas nessa descrição genérica do
fenômeno colonizador, ou colonialista, assim como há análises mais sofisticadas desse
processo, colocando em evidência os laços de dependência recíproca, ou de interação
mutuamente benéfica entre as economias avançadas e as ditas “subdesenvolvidas”. Mas o
essencial da teoria pode ser assim resumido: o colonialismo foi nefasto e prejudicial, em todas
as circunstâncias, para as sociedades dominadas; ele atrasou, retrocedeu, inviabilizou seu
desenvolvimento econômico autônomo, condenou-as a uma situação, ou mesmo condição, de
dependência estrutural, e preservou os laços de subordinação assimétrica mesmo depois de
adquirida a independência ou obtida a conquista gradual da autonomia política (que não
mudou muito a situação efetiva no terreno econômico). Em última instância, o colonialismo é
responsável pelo subdesenvolvimento de tantos povos do Terceiro Mundo e pela sua situação
marginal na economia mundial contemporânea.
Esta é a apresentação do que eu considero ser uma completa falácia, mas que passa
por verdade histórica em vários manuais de história utilizados nas academias.

110
3. Restabelecendo a balança e corrigindo os equívocos históricos
Os mitos em torno do colonialismo como obstrutor do desenvolvimento e, de fato,
como “produtor” de subdesenvolvimento são tão amplamente aceitos e tão disseminados na
academia – como resultado de anos de orientação politicamente correta, ou seja,
“progressista” e anti-imperialista, dos estudos nessa área – que resulta ser tarefa pouco prática
desmantelá-los em texto tão curto quanto este. Comecemos, contudo, por observar que vários
países muito pobres da atualidade nunca foram colonizados, no sentido explícito da
experiência, pelo menos não por potências imperialistas e capitalistas como vulgarmente se
crê. O Tibete e o Nepal, por exemplo, jamais conheceram a “exploração capitalista”, da
mesma forma como o Afeganistão, que sempre combateu pelas armas quaisquer “invasores
imperialistas”.
Por outro lado, países muito ricos, hoje, começaram como colônias, como os Estados
Unidos e a Austrália, para nada dizer de Hong Kong, uma colônia inglesa que agora é uma
colônia... chinesa (e uma das “cidades-Estado”, junto com Cingapura, mais avançadas e ricas
que se pode conceber). Outros países se desenvolveram tremendamente, sem jamais terem
explorado qualquer colônia, como os escandinavos, ou a Suíça. Um outro país foi criado
exatamente para ser uma nação independente desde a origem, a Libéria, que não é exatamente
um modelo de desenvolvimento (e não por culpa dos americanos, que a criaram e proveram
ajuda em diversas formas). Quanto a Cuba, por exemplo, que foi “colônia informal”
americana durante sessenta anos, conservou, nos últimos 50 anos a mais completa
independência do império, tendo conhecido um processo de subdesenvolvimento raramente
visto na América Latina: do segundo posto na classificação dos indicadores sociais, caiu para
vigésimo ou algo assim; por outro lado, se a exploração imperialista fosse sinônimo de
subdesenvolvimento, não se compreende porque os dirigentes cubanos reclamam tanto do
embargo americano: deveria ser um fator de progresso e de crescimento autônomo, não o
contrário. Não vamos tratar aqui da completa falta de autonomia econômica efetiva de Cuba:
depois de escapar por meios próprios da “dependência” do império americano, ela se
submeteu, voluntariamente, à tutela da finada União Soviética, pesadamente subsidiada que
foi, durante largos anos, em troca de favores militares e de inteligência na América Latina e
na África; atualmente, se não fosse pelos generosos subsídios do caudilho venezuelano, a ilha
do socialismo autocrático provavelmente já teria sucumbido à crise terminal de todos os
socialismos.
Mas comecemos do... começo. Parece totalmente anacrônico, e bastante inconsistente,

111
no plano analítico e conceitual, atribuir efeitos exclusivamente perversos à experiência
histórica do colonialismo europeu dos últimos cinco séculos, quando se sabe que o fenômeno
colonialista é tão velho quanto... a Bíblia, ou melhor, quanto os tempos bíblicos. Colonizados
foram os judeus, os egípcios, os acádios e praticamente todos os povos da antiguidade
clássica, sem excluir os imperialistas persas, mais tarde derrotados pelos mongóis e
devidamente colonizados (como os próprios chineses Han, por sinal, pelos mesmos mongóis
e, depois, pelos Manchus). Os hindus, civilização tão milenar quanto a dos chineses, sofreram
várias ondas de colonização, tendo a dos invasores Mogóis (islâmicos) precedido a conquista
pelos britânicos da Companhia das Índias Orientais, que depois entregaram todo o país ao
soberano de seu reino de origem. Os chineses, por sua vez, submeteram e mantiveram sob a
tutela do Império do Meio vários povos das cercanias, entre eles os tibetanos, os vietnamitas e
os coreanos, sendo os japoneses considerados um povo semibárbaro que deveria lhes prestar
subordinação política e pagar tributos; os próprios chineses foram humilhados, alguns séculos
mais tarde, pelos mesmos europeus “atrasados” que eram repudiados até a metade do império
Qing (1640-1911), assim como foram terrivelmente atacados pelos japoneses militaristas, que
perpetraram as piores barbaridades durante boa parte do caótico período da república
“capitalista” (1911-1949). Não se poderia explicar o sucesso, desde o início do século 20, de
uma cidade internacionalizada como Xangai se não fosse pelas invasões sucessivas às guerras
do ópio (1839-1842) e a implantação de inúmeras colônias estrangeiras na cidade; atualmente,
se trata, certamente, da cidade mais internacionalizada e mais avançada da China ainda
formalmente comunista (mas economicamente capitalista), 19 retomando seu antigo papel de
centro financeiro.
Resumindo, não existe nada de especificamente ocidental no fenômeno do
colonialismo, sistema amplamente praticado na própria América pré-colombiana, inclusive
com requintes de crueldade, como no caso dos astecas, ou num sistema próximo ao da
escravidão, como praticado pelos incas. Guerras para captura de escravos, conquista de
mulheres, aumento de territórios, saque de riquezas, conversão forçada e barbaridades
diversas são práticas tão disseminadas quanto a existência de filósofos pregando a harmonia
universal e a solidariedade entre os homens. Tribos árabes e povos muçulmanos, por exemplo,
imperialistas por excelência e por vocação (já que praticando a conversão forçada como a
Igreja católica em seu tempo), sempre trataram os povos submetidos como inferiores

19
Ver o ensaio imediatamente anterior desta série: “Falácias acadêmicas, 13: o mito do socialismo de
mercado na China”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 101, outubro 2009, p. 41-50; link:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/8295/4691).

112
socialmente, sujeitos ao pagamento de tributos e à denegação dos direitos mais elementares,
práticas muito diferentes dos romanos “imperialistas”, que acolhiam como cidadãos bárbaros
submetidos, tendo alguns deles chegado a ocupar postos de generais e mesmo de imperadores.
Os gregos, que mantiveram oficialmente colônias no Mediterrâneo – como os fenícios, por
sinal – foram por sua vez conquistados pelos macedônios e “escravizados” pelos romanos, a
quem eles ensinaram as boas maneiras e a boa ciência que eles detinham, e nas quais se
conservaram superiores mesmo em regime de completa submissão.
Resulta, pois, totalmente equivocado e anacrônico isolar os colonialismos ibéricos e os
europeus, de modo geral, como se eles representassem algo de historicamente inédito ou de
mais destruidor de culturas alheias do que os poucos exemplos aqui citados, dentre centenas
de outros que se sucederam desde a revolução agrícola da pré-história. Os europeus
conquistaram, sim, quase todos os povos nos continentes ao sul da Eurásia, assim como em
várias outras regiões que por acaso representassem quaisquer oportunidades de ganhos
comerciais ou de extração de riquezas; mas assim também o fizeram, absolutamente, todos os
demais povos que estavam em condições militares e tecnológicas de submeter outras nações
porventura oferecendo tais possibilidades de “ganhos”. O colonialismo é um fenômeno trans-
histórico, diacrônico e praticamente universal. Os “europeus” foram, aliás, “colonizados”
pelos bárbaros das estepes centrais, antes de se constituírem como sociedades nacionais e de
passarem eles mesmos à ação. O nome escravo, por sinal, vem de eslavos, os povos da Europa
oriental que durante muito tempo forneceram “mão-de-obra” para os impérios estabelecidos
na Eurásia.

4. A Cesar o que é de Cesar: o Haiti precocemente independente, e atrasado...


Toda a ideologia anticolonialista tem a ver, no entanto, com o destino e a trajetória
atual dos povos do Terceiro Mundo, cuja pobreza, desigualdade e outras iniquidades sociais
são todas debitadas na conta do colonialismo europeu dos últimos cinco séculos. Nada de
mais equivocado e até impossível de ser sustentado, a partir de um exame mais adequado da
evolução desses povos desde o início dos processos colonizadores e, sobretudo, depois que
ele deixou formalmente de existir (sim, sei que vários “analistas” progressistas atribuem a
persistência daqueles mesmos traços ao “neocolonialismo”, mas os argumentos são também
tão tênues quanto inconsistentes).
Um exemplo recente – o do terremoto no Haiti e a mobilização internacional em torno
dos sofrimentos desse povo já tão sofrido – pode ilustrar não apenas os equívocos da “teoria
do colonialismo” como a absoluta má fé de muitos acadêmicos partidários dessa “doutrina”.

113
Inúmeros artigos de opinião não deixaram de assinalar a pobreza absoluta do país mais pobre
da América Latina, assinalando como “causa” a situação “neoloconial” do Haiti, que teria
sido “vítima” da Guerra Fria, ao ter tido, durante longos anos, um ditador protegido pelo
Império apenas por ter se colocado do lado “certo” na fase de confrontação global entre os
dois sistemas. O simplismo foi tão cansativamente repetido nos meios de comunicação do
Brasil, que vale uma pequena reconstituição histórica, para restabelecer a verdade dos fatos.
Em 1789, o Haiti, conhecido então como Saint-Domingue, era um dos lugares mais
ricos do mundo, e dos mais desiguais: uma minoria de plantadores franceses e seus auxiliares
mulatos comandavam algumas centenas de milhares de escravos negros, produzindo 60% do
café mundial e 40% do açúcar importado pela França e pela Inglaterra. O valor da produção
unitária por trabalhador era superior à dos Estados Unidos de então (a análise é de Engerman
e Sokoloff; ver bibliografia). A revolução dos escravos negros de 1791-1804 massacrou ou
expulsou os senhores brancos, mas os mulatos e seus descendentes ocuparam o lugar deles. A
história do Haiti, desde então, foi uma sucessão de lutas, golpes, revoluções e quarteladas
entre os dois grupos: os mulatos dominaram a maior parte do tempo, criando escolas para
mulatos, mas nenhuma para negros. Desde a segunda metade do século 19 navios armados
americanos visitavam regularmente o Haiti para “proteger cidadãos e propriedades de
americanos na ilha”; eles o fizeram várias vezes de 1857 a 1892 e todos os anos a partir de
1902, com exceção de 1910; cansados das visitas anuais, os americanos ocuparam o Haiti de
1915 a 1934, ano no qual os haitianos, agastados, por sua vez, com a ocupação “colonial”,
expulsaram-nos (Heinl, 1996). Um presidente negro, François Duvalier, depois conhecido
como Papa Doc, ganhou as eleições em 1957, contra as lideranças mulatas tradicionais, e
manteve-se no poder, com ou sem apoio americano, até 1971, sendo substituído à sua morte
pelo filho, Baby Doc, até 1986. O Haiti já estava totalmente pronto para entrar no triste e
conhecido roteiro dos “Estados falidos”, a despeito de décadas de assistência pública
internacional, doações dos órgãos financeiros internacionais e assistência humanitária de
ONGs: ele deve continuar a viver de esmolas externas pelo futuro previsível, sem que suas
elites (que presumivelmente devem existir) se comovam com o fato (devem, aliás,
aproveitar...).
Durante todo o período de alternância negra ou mulata no comando do país, a
economia foi sendo inviabilizada não pela exploração capitalista – que tinha deixado algumas
estruturas de produção vinculadas à economia mundial – mas pelo completo isolamento do
Haiti das correntes de comércio e de investimento, por decisões e escolhas devidas
unicamente a suas elites dirigentes; a má educação do povo fez a sua parte, no sentido da

114
degradação ambiental quase completa, ao ponto de praticamente inviabilizar qualquer
atividade agrícola ou de produção mercantil, que ainda chegaram a representar fontes de
riqueza quando a nação esteve mais intensamente vinculada aos Estados Unidos (como no
caso de Cuba, aliás, que retrocedeu do ponto de vista econômico, ao se desvincular do
império). Atribuir ao “colonialismo” capitalista, portanto, o atraso de sociedades do Terceiro
Mundo não representa apenas uma deformação da história real, como uma mistificação
completa no caso do Haiti, a primeira colônia independente na América Latina e a mais
consistentemente “subdesenvolvida” pela ação de suas próprias elites e dirigentes políticos.

5. Perguntas curtas, respostas breves sobre a “modernização colonialista”


A questão da responsabilidade do colonialismo na situação de pobreza contemporânea
de nações da atualidade é certamente complexa, pois estamos em face de povos diversos, de
civilizações antigas, de sociedades sofisticadas, de tribos pré-históricas, enfim, de todo tipo de
situação e de condições de “exploração”, contextos enfrentados pelos europeus de modos
bastante variados, com sucessos diferenciados segundo os casos. Poderíamos tentar resumir o
problema em algumas perguntas-síntese, como as que formulo abaixo. As dimensões
necessariamente breves deste ensaio não permitem responder em detalhe cada uma das
questões, para o que remeto os interessados aos livros já citados como referência de apoio ao
aprofundamento do problema. Mas tentarei oferecer respostas curtas a cada uma delas,
apontando contra-exemplos de como a literatura anti-colonialista tradicional peca por vieses
inadmissíveis, num trabalho de investigação histórica e sociológica bem conduzido, e de
como certa “economia do desenvolvimento” deforma e retarda ainda mais as possibilidades
de recuperação do “tempo perdido” – catch-up, ou rattrapage – dos povos do chamado
Terceiro Mundo. Vamos às questões.

(1) Estavam os povos submetidos em evolução para etapas superiores de organização social,
política e econômica, quando foram brutalmente “interrompidos” pelos europeus?
Não exatamente, embora alguns deles pudessem, efetivamente, efetuar uma lenta
evolução em direção de tecnologias superiores nos terrenos produtivo ou militar, como
argumenta Jared Diamond; mas essa trajetória poderia levar décadas, e mais provavelmente
séculos. Todos os povos submetidos, com a exceção dos chineses e, parcialmente, dos
indianos (um conglomerado de povos diversos), encontravam-se em etapas inferiores de
desenvolvimento material, sem dispor de Estados organizados ou sequer de história escrita.
Pode-se deplorar a invasão e a submissão, mas vários desses povos – como astecas e incas,

115
por exemplo – já tinha praticado “imperialismo” e “colonização” sobre povos anteriores em
suas regiões de atuação. A China já tinha estagnado econômica e tecnologicamente algum
tempo antes de ser humilhada pelos ocidentais, que antes vinham humildemente pedir para
fazer comércio com o Império do Meio, tendo sido arrogantemente rechaçados em diversas
oportunidades. David Landes sintetiza bastante bem a inépcia de certos imperadores chineses
que escolheram isolar o país das “influências externas” e com isso o condenaram ao atraso e à
fraqueza. A China, aliás, foi bem mais humilhada, e esquartejada, pelo Japão militarista, uma
“antiga dependência” do Império do Meio, do que pelos ocidentais.

(2) Teriam eles alcançado patamares similares, ou semelhantes, de avanços materiais e


culturais e de domínio sobre seus próprios instrumentos de dominação e de exploração sobre
a natureza e os processos produtivos, se não tivessem sido assim “interrompidos?”
Duvidoso que isso ocorresse, pelo menos no ritmo e com a intensidade tecnológica
conhecida pelo itinerário europeu de avanços científicos, logo transpostos para os terrenos
industrial e militar. Processos históricos de desenvolvimento são sempre únicos e originais.
Mas a disseminação de progressos materiais e culturais se dá, justamente, pela abertura, pela
importação, pela cópia indiscriminada e pelo aproveitamento de avanços já logrados por
outros povos e civilizações. Os europeus aprenderam um bocado com os chineses: são sempre
citados a bússola, a pólvora, o papel e a impressão. Muitas outras invenções da tradição
tecnológica chinesa foram avidamente buscadas pelos ocidentais, como a porcelana e a seda,
por exemplo; eles depois aplicaram um pouco do que aprenderam na conquista da própria
China, já então debilitada por elites ineptas e uma introversão fatal para suas pretensões de
grande Estado autônomo e independente. Todos os demais povos colonizados não tinham
condições de realizar um itinerário de desenvolvimento bem sucedido armados apenas de suas
dotações próprias. Por mais que isto desagrade aos relativistas culturais, todos os avanços
significativos da era contemporânea, inclusive aqueles que estão sendo atualmente alcançados
por Estados em rápido processo de modernização como a China e a Índia, são o resultado da
ciência e da tecnologia ocidentais, com aportes mínimos de outras culturas e civilizações. A
crescente interdependência científica da pesquisa mundial deve alterar um quadro que, até
aqui, foi dominado por nomes como Bacon, Galileu, Newton, Copérnico, Einstein e muitos
outros. O avanço econômico dos emergentes pode até alterar a balança do poder material no
mundo, mas é difícil imaginar um retrocesso cultural e científico dos atuais países avançados
ocidentais.

(3) O processo de colonização prejudicou, interrompeu, diminuiu as chances de progressos

116
ulteriores, em função de um projeto deliberado de “retrocessão” desses povos a uma
condição inferior?
A colonização certamente representou uma violência brutal contra muitos povos e
civilizações, destruindo Estados e culturas, e submetendo sociedades inteiras à vontade
unilateral de um punhado de estrangeiros dominadores, que passaram a extrair recursos e
produtos das formações assim submetidas pelos meios os mais diversos, geralmente
destruidores de antigos costumes e instituições. Mas pelo simples fato de que os colonialistas
e imperialistas detinham, justamente, técnicas e instituições mais avançadas – que os
habilitaram a dominar e a explorar, do contrário não poderiam fazê-lo – essa interação
colocou os povos submetidos em contato com meios materiais e mecanismos próprios a um
estágio superior de organização social e produtiva, inserindo-os – ainda que de maneira
subordinada – numa rede de intercâmbios comerciais e de novos fluxos de fatores produtivos
(entre eles, o mais precioso de todos, o capital intelectual) que, ao fim e ao cabo, os trouxeram
à modernidade capitalista, tal como a conhecemos atualmente. A colonização pode não ter
produzido, ela mesma, sociedades capazes de competir em igualdade de condições no cenário
econômico internacional; mas colocou as bases dessa possibilidade, que não teria sido
alcançada, ou o seria muito dificilmente na sua ausência. Na verdade, as únicas nações que
retrocederam na busca do desenvolvimento e dos progressos materiais e sociais não foram
aquelas que mantiveram seus vínculos com a economia mundial, mas aquelas – muitas na
África e no Oriente Médio, algumas na América Latina – que decidiram cortar esses laços de
“subordinação” e de “dependência” e adotar uma via nacional própria de “desenvolvimento”.
Os fracassos são tão evidentes (alguns tão presentes atualmente, em torno do Brasil) que
resultaria patético retratar essas experiências fracassadas. No outro sentido, alguns exemplos
já foram aqui citados, entre eles o de Hong Kong, uma colônia britânica e agora “chinesa”,
cujo desempenho em termos de crescimento e de modernização já tinha ultrapassado vários
indicadores da própria metrópole muito tempo antes da “descolonização” (que aliás nunca se
realizou; por interesse da China comunista, foi preservada a autonomia econômica, aduaneira
e financeira da vibrante “colônia”).

(4) Foram eles impedidos, depois, de retomar seus “projetos nacionais de desenvolvimento”,
em função da “herança maldita” da colonização europeia?
A pergunta é canhestra, e apenas formulada porque os ideólogos do anticolonialismo
acreditam, e afirmam, que o neocolonialismo continuou a marcar a trajetória dessas
sociedades em sua fase independente. A “herança maldita” seria, obviamente, constituída
pelos circuitos de produção e comercialização de alguns poucos produtos primários,

117
rigidamente preservados na era pós-colonial, e que dificultaram ou bloquearam os esforços de
“industrialização autônoma” no período recente. A própria construção desses vínculos de
exploração e de comercialização, que a literatura da área reputa totalmente negativa para os
povos colonizados, e absolutamente feita em favor dos colonizadores, nem sempre beneficiou
estes últimos, de modo completo ou integral.
Um balanço honesto dos empreendimentos coloniais – muitos deles decididos mais
por razões de prestígio político e exibição de poder mundial, do que por necessidade
econômica fundamental – pode revelar, inclusive, um resultado negativo, como evidenciado
nos estudos de Jacques Marseille sobre as aventuras coloniais da França (1989). Pesquisando
o desempenho do capitalismo francês nas colônias “exploradas”, ele constata, finalmente, um
balanço negativo no plano contábil e a manutenção de um capitalismo arcaico, vivendo de
suas “reservas de mercado” e incapaz de competir no cenário internacional mais amplo. Na
fase independente, as elites dirigentes construíram seus países da maneira que suas
habilidades respectivas o permitiram. Cingapura, por exemplo, era pouco mais do que um
entreposto comercial, com alguma guarnição militar, cercada de pântanos, quando os ingleses
aceitaram sua independência e a cidade se tornou autônoma da Malásia, que tinha pretensões
sobre esse ponto estratégico: em pouco mais de três décadas as elites chinesas construíram
uma vibrante economia, atraindo a atenção dos líderes comunistas chineses, já impressionados
pelos progressos de seus primos mais próximos de Hong Kong. Da mesma forma, depois de
quatro décadas de colonização japonesa, os coreanos tinham, além de tudo, um país arrasado
por uma das guerras mais terríveis da fase contemporânea: os dirigentes da parte meridional
conseguiram, com doses maciças de educação, fazer do país uma das economias mais
competitivas do planeta, colocando-o nos primeiros lugares em desempenho tecnológico e
inovação industrial.

(5) Continuam eles bloqueados em seu “desenvolvimento autônomo” em função dos “efeitos
delongados” do colonialismo?
Irrelevantes ambos os conceitos, já que, depois de quatro ou cinco décadas de
descolonização, e 200 anos de vida independente na América Latina, esse bode expiatório não
tem nenhuma responsabilidade sobre a situação atual e as perspectivas de desenvolvimento
futuro de povos ainda atrasados. Os discursos de certos “líderes” da América Latina –
certamente influenciados por idiotas como Galeano – atribuindo a culpa pelo atraso de seus
países ao “imperialismo” – que seria um tipo de colonialismo moderno – são tão ridículos que
sequer merecem qualquer desmentido acadêmico. A formação de recursos humanos –

118
principal fator de desenvolvimento em qualquer sociedade – é uma tarefa que pode levar duas
ou três gerações, mas é crucial para as chances de progresso econômico e social, tarefa que
incumbe inteiramente às elites nacionais: sua responsabilidade nesse particular é total, e
pretender responsabilizar o imperialismo pelo seu próprio fracasso não é apenas equivocado, e
sim moralmente desonesto e politicamente abjeto. Ao que se sabe, aliás, as potências
colonizadoras continuaram acolhendo os filhos da independência em suas universidades e
formando recursos humanos em suas melhores escolas: o que os líderes dos países
independentes não fizeram, inclusive os de velha independência como os da América Latina,
foi criar uma escola de massas de qualidade para integrar no letramento e nas matemáticas
elementares o grosso da população desprovida de recursos próprios para aceder às escolas dos
“colonizadores”.

(6) As antigas potências coloniais europeias continuam a explorar e a extrair recursos de


suas antigas colônias, dificultando ou impedindo, assim, seu desenvolvimento atual?
Não só as antigas metrópoles europeias, mas também os novos imperialistas
americanos e os novíssimos colonizadores chineses; todos eles continuam a extrair recursos
dos países ditos em desenvolvimento. Mas isso está longe de constituir um obstáculo ao seu
progresso material, ao seu crescimento econômico e ao seu avanço nos terrenos educacional
ou social. Todos os países, inclusive alguns desenvolvidos, exploram suas dotações naturais e
adquiridas, beneficiando-se daquilo que o velho David Ricardo chamou de “vantagens
comparativas relativas”. Vários países do “clube dos ricos” são produtores e exportadores de
matérias primas e de produtos agrícolas, sem que isso represente um fator de
subdesenvolvimento ou atraso.
Aparentemente, o próprio Brasil atravessaria, atualmente, os fenômenos da
“desindustrialização” – na verdade inexistente, mas agitado em função da perda de espaços
dos manufaturados em sua pauta exportadora – e da crescente afirmação do agronegócio, um
processo útil, bem-vindo e totalmente compatível com o seu perfil produtivo e suas vantagens
naturais. O que o Brasil deve fazer não é recusar essa “vocação”, e sim qualificar cada vez
mais seus setores produtivos vinculados à produção agrícola e à extração mineral, criando
valor e inovando na transformação produtiva a partir daqueles setores em que ele é imbatível
em termos de competitividade internacional. O agronegócio, longe de ser um fator de atraso
como afirmam os ignaros econômicos do MST – militantes absolutamente equivocados no
plano de qualquer racionalidade instrumental –, constitui uma enorme vantagem econômica
para o Brasil, necessitando mais incorporação de pesquisa científica e de melhorias

119
tecnológicas para criar ainda mais riqueza para a sociedade nacional, trazer divisas para o país
e inseri-lo mais profundamente nos circuitos da globalização capitalista, uma realidade
negada pelos militantes daquele movimento regressista e reacionário. Vantagens comparativas
e benefícios do livre comércio existem e funcionam, por mais que certos “economistas”
pretendam desqualificar esses processos tão naturais quanto a lei da oferta e da procura.

6. Conclusão: o colonialismo como fator de progresso civilizatório


Não preciso retomar os argumentos anteriormente citados para recusar a falácia
evidenciada neste ensaio: a dos efeitos prejudiciais, e até destruidores, do colonialismo para o
desenvolvimento autônomo de tantos países e economias ditos em desenvolvimento, na
terminologia politicamente correta dos funcionários desses órgãos inúteis que se ocupam do
“desenvolvimento” dos países pobres. Como já demonstrado nos trabalhos de William
Easterly (2002 e 2007), a assistência oficial ao desenvolvimento pode ter feito mais mal do
que bem aos povos assim assistidos, e isso a despeito de toda a benevolência e
“humanitarismo” das antigas potências coloniais e de suas numerosas ONGs assistencialistas.
O fato é que o colonialismo, pelas vias tortas que sempre são as da história, acabou
unificando o mundo numa mesma economia global, sendo impedido de fazê-lo em algumas
circunstâncias em função do comportamento político exclusivista, não do capitalismo,
enquanto sistema impessoal, mas de líderes políticos contaminados pela idéia de prestígio
nacional ou de hegemonia militar. O capitalismo, em si mesmo, trouxe progressos materiais e
benefícios sociais. Sempre e quando o capitalismo foi impedido de exercer suas virtudes
naturais no sentido de apropriar-se de produtos e serviços em escala planetária, de disseminar
suas mercadorias e, portanto, de facilitar a livre circulação dos fatores de produção – capital,
bens, know-how e recursos humanos – as razões devem ser buscadas nas barreiras políticas
artificialmente erigidas por governantes, não em virtude de suas limitações intrínsecas. O
capitalismo pode até ser desigual em seus mecanismos alocativos e de apropriação, mas ao
visar unicamente lucros e retornos ampliados, ele é absolutamente não discriminatório quanto
às fontes desses insumos e serviços: ele não se importa com a cor das pessoas, sua religião,
seu sistema político e suas crenças filosóficas, ele apenas deseja fabricar, vender e lucrar, se
possível em todos os quadrantes da terra, do fundo da Amazônia ao deserto de Gobi, das
estepes geladas da Sibéria, aos campos inóspitos de regiões tropicais, das cidades avançadas
do Ocidente às mais humildes aldeias africanas. Enfim, tudo é motivo e oportunidade para sua
expansão e sucesso econômico.
O colonialismo não tem tanto a ver com o capitalismo, quanto com as pretensões de

120
acumulação de riqueza por parte de agentes políticos, já que o capitalismo faria pela via do
comércio e do empreendimento produtivo o que o colonialismo faz pela via das armas e dos
missionários. Eventualmente os interesses de ambos podem se encontrar conjugados, mas não
se trata de uma relação causal ou unívoca em suas manifestações concretas, e sim de uma
coincidência histórica temporária. No fundo e na substância, o capitalismo dispensa o
colonialismo, que é mais bem o atributo de Estados-nacionais com poderes políticos muito
concentrados e desejosos de extrair riquezas pela via mais direta possível, que nem sempre é a
mais eficiente ou a mais compatível com os interesses do capitalismo no longo prazo.
Os principais agentes “colonizadores” da modernidade capitalista são as empresas
multinacionais, com seus celulares, seus sistemas online, suas possibilidades de comunicação
instantânea, e até as velhas empresas “imperialistas”, como a Coca-Cola, algumas
petroquímicas, várias farmacêuticas, casas bancárias seculares que se misturam a novas
corporações surgidas do nada, ou melhor, de gênios da inovação e da competitividade, no que
vai uma grande dose de especulação e até de esperteza. Essa colonização planetária pelos
modernos representantes das velhas companhias de comércio e navegação, pelos sucessores
de bandeirantes e pioneiros que penetravam em terras indevassadas pelo capital, deve
continuar pelo futuro previsível, quando o colonialismo será apenas uma imagem distante nos
livros de história, uma excrescência temporária na grande aventura humana da globalização.
Em última instância, aqueles que atribuem ao colonialismo o baixo, ou o não
desenvolvimento de tantos países atrasados, ou subdesenvolvidos – uma expressão
contraditória, pois que o desenvolvimento é um conceito relativo – estão cometendo uma
falácia, pois ele sempre significa, de uma maneira ou de outra, geralmente de forma indireta,
uma confrontação de capacitações diferenciadas entre dois povos e duas sociedades: por mais
que a violência implícita ao processo possa trazer custos temporários e sofrimentos no plano
social, no longo prazo estamos falando de uma incorporação da parte subordinada a patamares
mais elevados de apropriação da natureza e da manipulação econômica dos fatores de
produção, processo que deve necessariamente resultar em crescimento da produtividade e
melhoria dos padrões de vida. Uma espécie de “penitência” no caminho da modernidade:
considerando-se o papel destrutivo de antigos impérios extrativistas ou simplesmente
escravocratas – como alguns existentes na América pré-colombiana, tão decantada por alguns
idiotas inúteis – pode-se concluir que o papel do “colonialismo capitalista” (ou seja, europeu)
foi, ao fim e ao cabo, positivo, em proporções desiguais, provavelmente. Mas a história,
sobretudo em sua vertente econômica, nunca é um jogo de soma zero, no qual para que alguns
ganhem os outros necessitem perder. Um julgamento ponderado é o mínimo de respeito que

121
podemos exibir em relação a fenômenos tão complexos quanto o colonialismo.

Referências bibliográficas:

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são tão pobres (Rio de Janeiro: Campus, 1996)
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122
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1976)

(Shanghai, 9 de maio de 2010; revisão: 21.05.2010)

123
17. O mito da exploração capitalista

1. De que exploração estamos falando?


Antes que me interpretem mal, esclareço que estou efetivamente falando da velha e
abominável “exploração do homem pelo homem”, tão querida dos nossos colegas marxistas e
socialistas. (Atenção, existe uma diferença entre eles, bem sutil, mas existe: nem todo
socialista é marxista, e nem todo marxista é socialista. Este último pode pretender ser
designado de comunista, o que é raro hoje em dia, mas sempre se pode tropeçar com algum,
por mais surpreendente que isso possa parecer.) Um dos representantes dessa espécie, que
deveria ser imediatamente incluída na convenção Cites – procurem no Google o que é isso –
acredita, por exemplo, que “A sociedade capitalista repousa sobre a exploração do trabalho”.20
Não só ela, eu diria, mas esse esperto sociólogo também sabe disso, pois que a exploração
convive com as sociedades humanas desde a mais remota antiguidade. Pois bem, vamos falar
da exploração em geral, e da capitalista em particular.
Antes que me acusem de qualquer outro pecado, esclareço, também, que pretendo
falar bem da exploração; na verdade, fazer-lhe um elogio contido, mas sincero. Creio que
cinco séculos depois de Erasmo ter ousado proceder a um elogio à loucura (Encomium
moriae, 1509)21, mais de um século depois de Paul Lafargue ter defendido o direito à preguiça
(Le Droit à la Paresse, 1883)22 e oitenta anos após Bertrand Russell ter escrito um outro
elogio ao mesmo objeto (In Praise of Idleness, 1932)23, não deveria haver nada de muito
surpreendente no fato de se pretender encontrar aspectos positivos na exploração. Só não lhe
faço um elogio aberto porque não sou dado a esse tipo de atitude. Mas pretendo traçar um
quadro sociologicamente realista desse fenômeno tão velho quanto a própria humanidade,
com a permissão dos antropólogos, ou mesmo dos arqueólogos.
Pois bem, o mesmo sociólogo citado acima traça um quadro espaventoso da

20
Ver Emir Sader, “Pecado Capital do Capitalismo: A Exploração”. In: Sader, Emir (org.), 7 Pecados
do Capital (Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 57-77); cf. p. 76; o texto está disponível neste link:
http://pensocris.vilabol.uol.com.br/exploracao.htm; acesso em 26.08.2009.
21
Existem dezenas de traduções para a obra mais conhecida de Erasmo de Rotterdam, sendo a mais
famosa aquela feita para o inglês por John Wilson, em 1668; ver o texto neste link:
http://www.gutenberg.org/dirs/etext05/8efly10.txt; acesso em 26.08.2009.
22
O texto completo de Paul Lafargue, no original em francês, pode ser lido neste link:
http://abu.cnam.fr/cgi-bin/donner_html?paresse3; acesso em 26.08.2009.
23
Ver esse artigo bem humorado de Bertrand Russell neste link:
http://grammar.about.com/od/classicessays/a/praiseidleness.htm; acesso em 26.08.2009.

124
exploração capitalista, o que tampouco deveria surpreender os leitores: sociólogos marxistas,
em particular, e acadêmicos de esquerda, de forma geral, costumam condenar absolutamente
toda e qualquer forma de exploração do homem pelo homem, e a exploração capitalista em
especial. Mas pode perguntar o leitor: onde está nesta série dedicada às falácias do mundo
acadêmico o elemento falacioso que pretendo comentar em relação à teoria e à prática da
exploração? Ela surge logo em seguida, no mesmo trecho já referido desse autor prolífico
como poucos em falácias acadêmicas. Ele diz o seguinte, para demonizar a exploração
capitalista e caracterizar de modo positivo que uma sociedade pode viver sem exploração:
“Uma sociedade sem exploração é, antes de tudo, uma sociedade do trabalho, uma sociedade
em que todos tenham garantido o direito ao trabalho, vivam do seu trabalho. Isto significa
que, de alguma forma, todos se tornem trabalhadores e ninguém viva da exploração do
trabalho alheio. Uma sociedade desse tipo elimina a exploração, fazendo com que ninguém
possa viver do trabalho dos outros. Significa que ninguém disponha do privilégio de possuir
capital, negado à grande maioria.”24
Ai está: todo o parágrafo, cada uma das frases, constitui uma falácia completa, das
mais rotundas e falaciosas que possam existir. Esse sociólogo não deve ter tomado
conhecimento do apotegma conhecido, segundo o qual “existe apenas uma coisa pior do que
ser explorado, que é a de não ser explorado” (se não me engano, essa frase foi dita, em
primeiro lugar, pela conhecida economista marxista Joan Robinson)25, do contrário ele não se
levantaria de modo tão canhestro contra essa instituição que deveria ter seu lugar assegurado
no panteão das realizações humanas. Mas depois eu volto para comentar a falácia sobre a
sociedade sem exploração, pois as falácias sobre a exploração capitalista são ainda mais
numerosas do que a utopia pretendida pelo sociólogo alienado – segundo um dos conceitos
que ele mais gosta de usar – merecendo, portanto toda a nossa atenção.
Com efeito, a exploração, capitalista ou não, se apresenta como um dos elementos
de organização social de maior força agregadora e de maior vitalidade institucional. No
entanto, a legitimidade da exploração sempre foi expurgada da memória social, constituindo-
se numa espécie de mito fundador rejeitado universalmente pelo inconsciente coletivo. Apesar

24
Cf. Sader, “Pecado Capital do Capitalismo: A Exploração”, op. cit., p. 77.
25
A frase de Joan Robinson seria mais precisamente esta aqui: “It’s a terrible thing to be a worker
exploited in the capitalist system. The only worse thing is to be a worker unable to find anyone to
exploit him.” Segundo o comentário de um economista, formulado num site de história econômica,
onde fui buscar confirmação dessa frase, a citação parece se colocar no contexto do livro de Robinson,
The Economics of Imperfect Competition (1933); ver a mensagem de Paul Flatau, neste link:
http://eh.net/pipermail/hes/1995-June/003649.html; acesso em 26.08.2009.

125
disso, ela parece ser estruturalmente necessária enquanto sustentáculo da vida social, surgindo
historicamente como um verdadeiro requisito de civilização e como um componente
indispensável de toda e qualquer sociedade dinâmica.
Ao lado da dominação, a exploração é uma das forças mais poderosas que
motivam o progresso social e o avanço material das civilizações, ao organizar a sociedade
para o crescimento do produto em bases mais racionais e ao permitir, contraditoriamente, o
surgimento de condições sociais favoráveis ao estabelecimento de uma maior igualdade de
chances no conjunto da sociedade.
Antes que se tome este exercício de crítica intelectual como mera provocação – o
que ele, de certo modo e efetivamente é – devo esclarecer que pretendo tão somente oferecer
algumas notas sobre os condicionantes históricos do desenvolvimento social, como forma de
sustentar um novo tipo de discurso sobre essa relação social tão execrada e, no entanto, tão
generalizada, a ponto de ser verdadeiramente universal nas sociedades complexas.
Mais do que um simples elogio, a exploração requer explicação e compreensão,
ou aquilo que em termos metodológicos weberianos se chamaria de Verstehen. Minha
intenção é, sucintamente, proceder ao alinhamento de uma série de proposições relativamente
diretas – mas de cunho geralmente abstrato – e pedir a meus leitores que tentem encontrar
contra-proposições historicamente credíveis e empiricamente sustentáveis.
É evidente que os partidários da vulgata unilinear marxista sobre a sucessão dos
“modos de produção” poderão desde logo argumentar com exemplos retirados da chamadas
“sociedades primitivas”. A estes devo, no entanto, advertir que estou me referindo a
sociedades históricas, isto é, dotadas da mola do progresso e aptas a retirar da atividade
produtiva um excedente para investimento futuro e incremento das oportunidades de
consumo. Apesar de que este modesto ensaio possa ser também considerado como um
exercício de antropologia cultural, ele não pretende circunscrever seus argumentos a um
determinado tipo de formação social, mas sim generalizá-los em função da categoria mais
comum de sociedade histórica, que é aquela dividida em classes (incluídas neste conceito
igualmente as que algum dia tiveram a pretensão de se considerar “socialistas”).
Sem pretender, portanto, oferecer aqui uma teoria completa e a prática relevante da
exploração capitalista, as proposições de caráter abstrato que faço — procurando aproximar-
me das categorias universais que Weber chamaria de Ideal-typus — buscam recolocar em
termos claros a realidade da exploração, sua necessidade histórica e sua preservação, mesmo
nas sociedades pretensamente socialistas, em que pese a opinião contrária do sociólogo
alienado já referido.

126
2. O caráter historicamente necessário da exploração do homem pelo homem
Todas as sociedades organizam-se estruturalmente segundo uma relação mais ou
menos estreita com o seu meio ambiente. Mas é nas chamadas sociedades primitivas que a
“ditadura da natureza” é mais marcada. Nas sociedades relativamente complexas, isto é,
dotadas de meios técnicos suscetíveis de transformar o meio ambiente, a emancipação do
Homem vis-à-vis a Natureza acarreta igualmente uma divisão sexual e social do trabalho,
base ulterior da divisão da sociedade em classes.
Todas as sociedades históricas são, ou foram, sociedades divididas em classes sociais,
ou seja, sociedades organizadas com base em relações de dominação política e de exploração
do trabalho produtivo. Não há exemplos, na antropologia ou na história comparadas, de
sociedades históricas que não tenham sido, ao mesmo tempo, sociedades desiguais: nessas
sociedades, uma determinada categoria de pessoas detêm a capacidade de comandar outras
pessoas (de fato, a maioria) e delas extrair recursos excedentes em termos de produção
econômica.
A apropriação de excedentes econômicos produzidos pelas classes trabalhadoras
(exploração), e a imposição de uma forma qualquer de comando autoritário sobre o conjunto
da população (dominação), parecem obedecer a uma mesma lógica social: a monopolização,
por parte de uma categoria de pessoas, de determinados bens raros, nesse caso representados
pela Propriedade e pelo Poder. O conceito econômico de “raridade” — ou “escassez relativa”
— parece apropriado para caracterizar tanto essa concentração do excedente disponível na
esfera econômica, como a monopolização do poder político em mãos de uma elite social.
A concentração e a centralização desses bens raros nas mãos de uma elite dominante é
normalmente legitimada por algum tipo de racionalização, já que aqueles processos não
podem ser mantidos unicamente através do emprego constante (ou da ameaça de uso) da
violência institucionalizada. Uma “ideologia da dominação” — que é, ao mesmo tempo, uma
justificativa da exploração — tende assim a acompanhar todas as situações de desigualdade
estrutural.

3. O progresso civilizatório e os sistemas imperiais (mas não apenas eles)


Nas sociedades de classe modernas e contemporâneas, a exploração assume
principalmente a forma do desenvolvimento econômico, cuja característica essencial é a
capacidade da sociedade de produzir inovações tecnológicas. Nas civilizações materiais
organizadas com base na propriedade privada e no livre comércio (mercado), o

127
desenvolvimento contínuo das forças produtivas deu origem a um verdadeiro “modo de
produção inventivo”, transformando o progresso tecnológico em rationale da vida econômica
e social.
As relações desiguais de apropriação de bens raros não ocorrem apenas num âmbito
puramente inter-classista ou intra-societal, mas prevalecem igualmente num nível inter-
societal, confrontando formações nacionais desigualmente dotadas em recursos e
diversamente inseridas num mesmo sistema global. A exploração e a dominação não têm,
assim, um caráter nacional exclusivo; mas a aplicação desses dois princípios a nível trans-
nacional confunde-se, em muitos casos, com as relações desiguais que prevalecem
internamente entre classes sociais.
A racionalização conceitual do desenvolvimento histórico e social, ao coincidir no
tempo com a formação e o fortalecimento dos Estados-nacionais (séculos 16-18), impôs, a
estes últimos, encargos e responsabilidades muito precisas em relação ao desenvolvimento
concreto de suas sociedades respectivas. O estado do Progresso passou a exigir, cada vez
mais, o progresso do Estado, tendência apenas minimizada nas formações sociais que
atravessaram um processo relativamente completo de Nation making antes de ingressarem
numa fase de State building. As sociedades da Europa ocidental – à diferença dos antigos
despotismos orientais – foram as que primeiro souberam organizar a exploração em bases
racionais, daí os contínuos saltos de produtividade e de inovação tecnológica que permitiram
a essas sociedades se lançarem à conquista do mundo revelado pelos Descobrimentos e de
dominar todas as demais sociedades conhecidas durante praticamente cinco séculos.
Na época do Iluminismo, foram criadas legitimações doutrinárias e filosóficas à
prática da exploração. Essas formulações ideológicas consubstanciaram-se, posteriormente,
no pensamento liberal clássico, de que são exemplos, no plano econômico, os conceitos de
“equilíbrio dos mercados”, da “mão invisível”, de “vantagens comparativas” ou de “laissez-
faire”. A força doutrinária do pensamento liberal contaminou também as elites dominantes
dos próprios países submetidos a alguma forma de exploração e de dominação, a tal ponto que
a expropriação direta de recursos (espoliação colonial) e a apropriação indireta de trabalho
materializado (intercâmbio desigual) puderam ser justificadas pela sua funcionalidade em
relação ao princípio do desenvolvimento material das sociedades envolvidas. Mas mesmo um
igualitarista radical como Marx viu na instituição colonial, ou seja, na incorporação de novas
áreas à exploração capitalista, um grande fator de desenvolvimento material em sociedades
mais atrasadas. Ele queria o rápido desenvolvimento capitalista da Ásia.
Em outros termos, mesmo as sociedades dominadas pelo Ocidente capitalista – como

128
os impérios despóticos do Oriente, como já referido – praticavam a exploração de outros
povos. O próprio instituto da escravidão – que uma historiografia enviesada quer ver apenas
como uma das bases da ascensão do capitalismo, especificamente em sua vertente africana
dos séculos 15 a 19 – é tão antigo quanto o comércio internacional, ou mesmo anterior a ele,
tendo continuado a existir até tempos muito recentes, em sociedades – africanas e árabes, por
exemplo – que pouco têm de capitalistas ou ocidentais. O tráfico, em sua essência, era
iniciado pelas próprias tribos africanas, continuado pelos mercadores árabes ou muçulmanos
que circundavam os portos de exportação da África e praticado, aí sim, em sua ponta mais
lucrativa – o fornecimento para os demandantes do Novo Mundo – por transportadores
europeus e americanos, que retiravam grandes lucros do transporte e venda por atacado. Mas
apenas um historiador marxista hoje desacreditado, como Eric Williams – em seu Capitalism
and Slavery (1944) –, pretende ver na escravidão a base do desenvolvimento capitalista
moderno, quando ela é um dos aspectos mais acessórios e não fundamentais à emergência e
desenvolvimento do sistema (como, aliás, provado pela própria história do primeiro
capitalismo, o britânico, também o primeiro a abolir o tráfico e a escravidão).

4. Existiria progresso humano sem exploração?: dificilmente


A exploração nem sempre pode ser qualitativamente aferível: em todo caso sua
percepção é, mais bem, de ordem subjetiva. Tampouco ela parece ser quantitativamente
mensurável, embora exercícios marxianos tenham tentado medir tal indicador através da “taxa
de mais valia”. Todas as avaliações estimativas no sentido de traduzir esse conceito na prática
econômica corrente se viram, no entanto, frustradas por sérias dificuldades metodológicas e
por barreiras empíricas não menos importantes. Nenhum economista sério, atualmente,
trabalha com os conceitos marxianos de mais-valia, ou de taxa de exploração: apenas
acadêmicos alienados ainda pretendem fazê-lo. Mas na verdade não conseguem superar os
obstáculos epistemológicos ao seu uso adequado no trabalho de análise sociológica; eles
apenas pretendem fazê-lo, enganando alunos e colegas nesse empreendimento surrealista.
O sucesso relativo de uma nova forma de organização social da produção material –
como o capitalismo, por exemplo – significa, concretamente, uma maior disponibilidade de
bens e serviços anteriormente raros ou de alto custo unitário; ele se traduz, igualmente, numa
maior capacidade em exercer um controle ampliado sobre o meio ambiente social. O modo de
produção é tanto mais inventivo quanto ele conseguir transformar um maior número de bens
raros em produtos e serviços de consumo corrente: sua funcionalidade social, em termos
históricos, está precisamente nessa capacidade em atribuir um valor de troca a uma gama

129
relativamente ampla de necessidades humanas. Sem exploração seria praticamente impossível
realizar isso.
Ao disseminar mercadorias e transformar ecossistemas, o progresso tecnológico cria
desigualdades econômicas e sociais suplementares àquelas ordinariamente existentes, mas que
são em grande parte o resultado de uma maior divisão social do trabalho e de uma crescente
especialização de funções produtivas. A transformação criativa que deriva do modo de
produção inventivo gera, igualmente, desequilíbrios sociais e regionais, que se traduzem não
apenas em termos de obsolescência de meios de produção e de subutilização de recursos
humanos, mas também na marginalização de regiões inteiras e sua subordinação econômica a
centros mais desenvolvidos. Enquanto novos espaços sociais são incorporados aos circuitos
da exploração, outros deixam de ser funcionalmente rentáveis na cadeia de expropriação de
excedentes, ou seja, sua exploração já não é mais compatível com os custos marginais. A
exploração tem isso de “bom”, que ela é flexível e mutável.
O debate contemporâneo sobre as origens do atraso de sociedades outrora colonizadas
tendeu a ver na exploração e na dominação dessas sociedades uma das molas propulsoras do
desenvolvimento nas formações dominantes e, inversamente, naqueles dois fenômenos os
principais fatores de subdesenvolvimento nas primeiras. Em que pese a contribuição adicional
desses fatores, ao lado da exportação de excedentes demográficos, para o avanço material das
sociedades mais poderosas, as alavancas mais significativas no processo de desenvolvimento
econômico e social dessas sociedades foram, e são, de ordem propriamente interna. Essas
alavancas, que constituem condições prévias ao desenvolvimento sustentado, derivam de um
conjunto de relações sociais condizentes com o modo inventivo de produção e situam-se, por
assim dizer, na própria raiz da organização social da produção nessas sociedades. Inovação
tecnológica e poder econômico constituem requisitos necessários ao — e não efeitos do —
exercício da vontade imperial.
A espoliação colonial e a dominação mundial não podem ser implementadas sem a
capacitação intrínseca do pretendente, o que significa a existência de uma estrutura social e de
recursos materiais e humanos compatíveis com a voluntas dominadora. Embora uma das
fontes de “acumulação primitiva” possa ser constituída pela exploração de sociedades
dominadas, esta não é nem o mais importante fator de avanço material das sociedades
centrais, nem o requisito suficiente para o desenvolvimento contínuo destas últimas. A
chamada “aventura colonial” foi antes uma busca de prestígio político do que um
empreendimento econômico, envolvendo, na maior parte dos casos, custos superiores aos
benefícios incorridos.

130
A única forma de subtrair-se à exploração e à dominação de outrem, tanto no plano
nacional como no das relações inter-societais, parece assim situar-se na auto-capacitação
tecnológica e humana, o que vale dizer, dotar-se de seu próprio modo inventivo de produção,
base material e fonte primária de poder econômico e político. A soberania, seja a individual
ou a coletiva, deriva da faculdade de organizar a exploração e a dominação em bases
propriamente autônomas, ou seja, criar o seu próprio fulcro de poder social. Resumindo:
explore, você também...
Em outros termos, a internalização dos efeitos sociais e econômicos da exploração e
da dominação só pode ser obtida por meio da conversão de uma formação social em centro de
seu próprio sistema nacional, dotando esta última de sua respectiva periferia. Não é preciso
referir-se, por exemplo, ao caso do Brasil – uma sociedade capitalista em formação – e de sua
periferia regional semi-capitalista para constatar como esse fenômeno é amplamente
disseminado, e presente mesmo em nossas portas, ainda que muitos finjam ou pretendam não
ver. Um passeio por certos vizinhos regionais, bem como a leitura de seus pasquins e
panfletos mais emocionais confirmaria, sem dúvida, esta assertiva, que atribui ao Brasil um
novo papel.

5. Eliminando um mito marxista: a exploração como dominação


O marxismo teórico, ainda bastante bem representado em nossas academias – posto
que os representantes do marxismo prático já não são tão numerosos – pretende ver na marcha
do capitalismo dos últimos dois séculos, e nos exemplos históricos das numerosas revoluções
políticas ocorridas em diversas sociedades, nesse intervalo de tempo, a comprovação empírica
de que os trabalhadores, aqui e ali, pretendem libertar-se da “exploração capitalista”, para
inaugurar a “idade de ouro” das sociedades socialistas, que supostamente não funcionariam
com base na exploração do homem pelo homem. Nada mais falso, como um simples passeio
pelos dois únicos exemplos de socialismo remanescentes em nossos tempos de globalização
capitalista poderia comprovar. Mas vamos prosseguir em nossa análise conceitual.
As sociedades que conheceram rupturas violentas da ordem política, durante seus
processos de modernização econômica e social, eram, via de regra, as menos desenvolvidas
materialmente em relação a seu entorno geográfico, em suma, sociedades onde a exploração
menos tinha feito progressos. Em termos históricos concretos, é a insuficiência de
desenvolvimento capitalista, e não uma pretendida “super-exploração capitalista”, que abre as
portas a revoluções burguesas e anti-burguesas. Isto é válido tanto para as revoluções
burguesas “clássicas”, de que a francesa constitui o paradigma por excelência, como para as

131
revoluções sociais da periferia, na Rússia, na China e, mais perto de nós, no México e na
Bolívia.
As tentativas de superar a “democracia formal”, de caráter burguês, e de eliminar a
exploração de tipo capitalista, substituindo-as pela “democracia real” e pelo igualitarismo
social, não conseguiram, nem mesmo no caso das experiências de cunho autogestionário,
sequer arranhar o sólido edifício da exploração, logrando apenas destruir toda e qualquer
possibilidade de governo democrático, sem adjetivos. Como diz a conhecida anedota, se o
capitalismo é um sistema de exploração do homem pelo homem, sob o socialismo ocorre
exatamente o inverso.
Da mesma forma, não se conseguiu até agora conceber, colocar em prática e fazer
funcionar, efetivamente, qualquer sistema de organização social da produção que combinasse
eficiência produtiva e equidade social, e que eliminasse, total ou parcialmente, qualquer
vestígio de exploração, isto é, que não fosse baseado num sistema de alocação de recursos e
de redistribuição de excedentes caracterizado por um processo decisório autoritário e mesmo
anti-democrático, em sua escala microeconômica. A propriedade coletiva dos meios de
produção que, junto com o “planejamento democrático” da produção, deveria garantir o
desaparecimento definitivo de qualquer tipo de exploração social, não apenas deu início a
formas disfarçadas (na verdade, bem abertas) de exploração dos trabalhadores, como
conduziu a um sistema caracterizado pelo desperdício de recursos materiais e humanos (e,
portanto, a uma maior exploração da sociedade) e marcado pelo florescimento de práticas
políticas antidemocráticas, em escala macrossocial. O Gulag foi, possivelmente, o maior
empreendimento explorador já visto em toda a História.
A experiência histórica indica que a difusão do desenvolvimento, em suas diversas
formas materiais (incluindo suas manifestações culturais), emana sempre dos diversos centros
de poder econômico e político. Os benefícios da acumulação revertem inevitavelmente aos
mesmos centros, após ter o processo global de exploração cumprido sua missão histórica de
amealhar recursos adicionais para a sociedade originalmente dominante. Não parece haver,
pelo menos no horizonte histórico do sistema inter-estatal contemporâneo, alternativas válidas
de afirmação nacional que logrem superar a assimetria estrutural da relação centro-periferia:
ou as sociedades e nações dominadas conseguem transformar a exploração e a dominação em
alavancas autônomas do seu próprio progresso econômico ou elas estão condenadas (num
sentido propriamente hegeliano) a continuarem como meros objetos da História. No entanto,
como todo processo histórico, a relação centro-periferia é eminentemente instável e
perfeitamente mutável, tanto em seu contorno como em sua composição, podendo substituir

132
atores, transformar cenários e ocupar novos palcos sociais. A História, absolutamente
indeterminada, sempre oferece uma margem de liberdade, tanto aos homens quanto às nações,
mas nela não há fim para a exploração.

As proposições alinhadas acima, deliberadamente provocativas, deveriam incitar sua


contestação, tanto no plano lógico como no terreno histórico. É, aliás, desejo do autor que o
presente “elogio da exploração” não seja simplesmente visto como um mero divertissement
acadêmico, mas como uma tentativa de engajar a responsabilidade do intelectual na discussão
de um tema essencialmente incômodo e altamente propenso a considerações de natureza
ideológica. Tanto a crença liberal, como a imaginação dialética, deveriam se sentir desafiadas
a descer na arena conceitual para expor seus próprios argumentos sobre a legitimidade
histórica ou a ‘inaceitabilidade’ moral desta realidade social que constitui a exploração. Pelo
menos até aqui, ela parece estar empiricamente validada nos laboratórios da história.
Deve-se finalmente acrescentar que o “discurso realista”, do qual os presentes
argumentos constituem um simples exercício, encontra sérias objeções morais no plano da
praxis política e social – num contexto nacional ou internacional –, razão pela qual ele deve
ser freado por princípios éticos suscetíveis de serem defendidos por lideranças político-
partidárias e estadistas responsáveis. Não se deve esquecer, porém, de que a realidade
subjacente a ele – ou seja, a estrutura das relações de exploração e de dominação – constitui o
fundamento último e a razão imanente que sustentam a atuação dos Estados e elites
dominantes em todas as épocas históricas.
Se ouso agora retornar ao sociólogo alienado a que me referi no início deste trabalho,
seria, finalmente, para registrar sua maior falácia: a da eliminação da exploração. Mais do que
uma falácia, se trata de uma impossibilidade teórica e prática que ele comete sem sequer ter
consciência de seu equívoco. Com efeito, no trecho selecionado ao início, quando ele indica a
possibilidade de uma sociedade sem exploração, ele tinha afirmado isto aqui: “Uma sociedade
desse tipo [ou seja, socialista] elimina a exploração, fazendo com que ninguém possa viver do
trabalho dos outros. Significa que ninguém disponha do privilégio de possuir capital, negado
à grande maioria”. Esse sociólogo nunca deve ter visitado uma sociedade do socialismo real, e
se visitou, foi com viseiras nos olhos, pois não percebeu a enormidade do erro.
A afirmação é uma enorme falácia, posto que esse sociólogo alienado simplesmente
não considera que cada trabalhador, qualquer um – e o capitalista, tanto quanto o acadêmico,
também é um – possui, antes mesmo de sua “força de trabalho” (que é uma das falácias
marxistas menos importantes), o seu capital intelectual. Toda pessoa humana normalmente

133
constituída, mesmo a mais ignara, possui o seu capital intelectual: tal característica é inerente
à personalidade humana. Esse capital, todo capital é consubstancial ao trabalho humano; ele
nada mais é, aliás, do que trabalho acumulado. Quem disse isso, aliás, foi o próprio Marx.
Possuir esse tipo de capital não constitui, portanto, nenhum privilégio de uma minoria restrita.
Apenas uma mente obtusa, e que não leu direito o seu Marx, consegue fazer uma afirmação
tão absurda e tão contrária à verdade elementar das coisas: mesmo sociólogos alienados têm
capital.
A menos, é claro, que o acadêmico em questão considere que os trabalhadores
manuais – uma categoria limitadamente marxista – não possuam o seu capital intelectual; ou
que, além de tudo, ele pretenda excluir os capitalistas do universo dos trabalhadores (manuais
ou intelectuais, não importa no caso): ele deve achar que o capitalista só passa na fábrica no
final do dia para recolher o seu dinheiro. Em ambas as hipóteses, esse tipo de análise
excludente, constitui, por parte desse trabalhador supostamente acadêmico, um enorme
preconceito de classe; ou ignorância pura.
Ele provavelmente também ignora que o grosso da riqueza acumulada nas sociedades
mais prósperas – qualquer que seja o seu regime político ou social – é constituído atualmente
por capital intelectual, a chamada riqueza intangível, própria da sociedade do conhecimento.
Finalmente, ele deve preferir ignorar que as chamadas sociedades socialistas também
preservam a exploração do homem pelo homem, qualquer que seja o sentido que se dê à
expressão. Pena que elas estejam acabando rapidamente, do contrário seria o caso de
recomendar ao sociólogo distraído um pouco de turismo investigativo – mas sem viseiras nos
olhos – em torno das condições de trabalho em Cuba e na Coréia do Norte, por exemplo. Seria
edificante, na verdade.
Se ele não for desonesto intelectualmente, nosso sociólogo descobriria que a realidade
desses regimes também é feita de exploração, possivelmente em escala ainda maior do que
aquela observada nos capitalismos realmente existentes. Só os néscios, e os praticantes
contumazes de falácias acadêmicas, preferem ignorar isso.

Brasília, 26 de agosto de 2009.

134
18. Utopia marxista e falácias acadêmicas: qual sua importância relativa?

Pois bem: ao considerar que o conjunto do edifício marxista inscreve-se na categoria


das utopias – inclusive e principalmente a partir de suas raízes marxianas – caberia,
preliminarmente ao desenvolvimento de argumentos para sustentar essa afirmação, detectar
onde estariam as falácias acadêmicas que constituem o objeto desta série de ensaios dedicada
aos equívocos mais comuns encontrados na academia brasileira, a propósito de problemas que
são examinados de maneira convencional pelas disciplinas clássicas da tradição universitária
– ciências humanas e economia, principalmente – e o seu tratamento alternativo (de fato,
dominante, em grande parte das humanidades) pela vertente escolástica que adere, implícita
ou explicitamente, às grandes linhas explicativas do marxismo acadêmico.
Pode-se considerar, inicialmente, que à diferença da academia americana, por
exemplo, na qual a tradição marxista é praticamente marginal nas fundamentações teóricas e
nos estudos empíricos – restringindo-se a poucos núcleos bem identificados das ciências
sociais, ainda assim com um número muito reduzido de praticantes – no Brasil e em outros
países de formação similar (como os latino-americanos em geral, ou a França e a Itália, no
continente europeu) a dominação do marxismo, nessas mesmas áreas de estudo, é literalmente
avassaladora, sendo disseminada horizontal e verticalmente mesmo quando seus propositores
não o fazem explicitamente, ou que sequer tenham consciência de que estão aderindo a esse
tipo de explicação a partir de suas raízes diretas. Pense-se, por exemplo, nos muitos livros
didáticos ou para-didáticos de segundo grau que falam naturalmente de ‘classes sociais’ –
como instrumento de dominação, obviamente –, de ‘modo de produção’, de ‘contradições’
entre os diferentes interesses de classe na sociedade, enfim de uma variedade de conceitos
atinentes à vida social e produtiva que passam por absolutamente normais e necessários e que
nada mais são do que expressões da mesma concepção fundamental de conhecimento e
interpretação da realidade profundamente vinculada ao edifício teórico marxista.
O marxismo é de tal modo dominante na academia brasileira que seus defensores ou
promotores sequer percebem quando estão cometendo as falácias mais evidentes ligadas a seu
uso indiscriminado como meio de argumentação e debate. Veja-se, a título de exemplo, a
introdução a um debate recentemente lançado por um veículo simpático a (quando não
dominado por) essa corrente, que pretende discutir o marxismo e o século XXI, cujo autor,
um dos mais conhecidos marxistas da academia brasileira, Francisco de Oliveira, não hesita

135
em escrever o que segue: “O marxismo seguramente foi a doutrina mais importante do século
XX, no amplo sentido de um “campo” (Bourdieu) ou ainda no sentido de ideologia (Gramsci)
e não no dos próprios Marx e Engels (como doutrina dominante da classe dominante). A tal
ponto que se pode dizer que o século XX foi o século do marxismo.” 26
O marxismo pode ter sido mais importante do que o freudismo, a outra ideologia que
com ele ocupou parte significativa dos afazeres acadêmicos durante várias décadas do século
20. Mas dizer que ele foi a doutrina mais importante no período constitui um exagero – e uma
falácia – que requer imediato questionamento. O século XX foi claramente o século das
ideologias – nacionalismo, fascismo, socialismo e comunismo –, assim como o século XIX
tinha sido o do liberalismo e (apenas em parte) do darwinismo; mas daí a privilegiar uma
dessas ideologias como tendo sido a mais importante, e colocá-la quase como sinônimo do
próprio século, vai um evidente exagero e um descompasso com a realidade que requer
imediata correção e inclusão na categoria das falácias. O que foi importante no século XX,
depois da derrocada dos regimes fascistas – que, na verdade, só submergiram na voragem da
Segunda Guerra Mundial porque se lançaram em aventuras expansionistas, do contrário
teriam provavelmente sobrevivido muito tempo mais, inclusive porque chegaram a fazer
alianças táticas com seu suposto inimigo –, foi o socialismo, mais especificamente o de tipo
soviético, que dominou boa parte (mais exatamente setenta anos) de um século especialmente
mortífero e destruidor.
A falácia acadêmica talvez esteja, aqui, na identificação do socialismo real com a
doutrina marxista, quando ambos guardam, se tanto, vinculações tênues em termos de
legitimação teórica e de busca de fundamentação instrumental. Muitos marxistas, na verdade,
recusam essa vinculação entre o socialismo soviético e o marxismo teórico, pela inevitável
contaminação criminosa do segundo pelo primeiro: o número de vítimas (atestadas) do
marxismo prático – ou socialismo real – é muitas vezes maior do que seus congêneres
socialistas da vertente fascista. (Parênteses: não há como descartar o fato de que tanto
Mussolini quanto Hitler pretendiam construir o ‘socialismo de Estado’ e que nos fundamentos
de ambas as doutrinas encontra-se o regime econômico coletivista dominando amplamente
pelo Estado).

26
Cf. Francisco de Oliveira, “Texto de apresentação”, In: Carta Maior lança debate: o Marxismo e o
Século XXI, site Carta Maior (01.04.2009; disponível
<http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15899>; acesso em abril
2009).

136
Uma outra falácia típica desse tipo de raciocínio acadêmico enviesado consiste em
atribuir ao marxismo – simples ‘doutrina universitária’ para todos os efeitos práticos –
atributos de uma personalidade histórica, quase como um personagem que interage com
forças e processos sociais tangíveis e inquestionáveis. Assim, o mesmo autor supra-citado,
argumenta de forma totalmente ingênua e a-histórica: “A partir das formulações originais da
dupla Marx-Engels, o marxismo foi se constituindo numa concepção de história, numa visão
de mundo, numa prática de luta, numa política, diretamente na crítica ao capitalismo, seu
inimigo figadal”.27
Trata-se de uma evidente falácia, posto que o capitalismo não pode se constituir em
inimigo de nenhuma doutrina, já que ele não constitui um corpo filosófico e doutrinal em
busca de adeptos ou seguidores, e sim o que os marxistas chamariam de ‘modo de produção’
(outra falácia aberrante), convivendo em termos razoavelmente funcionais com diferentes
doutrinas políticas: democracia de massas, fascismo, ditaduras personalistas, parlamentarismo
aristocrático e, provavelmente até, com o marxismo de muitos dirigentes espalhados pelo
mundo em diversas épocas.
Mas essa falácia de um marxista acadêmico nos permite situar o campo no qual
discutir as falácias em geral da utopia marxista, geralmente situadas em dois terrenos de
interesse teórico e prático: o materialismo histórico, que tende a disseminar-se pelas demais
ciências sociais a partir da história, e a economia, cujos efeitos são mais importantes, na
medida em que seus discípulos podem influenciar políticas públicas (à diferença dos
primeiros, que influenciam, no máximo, a concepção do mundo de alunos ingênuos ou
passivos). Ambas vertentes, ao fim e ao cabo, são relevantes para o nosso exercício de
identificação e desmantelamento das falácias acadêmicas mais importantes, posto que
fundamentadas na mesma concepção geral que vê as ‘forças produtivas’ e as ‘relações de
produção’ devendo, natural e necessariamente, evoluir de seu envelope capitalista atual,
opressivo, desigual e injusto socialmente, para um conteúdo claramente socialista,
caracterizado pela socialização dos meios de produção, supostamente mais conforme aqueles
desejos de igualdade, justiça social e liberada da exploração do homem pelo homem.
Sem ser necessário apontar aqui as tragédias sociais, e o tremendo custo humano, a
que conduziram essas tentativas de construção de outra ordem social no ‘século do
marxismo’, podemos passar a considerar as falácias mais correntes desse tipo de engenharia
social cujos objetivos últimos são alegadamente humanistas e conformes ao ‘sentido da

27
Cf. Oliveira, “Texto de apresentação”, op. cit., loc. cit; ênfase no original.

137
história’ (mas cujos resultados práticos são por demais conhecidos para refazer a lista dos
casos mais exemplares; bastaria apontar que as tentativas remanescentes, nenhuma delas
exemplar, situam-se, atualmente, nas antípodas do mundo, um canto recuado da Ásia e numa
ilha do Caribe, num cenário de misérias humanas que dispensa qualquer descrição).

Quais são os mitos da utopia marxista?


Antes de tratar dos mitos da utopia marxista, conviria abordar seus muitos acertos e
análises corretas. Curiosamente, a maior parte dos ‘acertos’ marxistas não se situa
propriamente nesta obra de ‘economia gótica’ que se chama Das Kapital – considerada por
muitos como o nec plus ultra do cientificismo marxista, mas que tem seu lugar apenas na
estante de história das idéias, não numa biblioteca de teoria econômica – mas num panfleto de
propaganda feito expressamente com esse objetivo que se chama, obviamente, Manifesto do
Partido Comunista (1848). Esta pequena obra representa a mais poderosa defesa da sociedade
burguesa e do modo de produção capitalista jamais produzido por qualquer apólogo do
sistema de mercado desde então. O texto aponta corretamente que a sociedade burguesa – que
para Marx era quase sinônima de capitalismo – não pode existir sem revolucionar
constantemente os meios de produção; que sua tendência à expansão contínua a levaria a
conquistar o mundo todo, oportunamente – constituindo, portanto, a mais formidável
promoção da globalização de que se tem notícia, aliás totalmente ignorada pelos
altermundialistas e atuais opositores da globalização capitalista, que Marx consideraria como
totalmente irracionais; e que o capitalismo traz em seu próprio seio a promessa de crises
regulares, inevitáveis, eventualmente devastadoras, falhando ele apenas em achar que o
sistema inteiro seria finalmente tragado numa dessas crises de grandes proporções (e aqui vem
o componente messiânico, ou poético, da mensagem utópica marxiana).
A crítica contra o capitalismo conduzida nas páginas do Manifesto – e mesmo em
muitas passagens do Capital – é inteiramente correta e verdadeira, embora Marx tenha
praticado esse equívoco monumental – totalmente preservado nos equívocos ainda maiores de
seus seguidores e propagandistas atuais – de confundir modo de funcionamento do
capitalismo com a forma mais geral de organização da produção numa sociedade de mercado,
daí advindo os formidáveis erros de concepção econômica que levaram, ao fim e ao cabo, ao
desastre total de todos – sem exceção – regimes socialistas existentes na face da terra (e não
vale apontar para o ‘socialismo’ escandinavo como possível solução para um socialismo
democrático ou liberal, posto que as sociedades nórdicas jamais aboliram a propriedade

138
privada ou o regime econômico de mercado, como fundamento de seus modelos social-
democráticos).
Tanto essas críticas são corretas que a maior parte dos órfãos do socialismo e das
viúvas do marxismo esfregam atualmente as mãos e sorriem de contentamento interior ao
apontar – com base inclusive em transcrições seletivas de obras marxianas – a grande crise do
capitalismo (não exclusivamente financeiro) como ‘prova’ de que as ‘lições’ de Marx estavam
certas e que o capitalismo é, sim, sinônimo de anarquia e caos no processo produtivo e que ele
só pode existir quando guiado pela mão visível do Estado, a que supostamente se opunha um
economista ‘burguês’ como Adam Smith (quem, aliás, nunca se opôs à ação visível do Estado
nos muitos campos em que essa atuação é indispensável). Mas, atenção, reconhecer a
correção básica da análise marxiana do capitalismo – o que Max Weber, por exemplo,
também o fez, ainda que parcialmente, apenas – não significa que as previsões poéticas do
marxismo sobre a crise final do capitalismo e sua superação pelo socialismo sejam corretas e
aqui entramos, justamente, na descrição das utopias marxistas.
Quais são, então, os mitos da utopia marxista? As falácias do marxismo são muitas,
inumeráveis mesmo, tendo em vista que mais de um século e meio se passou desde que as
primeiras hipóteses sobre o ‘desenvolvimento histórico’ foram formuladas pelos demiurgos
originais e que, desde então, epígonos e discípulos têm-se encarregado de perpetuar essas
falácias, sem o mínimo cuidado em efetuar sua crítica e evitar sua repetição. Essas falácias
têm a ver com a famosa ‘interpretação econômica da história’ – e seus derivativos sob a forma
de ‘modos de produção’ e ‘lutas de classes como motor da história’; e também com toda a
parte analítica no terreno da economia, que quiçá foi a que produziu os maiores desastres já
conhecidos na história econômica mundial, com todo um cortejo de experiências falidas e
uma perda desnecessária de bem-estar para muitos povos. Uma última categoria de falácias
tem a ver com a natureza da sociedade comunista; mas as especulações marxianas a esse
respeito pertencem mais ao terreno da ficção política do que ao domínio da análise das
sociedades capitalistas existentes ao tempo de Marx, e podem ser perfeitamente ignoradas
como simples expressão de um desejo irrealizável (posto que não sustentadas em qualquer
exposição objetiva das condições que levariam a tal ‘utopia’).
A primeira categoria, inscrita no campo geral do materialismo histórico, vincula-se ao
desenvolvimento das sociedades existentes e sua evolução para a comunidade socialista, a
partir das contradições da sociedade capitalista, desdobrando-se numa série de proposições
altamente questionáveis. Em primeiro lugar, e de maneira mais geral, situa-se a crença num
‘fim da história’, alegação que os desatentos críticos atuais do ‘marxista-hegeliano’ Francis

139
Fukuyama atribuem aos promotores do ‘pensamento único’ de extração liberal clássica (que
eles acusam falsamente de ser neoliberal, quando este conceito não quer dizer rigorosamente
nada).
Marx e Engels (sobretudo este último, com suas construções mecanicistas sobre a
‘evolução’ da sociedade e do Estado) acreditavam que a resolução final das contradições da
sociedade capitalista se daria no quadro da sociedade comunista, na qual cada um trabalharia
de acordo com sua capacidade e receberia em função de suas necessidades, sem a opressão do
capitalista explorador. A falácia moderna, partilhada por um número inacreditavelmente alto
de acadêmicos, consiste em acreditar que o Estado provedor conseguirá atender à maior parte
das necessidades sociais, sem as distorções típicas de um sistema privado de apropriação do
produto social. Se isto fosse verdade, não apenas teoricamente, mas sobretudo do ponto de
vista prático, os sistemas mais fortemente estatizados conhecidos ao longo do século XX
seriam exemplos acabados de sucesso econômico e de dinamismo tecnológico, e não o
desastre econômico e o fracasso tecnológico que foram.
Em segundo lugar, coloca-se o fio condutor desse processo, sob a forma da famosa
proposição sobre a luta de classes como o motor da história. A tese não é especificamente
marxista (ou marxiana), sendo uma espécie de lugar comum explicativo nas décadas
imediatamente posteriores à Revolução francesa, como tal propagada pelos próprios
publicistas e panfletários do processo revolucionário e depois disseminada pelos primeiros
historiadores dos grandes eventos da França naquela conjuntura. Marx apropriou-se do
conceito e o generalizou para o conjunto da história passada, antevendo que a luta final se
daria entre a burguesia e o proletariado, este encarregado de inaugurar a nova era e de
comandar à implementação do novo ‘modo de produção’, inevitavelmente socialista, cela va
sans dire.
Em terceiro lugar, justamente, apresenta-se o famoso conceito de ‘modo de produção’,
supostamente capaz de organizar a história em função de formas possíveis de organização
social da produção em etapas sucessivamente evolutivas – não necessariamente lineares ou
sequenciais –, conceito que ainda hoje frequenta certos manuais universitários como sendo a
única maneira adequada de descrever o substrato material das sociedades existentes (e, claro,
sua superação pelo modo socialista). Nem é preciso recordar aqui o ridículo debate
pretensamente historiográfico travado no Brasil, durante a fase áurea do stalinismo triunfante,
no sentido de decidir se o modo de produção da era colonial era feudal ou se ele já era
capitalista, para constatar a que absurdos pode levar uma concepção rígida do processo
histórico orientado por esse tipo de camisa de força conceitual.

140
As transformações ocorridas ao longo dos séculos nas sociedades agrárias tradicionais
seguem padrões extremamente diversificados em direção de formações mercantis,
crescentemente manufatureiras, progressivamente industriais e, com maior intensidade a partir
destas últimas, gradualmente pós-industriais, com a chamada economia do conhecimento
reforçando um setor de serviços integrado aos demais setores produzindo a maior parte do
valor agregado. Marx, como é sabido, considerava várias atividades do terciário (ou seja, os
serviços, justamente) como ‘improdutivas’, o que é um equívoco monumental para quem se
pretendia economista – mas que sempre foi, apenas e tão somente, um filósofo social – e
estava preso ao seu tempo, concebendo a grande indústria manufatureira como o fenômeno
econômico dominante e decisivo, em seu horizonte histórico de reflexão.
Não é preciso dizer que, para Marx, a sucessão dos ‘modos de produção’ – do
escravismo antigo ao capitalismo, passando pelo feudalismo e por um pouco definido ‘modo
asiático de produção’, inventado a partir de certa etapa de suas pesquisas para acomodar
aspectos incongruentes em sua caracterização rígida – deveria conduzir inevitavelmente ao
‘modo socialista’, quase que tirado por um fiat filosófico das entranhas do capitalismo,
chegado em sua fase madura. A falácia fundamental não consiste apenas em imaginar que
formações econômico-sociais tão diversificadas como as historicamente existentes possam ser
encaixadas, ou aprisionadas, em categorias tão estanques quanto, simplesmente, redutoras;
mas, sobretudo, em acreditar que um ‘modo de produção’ possa ser inventado a partir das
elucubrações de um cérebro, por mais genial que este possa ter sido.

As falácias econômicas do marxismo


Bem mais importantes, porém, do que as falácias ‘histórico-materialistas’ de Marx (e
Engels) são os equívocos analíticos e conceituais de seus textos de análise econômica,
inclusive pelas consequências práticas que eles tiveram para a vida de centenas de milhões de
pessoas, durante grande parte do século XX, sendo a maior parte desses efeitos de trágicas
dimensões, como o escravismo stalinista, por exemplo. Essa outra categoria de falácias não é
bem percebida por uma parcela substancial dos acadêmicos, tanto porque são poucos os que
se decidem a enfrentar as 2.500 páginas do Capital, as 300 páginas da Crítica da Economia
Política, as mais de 400 páginas das Teorias da Mais-Valia, a prosa gongórica ou barroca da
Crítica do Programa de Gotha, da Ideologia Alemã ou de vários outros escritos esparsos,
como os Manuscritos Econômico-Filosóficos. A maior parte dos ‘estudiosos’ se contenta com
resumos dessas obras, com as avaliações generosas que seguidores complacentes delas
fizeram ou, no máximo, com a leitura rápida do Manifesto e do 18 Brumário.

141
Realmente não é fácil fazer a crítica econômica da economia política de Marx e não
será aqui que tal empreendimento poderá ser realizado a contento; tanto por falta de espaço (e
para não abusar da paciência dos leitores), como, sobretudo, por uma sensação de inutilidade,
posto que poucos dos argumentos ‘econômicos’ marxianos podem ser transpostos na
linguagem da economia contemporânea e receber, assim, o tratamento empírico-factual a que
se submetem as teorias ou construções correntes produzidas em ambiente universitário. Antes
que me critiquem por incapacidade analítica, convido os defensores da economia política
marxista a tentar elaborar criticamente, isto é, com os instrumentos da teoria econômica
contemporânea, a respeito das seguintes noções – que são centrais no pensamento econômico
marxiano – que constituem um conjunto de falácias que só são preservadas nas aulas das
humanidades, e muito raramente nas faculdades que se dedicam ao ensino sério da economia:
teoria do valor-trabalho (um equívoco, diga-se de passagem, que Marx partilha com os
clássicos que o precederam); tempo de trabalho socialmente necessário; fetichismo da
mercadoria; doutrina da miséria crescente; taxa de mais-valia; composição orgânica do
capital; taxa decrescente de lucro; superprodução de mercadorias; superabundância de capital.
Existem outras noções bizarras, certamente, mas estas bastam para o desafio.
Na verdade, essas elaborações prolixas da pluma de Marx não foram compreendidas
ou desenvolvidas nem por seus seguidores e discípulos,28 que se contentaram com algumas
fórmulas rápidas extraídas de algumas dessas obras citadas para daí construir um dos mais
monumentais equívocos econômicos de que se tem notícia na história da economia prática e
das políticas públicas: refiro-me, obviamente, ao socialismo de tipo soviético, ‘teoricamente’
(mal) bosquejado por Lênin e implementado a marretadas pouco teóricas por Stalin e outros
improvisadores econômicos. Ainda que se possa dizer que esses experimentos semi-bárbaros
de militantes de uma sociedade pré-capitalista pouco tinham a ver com os ‘verdadeiros’
fundamentos teóricos marxistas, é um fato que eles procuraram se legitimar através da crítica
à economia política ‘burguesa’, tal como conduzida pessoalmente por Marx, e que eles se
sustentaram numa concepção do mundo que tinha como suportes fundamentais duas
elaborações centrais do próprio mestre: a teoria da exploração e a ‘previsão’ da crise geral do

28
Não estou referindo-me aqui a discípulos marxistas como Bukarin ou Preobajensky, que tentaram
elaborar sobre a transição socialista-soviética a partir das categorias marxistas, mas que não foram
muito longe em suas contribuições teóricas (inclusive porque foram eliminados por Stalin). O mais
importante teórico marxista dessa época, Rudolf Hilferding, foi, na verdade, um crítico da previsão
marxista sobre o colapso do capitalismo, tendo ele sido aluno de Eugen Böhm-Bawerk, um importante
analista das teorias econômicas marxistas, junto com Vilfredo Pareto, Ludwig von Mises e, muito
antes deles, John Stuart Mill. Os marxistas nunca souberam responder às críticas especificamente
econômicas que esses economistas fizeram às teorias econômicas de Marx (ênfase deste autor).

142
capitalismo (não exatamente em virtude da pressão política dos movimentos socialistas, mas
por suas próprias contradições internas, de tipo estrutural).
A teoria da exploração, como se sabe, está no centro daquilo que os marxistas
consideram ser a contribuição fundamental de Marx à crítica da economia política, a saber, a
teoria da mais-valia. No Capital, Marx divide o seu objeto analítico em duas partes: capital
constante e variável, sendo o primeiro a parte incorporada nos equipamentos e nos produtos
utilizados no processo de produção, e transferido inteiramente para o valor do produto
(parcialmente no caso dos equipamentos, apenas a parte correspondente ao seu desgaste
físico), e o segundo a parte relativa ao custo da força-de-trabalho, da qual apenas uma parte
constitui a remuneração do trabalhador, sendo o resto apropriado pelo capitalista como mais-
valia justamente. Marx pretendia ter descoberto ali o segredo do processo de acumulação
capitalista, sendo que a taxa de mais valia (s) criada pelo capital variável (v) – expressa na
fórmula v/s = trabalho necessário/sobre-trabalho – corresponderia exatamente à taxa de
exploração do trabalho pelo capital. Nenhum economista sério consegue trabalhar
economicamente com uma falácia desse tipo; desafio qualquer economista marxista a me
provar a utilidade instrumental dessa formulação para fins de teoria econômica ou como mero
instrumento analítico no plano da microeconomia (isto é, a parte da economia dedicada
especificamente ao processo de produção, que é justamente a parte da critica à economia
política que Marx alegava ter desenvolvido de uma maneira superior aos economistas
‘burgueses’ do seu tempo).
A falácia mais importante do marxismo, porém, a que o distingue particularmente no
conjunto de teorias econômicas críticas do (e ao) capitalismo, é, evidentemente, a que trata da
crença – sinto muito, mas não encontro outro substantivo para este equívoco – de que os
desequilíbrios regulares e constantes da economia de mercado – de toda e qualquer economia
de mercado, que esses mesmos críticos confundem com o capitalismo, a partir do erro original
de Marx – conduziriam a contradições insuperáveis nos limites do sistema existente, apenas
resolvíveis pela sua substituição ‘natural’ pelo modo de produção predestinado como
sucedâneo e sucessor, o socialismo.
Marx tentou formular seu desejo filosófico em termos especificamente econômicos,
mas que são, na verdade sociológicos. No Capital, ele se ocupa, sobretudo, de: acumulação
capitalista; taxa de salários; exército industrial de reserva; monopólios; deficiências na
demanda; desequilíbrios na produção (como resultado da superprodução de mercadorias e da
sobreabundância de capital); diferenças entre os processos de produção e de circulação;
descompassos entre o crescimento da produção e a expansão dos mercados. Tudo isso

143
ilustrado por abundantes citações de relatórios oficiais – geralmente parlamentares, mas de
funcionários do governo também – sobre o trabalho nas fábricas inglesas (que ele lê na British
Library e cita muito seletivamente) e por ainda mais abundantes comentários em estilo
literário sobre os horrores da produção fabril e sobre a cupidez dos capitalistas. Existem
passagens realmente brilhantes, jocosas ou irônicas segundo a ocasião, e descrições tão
pungentes da miserável situação dos trabalhadores que são capazes de comover os corações
mais duros e as almas mais cândidas.
A falácia mais evidente, aqui, é a de ter confundido a dinâmica de uma economia de
mercado – com seus desequilíbrios inevitáveis – com as contradições insanáveis de todo o
sistema capitalista, que na verdade representa uma parte muito pequena da economia de
mercado. Esta falácia foi perpetuada não apenas pelos seguidores imediatos de Marx, como
também por seus êmulos contemporâneos, sobretudo na academia, onde se costuma misturar
as duas coisas numa salada indigesta que passa por economia política. Os primeiros
pretenderam destruir o capitalismo a marretadas; o que mais conseguiram fazer foi impedir o
funcionamento de uma economia de mercado minimamente condizente com o cálculo
econômico indispensável à aferição do valor relativo dos bens e serviços, condenando assim à
esclerose precoce o seu pretendido ‘modo socialista de produção’. 29 Pode-se dizer, em sua
defesa, que eles não tinham uma idéia muito precisa de como construir o socialismo
‘científico’ apregoado por Marx, já que este não havia deixado nenhum manual de instruções,
uma escusa de que não dispõem os segundos, que puderam observar várias décadas de
experimentos fracassados e desastres práticos, com todas as evidências empíricas ao seu
alcance, desde que eles se dispusessem a raciocinar, está claro.
Mas parece óbvio hoje em dia – pelo menos confio na inteligência humana – que
nenhum marxista consciente está propondo, atualmente, o socialismo em suas formas
conhecidas no século XX, sobretudo em sua versão clássica do Gosplan soviético; e menos
ainda nos modelos embalsamados das tristemente célebres experiências da pavorosa Coréia
do Norte e da patética ilha caribenha. O que os marxistas estão pedindo – e alguns governos
atendendo, ainda que não se pretendam socialistas – é a nacionalização, ou seja, a estatização,

29
Uma crítica contemporânea aos experimentos bizarros de Lênin em matéria econômica foi
conduzida simultaneamente – e antes mesmo que seus resultados desastrosos se revelassem em sua
inteireza – por um jovem economista austríaco, Ludwig von Mises, cujo Cálculo Econômico na
Comunidade Socialista (1920), na verdade uma demonstração da impossibilidade de qualquer cálculo
econômico racional, na ausência do mecanismo de preços, constituiu uma antevisão teórica do
desastre econômico que seria o socialismo na prática. Ver suas obras no site dedicado a esse
economista: www.vonmises.org.

144
do sistema bancário, como forma de acabar com o aspecto mais detestável, moralmente
falando, do capitalismo, que é a especulação financeira, algo que qualquer marxista
contemporâneo pratica regularmente quando joga na loteria, a mais desenfreada especulação
financeira administrada pelo Estado.
Eles também pedem – e nisso os governos do G20 financeiro também parecem
dispostos a atendê-los – uma regulação ainda mais estrita dos mercados pelo Estado, como
forma de interromper, pelo menos momentaneamente, a crise devastadora que não deixa de
representar desemprego, pobreza temporária para os que não dispõem de seguro-desemprego
(e isso se aplica a 95% da força de trabalho brasileira) e outras consequências variadas, todas
vinculadas às supostas misérias que o capitalismo é capaz de produzir na concepção desses
seus utópicos detratores. Trata-se, obviamente, de um contra-senso econômico, posto que uma
regulação mais rígida e burocratas estatais no comando dos bancos conseguirão produzir, se
tanto, menor crescimento econômico, menor flexibilidade dos mercados e, portanto, menores
possibilidades de criação e de distribuição de riquezas, pontos que os propositores de tais
medidas não estão dispostos a reconhecer (por problemas filosóficos compreensíveis), mas
que são importantes para o futuro das economias de mercado (característica fundamental que
eles, pelo menos isso, aprenderam a respeitar).

Pode ser que, ao fim e ao cabo, a falácia do marxismo em proclamar a utopia da


sociedade socialista seja comparável à falácia capitalista – se é que ela existe – de uma
economia de mercado sem crises e sem perda de riquezas, o que ainda não foi inventado por
nenhum cérebro genial. Na verdade, o capitalismo não tem a pretensão de fazer engenharia
social ou de operar toda a economia de mercado: ele se contenta em gerir seus próprios
negócios privados, abrindo com isso o caminho para a construção de um poderoso sistema de
criação (e distribuição) de riquezas, o que não é pouca coisa. Em todo caso, nenhum sistema –
socialista, coletivista, ou qualquer outro ‘inventado’ pela ação humana – foi capaz, até o
presente momento, de oferecer tantas oportunidades de criação de riquezas quanto as
economias de mercado operando de modo mais ou menos espontâneo. Entre essas economias
se situa o capitalismo, que constitui ainda uma pequena parte dos ‘modos de produção’
disponíveis nos supermercados da história, e uma fração relativamente diminuta das
formações sociais historicamente existentes, inclusive no plano espacial-geográfico (a
despeito do que possam pensar os marxistas, mas eles costumam exagerar no poder de fogo
do capitalismo).

145
Thomas More, se vivo fosse, teria certamente muito material para novas utopias se
tivesse conhecido todas as propostas de engenharia social contidas nas formulações marxistas
para um novo modo de produção e um novo tipo de sociedade. Mas, talvez ele não tivesse
sobrevivido a alguns experimentos do século XX, bem mais terríveis do que as diatribes anti-
papistas e anti-Vaticano de um Henrique VIII...

Brasília, 3 de maio

146
19. O mito da transição do capitalismo ao socialismo

O socialismo vai emergir a partir do capitalismo?


Uma das mais persistentes falácias alimentadas durante a época áurea do marxismo
acadêmico, que foi também a do comunismo prático – um período que se estende, grosso
modo, dos anos 20 aos 80 do século 20 – era a que pretendia que o capitalismo seria
fatalmente sucedido pelo socialismo, e este pelo comunismo (mas aqui, mesmo os mais fiéis
cultores da crença remetiam essa passagem a um futuro indefinido). A rigor, ainda nos dias
que correm, muitos adeptos dessa concepção evolutiva – aparentemente, desta vez, apenas nos
meios acadêmicos –pretendem que essa sucessão se dará fatalmente, mesmo se o processo
tenha de adotar uma cronologia mais delongada do que aquela prevista em trabalhos
alegadamente marxistas. Trata-se, portanto, de uma falácia persistente, justificando, assim,
que ela seja examinada nesta série voltada especificamente para os mitos que alimentam o
mundo acadêmico, a despeito de tantos desmentidos empíricos e de tantas provas em
contrário às suas principais assertivas. Entretanto, como sabemos, o mundo acadêmico
costuma girar em torno de conceitos abstratos, alimentando-se de seus próprios mitos, entre
os quais alguns dos mais relevantes são aqueles que derivam da tradição analítica marxista,
uma das mais presentes e das mais ‘poderosas’ nas áreas das humanidades.
A bem da verdade, naquele período do marxismo quase triunfante, não eram só os
marxistas acadêmicos, ou os seus praticantes, que mantinham essa crença, assim como não
são apenas os representantes da família que a mantêm ainda hoje. Sem pretender estabelecer
aqui uma lista completa dos true believers – pois ela seria enorme, sobretudo entre os
franceses, italianos e ingleses –, pode-se mencionar, na categoria dos céticos, dois mais
preeminentes: o economista austríaco Joseph Schumpeter, com o seu famoso Socialismo,
Capitalismo e Democracia (1942)30, e o economista canadense John Kenneth Galbraith,

30
O economista austríaco Joseph A. Schumpeter (1883-1950) é mais conhecido por sua teoria dos
ciclos econômicos e pela inovação empresarial, mas foi também um crítico do imperialismo e do
capitalismo; sua teoria do desenvolvimento econômico (apresentada em livro publicado em 1911) é
bem mais uma análise das condições do crescimento sustentado, com base na atividade industrial
(mudança tecnológica e destruição criativa). Com base na instabilidade inerente do capitalismo, ele
previu, em seu livro de 1942, que o sistema acabaria se dissolvendo pelas mãos dos intelectuais –
como ele, talvez –, mas tendo falhado como ministro da Economia da Áustria (1919) e como diretor
de um banco vienense (1924), não se pode atribuir muitas virtudes prescritivas a seu diagnóstico
pessimista. Para um breve resumo de sua vida e obra, ver seu verbete no site da New School for Social
Research (http://homepage.newschool.edu/het//profiles/schump.htm), na qual foi professor, durante

147
sobretudo em seu livro The Affluent Society (1958), cujas teses principais foram depois
reafirmadas em The New Industrial State (1967).31 Os dois, junto com Thorstein Veblen, um
predecessor do início do século 20, não confiavam muito na capacidade dos mercados livres e
do capitalismo desimpedido em corrigir os problemas mais típicos do sistema, quais sejam: a
desigualdade social e a concentração do poder econômico, pregando, como consequência
lógica, o aumento dos serviços públicos e o do poder estatal sobre as empresas privadas.
Mesmo um liberal clássico como Raymond Aron, em suas aulas de Sociologia Política
na Sorbonne – resumidas, entre outros livros, em Dix-Huit Leçons sur La Société Industrielle
(1963), e na obra que lhe segue, La Lutte des Classes (1964) –, chegou a acreditar, não
exatamente na sucessão, mas na futura confluência dos dois sistemas, crença, aliás, partilhada
com o mesmo Galbraith. Na verdade, Aron se dedicou justamente a desmentir alguns dos
dogmas com que ele se deparava no ambiente acadêmico do seu tempo, entre eles: o mito da
evolução do capitalismo ao socialismo, o da convergência entre os dois tipos de sociedade
industrial e o da equivalência entre os sistemas industriais com prevalência da propriedade
privada e aqueles caracterizados pela dominação do Estado, independentemente do regime
político subjacente. Mas ele também tendia a acreditar que a complexidade crescente dos
sistemas produtivos, com o desenvolvimento de uma tecnoburocracia ampliada – um conceito
típico na obra de Galbraith – levaria futuramente a uma atenuação das características ideal-
típicas de cada um dos sistemas. Esse não era o caso, obviamente, do marxista americano Paul
Sweezy, que, junto com Paul Baran, acreditava na transição do capitalismo ao socialismo, 32
contemporaneamente, aliás, ao francês Charles Bettelheim, cujos livros trataram
especificamente da transição do capitalismo ao socialismo, com alguma flexibilidade
conceitual em relação à doutrina canônica do marxismo oficial. 33

muitos anos, Robert Heilbroner, um de seus alunos e autor do famoso Worldly Philosophers (1953;
publicado no Brasil como A História do Pensamento Econômico, várias edições).
31
Nesse último livro Galbraith apresentou o conceito de Nova Classe, precipuamente voltado para a
categoria dos trabalhadores intelectuais, conceito que seria desenvolvido pouco depois para o sistema
socialista pelo iugoslavo Milovan Djilas, mas puramente no sentido dos aparatchiks dos partidos
comunistas, que detêm o poder político e econômico sem participar de nenhum esforço produtivo.
32
Paul Sweezy tornou-se marxista na Inglaterra, e de retorno aos EUA publicou The Theory of
Capitalist Development (1942) e, em colaboração com Paul Baran, Monopolist Capitalism (1966).
Junto com Leo Huberman, outro expoente da mesma tendência, ele fundou a Monthly Review, durante
décadas o mais representativo e inteligente veículo do marxismo anglo-saxão.
33
O livro mais famoso de Charles Bettelheim se chamava, justamente, La transition vers l'économie
socialiste (Paris: Maspero, 1968), mas já em 1945 ele publicava um estudo sobre La planification
soviétique (Paris: Rivière, 1945). No debate em torno do modelo cubano, no início dos anos 1960,
quando Fidel Castro e Che Guevara pretendiam impulsionar rapidamente um modelo stalinista de
industrialização, ele recomendou um modelo mais flexível, baseado na Nova Economia Política de
Lênin, combinando elementos estatais e de mercado. Em seus muitos outros trabalhos – como em

148
Enquanto os representantes da vertente capitalista concebiam uma progressiva
domesticação das forças de mercado pela regulação estatal, num ambiente de reformismo
democrático que separaria cada vez mais a propriedade capitalista de seu controle efetivo, os
expoentes do marxismo acadêmico apostavam na erosão fatal do capitalismo competitivo,
pelo esgotamento das possibilidades de acumulação – segundo a famosa ‘lei’ marxiana da
queda tendencial da taxa de lucro e em função das crises de superprodução, com redução da
demanda em virtude da concentração de renda – e pela formação dessa entidade mítica
chamada ‘capitalismo monopolista’, o que levaria à estagnação do sistema. Na periferia
também existiam os estagnacionistas e os declinistas, um grupo que vai de André Gunder
Frank a Samir Amin, ainda hoje ativo e mais centrado sobre a expansão imperial do capital,
terreno no qual também se exerce o ‘mundialista’ Immanuel Wallerstein. Não é preciso dizer
que todos os representantes do segundo grupo ficam bastante animados a cada crise do
capitalismo, antevendo ali seu declínio irresistível e o prenúncio da derrocada fatal.
A origem e a natureza das crenças respectivas dos dois grupos nessa transição diferiam
bastante, tanto em relação ao itinerário futuro do capitalismo – mais ou menos próximo,
segundo uma ou outra categoria de ‘analistas’ – como no que se refere à ‘metodologia’ da
transição: esta seria revolucionária e entremeada de ‘crises terminais’ para o primeiro grupo,
mas gradual e evolutiva para o segundo, desembocando, de qualquer maneira, em formas
graduais e evolutivas de um capitalismo regulado ou de um socialismo de mercado, numa
espécie de radicalização da social-democracia. Para os adeptos da teleologia marxista, a
transição estava inscrita na lógica do desenvolvimento do capitalismo, segundo uma sucessão
fatal de modos de produção que partia do escravismo antigo, passava pela servidão feudal –
eventualmente com o despotismo oriental em sua forma especificamente asiática pelo meio –
e chegava ao socialismo, depois dos estertores demoníacos do sistema burguês de produção.
Este, estava inegavelmente condenado à lata de lixo da História – ou ao museu das
antiguidades, segundo Engels – depois de uma luta heróica da classe operária contra a sua
exploração desenfreada e voltada para o assalto ao céu do poder político. O Estado burguês e
o modo de produção capitalista seriam irremediavelmente substituídos, por meios violentos
ou no bojo de lutas democráticas, pelo modo superior de produção, ele mesmo apenas uma
simples etapa no caminho da futura sociedade comunista.

Problèmes théoriques et pratiques de la planification (Paris: Maspero, 1970) – ele continuava a


sustentar o planejamento socialista, embora tenha recomendado medidas de descentralização, contra o
“capitalismo de Estado” da experiência soviética, da qual ele foi um dos maiores críticos de esquerda.

149
Já os intelectuais capitalistas, como Schumpeter, Galbraith ou Aron, acreditavam que
haveria uma aproximação gradual dos dois sistemas, tanto pela ‘socialização’ do capitalismo
– transformado em ‘managerial capitalism’, 34 no quadro de grandes empresas, na verdade
administradas por um conselho a serviço dos acionistas, mais do que respondendo a um
proprietário individual, segundo o protótipo do patrão burguês – quanto pelo retorno
inevitável do socialismo a princípios de mercado, numa evolução à la Bernstein. Cabe
registrar que a ‘fé’ dos intelectuais ocidentais na permanência do capitalismo tinha sido
bastante abalada pelas crises dos anos 1930 e a consequente ascensão da regulação estatal.
Logo depois da crise de 1929, por exemplo, Adolf Berle e Gardiner Means publicam a famosa
obra The Modern Corporation and Private Property (New York: Macmillan, 1932), que
apresenta uma primeira visão crítica quanto às chances do capitalismo competitivo nas novas
condições de regulação estatal, agenda reformista que seria implementada pela administração
Roosevelt nos anos 1930.
Mesmo um espírito liberal, como o jovem Peter Drucker, atuando como jornalista
econômico em Londres, depois de fugir de sua Áustria nazificada no fim dessa década,
chegou a duvidar, em The End of Economic Man (subtítulo: The Origins of Totalitarianism,
1939), que as economias de mercado livre pudessem exibir melhor desempenho do que as
ascendentes economias coletivistas, então em vigor na Alemanha, na Itália e na União
Soviética. No imediato pós-Segunda Guerra, quase todas as economias do Ocidente capitalista
adotaram o planejamento indicativo – quando não Planos Quinquenais, como no caso da
França – e recorreram a formas mais ou menos abrangentes de nacionalização de setores
estratégicos e à estatização de serviços públicos essenciais.
Tudo parecia sugerir, então, que o capitalismo caminharia bovinamente para o
matadouro da sucessão marxiana dos modos de produção e que as profecias marxistas sobre o
esgotamento das possibilidades produtivas do capitalismo seriam confirmadas pela
acumulação de crises recorrentes do sistema. Todas essas crises nada mais seriam do que um
simples prenúncio da crise final e derradeira que levaria de roldão o sistema condenado por
antecipação pelo demiurgo e seus discípulos. Nunca foi tão alta a crença nos diagnósticos
teóricos e nas prescrições práticas do marxismo oficial, assim como nunca foi tão elevado o

34
O conceito foi introduzido em trabalhos analíticos de James Burnham e Alfred Schandler, que
conceituaram a evolução do sistema pelo lado das empresas. Burnham, um ex-trotsquista, operou uma
critica radical do marxismo teórico e da teoria materialista da história, não pelo lado da metodologia,
mas simplesmente afirmando que os dados da história e da observação empírica não se encaixavam
nos seus preceitos evolutivos gerais.

150
prestigio dos acadêmicos marxistas nos estabelecimentos de ensino superior, virtualmente
monopólicos nas humanidades e até em alguns ramos das ciências sociais aplicadas.
O itinerário efetivo do capitalismo desmentiu, porém, os profetas do apocalipse. Mas a
evolução positiva dos sistemas de mercado não tem apenas a ver com a flexibilidade
adaptativa do modo capitalista ou com uma suposta resistência política das democracias
ocidentais. A rigor, o capitalismo enquanto sistema concreto de produção de mercadorias, não
está nem um pouco preocupado com sua evolução futura. Quem se debruça sobre essa questão
são os acadêmicos e, aqui, eles parecem ter apostado erradamente contra o sistema. O
problema a ser explicado, portanto, tem a ver muito mais com monumentais erros conceituais
da própria doutrina original, como discutiremos a seguir.

A teoria da transição e os caminhos divergentes do socialismo e do capitalismo


Uma simples constatação de ordem prática – ou seja, o teste da realidade histórica –
nos leva à conclusão inevitável de que falácia central da concepção marxista da história tem a
ver, sobretudo, com a teoria marxiana dos modos de produção, e com suas características
teleologicamente fatalistas. Karl Marx foi certamente um dos maiores ‘inventores’ da teoria
social moderna. Não lhe cabe por suposto o mérito de ter ‘inventado’ o conceito ou a
realidade mesma da luta de classes: como ele mesmo disse, os historiadores burgueses, antes
dele, já tinham se referido a essa poderosa alavanca do progresso social, essa verdadeira
‘parteira da História’, nada mais fazendo o filósofo alemão do que profetizar o final da
sociedade de classes em decorrência da revolução socialista e da ditadura do proletariado. 35
Não obstante, Marx inventou um dos conceitos mais fecundos empregados atualmente
pela ‘ciência’ histórica, qual seja o de ‘modo de produção’. Seu esboço n’A Ideologia Alemã,
e seu desenvolvimento ulterior tanto na Contribuição à Crítica da Economia Política como
em Das Kapital, representaram uma das grandes contribuições da imaginação dialética ao
discurso histórico contemporâneo. Não parece adequado estabelecer aqui a lista dos demais
conceitos criados ou desenvolvidos por Marx em intenção da ‘cientificidade’ da História, da
Economia ou da Filosofia Política, como tampouco deveria ser nossa preocupação desvendar
o conteúdo ontológico do conceito de modo de produção. Cabe, no entanto, registrar que o
discurso histórico elaborado nas academias reteve esse conceito como uma espécie de
paradigma interpretativo das diversas formas historicamente possíveis de organização social

35
Cf. Paulo Roberto de Almeida, Uma previsão marxista...”, Espaço Acadêmico (ano VI, nº 65,
outubro 2006, ISSN: 1519-6186; link: http://www.espacoacademico.com.br/065/65almeida.htm).

151
da produção, mesmo quando a ‘ciência histórica burguesa’ rejeitou a sucessão linear implícita
no esquema marxista original, ou quando a ‘ciência do materialismo histórico’, de inspiração
stalinista, atirou na lata de lixo da História o conceito de ‘modo de produção asiático’.
Durante muito tempo, intelectuais ocidentais e dirigentes do socialismo real não
hesitaram em reconhecer no modo de produção socialista uma forma superior, pelo menos em
escala histórica, de organização social da produção. Mas mesmo a acumulação de ‘crises
gerais’ no capitalismo e o movimento nacionalista e anti-colonialista dos ‘povos oprimidos’
não conseguiram abater as bases da sociedade burguesa contemporânea, o que, de certa
forma, levou a prática do socialismo real a se distanciar cada vez mais de seus fundamentos
políticos. É bem verdade que a ‘miséria da teoria’, depois de três décadas de stalinismo,
impediu o surgimento de um novo ‘revisionismo’ à la Bernstein, ou seja, uma reforma no
próprio marxismo, e o movimento ficou reduzido a uma reestruturação no modo de
funcionamento do socialismo real.
Excluindo-se a experiência iugoslava de ‘auto-gestão’, datam dos anos 1960 as
primeiras experiências de reforma no mecanismo econômico do socialismo, com a introdução
de certa autonomia na gestão das empresas e do cálculo econômico no processo de formação
de preços. Não se pode dizer que a tentativa tenha sido exatamente um sucesso, apesar de
resultados mitigados na Hungria e na Tchecoslováquia. De qualquer modo, a simples
perspectiva de um retorno a uma aplicação mesmo moderada de alguns princípios de mercado
no funcionamento do aparelho econômico socialista permitiu que fossem legitimados o
incremento do intercâmbio comercial e a expansão das relações políticas com a área
capitalista: sob a cobertura de arranjos especiais, entraram no GATT a Polônia (1967), a
Romênia (1971) e a Hungria (1973), enquanto a Tchecoslováquia mantinha seu status de
founding father (1947) dessa organização. Durante todo o período da ‘coexistência pacífica’,
encerrada a fase mais dura da Guerra Fria (até o início dos anos 1960, aproximadamente), foi
o capitalismo ocidental quem financiou o socialismo, tanto diretamente – através de acordos
comerciais e contratos de empréstimo – quanto indiretamente, pela espionagem industrial,
através da qual o socialismo minimizava sua enorme desvantagem produtiva.
O desenvolvimento das relações econômicas Leste-Oeste permitiu ganhos substanciais
às economias do socialismo real, em termos de transferência de tecnologia (adicionalmente
àquela que não passava pelos circuitos oficiais), de acesso a mercados (ainda que vigorassem
regras de salvaguarda pela não-reciprocidade) e de fluxos financeiros (provocando,
ulteriormente, algumas das maiores dívidas per capita do mundo). A rationale conceitual a
sustentar a nova ‘coexistência’ econômica entre parceiros desenvolvidos do Primeiro e do

152
Segundo Mundos se situava um pouco no universo galbraithiano da ‘convergência’ entre
sociedades industriais capitalistas e socialistas. As primeiras teriam se tornado menos
‘selvagens’, sob o impacto de políticas keynesianas de intervenção estatal; as segundas teriam
perdido muito de sua pureza doutrinária ao reconhecerem que a queda do capitalismo não
estava na ordem do dia. O utópico discurso kruschevista sobre o ‘enterro’ do capitalismo e a
vitória ‘próxima’ do socialismo foi discretamente remetido para debaixo do tapete pelo
realismo cínico e pelo totalitarismo burocrático do brejnevismo triunfante.
A partir dessa época, as sociedades socialistas, que se beneficiaram tanto quanto
inúmeros países em desenvolvimento de vários surtos de crescimento econômico e de
expansão comercial nas décadas de retomada do crescimento da economia mundial, nada mais
fizeram senão afundar-se numa lenta esclerose econômica. Já na segunda metade dos anos
1970, o Japão ultrapassava a produção bruta da União Soviética, para não falar do progressivo
gigantismo da então Comunidade Econômica Européia em face do definhamento igualmente
progressivo de seus vizinhos do Comecon. A estagnação era tanto mais visível que, em
termos qualitativos, o socialismo não estava habilitado a obter, no campo das novas
tecnologias, resultados similares ou equivalentes aos alcançados durante a fase de
industrialização pesada. 36 Cada vez mais a crise de legitimidade política do socialismo
autoritário se viu acrescida de uma crise estrutural de sua forma de organização econômica.
A sucessão marxista dos modos de produção foi, assim, progressivamente
comprometida pelo pobre desempenho, em todos os sentidos, do modo que deveria encarnar a
etapa superior de organização da sociedade. Essa constatação foi feita na prática pelos
próprios dirigentes do socialismo real, embora não se tenha traduzido em reformas profundas
– a despeito de diversos experimentos de introdução de mecanismos de mercado num
socialismo que se apresentava cada vez mais como disfuncional – por uma razão muito
simples: a contestação das bases fundamentais do socialismo real minaria ipso facto a
legitimidade política do grupo que mantinha o controle do poder, daí a perpetuação de
regimes esclerosados, até a implosão final. 37

36
Efetuei uma análise das tentativas de reforma no socialismo real neste ensaio: “Neo-détente &
Perestroika: Agendas para o Futuro”, Política e Estratégia (vol. 6, n. 1, jan-mar 1988, p. 67-74).
37
A fase agônica do socialismo declinante e sua implosão final foram por mim examinadas nesta
sequência de três artigos: “Retorno ao Futuro: A Ordem Internacional no Horizonte 2000”, Revista
Brasileira de Política Internacional (ano 31, n. 123-124, 1988/2, p. 63-75); “Retorno ao Futuro, Parte
II”, Revista Brasileira de Política Internacional (ano 33, n. 131-132, 1990/2, pp. 57-60); “Retorno ao
Futuro, Parte III: Agonia e Queda do Socialismo Real”, Revista Brasileira de Política Internacional
(ano 35, n. 137-138, 1992/1, p. 51-71).

153
Acadêmicos honestos poderiam, porém, tirar suas próprias conclusões quanto à
completa inviabilidade do sistema defendido teoricamente pelos marxistas e na prática pelos
comunistas. Alguns deles, no mundo socialista, por sua própria conta e risco, declararam que
o rei estava nu – como Leszek Kolakowski, na Polônia, por exemplo – sofrendo em
consequência retaliações materiais e isolamento social enquanto dissidentes de um regime
totalitário. Poucos, entretanto, tomaram esse caminho nos países capitalistas, posto que a
liberdade de expressão e a autonomia acadêmica asseguravam total isenção opinativa e
ausência completa de sanções em regimes geralmente abertos. Pode-se dizer que todos os
regimes possuem dissidentes, mas apenas o socialismo exibe renegados.
A experiência histórica ensina que cada vez que os fatos não se encaixam na teoria,
deve-se reformular esta última. É o que modestamente fizeram os revisionistas da linha Deng
Xiao-ping do Partido Comunista da China, e com maior ênfase ainda os burocratas e
carreiristas empenhados em aplicar o programa de reformas econômicas chinês comandado
por ele em seu início. Os burocratas chineses abandonaram completamente qualquer
pretensão de enterrar o capitalismo e se contentaram em aprender com ele. Esse fato foi
reconhecido precocemente pelo representante oficial da China Popular em Hong Kong, Xu
Jia-tun, no quadro das negociações pelo seu retorno e dez anos antes que a colônia britânica
voltasse ao seio da madre pátria; ele o fez da seguinte forma: “Alguns camaradas temem o
capitalismo, porque na verdade sabem muito pouco sobre ele. Esses camaradas não se dão
conta de que o capitalismo mudou muito desde Karl Marx. Na verdade, o sistema capitalista
moderno é a maior invenção da civilização humana” (Le Monde, 24.03.1988).
A estada do representante de Pequim na colônia inglesa de Hong Kong, que retornou
finalmente à China comunista em 1997, parece tê-lo convertido em um perito do capitalismo,
a tal ponto que Xu Jia-tun acreditava que seus camaradas de Partido deviam aceitar as críticas
formuladas contra o socialismo e se inspirar no capitalismo para transformar os métodos de
gestão econômica empregados em seu país. O representante chinês tinha certamente razão
quando disse que esse temor do capitalismo causou grandes perdas econômicas para a China.
Sua segunda frase é igualmente plena de sabedoria confuciana e até mesmo um marxista
radical como Mao Tsé-tung poderia ter concordado com ela: como Stalin, Mao sabia que o
capitalismo tinha mudado muito desde dos tempos de Karl Marx, e era inerentemente superior
em matéria de produtividade. Mas isso não os impediu de implantar o socialismo a ferro e a
fogo (com alguns milhões de mortos pelo caminho). O burocrata do Partido Comunista
chinês, deslocado para a colônia capitalista de Hong Kong, enganava-se redondamente no que

154
se refere à terceira assertiva, pois que, se há um sistema econômico inventado pelo homem,
este é, indubitavelmente, o socialismo.

155
20. A China e a maior ‘invenção’ da humanidade: capitalismo ou
socialismo?

O capitalismo, com efeito, não parece ter surgido de um projeto de sociedade


conscientemente definido, assim como seus princípios organizativos não emergiram prontos e
acabados de algum cérebro humano, por mais genial que este possa ter sido. O socialismo, ao
contrário, deriva dessa imensa vontade do homem de transformar, hic et nunc, a sociedade
real, modelando-a segundo seus valores morais e sua filosofia política, realizando no presente
aquilo que Reinhart Koselleck chamou de “projeção utópica do futuro”.38
A confusão é, no entanto, inevitável quando se lida com dois paradigmas conceituais
que, em virtude de um intenso e nem sempre qualificado uso político, perderam muito de sua
capacidade explicativa. Milton Friedman também achava que o capitalismo é uma das
maiores conquistas da civilização, apesar de considerá-lo uma instituição tão ‘natural’ quanto,
digamos, a cobiça humana. 39 A dificuldade é tanto maior quanto a chamada ‘civilização
humana’, a que se referiu o representante chinês, não costuma pautar-se em função de
conceitos teóricos elaborados por ‘inventores geniais’, mas segundo princípios bem mais
prosaicos ligados ao terreno da contingência histórica, onde o acaso e a necessidade, dois
fatores sempre presentes no mundo natural, combinam-se para produzir resultados sempre
inéditos do ponto de vista do desenvolvimento social.
Não se deduza daí que a ação humana esteja ausente dos palcos históricos. Apenas
acontece que, como diria Marx no 18 Brumário, ela só se desenvolve em circunstâncias bem
determinadas e, quando o faz, apresenta-se cingida por forças sociais bem mais poderosas,
presentes no substrato material da sociedade. Fernand Braudel dedicou parte substantiva de
sua análise sobre a formação do capitalismo europeu a desmentir a tese, de suposta
paternidade weberiana, segundo a qual determinadas seitas protestantes teriam, de alguma
forma, ‘inventado’ o capitalismo. Nada mais falacioso em termos históricos, disse o grande
historiador francês, com o que concordaria integralmente o eminente sociólogo alemão,
igualmente alertado para a ação decisiva das complexas forças materiais que moldaram a
civilização capitalista na Europa moderna. Uma das maiores preocupações intelectuais de

38
Cf. Reinhart Koselleck, Kritik und Krise: Eine Studie zur Pathogenese der bürgerlichen Welt, na
edição italiana: Critica Illuminista e Crisi della Società Borghese (Bologna: Il Mulino, 1972).
39
Cf. Milton Friedman, Capitalism and Freedom (Chicago: University of Chicago Press, 1962).

156
Weber era, contudo, a de explicar precisamente porque a forma moderna do capitalismo tinha
surgido numa sociedade de passado tão recente como a européia, ausentando-se do cenário
histórico de civilizações tão antigas como as da Índia ou da China.
O burocrata que representava Pequim junto ao Governo de Sua Majestade em Hong
Kong, em 1988, provavelmente não tinha lido Max Weber e não poderia assim apreciar
devidamente a valiosa capacidade heurística do conceito weberiano de ‘racionalidade’. Esse
conceito é, no entanto, a chave explicativa do extraordinário desenvolvimento da sociedade
ocidental, comparativamente ao das civilizações clássicas da Índia, da China ou do Oriente
muçulmano. Assim como não se pode esperar que uma sociedade ‘invente’ espontaneamente
um determinado modo de produção, por mais funcional que este seja para suas necessidades
de desenvolvimento, a aplicação do princípio de racionalidade não deriva logicamente de um
projeto humano de transformação da sociedade se ele não está entranhado no próprio ‘código
genético’ dessa sociedade. Em outros termos, a racionalidade deve estar integrada à própria
estrutura social, sem a qual ela deixa de ser operacional para o conjunto da sociedade,
produzindo efeitos apenas nos escassos setores vinculados ao padrão modernizador externo.
Este parece ser um dos muitos desafios enfrentados por diversos países em
desenvolvimento que não dispõem de capacidade para ‘digerir’ e reproduzir os padrões
técnicos envolvidos em qualquer projeto modernizador: a absorção da tecnologia estrangeira,
ou seja da racionalidade ocidental, não parece disseminar-se facilmente para o resto da
sociedade, permanecendo como uma espécie de ‘ilha de prosperidade’ num ‘oceano de
subdesenvolvimento’. Tal não foi o caso de vários ‘tigres asiáticos’ – como, por exemplo,
Coréia do Sul, Formosa, Hong Kong e Cingapura – que perseguiram um custoso, mas
consciente, esforço de adaptação aos novos requisitos do desenvolvimento econômico,
investindo recursos humanos e materiais na pesquisa e desenvolvimento das chamadas novas
tecnologias. O Brasil poderia ter realizado o mesmo itinerário bem sucedido na competição
industrial, mas seu empenho foi prejudicado essencialmente pela insuficiente preparação
técnica de seus trabalhadores – reflexo da má qualidade da educação no país – e pelo caráter
errático de suas políticas macroeconômicas e setoriais, como o descontrole inflacionário.
Que este esforço possa ser mais ou menos obstaculizado pela ação corrosiva de certos
fatores conjunturais aqui e ali – dívida externa, instabilidade política, ameaças externas, etc. –
não significa que estes países, entre tantos outros, não estejam capacitados para enfrentar o
grande desafio do desenvolvimento. Fatores de natureza estrutural também podem dificultar a
marcha do progresso econômico e social em determinadas regiões, como é o caso do baixo
nível educacional das grandes massas brasileiras, das divisões étnicas e religiosas na Índia e

157
do grande crescimento demográfico em ambos os países. Mas isto não impediu que a maior
parte desses países já tivesse incorporado em seus projetos nacionais a essência da
‘racionalidade ocidental’: a capacidade de inovar, de encontrar respostas originais aos
desafios do cotidiano, e a possibilidade de que esforços individuais sejam autonomamente
mobilizados para a consecução da maior parte das tarefas ligadas à organização produtiva da
sociedade.
Aí talvez se situasse a origem do entusiasmo do representante de Pequim em Hong
Kong com o desempenho da colônia, que deveria retornar à pátria de origem num momento
em que esta recém começava a se aproximar do modo de produção supostamente antecessor
ao que já vigorava no grande país asiático: as extraordinárias capacidades adaptativas do
capitalismo, ao longo de toda a sua história, encontram-se de alguma forma concentradas no
microcosmo étnico e social de Hong Kong, uma grande vitrina consumidora às portas do
grande socialismo pobre que era a China naquela época. Quando, em 1997, foi feita a
incorporação de Hong Kong ao domínio político da China continental, esta já tinha feito uma
notável evolução histórica para esse promontório ‘capitalista’ que era e sempre foi Hong
Kong. Desde então, por variadas formas (nem todas muito ortodoxas), a China incorporou-se
rapidamente ao grande sistema internacional capitalista a que já pertencia a ex-colônia de Sua
Majestade, tanto e tão bem que ela foi admitida no GATT – depois de 14 anos de negociações
– e aderiu à OMC em 2001, mesmo não tendo ainda obtido o seu certificado legitimador de
‘economia de mercado’, algo logrado na mesma época pela Rússia, que, com tudo isso, e a
participação no G8, ainda não conseguiu ingressar na OMC, nem na OCDE.40

A Rússia e a maior ‘catástrofe’ do século 20: 1991 ou 1917?


A China, mesmo persistindo em classificar a si mesma como um ‘socialismo de
mercado’, realizou uma transição ao capitalismo mais acabada e completa, com todos os
elementos positivos e negativos que se seguem – concentração de renda, desigualdades, etc. –
do que a Rússia, supostamente considerada uma economia de mercado, mas bem mais
distante dos componentes essenciais do sistema do que o gigante asiático. A diferença nos
processos de transformação se situa, provavelmente, na atitude dos dirigentes, aparentemente
comprometidos com o velho capitalismo de guerra, no caso da China, mas extremamente
relutantes em abraçar o sistema de exploração do homem pelo homem, no caso da Rússia; o

40
Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo”, Espaço
Acadêmico (ano 2, n. 14, julho de 2002; link: http://www.espacoacademico.com.br/014/14pra.htm).

158
exato contrário, segundo uma velha piada, do sistema alternativo que alegadamente vigorava
na finada União Soviética.
Não é preciso remontar à caótica transição do socialismo ao capitalismo operada na
Rússia dos anos 1990 para confirmar a raríssima, provavelmente inexistente, familiaridade
dos dirigentes russos com o sistema capitalista, o que é de certo compreensível: setenta anos
de socialismo – o que representa três gerações completas – apagam da memória dos homens
quaisquer comportamentos típicos do nefando sistema analisado por Marx e enterrado (pelo
menos temporariamente) por Lênin. Seja em virtude da obsessão leninista em relação ao
‘espírito do capitalismo’, seja por obra da esquizofrenia stalinista contra os ‘inimigos de
classe’ e os ‘agentes internos do adversário imperialista’, a operação de eliminação dos
vestígios do capitalismo na Rússia chegou ao nível da lobotomia coletiva. Quando ocorreu
sua conturbada saída do socialismo, a Rússia acabou derivando para um tipo de capitalismo
mafioso cujas origens sociais estão na própria nomenklatura senil que comandou o socialismo
declinante em sua fase decadente. Ainda hoje, o sistema exibe traços nunca vistos nos demais
países que transitaram do socialismo ao capitalismo no decorrer dos anos 1990,
provavelmente devido à pesada herança do socialismo soviético, ‘adotado’ por menor período
de tempo no caso dos países satélites do ex-império soviético.
Curiosamente, enquanto na maior parte dos ex-países socialistas, povo e ex-dirigentes
expressam o desejo sincero de livrar-se dos fantasmas da era soviética, na Rússia parece haver
uma nostalgia do passado comunista, a ponto de seus líderes lamentarem a perda do glorioso
império construído por Stalin e seus seguidores menos brutais. Este é, pelo menos, o sentido
transmitido pelo principal ator político russo na fase pós-Ieltsin: falando em 2005 a outros
dirigentes da Rússia, por ocasião das comemorações relativas ao 60º aniversário da vitória
aliada sobre as forças nazistas, na Segunda Guerra Mundial, em maio de 1945, o então
presidente russo, Vladimir Putin, chegou a descrever o colapso da União Soviética como
representando a “maior catástrofe geopolítica do século 20”. Sem muita modéstia, ele não
limitou a amplitude do desastre à história da Rússia e da União Soviética, apenas, mas
estendeu-o a toda era contemporânea, até dar-lhe dimensões verdadeiramente mundiais.
Pode-se concordar com o ex-presidente, agora primeiro-ministro russo, um típico
representante da antiga nomenklatura que, na finada União Soviética, trabalhava para a KGB,
o órgão de Estado que cuidava da segurança e da inteligência, com poderes muito mais vastos
– policiais, militares, repressivos, investigativos e de inteligência – do que jamais tiveram a
CIA, o M6, o SDECE e outros serviços de informação e militares do Ocidente, agregados. Foi

159
efetivamente uma grande catástrofe geopolítica, mas não com esse sentido de nostalgia, de
desalento ou de desespero que emerge da afirmação do dirigente russo.
A implosão do socialismo e a dissolução ulterior do império soviético podem ter
constituído, de fato, um enorme desastre para a nomenklatura do maior poder totalitário que
já existiu na História; mas representou, na verdade, um fato extremamente auspicioso para
todos os hóspedes involuntários do Gulag, para os povos submetidos ao arbítrio irracional de
um dos sistemas mais defraudadores das liberdades cívicas e individuais, assim como para
todos os intelectuais dignos desse nome. 1991 foi catastrófico para a ‘nova classe’ que
explorava os trabalhadores do socialismo real, mas foi um alívio para esses mesmos
trabalhadores que, segundo uma outra piada corriqueira do sistema, fingiam trabalhar, ao
passo que os primeiros fingiam que os remuneravam, segundo a teoria do ‘valor-trabalho’.
Em termos históricos, 1991 representou, de fato, uma enorme mudança nas relações
internacionais, posto que o ano encerra uma das fases mais cruciais da era contemporânea, a
do equilíbrio pelo terror nuclear entre as superpotências da Guerra Fria.41 Mas julgando-o por
seus resultados efetivos, em termos de redistribuição de poder e de integração dos mercados
capitalistas, pode-se concluir que se tratou de uma volta às origens, com a retomada da
globalização capitalista do início do século 20, e dos fluxos associados de bens, serviços e
capitais, com a possível diferença de uma preeminência econômica e militar dos EUA bem
superior àquela anteriormente exercida pela Grã-Bretanha. Embora seja possível traçar
paralelos quanto à extensão, os tipos de dominação militar e econômica, bem como sobre a
duração dos impérios britânico, de um lado, e americano, de outro, a natureza do sistema de
relações internacionais em cada época respectiva – do início do século 19 até o início da
Segunda Guerra Mundial, para o sistema imperial britânico, e desde 1945 até um futuro
indefinido, para o sistema imperial americano – torna difícil uma comparação direta entre os
dois sistemas de dominação, cada um com peculiaridades únicas e irreprodutíveis. 42
Muitos historiadores e economistas aludem ao fato de que o que ocorreu, na verdade,
foi apenas um mero fechamento de parênteses, depois de setenta anos de socialismo e de

41
Tratei de maneira sintética dessas mudanças no sistema internacional neste ensaio, “As duas últimas
décadas do século XX: fim do socialismo e retomada da globalização”. In: José Flávio Sombra
Saraiva, Relações internacionais: dois séculos de história, vol. II: Entre a ordem bipolar e o
policentrismo (1947 a nossos dias) (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, IBRI;
Fundação Alexandre de Gusmão, FUNAG; Coleção Relações Internacionais, 2001, vol. II, pp. 91-
174), e, de maneira mais extensa, neste livro: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações
internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002).
42
O historiador britânico Niall Ferguson traçou alguns desses paralelos em duas obras especificamente
dedicadas a cada um deles: Empire: How Britain Made the Modern World (London: Allen Lane,
2003); Colossus: The Price of America’s Empire (New York: Penguin Press, 2004).

160
oposição ideológica (e militar) entre o socialismo e o capitalismo. O socialismo teria sido,
assim, apenas um acidente histórico, um simples soluço, em escala geológica, na longa
trajetória política e econômica da humanidade, um pesadelo noturno no decorrer de um
itinerário bem mais ensolarado de bem-estar crescente, de maior disponibilidade de bens e
serviços globais e de interdependência real entre povos e países. O ano de 1991 representa,
portanto, apenas uma volta ao ponto de partida, retomando com novo ímpeto processos,
fluxos, contatos e tendências que tinham ficado asfixiados durante três gerações por força de
um sistema inventado por um ideólogo e implantado por outro na ponta de fuzis.
Em termos de tendências fortes do sistema internacional, 1917 representou uma
mudança bem mais relevante do que 1991, já que a primeira data rompeu com um quadro
político e um sistema econômico que vinham se desenvolvendo em planos similares e com
características crescentes de interdependência: democracias formais de mercado, adeptas do
padrão ouro e da projeção imperial, para o aprovisionamento em matérias primas e o acesso a
mercados. A Rússia de 1913 era uma das principais fornecedoras mundiais de grãos, ao
mesmo tempo em que acolhia investimentos diretos e empréstimos financeiros que
impulsionavam sua industrialização e a melhoria de sua infra-estrutura. 1917, sem considerar
a guerra, rompeu todos esses vínculos e reduziu a Rússia a um experimento único na história:
a invenção de um sistema que nunca teve precedentes na economia mundial, mesmo se o
totalitarismo político não representava propriamente uma novidade no itinerário da Rússia.
O que se seguiu a 1991 – e um pouco antes, no caso da China – foi uma reinserção na
divisão internacional do trabalho de países que tinham se afastado da economia mundial em
1917, para a Rússia, e no pós-Segunda Guerra, para os demais países. Tratou-se, para todos os
efeitos, de uma ruptura bem mais relevante, e ‘catastrófica’ em suas consequências políticas,
econômicas e sociais, do que, no caso dos países capitalistas, a Primeira Guerra ou a crise de
1929 e a depressão dos anos 1930, seguida pela Segunda Guerra Mundial. 43 Estes países,
encerrados os conflitos ou os períodos de crise, retomaram seus negócios e os intercâmbios,
ao passo que os países socialistas – a maior parte não por vontade própria, mas por ‘decisão’
do Exército Vermelho – encerraram-se numa economia de baixa produtividade e de
irracionalidades crescentes, até a esclerose final. Assim, 1991 não representou um grande
acréscimo à interdependência capitalista, em termos de produção, intercâmbio, finanças ou
know-how, mas o impacto no que se refere à mão-de-obra ou aos mercados foi relevante,

43
Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Dinâmicas da economia no século XX”. In: Francisco Carlos
Teixeira da Silva (org.). O Século Sombrio: uma história geral do século XX (Rio de Janeiro: Campus-
Elsevier, 2004), p. 47-70.

161
sobretudo no caso da China, que aumentava progressivamente seu papel de plataforma
produtiva no grande jogo da interdependência capitalista.

A transição inexistente: enterrando um mito conceitual


Ao término deste périplo analítico, pode-se perguntar se existe alguma consistência
factual ou empírica, ou até qualquer legitimidade conceitual para a metodologia histórica
marxista, consistindo em alinhar uma sucessão de modos de produção ao longo da história,
culminando com a transição do capitalismo ao socialismo, e deste ao comunismo. O próprio
conceito de modo de produção deve ser questionado, na medida em que sua utilização nas
mesmas bases metodológicas empregadas originalmente por Marx pode representar uma
camisa de força teórica que dificulta a análise de tipos específicos, híbridos ou de transição,
presentes concretamente numa formação social determinada.
Não é preciso remontar aqui ao debate estéril que travaram os primeiros ‘marxistas’
brasileiros, na primeira metade do século 20, para saber se o ‘modo de produção’ que
vigorava no Brasil colonial era ‘feudal’ – como sustentavam os ortodoxos, ou seja, os adeptos
da ciência do materialismo dialético em sua versão dogmática – ou se ele já era diretamente
‘capitalista’, como pretendiam outros, entre eles Caio Prado Jr. Jacob Gorender, um dos
marxistas que evoluiu do stalinismo para uma posição mais independente, tentou superar a
controvérsia concebendo um ‘modo de produção’ específico do Brasil colônia, que seria o
“escravismo colonial”, um novo tipo de formação social, mas ainda assim situado dentro da
categoria dos modos de produção, não infringindo, portanto, o cânone. 44 Para os comunistas
ortodoxos, o Brasil até então era definido como um “país semicolonial e semifeudal”, posição
duramente combatida por Caio Prado Jr., que dizia que os comunistas, no Brasil, tinham de
aprofundar a sua revolução capitalista, antes de se lançarem na construção do socialismo. 45
O aspecto bizarro de todo esse debate bizantino no seio da academia era que ele se
deixava agrilhoar pela camisa de força do aparato conceitual classicamente marxista, e
influenciava, além disso, as plataformas políticas e as estratégias eleitorais dos comunistas,
que não sabiam, exatamente, se deviam, ou não, fazer uma ‘aliança de classes’ com a

44
Cf. Jacob Gorender, O escravismo colonial (São Paulo: Ática, 1978). Para uma análise de seus
principais argumentos dentro do mesmo campo analítico, isto é, de uma contribuição ao estudo de uma
formação social definida como pré-capitalista, ver Mario Maestri , “O Escravismo Colonial: a
revolução Copernicana de Jacob Gorender”, Espaço Acadêmico (ano 3, parte 1: n. 35, abril 2004; link:
http://www.espacoacademico.com.br/035/35maestri.htm; parte 2: n. 36, maio 2004; link:
http://www.espacoacademico.com.br/036/36maestri.htm).
45
Cf. Caio Prado Jr., A Revolução Brasileira (São Paulo: Brasiliense, 1966).

162
burguesia – descurando por completo de perguntar, a essa mesma burguesia, se ela desejava
ter como aliado político esse personagem um pouco esquizofrênico que era o PCB. Seria
risível se não fosse patético, para os acadêmicos, obviamente. A controvérsia foi superada, na
prática, pela esclerose teórica do chamado Partidão, por sua marginalização crescente no
cenário político brasileiro por ‘seleção natural’ dos partidos mais aptos a acompanhar a
evolução social e política brasileira a partir dos anos 1970 e 80, e pelo seu desaparecimento
virtual após a implosão do socialismo real. Restaram apenas os acadêmicos marxistas, que
continuam a se digladiar em torno das ‘tarefas atuais da classe operária’, mas cujo fervor em
classificar e datar os modos de produção sucessivos presentes na formação social brasileira
parece ter amainado um pouco; a produção teórica da tribo é, de qualquer forma, medíocre.
Isso não diminui, está claro, as virtudes do conceito de modo de produção para fins de
algum trabalho analítico específico, mas seu uso acadêmico deveria ficar restrito a um tipo de
formalização histórica que emprega ‘tipos-ideais’ de organização social da produção para fins
de comparações macro-históricas. Pretender fazer, a partir daí, uma linha sucessória dos
modos de produção possíveis e factíveis de serem ‘mobilizados’ no processo histórico real
representaria, a todos os títulos, um sério reducionismo analítico e conceitual. Mas este não é
o problema principal, posto que acadêmicos sempre podem jogar com os conceitos, em total
liberdade intelectual e plena irresponsabilidade analítica, uma vez que nunca serão cobrados
pela adequação de seus argumentos ao simples mundo exterior. Seu mundo é o universo dos
conceitos, sem que estes tenham necessariamente a obrigação de expressar alguma realidade
tangível, e sua pesquisa se conforma ao estado da arte ex-ante, de preferência aquele já
consagrado em obras clássicas que necessitam simplesmente de alguma citação reverencial.
Mais complicado, porém, consiste em acreditar que a partir de 1917 ocorreu a
construção de um ‘modo socialista de produção’ como resultado de uma luta prometéica,
opondo a antiga classe de exploradores – aristocratas e burgueses, no caso da Rússia – ao
proletariado organizado em seu partido de vanguarda. Não importa se os mesmos marxistas
acadêmicos reconhecem que essa ‘construção do socialismo’ foi prematura, e que a Rússia
não era exatamente um país capitalista, como a Alemanha, preparado para a passagem
anunciada nos textos de Marx e Lênin. Esses mesmos acadêmicos dificilmente aceitariam a
hipótese de que a ‘revolução bolchevique’ representou, apenas e tão somente, um putsch bem
sucedido, empreendido por um punhado de aventureiros que soube deslanchar uma ação
decisiva no lugar certo, no momento certo. Todo o resto foi um desenrolar de episódios
circunstanciais que jamais responderam ao chamado ‘sentido da História’, mas simplesmente

163
à brutalidade da ação repressiva e militar do mesmo partido, empenhado em se apossar do
poder nas circunstâncias extremamente confusas que eram as da Rússia em 1917-18.
Nesse sentido, nunca houve, nem nunca teria havido, a qualquer título – teórico ou
prático – transição do capitalismo ao socialismo, na Rússia ou em qualquer outro formação
social passível de ser identificada a um ‘modo’ qualquer de produção que foi (indevidamente)
classificado como socialista. Tratou-se, se tanto, de uma construção artificial, um gigantesco
‘escravismo moderno’ que aprisionou as ‘forças produtivas’ e as ‘relações de produção’
nesses lugares, pelo tempo que durou a experiência totalitária. A rigor, teria sido impossível,
mesmo nos termos estritos do marxismo original, ter ocorrido, hipoteticamente, uma transição
desse tipo, posto que os pressupostos marxianos sobre o funcionamento dos ‘modos de
produção’ e sua ‘sucessão’ linear nunca receberam a crítica rigorosa que esse ideólogo
aplicou, de modo altamente duvidoso, ao seu objeto preferencial de análise: o capitalismo.
Tanto a obra reflexiva de Marx, quanto a ação prática dos bolcheviques foram
essencialmente voluntaristas e insuscetíveis de serem testadas na prática. De fato, elas nunca o
foram, pelo menos de modo ‘científico’ ou consensual, senão a partir de altas doses de
violência concentrada, como ocorreu ao longo de toda a experiência soviética, no decorrer de
três gerações inteiras de construção falimentar de um edifício irrealista, a partir de suas
próprias fundações. Seus ‘engenheiros’ autoproclamados nunca receberam uma ‘carta-
patente’ – ou autorização certificada – seja da parte de ‘calculistas’ acadêmicos, seja da
população objeto de seus experimentos, posto que esta foi desprovida, ao longo de toda a
experiência, da livre expressão democrática, em pleitos concorrenciais, como sempre ocorreu
no parlamentarismo capitalista. O empreendimento como um todo era singularmente frágil,
tanto em sua modelagem teórica quanto em sua implementação efetiva, existindo sérias
dúvidas, ainda quando Marx era vivo, se suas propostas de organização social da produção,
sem extração de ‘mais valia’, poderiam ser sustentadas na prática. As críticas formuladas ao
edifício teórico do marxismo por economistas contemporâneos como Mills ou, pouco depois,
por Vilfredo Pareto, nunca foram respondidas ou sequer consideradas por Marx ou seus
discípulos. Estes, numa demonstração de autosuficiência intelectual pouco compatível com as
regras de qualquer trabalho acadêmico digno desse nome, simplesmente se fecharam em sua
carapaça conceitual e analítica, recusando um debate sério com a ‘economia política
burguesa’, num trabalho autocircular que até hoje se mantém em sua essência.
Quando às aventuras econômicas de Lênin, elas foram precocemente desacreditas, no
plano puramente técnico, por um seu contemporâneo: Ludwig Von Mises. O então jovem
economista austríaco já tinha alertado, em 1919, quanto à impossibilidade prática do ‘modo

164
de produção socialista’, tal como concebido por Lênin e seus conselheiros econômicos. A
razão estava, simplesmente, na ausência completa dos sinalizadores essenciais a qualquer
atividade econômica racional: os preços dos insumos produzidos e dos bens ofertados, que
são normalmente formados num mercado submetido às leis da oferta e da procura. Preços
administrados por burocratas jamais conseguiriam traduzir o princípio básico da economia,
que é a lei da escassez. Von Mises antecipou, desde essa época, que o empreendimento nunca
poderia funcionar em bases sustentáveis, mas ele foi solenemente ignorado por aqueles
mesmos aos quais era dirigido seu panfleto, durante toda a vigência da terrível experiência de
involução econômica.46 Talvez fosse útil, atualmente, a releitura dos seus argumentos, para
ver o quanto erraram, desde o princípio, os construtores da nova ordem econômica.
Tudo isso não significa, obviamente, que o capitalismo seja ‘eterno’, ‘invencível’, ou
insubstituível. Mas esse tipo de questão não deveria sequer ser colocado nesses termos, de
sucessão obrigatória de um ‘modo de produção’ por outro, questão quase filosófica que
apenas ideólogos sonhadores teimam em oferecer nos supermercados da História. Como
sabem todos os intelectuais sérios, os processos históricos são sempre únicos e originais, não
sendo suscetíveis de prefigurações arbitrárias. A famosa frase, de suposta paternidade
marxiana, de que a História se repete, representa nada mais do que isso, uma frase, bem mais
para o lado da farsa do que para representações trágicas. Aliás, a história dos capitalismos
realmente existentes está, como se sabe, entrecortada de rupturas e de transformações, tão
importantes e cruciais quanto as utopias desenhadas por Marx e seus seguidores.
Ao longo de vários séculos de ‘formatação’ tentativa, o capitalismo – um sistema
absolutamente impessoal e aleatório, à maneira do ‘relojoeiro cego’ darwiniano – assumiu
diversas roupagens e modalidades, sempre dobrando-se aos imperativos maiores da economia
de mercado (que é o seu mecanismo seletivo ‘natural’). O ‘pecado’ maior dos marxistas
puramente teóricos foi o de ter, em primeiro lugar, sobrevalorizado o poder do capitalismo no
contexto das economias de mercado; e de ter, em segundo lugar, transformado um mero
sistema de organização social da produção em um poderoso superlativo conceitual,
praticamente equivalente a toda a economia de mercado, quando ele nada mais é do que uma
de suas formas especiais (como já ensinou Braudel). Convertido, assim, em um deus ex
machina providencial, o conceito marxiano foi submetido a toda uma série de distorções

46
Ver o opúsculo analítico de Ludwig von Mises, O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista
(1920), disponível em inglês no site dedicado às obras desse economista: www.vonmises.org. Para
maiores elaborações em torno do mesmo tema, ver meu ensaio “Falácias acadêmicas, 8: os mitos da
utopia marxista”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 96, maio 2009; disponível:
http://www.espacoacademico.com.br/096/96pra.pdf).

165
teóricas, inclusive as que foram aqui abordadas, sobre sua sucessão ‘inevitável’, sem esquecer
suas muitas manipulações meramente descritivas, sob o bisturi de discípulos menos instruídos
em metodologia histórica.
É de se esperar que os atuais sucessores do marxismo estabelecido sejam mais
cuidadosos, senão no terreno da prática, pelo menos no plano da elaboração teórica, evitando,
assim, incorrer em novas falácias acadêmicas nesse terreno áspero da hermenêutica
histórica.47 A conferir...
Brasília, 26 de julho de 2009.

47
Não se deve confiar muito, porém: um representante distinguido da tribo, Frederic Jameson,
pretende, assim, que “um capitalismo pós-moderno exige necessariamente que se lhe contraponha um
marxismo pós-moderno”, o que, obviamente, não quer dizer rigorosamente nada. Cf. Cesar Altamira,
Os Marxismos no Novo Século ( Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008); citação extraída do
Prólogo de Antonio Negri, que parece concordar com esse inútil jogo de palavras; cf. p. 13.

166
21. O mito do socialismo de mercado na China

1. Introdução: uma falácia legitimadora da transição ao capitalismo


Sessenta anos atrás, no primeiro dia do mês de outubro de 1949, Mao Tse-tung, líder
dos comunistas chineses, anunciava a fundação da República Popular da China, no
seguimento da expulsão das tropas do general nacionalista Chiang Kai-chek do continente,
depois de anos de guerra civil, dando início, assim, a um novo tipo de comando político na
longa série histórica das dinastias chinesas. Depois de 4 mil anos de regime imperial e de
algumas poucas décadas de sistema republicano anárquico, a partir de 1911, a China começou
a experimentar um novo tipo de monarquia absoluta: a comunista. Na verdade, nada de muito
diferente, enfim, em relação ao tipos tradicionais de ‘despotismo oriental’ que sempre
caracterizaram o assim chamado ‘Império do meio’.
De fato, as mudanças no plano político não foram tão importantes quanto a radical
alteração no sistema econômico da velha China: a autocracia, temporariamente interrompida
pelo experimento caótico da República de Sun Yat-sen, apenas continuou sua marcha
ininterrupta, provavelmente intensificada, em direção a mais autocracia. Quanto ao sistema
econômico, a China estava prestes a embarcar num dos mais espetaculares desastres
econômicos já conhecidos na história humana: o modo socialista de produção, inteiramente
concebido e implementado por homens de boa vontade (ainda que de vontade férrea, como
convém a devotos convencidos).
Com efeito, se outros experimentos centralizadores e concentradores no domínio
econômico também produziram pequenas e grandes catástrofes – como os sistemas fascistas
do entre guerras, bem como o próprio socialismo soviético, convertido em escravismo
moderno desde o início da industrialização forçada de Stalin – ao longo de suas histórias
respectivas, poucas aventuras humanas igualaram o monumental fracasso econômico e social
que foi o experimento socialista chinês, em sua modalidade específica de maoísmo delirante.
A questão tem a ver mais com a dimensão própria da China – quase um quinto da humanidade
e, até o século 18, praticamente um terço do PIB mundial – do que propriamente com a
natureza do experimento, que seguia, em princípio, as recomendações marxistas e leninistas
aplicáveis a essa espécie de aventura política, social e econômica.
Os historiadores – e o demógrafos, naturalmente – ainda não possuem os números
definitivos, mas é provável que a trajetória maoísta no novo império socialista tenha

167
provocado – entre mortes ‘morridas’ e mortes ‘matadas’ – algo como 50 a 60 milhões de
vítimas, o que faz de Mao Tse-tung o campeão absoluto no registro das mortandades
provocadas pelo homem ao longo do século 20, bem à frente de Hitler e de Stalin. Entre os
mortos de fome e por canibalismo do “grande salto para a frente”, entre o final dos anos 1950
e começo dos 60, passando pelos assassinados e massacrados da revolução cultural, de
meados dessa década, e todos os encarcerados e reprimidos do Gulag chinês ao longo de 30
anos, o maoísmo conseguiu drenar como poucas dinastias antigas as veias da sociedade
chinesa, mais em todo caso do que todas as hordas de hunos, de Gengis Khan a Tamerlão e
outros bárbaros menos famosos (a popularidade deles sempre dependeu de Hollywood, como
se sabe).48
Não é o caso de explicitar agora a longa sucessão de desastres que representou o
socialismo chinês, pois o que está em causa, aqui, é o mito do socialismo de mercado,
explicitamente defendido como o modelo ideal pelos novos mandarins e, enquanto tal, aceito
como verdade pelos novos guardiões do templo ideológico do socialismo. Trata-se de um
amálgama que representa uma contradição nos termos, posto que o socialismo sempre
representou a negação mesma da economia de mercado.
Na verdade, o socialismo não tem tanto a ver com o mercado – que constitui, tão
simplesmente, um espaço público de trocas, podendo ser aplicado, portanto, a qualquer
sistema econômico – e sim, com formas ou regimes de propriedade. Assim, o socialismo não
se opõe ao mercado, mas ao capitalismo: enquanto o primeiro se fundamenta na apropriação
coletiva dos meios de produção – e mais exatamente na propriedade estatal, dadas as
características dos vários sistemas existentes – e na distribuição regulada coletivamente (isto
é, por burocratas do Estado) dos bens e serviços produzidos no mercado, o segundo tem como
princípio básico, como é conhecido, a apropriação privada dos mesmos meios e bens finais do
processo produtivo, segundo regras e contratos garantidos pelo Estado. Isto não é novidade
para os acadêmicos da área: trata-se, aliás, do ABC do marxismo oficial, que figura em
qualquer cartilha do gênero, muito em voga nos anos 50 e 60 do século 20. Não sei se jamais
existiram manuais a respeito – do tipo The Idiot’s Guide to Build your Own Socialism – mas
eu me lembro de ter lido, muitos anos atrás, vários livros da Academia de Ciências da URSS
que traziam considerações doutas sobre a construção do socialismo e o aperfeiçoamento da

48
Uma tentativa de balanço, certamente ainda não definitiva até abertura dos arquivos do regime
comunista chinês e até trabalhos mais acurados dos demógrafos profissionais, do custo humano do
experimento comunista na China foi efetuada por Jean-Louis Margolin, no capítulo “Chine: une
longue marche dans la nuit”, In: Stéphane Courtois et alii (orgs.), Le Livre noir du communisme.
Crimes, terreur, répression (Paris: Robert Laffont, 1997).

168
organização social da produção nesse tipo de sistema.
Não é caso de efetuar agora um balanço de todas as experiências conhecidas, mas de
simplesmente examinar a última falácia em voga na academia, a que pretende que a China
está construindo um socialismo de mercado. Essa designação, que pode ser reconfortante para
os que ainda se apegam à idéia que o socialismo possa ser funcional para qualquer objetivo
econômico racional, nada mais representa do que uma forma de legitimação social para uma
dominação política de tipo autocrático. Um breve exame da trajetória do pretenso socialismo
de mercado pode contribuir para o desmantelamento dessa falácia.

2. O surgimento do socialismo na China: uma parte dos equívocos do século 20


A construção do socialismo em diversas sociedades contemporâneas é parte integrante
da história intelectual do marxismo-leninismo, que pretendeu tanto ser um componente
teórico do marxismo aplicado – inovando em relação ao partido político da classe operária,
por exemplo –, quanto uma forma de organização social e política alternativa às democracias
burguesas e aos regimes econômicos de mercado. As propostas originais marxistas sempre
foram muito sedutoras, a ponto de terem convencido milhões de pessoas ao redor do mundo,
desde o último terço do século 19 até os nossos dias, praticamente; assim como as propostas
leninistas de tomada do poder e de construção do socialismo pareciam ser eficientes o
suficiente para mobilizar muitos militantes da causa marxista em praticamente todos os cantos
do planeta.
Não é preciso retomar as prescrições marxistas quanto ao futuro brilhante da
humanidade sob um regime socialista, pois isso é suficientemente conhecido de todos os
acadêmicos: sociedades racionais, sem acumulação privada de riqueza, de meios de produção
e, sobretudo, de bens e serviços (que seriam todos coletivos); inexistência de exploração do
homem pelo homem – já tratada em outro texto desta série – e eliminação da alienação (para
os que se preocupam com essas angústias espirituais). A União Soviética representou, durante
largo tempo e graças a maciços esforços de propaganda, a mais fundada esperança de que
essas idéias generosas pudessem ser colocadas em prática e, sobretudo, de que elas
redundariam, com sua implementação, num sistema melhor economicamente, mais equânime
do ponto de vista social, politicamente mais justo, mais eficientemente produtivo, enfim,
superior ao velho capitalismo e às democracias burguesas, os quais pretendia substituir.
Tampouco é preciso elaborar sobre o desempenho efetivo – a todos os títulos
catastrófico – dos sistemas criados com base nessas idéias, em termos de eficiência produtiva,
de liberdades elementares, de disponibilidade de bens e serviços, enfim, o que se considera

169
serem os requisitos básicos de sistemas normais de organização social da produção e de
funcionamento da representação política dotada de alguma legitimidade. Não cabe aqui fazer
o relato da monumental fraude que representaram todos os experimentos fundados no
marxismo-leninismo, nem do fracasso extraordinário que eles significaram para centenas de
milhões de pessoas, em várias longitudes e latitudes, tanto porque poucos restaram para contar
a história. Com perdão pela redundância, são evidências tão evidentes, do ponto de vista
documental e histórico, que não cabe discussão a esse respeito. Assim, os acadêmicos que
ainda continuam a propagar a idéia e o objetivo do socialismo, com base nos mesmos
princípios e valores, só podem ser considerados ou néscios absolutos, ignorantes da forma
mais elementar possível, ou, então, desonestos intelectualmente, adeptos do auto-engano e da
fraude intelectual. Não creio haver outras hipóteses, fora esses dois tipos de alienação.
Houve um tempo, porém, em que se consideravam plausíveis, ou mesmo possíveis,
essas alternativas políticas e econômicas ao velho capitalismo e às democracias burguesas,
justificando, portanto, um enorme esforço para sua implementação pelos devotos militantes da
causa. Foi assim na China, como em outros lugares, inclusive no Brasil, quando em 1935 se
tentou o “assalto ao céu” em busca do sistema perfeito de organização social da produção e de
reformulação do sistema político. É óbvio que na República Popular da China o impacto das
mudanças no sistema internacional foi muito maior, tendo em vista o “peso intrínseco” do
país, sua condição de membro do Conselho de Segurança – condição, aliás, retida pela
República da China, instalada em Taiwan, até o início dos anos 1970 – e outras considerações
estratégicas de âmbito regional e até mundial (envolvendo basicamente os Estados Unidos, a
única superpotência econômica, militar e tecnológica em condições de conter a alternativa
socialista ao seu próprio sistema político-econômico).
Que a implantação do socialismo tenha sido um equívoco – corrigido depois pela via
natural da evolução dos sistemas econômicos ou por uma ruptura de natureza essencialmente
política no final dos anos 1980 – não cabem mais dúvidas, embora acadêmicos alienados
ainda mantenham ilusões a esse respeito. O socialismo não resolveu nenhum dos problemas
econômicos, sociais ou políticos para os quais ele tinha a pretensão de oferecer soluções mais
‘eficientes’ do que aquelas apresentadas pelo sistema capitalista e pelas democracias
burguesas, e ainda criou outros problemas, de trágicas consequências para seus “usuários” e
“clientela”. Seus “usuários”, obviamente, são, ou eram, os militantes da causa e os dirigentes
dos processos, sendo a “clientela” representada por uma população passiva alcançada ou
atingida pelas mudanças implementadas. No caso da China, estamos falando de algumas
centenas de milhões de pessoas, em algum momento capturadas no redemoinho monumental

170
que representou a construção do socialismo naquele imenso país (com projeção também para
outros povos, no Tibete, por exemplo, na Coréia e na própria China, como os uigures).

3. Os desastres verdadeiramente desastrosos e cumulativos do socialismo chinês


Apenas para resumir a história, digamos que o socialismo chinês representou um
atraso, absoluto e relativo, de enormes consequências para o povo daquele país, traduzido em
recuo econômico, perda de patrimônio material, retrocesso cultural e ausência completa de
liberdades elementares (política, religiosa, por exemplo) que, de resto, jamais existiram na
China. Não pretendo retomar os dados econômicos básicos dessa decadência, que, aliás, se
estenderam por um período de tempo bem maior do que a simples implantação tentativa do
comunismo. Mas é suficiente lembrar que o PIB da China passou a representar uma fração
mínima do PIB global (e a consequente diminuição dessa riqueza expressada em termos per
capita), com um alheamento quase completo do país da maior parte dos fluxos internacionais
de produção científica, de inovação tecnológica, de interdependência econômica e financeira,
de intercâmbios culturais, etc.
Pode-se considerar que, mesmo a um terrível custo humano, os camponeses
miseráveis da China tenham sido retirados de uma miséria ancestral por um regime que se
pretendia igualitário e modernizador. O problema dessa tese, de duvidosa consistência
empírica e baixo conteúdo moral, é que ela considera que o capitalismo, deixado a seu próprio
curso ‘natural’, teria sido incapaz de modernizar a agricultura, de industrializar o país, de
promover a criação e a distribuição de riquezas e de inserir a China no sistema estratégico da
interdependência global, ou, alternativamente, que ele teria sido menos eficiente do que o
socialismo em cumprir a mesma missão histórica. O reverso da moeda é a admissão de que foi
preciso uma brutal supressão de todas as liberdades supostamente ‘burguesas’ para que o
‘gênio socialista da história’ conseguisse cumprir essas missões complexas, de enorme
impacto social. Esse tipo de argumento oportunista reverte em considerar como desprezível o
destino de algumas dezenas de milhões de pessoas – nunca é demais sublinhar as dezenas de
milhões de vitimas, um caso de mera estatística, segundo pretendia Stalin – para fins da causa
pretendida.
Para justificar os adjetivos desta seção, vale talvez relembrar alguns números. O clima
de terror criado logo após a tomada do poder pelas tropas de Mao, com o início turbulento da
reforma agrária, representou algo em torno dos dois milhões de mortos em decorrência dos
abusos do sistema de trabalho escravo. Um observador francês registrou os “gritos da
multidão ‘sha! sha!’ [mate, mate], as lamúrias daqueles lapidados ou batidos à morte em cada

171
canto, durante todo o dia.”.49 Muitos agricultores no campo e mercadores nas cidades,
confrontados à nova situação, cometeram suicídio para não ter de se submeter ao novo
regime.50 O ‘grande salto para a frente’, executado sem qualquer planejamento e “produto de
uma visão social utópica”, segundo um historiador, cobrou um alto preço em sangue. 51 Como
sintetizou o mesmo historiador, “as estatísticas de mortalidade publicadas no começo dos
anos oitenta mostram uma ascensão substancial da taxa de mortalidade para 1959-1961, que
os demógrafos calculam que indicam 15 milhões de mortes relacionadas com a fome.
Tomando outros fatores em conta, alguns pesquisadores concluíram que pereceram umas 30
milhões de pessoas”.52
A ‘revolução cultural’ ocupa um capítulo à parte na história da China comunista,
talvez nem tanto pelo número de vitimas – que provavelmente não conseguiu superar o do
‘grande salto para a frente’ –, mas mais precisamente pelo enorme atraso cultural, intelectual
e científico que ela provocou. Pelotões de guardas vermelhos percorriam instituições públicas,
destruindo arquivos, batendo em professores, expulsando trabalhadores ‘intelectuais’ de seus
locais de trabalho e mandando-os violentamente para aldeias recuadas do imenso interior
atrasado. Como escreveram dois historiadores: “as hostilidades voltavam-se não apenas contra
os antigos costumes, mas focavam também os estrangeirismos. O anti-intelectualismo foi
acompanhado pela xenofobia”. 53 Essas loucuras duraram não apenas o tempo ‘oficial’ da
revolução cultural – teoricamente três anos, de 1966 a 1969 –, mas estenderam-se até meados
da década seguinte, durante a vida de Mao e mais um pouco. Apenas em 1979 tem início uma
volta à ‘normalidade’, com a ascensão de Deng Xiao-ping ao comando do Partido Comunista.

4. A longa marcha da China em direção ao capitalismo: nada de muito glorioso


Depois do terror jacobino e do Termidor burocrático, a China conseguiu, finalmente,
restabelecer a ordem no país e um começo de normalidade nas suas relações internacionais. O

49
Cf. R. L. Walker, China Under Communism: The First Five Years (Mystic, Conn.: Verry, 1956), p.
219.
50
Cf. W. Scott Morton, China: Its History and Culture (3a. ed.; New York: McGraw-Hill, 1995), p.
205. Esse autor estima que 1,5 milhão de pessoas foram executadas durante os primeiros anos da
reforma agrária. Jean-Louis Margolin, em seu estudo já citado, praticamente dobra esse número.
51
Cf. Maurice Meisner, La China de Mao y después: una historia de la República Popular (Córdoba:
Comunicarte, 2007), pp. 225 e 271, citando o trabalho de Thomas Bernstein, “Stalinism, famine, and
Chinese peasants: grain procurements during the Great Leap Forward”, Theory and Society, vol. 13, n.
3 (l984), p. 339-377.
52
Cf. Meisner, op. cit.. p. 270, fazendo referência ao livro de Judith Bannister, China’s Changing
Population (Stanford: Stanford University Press, 1987).
53
Cf. John King Fairbank e Merle Goldman, China: Uma Nova História (Porto Alegre: L&PM, 2006),
p. 363.

172
presidente Jimmy Carter estabeleceu relações diplomáticas com a China em 1978 – os EUA já
tinha apoiado a volta da RPC à ONU, e ao seu Conselho de Segurança, desde a visita de
Nixon à China em 1971 – convidando Deng para visitar os EUA, o que ele fez, com grande
sucesso, em 1979. Datam desse mesmo ano as mais importantes decisões tomadas pelo novo
líder no sentido de mudar radicalmente as orientações de política econômica da China, de
modo a superar o seu imenso atraso tecnológico e cultural. Uma pequena guerra de fronteira
contra o Vietnã, nesse mesmo ano de 1979, convenceu Deng de que o estado do Exército
Popular tampouco era dos mais confiáveis.
Os dez anos seguintes foram consagrados à tarefa de construir um “novo comunismo”,
na verdade uma revolução completa nos dogmas e princípios do marxismo-leninismo até o
seu mais completo abandono – sem jamais explicitar o movimento – no curso dos anos 1990 e
milênio atual. A “modernização socialista”, na verdade, teria de ser baseada nos esforços
individuais, a começar pela liberdade dada aos camponeses de cultivarem suas próprias terras
– ainda teoricamente propriedade coletiva, ou do Estado – e comercializarem seus produtos
livremente nos mercados locais. A autoridade econômica, antes centralizada nos órgãos de
planejamento do Estado e controlada diretamente pelo Partido Comunista, foi dispersada nas
províncias, condados e nas próprias unidades econômicas independentes. Os bancos deveriam
operar de forma autônoma, controlando seus próprios empréstimos e cash flow. O sistema
tributário foi completamente reformulado, para coletar impostos de empresas e cidadãos, e
incentivos fiscais começaram a ser concedidos a empresas e indivíduos, para promover o
desenvolvimento econômico. Mais importante, um regime diferenciado foi criado para
acolher investimentos estrangeiros: primeiramente no quadro de um sistema restrito às zonas
de processamento de exportação das regiões costeiras – tirando proveito, portanto, das velhas
teorias ricardianas; depois, ampliando cada vez mais a captação para outros setores e regiões
do país. Não é preciso lembrar que saúde e educação são pagas pelos seus usuários.
Para resumir, todo o processo ocorreu no sentido do afastamento do planejamento
centralizado da economia, como requeriam os antigos preceitos marxistas, em direção da
liberdade de iniciativa e da constituição de empresas privadas, nacionais e estrangeiras. Nesse
movimento, alguma corrupção é inevitável: muitos “investimentos estrangeiros” eram, na
verdade, recursos de chineses – até do Partido, eventualmente – que ‘passeavam’ por Hong-
Kong antes de retornarem ao país, travestidos de capital estrangeiro, com todos os benefícios
fiscais e tributários associados a esse estatuto. Era inevitável que a concentração de renda
caminhasse rapidamente, ainda mais rápido do que o crescimento da riqueza global e da renda
per capita: com efeito, a China é, ademais da economia de mais rápido crescimento na história

173
econômica mundial, o país no qual o índice de concentração de renda – coeficiente de Gini –
avança mais aceleradamente para patamares africanos (ou brasileiros).
A única coisa que não avançou, obviamente, foi a democracia, com a preservação do
mesmo sistema autocrático que a China conhece há milhares de anos, virtualmente em toda a
sua história. O movimento estudantil simbolizado nos manifestantes da praça da Paz Celestial
(Tian An-men) intentou reproduzir, em 1989, as mesmas demandas que tinham mobilizado o
movimento estudantil ‘Quatro de Maio’, de 1919, em torno das liberdades democráticas e da
democracia política. Desta vez, Deng Xiao-ping não exibiu o mesmo reformismo que ele
preferia na área econômica, mas mandou o exército reprimir o movimento. Curiosamente, no
mesmo momento, o reformista soviético Mikhail Gorbachev visita a China para uma
conferência econômica de “reforma do socialismo”, totalmente obscurecida por uma marcha
de mais de um milhão de estudantes em 17 de maio de 1989. Os protestos, já estendendo-se a
outras cidades, foram suprimidos, ao custo de milhares de mortos, entre os dias 4 e 5 de
junho. Depois disso, a China e os chineses se concentraram em ganhar dinheiro e prosperar
individualmente, segundo o novo preceito propagado pela liderança de Deng Xia-ping: “ficar
rico é glorioso”. Dixit!

5. Existe “socialismo de mercado” na China?; se existe, não é socialismo


O mesmo Deng Xiao-ping, ao lançar o seu movimento pela reforma do socialismo,
que redundou, de fato, na restauração do capitalismo, teria dito que “não importa a cor do
gato, desde que ele saiba caçar ratos”. Ou seja, depois de anos de centralização, estatização e
planejamento, os dirigentes chineses soltaram os controles e deixaram que a própria
população se envolvesse na gigantesca tarefa de despertar a China de um longo sonambulismo
socialista, para um vibrante dinamismo capitalista. A imensa diáspora chinesa, existente desde
séculos na Ásia Pacífico e desde longos anos em países ocidentais, contribuiu enormemente
para essa tarefa, assim como o fato de que o estatuto autônomo de Hong-Kong, como núcleo
central do capitalismo de mercado, tenha sido preservado mesmo depois do retorno da ex-
colônia britânica à soberania da República Popular. Capitais estatais chineses, recursos de sua
diáspora empreendedora e investimentos diretos estrangeiros determinam, assim, uma marcha
frenética da China de volta ao capitalismo, do qual ela se afastou numa das grandes
revoluções sociais do século 20.
Não obstante, o ritmo da restauração capitalista na China importa menos, para esta
discussão, do que o problema conceitual – que constitui uma falácia acadêmica, em nossa
definição – de saber se a China é, ou não, um socialismo de mercado. Se partirmos da

174
definição primária de economia socialista – a de um sistema centralizado baseado na
apropriação coletiva dos meios de produção e orientado não pelo lucro para a suposta
satisfação das necessidades sociais – é fácil de concluir que a China não é mais um país
socialista. Mas ela tampouco responde à definição clássica do que seja uma economia
capitalista, ou seja, um sistema descentralizado, no qual as decisões econômicas mais
relevantes são tomadas por milhares de agentes privados interagindo no mercado e motivados
unicamente pelo lucro. O que existe, de fato, é um desenvolvimento gradual e linear da
economia de mercado, com crescente privatização das empresas estatais e liberdades
ampliadas ao setor privado, mas com amplo controle e monitoramento por parte dos
burocratas do Partido Comunista.
O processo é inédito em termos históricos, sem dúvida alguma, e vem se
desenvolvendo gradualmente, sob o estreito controle do Partido Comunista. Aliás, desde
1984, o 12o. congresso do Partido introduziu a idéia de uma “economia planificada de
mercado”. Quase ao mesmo tempo eram ampliadas as zonas especiais voltadas para o
investimento estrangeiro e abolido o sistema de pagamento igualitário de salários. No
congresso seguinte do Partido, em 1988, a orientação principal de política econômica passa a
ser a de uma “economia voltada para as exportações”. A queda generalizada das economias
socialistas da Europa central e oriental, a partir do ano seguinte, leva os dirigentes chineses a
acelerar o processo de vinculação da China às economias desenvolvidas do Ocidente.
Finalmente, é no 14o. congresso do PCC, em 1992, que Deng Xiao-ping proclama a nova
doutrina, segundo a qual a intenção seria criar uma “economia socialista de mercado com
peculiaridades chinesas”. 54
O que ocorreu, desde então foi uma aceleração das privatizações e a adoção de uma
regulação de fato mais aberta das principais relações econômicas, que tendem a se basear
mais em contratos de direito privado do que em determinações estatais. Todo o processo vem
sendo conduzido sob o conceito de gaizhi, um termo chinês que significa “transformando o
sistema”, ou seja, a reconversão das empresas de Estado em entidades privadas, envolvendo
falências, liquidações, conversão de dívidas por ações, vendas diretas a particulares (nacionais
ou estrangeiros) e leilões de empresas públicas, com todos os seus ativos e obrigações. “Em
muitos casos, o gaizhi envolveu privatizações completas”; mas “os programas são geralmente

54
Uma análise trotsquista da transição chinesa ao capitalismo, com todos os cacoetes do gênero, pode
ser encontrada neste artigo da revista italiana Foice e Martelo: “La lunga marcia della Cina verso il
capitalismo”, FalceMartello, mensile marxista per l’alternativa operaia (Agosto 2006; disponível:
http://www.marxismo.net/content/view/2169/130/).

175
graduais, embora bem mais amplos e mais produtivos do que as medidas de privatização na
Europa oriental e na antiga União Soviética”. 55
Pragmaticamente, os líderes comunistas chineses chegaram à conclusão de que a
melhor forma de preservar a eficiência e a viabilidade das empresas chinesas e, portanto, de
estimular o vigor e o desempenho da economia nacional, é entregar as antigas empresas
estatais para a gestão privada. Aparentemente, dos quatro Brics, a China é o único país que
acredita firmemente no capitalismo e se encontra ativamente empenhada em promover a
economia privada no contexto da globalização: tanto a Rússia, quanto o atual governo do
Brasil e, parcialmente, a Índia mostram certa relutância em abraçar os princípios da
concorrência capitalista no plano mundial, quando não estão empenhados, como na Rússia e
no próprio Brasil, no ativo retorno do Estado ao seu antigo papel empreendedor e organizador
da economia de mercado. Se a China deve ser, ou não, chamada de “socialismo de mercado”
parece ser, no estado atual do processo econômico chinês, algo absolutamente irrelevante,
tantos são os sinais de que ela pretende ocupar plenamente espaços na economia global do
século 21.56

6. Reconciliando o mito com a realidade: de volta ao velho e duro capitalismo


Se acreditarmos que uma economia de mercado é aquela na qual as principais relações
de compra e venda de bens e serviços se fazem em mercados livres, então a China é bem mais
capitalista do que o Brasil. Os trabalhadores, como diria Marx, vendem livremente sua força
de trabalho no mercado; a educação e a saúde são inteiramente pagas pelos indivíduos – ao
contrário do que diz, por exemplo, a Constituição brasileira, que assegura esses ‘direitos’ dos
cidadãos e ‘deveres’ para o Estado; e as milhares de ‘empresas de cidades e de aldeias’ que
surgiram desde os anos 1990 funcionam inteiramente de acordo com princípios privados,
ocupando todos os nichos que em outros países são ainda monitorados pelo Estado (como a
construção residencial, os serviços de infra-estrutura, as comunicações, etc.).
Os puristas poderão dizer que os líderes chineses estão usando o Estado para criar um
capitalismo com características chinesas. Se isso é verdade, o conceito de ‘socialismo de
mercado’ perde inteiramente qualquer significado, em detrimento do socialismo e em favor de

55
Cf. Ross Garnaut, Ligang Song, Stoyan Tenev, and Yang Yao, China’s Ownership Transformation:
Process, Outcomes, Prospects (Washington: International Finance Corporation; Australian National
University; China Center for Economic Research; Peking University, 2005; disponível:
http://www.ifc.org/ifcext/publications.nsf/Content/China_Ownership_Transformation), p. xi.
56
Para uma síntese atual do desenvolvimento chinês, ver o pequeno livro do especialista britânico
Rana Mitter, Modern China: A Very Short Introduction (Oxford: Oxford University Press, 2008).

176
mais mercado. O que se tem, de fato, é uma economia de mercado com forte regulação estatal
(ainda) e muito pouco socialismo (se algum). O mais relevante a ser registrado é que mesmo
as grandes corporações chinesas, que são teoricamente estatais, se relacionam com suas
congêneres ocidentais (e japonesas) em bases inteiramente capitalistas, visando unicamente o
lucro e sua expansão em novos mercados. O sistema de propriedade, neste caso, torna-se
praticamente irrelevante, posto que a maior parte das grandes corporações ocidentais também
têm o seu capital diluído por milhares de acionistas, o que faria delas, teoricamente, entidades
com características de “propriedade social”.
Se adotarmos o esquema original marxista sobre a transformação das relações sociais
de produção, com base no desenvolvimento das forças produtivas, que produziriam, então, um
conflito com as antigas formas de propriedade existentes no modo de produção em vigor –
uma análise feita no prefácio da Contribuição à Critica da Economia Política, de 1859 – ,
somos forçados a concluir que a China se encontra na passagem ou no limiar de um novo
modo de produção. Se todas as constatações que fizemos se sustentam empiricamente, então é
inevitável concluir que a China está atravessando uma ‘revolução social’ e se transformado
rapidamente em uma economia capitalista de mercado; bem mais, em todo caso, do que o
Brasil, que opera atualmente uma pouca discreta transição para uma economia de nítida
predominância estatal (ou, pelo menos, mais controlada pelo Estado do que a chinesa).
Só podemos desejar muita felicidade e sucesso ao povo chinês, neste programa
‘marxista’ que o Partido Comunista da China empreendeu no sentido de transformar
radicalmente toda a sua imensa superestrutura, mesmo se os puristas acadêmicos interpretam
o processo como uma espécie de contrarrevolução. Como sempre, os acadêmicos estão
errados, uma vez que eles não contemplam a realidade com base em simples constatações
materiais, empíricas, e preferem preservar seus conceitos ultrapassados. A China, aliás, é
muito mais ‘marxista’ do que o Brasil, já que ela não pretende fazer girar para trás a roda da
História: ela avança celeremente para libertar-se dos grilhões de uma economia atrasada,
ainda cingida por burocratas cinzentos – mas que estão rapidamente se transformando em
novos capitalistas – e opera uma gigantesca transposição de sua miserável população rural,
em grande medida ainda um ‘lumpesinato’, em novos trabalhadores da indústria chinesa; ela
rompe suas muralhas ancestrais e se lança à conquista do mundo com uma energia e um
entusiasmo capitalistas que fariam vibrar o Marx do Manifesto de 1848.
Pena que os acadêmicos brasileiros, os “feudais” do MST e as lideranças políticas
atualmente identificadas com a marcha da estatização em curso de implementação pelo
governo federal não percebam essas novas realidades: eles se empenham ativamente em criar

177
novas estatais ou em proteger as companhias privadas da concorrência estrangeira,
esquecendo completamente a recomendação feita por Marx, no Manifesto, que dizia que o
“preço baixo das mercadorias é a artilharia pesada com a qual a burguesia abate todas as
muralhas da China”.
A China já derrubou as suas muralhas socialistas e se empenha ativamente em
derrubar as muralhas protecionistas dos demais países. Enquanto a China empreende sua
marcha triunfal ao capitalismo, o Brasil parece acompanhar a marcha pouco gloriosa de
alguns vizinhos em direção a mais estatismo e mais dirigismo. Não é difícil adivinhar os
resultados respectivos dessas duas trajetórias contraditórias.
Como diria o Marx do Manifesto, a China representa, hoje, o grande coveiro do
socialismo, o espectro que assusta o pequeno bando de socialistas que ainda subsiste em
alguns países desajustados e confusos quanto ao caminho a seguir. As opções parecem claras,
e os chineses já fizeram as suas escolhas, mas alguns acadêmicos alienados ainda não se
aperceberam disso.

Brasília, 17 setembro 2009; revisão: Paris, 4 outubro 2009

178
22. Os mitos da Revolução Cubana

O mito fundador: a revolução que se transformou em reação


Poucos mitos, na América Latina, especialmente entre os acadêmicos, são tão
poderosos quanto o da Revolução Cubana, usualmente identificada com as figuras de Fidel
Castro e de Ché Guevara – ele próprio um mito à parte, icônico em suas manifestações mais
apelativas, sem esquecer o merchandising – tanto quanto pelo tremendo valor simbólico da
“resistência ao imperialismo”, especialmente relevante para todos aqueles que acreditam em
outro mito da mesma família: a de que esse mesmo imperialismo é responsável pela miséria e
subdesenvolvimento da América Latina, cujas veias abertas estariam sendo constantemente
drenadas por esse monstro capitalista (trataremos, em outro artigo da série, dessa outra falácia
acadêmica).
O próprio conceito de Revolução Cubana constitui um mito inaugural: não existe
mais revolução cubana, e isto há muito tempo. Tudo o que restou das transformações
políticas na ilha, feitas entre 1959 e 1965 aproximadamente, foi um regime autocrático, de
inspiração supostamente socialista (mais exatamente ao estilo soviético), incapaz de garantir
um abastecimento adequado ao seu próprio povo (como, aliás, ocorria com todos os
socialismos realmente existentes, sem exceção). Sublinho deliberadamente transformações
políticas, posto que em matéria de transformações econômicas, o que ocorreu, mais
exatamente, foi uma tremenda involução, um retrocesso absoluto, que resultou em que o ex-
principal exportador de açúcar da região é obrigado, atualmente, a importar o produto para o
consumo do seu próprio povo; sem falar da inexistência quase completa de indústrias de
consumo dignas desse nome. Mas voltemos, em primeiro lugar, ao mito da revolução.
Como sabem todos aqueles que estudam sociologicamente o fenômeno
revolucionário, nenhum processo desse quilate, absolutamente nenhum, dura cinqüenta anos,
ainda mais com a promessa – constantemente refeita pelos dirigentes ‘revolucionários’, na
verdade, reduzidos hoje a uma nomenklatura geriátrica – de que a revolução é um movimento
vivo, que deve se renovar e continuar para sempre. Um processo insurrecional e de ativa
preparação para a tomada do poder político pode até durar muitos anos, como foi o caso, por
exemplo, da revolução chinesa, que depois conheceu várias etapas no processo de construção
do totalitarismo maoísta: a aliança de classes e as cem flores nos anos 1950; o grande salto
para frente e sua desastrosa falência entre 1959 e 1962; a revolução cultural de 1965 a 1969; a

179
grande luta entre as cliques dirigentes depois disso; e, finalmente, o que não tinha nada mais
de revolucionário, a reforma gradual do socialismo chinês em direção de formas de mercado
que não excluem (e até promovem) o capitalismo mais selvagem que se conhece desde Marx
e Engels.
As revoluções constituem processos extremamente concentrados no tempo, ainda mais
concentrados na utilização da violência política, que costumam substituir uma classe dirigente
por outra, alterando completamente o sistema político e, até mesmo, as bases econômicas de
funcionamento de uma determinada sociedade. Revoluções duram somente o tempo de
substituição dos dirigentes no comando do Estado. A partir daí o que se tem são processos
mais ou menos lentos de alteração das relações sociais, o que pode ser feito com doses extras
de violência – como no caso chinês ou soviético, sob Mao e Stalin – ou, mais freqüentemente,
por meio das burocracias que emergem com o novo poder. Enfim, uma revolução que dura 50
anos, na mais perfeita normalidade do comando ‘revolucionário’, é uma contradição nos
termos. Todas as revoluções, a partir de um certo tempo se ‘estabilizam’ e a nova classe
dirigente passa a cuidar de sua própria conservação, ou seja, a revolução se transforma em
reação, quando não em algo profundamente reacionário.
No caso da Revolução Cubana, pode-se traçar, perfeitamente, uma cronologia para o
processo revolucionário: a fase insurrecional durou poucos anos, a rigor desde Moncada
(1953) até a tomada do poder, em janeiro de 1959, com a etapa guerrilheira se estendendo
durante pouco mais de dois anos, tão somente. Ou seja, o processo de luta contra a ditadura de
Batista foi algo extremamente rápido, em termos estritamente temporais, e absolutamente
exitoso nos planos político-social e estratégico-militar, inclusive com a colaboração
involuntária do próprio regime, que consentiu em anistiar o jovem advogado condenado por
sedição após poucos meses de prisão (aqui entra um outro mito, o da “História me absolverá”,
mas que pode ser deixado ao cuidado dos historiadores, por falta de espaço neste ensaio).
A partir daí se abre o processo revolucionário propriamente dito: uma fase nacionalista
em 1959, logo alterada por escolhas mais radicais nos planos político e econômico – inclusive
as decisões de não realizar eleições livres e de expropriar grandes latifúndios para fins de
reforma agrária – seguida, finalmente, da opção propriamente socialista, entre 1961 e 1962. A
partir daí, a ‘revolução’ socialista se aprofunda, com a completa estatização dos meios de
produção e a ‘sovietização’ do estilo de poder e das formas de dominação, processo que
culmina, basicamente, em 1965, quando começam os primeiros expurgos e o regime perde
sua aura romântica que ele tinha mantido até então. Muitos intelectuais e o próprio Ché
Guevara abandonam a ilha, cada qual com suas opções intelectuais e políticas intactas: os

180
primeiros por não concordarem com essa orientação do regime cubano; o segundo para tentar
fazer a revolução em outros países.
Esta é a Revolução Cubana, nada mais do que isso: a tomada do poder em nome da
luta contra a ditadura, pela democracia e pela justiça social, com promessas de reforma
agrária (que aliás estavam sendo impulsionadas em quase toda a América Latina pelo próprio
imperialismo, insatisfeito com o estilo oligárquico atrasado de quase todos os seus aliados na
região). O que veio depois de 1965 foi a administração de um socialismo que não escapou às
mesmas fatalidades de seus congêneres em outras partes: ineficiência econômica,
irracionalidades produtivas, falta de inovação pela ausência de estímulos apropriados e,
sobretudo, repressão política, falta de liberdade completa no plano partidário, de imprensa e
intelectual, e as pequenas e grandes misérias morais de todo e qualquer regime socialista.
Pior do que isso, talvez, pois outros regimes atrasados na própria América Latina
também exibiam ineficiência econômica, baixíssimos índices de produtividade econômica e,
tanto à direita quanto à esquerda, repressão política e falta de liberdades elementares: no caso
de Cuba, tudo isso se viu agregado do velho estilo soviético (stalinista, quero dizer) de
dominação e de monopólio político absoluto pelo partido monocrático e todo poderoso (algo
que nem as ditaduras direitistas mais extremas na região jamais produziram). Quem achar que
estou errado, deveria, supostamente, poder provar-me que a ilha caribenha dispõe de:
eficiência econômica, vibrante sistema produtivo, tecnologia avançada no plano internacional,
liberdade política, imprensa livre e ausência de dissidentes encarcerados por divergência de
opinião. O teste é muito simples e pode começar pela existência de balseros (boat-people),
algo que só as ditaduras mais extremas conseguem produzir: a existência de pessoas
desesperadas, dispostas a enfrentar os riscos terríveis de uma aventura no mar, para escapar ao
desespero das misérias cotidianas (que geralmente são mais econômicas do que propriamente
políticas). Apenas a existência contínua desses candidatos a náufragos do regime já provaria o
tremendo fracasso da ‘revolução’ cubana.

A especificidade cubana: uma ilha que é quase uma fazenda pessoal


O que teve, e talvez ainda tenha, a Revolução Cubana de diferente, em relação aos
modelos do gênero, é o tremendo carisma de dois de seus dirigentes (um deles efêmero, é
verdade, mas aparentemente eterno): Fidel Castro e Ché Guevara. Desaparecido
precocemente este último, restou o velho líder revolucionário, que empolgou muita gente, na
ilha e fora dela, e permanece como o símbolo do processo revolucionário. Quanto ao Ché, é
um fenômeno planetário: trata-se, possivelmente, depois da Coca-Cola, da imagem mais

181
conhecida e valorizada do mundo, presente em dez de cada nove manifestações organizadas
por movimentos de esquerda, sobretudo conquistando os jovens, que compram avidamente
pôsteres e camisetas para indicar sua preferência romântica, alimentando com isto um dos
mais pujantes mercados capitalistas de que se tem notícia na história do merchandising
mundial.
Do Ché ficou a imagem do guerrilheiro heróico, seja em Cuba, seja na Bolívia, onde
fracassou na tentativa de criar um outro Vietnã no coração da América Latina. Pouco se fala
de seu período à frente de La Cabaña, uma caserna do ancien régime cubano convertida
rapidamente num dos mais ativos centros de fuzilamentos logo depois da vitória da revolução,
muitos dos quais após sumaríssimos julgamentos, outros sem sequer essa formalidade
‘burguesa’. Se fala ainda menos de suas rápidas e catastróficas passagens pela presidência do
Banco Central cubano e pelo Ministério da Indústria, cujas conseqüências mais notáveis,
aliás, foram as de apressar a subordinação da ilha aos interesses da União Soviética e o início
de um longo período de dependência dos subsídios russos durante praticamente toda a
existência residual da URSS. Seus planos de industrialização – sem falar na tentativa de
criação de um ‘homem novo’, cuja realização perfeita seria um trabalhador sem qualquer tipo
de exigência material, funcionando apenas à base de ‘emulação socialista’ – foram tão
desastrosos que, já em 1965, Cuba escolhia voltar para a monocultura açucareira (atenção,
quem diz isso não sou eu, e sim Celso Furtado, no último capítulo de seu livro, aliás
deficiente, sobre a Formação Econômica da América Latina, de 1967).
Com a morte precoce de Camilo Cienfuegos, com o afastamento de Ché Guevara e o
desaparecimento ou eliminação de outros possíveis concorrentes da fase insurrecional, a
revolução cubana acabou sendo dominada pela figura ímpar, sem dúvida excepcional
historicamente, de Fidel Castro, que passou a administrar a ilha como se fosse uma fazenda
pessoal. Foram muitas as suas tentativas improvisadas de mudar a economia da sua fazenda –
como o estímulo à plantação de café, na base do empirismo puro, sem qualquer viabilidade
agronômica – com resultados catastróficos a cada vez. Mas a figura de Fidel Castro há muito
tempo já passou por esse fenômeno que Max Weber identificou como a ‘rotinização do
carisma’, sendo improvável que esse carisma sobreviva ao desaparecimento físico do titular.
O mais provável é que a ‘revolução’ – que de fato já não existe mais – se estiole numa
dominação puramente autocrática-oligárquica, até sua completa erosão numa futura
redemocratização e normalização da ilha, segundo modalidades ainda não detectáveis neste
momento.

182
Enfim, este é o primeiro mito ligado a Cuba, que cabe, portanto, descartar no plano
histórico e mais exatamente sociológico. Vejamos, agora, quais seriam as outras falácias que
podem ser associadas ao mesmo mito, entretido com tamanho desvelo em certos círculos
acadêmicos, que eu chego a receber de um desses representantes da espécie mensagens
eletrônicas que são finalizadas por um desses orgulhos ingênuos de certos companheiros de
viagem do socialismo cubano: “Esta noite, 200 milhões de crianças dormirão nas ruas do
mundo. Nenhuma é cubana.” Incrível como acadêmicos aparentemente bem informados
conseguem se deixar mistificar pela propaganda de um regime incapaz de assegurar a essas
mesmas crianças um futuro decente, em termos de conforto material, emprego e, sobretudo,
liberdade política para se expressar normalmente pela internet, como mesmo crianças de
favelas brasileiras conseguem fazer em centros comunitários que existem, justamente, para
conectá-las ao mundo. Atribuo esse tipo de equívoco à ‘inconsciência revolucionária’.
O Brasil é certamente um país com muitos indigentes, alguns até com problemas de
desnutrição ou de moradias precárias, falta de cuidados médicos e, sobretudo, de educação e
de capacitação técnica ou profissional para o mercado de trabalho; daí a baixa produtividade,
os precaríssimos rendimentos e a insuficiência geral no consumo e, portanto, a baixa
qualidade de vida, segundo os índices do PNUD. Não são esses indigentes, contudo, os
principais candidatos à emigração econômica, característica associada à paisagem social
brasileira nas últimas duas ou três décadas, aliás coincidentes com as crises econômicas, o
baixo crescimento, a falta de oportunidades de emprego decente e o desalento geral com a
violência, a extorsão estatal e outros traços menos agradáveis de nossa situação presente.
Geralmente são pessoas próximas dos estratos intermediários inferiores, ou até da classe
média, que escolhem sair do Brasil, por acaso os mesmos tipos de candidatos a partir de
Cuba, com uma diferença fundamental, porém: nenhum deles é boat-people, pela simples
razão de que ninguém é impedido de sair do país. No caso de Cuba, é desnecessário precisar,
os mesmos candidatos frustrados se sentem como que obrigados a deixar a ilha, pelo simples
fato de que não vislumbram nenhuma possibilidade de mudança em sua situação econômica
no futuro previsível. Poucos, ou praticamente nenhum, dos boat-people são verdadeiramente
dissidentes ou opositores do regime: na quase totalidade dos casos, se trata apenas de pessoas
desejosas de escapar das misérias cotidianas da ilha, aspirando viver normalmente num país
normal, não numa ilha que vive, ou sobrevive, à base de cartões de racionamento.

Os mitos entretidos pelo regime e por seus admiradores

183
Todo e qualquer Estado normalmente constituído na história humana, ou seja, uma
organização política capaz de garantir o funcionamento regular de instituições de comando e
um sistema econômico capaz de se auto-sustentar – independentemente de suas características
mais estatais ou mais privadas, de mercado, portanto – deveria, minimamente, poder
assegurar algumas condições básicas para sua manutenção, preservação e continuidade.
Aqueles que não conseguem, costumam desaparecer nas dobras da história, como demonstrou
em relação a alguns casos exemplares o cientista americano Jared Diamond em seu livro
Colapso. Esse Estado deveria, em princípio:
1) funcionar em bases políticas razoavelmente legítimas, suscitando o consenso em
torno dos mecanismos de dominação, ou despertando muito pouca oposição ou dissidência
em relação ao comando do Estado; quando houver dissensão, ela deveria poder ser canalizada
por meios políticos não violentos, justamente;
2) garantir requisitos mínimos de satisfação material à população, sem o que aquela
legitimidade logo se esvai, sobretudo se os cidadãos (ou súditos) se sentem espoliados em
seus direitos elementares à segurança alimentar, patrimonial ou até pessoal; essa satisfação
requer, portanto, um funcionamento razoável dos sistemas de produção e de distribuição, com
alguma possibilidade de acumulação privada ou familiar, geralmente no que se refere à
habitação, mas também a outros bens físicos;
3) assegurar um mínimo de direitos quanto à segurança pessoal dos cidadãos (ou
súditos), na sua disposição de residência, livre escolha de uma ocupação, de culto ou de
expressão pública de suas preferências políticas e culturais, sem o que o país em questão
poderia viver em estado de tensão social permanente;
4) alguma legitimidade ou reconhecimento no plano externo, de maneira a se ter um
relacionamento normal no plano internacional, sem ameaças externas ou conflitos destrutivos;
ainda que o ambiente externo possa ser uma variável independente – e o fenômeno do
imperialismo e do colonialismo independem da configuração política e econômica que possa
adotar um Estado independente qualquer – um Estado normal deve ser capaz de assegurar um
mínimo de tranqüilidade para os seus cidadãos (ou súditos), sem aquela sensação de serem
constantemente ameaçados por algum poder externo.

Pois bem, com base nesses critérios aparentemente anódinos e perfeitamente


burocráticos no plano da análise sociológica, podemos analisar os mitos da Revolução
Cubana, por meio de elementos o mais possível objetivos, para verificar, justamente, as
falácias que têm sido apregoadas em torno desse fenômeno. São muitas as falácias que vem

184
sendo apregoadas em torno da “Revolução” Cubana, mas algumas têm mais consistência do
que outras.
Vejamos, por exemplo, o que se lê em recente matéria em homenagem aos 50 anos
dessa “revolução” no site do único movimento político brasileiro que, aparentemente, ainda
defende resolutamente o que é chamado de conquistas da “Revolução” Cubana, o Partido
Socialismo e Liberdade:
Os companheiros desse partido “não podem duvidar em afirmar que a revolução
cubana foi o acontecimento mais importante acontecido em nossa ‘Pátria Grande’ latino-
americana. Talvez possamos divergir sobre apreciações de seu regime político, da política
internacional seguida pelo Fidel em certos períodos. Mas o concreto é que foi um movimento
tão poderoso e tão genuíno para que hoje Cuba seja o único país do chamado “socialismo
real” que existe e do qual não só podemos reivindicar sua história como também seu presente;
Cuba mantém suas conquistas sociais e seu orgulho de ser independente do imperialismo a
menos de cem milhas de suas costas.”57
O que se reivindica, portanto, são três coisas: (a) ser o único país do “socialismo real”;
(b) conquistas sociais; (c) independência do imperialismo. A bem da verdade, esses três
elementos resumem, efetivamente, o que se apregoa como positivo em torno da “Revolução”
Cubana e são eles que devem motivar uma reflexão sobre se esses mitos são justificados. Não
devo esconder desde já meu argumento de que esses três mitos constituem, justamente, as três
grande falácias em torno da “Revolução” Cubana. Vejamos cada um deles sistematicamente.

O mito do socialismo
Não é verdade que Cuba seja o único representante do chamado “socialismo real”: o
comentarista do PSol esquece a República Popular Democrática da Coréia e... vejamos, talvez
o Vietnã, ou, quem sabe ainda, a China? Não é seguro que estes dois últimos sejam ainda
socialistas, estilo “real”, mesmo que suas equipes dirigentes possam fazer apelo ao conceito
para definir seus regimes políticos e seus sistemas sociais. Em todo caso, sobra a RPDC, ou
Coréia do Norte, na companhia de Cuba, a defender, contra ventos e marés, o sistema que
perdura em ambos os países desde mais de meio século. O que isto significa no plano das
falácias acadêmicas?

57
Ver nota no Portal do Socialismo, de 4.01.2009;
http://www.socialismo.org.br/portal/socialismo/197-artigo/709-cuba-festeja-meio-seculo-de-
revolucao.

185
O conceito original de ‘socialismo científico, segundo os demiurgos originais, seria o
de um regime baseado na apropriação coletiva – não necessariamente estatal – dos meios de
produção e na organização social da produção e da distribuição segundo a fórmula clássica
enunciada na Critica ao Programa de Gotha: “de cada um segundo suas capacidades, a cada
um segundo suas necessidades”. Independentemente do fato de que essa frase de efeito não
quer dizer rigorosamente nada, a verdade é que, tanto para Marx, como para Engels, o Estado
deveria simplesmente desaparecer assim que os trabalhadores conseguissem colocar em
marcha o programa da revolução socialista – basicamente os dez pontos do Manifesto de 1848
– com a sociedade de produtores organizados funcionando em ‘piloto automático’ e o Estado
se encaminhando gentilmente para o museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e
da roca de fiar (segundo Engels, em A Origem da Família, da Propriedade..., etc.).
Não é preciso dizer que, já a partir de Lênin, não foi exatamente isso que aconteceu,
mas o seu contrário, com o Estado mais fortalecido do que nunca, e os trabalhadores
organizados em batalhões de produtores compulsórios, mais próximos do regime fordista – ou
taylorista – do que daquela imagem romântica dos Cadernos Econômico-Filosóficos, segundo
a qual o homem socialista seria um trabalhador pela manhã, um pescador de tarde e um
filósofo pela noite. O fato é que o Estado leninista serviu de padrão para a dominação
mussoliniana na Itália, logo em seguida, e mais adiante para o regime de partido único e de
Estado totalitário da experiência hitlerista.
Qualquer que seja a opinião de acadêmicos anticapitalistas sobre as excelências dos
regimes socialistas – a igualdade social, a segurança do trabalho e da moradia, o ‘futuro
brilhante’ de realizações materiais do ‘socialismo real’ – a realidade legada por esse tipo de
regime e de sistema de engenharia social é uma só, quase uniforme em sua materialização
concreta nos diversos continentes em que ele existiu (ou onde ele ainda sobrevive, como nos
casos cubano e norte-coreano): ditadura política, polícias secretas, delação de vizinhos, crimes
políticos no caso da simples expressão de um pensamento dissidente, controle estrito das
populações, misérias econômicas, catástrofes ecológicas, quando não Gulag ou extermínio
dos ‘inimigos do povo’. Sequer preciso mencionar aqui a fome organizada por Stálin no caso
da coletivização forçada da agricultura no início dos anos 1930 - que não apenas resultou na
eliminação física de milhares de kulaks, mas sobretudo na privação absoluta de populações
inteiras, sobretudo na Ucrânia – ou no ‘grande salto para trás’, organizado pelo presidente
Mao, entre 1959 e 1962, que pode ter resultado na morte de algumas dezenas de milhões de
camponeses, com cenas de canibalismo jamais vistas desde tempos míticos...

186
Gostaria de frisar, em direção dos acadêmicos true believers nas ‘reais’ possibilidades
do socialismo, e que poderiam desconsiderar algumas das asserções acima, como sendo
apenas ‘acidentes circunstanciais’ numa trajetória feita de boas intenções potenciais desse
sistema, que, mesmo retirando os ‘acidentes’ (com alguns milhões de mortos, é bom lembrar),
as demais características não dependem da opinião ou posição política do observador: são
fatos materiais indiscutíveis e associados genericamente à história do socialismo no século 20
e, ainda hoje, ao socialismo cubano em particular: ditadura política, monopólio do partido,
regime policial, repressão aos dissidentes, encerramento de toda uma população numa ilha-
prisão. O acadêmico que for capaz, ainda assim, de defender esse regime, certamente não
merece esse título, podendo apenas ser classificado como sustentáculo voluntário de uma
ditadura, o que é propriamente indigno de quem se pretenda acadêmico.
Em uma palavra, o socialismo do século 20 representou apenas e simplesmente isto:
totalitarismo, uma herança certamente pesada para que seus supostos herdeiros ainda possam
reivindicar, hoje, qualquer tipo de filiação intelectual. Que acadêmicos ou militantes
brasileiros ainda defendam o socialismo como idéia, e a ‘revolução’ cubana em especial,
apenas constitui um testemunho eloqüente sobre mais uma ‘inconsciência revolucionária’, que
também poderia ser traduzida por duas singelas expressões: suprema ingenuidade política ou
brutal ignorância informativa, em ambos os casos exemplos de estupidez acadêmica. Que
alguns desses personagens tenham ódio à democracia parlamentar – que eles equiparam a uma
‘ditadura da burguesia’ – e à economia de mercado – para eles indistintamente capitalista, sem
sequer saber que estão transformando deste sistema produtivo, ainda bastante limitado na
história econômica mundial, em um superlativo conceitual – apenas confirma como
preconceitos políticos podem obstar uma apreensão historicamente adequada das realidades
políticas do século 20. Ou seja, além de estupidez acadêmica, cegueira intelectual.
Se o socialismo, enquanto conceito e enquanto realidade social, não é uma falácia
completa, seus defensores deveriam ser capazes de provar que ele pode funcionar, de fato,
segundo os quatro requisitos formais de um Estado normal, tal como enunciados acima, quais
sejam: legitimidade política interna, funcionalidade produtiva ou material, liberdades
elementares e relacionamento externo com base numa garantia de reconhecimento da
representatividade do Estado em face de sua população (o que implica na admissibilidade, por
exemplo, de livre acesso de órgãos multilaterais em setores específicos: livre organização de
trabalhadores, segundo as convenções da OIT; respeito aos direitos humanos, segundo
tratados internacionais monitorados pelo Conselho de Direitos Humanos; transparência dos
procedimentos legais e judiciais, como estabelecido na Carta da ONU; liberdades

187
fundamentais, como acordado na Declaração Universal de 1948, etc.). Trata-se, obviamente,
de um teste muito simples, que qualquer acadêmico minimamente bem informado seria capaz
de atender, sem alimentar qualquer falácia conceitual ou prática.

O mito das conquistas sociais


Mesmo reconhecendo alguns ‘problemas políticos’ – geralmente justificados pelo
‘assédio imperialista’ – os acadêmicos simpáticos a Cuba costumam argumentar com a
excelência dos serviços cubanos de saúde e com a alta qualidade de sua educação,
constituindo esses dois elementos as grandes justificativas em face das demais ‘deficiências’
do regime, uma espécie de compensação social pela falta de liberdades políticas e por todas as
misérias da vida econômica. Estas ‘bondades da Revolução’ estão sempre na primeira linha
da defesa das conquistas do socialismo cubano, constituindo, no entanto, mais um dos grandes
mitos que cercam a ilha. Elas estão identificadas com as supostas conquistas sociais da
‘revolução’, como se a ilha, antes de Fidel Castro, fosse um inferno de misérias humanas e um
deserto de avanços sociais. Um pouco de objetividade factual pode ajudar a avaliar essa
questão.
Em 1958, Cuba ostentava bons indicadores sociais em diversos quesitos, situando-se,
geralmente, nos três primeiros lugares do ranking latino-americano, junto com a Argentina e o
Uruguai. Obviamente, muitos indicadores, baseados em médias nacionais, não refletiam
exatamente a distribuição de serviços públicos pelo conjunto da população cubana. Mas se os
dados nacionais refletem uma metodologia uniforme para todos os países da amostra, eles
devem poder significar realidades objetivas quanto aos serviços disponíveis. De modo geral,
Cuba se situava entre as sociedades mais avançadas da América Latina, com um perfil social
bem mais próximo da Europa mediterrânea do que dos demais países latino-americanos.
De um conjunto de 122 países analisados, Cuba ocupava, em 1958, o 22º. lugar em
matéria sanitária, com 128,6 médicos e dentistas por 100.000 habitantes, à frente de países
como França, Reino Unido e Bélgica. Sua taxa de mortalidade já era uma das mais reduzidas
do mundo (5,8 anuais por 1.000 habitantes; Estados Unidos 9,5) e o nível de alfabetização da
ilha era de 80%, semelhante ao do Chile e da Costa Rica e superior ao de Portugal na mesma
época. Ou seja, resulta equivocado pensar que Cuba fosse uma ilha habitada por miseráveis
antes da revolução. O regime socialista cubano invoca a baixa mortalidade infantil para
destacar a excelência dos cuidados de saúde disponíveis para a população, mas o fato é que
esse indicador já apresentava uma taxa muito baixa desde os anos 1950: em 1958, o índice
cubano registrava 40 mortes infantis para cada mil nascidos vivos, uma taxa melhor do que os

188
índices da França (41,9), do Japão (48,9) e da Itália (52,8). Não obstante essa boa situação de
partida, Cuba foi ficando para trás, pois que, em 2007, o indicador cubano registrava 5,3
óbitos, contra 4,2 para a França, 3,2 para o Japão e 5,0 para a Itália.
Mesmo a situação relativamente favorável de Cuba, no confronto com outros países
latino-americanos, deve ser considerada em termos de dotação de recursos para gastos de
saúde: durante muito tempo, o regime cubano foi de fato subvencionado pela União Soviética,
de uma forma como nenhum outro pais latino-americano foi ajudado pelo império americano.
Essas subvenções, embutidas nos pagamentos pelo açúcar acima dos preços dos mercados
mundiais e no financiamento direto das aventuras militares cubanas em outros continentes,
sustentaram os investimentos cubanos na área social durante muito tempo. Uma vez
interrompidas as transferências diretas e indiretas, a situação cubana começou a se deteriorar
seriamente.
O sistema educacional cubano é, de fato, abrangente no mais alto grau, ainda que a
suposta excelência não se traduza em uma pujante produção científica ou na transferência
desse saber para o sistema produtivo, no qual patentes são quase desconhecidas. Pena também
que, com o analfabetismo virtualmente inexistente, os cubanos não disponham para sua leitura
diária que de jornais controlados pelo Partido Comunista e que seu acesso à internet só é
comparável com a situação na Síria e na Birmânia. Apenas alguns poucos países exóticos
mantêm, hoje, uma repressão à liberdade de informação tão ampla – com perdão pelo
paradoxo involuntário – quanto a existente em Cuba. Uma população tão educada mereceria
mais, certamente.
Outra das alegações freqüentes do regime se refere à suposta igualdade dos cubanos
quanto à distribuição de renda. Não existem dados oficiais a esse respeito, mas estimativas de
especialistas indicam que essa distribuição se deteriorou muito desde a crise do socialismo,
sendo que o coeficiente de Gini passou de um índice 0,22 em 1986 para 0,407 em 1999. Em
especial, no tocante à distribuição entre as classes de renda, a situação cubana conheceu uma
evolução bem mais negativa do que o resto da América Latina: a razão entre o quintil mais
rico e o quintil mais pobre de renda cresceu de 3,8 a 13,5 na ilha, entre 1989 e 1999, ao passo
que, nesse mesmo período, a razão entre o quintil mais rico e o quintil mais pobre cresceu de
11,90 a 19,91 para a região como um todo: ou seja, em Cuba o aumento foi 3,85 vezes,
enquanto o aumento na América Latina foi de apenas 1,67 vezes.
Se formos examinar a disponibilidade de habitações, a deterioração também foi
sensível, com uma diminuição do número de moradias em função da baixa taxa de natalidade
e da emigração. No plano mais geral do crescimento econômico a longo prazo, a trajetória

189
cubana é também reveladora da incapacidade do sistema em produzir bem-estar. Como
revelado na tabela abaixo, a posição relativa de renda por habitante de sete países
selecionados, colocava Cuba em terceiro lugar em 1957, à frente da Espanha e de Portugal,
tendo a ilha caído para o último lugar em 2007.

Classificação de países segundo o PIB per capita


Posição 1957 2007
1 Venezuela Espanha
2 Argentina Portugal
3 Cuba Chile
4 Espanha Venezuela
5 Portugal México
6 México Argentina
7 Chile Cuba
Fonte: United Nations Statistics Division

Na verdade, o sistema socialista cubano é incapaz de alimentar o seu próprio povo


atualmente, tendo a ilha de importar volumes significativos de alimentos, inclusive dos EUA,
um dos principais parceiros comerciais. Incapaz de produzir bens exportáveis, Cuba tem uma
balança comercial altamente deficitária, o que se reflete na dívida externa cubana e nas
insolvências bilaterais com vários países europeus, com o México, com o Chile, com o Brasil
e com o Japão. No total, a dívida externa cubana deve superar 38 bilhões de dólares, o que
equivale a 3.410 dólares por habitante, três vezes a média latino-americana, de 1.173 dólares
por habitante.
Um estudo recente sobre a situação do abastecimento alimentar em Cuba revelou
dados assustadores: “Ao menos 13% da população é clinicamente subnutrida, na medida em
que o estado do racionamento alimentar provê, agora, apenas entre uma semana e dez dias das
necessidades alimentares básicas” (Antonio E. Morales-Pita, “Possible Scenarios in the Cuban
Transition to a Market Economy”, Proceedings da Association for the Study of the Cuban
Economy: Cuba in Transition 2007, p. 330). Um outro estudo confirma que “A economia
cubana tem sobrevivido em larga medida graças aos investimentos, comércio, créditos e ajuda
da Venezuela e, em menor medida, da China, assim como de investimento estrangeiro em
setores estratégicos, como petróleo e gás, níquel e turismo, o que permitiu a Fidel lançar um
processo de recentralização da tomada de decisão em 2003-2006, que reverteu a maior parte
dos progressos feitos pelas modestas reformas orientadas para o mercado implementadas em
1993-1996, operando uma rígida transição de poder para Raúl”. 58

58
Os dados econômicos referidos neste ensaio foram retirados dos ‘proceedings’ de 2007, da
Association for the Study of the Cuban Economy, com o apoio da Universidade do Texas, em Austin,
neste link: http://lanic.utexas.edu/project/asce/publications/proceedings/index.html; adicionalmente,

190
Esse mesmo estudo citado imediatamente acima traz estatísticas arrasadoras sobre o
declínio da produção cubana entre 1989 e 2006, em quase todos os setores da economia,
sobretudo alimentares, como revelado na tabela abaixo.

Cuba: indicadores da produção física, 1989 e 2006 e variação 2006-1989 (%)


(milhares de toneladas métricas, ou unidades especificadas)
Setores, produtos 1989 2006 2006-1989 %
Petróleo 718 2.900 303
Gás Natural (milhões metros cúbicos) 34 1.085 3.091
Níquel 47 73 55
Açúcar 8.121 1.474 -82
Aço 314 257 -18
Cimento 3.759 1.705 -55
Eletricidade (bilhões kW/h) 16 16 0
Têxteis (milhões de m2) 220 27 -88
Fertilizantes 898 41 -95
Charutos (unidades) 308 418 35
Sapatos (milhões de pares) 12 3 -75
Sabão (lavanderia) 37 14 -62
Cítricos 1.016 373 -63
Arroz 532 434 -18
Ovos (milhões de unidades) 2.673 2.341 -12
Leite (vaca) 1.131 415 -63
Fumo 42 29 -31
Gado (milhares de cabeças) 4.920 3.737 -24
Peixes e frutos do mar 192 55 -71
Fonte: Carmela Mesa-Lago, “The Cuban Economy in 2006-2007”, op. cit., p. 4.

De fato, a situação econômica é deveras preocupante, daí as tentativas do novo


governo pós-Fidel de introduzir algumas reformas pró-mercado para paliar essas dificuldades,
como já tinha ocorrido com diversos outros países socialistas no período anterior à implosão
final. Não é preciso alinhar muitos dados sobre essa deterioração constante, bastando
mencionar o aumento da prostituição, do mercado negro e das transações ilegais, bastante
visíveis para qualquer turista que tenha visitado a ilha nos últimos anos. Por uma dessas
ironias da história, uma das principais alegações para o exacerbado nacionalismo e anti-
americanismo cubano do período imediatamente posterior à revolução foi, justamente, a
eliminação da designação infame da ilha como sendo o ‘bordel do imperialismo’.
Aparentemente, os velhos tempos estão de volta...

recorreu-se à publicação “Carta de Cuba, la escritura de la libertad”, sob a responsabilidade de um


conjunto de autores e disponível no link: http://www.elcato.org/node/3948; acesso em fevereiro de
2009. Ver, em especial, Carmela Mesa-Lago, “The Cuban Economy in 2006-2007”, ASCE: Cuba in
Transition 2007, p. 15; dados disponíveis in: Carmelo Mesa-Lago, La economía cubana en la
encrucijada: legado de Fidel, debate sobre el cambio y opciones de Raúl; Documento de Trabajo nº
19/2008 - 23/04/2008; disponible Instituto El Cano (Madrid:
http://www.realinstitutoelcano.org/wps/portal/rielcano/Imprimir?WCM_GLOBAL_CONTEXT=/elca
no/Elcano_es/Zonas_es/DT19-2008).

191
O mito do imperialismo como ameaça
Finalmente, a escusa principal do regime para tentar explicar as dificuldades da vida
econômica em Cuba sempre foi, historicamente, o ‘embargo americano’, aparentemente
responsável por todos os problemas da ilha. Trata-se, provavelmente, do maior mito entretido
pelo regime durante o último meio século, posto que esse embargo é amplamente contornado
pelo comércio de Cuba com todos os demais países do mundo, sendo as únicas exceções as
empresas americanas instaladas nesses países. Na verdade, como explicitado acima, os EUA
converteram-se atualmente no principal fornecedor de alimentos para Cuba, sendo que muitos
outros produtos americanos ingressam na ilha por terceiros países. A alegação é falsa,
portanto.
Pode-se mencionar, também, as remessas dos cubanos emigrados a seus familiares na
ilha, um aporte tão ou mais substancial do que aquele representado pelas transferências de
trabalhadores mexicanos nos EUA para seu país natal. Cabe registrar que são essas divisas,
ademais das gorjetas que médicos ou engenheiros ganham como taxistas clandestinos ou
guias turísticos, que permitem paliar, um pouco, a situação de penúria absoluta da maior parte
das famílias, aliás incontornável para todos aqueles que não dispõem de uma fonte de renda
em moedas fortes.
De fato, o imperialismo tentou derrubar o regime cubano em 1961, numa desastrada
operação da CIA que tinha sido montada ainda antes da administração Kennedy, assim como
a CIA tentou assassinar Fidel Castro várias vezes, sem sucesso nenhum, em vista da
excepcional qualidade da inteligência cubana, muito bem treinada por soviéticos e alemães
orientais. Mas, as tentativas para minar o regime terminaram logo depois da crise dos mísseis
de 1962, assim como o Congresso americano impôs um veto, desde os anos 1970, aos
atentados contra a vida do líder cubano. O que restou de tudo isso foi o estúpido embargo
americano, mais determinado pelo Congresso do que pelo Executivo, em função das
expropriações de propriedades americanas não indenizadas no período de radicalização da
revolução. Se o embargo tivesse sido suspenso – o que é difícil em vista do lobby cubano da
Flórida – o regime não teria praticamente nenhuma desculpa para os níveis baixíssimos de
padrão de vida para a maioria da população cubana.
Para ser mais preciso, é verdade que o governo socialista cubano abandonou o FMI e o
Banco Mundial, consideradas entidades subordinadas a Washington; mas Cuba nunca deixou
de fazer parte do GATT – atualmente da OMC – e pode, assim, transacionar com todos os
demais membros do sistema multilateral de comércio. Portanto, ainda que exista animosidade

192
do governo americano em relação ao regime socialista, na prática a ilha está absolutamente
livre para intercambiar produtos com a quase totalidade do planeta, não o fazendo apenas por
falta de competitividade de sua economia e da ausência de oferta exportável, inclusive de
produtos tradicionais. O imperialismo, como diriam os maoístas, é um tigre de papel, hoje
sobretudo interessado na normalização de relações, com o afastamento dos falcões do ex-
governo Bush. Cuba já é membro da Aladi e foi admitida no Grupo do Rio, inclusive com o
ativo apoio do Brasil, relacionando-se normalmente com todos os países do hemisfério, à
exceção, ridiculamente, do império.

À guisa de conclusão: um manifesto a favor do povo cubano


Para não dizer que todos os acadêmicos ou intelectuais alimentam falácias sobre Cuba
e sua situação econômica e política, permito-me transcrever aqui um manifesto de apoio ao
povo cubano escrito por intelectuais argentinos. Assim diz o texto, no original, com cortes
mínimos por conter informações desnecessárias:
“Ante la situación política de Cuba, un grupo de intelectuales argentinos dio a conocer
una declaración, en la que expresa su apoyo moral al pueblo de ese país en su lucha para
restablecer el imperio de la libertad y la justicia en la tierra de Martí. La declaración dice así:
“Los escritores y artistas argentinos que subscriben (...) expresan su solidaridad con
quienes, en otros pueblos de América, luchan por la liberación de sus respectivos países,
sometidos a regímenes de fuerza. Desean manifestar especialmente su apoyo moral al pueblo
cubano, que, tremendamente agraviado y despojado de las garantías elementales de la
civilización política, sufre persecución, vejamen y tortura, y lucha con admirable decisión y
valentía para abatir la dictadura y restablecer, en la tierra de Martí, el imperio de la libertad y
la justicia, cimentados en la soberanía del pueblo y la vigencia del derecho.”
Firmaram esse documento dezenas de nomes de intelectuais conhecidos na história
artística e literária argentina, entre eles Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges. Pois bem,
como ambos escritores, como se sabe, já não estão mais entre nós desde algum tempo, cabe
fazer um esclarecimento a respeito e agregar um comentário pessoal sobre esse tipo de
exercício, se eventualmente conduzido atualmente.
O texto, na verdade, não é atual, tendo sido publicado no diário El Mundo, de Buenos
Aires, em 2 de março de 1958, e se referia, portanto, à luta dos democratas e revolucionários

193
cubanos contra a ditadura de Fulgencio Batista, justamente. 59 Os argentinos, então, saiam de
uma outra ditadura, ainda que alguns a classificassem simplesmente de regime populista: o
governo peronista, que tinha durando dez anos, desde o imediato pós-segunda guerra. Os
intelectuais argentinos se orgulhavam, assim, de ter deixado para trás um triste período de sua
história e se dispunham a ajudar outros povos da América Latina que também lutavam contra
a ditadura em seus respectivos países, antecipando um pouco o que seria a chamada “doutrina
Betancourt”, formulada depois de superada uma outra ditadura na Venezuela nesse mesmo
ano de 1958 (e que levou inclusive o governo venezuelano a suspender relações diplomáticas
com o Brasil, quando instalada aqui a ditadura militar de 1964).
Se me permito, agora, fazer um comentário atual, na verdade uma triste constatação,
seria esta. Não creio que, atualmente, intelectuais brasileiros ou argentinos, ou de qualquer
outro país latino-americano, se dispusessem a assinar um manifesto do mesmo teor – que
poderia ter, inclusive, exatamente o mesmo texto – em favor do povo cubano, em luta pelo
restabelecimento da democracia e do império da liberdade, da justiça e do direito naquela ilha,
desde cinqüenta anos dominada por um regime que prometeu acabar com uma ditadura
opressiva.
Pode ser patético fazer tal tipo de constatação “regressiva”, mas ela nos revela o
quanto recuaram os intelectuais latino-americanos na defesa da democracia e da liberdade em
nossos países. Em nome de não se sabe qual ‘soberania popular’ e de não se sabe qual ameaça
de ‘dominação imperialista’, intelectuais dos países latino-americanos se mostram muito mais
dispostos, na verdade, a assinar, de forma totalmente servil e incompreensível, manifestos em
favor da continuidade da ditadura na ilha caribenha. Se pretendesse citar nomes, eu poderia
alinhar alguns acadêmicos brasileiros que cometeram a indignidade de apoiar o regime
cubano quando este condenou à morte alguns balseros (boat-people) que tentavam fugir da
ilha, em 2003. Triste constatação, sem dúvida, que talvez merecesse adjetivos mais fortes.
Esta última constatação não constitui, obviamente, uma falácia acadêmica, no sentido
aqui analisado. Trata-se, mais propriamente, de uma renúncia à inteligência e à dignidade
intelectual, e de um abandono de valores normalmente exibidos por membros da academia,
como os dos direitos humanos, do princípio democrático, da liberdade de opinião e de
expressão e, sobretudo, da liberdade de ir e vir, valores pelos quais muitos desses acadêmicos
se bateram durante a ditadura militar brasileira. O fato de não termos, em direção do povo

59
Retirei o texto transcrito em espanhol, acima, do seguinte capítulo neste livro: “Expresan su
adhesión al pueblo de Cuba intelectuales argentinos”. In: Jorge Luis Borges, Textos Recobrados
(1956-1986). Buenos Aires, Emecé Editores, 2007, p. 323-324.

194
cubano, a mesma defesa enfática de princípios e objetivos que animaram, no passado, a
comunidade acadêmica brasileira, só pode revelar uma deterioração tremenda de seu senso
moral ou mesmo da simples coerência com valores filosóficos que deveriam ser universais.
Mas, parece que não...

Brasília, 1o. de março de 2009

195
23. O mito do socialismo do século 21

O que é o socialismo original e quais as suas definições básicas?


Comecemos com um pouco de pesquisa quantitativa, que também serve para
definições básicas. Utilizando o instrumento preferido de todos os estudantes da atualidade, o
Google, vejamos quantos resultados temos para o vocábulo socialismo. Um alerta inicial: a
despeito do que creem alguns, o Google não tem vieses ideológicos ou de qualquer outro tipo:
seu modo de seleção é baseado unicamente no ‘sucesso’ relativo dos sites compilados,
alinhados segundo o número de cliques, remetendo, portanto, unicamente às ‘preferências do
consumidor’. O conceito foi, supostamente, inventado na França pré-revolucionária, quando
ele era ainda ‘utópico’, o que recomendaria, portanto, começar a pesquisa pelo termo em
Francês.
Pois bem, acessei o site da Google France (http://www.google.fr/), colocando a
palavra em Francês e o resultado me pareceu extremamente parcimonioso, para a história de
um movimento e de correntes doutrinais mais do que bi-seculares: obtive exatamente 7
milhões e 580 mil resultados, magros em relação aos resultados em Inglês (ver adiante), mas
isso reflete, obviamente, a dominação absoluta desta língua na internet e o relativo atraso dos
franceses na competição pelos corações e mentes dos jovens da atualidade (socialistas ou
não).
O que aparece antes de tudo é a definição da Wikipédia (com acento, em Francês): ela
remete a um “sistema de organização social baseado sobre a propriedade coletiva (ou
propriedade social) dos meios de produção, em oposição ao capitalismo” (cf.:
http://fr.wikipedia.org/wiki/Paradis_socialiste). Logo em seguida, pela mesma Wikipédia,
vem a indicação do grupo de intelectuais revolucionários (auto-dissolvido em 1967)
Socialisme ou barbarie, descrito como uma organização de orientação marxista anti-stalinista
(cf.: http://fr.wikipedia.org/wiki/Socialisme_ou_barbarie). Em terceiro lugar, aparece uma
definição enciclopédica, na verdade o MSN Encarta (uma notória derivação educacional da
capitalista Microsoft), que o define como um “conjunto de correntes doutrinais que se opõem
ao capitalismo e movimentos políticos cujo objetivo é colocar essas doutrinas em prática”
(cf.: http://fr.encarta.msn.com/encyclopedia_761577990/socialisme.html).
Depois fui ao Google Deutschland (http://www.google.de/), na suposição de que o
vocábulo alemão, por algum vínculo genético, poderia apresentar mais resultados. Frustração:

196
deu menos ainda do que em Francês, apenas 4 milhões 390 mil itens, com a inefável
Wikipedia na frente, em primeiro e segundo lugares (este para o ‘socialismo democrático’,
que existe, a despeito do que possam pensar os céticos). Mas, em terceiro lugar, surge um
periódico mensal, organizado em formato de fórum para o debate das questões mais
importantes do socialismo (sim, o número corrente discute a ‘crise secular do capitalismo’,
seriamente, se supõe). Apenas em sexto lugar vem um site do Partido Comunista Alemão (ou
o que restou dele), que começa por afirmar, também muito seriamente, que “Sozialismus ist
eine Wissenschaft (o socialismo é uma ciência)” (cf. http://www.dkp-
darmstadt.de/service/was-ist-sozialismus.htm).
Descontente com esses poucos milhões de sites e links para o estudo do socialismo,
tive de recorrer ao Google capitalista, ou melhor, ao original americano
(http://www.google.com/). Não se pode dizer que estejamos em falta de socialismo no
mundo: em 23.05.2009 (mas pode ser que tenha aumentado desde então) apareceram
exatamente 35,5 milhões de resultados em Inglês. Sim, em primeiro lugar vem a tão
desprezada Wikipedia, cuja definição remete a “any one of various economic theories of
economic organization advocating state or cooperative ownership and administration of the
means of production and distribution of goods, and a society characterized by equal
oppurtunities for all individuals with a more egalitarian method of compensation” (cf.:
http://en.wikipedia.org/wiki/Socialism). A Enciclopédia Britannica vem em quarto lugar, cujo
verbete, relativamente conciso, explica que se trata de uma “social and economic doctrine that
calls for public rather than private ownership or control of property” e de um “system of
social organization in which private property and the distribution of income are subject to
social control”; o termo designa, também “the political movements aimed at putting that
system into practice” (cf.: “socialism”; Encyclopædia Britannica Online. 23 May 2009
<http://www.britannica.com/EBchecked/topic/551569/socialism>).
Surpreendentemente, porém, para nossos espíritos incautos (mas totalmente
compreensível num contexto capitalista, como é o da produção de conhecimento num sistema
de mercado, no qual trabalha o Google), o terceiro verbete mais acessado – depois de uma
definição banal de dicionário – está no site de uma organização decididamente capitalista e
até mesmo libertária, que é a Library of Economics and Liberty. O autor do verbete é
ninguém menos do que o conhecido autor de obras de vulgarização em economia e filosofia
social, Robert Heilbroner, que começa seu ensaio por estas palavras devastadoras: “Socialism
– defined as a centrally planned economy in which the government controls all means of
production – was the tragic failure of the twentieth century. Born of a commitment to remedy

197
the economic and moral defects of capitalism, it has far surpassed capitalism in both
economic malfunction and moral cruelty” (cf.: Robert Heilbroner, “Socialism”, apresentado
como um “socialist for most of his adult life”; In: The Concise Encyclopedia of Economics:
http://www.econlib.org/library/Enc/Socialism.html).
Claro, nunca se deve descurar a imensa receptividade do socialismo na periferia e,
desconfiado que ele pudesse ter mais sucesso nos países pouco capitalistas do que no centro
do sistema, reorientei a minha pesquisa para o Google Brasil e para o Google em espanhol. E
não é que ganhamos da França em popularidade?: pois a minha pesquisa no
http://www.google.com.br/ deu exatamente 7 milhões, 780 mil resultados, algo como 200 mil
a mais do que na vieille Gaulle, a pátria de todas essas doutrinas e ainda hoje tradicional
adepta de soluções estatizantes. Os links começam, obviamente, pela Wikipédia (também com
acento, em Português), mas logo vão para sites voltados, todos eles, para a ‘educação’ –
suapesquisa, mundoeducacao, brasilescola e outros do gênero – como para confirmar que
nossos professores, pesquisadores, estudantes e outros navegadores de internet são todos eles
simpáticos à idéia e aos princípios do socialismo. Isto é que é sucesso! O Brasil deve ser,
junto com a França obviamente, uma das poucas grandes economias capitalistas nas quais o
marxismo é estudado seriamente nas universidades (e ninguém acha bizarro).
Resultados quase similares foram obtidos com o Google en español
(http://www.google.es/), com precisos 7 milhões 660 mil retornos, situando-se, portanto, entre
o Brasil e a França. Pouco crentes esses espanhóis e hispano-americanos, levando-se em conta
que eles superam brasileiros e portugueses em pessoas: eles precisam de um pouco mais de
socialismo neste novo século.
Bem, creio que isso basta em termos de números, tanto para mapear a incidência
estatística do ‘velho’ socialismo nos instrumentos de busca à disposição dos estudantes, como
para a obtenção de algumas definições de base, cuja síntese não preciso fazer, posto que
dirigindo-me a um público de universitários interessados na matéria. Mais importante seria
tentar mapear a freqeência do conceito preferencial, o tal de ‘socialismo do século 21’. E o
que nos revelam os instrumentos de busca?

Quais são as características do alegado socialismo do século 21 e em que medida ele


difere do original?
Pois bem, aplicando os mesmos instrumentos de busca elementar, nas três principais
línguas européias, os resultados não foram muito animadores: o comando “socialisme du
XXIe siècle” deu magros 326 mil itens em Francês e o “Sozialismus des 21. Jahrhunderts”

198
não rendeu mais do que 110 mil retornos, o que, francamente, é irrisório para uma ferramenta
tão poderosa quanto o Google. Mas mesmo o “21st century socialism”, com toda a pletora de
textos em Inglês, não deu mais do que 1,25 milhão de resultados, de cujo total se devem
descontar as muitas e inevitáveis repetições (metade das quais, provavelmente, provocadas
por certo governo, que insiste no conceito, tendo produzido até um bonito YouTube para
divulgá-lo).
Bem, mais importante do que insistir nesses instrumentos genéricos de busca, seria ir
direto à ferramenta supostamente utilizada por pesquisadores mais sérios, o Google Scholar.
Aqui, nova decepção: aplicando-se o conceito estritamente (isto é, entre aspas, para
circunscrever a busca apenas aos termos selecionados), tem-se, em tudo e por tudo, 40 magros
resultados em Inglês e 20 em Francês. Mas, desta vez, o seu equivalente em Alemão revelou-
se mais produtivo: o comando “Sozialismus des 21. Jahrhunderts” resultou em 57 retornos,
verdade que mais da metade dedicados à “venezolanische sozialistische Revolution”.
Considerando-se que o ideólogo-mor da revolução socialista na Venezuelana é, justamente,
um acadêmico alemão, Heinz Dieterich, a incidência estatística parece explicar-se por si
mesma.
Este intelectual, ou militante (à escolha), influenciou imensamente, como se sabe, os
destinos da revolução venezuelana, sendo conhecido por diversos artigos a respeito e um livro
básico, chamado, precisamente: Der Sozialismus des 21. Jahrhunderts: Wirtschaft,
Gesellschaft und Demokratie nach dem globalen Kapitalismus (Berlim: Homilius, 2006). O
resumo de suas idéias pode ser encontrado em vários links, bastando combinar seu nome com
o conceito sobre o qual ele reivindica a paternidade, mas provavelmente não o copyright (ver,
entre outras apresentações de suas idéias principais, esta matéria em espanhol: Entrevista a
Heinz Dieterich, “En Venezuela se han creado condiciones para construir el Socialismo del
Siglo XXI”.60 E não apenas ele: os irredutíveis gauleses também estão correndo atrás da
novidade, e o líder mais importante do novo partido anti-capitalista do país, Olivier
Besancenot, acaba de escrever, com Daniel Bensaïd (outro velho conhecido dos iniciados),
um livro revelador: Prenons parti: Pour un socialisme du XXIe siècle (Paris: Mille et une
Nuits, 2009). Atenção, interessados: a Amazon France anuncia a 15,20 euros, mas dá para
comprar usado (já?!) por apenas 10 euros.

60
Ver entrevista concedida a Cristina Marcano, Aporrea, 3.01.2007;
http://www.kaosenlared.net/noticia/entrevista-a-heinz-dieterich.

199
O que é mais curioso é que, enquanto o primeiro se vangloria de ter inventado o
conceito e de ter definido os elementos principais do novo socialismo, os segundos pretendem
ainda inventá-lo, o que, convenhamos, apresenta algumas dificuldades práticas. Ou ele ainda
não existe, e se tal é o caso, seria preciso “inventá-lo”, ou pelo menos descrever sua
arquitetura interna e externa e desenhar suas configurações principais; ou, então, ele já existe
e esses franceses estão um pouco atrasados no palco da história. De fato, o capítulo principal
do livro dos dois franceses mais lentos do que o militante alemão – denominado Vers un
Socialisme du XXIe siècle, ou seja, em direção de... – tenta ainda encontrar uma alternativa ao
modo de produção capitalista: uma de suas seções pretende lutar “Pour une alternative
économique”. Só podemos desejar sucesso na empreitada, esperando que ela de fato seja bem
sucedida.
Mas uma primeira questão se coloca, como não deixou de observar um antigo
conselheiro socialista do ex-primeiro ministro Lionel Jospin, em artigo recém publicado no
mais prestigioso jornal francês: “Convertida em leitmotiv, essa fórmula [inventar o socialismo
do século XXI] soa estranhamente. Com efeito, só se pode inventar o que não existe. Ora, o
socialismo existe. Ele precedeu o marxismo e lhe sobreviveu. Ele luta para enquadrar e domar
o capitalismo desde o nascimento deste último no século XIX [sic]. E, quaisquer que sejam
suas novas características, o ‘socialismo do século XXI’ continuará, tanto em suas finalidades
como em sua filosofia, muito próximo de seus antecessores dos dois séculos precedentes”. 61
Vejamos, em todo caso, quais seriam as características do novo socialismo do século
21, anunciadas estrepitosamente por um militante alemão, ainda no século 20, e buscadas
afanosamente por outros militantes franceses já bem entrado o próprio século 21. Cabe, antes
de tudo, oferecer alguns elementos constitutivos do ‘velho’ socialismo, de maneira a poder
diferenciá-lo – ou inversamente – do seu êmulo do século 21, supostamente inovador,
inventivo, diferente, ou seja lá o que for. Com efeito, de nada vale apresentar algo como
sendo novo, sem o seu diferencial.
Numa definição ‘rósea’, digamos assim, o movimento socialista busca a justiça social;
condena as desigualdades sociais e a exploração do homem pelo homem – por definição
capitalista, ainda que outros modos de produção também se organizassem dessa maneira;
defende o progresso social e prega a construção de uma sociedade igualitária, sem classes
sociais. Esta é a sua versão democrática, numa caracterização civilizada do socialismo. Em

61
Cf. Aquilino Morelle, “Le socialisme du XXIe siècle, un réformisme radical”, Le Monde, Point de
Vue, 24.05.09; http://www.lemonde.fr/opinions/article/2009/05/23/le-socialisme-du-xxie-siecle-un-
reformisme-radical-par-aquilino-morelle_1197111_3232.html.

200
sua definição leninista, clássica por assim dizer, o socialismo visa à eliminação do modo de
produção capitalista, pela derrubada violenta do Estado burguês – por definição colocado a
serviço das classes dominantes e exploradoras – com a implantação temporária de uma
ditadura do proletariado que, uma vez construído o socialismo e estabelecidas as bases da
sociedade comunista, poderá caminhar para o seu desaparecimento, assim como do próprio
Estado, posto que todas as classes sociais terão sido fundidas numa mesma coletividade de
trabalhadores, que se organizarão segundo o princípio marxiano: ‘de cada um segundo as suas
capacidades, a cada um segundo as suas necessidades’. Corrijam-me os marxistas, velhos ou
novos, róseos ou leninistas, se estou errado. Mas acredito ter apresentado o essencial das duas
doutrinas principais do socialismo do século 20: a reformista, quase sem dentes, domada pelo
capitalismo; e a mais truculenta, identificada com a III Internacional e os partidos comunistas
alinhados a Moscou, quando esta ainda era a Meca do socialismo revolucionário.
Quaisquer que sejam as qualificações que possam se feitas em relação às definições
apresentadas acima, acredito que elas reproduzem razoavelmente bem a história do
movimento socialista e comunista no século passado: os reformistas, de um lado, ajudaram a
administrar o capitalismo, introduzindo pequenos avanços nas relações de trabalho e nos
benefícios coletivos – geralmente via taxação progressiva e políticas setoriais, sempre por
maioria parlamentar e, em todo caso, nos quadros da economia de mercado; as opções dos
revolucionários, por sua vez, conheceram destinos diversos nos diversos países que tentaram a
via ‘soviética’ de planejamento centralizado, com conseqüências trágicas a cada vez, algumas
mais mortíferas que outras, mas todas elas muito penosas em termos de liberdades individuais
e de bem-estar social. E, quaisquer que sejam as opiniões dos órfãos do socialismo real sobre
os méritos relativos do socialismo reformista sobre o seu primo leninista, é evidente que eles
não pretendem mais ser identificados com os terríveis crimes deste último, daí, justamente,
essa invenção genial que se chama ‘socialismo do século 21’.
Pois bem, em que consistiria, então esse novo produto no supermercado dos sistemas
econômicos e políticos da história, esse novo animal na fauna já variada de regimes
produtivos e modos de organização política à disposição dos domadores interessados?
Segundo seu inventor presumido, que se vangloria de tê-lo posto em circulação em 1996 e de
vê-lo já bastante disseminado a partir de 2001, o novo socialismo representaria, simplesmente,
um sistema “no qual as maiorias tenham o maior grau de decisão historicamente possível nas
instituições econômicas, políticas, culturais e militares, que regem suas vidas” (cf. entrevista
supracitada). Dito assim parece pouco, e em nada diferente de um sistema democrático

201
participativo, como são as sociais-democracias, em geral, e, de fato, todos os regimes
democráticos modernos.
Mas, o ideólogo em questão avança um pouco mais em suas definições. Ele recusa, em
primeiro lugar, que tenham havido sociedades socialistas em todo o período que se estende da
Revolução francesa aos nossos dias, e isso com base no que ele acredita terem sido os
parâmetros que utilizavam Marx e Engels: economia do valor [que se supõe seja a teoria do
valor trabalho] e democracia participativa. Em suas palavras, “sob esses critérios não houve
nenhuma sociedade socialista desde a Revolução francesa, ainda que, sim, muitas tentativas
heróicas e trágicas de lográ-la”.
Bem, e o que ele propõe, exatamente, como ‘socialismo do século 21’, que ele acredita
estar sendo construído na Venezuela atualmente? Perguntado sobre qual seria o passo
decisivo que teria de dar o Presidente Chávez para chegar ao ‘socialismo do século 21 na
Venezuela, ele responde: “São dois: 1) substituir gradualmente o princípio regulador da
economia de mercado, o preço, pelo princípio regulador da economia socialista, o valor,
entendido este como os insumos de tempo (time inputs) necessários para a geração de um
produto; 2) avançar a participação econômica de cidadãos e trabalhadores em três níveis: 1.
no macroeconômico (por exemplo, o orçamento nacional); 2. no mesoeconômico (município)
e, 3. no microeconômico (empresa).” Este parece ser o cerne de sua genial invenção, salvo
melhor juízo...
O segundo passo até parece algo muito simples, nada de muito diferente de uma
democracia ampliada, com amplas consultas populares, um pouco como nos cantões rurais da
Suíça, digamos assim, ainda que as empresas helvéticas (de qualquer tipo) permaneçam
irredutivelmente privadas. Já o primeiro passo, o da teoria do valor (trabalho) como substituta
do valor capitalista (o preço), trata-se, sem dúvida alguma, de um verdadeiro ovo de
Colombo, que deve merecer toda a nossa atenção.

Quão novo é, de fato, o socialismo do século 21 e quais suas chances de dar certo, onde o
velho fracassou miseravelmente?
Vejamos, em primeiro lugar, o passo dois – não confundir com o paso doble, uma
antiga dança de salão, inspirada nas touradas da Espanha e disseminada no sul da França e no
mundo latino na primeira metade do século 20 –, pois ele parece mais simples de ser
analisado e diagnosticado.
A participação cidadã na formulação e execução orçamentárias vem sendo tentada em
diversos experimentos ditos progressistas, com resultados muito variados e de toda forma não

202
conclusivos, em todos eles. Nas ‘democracias burguesas’, essa participação se dá através do
corpo representativo no parlamento, eleito justamente para isso, geralmente em bases
proporcionais (puras, distritais majoritárias ou num misto de ambas), através de um complexo
processo negociador que envolve vários ministérios setoriais, os órgãos de planejamento
orçamentário e a eventual intromissão de lobbies – legais ou não – e do qual emerge uma peça
legal que serve de base para o essencial das atividades do Executivo num ano-calendário
(quase sempre identificado com o ano fiscal). Nos países mais sérios, não existe essa ‘teoria
da jabuticaba’ de orçamento ‘autorizativo’, a partir do qual o Executivo faz o que quer em
termos de execução orçamentária: contingenciamentos, retenções, e outras invenções
surrealistas que caracterizam o cenário político brasileiro. O orçamento, neles, é obrigatório,
ponto final (se o Executivo quiser mudá-lo, tem de enviar novo pedido ao Parlamento para
reordenar os recursos e as despesas da peça orçamentária).
Não existe nenhuma evidência concreta de que o chamado “orçamento participativo”
seja qualitativamente superior aos orçamentos tradicionais, feitos em âmbito exclusivamente
parlamentar, nos níveis federal, provincial (ou estadual) e municipal, podendo até haver um
pressuposto lógico de que eles sejam piores, em sua definição ou execução (ou ambos). Com
efeito, sendo as necessidades e os desejos humanos e sociais propriamente infinitos, ou pelo
menos extensíssimos, e sendo os recursos financeiros escassos, por definição, é evidente que
nem todas as demandas coletivas, por mais urgentes que sejam, poderão ser atendidas. Há,
portanto, o sério risco, de que determinados projetos ou sejam postergados – como, aliás,
sempre ocorre na via tradicional – ou de que eles sejam implementados de qualquer modo,
por simples rendição ao populismo eleitoreiro, sem que a alternativa mais racional – que
resultaria de longas e complexas avaliações técnicas, impossíveis de serem avaliadas numa
‘assembléia popular’ – seja levada em conta, num ambiente de ‘pressões populares’, sempre
difíceis de serem recusadas pela própria natureza do mercado político eleitoral.
Quer queiram, quer não os partidários do orçamento participativo, qualquer peça
orçamentária envolve uma definição de prioridades – não apenas entre usos alternativos dos
recursos fiscais disponíveis, mas também no que concerne sua utilização eventualmente
delongada no tempo – que se acomoda mal com as demandas imediatas e urgentes de
quaisquer setores desfavorecidos da população, geralmente propensos a solicitar obras
imediatas e parcialmente corretivas dos problemas detectados, em detrimento de um
planejamento em escala macro que recomendaria outras soluções de maior bem-estar coletivo,
como energia e transportes, por exemplo (ainda que diferidas em sua implementação final).

203
No que se refere, em particular, à experiência da Venezuela, não existe, justamente,
nenhuma evidência de que tais procedimentos estejam sendo adotados, à falta de maiores
dados sobre a execução do orçamento nacional, excessivamente concentrado na presidência,
ou discutido num parlamento que parece inteiramente submisso à vontade do presidente.
Sendo a companhia estatal de petróleo PDVSA a principal provedora de recursos para o
Estado – e a maior fonte de divisas para as importações nacionais –, cabe recordar que essa
companhia não publica balanços há vários anos e que o orçamento do Estado compõe-se de
várias rubricas não transparentes, de uso discricionário pelo presidente, sem qualquer
publicação oficial de números fiáveis (nem a Cepal, nem os organismos econômicos
multilaterais vêm tendo condições de avaliar objetivamente a economia venezuelana,
precisamente por falta de estatísticas completas sobre vários índices macroeconômicos e
setoriais).
Quanto ao segundo ponto, participação ‘mesoeconômica’, no município, de fato se
trata de saudável disposição democrática, pois como costumava dizer um político demo-
cristão de saudável memória anti-corruptora (Franco Montoro), a população não vive nem na
federação, nem no estado, mas no município, daí o interesse na descentralização mais ampla
possível do maior número de iniciativas e execuções do poder público. Quanto a isso, duas
observações podem ser feitas, uma em relação ao Brasil, a outra em relação à Venezuela. Dos
mais de 5.500 municípios criados no Brasil – grande parte nos últimos vinte anos, por pura
pressão de políticos profissionais, quase todos sem geração de receitas próprias – mais da
metade vive de transferências federais, sendo que boa parte dos recursos acaba sendo
consumida em gastos correntes: pessoal ou o próprio funcionamento da prefeitura e da câmara
de vereadores, com os salários que se conhecem, em causa própria. Aparentemente, a
população brasileira, mesmo a de grandes cidades, com grande fração de cidadãos educados,
não vem sendo capaz de exercer seu poder ‘mesoeconômico’, não sendo de surpreender o que
ocorre nos pequenos municípios, de população carente e escasso nível educacional. Quanto à
Venezuela, os elementos de informação de que se dispõe indicam, contrariamente ao que
poderia esperar o ideólogo alemão, que está em curso uma inédita concentração de poderes no
âmbito da presidência da República e de órgãos auxiliares criados de forma ad hoc –
conselhos populares – fortemente influenciados, ou totalmente dominados, pelo partido do
presidente. Difícil falar, assim, de ampliação da democracia naquele país, inclusive porque a
eleição de políticos de oposição em determinados estados e municípios – como é o caso da
própria capital, Caracas – redundou no esvaziamento do poder político local e sua
transferência para a esfera federal, mais exatamente para o palácio presidencial.

204
No que se refere, finalmente, ao item três do passo dois, a participação dos
trabalhadores no nível microeconômico, ou seja, nas empresas, as experiências internacionais
indicam resultados ambíguos, em todos os casos, e algumas reversões em determinadas
circunstâncias. As experiências mais avançadas nesse âmbito, nos casos das economias
‘sociais de mercado’ da Alemanha e dos países escandinavos, não passaram de interação
sindical entre os diretores da empresa e os comitês sindicais – em alguns casos com
envolvimento da categoria sindical mais ampla – para algumas definições estritamente
laborais e de organização do trabalho, e de participação dos trabalhadores nos lucros das
empresas, o que vem sendo obtido em diversas economias capitalistas, sem qualquer
prenúncio de que isso constitua uma etapa para a construção do ‘socialismo do século 21’
nesses países.
Recentemente, inclusive, com a erosão dos ganhos de produtividade em vários países
europeus, diversos ‘direitos’ dos trabalhadores foram sendo limitados, em função da própria
sobrevivência do emprego setorial em economias de altos custos laborais como é o caso da
maior parte desses países. Não existem, por outro lado, informações fiáveis de que o poder
sindical esteja sendo reforçado na Venezuela; ao contrário: o governo federal vem
‘dialogando’ diretamente com os trabalhadores, seja ao aumentar rapidamente os salários,
numa economia crescentemente inflacionária, seja ao determinar de maneira não negociada a
redução da jornada de trabalho em todos os ramos da economia, independentemente das
características setoriais e dos níveis de produtividade de cada um deles, o que pode agravar o
desemprego.
Ou seja, até aqui, não se vê muito bem, em quê, exatamente, o novo socialismo
prometido pelo ideólogo alemão se distingue do capitalismo avançado e das democracias de
massa e como, especialmente, a Venezuela está implementando o que parece ser um conjunto
de melhorias parciais da condição democrática naquele país, inclusive porque uma avaliação
independente dos progressos alcançados vem se tornando objetivamente impossível, pela falta
de dados concretos sobre a situação das contas nacionais e dos principais indicadores
setoriais. A hiperconcentração de poderes nas mãos do Executivo – de fato nas mãos do
presidente atual – guarda uma estranha relação com os conceitos tradicionais de democracia,
baseados na divisão dos poderes, na existência de controles sobre o uso dos recursos públicos,
na transparência de dados essenciais ao funcionamento de uma economia complexa e no
debate contraditório entre os diferentes setores da opinião pública, geralmente mediados pelo
parlamento ou assegurados pelo funcionamento de uma justiça independente.

205
Estas condições e pressupostos dos regimes democráticos ‘normais’ parecem longe de
estarem sendo atendidos na Venezuela atual, o que quer que digam os promotores do “poder
popular”, crescentemente dispostos, aparentemente, a silenciar ou asfixiar aquilo que se
designa por “veículos de comunicação da oligarquia golpista”. Ao contrário: quem quer que
conheça a história dos fascismos europeus na primeira metade do século 20, ou a própria
‘construção do socialismo’ na União Soviética dos anos 1920 – ou seja, o caminho para o
Stato totale na Itália de Mussolini, a atribuição de plenos poderes ao novo chanceler Hitler, na
Alemanha, logo convertido em Führer, e a transformação da suposta ‘república dos sovietes
de operários e camponeses’ em ditadura do partido comunista na URSS de Lênin e de Stalin –
não pode deixar de ficar chocado pela enorme semelhança de procedimentos e de intenções
entre as medidas de concentração de poderes tomadas por aqueles ditadores e as iniciativas
agressivas do líder venezuelano no sentido de ‘empolgar’ e dominar todas as instâncias de
poder político e econômico no país caribenho.
O mais surpreendente é que diversos expoentes da suposta esquerda ‘antifascista’ não
se tenham dado conta dessas similitudes de forma e de substância entre esses processos
históricos e não tenham traçado paralelos entre experiências e procedimentos que em nada se
diferenciam, a não ser por um discurso alegadamente anti-imperialista (ou anti-americano),
que na verdade existia também nos casos precedentes, mas geralmente dirigido contra o velho
imperialismo britânico (as diatribes contra o imperialismo americano surgiriam, com maior
intensidade, depois da Segunda Guerra Mundial). A falta de discernimento da esquerda
marxista pode se explicar de duas formas: cegueira, talvez, ou então, estupidez política,
mesmo...

Do socialismo mais eletricidade do século 20 para o socialismo mais informática do


século 21: alguma inovação genial?
Um dos aspectos mais curiosos da construção inicial do socialismo na União Soviético
era a dupla admiração de Lênin pelos procedimentos industriais de Henry Ford – um homem
também imensamente admirado por Hitler, mas por seu anti-semitismo doentio e obsessivo –
e pelo poder aparentemente mágico da eletricidade, algo ainda raro nas imensas extensões
rurais da Rússia pré-bolchevique. Conseqüentemente, Lênin pretendeu impulsionar os
métodos fordistas nas fábricas nacionalizadas pelo novo poder soviético e considerava,
ingenuamente, que a simples introdução em larga escala da eletrificação, em todos os setores
produtivos da economia socialista, seria capaz de lançar decisivamente o país no caminho do
comunismo. Não é preciso dizer que o estilo ‘chaplinesco’ de trabalho, sob o comando de

206
Stalin, logo converteu-se num dos mais acabados sistemas escravocratas da era
contemporânea, e que a eletrificação efetivamente alcançada em quase todas as indústrias
soviéticas – menos as do Gulag, onde a mão-de-obra era bem mais ‘barata’ – esteve longe de
impulsionar tremendamente as forças produtivas na direção do almejado comunismo.
Pois bem, o que pretende agora o ideólogo do ‘socialismo do século 21’ na Venezuela
e, por extensão, em outros países tocados pelo poder mágico de sua fórmula inovadora para
passar do capitalismo a um modo superior de produção? Pode parecer incrível, mas ele se
prepara para cometer os mesmos erros que enterraram o socialismo do século 20 e que
representam um dos mais trágicos equívocos embutidos na suposta ‘economia política
marxista’, qual seja, a ‘superação’ da valoração de mercado – através dos preços – por uma
fantasmagórica ‘contabilidade socialista’, baseada no valor (que se supõe seja a teoria do
valor trabalho, recuperada erroneamente por Marx dos economistas ‘clássicos’, como Smith e
Ricardo). E como ele pretende fazer isso? Por meio de um novo poder, o cibernético, ou
informático, convertido no equivalente da eletricidade leninista para a construção do novo
paraíso socialista. Basta substituir a eletricidade por um software e estamos prontos para
embarcar na nave espacial do socialismo do século 21 (quem sabe mais além?).
Nas próprias palavras de Heinz Dieterich, quando perguntado qual seria, então, o
passo decisivo do presidente [venezuelano], ele responde, candidamente: “Não é a estatização
generalizada da propriedade privada, porque ela não resolve o problema cibernético do
mercado [sic]. Não o fez no passado e não o faria hoje. O socialismo hoje em dia é
essencialmente um problema de complexidade informática [resic]. Daí, que o passo
transcendental consiste em estabelecer uma contabilidade socialista (valor) ao lado da
contabilidade capitalista (preço), no Estado, na PDVSA, e nas cooperativas, a fim de construir
um circuito econômico produtivo e de circulação paralela ao da economia de mercado
capitalista [tresic]. A economia das entidades estais e sociais pode deslocar-se passo a passo
em direção à economia do valor e ganhar terreno sobre o circuito da reprodução capitalista,
até substituí-la no futuro [quadrisic]. Dado que as escalas de valorização pelos preços, valores
e também volumes, são comensuráveis, não ocorrerão rupturas nos intercâmbios econômicos
que poderiam causar um problema político para o governo [otimista sic]. Em tudo isso,
desempenham um papel importante o Estado e as maiorias [sociais], mas hoje em dia ambas
estão majoritariamente com o projeto do Presidente [Chávez]”. 62

62
Cf. entrevista, op. cit.; http://www.kaosenlared.net/noticia/entrevista-a-heinz-dieterich.

207
Esse genial inventor de um ‘socialismo do século 21’ – cujas propostas têm um certo
sabor de ‘revolução na ciência econômica’, desta vez sugeridas por um êmulo de Friedrich
Engels contra algum fantasma de Eugen Dühring, surpreendido pelo furor da crítica à crítica
ao socialismo marxista – parece ter descoberto a pólvora da nova economia socialista, um
verdadeiro ovo de Colombo, que basta forçar um pouco numa das extremidades, para que ele
se sustente gloriosamente de pé. Ele talvez merecesse um Prêmio IgNobel de Ciência
Econômica, se não fosse pela completa falta de originalidade de sua teoria do valor. Se não
vejamos.
A teoria do valor trabalho, como se sabe, é um dos pilares fundamentais da teoria
marxiana da economia, embora não tenha sido inventada por Marx, nem era admitida
unicamente por ele como um dos possíveis instrumentos para a mensuração do valor de uma
mercadoria. Adam Smith e David Ricardo flertaram com ela em suas obras respectivas, mas
nunca chegaram fazer dela o instrumento essencial da definição do valor de mercado de um
bem manufaturado. Para Marx, totalmente equivocado nesse particular, mas agora
ressuscitado pelo novo sábio alemão, o valor de uma mercadoria qualquer pode ser aferido
objetivamente pelo número de horas requeridas para produzir aquela mercadoria: se para
produzir um quilo de pão se requer o dobro do tempo necessário para produzir um quilo de
merengues, então o pão deve valer o dobro dos merengues, independentemente dos insumos
inseridos em cada mercadoria. Daí ele extraiu a sua famosa teoria da mais-valia, como sendo
a base de sua explicação sobre a natureza da exploração capitalista, a verdadeira essência do
processo de produção capitalista e, obviamente, da extração de capital do trabalhador pelo
capitalista, a partir da apropriação do sobre-trabalho daquele por este último.
Enfim, acreditam nessa fábula pretensamente econômica apenas aqueles que se
deixam cegar pela ‘imoralidade’ da exploração capitalista e pretendem libertar os
trabalhadores industriais das novas galeras da grande indústria capitalista. Para todos os
efeitos, a teoria do valor trabalho não possui nenhuma viabilidade teórica ou validade prática
para aferir o que quer que seja no processo de produção de mercadorias, em qualquer regime
industrial imaginável nos séculos passados e nos que ainda vão vir. As leis da oferta e da
procura em seus sempre mutáveis pontos de encontro, combinadas à escassez relativa dos
insumos e dos meios de produção – cuja aferição é dada pelos preços de mercado –
determinam o valor (de mercado, obviamente) de qualquer mercadoria imaginável, menos, é
claro, aquelas que serão fabricadas nas novas empresas do ‘socialismo do século 21’ do novo
sábio alemão, conselheiro eventual de algum príncipe tropical.

208
E o que pretende esse cérebro genial da nova economia política do século 21?
Simplesmente substituir o mecanismo dos preços de mercado, vulgarmente capitalista, pela
nova contabilidade socialista, uma espécie de Gosplan informatizado, no lugar das velhas
máquinas de calcular elétricas dos funcionários do ministério soviético do planejamento e do
seu comitê de preços, supostamente capaz de determinar o preço exato de 24 milhões de
mercadorias e insumos intermediários oferecidos no não-mercado socialista (bem, nem tanto
assim: talvez o socialismo ainda não tivesse alcançado o capitalismo em diversidade de bens
‘supérfluos’).
Mas, deixemo-lo expressar suas idéias com suas próprias palavras: “Gerar o circuito
paralelo da economia do valor seria relativamente fácil [sic], porque os valores existem de
forma subjacente na atual contabilidade capitalista [resic]. De tal maneira, que com o
desenvolvimento de um software apropriado [tresic] seria muito fácil estabelecer esse circuito
econômico socialista ao lado do [circuito] capitalista [quadrisic]. Sem esta passagem à
economia da equivalência [???], não há possibilidade de se ter uma economia socialista” (op.
cit.).
Existe aqui não apenas uma insuperável contradição econômica, mas também um
enorme absurdo conceitual. Se algum economista prático, isto é, de alguma empresa
capitalista ou dedicado à economia aplicada – bem, acho que podemos estabelecer uma
‘licença poética’ para alguns economistas acadêmicos, pois eles têm direito à sua quota de
loucuras – concordar em que “os valores existem de forma subjacente na atual contabilidade
capitalista”, ele poderia ser, no mínimo, despedido por incompetente, e, no limite, internado
por insanidade econômica grave. Se esse economista ainda achar que basta um software para
traçar uma lei de equivalência – seja lá o que isso queira dizer – entre a produção capitalista e
a socialista, então é o caso de se receitar eletro choques e doses dobradas de antidepressivo.
Enfim, acho que um economista desses nunca seria contratado por uma empresa
capitalista, nem se aproximaria de algum instituto sério de pesquisa econômica aplicada –
bem, sempre pode ter algum instituto por aí, desprevenido – e teria, portanto, uma capacidade
muito limitada de perpetrar alguma maldade econômica, a menos que ele esteja a serviço de
algum príncipe bizarro. Se as suas ‘teorias’ fossem aceitas como fundamento de alguma NEP
tropical, uma nova economia política a serviço do socialismo de qualquer século, passado,
presente ou futuro, então, a sua capacidade de arrasar com a economia nacional seria
devastadora.
Esse teórico do novo socialismo nunca deve ter lido as críticas de Ludwig von Mises e
de Friedrich Hayek a propósito do velho socialismo, o primeiro dos quais publicou, há quase

209
90 anos – num momento, portanto, em que o socialismo ainda nem existia como realidade
prática – uma crítica, aí sim, devastadora dos ‘fundamentos’ econômicos do sistema que
Lênin pensava implantar na Rússia soviética. Mises, seja pela lógica formal, seja pela simples
análise econômica do mecanismo de preços como sinalizador da raridade relativa dos bens de
mercado – insumos, meios de produção ou mercadorias – afirmou que um sistema socialista
não apenas não conseguiria funcionar, como seria impossível de ser administrado
racionalmente.
O fato de que um sistema socialista ‘funcionou’ durante setenta anos, a despeito das
advertências de Mises e Hayek, não prova que um elefante consegue voar; prova apenas que,
sob condições de escravidão humana ou com imenso desperdício de recursos, ‘milagres’
podem ser realizados, ainda que com prazos de validade limitados. O que ocorreu na União
Soviética durante a fase do stalinismo triunfante ou na China do maoísmo delirante
demonstram que a vontade humana pode ser dobrada até o limite da sobrevivência física, e
que em condições de “oferta ilimitada de mão-de-obra” – como diria um famoso economista
do desenvolvimento – as piores aberrações econômicas podem ser perpetradas durante certo
tempo.
Quando se tem, por exemplo, uma oferta ilimitada de recursos – derivada, digamos, do
aumento extraordinário dos preços do petróleo – podem-se cometer as piores loucuras
econômicas: mandar plantar bananas no Pólo Norte, digamos, seria uma delas, (com
aquecedores a diesel, muito adubo trazido do exterior e a vigilância de um exército de
esquimós treinados para essa finalidade, logo teríamos uma bela plantação de bananas acima
do círculo polar). Enquanto o dinheiro não for um limitador ‘capitalista’, dá para sustentar
indústrias ineficientes, mercadorias altamente subsidiadas para ‘abastecer’ o povo e
trabalhadores pagos acima do seu valor de mercado – não, não perguntem ao ‘economista’
desse sistema qual é esse valor de mercado, que ele só saberia balbuciar umas bobagens em
torno do Programa de Gotha. Quando os recursos encontrarem o seu limite físico, pode-se
também emitir papel moeda sem valor, o que muitos governos fazem de forma recorrente.
Mas, em algum momento, a dura realidade da vida econômica vai bater às portas do
economista oficial, e ele será obrigado a se dobrar às leis do mercado (bem, estou também
supondo que um súbito ataque de lucidez levará o seu príncipe a demiti-lo antes da débâcle
final). Mesmo não considerando o terrível preço da falta de liberdade econômica – e política,
que geralmente vem junto – um sistema como esse proposto pelo ‘genial’ inventor do
‘socialismo do século 21’ é propriamente insustentável no médio e longo prazo, em condições
normais de temperatura e pressão. Com uma ‘vaca petrolífera’ à disposição, é possível

210
alimentar a população durante certo tempo, mas as pessoas vão certamente se cansar, um dia,
dos mesmos produtos sem muita sofisticação. E as vacas, um dia, ficam sem leite...

5. A história se repete? Talvez, mas não precisaria ser como tragédia...


Pode parecer incrível, com efeito, que, depois de todos os desastres econômicos,
políticos e humanos, do socialismo no século 20 – sim, porque no século 19 não houve
nenhum experimento desse tipo, apenas teorias, e no século 18 ele ainda era ‘utópico’ –,
alguém ainda pretenda retomar o mesmo festival de bobagens econômicas que levou tantos
países ao desastre e à desesperança.
Parece que foi Marx, justamente, quem alertou para a repetição da história, mas desta
vez o inverso é que se apresenta. De fato, algumas repetições de experimentos passados de
engenharia social redundaram em terríveis tragédias para os seus povos: basta lembrar os
‘campos da morte’, no Sudeste asiático, no final dos anos 1970, ou na lenta morte por
inanição de toda uma população num canto recuado da mesma Ásia. Mesmo na América
Latina, as tentativas de ‘senderos luminosos’ ou de construção do ‘homem novo’ estão longe
de terem sido farsas históricas, cobrando um preço terrível sobre populações inteiras.
Economistas ‘iluminados’ e líderes ‘salvacionistas’ são duas pragas que acometem de
maneira recorrente países insuficientemente desenvolvidos nos planos da economia de
mercado ou de um sistema político minimamente democrático. A única maneira de escapar
dessas pragas é através da educação econômica e do esclarecimento político da maior parte da
população, mas esse pode ser um processo factível apenas no médio e longo prazo, o que é
compreensível quando se observa, historicamente, o lento desenvolvimento das sociedades
humanas em direção a patamares mais avançados de instrução elementar e, depois, mediana.
O que é mais preocupante, em contrapartida, é ver quantos membros da academia,
supostamente pessoas esclarecidas e bem informadas, se deixam seduzir por falácias do tipo
que estamos examinando nesta série. Está certo que todos nós nascemos ‘zero quilometro’, ou
seja, igualmente ignorantes, e que nossa educação (política e econômica) precisa ser retomada
a cada geração e a cada novo indivíduo. Mas também é certo que o estoque de conhecimentos
científicos acumulados desde centenas de anos pela humanidade encontra-se hoje livremente
disponível nos sistemas informatizados que o ‘economista maluco’ pretendia ter como a base
da nova economia socialista: não custa nada tomar conhecimento das experiências passadas e
evitar a repetição das mesmas falácias de cem ou duzentos anos atrás. É uma simples questão
de bom senso.

211
Brasília, 24 de maio de 2009

212
24. Mitos do governo Goulart: reformas de base e autonomia frente ao
império

Invariavelmente, a história vulgar sobre o golpe militar de 1964 começa com a


ascensão das lutas sociais pelas reformas de base – sendo a principal delas a reforma agrária –
e contra a dominação estrangeira, lutas que vão se acelerando desde o segundo governo
Vargas e que culminam no governo de seu legítimo sucessor trabalhista e pobre líder político,
João Goulart. As grandes questões nacionais daquela conjuntura seriam as da aliança do
latifúndio com o imperialismo e a da subordinação da burguesia nacional a esse esquema
espúrio e anti-nacional. Os partidos e movimentos progressistas estariam engajados no
rompimento dessa aliança e na construção de uma aliança de classes que viabilizasse o
desenvolvimento do Brasil em bases propriamente nacionais.
O livro símbolo daquele momento, mais do que qualquer manual de história ou
compêndio de política aplicada, era um panfleto nacionalista chamado “Um dia na vida de
Brasilino”, que ainda hoje pode ser encontrado no site do PCdoB ou de movimentos afins, um
típico exemplo de nacionalismo piegas e de anti-imperialismo infantil. Brasilino é um
brasileiro médio que, desde o momento em que acorda até a hora de se deitar, consome
obrigatoriamente produtos de marcas estrangeiras e, assim, está o tempo todo pagando
dividendos ao capital estrangeiro, como explica repetitivamente o seu autor após cada ato de
consumo do ‘herói’ da história. A moral da história, inversamente ao que se poderia esperar
de uma análise estritamente econômica que revelaria as fragilidades da industria nacional, é,
obviamente, a de que o Brasil está dominado pelo capital estrangeiro, e que todos os
brasileiros são, como Brasilino, cúmplices da ‘exploração’ da pátria por esses interesses
defraudadores da riqueza nacional.
Outro mito propagado nesse tipo de subliteratura constitui, pelo lado paranóico, o da
conjunção de interesses entre, de um lado, os capitalistas nacionais, os militares e políticos
entreguistas, sem falar dos reacionários do campo e da cidade, em primeiro lugar os
latifundiários, e, de outro lado, os representantes do capital estrangeiro e os próprios enviados
do império, com destaque para os agentes da CIA e os adidos militares da Embaixada
americana, que foram os que induziram seus colegas brasileiros ao golpe. Nem todos os
didáticos históricos apresentam o golpe de 1964 como tendo sido teleguiado de Washington,
mas todos eles, invariavelmente, referem-se ao aumento da ‘pressão externa’ e aos

213
preparativos para a intervenção norte-americana, como elementos decisivos na decisão dos
militares brasileiros que derrubaram Goulart.
A subliteratura didática encontra-se, obviamente, apoiada em alguns grandes nomes da
historiografia nacional. Assim, é constrangedor constatar que, mesmo um compêndio atual,
por um dos principais representantes da produção histórica nacional, o já citado livro de
Adriana Lopez e de Carlos Guilherme Mota, História do Brasil: Uma Interpretação, reproduz
chavões que se pensava afastados das interpretações mais recentes desse processo histórico.
Citando vários nomes da vida pública e acadêmica brasileira, os autores referem-se a “uma
variadíssima gama de testas-de-ferro de empresas multinacionais” ou a representantes da
‘burguesia nacional’ – em especial a paulista – “com mentalidade dos tempos da pedra
lascada” (p. 782). Os autores pelo menos registram o depoimento de Darcy Ribeiro que
informa que “líderes das Ligas Camponesas haviam se deslocado para Goiás à procura de
bases para guerrilhas, ‘com apoio do governo cubano’” (p. 783). Esse tipo de alusão ao
modelo revolucionário cubano como caminho para o processo de ascensão das massas
brasileiras ao poder político nacional é, contudo, raro na literatura disponível a respeito, que
se contenta em reproduzir a versão sobre a oposição dos ‘reacionários’ às grandes reformas
progressistas de Goulart.
Quase não existem traços de uma avaliação equilibrada, ou seja razoavelmente crítica,
em relação ao governo de Goulart e seus inúmeros equívocos econômicos, políticos e
administrativos. Praticamente nenhum deles menciona a inflação galopante, o descontrole
orçamentário, o clima político de conflitos quase diários no campo e na cidade, a perda de
autoridade do governo em relação às corporações do Estado, enfim, o ambiente de
desorganização progressiva da vida nacional. Tudo se resume a um complô de reacionários
nacionais e aliados estrangeiros contra um governo progressista. De fato, mesmo um
protagonista direto dos acontecimentos, o então chefe da Casa Civil Darcy Ribeiro, pretende,
em seu livro-depoimento que:
O importante é que o governo de Jango não caiu em razão de seus eventuais defeitos;
ele foi derrubado por suas qualidades: representava uma ameaça tanto para o domínio norte-
americano sobre a América Latina como para o latifúndio.63

Esse tipo de avaliação complacente, e profundamente equivocada, sobre as supostas


virtudes do governo Goulart, visto como uma vítima inocente das forças conjugadas dos
latifundiários, dos empresários e políticos ‘entreguistas’, dos testas-de-ferro das

63
Cf. Darcy Ribeiro, Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu (Rio de Janeiro:
Guanabara, 1985), verbete 1811.

214
multinacionais e dos interesses poderosos do império, constitui a versão corrente da
historiografia dita ‘progressista’, num tipo de simplismo explicativo que fica bem aquém, pela
sua grosseira contradição com os fatos, das interpretações jacobinas originais, relativas à
historiografia tradicional da Revolução francesa. Em versões ainda mais simplificadas e
maniqueístas, ela freqüenta a maior parte da produção didática sobre a história política da
transição da República de 1946 para o regime militar.
Raramente esse tipo de literatura destaca, não as qualidades, mas os defeitos reais do
caótico governo Goulart, sua incompetência administrativa, a ignorância econômica do
presidente, seu total descaso ou desinteresse pelo equilíbrio das contas públicas, o loteamento
de cargos em função de critérios puramente personalistas (não de acordo com os méritos
individuais dos candidatos), a tolerância com a inflação e a desordem nas agências do Estado,
a indiferença em relação às sucessivas quebras da hierarquia e da disciplina – princípios
sagrados – nas Forças Armadas, bem como, nos últimos meses, o incitamento à divisão
política e social no país, com as promessas de realização das ‘reformas de base’, ainda que
contra os preceitos constitucionais e os processos legislativos normais. Poucos desses autores
lembram que a inflação anualizada para 1964 aproximava-se perigosamente de 100% – num
contexto de ausência completa de mecanismos corretores ou de indexação de valores e
contratos, recorde-se, o que fez cair a níveis irrisórios os volumes de poupança privada; em
menor número, ainda, são os historiadores complacentes com o governo Goulart que
registram a queda nas taxas de crescimento e de investimento total na economia, com a
completa retração do capital estrangeiro e mesmo a fuga de capitais nacionais; o desestímulo
à produção agrícola ou manufatureira nacional – em virtude dos controles de preços que
começavam a ficar extensivos e arbitrários; a paralisia nos mercados imobiliários, tanto de
construção quanto de aluguéis – em vista das ameaças de intervenção nos contratos e nas
condições dos negócios habitacionais; a deterioração no balanço de pagamentos, com redução
de exportações, ausência de empréstimos internacionais e a situação de virtual insolvência nas
obrigações externas; enfim, um conjunto de indicadores econômicos, políticos e sociais não
apenas negativos no curto prazo, mas potencialmente indutores de instabilidade social e
política e de grave crise econômica, que, aliás, já estava em curso quando os militares
decidiram se mobilizar.

Desmontando os mitos: instabilidade política e incapacidade de reformar


As ditas ‘reformas progressistas’ do Governo Goulart foram mais anunciadas – e mais
propriamente agitadas, notadamente no famoso comício da Central do Brasil, em 13 de março

215
de 1964 – do que propriamente implementadas, seja por manifesta incompetência do
presidente e seu governo, seja pela falta de base congressual, e de apoios sociais mais
explícitos, o que as condenou a permanecer o que sempre foram: meros slogans de agitação
política para tentar, desesperadamente, encontrar algum suporte na sociedade, à falta de
consenso nas bases políticas tradicionais. O que é um fato, e que a historiografia complacente
não aborda com clareza, é que o governo Goulart, a exemplo de tantos congêneres populistas
na região e alhures, dividiu a sociedade ao meio e foi incapaz de traçar um plano claro,
implementável, de reformas políticas, sociais e econômicas dentro de uma perspectiva realista
de um país capitalista da periferia, introduzindo uma agenda semi-socialista que muito fez,
justamente, para dividir a sociedade.
Como sempre ocorre nos momentos de dificuldades econômicas, líderes políticos
populistas buscam um bode expiatório para os problemas, atribuindo sua origem a fatores
externos ou aos ‘inimigos do povo’, como fez Goulart nesse discurso da Central do Brasil.
Indiferente às verdadeiras causas do desabastecimento alimentar e da alta de preços, ou
preferindo ignorar as responsabilidades do próprio governo para a construção de um cenário
que anunciava contenção dos ganhos dos ricos e limitação da remessa de lucros por parte dos
investidores estrangeiros, ele prometia ser rigoroso contra os especuladores e sonegadores:
“Ação repressiva, povo carioca, é a que o governo está praticando e vai ampliá-la cada vez
mais e mais implacavelmente, assim na Guanabara como em outros estados contra aqueles
que especulam com as dificuldades do povo, contra os que exploram o povo e que sonegam
gêneros alimentícios e jogam com seus preços”.
A historiografia complacente é totalmente acrítica em relação aos fracassos do
governo Goulart, notadamente em estabilizar a economia, controlar a inflação e retomar as
altas taxas de crescimento do governo Kubitschek, que ficou na história, justamente, por
combinar desenvolvimento econômico com estabilidade política.64 Duas das personalidades
mais saudadas do governo Goulart, San Tiago Dantas e Celso Furtado, foram especialmente
infelizes na tentativa de implementar programas de estabilização monetária, de reformas
essenciais e de crescimento econômico: a ambos faltou o apoio do presidente na
implementação de medidas que eram absolutamente necessárias para desviar o país da rota da
hiper-inflação, do estrangulamento externo, do descontrole orçamentário e do caos social. O

64
A referência básica a esse respeito pertence a uma das autores mais críticas do regime militar: Maria
Victoria de Mesquita Benevides, O Governo Kubitschek: Desenvolvimento econômico e estabilidade
política (1956-1961) (São Paulo: Paz e Terra, diversas edições, a maior parte durante o regime
militar).

216
primeiro, bastante esquecido atualmente, lutou bravamente no governo e no Congresso para
promover medidas realistas de reformas macroeconômicas e setoriais, que ele identificava
com uma agenda para a ‘esquerda positiva’, mas se viu confrontado com o desinteresse do
presidente e a exacerbação de radicalismos que levaram o Brasil ao desfecho inglório de 31 de
março de 1964.
Celso Furtado, por sua vez, é ainda hoje saudado como o grande economista
nacionalista e desenvolvimentista, esquecendo-se de destacar, seus defensores, sua postura
essencialmente complacente com a erosão inflacionária – que ele via como um mal menor, em
função do objetivo maior do crescimento, do emprego e da renda dos trabalhadores – o que
pode estar na origem da tolerância histórica no Brasil com altas taxas de inflação, uma das
causas principais, justamente, da concentração de renda e da manutenção de vastos estratos
sociais na pobreza crônica. Ele é especialmente lembrado pelo seu Plano Trienal, aliás
sabotado pelo próprio presidente, que não pretendia fazer um esforço mínimo que fosse pelos
objetivos modestamente estabilizadores desse plano frustrado a poucos meses de seu
lançamento. Cabe, talvez, reproduzir a síntese a respeito desse plano econômico vitimado pela
política viciada do governo Goulart, feita por este mesmo autor, em trabalho analítico
publicado em obra coletiva:
Em contraste com o nítido sucesso do Plano de Metas, o Plano Trienal de
Desenvolvimento Econômico e Social, elaborado em apenas três meses por uma
equipe liderada por Celso Furtado no final de 1962, para já subsidiar a ação econômica
do governo João Goulart no seu período presidencialista (em princípio de 1963 a
1965), sofreu o impacto da conjuntura turbulenta em que o Brasil viveu então, tanto no
plano econômico como, em especial, no âmbito político. O processo inflacionário e as
crises políticas com que se defrontou o governo Jango, combinaram-se para frustrar os
objetivos desenvolvimentistas do plano, que buscava retomar o ritmo de crescimento
do PIB da fase anterior (em torno de 7% ao ano), ao mesmo tempo em que pretendia,
pela primeira vez, contemplar alguns objetivos distributivistas. Estavam previstos, em
seu âmbito, a realização das chamadas “reformas de base” (administrativa, bancária,
fiscal e agrária), ademais do reescalonamento da dívida externa.65
Era um plano de transição econômica, não de planejamento macro-setorial, e
sua interrupção, antes mesmo da derrocada do governo Goulart, torna difícil uma
avaliação ponderada sobre seus méritos e defeitos intrínsecos (como o problema das
economias de escala no caso da indústria de bens de capital). Ele partia, em todo caso,
do modelo de “substituição de importações” e da noção de que os “desequilíbrios

65
Cf. Roberto B. M. Macedo, “Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-1965)”. In:
Betty Mindlin Lafer (org.). Planejamento no Brasil (3ª ed.; São Paulo: Perspectiva, 1975), p. 51-68.

217
estruturais” da economia brasileira poderiam justificar uma elevação persistente no
nível de preços, de conformidade com alguns dos pressupostos da teoria estruturalista
que disputava, então, a primazia conceitual e política com a teoria monetarista, que era
aquela preconizada pelo FMI e seus aliados nacionais (já objeto de notória
controvérsia no anterior governo JK). O processo inflacionário era, em parte, atribuído
a “causas estruturais” do setor externo (esquecendo o efeito do ágio cambial sobre os
preços internos) e, em parte, ao déficit do Tesouro como decorrência dos altos
investimentos realizados (mas a unificação cambial também privou o Estado de uma
fonte de receita substancial, sem considerar a questão salarial, tratada de modo pouco
responsável).
Em qualquer hipótese, os objetivos contraditórios do Plano Trienal (reforma
fiscal para elevação das receitas tributárias, mas inibição do investimento privado;
redução do dispêndio público via diminuição dos subsídios ao trigo e ao petróleo, mas
política de recuperação salarial; captação de recursos no mercado de capitais, sem
regulação adequada e sem remuneração compensatória da inflação; mobilização de
recursos externos num ambiente de crescente nacionalismo e hostilidade ao capital
estrangeiro), ademais da aceleração do processo inflacionário (73% em 1963, contra
25% previstos no Plano), condenaram-no ao fracasso antes mesmo que o governo
Goulart fosse derrubado numa conspiração militar. A economia cresceu apenas 0,6%
em 1963, como reflexo do baixo nível de investimentos realizado no período: na
verdade, os investimentos privados cresceram 14% nesse ano, mas eles tinham caído
10% no ano anterior, contra um decréscimo de 18% nos investimentos públicos em
1963. Em síntese, o plano falhou em seu duplo objetivo de vencer a inflação e
promover o desenvolvimento, mas as causas se situam acima e além de sua modesta
capacidade em ordenar a atuação do Estado num contexto político que tornava inócua
a própria noção de ação governamental. 66

Desmontando os mitos: uma análise das ‘reformas progressistas’


Uma exposição crítica das famosas ‘reformas de base’ do governo João Goulart – o
que é raramente feito, se jamais alguém o fez, na subliteratura dita progressista que se
caracteriza pelo maniqueísmo político em torno dessa época – revelaria, aliás, que elas eram
nada mais do que uma assemblagem oportunista de diversos objetivos gerais, sem qualquer
detalhamento específico e sem qualquer iniciativa concreta no plano parlamentar. De fato,
poucas foram as medidas encaminhadas sob a forma de projetos de lei ao Congresso, para sua
tramitação legislativa normal, mas muitos foram os discursos e anúncios feitos geralmente de

66
Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Planejamento Econômico no Brasil: uma visão de longo prazo,
1934-2006”. In: João Paulo Peixoto (org.): Governando o Governo: modernização da administração
pública no Brasil (São Paulo: Editora Atlas, 2008), p. 71-106.

218
forma bombástica para encantar platéias de apoiadores ou de já convencidos de sua
‘necessidade’. Algumas, aliás, foram anunciadas às pressas, como no famoso discurso da
Central do Brasil, já numa fase de desespero político pela degringolada visível do governo
junto aos congressistas e militares, como, por exemplo, as desapropriações de terras que
ladeavam rodovias e ferrovias nacionais para fins de reforma agrária – ‘contra a
Constituição’, se fosse preciso, como se jactou o presidente – e a estatização de refinarias de
petróleo, numa conjuntura em que a Petrobras se encontrava periclitante, depois de mais de
dez presidentes em menos de nove anos de existência.67
Quais eram, finalmente, as famosas ‘reformas de base’ do governo Goulart? Elas são
sumariamente apresentadas a seguir, no ordenamento feito no livro já referido de Lopez-
Mota, tal como originalmente apresentadas no livro-depoimento de Darcy Ribeiro, Aos
Trancos e Barrancos.68 Após o enunciado de cada uma delas, este comentarista complementa
a informação sintética com alguma avaliação crítica que se pode fazer a respeito de cada uma
delas, talvez com o benefício do chamado hindsight – ou o viés da visão retrospectiva – mas
em todo caso de maneira o mais possível objetiva e imparcial.

1) “Reforma Urbana, com vistas a definir uma Lei do Inquilinato que melhorasse as
condições de vida da classe média não-proprietária e dos trabalhadores;”
PRA: Trata-se de velha tentação de políticos populistas, como ainda tenta fazer, neste
mesmo momento, o governo Chávez, na Venezuela: a fixação, por critérios eminentemente
políticos, de tetos máximos de reajuste dos aluguéis, com eventual determinação igualmente
política de um teto máximo para a aferição dos valores de mercado – para construção ou
aluguel – do metro quadrado a ser construído ou alugado; eventualmente, as medidas são
completadas por programas de construção de habitações populares subsidiadas – o que cria
um problema para as contas públicas, quando não uma bolha imobiliária que terá graves
repercussões financeiras, creditícias e fiscais, mais adiante. O resultado prático da maior parte
dessas iniciativas é uma paralisação da construção civil para fins imobiliários, uma retração
do mercado de aluguéis, o desenvolvimento de um mercado negro de contratos fraudados
nesse setor e uma carência habitacional ainda maior do que a existente no período anterior ao
anúncio ou a implementação dessas medidas. A iniciativa de Goulart, se jamais ela fosse

67
Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Monteiro Lobato e a emergência da política do petróleo no Brasil”
In: Omar L. de Barros Filho e Sylvia Bojunga (orgs.), Potência Brasil: Gás natural, energia limpa
para um futuro sustentável (Porto Alegre: Laser Press, 2008), p. 12-33; disponível:
http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1925MonteiroLobatoPetroleoBr.pdf.
68
Cf. Darcy Ribeiro, Aos Trancos e Barrancos, op. cit., “1963, as reformas de Jango, verbete 1725”,
apud Lopez-Mota, História do Brasil, op. cit., p. 779.

219
implementada, correria esses mesmos riscos, como aliás provado pelos equívocos posteriores
de fixação de tetos máximos para a contratação de aluguéis privados, uma indesejada
intromissão do governo no patrimônio de particulares (para todos os efeitos equiparados a
‘rentistas desalmados’, quando muitos eram ou são, na verdade, cidadãos de classe média
tentando complementar pensões ou aposentadorias oficiais notoriamente insuficientes).
Suas promessas eram muito simples, na verdade: “Dentro de poucas horas, outro
decreto será dado ao conhecimento da Nação. É o que vai regulamentar o preço extorsivo dos
apartamentos e residências desocupados, preços que chegam a afrontar o povo e o Brasil,
oferecidos até mediante o pagamento em dólares. Apartamento no Brasil só pode e só deve
ser alugado em cruzeiros, que é dinheiro do povo e a moeda deste país. Estejam tranqüilos
que dentro em breve esse decreto será uma realidade.” Em outras palavras, ele prometia
tabelar os aluguéis, o que seria o caminho mais curto para a subtração do mercado
habitacional de milhares de imóveis potencialmente utilizáveis, uma receita segura para um
déficit ainda maior nessa área. Esta medida foi já adotada na Venezuela pelo presidente Hugo
Chávez, com as conseqüências desastrosas que se conhecem...

2) “Reforma Agrária, facilitando aos trabalhadores rurais acesso à terra, atacando os


latifúndios improdutivos ao instituir o uso lícito da terra;”
PRA: De fato, o tema da reforma agrária é um dos mais recorrentes na história social e
econômica da América Latina desde tempos imemoriais, praticamente desde suas etapas
formadoras enquanto terra de ocupação pela via preferencial do latifúndio e da grande
exploração comercial de exportação. As elites agrárias dos países da região,
independentemente de sua composição de origem e de seu relacionamento com os demais
estratos dirigentes, sempre conseguiram monopolizar as terras e as políticas públicas em seu
favor, distorcendo mecanismos tributários e as instituições de registro patrimonial, desafiando
inclusive a lógica econômica, que recomendaria o desenvolvimento de um amplo mercado
interno de produção e consumo baseado na repartição patrimonial desse fator essencial de
riqueza e poder, que é a terra. Como a ocupação do território não se deu pela via preferencial
da colonização familiar, como na America do Norte, as distorções permaneceram e foram se
agravando ao longo do tempo, gerando imensas camadas de camponeses pobres,
absolutamente marginais do ponto de vista estrutural e social, ou de simples trabalhadores
rurais, sem condições políticas ou econômicas de aceder à posse da terra. A reivindicação
fazia, portanto, todo o sentido, num contexto de pré-modernização das estruturas produtivas
no campo, desde que se pudesse assegurar efetivamente a existência de uma classe ou amplos

220
estratos sociais correspondendo à definição clássica do que seja a categoria camponesa, o que
nem sempre se manifestou de maneira concreta.
Como já escreveu um historiador brasileiro de tradição marxista, Caio Prado Jr. – que,
aliás, recomendava uma reforma agrária de cunho essencialmente capitalista, e nem sempre
pela simples repartição de terras –, o Brasil careceu, desde os tempos coloniais, de uma
verdadeira categoria assimilável, em linha de princípio, aos camponeses no sentido clássico
da palavra, uma vez que os ‘camponeses’ livres ou os trabalhadores rurais não pertencentes a
um latifundiário, ou não assalariados, sempre foram, em sua opinião, marginais, estrutural e
historicamente falando. Não lhe parecia, assim, que uma reforma agrária ao estilo mexicano
ou russo poderia ser aplicada no Brasil de modo economicamente racional e socialmente
sustentável. Caio Prado dizia que uma solução capitalista – via melhoria das condições de
trabalho sob um regime salarial – poderia cumprir as funções econômicas essenciais para a
constituição desse mercado interno capitalista que não tinha sido possível constituir no tempo
histórico de formação da sociedade brasileira.
Em outros termos, se a reforma agrária tinha sido uma necessidade em outros tempos,
talvez a sua oportunidade já tivesse passado e caberia examinar as outras possibilidades de
modernização econômica e social no campo, compatíveis com uma moderna economia
capitalista, em vista da inexistência já referida da classe camponesa tradicional. Assim, se
havia algum sentido de ‘justiça social’ na distribuição de terras, esse tipo de medida poderia
não revelar-se funcionalmente eficiente nas condições concretas da economia brasileira da
segunda metade do século 20. O que existia, sim, era uma demanda por trabalho e renda no
campo, sem que os demandantes tivessem, contudo, condições técnicas e competência
profissional para se estabelecerem como ‘camponeses capitalistas’ de modo pleno, sem
requerer assistência contínua e apoio financeiro do Estado, o que não necessariamente os
transformaria em camponeses bem sucedidos, mas provavelmente em eternos dependentes do
apoio estatal, na falta de capacitação especializada nessa área.
Em paralelo, havia, claro, uma enorme demanda política por ‘reforma agrária’, mas
isso correspondia mais aos movimentos políticos organizados em busca de uma agenda
qualquer de ‘transformação social’ do que propriamente a uma necessidade estrutural
daqueles mesmos que seriam objeto dessa ‘reforma agrária’. Ou seja, érea uma boa agenda
eleitoral, e de agitação ideológica, oportunamente explorada pelos movimentos em questão, e
pelos demagogos de plantão.
João Goulart, em seu famoso discurso da Central do Brasil falou da ‘reforma agrária’
como um espécie de “abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que

221
vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria”, o que era absolutamente verdade,
mas sem que isso pudesse implicar em que essas dezenas de milhões de brasileiros se
convertessem, da noite para o dia, em camponeses prósperos ou minimamente independentes
da ajuda estatal. O que ele pretendia, através de um decreto da Superintendência da Reforma
Agrária, era expropriar terras às margens das rodovias e ferrovias para entregá-las a
‘camponeses’ pobres, num gesto cheio de demagogia e inconseqüências: “O que se pretende
com o decreto que considera de interesse social para efeito de desapropriação as terras que
ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas
por obras de saneamento da União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas,
ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável.”
O vezo ideológico, mais bem demagógico, de sua proposta transparecia na imediata
seqüência de seu discurso: “Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de
uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, que se
apoderaram das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou 70
bilhões de dinheiro do povo, não deve beneficiar os latifundiários, pela multiplicação do valor
de suas propriedades, mas sim o povo.” Ele prometia, então, que em 60 dias, com a ajuda das
Forças Armadas, começaria o trabalho de demarcação e atribuição das terras assim designadas
para a sua ‘reforma agrária’ relâmpago. Mais adiante ele reiterava suas promessas: “A
reforma agrária deve ser iniciada nas terras mais valorizadas e ao lado dos grandes centros de
consumo, com transporte fácil para o seu escoamento.” Ademais dos imensos problemas
logísticos que tal medida em favor do ‘povo’ acarretaria, em vista da completa incapacidade
da Supra em administrar um processo dessa magnitude, havia o obstáculo do impedimento
constitucional da expropriação de terras sem prévia indenização em dinheiro, tal como
estabelecido pelos constituintes de 1946.
Não é possível saber que destino e que trajetória teriam tido a expropriação e a
distribuição de terras ‘valorizadas’, segundo o programa de ‘reforma agrária’ de Goulart,
posto que ela sequer chegou a ser implementada. Provavelmente ela teria conduzido a difíceis
batalhas legais no Supremo, além de alguma exacerbação da violência no próprio campo, a
supor que o Exército teria efetivamente servido de guarda pretoriana da Supra na sua tentativa
de acelerar a redenção do ‘povo rural’ por meio de iniciativas de claro conteúdo
confrontacionista.
Em todo caso, o governo militar do general-presidente Humberto de Alencar Castello
Branco adotou, como uma de suas primeiras medidas de reforma estrutural, o Estatuto da
Terra, que pretendia eliminar o latifúndio pela via da imposição fiscal e da sua inviabilização

222
patrimonial mediante condicionalidades produtivas, ou seja, uma típica reforma capitalista.
Quaisquer que tenham sido os resultados desse instrumento de reestruturação agrária, o tema
não deixou de ter sua forte conotação política e ideológica durante todo esse tempo, até os
dias que correm, quando um partido neo-bolchevique ainda diz pretender realizar a ‘reforma
agrária’ com os mesmos métodos e objetivos já inoperantes e economicamente irrelevantes de
meio século atrás.

3) “Reforma Político-Eleitoral, instituindo o voto aos analfabetos;”


PRA: Medida justa, em sua franquia universal, ainda que ela viesse acoplada de uma
exigência que ainda hoje desperta um sentimento de caução: “que a todos seja facultado
participar da vida política através do voto, podendo votar e ser votado”. De fato, Goulart
pretendia que “Nesta reforma, pugnamos pelo princípio democrático, princípio democrático
fundamental, de que todo alistável deve ser também elegível.” O princípio é meritório, mas
contar com prefeitos ou vereadores analfabetos pode não ser o melhor caminho para o
aperfeiçoamento da máquina administrativa e seu funcionamento adequado.

4) “Reforma Educacional, para ampliar a rede pública, assegurando a todos


o direito à Educação com qualidade, dentro dos princípios do Estado
laico;”
PRA: Os princípios e as intenções sempre foram vagos, e o governo Goulart nunca
explicitou como ele pretendia assegurar a todos o direito à educação de qualidade.
Supostamente, isso se faria pela ampliação das universidades públicas e pela democratização
do acesso, o que permaneceu indefinido até que o Ministério da Educação da ditadura militar
decidiu instituir o vestibular como método universal, e meritório em seu recrutamento
impessoal, de seleção na entrada, cabendo depois resolver o problema das vagas e da
qualidade do ensino. O que seria possível prever, mesmo na continuidade do regime
democrático no Brasil, seria a grande expansão do ensino universitário, demanda universal da
classe média e dos estratos urbanos da classe média baixa. O que os militares fizeram, de fato,
foram enormes investimentos na pós-graduação, ao lado de um relativo descaso com os ciclos
inicial e secundário da educação, com conseqüências catastróficas nas décadas que se
seguiram (mas isso não era fácil de prever à época, dada a relativa qualidade do ensino
público dos níveis fundamental e médio.
O fato é que, independentemente dos regimes militares e civis, e de sua orientação
mais estatizante ou liberal, a educação nos dois primeiros níveis continuou a se deteriorar
continuamente no Brasil, ao passo que a democratização do acesso ao ensino superior,

223
assegurado pela expansão sobretudo privada da oferta de vagas, foi acompanhada de certa
mediocrização dos quadros docente e discente, o que é de certa forma natural e esperado, num
movimento desse tipo. A melhoria da qualidade da produção científica não encontrou
correspondência na transposição desse conhecimento para o aparelho produtivo, e o Brasil
segue dependente de tecnologia e know-how estrangeiros. Em qualquer hipótese, seria
altamente aleatório e improvável que um governo Goulart levado a seu termo tivesse alterado
significativamente a qualidade do ensino no Brasil, em qualquer nível. O mais provável é que
ele teria contribuído com sua deterioração mais rápida, em vista do exacerbado
corporativismo sindical já presente e de suas conhecidas orientações demagógicas e populistas
incompatíveis com um ensino adaptado aos requerimentos de uma sociedade de mercado
competitiva como deveria ser o Brasil.
Mencione-se a propósito, que com todo o autoritarismo do regime militar, este esteve
mais próximo de cumprir certas exigências de uma moderna economia competitiva –
sobretudo ao estimular tremendamente a pós-graduação – do que todo o besteirol à la
Bourdieu ou ao estilo ingênuo de um Paulo Freire, disseminado por pedagogos incompetentes
como costumam existir nesses regimes fortemente ideologizados e sindicalizados. O desastre
educacional teria sido bem maior e teria vindo provavelmente mais rápido. O problema básico
da educação no Brasil é a afirmação do mérito, algo a que se opõem virulentamente
sindicalistas oportunistas.

5) “Reforma Administrativa, para modernizar o corpo funcional, racionalizando a


máquina do Estado e combatendo a corrupção;”
PRA: Nada mais meritório e nada mais necessário, aliás ainda hoje. Como para o
problema educacional acima mencionado, o mais provável teria sido uma deterioração do
serviço público, em função do corporativismo exacerbado que já vigorava nos tempos de
Kubitschek e caminhou para seu ponto máximo no governo Goulart. A orientação
tecnocrática do regime militar, aliás condizente com a própria natureza das Forças Armadas,
levou a uma modernização sensível do aparelho de Estado, ainda que pela via autoritária, e
com imensas restrições ideológicas, típicas da mentalidade estreitamente anti-comunista então
vigente. Os militares, na verdade, mesmo tendo modernizado o Estado, ampliaram
enormemente o seu escopo e abrangência substantiva, penetrando nas mais diversas áreas de
natureza diretamente produtiva. O resultado foi uma elevação da carga fiscal de menos de
13% para mais de 24%, servindo em parte para investimentos produtivos, mas em grande
medida também para a manutenção do próprio Estado. A sociedade brasileira, já premida por

224
uma carga tributária próxima da dos países ricos – com uma renda per capita seis vezes menor
–, paga o preço dessa expansão desmesurada do Estado, que, contrariamente ao que se
pretendia, correspondeu também a um crescimento da corrupção (absolutamente natural,
posto que o Estado manipula um volume maior de recursos, com muito mais funcionários e
canais de intermediação, inclusive de controle, que podem também servir a objetivos de
fraude e roubo deliberado).

6) “Reforma Bancária, para ampliar o crédito e financiamento às forças produtivas,


abaixando e controlando os juros;”
PRA: O Brasil nunca tinha tido, de fato, um mercado de créditos efetivo e um sistema
bancário digno desse nome; desde o Império, a carência de capitais foi uma constante em
nossa história. Era, portanto, mais que justificado que o governo Goulart pretendesse fazer
uma reforma bancária para ampliar o crédito e financiar a produção, mas o sentido adotado
para isso era deliberadamente enviesado para abaixar os juros, mantendo-os controlados por
mera volição administrativa. O Brasil, na verdade, precisava mais do que uma reforma do
sistema bancário: ele tinha de passar por uma reforma econômica radical, que deveria
começar por uma reforma monetária, fiscal e orçamentária, estabelecendo as bases de um
sistema financeiro competitivo e aberto, com graus moderados de extração tributária e de
requerimentos de financiamento por parte do Estado, o que contribuiria, justamente, para
manter em níveis moderados os juros bancários. O que eleva os juros é a dívida pública e a
falta de concorrência no sistema bancário, não a ganância dos banqueiros, como parecia
acreditar o governo Goulart. Controle de juros, assim como controle de câmbio, gera
distorções no campo econômico, além de ser inócuo, posto que um mercado paralelo – de
financiamento ou cambial – se colocaria imediatamente como alternativa informal à
determinação governamental. Outro não foi o resultado no mercado cambial em resposta à
fixação e uma taxa oficial para o comércio de divisas, como já se sabia nos anos 1960.

7) “Reforma Tributária, para corrigir as distorções da tributação entre proprietários e


assalariados;”
PRA: Certamente necessária, aliás indispensável, posto que a estrutura existente em
1964, preservando imposto anacrônicos que vinham do Império ou do início da República, era
altamente disfuncional do ponto de vista da produção, do consumo e da renda. Mas, essa
distinção feita na proposta entre ‘proprietários’ e ‘trabalhadores’ é profundamente reveladora
da visão distorcida que mantinham seus defensores, indicando um desejo pouco disfarçado de
taxar os detentores de patrimônio – ou seja, o estoque de riqueza existente na economia – em

225
lugar de estimular a produção, para então taxar os fluxos de riqueza criados. Não se sabe qual
seria, exatamente, a proposta de reforma tributária do governo Goulart, além desses instintos
predatórios ou retaliatórios contra os ‘proprietários’ e supostamente contra os ‘rentistas’
também, que seriam os banqueiros, assimilados a possíveis ‘exploradores do povo’. Ele
sequer apresentou um projeto ao Congresso e era altamente duvidoso que o fizesse, e mesmo
que o tivesse feito, era altamente aleatório ou improvável que tal projeto fosse aprovado no
ambiente de profundo dissenso congressual vivido naqueles anos.
O governo militar fez, sim, profunda reforma tributária, introduzindo, aliás,
precocemente, princípios de tributação – como o do valor agregado – que seriam depois
adotados em outras economias modernas. O sentido foi também concentrador e ‘extrator’,
posto que o Estado passou a assumir funções econômicas crescentes, mesmo se, no meio do
caminho, a carga fiscal diminuiu relativamente, substituída pelo endividamento interno e
externo. A centralização tributária operada pelo regime militar foi depois parcialmente
revertida na redemocratização de 1985-88, não em favor dos contribuintes – como seria
legítimo esperar – mas em benefício dos Estados e municípios, os próximos responsáveis pelo
desastre fiscal no Brasil dos anos 1980 e 90, até serem contidos, parcialmente, pela Lei de
Responsabilidade Fiscal de 2000.
Atualmente, é altamente duvidoso que uma reforma tributária seja conduzida no
Brasil, e se ela for feita, mais uma vez não será em benefício dos produtores e consumidores
e, sim, obviamente, em favor das unidades da federação. O mais provável que ocorra é uma
‘progressividade extratora’ pelos anos à frente, ou seja, um aumento contínuo, ainda que
moderado, da carga fiscal. Desde a Constituição, ela já aumentou dez pontos percentuais do
PIB, equiparando-se atualmente ao nível médio da OCDE, em torno de 38% do PIB, dez
pontos acima da média dos países em desenvolvimento e outros dez pontos acima dos países
de maior dinamismo e crescimento econômico. Como os órgãos de ‘repressão’ tributária são
altamente eficientes no Brasil, o mais provável é que a esquizofrenia fiscal tenha ainda um
grande espaço para se exercer no futuro imediato e de longo prazo. Na verdade, o Brasil
apresenta todos os sintomas de uma bomba-relógio fiscal em formação – excesso de gastos
inevitáveis, e crescentes, e baixo crescimento econômico – o que deve manifestar com maior
intensidade a partir de meados da próxima década.

8) “Reforma Militar, para permitir a participação dos suboficiais na política;”


PRA: Ponto altamente demagógico, sem dúvida, que não constitui propriamente uma
reforma militar, mas um simples expediente eleitoreiro, apelando para uma categoria

226
corporativa suscetível de apoiar políticos populistas. Nas condições do Brasil do início dos
anos 1960, e do ambiente militar, seria suscetível de agravar ainda mais o ambiente já
efervescente nas casernas, desde o retorno dos trabalhistas ao poder.

9) “Reforma do Capital Estrangeiro, para mudar as relações e contratos com empresas


multinacionais, regulados pela Lei de Remessa de Lucros;”
PRA: Não se tem idéia de qual reforma se estava falando, mas a intenção seria limitar
a remessa de lucros e controlar ainda mais os contratos e as atividades das empresas
estrangeiras. Uma lei específica que regulava a atração e o tratamento do capital estrangeiro
no Brasil tinha sido aprovada em 1962, mas jamais foi promulgada pelo presidente Goulart,
tendo isso sido feito pelo Congresso dois anos depois, para ser depois modificada no início do
governo militar. O Brasil, na verdade, sempre teve uma atitude algo esquizofrênica nessa
área: ele gosta do capital estrangeiro – posto que necessário ao financiamento do Estado ou
das obras de infra-estrutura – mas detesta o capitalista estrangeiro e sua propensão
dominadora sobre setores inteiros da economia (automobilístico, farmacêutico, comunicações,
por exemplo). Essa atitude ainda não mudou fundamentalmente, e continuamos dependentes
do capital estrangeiro para o financiamento de muitas obras de infra-estrutura e do próprio
Estado, assim como continuamos a atrair o capital estrangeiro pelas dimensões do nosso
mercado interno, a despeito do ambiente precário de negócios e da alta tributação existente; a
lei de 1964 não mudou, aliás, a não ser para facilitar o acesso dos brasileiros a divisas e
operações cambiais.

Balanço econômico do governo Goulart: uma visão pouco complacente


Sem pretender criticar mais uma vez a visão pouco complacente da maior parte da
literatura semi-acadêmica brasileira a respeito do governo Goulart, e deixando de lado, agora,
a postura totalmente acrítica desses autores em relação às ‘chamadas reformas de base’ e às
posições presumidamente ‘progressistas’ desse governo na maior parte dos temas sociais,
cabe voltar, pela sua importância intrínseca em relação ao bem-estar e oportunidades de
emprego e renda para a maioria da população, à administração da economia nacional nos anos
Goulart. É um fato, e não uma opinião, que o ambiente macroeconômico deteriorou-se
sensivelmente entre 1961 e 1964: a inflação e os desequilíbrios do setor externo, o
estrangulamento cambial e o saldo (na verdade déficit) do balanço de pagamentos agravaram-
se enormemente nesses anos; a instabilidade da política econômica gerou volatilidade e
incertezas, que determinaram, por sua vez, fuga de capitais e desinvestimento produtivo. A

227
rigor, não se pode dizer que 1961 possa ser colocado sob o domínio da política econômica de
Goulart, posto que ele assumiu apenas em setembro desse ano, cerceado por um regime
parlamentarista do que ele se desvencilharia apenas em janeiro de 1963.
Vamos, assim, considerar os anos de 1962 a 1964 como tendo sido ‘influenciados’,
relativamente, pela política econômica de Goulart, sendo que os anos de 1962 e 1963 caem
inteiramente sob sua responsabilidade. E quais são os números econômicos desses anos?

Brasil: indicadores econômicos selecionados, 1962-1964


Variações anuais (%) 1962 1963 1964
PIB, aumento real 5,3 1,5 2,9
PIB real per capita 2,4 -1,4 0,0
Inflação 55,8 80,2 86,6
Estoque médio de M1 56,6 64,9 82,0
Produção agrícola 5,5 1,0 5,2
Produção industrial 7,8 0,2 1,3
Fonte: Carlos M. Peláez, Wilson Suzigan, História Monetária do Brasil (2a.
ed.; Brasília, Editora da UnB, 1981), p. 272

À vista desses números, não se pode considerar a gestão econômica de Goulart um


sucesso, muito ao contrário, talvez mesmo um desastre. As ‘reformas de base’ só ocorreriam
efetivamente sob os governos militares, que alteraram radicalmente as bases e o modo de
funcionamento da política econômica e o papel do Estado. A característica essencial dessa
política econômica sob o regime militar foi a centralização e a estatização, algo, aliás, muito
próximo da ideologia socialista defendida pelos antigos líderes populistas e que os militares
recusavam absolutamente nos planos político e cultural.
De fato, parece surpreendente que o regime militar tenha realizado muitos dos
objetivos econômicos estatizantes que a esquerda defendia abertamente antes (e depois) do
regime militar. Durante o período, a esquerda condenou as políticas de ‘arrocho’ salarial, de
repressão aos movimentos sociais e de subordinação dos sindicatos de trabalhadores ao
Estado, práticas que todos os regimes socialistas sempre mantiveram em todos os
experimentos históricos conhecidos, em escala muito mais ampla do que qualquer ditadura
capitalista ou economia de mercado. O regime militar brasileiro – é verdade que muito com
base no endividamento interno e externo – levou o Brasil a taxas de crescimento jamais vistas,
antes e depois, na economia brasileira: 10,4 em 1970, 11,3% em 1971, 11,9% em 1972 e, no
auge de um ciclo que não mais se repetiria, 14% em 1974. No plano mundial, apenas a China,
bem mais tarde, reproduziria taxas sustentadas nesses picos durante muito tempo.

228
Cabe reconhecer, também, que a inflação, alimentada pela inércia da correção
monetária e pelo frenesi expansionista dos gastos públicos – boa parte, é verdade, para
investimento produtivo –, manteve-se consistentemente na faixa dos dois dígitos durante
todos os anos 1970, e acima dos três dígitos a partir dos anos 1980. A redemocratização, em
1985, não foi particularmente feliz, nem em taxas de crescimento, nem nos índices de custo
de vida, posto que o índice geral de preços saiu de 225% em 1985 para 684% em 1988, depois
para 1.320% em 1989 e, finalmente, 2.310% em 1990, só superado pelo pico de 2.407% em
2004. O controle inflacionário só viria depois, com a introdução de medidas econômicas, para
ser claro, de sentido totalmente contrário ao espírito da política econômica patrocinada por
Goulart.
Qualquer que seja o julgamento que se faça dos ‘anos de chumbo’, durante a fase mais
aguda da ditadura militar, é um fato que a história desses anos, como aliás, dos períodos
anterior e posterior, está sendo escrita desde uma perspectiva de esquerda, ou pelo menos
‘progressista’. Ora, é um fato, também, que essa história, até pelo fato de que seus produtores
se julgam (talvez corretamente) opositores do regime militar, é decididamente enviesada
contra esse regime, ao mesmo tempo em que é profundamente leniente ou tolerante em
relação aos anos Goulart, considerado geralmente como um período de ‘florescimento
democrático’ e de ‘conquistas políticas e sociais’. Essa literatura descura por completo a
incompetência econômica e administrativa desses anos.
As distorções começam, justamente, pelos motivos do golpe, como sendo uma mera
reação de latifundiários, de capitalistas entreguistas e de militares teleguiados pelo império
aos supostos avanços dos movimentos sociais reformistas. Mais até do que uma suposta
ameaça de ‘ditadura comunista’ – justificativa utilizada por mais de um ideólogo do regime
militar, na tentativa de legitimar o golpe de Estado de 1964 – o que assustou a classe média e
levou os militares a se libertarem de seus escrúpulos legalistas, foi, basicamente, o
recrudescimento da espiral inflacionária e o quadro de instabilidade econômica e social, que
deteriorou gravemente o ambiente político no início dos anos 1960.
Não se pode dizer que o democratismo caótico dos anos Goulart tenha contribuído
para reduzir os altos níveis de desigualdade social e de concentração da renda: ao contrário,
posto que a aceleração da inflação trouxe, na verdade, uma elevação do coeficiente de Gini –
o índice que mede a concentração de renda. Como se sabe, a inflação atinge basicamente os
pobres, ao atuar como uma espécie de imposto sobre seus rendimentos, embora não se possa
descurar o peso da (falta de) educação no perfil extremamente concentrado da distribuição de

229
renda. Num cômputo meramente estatístico, os resultados econômicos do governo Goulart
são negativos.

Concluindo, pode-se dizer que a subliteratura existente nos manuais escolares de


história ou de ciências humanas no Brasil em torno do movimento militar que derrocou o
regime Goulart e deu início a uma ditadura de duas décadas não serve à história nem à
memória correta do Brasil de início dos anos 1960, uma sociedade em rápida transição para a
industrialização, mas ainda atrasada nos planos agrícola, tecnológico, político e social. É
correto dizer que a história é feita de mitos – heróis nacionais, episódios gloriosos de um
passado incerto etc. – mas neste caso específico os mitos em torno de 1964 são especialmente
mistificadores e deformadores da história real. Está em tempo de encerrar essa subliteratura e
começar a escrever a história seriamente.

Brasília, 20 de março de 2009

230
25. Os mitos em torno do movimento militar de 1964

Ossificação ideológica e revisionismo histórico: interpretações abertas


Quase duzentos anos depois da Revolução Francesa, escolas opostas de pensamento
histórico continuavam a se digladiar em torno não apenas do espólio da Revolução, mas
sobretudo de seu significado político e social. Os historiadores ‘jacobinos’ – dos quais o mais
famoso representante na academia francesa foi certamente Albert Soboul – eram os herdeiros
de uma longa tradição que colocava a burguesia no centro dos acontecimentos, escola
historiográfica que remonta ainda à primeira metade século 19. Dela fizeram parte ilustres
representantes da própria burguesia, como Guizot e Mignet, ou mesmo um aristocrata como
Thiers, sem esquecer o ‘historiador do povo’ Michelet ou, ainda, o revolucionário Louis
Blanc, que se aproxima da, e talvez inaugure a, interpretação marxista (ou seja classista) do
processo revolucionário. Não é preciso retomar aqui os diversos textos marxianos ou
marxistas que colocam o Terceiro Estado no centro dos eventos, alterando radicalmente a
escrita da história, que passa, assim, da ação por vezes irrefletida dos homens para o
movimento inelutável dos grupos políticos e das classes sociais.69
A querela contemporânea sobre a natureza da Revolução francesa começou com uma
conferência pronunciada em 1954, pelo historiador britânico Alfred Cobban, sob o título “The
Myth of the French Revolution”, cujos argumentos serão mais tarde retomados em seu livro:
The Social Interpretation of the French Revolution (Cambridge: Cambridge University Press,
1964). A confrontação dos historiadores revisionistas da tradição empirista da academia
anglo-saxã com as teses rigorosamente marxistas do francês Albert Soboul durou pelo menos
duas décadas, até que vários outros historiadores, desta vez franceses, desmantelam o que
restava de caricatural na versão simplificada marxista da ‘luta de classes’. Destacou-se no
combate ao “catéchisme révolutionnaire” de Albert Soboul o historiador de inspsiração
tocquevilleana François Furet, em especial em seu livro Penser la Révolution française (Paris:
Gallimard, 1978).
Qualquer que seja o rigor metodológico dos novos historiadores – franceses e
estrangeiros – na reavaliação do processo revolucionário francês, a visão clássica, isto é,

69
As principais etapas da historiografia revolucionária podem ser conferidas na obra clássica de
Georges Lefebvre, La Naissance de l’Historiographie Moderne (Paris: Flammarion, 1971). A visão
marxista tradicional está em Albert Soboul, Histoire de la Révolution française (Paris: Les Editions
Sociales, 1962).

231
classista (e, portanto, marxista) desse fenômeno fundador da era contemporânea ainda
encontra largo curso nos compêndios de história, que tendem a prolongar os mitos que foram
se forjando ao longo dos séculos 19 e 20 em torno da burguesia revolucionária. Ou seja, a
despeito de estar fundamentalmente equivocada quanto aos atores sociais e suas motivações
políticas e de continuar ideologicamente enviesada na interpretação geral do processo, a
versão classista, ou marxista, da Revolução francesa continuou impregnando as mentalidades
e determinando a reflexão histórica dos contemporâneos.
Esta parece ser uma fatalidade que atinge todos os movimentos e processos
extremamente radicais, aqueles que cindem uma sociedade ao meio, dividem famílias e
opõem escolas rivais de pensamento, consolidando uma visão ossificada do processo
histórico, que pouco a ver tem com a realidade dos movimentos sociais e políticos
efetivamente transcorridos. Lentamente a sociedade e seus intelectuais caminham para algum
tipo de interpretação que incorpora as diferentes vertentes explicativas e retira o conteúdo
passional, quando não irracional, dos julgamentos a quente feitos pelos contemporâneos e
imediatos sucessores. Mas, trata-se de um processo muito lento, como pode testemunhar a
historiografia ainda cindida em torno da Revolução francesa.

O maniqueísmo em torno do golpe de 1964: triunfo de uma escola


A mesma ‘fatalidade histórica’ parece ocorrer em relação ao movimento político-
militar de março-abril de 1964 que derrocou o governo de João Goulart e inaugurou o regime
dos generais-presidentes; com uma diferença essencial, porém: até aqui, a historiografia é
predominantemente ‘jacobina’, para não dizer claramente marxista. Refiro-me, obviamente,
aos livros didáticos, posto que obras especializadas respeitam a complexidade do processo de
1961-64 e levam em conta as divisões existentes na classe política e na própria sociedade
brasileira. São os primeiros, contudo, que moldam as ‘explicações’ em torno da crise política
que agitou quase o inteiro período do governo Goulart e seu desdobramento militar sob a
forma de um golpe apoiado por parte substancial da opinião pública naquela conjuntura.
A visão consagrada nesses livros didáticos e paradidáticos é, contudo, a de um
vigoroso movimento de massas apoiando um governo comprometido com as chamadas
‘reformas de base’ – agrária, tributária, eleitoral, universitária, habitacional –, lutando para
concretizar as aspirações mais sentidas do povo brasileiro e tendo de enfrentar uma coligação
agressiva de latifundiários, industriais, donos da ‘grande imprensa’ e seus aliados
imperialistas, representados pelo governo dos EUA e suas agências operacionais (CIA, adidos
militares etc.). Da mesma forma, os grupos políticos e as personalidades de oposição que

232
lideraram a resistência armada contra o regime militar são automaticamente identificados a
defensores da liberdade e da democracia, ainda que poucos deles tenham deixado evidências
materiais dessa luta democrática contra o ‘regime ditatorial’.
Pouco se fala sobre o projeto político real da maior parte dos opositores do regime
militar e da ‘dominação imperialista’, que era o da instauração de uma ‘democracia popular’
muito alinhada com os países do socialismo real e, portanto, uma economia totalmente
enquadrada nos cânones do estatismo exacerbado e talvez empenhada na contenção da
economia privada. Não há, tampouco, nenhuma visão critica sobre o desastre econômico,
político e moral – com o imenso custo humano – desses regimes, que, ainda hoje, recebem,
vergonhosamente, uma avaliação positiva nesse tipo de subliteratura.
Quase meio século depois do movimento político-militar de 1964, são poucos os
exemplos de obras não passionais, ou relativamente isentas, sobre as circunstâncias imediatas,
as causas profundas e a complexidade intrínseca desse processo que marcou profundamente a
sociedade brasileira – e a classe acadêmica, obviamente – durante todo o seu decorrer e em
todo o período subseqüente, até os dias atuais. Mesmo uma obra recente – como a de Adriana
Lopez e Carlos Guilherme Mota, História do Brasil: Uma Interpretação (São Paulo: SENAC-
SP, 2008) –, que poderia ter dado o início à tarefa de ‘despassionalização” ou
‘desideologização’ da República civil-militar de 1964-1985, sucumbe a conceitos típicos da
tradição ‘jacobina’ como os de autocracia burguesa, ou de contra-revolução preventiva, para
caracterizar um movimento civil-militar que é visto unicamente no contexto da Guerra Fria.
De fato, como expressamente afirmado nessa obra, “o movimento colocava o país nos
quadros da dominação americana” (p. 799), retomando a interpretação maniqueísta do golpe.
Um livro que tentava um interpretação mais ou menos isenta do processo de lutas
políticas que levaram ao desfecho de 1964, o de Thomas Skidmore sobre a história política
brasileira de Getúlio a Castelo Branco, nunca foi, na verdade, bem aceito pelos acadêmicos
brasileiros, a despeito de se ter convertido numa espécie de referência geral para o estudos
dessas décadas da Era Vargas (talvez ainda não definitivamente encerrada, pelos seus
prolongamentos sindicais e trabalhistas, e também pela visão do Estado como o demiurgo do
desenvolvimento nacional). Atente-se que seu titulo original – Politics in Brazil, 1930-1964:
An Experiment in Democracy – era razoavelmente pessimista sobre as chances de se ter no
Brasil um sistema político estável e passavelmente democrático, considerando o autor que
apenas vivíamos entre impulsos democráticos e crises recorrentes num longo continuum
autoritário, que é inaugurado pelas intervenções militares desde o início da República. Atente-
se igualmente que, ao mesmo tempo em que os brasilianistas americanos estavam elaborando

233
uma versão menos passional da história política brasileira, também começavam a ser
publicados os primeiros livros da série histórica de Leôncio Basbaum, História Sincera da
República (em quatro volumes sucessivos), situado possivelmente nas antípodas da
interpretação relativamente pasteurizada de Tom Skidmore. Essa produção acadêmica por um
dos mais conhecidos militantes do movimento comunista brasileiro pode ser legitimamente
considerada como o equivalente, no Brasil, da historiografia jacobina francesa, com todos os
maniqueísmos e simplificações a que esse tipo de elaboração ‘histórica’ tem direito: na
verdade, se tratava mais de uma compilação da literatura secundária do que propriamente um
trabalho original, conservando apenas o parentesco com a versão jacobina da história pelo uso
dos conceitos e categorias marxistas e pela abordagem classista do processo histórico.
Se é possível identificar um ‘Albert Soboul’ nacional, este seria representado, sem
dúvida nenhuma, pelo historiador de origem militar Nelson Werneck Sodré, que encarnou
como poucos a versão soviética, praticamente stalinista, da história dialética, com todas as
simplificações classistas e materialistas que poderiam ser encontrados nos manuais históricos
e nas enciclopédias ‘científicas’ representativas da ‘idade de ouro’ – se o termo se aplica – da
dominação do pensamento marxista tradicional nas ciências humanas e sociais. Entretanto,
pela riqueza de sua escritura, pela ampla cultura clássica e pelo seu conhecimento
aprofundado da literatura original das eras colonial e independente, Werneck Sodré podia ser
considerado um intelectual de primeira linha, quase um erudito da produção historiográfica
brasileira, na comparação com a pobre produção histórica que se seguiu.
As principais obras representativas da didática histórica, a partir de meados dos anos
1960, foram caracterizadas por um marxismo vulgar de baixíssima qualidade, quase nenhuma
pesquisa de arquivo (e um apoio quase exclusivo em alguns grandes ‘mestres’ do pensamento
nacional, independentemente da defasagem metodológica de suas obras, velha de algumas
décadas), poucas bases empíricas e o pavoroso espírito maniqueísta que seria de se esperar na
subliteratura histórica que passou a servir de referência aos estudantes brasileiros a partir do
final dos anos 1960.70 Pode-se dizer que, mesmo sem levar em conta suas orientações
políticas e ideológicas, essa produção é de muito baixa qualidade intrínseca, mas é ela que
continua a moldar, ainda, as interpretações correntes sobre o período militar no Brasil.

70
Apontar os principais representantes desse campo minado seria fastidioso, pois são tantos os
‘produtores’ dessa história do Brasil vulgarmente jacobina que a lista ocuparia algumas páginas.
Melhor concentrar-se, assim, em suas teses principais, todas de ampla aceitação nos cursos médios e
de graduação universitária em instituições públicas e privadas do país.

234
235
26. O multilateralismo e os agrupamentos regionais representam nossa
melhor defesa no plano mundial, por isso precisamos atuar mediante
grupos de países (G-77, Mercosul etc.)
Duvidoso, em todo caso, vantagens muito relativas. A coordenação a partir de posições
de “mínimo denominador comum” podem ser fatores enfraquecedores, não reforçadores, de
nossas posições.

O multilateralismo e os processos de integração são relativamente recentes na história


multissecular das relações internacionais entre países soberanos. Ainda que os elementos
constitutivos e alguns dos mecanismos institucionais e formas organizacionais do moderno
multilateralismo político e dos processos de integração econômica possam ser encontrados em
estado embrionário já em meados do século 19 (e mesmo antes, em precoces manifestações
desses fenômenos), o multilateralismo contemporâneo e os blocos comerciais se desenvolvem
com mais vigor a partir da constituição das Nações Unidas e do Benelux, a partir de 1944,
recuperando entidades intergovernamentais criadas algumas décadas antes (algumas a partir da
Liga das Nações).
Antes disso, ou mesmo à margem desses mecanismos de coordenação ampliada da
cooperação entre os países, os Estados nacionais sempre impulsionaram seus interesses de
forma individual ou mediante alianças formais ou informais de caráter militar, político-
estratégico ou econômico. No caso do Benelux, a união aduaneira entre os Países Baixos, a
Bélgica e o Luxemburgo, pode-se registrar o precedente da união monetária entre os dois
últimos a partir do final da Primeira Guerra Mundial.
A multiplicação dos temas colocados na agenda internacional em situação de crescente
interdependência tornou o multilateralismo praticamente incontornável, com a formação de
agrupamentos de países para atuar nos novos órgãos, dentre os quais se sobressai o G-77, ou
grupo de países em desenvolvimento. O Brasil aliás se “descobriu” um país em
desenvolvimento no pós-Segunda Guerra, quando esse tipo de classificação aplicada às
economias de menor desenvolvimento relativo se tornou um dos lugares comuns da linguagem
econômica e diplomática. Paralelamente, depois das primeiras experiências européias no campo
da integração econômica, os países da América Latina se lançaram, de forma quase mimética,
nos esforços integracionistas que os levariam da Alalc à Aladi e, no caso do Brasil, à integração
bilateral com a Argentina e ao Mercosul. O projeto de uma zona de livre comércio hemisférica,
primeiro em 1990 – com a “Iniciativa para as Américas”, de Bush pai –, depois a partir de 1994

236
– com Alca, proposta por Clinton –, retomou uma antiga iniciativa americana do final do século
19, despertando talvez o mesmo tipo de reação no Brasil como a que agora se observa nos meios
oficiais e privados.
Considerações de poder político e de “fortaleza” econômica estão sempre subjacentes a
esses projetos constitutivos de blocos políticos e econômicos. No século 19, por exemplo,
pretendíamos, mesmo sem dispor de meios suficientes, praticar uma política de poder ao estilo
das velhas potências européias, assim como sempre ostentamos uma defesa retórica da
igualdade soberana das nações. Esse tipo de atitude pode ser interessante como tomada de
posição mas, como se diz, na prática a teoria é outra, uma vez que as realidades assimétricas
sempre se encarregaram de nos lembrar nossa relativa “desimportância” na formação ou
condução da agenda mundial.
A defesa do multilateralismo e a opção pela atuação diplomática através dos grupos
regionais ou temáticos se explicaria assim pela “potencialização” da chamada “relação de
forças”, já que mediante essas práticas teríamos melhores condições de barganha nos planos
internacional ou hemisférico, conforme o caso, segundo a velha receita “a união faz a força”.
O preço a pagar, obviamente, é a diluição dos interesses concretos do Brasil numa plataforma
mais vasta que consegue recolher a adesão de todos os demais participantes desse tipo de jogo,
ou seja, a velha história do “mínimo denominador comum”. Da mesma forma, isso é
interessante como “demonstração de força”, mas pouco prático no mundo real. Como exemplo
disso, temos algumas grandes “resoluções” onusianas, aprovadas pela maior parte dos países
em desenvolvimento, mas de implementação difícil ou praticamente deficiente, ao não
expressar a real relação de forças .
De resto, o Brasil apresenta características singulares, como um grande “país em
desenvolvimento”, ou talvez “país emergente”, como querem os economistas, que o tornam
pouco enquadrável em moldes pré-fabricados. Com tantas evidências de problemas sociais,
torna-se difícil recusar, dizem a maior parte dos cientistas sociais e com eles quase todos os
diplomatas, nossa condição de “país em desenvolvimento”, ainda que matizada pela dotação
em determinados outros recursos – humanos ou materiais – que nos colocam na vanguarda em
determinadas áreas industriais. Em todo caso, essa condição de “país em desenvolvimento”,
ilusória em grande medida, nos dá o “direito” de reivindicar o que se chama de “tratamento
especial e mais favorável”, ou seja, uma derrogação, de caráter limitado, de determinadas
obrigações assumidas pelos membros mais “ricos” da comunidade internacional e, de forma
positiva, o benefício de certas cláusulas de tratamento diferencial que supostamente nos trazem
vantagens nos planos comercial, financeiro ou jurídico.

237
Algumas dessas vantagens são reais, como por exemplo no caso do Sistema Geral de
Preferências, que resulta na redução de barreiras tarifárias – em alguns casos, mesmo, a
ausência completa de obstáculos comerciais –, aumentando o acesso de determinadas categorias
de nossos produtos de exportação nos mercados desenvolvidos. Trata-se de algum tipo de
“vantagem estratégica”? Difícil dizer: talvez para alguma pequena empresa de produtos
tradicionais, mas dificilmente para a economia como um todo, ou pelo menos seus segmentos
mais dinâmicos, que de toda forma não se beneficiam desses esquemas.
O fato é que, desde os anos 1960 particularmente, o Brasil continua, em grande medida,
a pautar sua atuação diplomática no contexto mais amplo do grupo de países em
desenvolvimento e, em escala regional, mediante a concertação de posições no âmbito do
Mercosul. Deveria ele continuar a fazer esse tipo de jogo coletivo ou passar a selecionar seus
parceiros de maneira mais independente e adotar posições de modo mais pragmático e em
caráter ad hoc, de maneira a maximizar seus ganhos e minimizar suas perdas?
Não há respostas fáceis a esse tipo de questão, que envolve um cálculo de “custo-
benefício” difícil de fazer, tantas são as variáveis envolvidas nesse tipo de simulação quanto a
ganhos e perdas em situações negociais. Não custaria nada, em todo caso, estudar o problema
de modo concreto, pois que os desafios de posicionamento político no sistema de relações
internacionais podem ser colocados de maneira mais ou menos inesperada, quando menos
espera nosso estamento diplomático.
A questão concreta que se coloca ao Brasil seria esta: podemos abandonar nosso atual
estatuto e pertencimento ao grupo em questão, em troca da assunção de uma postura
independente e também não dependente de “favores” unilaterais concedidos a países em
“desenvolvimento”? Deve-se dizer um bye-bye ao G-77 e dividir por dez essa interação
internacional, passando a trabalhar mais de acordo com a agenda do G-7/G-8? Encontra-se o
Brasil preparado para esse tipo de revolução qualitativa em sua política externa e internacional,
uma ruptura epistemológica com décadas de ideologia desenvolvimentista, esse verdadeiro
salto paradigmático nos princípios organizadores de seu relacionamento internacional?
Uma reação plausível e credível, aqui do ponto de vista de nossas tradições
diplomáticas, tenderia a fornecer, modestamente, uma resposta negativa a essa questão. Eu
entendo, porém, que o Brasil deveria buscar ativamente uma mudança de paradigma, o que se
materializaria, antes de tudo, em termos de dever de casa macroeconômico: continuidade do
programa de reformas, adoção interna do padrão normal de organização racional das políticas
públicas, participação desinibida nas atividades dos mais diversos foros relevantes para nossos

238
interesses externos, distanciamento discreto em relação à camisa de força representada pelo
grupo dos países em desenvolvimento, como aliás de outros grupos por demais heterogêneos.
A realidade econômica e política interna, por outro lado, mesmo se em processo de
adaptação aos requisitos da ordem econômica internacional, notadamente através dos processos
de revisão constitucional, não pode ainda ser considerada como totalmente ganha à abertura
econômica ou em evolução irresistível para a aceitação tranqüila da interdependência. Em
termos de política nacional de desenvolvimento, deve-se reconhecer, aliás, que o processo de
reformas internas tem seu mérito próprio, no campo social, e não pode prender-se
exclusivamente à agenda externa do País.
Tendo em vista, assim, o quadro político interno e a atual conjuntura econômica
brasileira, o mais indicado seria prosseguir o processo de reformas, desvinculando-o de
qualquer objetivo final de mudança de status internacional, uma vez que antecipar eventual
alteração de nosso posicionamento internacional poderia gerar linhas de resistência política e
econômica que dificultariam o prosseguimento de uma obra modernizadora iniciada há mais de
uma década. Esse, aliás, deve ser o sequenciamento correto: terminar o dever de casa
macroeconômico, sob a forma de equilíbrio das contas nacionais – internas e externas – e de
retomada do processo de crescimento, para então, a partir daí, repensar as condições da inserção
internacional.
Subsiste porém a percepção de que o conceito de “país em desenvolvimento” pouco
esclarece quanto a natureza dos problemas enfrentados atualmente pelo Brasil: ele apenas nos
define internacionalmente de maneira tradicional, nas categorias normalmente aceitas nos foros
onusianos, e nos habilita em conseqüência a uma atitude reivindicatória supostamente benéfica
a nosso processo de desenvolvimento. Em outros termos, ele pode constituir uma espécie de
“camisa de força mental” que torna mais difícil adotar uma “agenda normal” de administração
macroeconômica. Quero crer, assim, que o levantamento “psicológico” desse tipo de
classificação nos faria mais rapidamente superar o estado “real” de “país em desenvolvimento”,
ao mobilizar energias e impor novas obrigações internas – auto-assumidas, entenda-se – que
contribuiriam no salto de barreira para fora dessa condição.

239
27. Os tratados devem ser sempre recíprocos e respeitadores de nossa
soberania e autonomia nacional
Retórica vazia: soberania se defende com desenvolvimento, não com boas intenções e
tratados bonitos.

Atos internacionais se distinguem pelos seus aspectos formais ou segundo o objeto de


que tratam. Eles podem ser perfeitamente recíprocos, nos planos bilateral ou multilateral,
prevendo em seus dispositivos substantivos igualdade absoluta de direitos e obrigações aos
países participantes, ou podem contar cláusulas diferenciadas, segundo o objeto em questão ou
o nível de desenvolvimento dos signatários. Os tratados desiguais do passado eram extraídos
por potências européias de indefesos estados periféricos, geralmente com objetivos comerciais
e de instalação de seus mercadores nesses países. Eles foram praticamente eliminados da face
da terra, e a desigualdade implícita subsiste hoje em normas e dispositivos ambíguos que
permitem aos ricos e poderosos praticarem gordos subsídios aos seus produtores nacionais ao
mesmo tempo em que fecham os seus mercados aos produtos concorrentes de outros países.
Esta é uma realidade do sistema econômico internacional em relação à qual rios de tinta
já foram escritos, discursos incontáveis pronunciados e resoluções ingênuas aprovadas, sem
que as assimetrias práticas da economia mundial fossem transformadas de modo substantivo.
Na verdade, deve-se reconhecer que os tratados internacionais, mesmo os de cooperação, são
muito pouco efetivos para mudar essa situação, cujos principais vetores se situam no plano
propriamente nacional, não no âmbito externo. O que pretendo dizer com isto é que nenhum
tratado internacional tem a virtude de realizar mudanças estruturais suscetíveis de arrancar
algum país de uma situação de “subdesenvolvimento”. O processo de desenvolvimento é uma
tarefa totalmente interna, para a qual a cooperação internacional é totalmente subsidiária ou
marginal.
De toda forma, o discurso em torno da soberania e da autonomia nacional é, por acaso,
coincidente com uma situação de fragilidade ou de dependência externa, pois esse tipo de
demanda sequer se colocaria em um país seguro de sua posição e interesses no plano
internacional. Nenhum tratado seria suscetível de colocar esses atributos em risco se o próprio
país não estivesse em busca de algum tipo de tratamento assimétrico que pudesse,
presumidamente, compensar algumas desvantagens de fato no plano econômico. De certa
forma, a tendência a preocupar-se com um aspecto não-essencial de um instrumento

240
internacional – pois o respeito à soberania de cada parte é implícita ou explícita nesses atos –
revela um comportamento algo esquizofrênico, na medida em que ele vem acompanhado de
duas possíveis conseqüências práticas: ou o tratado é perfeitamente recíproco, na presunção da
total igualdade entre os parceiros, ou ele terá graus variáveis de não-reciprocidade, na medida
em que as partes reconhecem que não podem assumir as mesmas obrigações ao mesmo tempo.
Os tratados de liberalização comercial – pois é isso que está em jogo, quando demandas
daquele tipo são formuladas – podem comportar os dois tipos de situação e serem perfeitamente
viáveis nos dois casos. O processo de integração Brasil-Argentina, por exemplo, começou e se
desenvolveu em bases totalmente recíprocas, sem qualquer tipo de distinção ente os dois
parceiros, mesmo numa situação de evidente desigualdade estrutural entre ambos: maior
importância do mercado interno brasileiro (o que significa maior vantagem para a Argentina do
para o Brasil), menor dependência do comércio exterior e do intercâmbio bilateral por parte
deste último, maior competitividade de sua indústria, em face de outras superioridades
“qualitativas” da Argentina (melhor situação econômico-social, melhor formação técnica da
população etc.). A integração com os dois sócios menores no Mercosul, Uruguai e Paraguai, já
exigiu a adoção de medidas tópicas para compensar a “desigualdade bruta” em relação aos dois
maiores, mas o sentido geral da reciprocidade de direitos e obrigações foi preservada no Tratado
de Assunção.
O futuro, e hipotético, tratado da Alca, deveria basear-se na igualdade presumida das
partes contratantes, com exceções reconhecidas desde o início para as chamadas “economias
menores”, que poderiam ter medidas facilitadoras do tipo das que se previu no Mercosul para
os dois membros menores. As preocupações legítimas do governo brasileiro são com o impacto
setorial de uma abertura indiscriminada da economia aos concorrentes estrangeiros,
essencialmente americanos, na medida em que isto poderia provocar fechamento de fábricas,
deslocamento de empregos e inviabilização de ramos inteiros de nossa indústria,
presumivelmente menos competitivas ou dispondo de menos facilidades ambientais para sua
expansão (custo do capital, transportes, marketing, etc.).
Curiosamente, o mesmo tipo de preocupação existe no Congresso e nos meios sindicais
dos EUA, em relação ao que se indica ser a “concorrência desleal” dos baixos salários, das
condições “precárias” de trabalho, da menor proteção social, da inexistência de regimes
previdenciários ou outros fatores de “dumping social”. Como resultado, temos de um lado
pressões abertas e indiretas pela “elevação dos padrões laborais” e, de outro, demandas
repetidas pela conformação de medidas de apoio social capazes de compensar as desigualdades
efetivas existentes na prática. Em ambos os casos, diga-se de passagem, o resultado seria uma

241
ingerência na soberania de cada parte, aqui obrigada a introduzir mudanças em sua legislação
trabalhista que podem não refletir o avanço de sua estrutura econômica, ali solicitada a prestar
“assistência social” a partes contratantes menos desenvolvidas.
Será muito difícil chegar a um acordo escrito capaz de abrigar de modo racional essa
diversidade de demandas contraditórias e opostas, a menos de um consenso sumário sobre
regras gerais e disposições ambíguas que, como ocorre em vários tratados desse tipo, “salvam
a face” dos negociadores mas deixam a situação praticamente imutável no terreno da realidade.
Talvez esse também seja o destino do tratado da Alca: dispositivos “cosméticos” tratando de
questões sociais e laborais e a dura realidade da concorrência econômica sendo regulada
mediante prazos diferenciados de abertura, com a preservação paralela (em alguns casos
“clandestina”) de normas internas restritivas da abertura total.
A realidade da abertura, geralmente, se encarrega de “corrigir” gradualmente os
diferenciais de produtividade, com ajustes setoriais provocando situações de maior ou menor
impacto social, que cabe aos governos nacionais compensar mediante medidas tópicas de
reconversão de atividades ou apoio temporário à força de trabalho deslocada. A letra dos
tratados, porém, tem um poder muito limitado para mudar essa realidade, com reciprocidade ou
sem ela. Melhor, assim, dedicar maiores esforços aos processos internos de mudança estrutural
do sistema produtivo, no sentido de torná-lo moderno, ágil e mais adaptado às exigências da
economia internacional, do que depender de instrumentos jurídicos dotados de limitada
capacidade transformadora. A soberania não pode ser um mero slogan retórico, mas uma
realidade embasada na solidez do sistema econômico nacional.

242
28. O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil

1. Uma falácia persistente: a deformação do marxismo nas academias


Existe, no mundo acadêmico das humanidades – em especial na América Latina e,
com certa ênfase, no Brasil –, uma categoria de repetidores mecânicos do marxismo,
basicamente superficiais, que jamais deveriam merecer qualquer inclusão nessa escola de
pensamento, que é ainda funcional para fins da moderna teoria social. Eles são os atuais
representantes daqueles papagaios de pirata já imortalizados no cinema e na literatura: ficam
em cima dos ombros de algum personagem principal, captam algumas migalhas de seu
pensamento – pescadas em manuais de segunda mão – e se contentam em repetir slogans de
fácil memorização: luta de classes, exploração, burguesia, imperialismo, mais-valia,
acumulação ampliada, e assim segue, numa repetição infinita que chega a ser enfadonha. O
que poderia ser tolerado em romances de aventura fica, no entanto, mais problemático quando
se trata de trabalho intelectual que deveria ser, supostamente, de qualidade. Este é o quadro
que encontramos hoje em várias faculdades brasileiras de humanidades, geralmente nas
públicas, mas em várias privadas também.
Tenho encontrado vários representantes do gênero, tanto em minhas andanças e lides
acadêmicas, quanto em contato com estudantes (alguns desesperados), que me escrevem para
reclamar de alguns desses papagaios de pirata que ficam despejando conceitos abstratos sobre
essa classe de passivos ouvintes, obrigados a conviver com o que se poderia chamar de
“marquissismo” vulgar. Cabe, no entanto, antes de qualquer análise mais detalhada desse
lamentável fenômeno típico da mediocrização crescente de nossas academias, 71 distinguir
formalmente os papagaios repetidores dos verdadeiros representantes da espécie: é o que
fazemos numa primeira seção, dedicando as seções subsequentes à listagem dos slogans mais
frequentes e fornecendo algumas evidências sobre esse tipo de prática, que pode ser
enquadrado na categoria mais geral da desonestidade intelectual (ou da ingenuidade inculta,
pura e simples).
O que fazem, o que pregam e o que praticam os atuais representantes universitários
dos antigos papagaios de piratas não deixa de constituir aquilo que já foi chamado de “falácias

71
A questão da decadência intelectual no ramo das humanidades das universidades brasileiras já foi
tema de um artigo meu: “A Ignorância Letrada: ensaio sobre a mediocrização do ambiente
acadêmico”, Espaço Acadêmico (n. 111, agosto 2010, p. 120-127; link:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/download/10774/5859).

243
acadêmicas”, ou seja, equívocos conceituais e erros de lógica elementar, que se situam no
seguimento de uma série já longa (mas, ainda assim, apenas em seu início) dedicada às
falácias mais comuns nesse meio. 72 Que fique claro, portanto, que o que está em causa aqui
não é o marxismo, enquanto tal, ou seja, a eventual validade heurística da metodologia
materialista para fins analíticos – embora isso possa ser igualmente objeto de críticas
epistemológicas –, mas a contrafação do marxismo, ou sua utilização de modo primário e
superficial nas “análises” acadêmicas de baixa qualificação substantiva.

2. Marxistas e “marquissistas”: duas espécies, de duas classes diferentes


Seria útil, portanto, antes de examinar a segunda espécie, ou seja, os praticantes do
que foi chamado de “modo repetitivo de produção”, reconhecer os méritos analíticos da velha
escola de pensamento, que continua ainda a prestar bons serviços à academia de boa
qualidade, como nos prova ainda um sociólogo que muitos dos repetidores colocariam no
campo dos pensadores de “direita”; trata-se de Raymond Aron, especificamente em sua obra
sobre o marxismo de Marx.73 Antes que algum desses repetidores mecânicos pense em
descartar Aron como um mero representante do pensamento conservador, caberia lembrar que
ele foi um arguto analista de Marx e, no plano econômico, dizia ser um “keynesiano com
alguma nostalgia do liberalismo econômico”, querendo dizer com isso que achava inevitável,
nas sociedades abertas da modernidade, um papel significativo para o Estado no ordenamento
econômico e social.
A missão principal de Raymond Aron, durante toda a sua vida de intelectual, foi a
defesa da ordem liberal clássica – ou seja, das modernas economias de mercado e das
democracias formais – contra a ameaça de sovietização da Europa ocidental, bastante real na
época da Guerra Fria. Liberdades democráticas e propriedade privada eram os pilares dessa
ordem, como ele não deixou de sublinhar em vários escritos seus, cabendo também registar
seus demais trabalhos de natureza geopolítica, sobre o equilíbrio do terror nos enfrentamentos
bipolares da era nuclear. Visto em retrospecto, ou seja, pelo registro dos experimentos do
socialismo real na parte centro-oriental do continente, a disseminação do modelo socialista
soviético ao conjunto da Europa só poderia prometer aquilo que foi servido aos povos
cominados do leste europeu: um regime de penúrias materiais, de controle absoluto sobre as

72
Para a lista dos estudos de caso já efetuados na rubrica das falácias acadêmicas ver este link:
http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/FalaciasSerie.html.
73
Cf. Raymond Aron, Le Marxisme de Marx (Paris: Fallois, 2002); ver referências bibliográficas
completas sobre algumas obras desse autor ao final deste ensaio.

244
vidas privadas, uma ordem totalitária, de ausência completa das liberdades mais elementares,
enfim, um sistema baseado na mentira, na fraude intelectual e na coerção física dos indivíduos
(sem que seja preciso mencionar novamente os milhões de mortos produzidos ao longo do
tempo).
Curioso que tendo em vista toda essa materialidade atualmente disponível para quem
deseje se informar, tantos papagaios repetidores do marxismo vulgar no Brasil continuem a
defender não apenas o socialismo histórico, enquanto sistema econômico e social possível,
mas também seu pequeno avatar numa ilha do Caribe, que só trouxe miséria, repressão e
sofrimento aos seus habitantes.74 Aparentemente, esses papagaios distraídos ficaram na janela
contemplando a estratosfera, enquanto a história real se desenrolava no mundo real, sem
qualquer reflexo em suas digressões abstratas: queda do muro de Berlim, derrocada do
socialismo e da União Soviética, marcha acelerada em direção ao capitalismo na China,
eleições em todas as partes e crescente perda de legitimidade das poucas ditaduras
remanescentes em alguns cantos do mundo (tanto é que ditadores potenciais precisam
“fabricar” eleições e plebiscitos para justificar seus regimes autoritários). Nada disso parece
abalar ou mudar convicções arraigadas, o que denota mais um problema psicológico do que
propriamente uma reflexão embasada nos dados da realidade, enfim, aquilo que Raymond
Aron chamou, já em 1955, de “ópio dos intelectuais”: parece que, apesar de tudo o que se
passou, a droga continua ativa.
Marxistas acadêmicos são aqueles que, com base nos conceitos fundamentais do
pensamento marxiano, estariam em condições de oferecer análises fundamentadas e originais
sobre as questões mais relevantes de seu tempo e de suas sociedades, retomando, com certo
rigor analítico, a tradição das grandes sínteses interpretativas que Marx operou, depois de
muito estudo e muita pesquisa – e alguma liberdade imaginativa também –, em relação aos
problemas do capitalismo de sua época, ou seja, o industrialismo de tipo manchesteriano de
meados do século 19. Algo nesse sentido foi também intentado por Kautsky, em relação ao
problema agrário na Alemanha imperial, ou por Lênin, para a transição do agrarismo ao
industrialismo na Rússia do final do século 19. Estes são, obviamente, os chamados

74
Critiquei a inexplicável e a indesculpável cegueira dos amigos brasileiros de uma das mais antigas, e
mais resistentes, ditaduras do planeta neste artigo: “A História não o Absolverá: Fidel Castro e seus
amigos brasileiros: um caso de renúncia à inteligência?”, Espaço Acadêmico (ano 6, nº 64, setembro
2006; link: http://www.espacoacademico.com.br/064/64almeida.htm). Voltei ao assunto da revolução
cubana, e aos mitos sobre ela entretidos, neste artigo: “Falácias acadêmicas, 6: o mito da Revolução
Cubana”, Espaço Acadêmico (n. 94, março 2009; link:
http://www.espacoacademico.com.br/094/94esp_pra.htm).

245
“clássicos” do marxismo e não vale insistir sobre sua obra, bastante conhecida e lida (por
marxistas inteligentes).
Marxistas, ainda, são alguns historiadores do início do século 20, que reinterpretaram
a história passada – mediata e imediata – à luz dos conceitos fundamentais do materialismo
histórico, a exemplo de Charles Beard – que nos legou, em 1913, uma Economic
Interpretation of the Constitution, analisando o congresso constitucional americano não em
termos das ideias políticas dos “pais fundadores”, mas de suas posições econômicas e
interesses materiais; ou Maurice Dobb, que tentou explicar a transição do feudalismo ao
capitalismo, na Europa, com base quase que inteiramente no modelo marxista da transição,
caminho interpretativo seguido também por outros historiadores marxistas ingleses, como
Edward Thompson (The Making of the English Working Class, 1963) ou Eric J. Hobsbawm,
autor de muitas sínteses históricas abordando desde os primórdios da revolução industrial até
o capitalismo e o imperialismo modernos, que ainda fazem sucesso entre os acadêmicos. Na
tradição americana, relativamente distante dos modismos europeus, alguns se distinguiram no
marxismo de boa qualidade, como Paul Sweezy (e seus estudos sobre o capitalismo
monopolista), Wright Mills (análises sobre a estrutura de classes americana), ou ainda André
Gunder Frank e Immanuel Wallerstein, com trabalhos históricos de largo escopo sobre o
desenvolvimento da economia do sistema-mundo (modelo analítico que também seduziu
sociólogos históricos como Giovanni Arrighi).
O que se observa, no Brasil, é, mais usualmente, a tribo dos “marquissistas”, os
papagaios de pirata, acadêmicos sem pesquisa e sem análises contextualizadas – menos ainda
baseadas em dados econômicos reais ou em observação direta da realidade –, que ficam
repetindo slogans a partir de algumas frases conhecidas ou de alguns conceitos mais utilizados
pelos epígonos, pessoas que leram superficialmente os clássicos do marxismo –
possivelmente em edições resumidas ou adaptadas, a partir de Althusser ou de Martha
Harnecker, por exemplo – e que se dedicam a vulgarizar ainda mais o que já era uma
aplicação superficial, geralmente equivocada, dos problemas políticos e sociais. A partir de
uma salada de conceitos – mais frequentemente frases soltas – eles praticam uma
apresentação – que sequer merece o nome de análise – claramente falaciosa dessas questões –
quando não de questões de outras realidades sociais – com o uso repetido de um verniz tênue
dos conceitos arquetípicos do marxismo. Eu conseguiria classificar vários exemplos da
espécie nessa categoria, o que vou, contudo, eximir-me de fazer neste ensaio, que se pretende
uma crítica geral de um tipo de comportamento, não um libelo acusatório de pessoas em
particular, que de resto reagiriam com as acusações e até mesmo os impropérios conhecidos

246
em “debates” deste tipo. 75
A academia brasileira, no entanto, já produziu marxistas de qualidade, embora os mais
conhecidos, justamente, não tenham frequentado as universidades na condição de professores
– como Nelson Werneck Sodré ou Caio Prado Júnior –, usualmente situados ao lado de outros
tipicamente acadêmicos, como Florestan Fernandes, por exemplo. Os dois primeiros, contudo,
não podem ser considerados como produtos ou expoentes da academia brasileira, tendo se
formado e desempenhado suas funções à margem do establishment universitário (muito
embora, por suas obras e posturas, eles o influenciaram poderosamente). Mesmo alguns
filósofos e sociólogos uspianos – os mais identificados com a corrente – não chegaram a
constituir propriamente uma “escola marxista”, já que divididos em orientações diversas e
voltados a pesquisas com outras tonalidades (inclusive nas vertentes clássicas da sociologia
weberiana ou francesa). A corrente mais conhecida nesse universo, a chamada “escola
paulista de sociologia”, não pode ser chamada exatamente de “clube marxista”. Seu expoente
mais visível e conhecido, o sociólogo Florestan Fernandes, esteve primeiro vinculado a
correntes funcionalista de análise sociológica para só depois de 1964 impregnar seus escritos
de laivos marxistas que se convertem mais em invectivas contra a “ordem burguesa” do que
constituem análises objetivas da realidade brasileira. 76
O que restou, finalmente, do marxismo brasileiro depois que os grande mestres se
foram e os existentes já não aderem mais aos preceitos do culto? Infelizmente para o itinerário

75
Eu mesmo já enfrentei algumas experiências desse tipo, como por exemplo a partir da publicação
deste artigo: “A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos que atrapalham seu desenvolvimento”,
Espaço Acadêmico (n. 47, abril 2005; disponível no link:
http://www.espacoacademico.com.br/047/47pra.htm); ele foi objeto de crítica de um representante da
espécie, a que seguiu minha tréplica: “Um intercâmbio acadêmico: a cultura da esquerda em questão”,
Espaço Acadêmico (n. 49, junho 2005; link: http://www.espacoacademico.com.br/049/49pra_re.htm).
Outro “debate”, do mesmo tipo inconsequente, seguiu-se a uma modesta resenha minha: “Marxistas
totalmente contornáveis” [resenha de Jorge Nóvoa (org.): Incontornável Marx (Salvador/São Paulo:
Unesp/UFBA, 2007), Espaço Acadêmico (n. 84, maio 2008, link:
http://www.espacoacademico.com.br/084/84pra.htm), cujos ataques furiosos foram por mim
respondidos neste artigo: “Manifesto Comunista, ou quase...: dedicado a “marquissistas” à beira de
um ataque de nervos (a propósito de uma simples resenha)”, Espaço Acadêmico (n. 85, junho de 2008;
link: http://www.espacoacademico.com.br/085/85pra.htm). Não ignoro, tampouco, as referências
altamente depreciativas feitas a propósito de outro artigo meu, no mesmo veículo: “O fetiche do
Capital”, Espaço Acadêmico (n. 83, abril 2008, link:
http://www.espacoacademico.com.br/083/83pra.htm); os ataques repetidos, na verdade, fornecem
amplo material para os argumentos críticos que desenvolvo neste tipo de ensaio.
76
Analisei a obra de Florestan Fernandes, de Caio Prado Jr. e de Nelson Werneck Sodré neste artigo:
“Florestan Fernandes e a ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro”, Espaço Acadêmico
(ano 5, n. 52, setembro 2005; link: http://www.espacoacademico.com.br/052/52ff_almeida.htm).
Todos os artigos citados previamente encontram-se disponíveis neste link:
http://www.espacoacademico.com.br/arquivo/almeida.htm.

247
do “marxismo brasileiro” (desta vez entre aspas), ficaram os acadêmicos mais incultos, no
mais das vezes desligados dos requisitos da pesquisa séria – ou seja, dotada de algum
embasamento empírico –, pouco afeitos ao raciocínio lógico e menos ainda à análise
econômica, e que realizam uma assemblagem heteróclita de frases desconexas, retiradas aqui
e ali de alguns textos mais conhecidos (muito raramente lidos no original, ou com base nas
edições críticas (como podem ser aquelas do tipo de Maximilien Rubel na Pléiade ou de
alguns outros exegetas europeus). As tarefas a que se dedicam mais comumente os
“repetidores” são justamente essas de um “copy and paste” rudimentar, a repetição cansativa
de alguns chavões de aparente filiação marxista e que estão no centro do foi aqui designado
por “modo repetitivo de produção”, uma contrafação do que seria um verdadeiro
empreendimento marxista digno desse conceito.

3. As forças produtivas do modo repetitivo


Veja, caro leitor, se você consegue compreender o que está realmente escrito neste
trecho transcrito abaixo:
Deste modo, o capitalismo global como capitalismo manipulatório nas condições
da vigência plena do fetichismo da mercadoria, expõe uma contradição crucial entre,
por um lado, a universalização da condição de proletariedade e, por outro lado, a
obstaculização efetiva – social, política e ideológica - da consciência de classe de
homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho.

Não entendeu? Não é grave. Tentemos este outro trecho:


Entretanto, ao invés de prenunciar a catástrofe final do capitalismo mundial, a
crise estrutural do capital prenuncia, pelo contrário, uma nova dinâmica sócio-
reprodutiva do sistema produtor de mercadorias baseado na produção crítica de valor.

Continua sem entender? Experimentou reler? Você não faz a mínima ideia que raios
quer dizer “produção crítica de valor”? Não tem importância, mesmo. Para os fins que são os
nossos – que não são, exatamente, o de fazer a exegese desse “marquissismo de opereta” –,
basta tentar entender como chegamos a esse estado de coisas, a todos os títulos lamentável, na
academia brasileira. Quem são, finalmente, os motores intelectuais – se o adjetivo não é
exagerado – desse vasto empreendimento de mistificação ideológica e como seus
representantes exercem esse papel?
Essas locomotivas autoproclamadas do processo histórico determinista estão
representadas, geralmente, por professores universitários das ciências sociais – ou seja, das
faculdades de humanidades, num sentido lato –, uma espécie autoreproduzida e

248
autoreprodutora, que se alimenta de seus próprios textos e discursos – e também de algumas
propostas organizativas –, com uma outra consulta fugidia aos cânones originais do
pensamento marxista (de vez em quando é preciso legitimar o que se vê transcrito acima).
Mas poucos, hoje em dia, vão aos textos originais, com a ansiedade com que os “velhos”
marxistas iam, meio século atrás, às fontes do saber científico: as obras escolhidas de Marx e
Engels, alguns volumes das obras completas de Lênin, textos filosóficos e de vulgarização de
mestres insuperáveis. Eles se contentam agora com alguns pastiches mal traduzidos e mal
costurados, onde se sobressaem os nomes de alguns discípulos pouco conhecidos e outros
vulgarizadores que já saíram de moda (mas que ainda são citados porque é o que existe nas
bibliotecas mal atualizadas).
Não é preciso citar aqui os nomes desses expoentes mais em voga nos nossos museus
de cera do marxismo vulgar, embora seja possível encontrar vários deles nas estantes, ou até
em congressos acadêmicos alimentados com dinheiro público, o que poderia até gerar algum
convite a duelo contra o autor destas linhas. Pode-se ficar, simplesmente, em duelos virtuais a
partir de uma consulta aos folhetins que circulam nesses meios do “marxismo redivivo”,
especialmente ativo, como mencionado nos departamentos de humanidades das universidades
públicas. Sua força de persuasão é, contudo, enorme, na medida em que são responsáveis pela
produção dos mestres que se disseminam depois por todos os estabelecimentos, públicos e
privados, de ensino.
Eles dispõem de uma audiência cativa: alunos submetidos à ditadura acadêmica do
titular da disciplina, que são obrigados a ler os materiais insossos que lhes são repetitivamente
recomendados – não é difícil citar os nomes mais frequentes nessa bibliografia ambulante –, e
que não desfrutam, os alunos, da faculdade de desafiar intelectualmente a retórica vazia que
lhes é servida de forma recorrente já que paira sobre eles a espada ameaçadora da condenação
política e da avaliação redutora. A verdade é que as “forças produtivas” do marxismo vulgar
no Brasil nem são tão produtivas assim: eles apenas aproveitam o molde formal do marxismo
original para a partir daí construir, com as ferramentas de uma outra época e de outros
lugares, suas propostas e argumentos opinativos falsamente revolucionários, em nome de uma
utópica sociedade socialista. Não que não possa existir uma sociedade socialista, mas a que
vem servida não corresponde a nada do que se conheceu no passado, nem vem explicitada na
sua sonhada arquitetura futura: são conceitos vazios, nada mais.
O que menos importa aos representantes do “modo repetitivo de produção” são os
dados concretos, aferíveis e verificáveis, dos personagens que eles pretendem descrever em
suas perorações: trabalhadores, burgueses, especuladores e tutti quanti frequentam suas

249
diatribes em classe e nos textos postados na internet. Não é preciso saber o perfil exato, a
composição social e a inserção produtiva, os níveis de renda e a capacitação profissional
dessas diversas camadas de proletários e burgueses, dos trabalhadores dos serviços – aliás, um
setor considerado improdutivo por Marx – pois o que importa é afirmar sempre o primado da
luta de classes e a inevitabilidade de um confronto final entre elas. Tampouco importa saber
que a noção de “classe dominante” recobre uma realidade difusa, feita de uma mistura de
elites tradicionais, novas lideranças industriais e dos serviços dinâmicos, latifundiários
rentistas e capitalistas agrários inseridos no comércio internacional, assim como
representantes daquilo que os marxistas de antigamente chamavam de capitalismo financeiro
monopolista; importa menos ainda saber que a tal de vanguarda revolucionária não seja mais
composta de batalhões proletários e de pequenos burgueses em ruptura com a velha ordem
carcomida, e sim de uma minúscula fração de funcionários públicos (menos na França, claro),
muitos encastelados em seus empregos universitários, ou no aparato de Estado (finalmente
conquistado), no mais das vezes ocupados em garantir apenas a reprodução de suas próprias
“forças produtivas” (com dinheiro público, obviamente).
Para e por que se preocupar em reproduzir a realidade corrente, feita de muitos
números, estatísticas complicadas, dados monetários confusos, relações complexas entre
tantos agentes econômicos interconectados, quando belas histórias podem ser contadas,
bastando encontrar aquela frase de efeito genial do velho Marx, condenando as patifarias do
parlamento burguês e o complô sinistro dos banqueiros e especuladores? (Não cabe aqui
reproduzir as tiradas recriminatórias de Marx sobre a “idiotice da vida rural”, já que os
camponeses sem terra são os aliados objetivos da causa). Para que se dedicar a pesquisas
ingentes, para preparar aulas inovadoras, quando os estudantes estão condenados à repetição
esperada das mesmas velhas ideias esclerosadas, sem ter condições de reagir à altura e de se
revoltar contra as novas idiotices pasteurizadas?

4. As relações de produção do modo repetitivo


O que seria, então, esse modo repetitivo de produção acadêmica que consiste em,
como diz o nome, retomar e repetir, mas fora do contexto, os conceitos marxistas mais
comuns? Ele consiste, precisamente, numa operação de assemblagem de frases soltas e vazias
sobre todas e quaisquer coisas, geralmente condenatórias do capitalismo (jamais do
socialismo), e portanto altamente simbólicas de uma escola vulgar que foi retirada de uma
costela (talvez quebrada) do corpo já alquebrado do marxismo. Esse modo repetitivo de
produção não chega propriamente a ser um “pensamento”, já que ele pratica o mimetismo e o

250
espelhismo conceituais no mais alto grau de vacuidade substantiva em relação às realidades
que ele pretenderia supostamente analisar. Tudo se passa como se estivéssemos em face de
uma reprodução especial – pois que dotada do jargão típico da área – desses jogos de palavras
que consistem em acoplar substantivos e adjetivos genéricos, intercambiáveis, e que podem
ser reagrupados de diversas formas e nas mais diferentes direções, para compor esses
discursos laudatórios que podem servir a qualquer ocasião e temática. 77
Esse tipo de exercício de logorréia vazia já tinha sido denunciado, desde 1948, por
George Orwell, em seu famoso ensaio “Politics and the English Language”. 78 Numa vertente
tipicamente acadêmica, veio a ser novamente exposto e dissecado criticamente na famosa
denúncia feita por Alan Sokal e Jean Bricmont contra intelectuais franceses e americanos do
gênero desconstrucionista, que praticam uma língua franca feita de pastiches aparentemente
eruditos (apoiados em alguns autores consagrados do mundo científico), mas que se revelam,
ao fim e ao cabo, um total “non sense”.79
Pode-se dizer, assim, que os “marquissistas” brasileiros são os reis do pastiche e os
campeões do “non sense”, já que eles também costumam “desconstruir” Marx para rechear
sua logorréia de invectivas anticapitalistas, contra a burguesia e a economia de mercado,
exercício que nada mais constitui senão um fluxo de palavras desordenadas, um ajuntamento
de perfeitos clichês, segundo uma técnica que bem revela sua incapacidade de conduzir uma
análise coerente da realidade, a começar pelo fato de o mercado tão condenado ser o mesmo
que gera riquezas das quais resultam seus salários e prebendas provavelmente imerecidos (e
não reconhecidos como tais).
E quais seriam as “realidades” do nosso mundo imperfeito que eles pretendem julgar
(e geralmente condenar)? São – sem nenhuma ordem, pois isso não tem a mínima importância
nesse tipo de exercício pueril – a luta de classes no Brasil; a crise terminal do capitalismo

77
Não é difícil encontrar, na internet, diversos programas, sobretudo em inglês, que praticam esse tipo
de assemblagem de palavras genéricas para a construção de discursos empolados, que recebem a
designação geral de “foggy programs”. Noam Chomsky, um típico acadêmico enganosamente prolixo,
famoso por suas frases vazias e falsamente progressistas (já que sempre condenatórias do capitalismo
e do imperialismo americano), está situado bem no centro dessa tradição de “repetidores”
supostamente marxistas; ele já mereceu um inteiro programa dedicado a montar discursos com base
em frases sem sentido: http://en.wikipedia.org/wiki/Chomskybot; para um exemplo em Português,
entre muitos outros, ver este site: http://www.lerolero.com/.
78
Esse famoso ensaio pode ser lido no original, na internet; em Português encontra-se nesta coleção de
escritos: George Orwell, Porque escrevo e outros ensaios (Lisboa: Antígona, 2008).
79
Ver, de Alan Sokal e Jean Bricmont, Impostures Intellectuelles (Paris: Odile Jacob, 1997); em
inglês: Fashionable Nonsense: Postmodern Intellectuals’ Abuse of Science (New York: Picador USA,
1998); no Brasil foi publicado como: Imposturas Intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-
modernos (3a. ed.; Rio de Janeiro, Record, 2006).

251
(infelizmente sempre adiada, para desespero dos mais apressados); a dominação imperialista
sobre uma sociedade dependente como a nossa (e por extensão de toda a América Latina e o
chamado terceiro mundo, ou mais exatamente, a periferia); a aliança objetiva entre a
burguesia industrial, os banqueiros e o latifúndio (conceito quase fora de moda, atualmente,
pelo virtual desaparecimento da categoria), sempre com o apoio do imperialismo (americano,
por certo, mas sobra para os europeus, também)’ até chegar no nec plus ultra dessas análises
superficiais: o avanço da consciência de classe do proletariado industrial que, sob a liderança
esclarecida do partido da vanguarda – eventualmente em aliança com o campesinato, que para
isso deixou de ser idiota –, conduziria o conjunto da sociedade a uma situação de ruptura com
a velha ordem burguesa, inaugurando assim a construção da sociedade socialista,
inerentemente igualitária, justa, baseada na propriedade coletiva dos meios de produção,
numa nova organização social e política dominada pelo planejamento centralizado do Estado,
o instrumento (temporariamente) redentor e abolidor da exploração do homem pelo homem,
que deixaria de existir na futura sociedade comunista. Tudo isso, claro, passando pelo
desmantelamento do Estado burguês e da sua democracia formal, e a emergência e a
consolidação de uma democracia de massas – participativa, ou direta, como proposta pelo
socialismo do século 21, que apresenta bizarras semelhanças com o fascismo – que pode
eventualmente redundar na ditadura do proletariado (uma noção herdada de Marx, mas
perfeitamente leninista, menos bem acolhida hoje em dia).
Ufa! Parece piada, mas era nisso tudo em que se acreditava piamente alguns anos
(talvez décadas) atrás. Que isso ocorresse numa época de socialismo ascensional – em sua
pátria inaugural, na finada União Soviética, e no novo farol da luta de classes, a China de Mao
– não era finalmente tão estranho, pois se estava caminhando, a despeito de todos os percalços
– a resistência dos capitalistas, a ofensiva imperialista, aquelas coisas perversas –, no sentido
determinado pela teoria científica materialista. Se a História estava conosco, quem poderia ser
contra nós? A burguesia, evidentemente, e o latifúndio e o imperialismo, claro, mas isso seria
resolvido no terreno da práxis, pela luta revolucionária do proletariado (e sua vanguarda
acadêmica, alguns ainda por aí).
Tudo isso parece muito Terceira Internacional, eu sei, mas existem ainda alguns da
velha geração que continuam a escrever nesse estilo gótico de meio século atrás (eles são,
sobretudo, próximos do PCdoB e seitas assemelhadas). Quanto aos mais jovens, alguns já
elegeram, marcusianamente (se é verdade que ainda se lê esse tipo de coisa, atualmente), os
setores marginais, geralmente adolescentes, para a condição de novos revolucionários
aguerridos das atuais rupturas, num estilo certamente diferente dos velhos marxistas do

252
passado: ecologistas (também conhecidos como ambientalistas, mas geralmente sem
formação científica adequada), humanitaristas, antiglobalizadores, enfim, uma fauna variada
de batalhadores das causas nobres, que coincidem entre si apenas em sua virtual oposição à
economia de mercado e às empresas multinacionais (que são as mesmas que lhes dão as
ferramentas – celulares, computadores, blogs e sistemas gratuitos de comunicação e de
informação – pelas quais eles se organizam e se comunicam, com bastante sucesso, aliás, pelo
menos midiático).
O que dizer, então, daqueles professores que não são exatamente da antiga geração –
que ainda lia Marx e os clássicos de maneira séria – mas que agora pontificam atualmente nas
academias brasileiras e latino-americanas? Eles tampouco são muito jovens, situação etária
que explicaria (mas não justificaria) a inconsciência, a ingenuidade ou a ignorância beata de
muitos dos recrutas das causas equivocadas que eles defendem. Pode-se dizer que os mais
jovens constituem a massa de manobra de alguns velhos espertos – não preciso lembrar os
nomes, pois eles estão em todos os encontros do Foro Social Mundial – que atuam com a
audiência que lhes restou, pois não desfrutam – se alguma vez desfrutaram – de qualquer
respeitabilidade acadêmica, ou exibem uma “produção” que é basicamente jornalística, sem
maior profundidade.
Os representantes principais da espécie, no Brasil, são aqueles que esposam ideias que
tinham curso em certas épocas, mas que se tornaram anacrônicas atualmente, e que não veem
nenhum problema em continuar defendendo-as, independentemente de todas as astúcias e
surpresas da história, que não se cansa de desmentir cabalmente seus projetos cientificamente
pré-determinados e suas previsões catastróficas.

5. As contradições insanáveis
Do que exatamente se ocupam as “forças produtivas”, que se apoiam
metodologicamente em suas “relações de produção” conceituais para produzir uma repetição
interminável de lugares comuns travestidas numa terminologia supostamente marxista? Quais
são os problemas, os processos, as contradições estruturais, os conflitos sistêmicos e as
tendências determinísticas que mobilizam a atenção, concentram os esforços, agiram o
cérebro dos nossos bravos combatentes das boas causas, opositores da ideologia burguesa e da
dominação das classes dominantes? Sendo breve, é isso mesmo que está descrito acima, com
destaque para alguns temas e problemas, que aprecem invariavelmente em seus textos,
arengas e palavras de ordem.
A burguesia, obviamente, é freguesa habitual, já que ela é a componente mais

253
importante das elites, mesmo se atentarmos para o fato de que a burguesia que aparece nos
textos de Marx não tem absolutamente nada a ver com seu equivalente tupiniquim ou latino-
americano. Existe também o imperialismo – por certo, bastante diferente do imperialismo
europeu colonialista que existia nos tempos de Marx – em suas diversas variantes, mas
quando o conceito aparece sozinho, ele representa o imperialismo americano em 99% dos
casos (nada a ver, obviamente, com a estratégia atual da China, que ocupa espaços e reproduz
o velho comércio Norte-Sul de tempos antigos). A palavra crise não só é uma constante,
como constitui verdadeira obsessão, a ponto de legitimar a pergunta sobre algum abuso
conceitual: de crise em crise, das crônicas às terminais, a sociedade burguesa e a economia
capitalista vêm resistindo bravamente h´å mais de dois séculos e meio (um pouco menos no
Brasil). Quanto ao conceito de capitalismo, pode-se contar com ele em pelo menos 120% dos
casos, inevitavelmente vinculado as qualificações esperadas: dominação, exploração, super-
exploração, agravamento das condições de trabalho, produtor de desigualdades, de
desemprego, quem sabe até fome e miséria.
O curioso – mas isso não vem explicado nos textos dos repetitivos – é que uma
minoria de capitalistas vem conseguindo resistir, nos últimos 200 ou 300 anos, a tanta gente
explorada, às massas famélicas (bem, nem tão famélicas assim), enfim, às amplas camadas de
trabalhadores assalariados que estão invariavelmente e naturalmente em oposição à
dominação e a exploração da classe dominante, sobretudo se essas massas são animadas e
conscientizadas como esses que fazem parte das “forças produtivas”.
O cenário descrito em seus escritos é sempre dantesco, feito de aumento das
contradições (de classe, nacionais, entre países, etc.), de agravamento da exploração (da
burguesia, do imperialismo, etc.), de crises agudas, de crises larvares, sistêmicas, fatais ou
finais, tudo isso como resultado das contradições insanáveis do capitalismo. Mais curioso
ainda é constatar como o capitalismo está sempre sendo corroído por essas mazelas terríveis e,
ainda assim, consegue se manter de pé, aliás triunfante, ao passo que o socialismo, que teria
conseguido teoricamente superar essas contradições, tenha praticamente desaparecido da face
da terra, sobrevivendo apenas em dois lugares miseráveis situados nas antípodas de dois
continentes decisivamente engajados nos fluxos de mercado, e colados aos centros mais
dinâmicos da economia capitalista. Curioso, também, que não existe nenhuma linha, pelo
menos dos repetitivos, que se dedique a explorar essas contradições socialistas e a crise
terminal do modo de produção socialista. Trata-se de uma imperdoável lacuna analítica, mas
que já poderia ter sido remediada meio século atrás.
Com efeito, se os repetitivos se dedicassem à leitura de algo mais do que pastiches de

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Marx, poderiam ter descoberto verdades elementares muito tempo atrás. O mesmo Raymond
Aron, em trabalhos dos anos 1950, já tinha constatado que o conceito marxista de mais-valia –
que constitui o núcleo central do modelo analítico dos que aderem ao “modo de produção
repetitivo” – não é nem materializável, na prática, nem operacional; em outros termos, ele não
pode nem ser medido, nem integrado a equações operacionais de micro ou de
macroeconomia. Nenhum economista sério conseguiu, jamais, partir da “economia marxista”
– se existe algo do gênero – para construir uma explicação das realidades econômicas do
mundo como ele é, como tampouco servir-se dela para construir uma “economia socialista”
(como aliás já tinha constatado Ludwig Von Mises desde 1920).
Nenhuma das contradições insanáveis do capitalismo materializou-se em qualquer
época no seguimento da análise contida nos trabalhos de Marx: nunca houve algo parecido
com a “baixa tendencial da taxa de lucro”, que seria provocada por esse processo metafísico
que se chama “redução do capital variável na composição orgânica do capital”. Não se
conhece economia capitalista consolidada que tenha provocado “pauperização das massas”, e
não foi por “exploração da periferia” das análises leninistas e luxemburguianas. Por que os
repetitivos nunca se atacaram aos ridículos argumentos de Louis Althusser ou de Jean-Paul
Sartre, sobre as “estruturas de dominação” do capital e sobre o “horizonte insuperável do
marxismo”? Inversamente, por que os repetitivos continuam a insistir em teses patéticas como
a que alerta para os perigos de sua própria situação, aparentemente ameaçados por um
fantasmagórico processo de “mercantilização do conhecimento produzido nas universidades”,
quando eles constituem a prova viva de que as universidades continuam a mergulhar na
insanidade repetitiva de suas análises alienadas?
Quando é que os estudantes vão se libertar dos grilhões que os prendem a essas
múmias do marxismo deformado, a esses dinossauros de eras geológicas passadas, já
soterradas por décadas de conhecimento acumulado sobre o funcionamento das economias de
mercado? Talvez não aconteça muito rapidamente, nem, conhecendo-se a universidade
brasileira, no futuro de médio prazo. É pena: a universidade brasileira, não toda ela, mas
várias faculdades de humanidades, vão continuar sua trajetória para a decadência intelectual
junto com seus promotores repetitivos; um dia ela se regenerará, mas vai durar um pouco para
que isso aconteça. Enquanto isso não ocorre, as falácias acadêmicas vão continuar se
acumulando repetitivamente, se ouso repetir. Nada mau para um colecionador de falácias
como este que aqui escreve: trata-se de uma garantia de que não faltará matéria-prima para
vários ensaios do gênero no futuro previsível.

255
(Brasília, 26 de junho de 2011)

256
Referências bibliográficas:

Almeida, Paulo Roberto. Falácias Acadêmicas; link para o conjunto de artigos:


http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/FalaciasSerie.html
_______ . “Economia política do intelectual”, Espaço Acadêmico (n. 63, agosto 2006; link:
http://www.espacoacademico.com.br/063/63esp_almeida.htm)
_______ . “A resistível decadência do marxismo teórico e do socialismo prático: um balanço
objetivo e algumas considerações subjetivas”, Espaço Acadêmico (106, março 2010;
link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9502/5321)
_______ . “O fetiche do Capital”, Espaço Acadêmico (n. 83, abril 2008, link:
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_______ . “Miséria da academia (uma crítica à academia da miséria)”, Espaço Acadêmico (n.
86, julho 2008; link: http://www.espacoacademico.com.br/086/86pra.htm)
_______ . “A resistível decadência do marxismo teórico e do socialismo prático: um balanço
objetivo e algumas considerações subjetivas”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 106, março
2010; link:
http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9502/5321)
Aron, Raymond. Le Marxisme de Marx (Paris: Fallois, 2002)
_______ . Mémoires (Paris: Julliard, 1983)
_______ . D’une Sainte Famille a l’autre: essai sur le marxisme imaginaire (Paris:
Gallimard, 1969)
_______ : L’Opium des intellectuels (Paris: Calmann-Lévy, 1955)
Beard, Charles A. An Economic Interpretation of the Constitution (New York: Macmillan,
1960 [ed. orig.: 1913]).
Dobb, Maurice: Studies in the Development of Capitalism (London: George Routledge and
Sons, 1946)
Orwell, George. Porque escrevo e outros ensaios (Lisboa: Antígona, 2008)
Sokal, Alan D.; Bricmont, Jean. Impostures Intellectuelles (Paris: Odile Jacob, 1997);
Fashionable Nonsense: Postmodern Intellectuals’ Abuse of Science (New York: Picador
USA, 1998); Imposturas Intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos
(3a. ed.; Rio de Janeiro, Record, 2006)

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