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Pedro Sérgio dos Santos

MARAÇII
·~
REMORSO:
1ª Edição

w
Goiânia - 2013
Revisão:Joana D'arc Moreira Borges
Editoração eletrônica: José Sérgio de Souza
Capa: José Sérgio de Souza
Printed in Brazil/Impresso no Brasil, 2013
Conselho Editorial:
André Vicente Pires Rosa - UFPE/Recife
Alamiro Velludo Salvador Neto - USP/São Paulo
Cesar de Oliveira Barr~s Leal - UFC/Ceará
Franciele Silva Cardoso - UFG/ Goiás
Gil Cesar de Paula - PUC/GO
Jane Araujo dos Santos - MPT
Luiz Eduardo Jorge - PUC/GO
Miguel Jorge - UBE/GO
Pedro Sergio dos Santos- UFG/Goiás
Sergio Salomão Shecaira - USP/São Paulo
Silzia Alves Carvalho Pietrobom - UFG/Goiás

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


(GPT/BC/uFG) L,

S237m Santos, Pedro Sergio dos.


Maraçu não tem remorso / Pedro Sergio
dos Santos. - Goiânia : Lumina editora, 2013.
/
Minha homenagem a:
358 p.
ISBN:978-85-67369-01-3 Eduardo Reed,
1. Literatura brasileira - Romance.
1.Título.
Joveny Sebastião C. de Oliveira,
Rodolfo Petrelli,
CDU:821.134.3(81)-31
Ivo Dantas.
Proibida a reprodução no todo ou em parte deste livro,
sem expressa autorização do Autor. e

João Antonio do Nascimento e


Pedro, meu pai (in memoriam)
Sumário

Capítulo I
As lições que se balançavam..................................... 1

Capítulo II
Duros tempos, leves sonhos..................................... 61

Capítulo III
Sopros que se arrastam............................................. 113

Capítulo IV
Das tripas ao coração................................................. 159

Capítulo V
O Combate de São Jorge contra
o dragão de Maraçu ................................................... 221

Capítulo VI
O passado toca lábios do presente ........................... 311

Capítulo VII
Ruminando a espera de dois passarinhos .............. 337

V
Capítulo I
As lições que se balançavam

"Inconto a sulina amansa


ricostado aqui no chão
na sombra dos imbuzêro
vomoentrano in descursão
é o tempo que os pé discança
eisfria os calo das mia mão
vôpoiano nessa trança
a vida in descursão"

(ELO
MAR f IGUEIRAMELO)
velha rede amarela balança na varanda

A e seu corpo é ninguéi;n. A poeira sobe


no quintal com o vento entortando a
mangueira carregada, anunciando trovões. Já
foram três tentativas e não consegui acender
meu cachimbo. Perdi a paciência e joguei
fora a caixa de fósforos. Preferi olhar os
anúncios do vento; talvez seja esse o mesmo
vento que passou por mim em Maraçu me
dizendo que o mundo era grande, mas que
se tornaria pequeno quando minha barba
embranquecesse.
Quantas colheitas de arroz já fizeram
por aquelas terras... Quantos tambores de
congada foram silenciados pela má vontade
dos coronéis; intolerância, pura intolerância
com as coisas dos negros, que acabaram por
fugir, todos, para os quilombos da Calunga.
Quantas vezes busco o Caipora e os Sacis que
se avizinhavam de meus sonhos depois que
escutava as histórias do meu avô Cândido
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
Cassiano, que às vezes, em tom cerimonioso na cabeça, com vestes compridas e cordas
perguntava: '
amarradas pela cintura. Meu avô falou de
- Sabepor que o diaboé sabido? gente que se esparramou por todo o Brasil e de
gente já esparramada que procurava possuir
E eu balançava negativamente a
um pedacinho de chão com um rego d' água
cabecinha, com o olho arregalado, embora já
para uma lavoura de mata-fome e um espaço
sabendo a resposta.
no quintal para criações poucas, umas com
- Nãoé porqueo diaboé diabo.Éporqueo penas e outras que fuçam. Foi gente assim que
diaboé velho... também fez de Maraçu seu paradeiro.
A baforada com o cigarro em fumo de Ao certo não posso dizer se aquelas
rolo tornava o ambiente branco feito leite por bandas de fim de mundo eram terras de
alguns instantes e o meu velho avô soltava barulho, de mistério de ciganas, daquele que
uma gargalhada rouca e enigmática, pois não causa dormência n' alma, ou se eram terras
sei se ele ria do diabo, que apesar de sabido de ninguém, onde quem quisesse fazer fama
continua mal visto, ou de nós, que feito bobos e fortuna, não encontraria eco para seus
não percebíamos as armações do dito cujo. interesses. Não sei se eram terras de ambição,
Mas a gargalhada era farta, regada a uma de gente pouco perdida ou muito achada nas
caneca cheia de café amargo. coisas de pequena valia. Sei que nas terras
de Maraçu eu botei olhos no mundo pela
Foi pela boca de meu avô que também primeira vez, para depois vir a saber a que
tomei conhecimento de beatos pregadores, tipo de espécie eu pertencia. Foi ali também
anunciadores do fim dos tempos e dos que registrei na memória minha primeira
tempos dos coronéis. Eram beatos andantes impressão de gente, com minha mãe me
pelos sertões falando para a gente miúda da sentando na mesa da cozinha e segurando
poeira e do sol, que atrás deles caminhava minha mão para me ensinar o sinal da cruz,
em procissões, com cânticos e ladainhas não tendo eu ainda três anos. Por tempos fiz
. .
mmtas vezes pemtentes carregando pedras
'
o sinal da cruz como os irmãos ortodoxos,
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sempre com a mãozinha esquerda, e depois A rede me tomava nos braços como se
percebi,já um pouco mais velho, que amarrar eu, na minha infância de seis anos, fosse seu
sapatos nunca foi o meu forte, por isso a vida filho, e disputava minha maternidade, ou
inteira calcei botinas. paternidade, sei lá, com meu pai e meu avô
que, ora um, ora outro, se balançavam comigo
Se os gregos não precisaram de escola
em conversas que anoiteciam meu sono.
para deixar sua sabedoria ao mundo, também
não precisei de professor e giz para descobrir Foi na escola da rede na varanda que
algumas das mais esquisitas variações da tomei notícia da história daquele arremedo
condição de gente que se diz vivente pela de cidade, de tudo que eu ouvia no início
graça de Deus. Longe de mim querer fazer como coisa de valentia, heroísmo e macheza
juízo de quem quer que seja, ou me comparar dos protagonistas das cenas descritas pelo
com os outros, mas se você tiver a coragem meu avô, pelo meu pai e confirmadas pelos
de ler esses pensamentos, vai querer saber outros mais velhos. Tarde da vida, concluí que
por que eu os pensei assim e não de outra Maraçu deveria se chamar "marassangue".
maneira. De sorte que minha melhor escola, Mas não um sangue de honra, de orgulho,
quando não foi a vida, vivida por mim, foi a daquele que a gente enche a boca para
vida em lição de meu pai e de meu avô, que falar de heróis nacionais. Era um sangue de
eu aprendia a cada noite no balanço da rede ruindade podre mesmo, de fedentina, da pior
que me servia de sala de aula, enquanto os maldade humana. E olha eu sendo injusto com
mais velhos comentavam o dia de trabalho, as a maldade, como se bicho fosse ruim assim.
histórias de trancoso, as políticas, as caçadas,
as doenças e curas quando haviam, seja por Meu avô se referia àqueles tempos em
ervas ou benzeções, pois médico ainda era que Carlos Prestes passava por esse cerradão,
fulano de pouca presença e credibilidade por descendo com seus parceiros para o norte,
aquele sertão. Depois tive escola de banco e numa empreitada de política militar de pouca
professora de giz, sim, mas para aquela escola clareza, mas de muita especulação para quem
lá de casa, diploma é pouco. os via passar. Prestes levantava mais poeira nas
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ideias dos caboclos do que nas poucas estradas quanto há que saí fogo e faz barulhocom
de rodagens para carros de bois. Porém, pólvora;era tanta munição que pensavam
Prestes, na sua marcha de esperança, passou até que era casode guerraoutravez,já que
e ficaram aqueles que, já desenganados com o Paraguainão miava mais pra espantá
o garimpo do século passado, queriam fazer ninguém.Podiaser com outro vizinho mas,
do leito do Tocantins o pilar central de uma qual nada, era com os Avá que ele queria
produção de gado e de arroz, transformando briga.Gentedura essesAvá-Canoeiro, difícil
a todo custo o cerrado bruto e selvagem de de um qualquerde nóssair.comelesna mão;
pequi, tatu, guariroba, anu, jatobá, mulata, forçamuita e atrevimentotava ali naqueles
cajuzinho, lobo-guará, bacupari, ema, araçá, homens; mas coitados,não tinham arma
periquito, araticum, cascavel, ingá, lambari, nem munição,mas o Coronel]ales tinha. E
ipê, capivara, lobeira, jaguatirica, gameleira gastançacom arma num era nada para ele.
(desculpe-me pela rima) juriti, guatambu, Mandoubuscáde tudo quantoeravariedade
mutum, e outros seres plantados ou andantes, de arma em São Pauloe depois,no dia da
em fazendas com paiol e fartura de pouca chegadados caixote com as tais, foi uma
variedade que a natureza desconhece. As festa de noitee dia.O Coroneldeu armapara
terras dessas fazendas tinham dono e de seus todo mundo; não ficou um só f azendeíro,
donos, o velho Cândido Cassiano foi assim me ou quem tivesse qualquerpedaçode terra,
contando: sem sua espingardaou revólver e muita
bala; pólvora e chumbo dava na canela,
- Pensaque elessão bobos?Sãonão,mas até mulher e menino receberamarma. E
hoje são menos que nos tempos do Coronel mais,o Coroneldava um garrotepara quem
]ales. Hoje tá uns poucos socados nesses trouxesseum Avá-Canoeiromorto.Nem era
matos,só procurandode novo pra reavero precisolevaro corpotodo do índio,bastava
queé deles,queo Coroneljalestomoue botou a cabeça,ou as duasorelhas.Sefosseorelha,
pra correros que sobrou.Coroneljalestinha tinha que ser as duas, senão ele acabaria
pra maisde trintajagunçosarmadosde tudo pagandoum garrote para cada orelha do

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índio difuntado. Todo mundo animado amontoavamna porta do bar do Toinzinho


com a chance de formar um gadinhopara Teixeíra para assistir a esparramaçãode
começode pasto,a turma saiu na maçaroca, cabeçaspelacalçada.Enquantoa menínada
de arma carregadapela bocae a caçadade festejavae via nas cabeçasa valentiade Seu
Avá-Canoeirotinha até cachorrobom que Canhoto,as mulheresse benziamde alegria:
fuçava cheiro de índio até em arame de Benza Deus!São menos três filhos do cão
cerca.A cachorradadanavana latiçãomato para atazanarnossojuízo!!!E logoaparecia
adentroe nãoeradifícilde achardoisou três o Coronel]alespitandoem canto de bocae,
já correndopelo cerradopara se esconder. olhandona cara de cada uma das cabeças
Se quisessepegar ao menos um, tinha que que rolavam de um lado para o outro na
ser na hora da correriacom os cachorros, ponta das botinas, mandava buscar os
porque depois que eles se escondiam, garrotescom um sorrisode contentamento;
ninguémachavamais.Seu Canhoto,caçador e pagava de bom grado o caçadordaquele
dos bome acostumado, já nos seus setenta e PovoInvisível,pois foi dessejeito que Seu
tantos,a ganharapostasde caçadae garrote Canhotoapelidouos Avá. Teveum dia que o
do Coronel]ales, afirmava de boca cheia Coronelficoumaisfeliz queo de costume.Seu
fazendo qualquer escutante acreditar que Canhotoentrou na cidadee despejoucinco
os Avá tinham um encantamentoe que, se cabeças;eram dois homens,uma mulher e
elesquisessemdesaparecerna mata,ofeitiço doismeninos.Umaparentavadepeito,ainda
era certo. Dizia isso talvez para valorizar miudinho, e outro por uns três ou quatro
maissua vitóriana caçadaquandochegava anos.Sem tiraro pito da boca,o Coroneldeu
em Maraçu com a cabeçade dois ou três uma gargalhada:"Agoraa gente cortao mal
dentro daquelebisaquede couroque vinha é pela raíz,não é pra deixarnem a semente,
pingandoosanguee manchandosuagarupa. porqueissoé que nem pragana branqueara,
QuandoSeu Canhoto,do alto do seu cavalo se deixar um, ele vira mil!" E, orgulhoso,
preto,entravapelarua em Maraçu,qualquer Seu Canhotodesfrutavadas homenagensdo
meninogritavasua chegadae as pessoasse Coronelenquantoaumentavaseu rebanho.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Os Avá-Canoeiromorriam sim, mas eram mais jovem e duas mais velhas, velhas mesmo;
de luta.Eleseramgrandes,fortes e lutavam, me pareciam bem doentes e mendigavam
lutavam,mas quem é quepodecomarmade um pouco de comida pelas ruas de Maraçu
fogo,quenãocarecede lutano tapa,só de boa trajando uns farrapos de roupa. Vejo hoje,
pontaria.e de longederrubaum sem nemsujar pelas lentes da minha barba, que aqueles eram
a mãodagente...OsAvá,àsvezes,atépegavam talvez uns poucos sobreviventes dos feitos do
um ou outrojagunçomais boboda tropado Coronel]ales e do Seu Canhoto.
Coronelmaselesnãotinhamtinode atirar,e se
Vejo as mães hoje ameaçando meninos
aprendessem, ondeelesiamtermunição?Tinha
com o Bicho-Papão na hora de comer ou
jeito não,o destinodo PovoInvisívelerasumir
dormir, dizendo que o bicho vai pegá-los se
no matoou se amostrarsó com as cabeçasna
não obedecerem. Meus temores de menino,
portado bardo ToinzinhoTeixeira. E o Coronel
no canto da velha rede nas noites de conversa
]alesfalavaparaquemquisesseouvir:"Numdô do meu avô, eram talvez mais reais que
dezanose a gentejá limpouessasterrasdesses o Bicho-Papão; ainda que essa realidade
índiosimundose safados". estivesse num passado bem distante de mim,
eram eles, os Avá-Canoeiro, o Povo Invisível,
Acho que se a rede tivesse canto, eu o Coronel e Seu Canhoto.
ficava lá bem quietinho na escuta da matança O Velho Cândido Cassiano, provocado
dos Avá. Meu medo de menino ficava entre por meu pai, que não tinha lá muita prosa com
o Coronel ]ales, Seu Canhoto e os Avá; esse Doutor Altamir, filho do CoronelJales, repetia
nome de povo invisível tinha um mistério que a história do sumiço do neto do Coronel, e a
se assemelhava a coisa do encantado. Eu não noite ficava pequena para os detalhes:
conheci o tal Coronel e o dito Seu Canhoto das
histórias do meu avô, mas eles me impunham "... quem viu o Coronel]ales naqueles
um respeito temeroso que eu não sei de onde arroubosde valentiae desenvolvimentoem
vinha. Avá-Canoeiro de verdade, confesso Maraçu,nãoreconheciamaiso homemcaído
que só vi uma vez. Eram uns três: um índio na cachaçadaquelejeito. Era uma paixão
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

sem tamanho, dum sofrimento que vinha a se envergonhardo Coronelque sofriapor


comendopordentroatéfazerelese arrastána um sofrimentoque deveriaser igualmentedo
ruafeito cachorrodoente.Erauma pingasó, rábulasem-vergonha.Já faziapramaisdetrês
começavacedoe nãoparavaaté o sol cair e anosque,num diachuvoso,o netodo coronel,
o Corondcairjunto. Muita das vezes o cego filho primeiro de Altamir, desapareceu
Ivonaldo,quandoia para casano fim do dia quandobrincavasozinhobeirandoo curral,
caçandoo caminhocom sua vara de mão, poucoretiradoda casana fazenda.O menino
topavacom o Coronelcaídona calçada,ora Severianotinhapoucomaisde doisanose um
já feito morto,outravez resmungandoaquilo vaqueiroaindaouviu os gritosdelee alguns
quea pingasopravanoseu ouvido.Erao cego Avá-Canoeiro correndopelamata.Ovaqueiro
Ivonaldoquem tentava sentar o Coronele puxou depressao revólverpraqui-prá-acolá,
ficavapedindoa um e a outro que levasseo mas de nada valeu. O Coronelcolocoumais
bêbadoparacasa:Tempenadelegente!Acode de trinta homensna mata revirandoo sertão
aqui,ajuda!Vamobotáo coronéao menopra e não achouo menino,nem vivo nem morto;
durmi debaixodum teiado!O povo ajudava procuroupramaisdeseismeses,intéofereceu
mais pelo cegodo que em favor ao Coronel. metadedas terraspelacriançade volta,mas
Elejá nãoeramaispoderosoe tão ricoassim, não teve quemfizesseo PovoInvisívelbotar
acabou com um bocado do dinheiro na o meninona apariçãode novo.No dia que
bebedeirae seu poderse foi em cadagolede o menino sumiu, o pai, o tal doutorzinho
cana, em cada vômito ardidodespejadona Altamir,tava na capitalenfeitandocomício
rua. D'outrabanda, todo mundojá estava de um e de outro. Quinze dias depois do
cansadode recolhero Coronelpara casa; ocorrido,quandochegoua Maraçue soube
todosos dias era a mesma ladainha.O filho da notíciado filho,ficou peloscantos,meio
maisvelho,Altamir,advogadozinho metidoa triste, ajudou a procuraraqui e ali, bebeu
besta,depoisqueganhoucargodeprocurador umas e outrase consoloua esposadizendo:
fazendárioà custade bajulaçãobarata,pouca "SeDeusquis assim,levandonossofilho,ele
importânciadavaaopai;parecequechegava há de nos dar outro".Esmeralda,a mãe do
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menino, quase endoideceu também, teve de cincodedosna testa e rodeoude sangue


gastançamuita com médicovindo de longe a rua poeirentadepoisde encharcaro temo
e ela demorouvortáparaa razãodo mundo; encardido.Dessavez foi Nenzinho coveiro
emagreceu,ficou com cabelo desgrenhado e o Cabo,chefe do destacamentoda polícia,
e os olhos sempre inchadosdo choro sem que socorreramo Coronel.Depoisda visita
fim. Mesesde sofrimentode uma mãe que do farmacêuticoem casa,que procuroudar
não tinha maisfilho, nem vivo , nem morto. algumjeito no ferimento,foi o cegoIvonaldo
Maso DoutorAltamir,não demoroumuito e chamadopor DonaOlga,ppr insistênciade
já estavana praçaoutra vez de cara limpa, muitos,parafazer uma benzeçãono Coronel,
fazendopolíticae tomandoar de funcionário já queo cegotinhaláseuspoderesdecuracom
importante do governo, desfilando com os anjose ossantosdo Senhor.Sem cobrarde
o temo branco engomadinhonum tergal ninguém,fazia a caridadeda reza pra um e
vistosoe cabelona brilhantina,enquantoseu pra outroe nessatoadao povode Maraçulhe
pai,inconformado coma perdadoneto,quejá dava a comidado dia e o abrigoda noite.A
lhepareciadefinitiva,se consumiana dorda entradado cegoIvonaldona casado Coronel
ausênciado menino.Se os Avá erampoucos, pela primeiravez foi, para Dona Olga,tal
já destruídosno povo grande que tinham, qual uma arrancadade umjacarandávelho
vendopassarum a um de seusfilhosna boca pela raiz,já que a dita senhoraerafilha de
de fuzis esparramadospelo Coronel,dessa alemãoe colocouna cabeçado marido,desde
vez eles capricharamno acertode contase que a conheceu,que esse povinhodo Brasil
o Coronelviu o chãosumir de seus pés com eragentede poucavalia,aindamaisse fosse
o sumiçodo netoparaum lugarsem lugare pretoe índio,masqueelatinhaesperançasde
num temposem tempo,num cantoque,para que,comasriquezasda naturezaqueeramde
chegarlá,pareceque tinha que ser invisível farturagrande,o Brasilaindaterianas veias
também.Numa dessascachaças,o Coronel o sanguedaquelagente nobreda Europa.A
caiu batendoa cabeçana quina da pilastra velha OlgaRockemnão topavacom negroe
da prefeitura,abrindoum talho pra mais nem comíndio,e osmulatossó aceitavacomo
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empregadosem serviçode pior qualidade.O paraDonaOlgana presençade Altamir,dos


cegoIvonaldo,alémdepobreeramulato,mas empregadose dofarmacêutico:"A rezasó vai
foi tanta gente aconselhandoa mulhersobre fazer valiase eu benzê a casatoda também
a benzeçãoforte do cego,e de outra bandaa e a senhoratambém,muíé do doente."Uns
desgraceiradesatadacomo sumiçodo neto e olhavamparaa caradosoutrossem resposta
o maridose acabandona cama,agorajá sem para o cego,esperandoque a soluçãoviesse
memóriae o corpocorroídopela cachaçaem da bocade DonaOlgaque, sem pestanejar,
úlcerasque aumentavamque nem peste em retrucou:"Benzeo que voçê quiser,a mim
galinheiro,que a velha senhoraaceitouque não,que eu não dou créditoa essasua reza
chamassemo cego para uma benzeçãono e seusmilagres!"O cegoretrucou:"Nãofaço
marido,dizendoaoscriados,mas tentandose milagredona, se arguma miara acontecêé
convencerde quejá não tinha mais recurso pru modeDeusNossoSinhôe os Santoe anjo
em sua nobreza:"Vá lá que essecegovenha de quemme valho!Se a senhoranum qué eu
aqui,se bem não fizer, mal pior não faz...". faço dojeito que dé..."O cegotirou do bolso
OraconduzindoBreguelço,um jumentinho, uns raminhosde arruda e pediu para que
ora sendo conduzidopor ele, o cegoandava Zefinha,a empregadada casa,fosse levando
por toda a cidade,benzendoum e outro, e ele pelo braçoaté o quartodo Coronel,mas
quemfalassedojumento eleinvocavao padre quefossedevagar,parandodebaixode cada
Antônio Vieira, do Ceará, para defender portae defrente a cadajanela.Seguidopelos
o bichinho,dizendo a todos, como dizia o queestavamna casa,o cegosaiufazendosua
religioso,que o jumento é nosso irmão. O reza:"Nomedopai,dofio e doespritosanto..."
cegoIvonaldoentrou na casa pela mão da Fazendoo sinal da cruz, responderamum
empregadaZefinha,depoisde ter amarrado amémdecantode bocae olhodemuitaescuta.
Breguelçona portada rua,eparadode pé na O cego continuoua reza embaixode cada
entradada sala,tremiaa cabeçae a mãoque portalquepassava:"Sinhôdo céu,domar,da
seguravaa varinhade goiabeirana mesma terra e de toda vivença,protegêessa porta,
toada,e depoisde um tempinhocalado,falou arma asjanelas, expursao demônioe toda
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

doença!"Quandochegouno quartododoente, Buscando a mão de Zefinha, o Cego


Zefinhacolocoua mão do cegona cabeceira Jvonaldopediu à moça que colocassea
da camadoCoronelavisandoquealio homem mão dele na cabeçado doente e fez a reza
tava deitadonas suas dores.O cegoIvonaldo derradeiracruzandoo galhode arruda:
ficou uns temposna mudez com todosa lhe
repararna escutada curiosidade;então ele "Olhadoe quebrante
foi puxandoofôlegobemfundoporumastrês saí-tedaqui
vezese depoisfez a rezaem cimado Coronel, três ramosverdes
levantando uma mão enquanto a outra vai sobreti
passavasempreo ramode arruda,na toada
de cruz.Primeiro,o cegorezounum silêncio tu és o ferro
miúdo mexendosó os beiçose chiandobem eu sou o aço
baixinho;mesmosem visão,seusóioscorriam tu és o demônio
de ladopra outro,às vezespra cima.Depois mas eu te embaraço
começouuma rezaem voz alta: em nome do Pai, do Fio e do Espríto
Santo ... Amém."
"Pedroe Pauloforama Roma
comseu mestreencontrô Dali todo mundo se benzeu, o cego
que é que viste,Pedroe Paulo? foi se retirando e, já na porta da casa,
Máde morte,sinhô! disse pra Dona Olga:"O menino seu neto
foi a pele,foi a carne,foi osangue,foi o osso, vorta, mas a senhora não vai mais poder
a dorcomendono centro, ver, é da vontade de Deus..." A velha, de
nasperna,no espinhaçoe no pescoço. cara ruim, virou-se para o filho e para a
Sínhôpedimostua graçae proteção, empregada resmungando praga contra o
comoviesseao mundo cego,achando que ele estava dizendo que
prapurificádas mardade, elaficaria cegatambém. Qualnada, o cego
limpaesseenfermodassuasenfermidade." sabia o que falava...
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

O Coronel Jales foi se acabando por ali na mesma toada em que Maraçu se levantava
na cachaça e morrendo num dia pelo outro como cidade, depois como comarca e por
com velório de pouca reza e enterro com fim virando diocese com bispo e catedral
chuva fininha para regar os prantos da viúva. em homenagem a Nossa Senhora das Dores.
No velório ela chegou a lembrar ao filho que a Pensava eu como menino que ora falava fino,
reza do cego de nada adiantou. Se a velha Olga ora grosso, na mesma palavra: O que há de ser
não se esqueceu do cego Ivonaldo, eu também essa cidade para mim que quero ter profissão,
não esqueci, apesar de só conhecê-lo pela virar o mundo e saber das coisas da capital e
boca do meu avô. Minha mãe, que tinha por
desse Brasil?
costume, vez por outra, me dar lombrigueiro,
também me levava à Dona Neném, beata Por aqueles tempos, Doutor Altamir,
caridosa e solteirona que sucedeu o cego já eleito vereador à custa de queimar mais
Ivonaldo no ofício da benzeção. Assim, por um pouco do resto da herança do pai, e uns
qualquer queixa mais séria de minha parte, e outros votos roubados aqui e acolá, fazia
sobre uma dor de barriga ou de cabeça, minha promessas de desenvolvimento rápido para
mãe procurava remédio na farmácia do Seu Maraçu, arrotando pelos quatro cantos que
Mendes e na volta me encostava para ser era dono de bom prestígio junto aos mais
benzido por Dona Neném. A voz era da velha importantes deputados do Estado e que
beata, mas quando ela começava a reza e já ouvira até confidências do governador,
cruzava aqueles ramos sobre minha cabeça, quando estivera no palácio para noite de festa
eu fechava os olhos e parecia que eu estava e porre dos figurões.
diante do cego Ivonaldo das histórias do meu
"De onde viria tal desenvolvimento para
avô. Eu ficava temeroso com uma possível
Maraçu?" - indagava meu pai, com o mesmo
profecia dela no final da benzeção, como fez o
cego Ivonaldo para a mulher do Coronel. espanto do meu avô, pois aquela região só
produzia aquilo que as demais tinham com
Fui crescendo por ali, no balanço da fartura: arroz, gado e umas variedades das
rede e sem perceber que meu avô envelhecia coisas da roça. Mas o vereador falava no tal
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

desenvolvimento em tom mais alto que o Eram estradas que eu não sabia ao certo
prefeito, como uma garantia dos tais amigos aonde chegariam e se chegariam, pois um
deputados que tinham projetos importantes espírito curioso e ao mesmo tempo indefeso
para o município de Maraçu. Só dependiam como o meu, não tinha porto de chegada,
do governador, que estava muito ocupado nem por conta própria, nem arrebatado por
naquela ocasião. Mas, assim que os projetos qualquer força do destino que o levasse. Meu
fossem aprovados, Maraçu iria ser outra pai, ao contrário, obstinado em ver o filho um
cidade, sob as bênçãos do progresso e do doutor, bacharel em qualquer ciência, não
dinheiro. Desse jeito ia o vereador com sua se rendeu às lágrimas de minha mãe pelos
prosa fácil e convencimento difícil. cantos da casa e caçou jeito de me despachar
Meu tamanho de rapazote vinha para Santana, cidade mais próspera, perto
chegando com os dias que eu acordava com da Capital, com boa escola e com gente da
a buzina da carroça do leiteiro. Eu pulava da confiança de meu avô, que me manteria sob
rede velha com a certeza de que, por certo, vigilância e cuidado.
jamais a deixaria e saía correndo para comprar Na mala, umas cinco ou seis mudas de
o pão para a mesa da manhã de todos. No café, roupa, sendo uma mais nova, num tergal de
os adultos trocavam umas conversas bobas primeira para dia de missa e almoço em casa
de sonhos acontecidos na noite e falavam de gente graúda, o resto era roupa de briga
do fazer daquele dia e eu preparava meus mesmo; uma Bíblia,uma medalha de São Bento
sonhos, indo meio a contragosto para a escola, e uma novena de Nossa Senhora do Perpétuo
deixando para trás as baforadas do cigarro do Socorro, que minha mãe colocou de alimento
meu avô. Enquanto isso, ele ajeitava as coisas para minha fé; um caderno, uns retratos da
para ir ao sítio, depois que uns pingos de café família, conselhos, ordens e lembranças,
manchavam a toalha branca da mesa, para a tudo bem dobradinha e arrumado no fundo
agonia de minha mãe, pois feriam o bordado da bagagem; eu não poderia esquecer nada.
de sua delicadeza, apontando para a boca Deveria me lembrar principalmente de
fumacenta do velho Cândido Cassiano. voltar, me lembrar que meu lugar era ali, em
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Maraçu. Quando entrei na jardineira, deixei as rios deixavam sob mistério. Mas com mistério
lágrimas de minha mãe, o abraço de meu pai ou sem mistério, as pontes eram desvendadas
e dois irmãos mais novos. Minha irmã não foi metro por metro.
se despedir de mim porque estava adoentada Asoitohorasdeviagemsetransformaram
e, olhando no meu rosto como o escultor olha em doze e eu cheguei a Santana já na beira
para a obra em seu ofício, meu avô gravou em da noite de uma segunda-feira tristonha, sem
meus ouvidos esta última recomendação: "Vá pôr do sol. Santana era, naquele momento, um
buscar a sabedoria lá fora, mas foi aqui que amontoado de casas e prédios de dois andares
Deus te plantou". que me ofuscavam como tamanho de cidade
Na previsão de oito horas de viagem de que eu ainda não me dera conta, pois, com
Maraçu até Santana, caiu chuva de despedida as cinco ruas de Maraçu na lembrança, meu
por todo o caminho. A Jardineira atolava em referencial urbano era outro, bem distante
pé-de-serra e por vezes descia desembestada daquele que agora me recebia.
por ladeira vestida de lama, atravessando Remediei a fome e a vontade da natureza,
ponte de dois paus, somente por adivinhação
nuns minutos que passei entre a sala de jantar
do motorista, no rumo de quem já é parente
e um banheiro de uma pensão vizinha ao
da estrada, há anos vendo os rios mais altos
ponto de parada das jardineiras. Aliás, não era
que a terra em tempos de pasto verde. Eu
uma pensão, era a Pensão Uruguaiana que,
pensava que a Jardineira ia na rodada das
águas toda vez que a gente chegava perto depois, tomei conhecimento que pertencia
de um rio. O motorista dava uma parada, a um casal de sulistas, senhor Joel Barini e
mandava o pessoal tirar as botinas e levantar Dona Maria Inês, gente de quem me tornei
a bainha das calças e ele, na cautela, jogava a amigo. Já de barriga cheia e a cabeça também
jardineira rio adentro, com água pelo motor abarrotada de dúvidas, fiquei escorado numa
e a danada era valente e boa de nado. De lado aroeira no alpendre da pensão, com a mala
a outro não errava nem um palmo das pontes aos pés e um pedaço de papel amassado nas
estreitas de madeira, que por dias e dias os mãos. Aquele endereço era, para mim, como
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

um mapa de piratas de séculos passados, que atirandopelosdedos.Vejaslá a Itáliade meus


ninguém podia dizer ao certo onde fica lugar pais,o queganhoucoma guerra,só misériae
algum. Eu olhava para o papel, o papel olhava fome.Procuresestudar,sim,e essasaventurasde
para mim e eu para a cidade, querendo que exército,
deixacomaquelesimbecisdogoverno,
os rumos aparecessem na escuridão da noite queinventamessaspolíticas,mas elesmesmos
que chegava: Seu Joel, percebendo minha nãosemetemna horadotiroteio. Masme digas,
timidez matuta de quem via aquelas luzes quepapelé esse,procurasalgumendereço?
pela primeira vez, se aproximou quebrando Timidamente desamassei o papel com o
minha distração com seu sotaque dos pampas: endereço que meu pai havia escrito e entreguei
- Perdidotchê?Deondetu chegas? na mão daquele pacifista que já ganhava minha
simpatia. Ele leu em voz alta:
Falando baixo e olhando de lado fui
respondendo: - "Dr.PauloSerrano,RuaOsvaldoAlencar,
NúmeroNove".VejaMariaInês,-foi o homem
- DeMaraçu,sim senhor. chamandoa atençãoda esposa,que estava
-Já ouvi falar deste lugar,fica lá pelas numa cadeirade balançoali na varanda- o
bandasdo meionortedo Estado,não é? gurivai paraa casado compadrePaulo.
- É sim, senhor. - O senhorconheceele?

- Masquefazes aqui,guri? - Sim. Vocênão conhece?


- Vim estudare tenho que me alistarno - Não,senhor.
Exércitono anoque vem. - Pois ele é advogadode boa fama por
- No estudosim, tu te levantas,mas no aqui, fui cliente dele numas pendências
exércitoqualquerum se afunda,ainda que bestasde impostoscom a prefeitura,depois
peguepatente,mas para mim, quantomaior ficamosamigose acabeiporser padrinhode
a patente,maiora desmoralização,porquese seufilho caçula.Espereum poucoque te levo
armafossecoisade gente,todomundonascia paraa casadele.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Parece que a noite não impediu que os seu] oel à frente, falante, cumprimentava
rumos fossem chegando e já não me sentia todo mundo:
mais tão perdido quanto no momento em que -Boas,compadrePaulo!
desci da jardineira. Seu Joel pegou o chapéu e -Boanoite,compadre!
disse para a mulher:
-Boanoite,comadre!
- Volto logo,vou só deixar esse gurí na -Boanoite, compadreBarini,a comadre
casado compadre. comovai? !

Sem esperar muitas voltas nos ponteiros -Bem,sim, senhora!Boanoite,Seu Neco!


dos minutos, o jipe que me conduziu parou -Boanoite!
na frente de uma casa de ar tranquilo, com -Boanoiteprasmocinhastambém!
crianças brincando à porta. Do portão vi que
Viumas quatro meninas de vestidosrodados,
na sala alguns adultos se sentavam próximo ao
umas de tranças, outras de fitas, balançarem as
rádio. As novelas faziam as pessoas viajarem cabeçase deixarem o sorriso colorir o ambiente.
no imaginário das cenas, dos sons, dos gritos, SeuJoel foi entrando, vinham os apertos de mão
gemidos e lágrimas dos atores e o fundo e eu ali, parado atrás dele. Por cima da minha
musical formava uma moldura para o brilho cabeça, o batente; e eu, mergulhado na timidez,
das ideias. Um pecado, um crime mesmo, mais sério que macaco na garupa, segurava aquela
alguém, um estranho adentrar um lar na hora mala de poucas providências.
da novela. Se fosse caso de pouca importância, - E o rapazchegante,se assentetambém!-
era uma verdadeira visita-desastre. dissede lá Seu Neco,que depoisvim a saber,
Logo percebi que Seu Joel era pessoa era o sogrodo meu anfitrião.
muito bem querida na família, pois mesmo - Minha demora é pouca, compadre
com o atrapalho da novela, todos o receberam Paulo- falouSeuJoel- só vim lhe trazeresse
muito bem, deixando de lado aquela caixinha frangoteque chegoupor lá na pensão,vindo
de válvulas que hipnotizava as multidões. de Maraçu,com recomendaçãopro senhor.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- Então,rapaz? A conversa se prolongava. SeuJoel ouvia as


histórias que o Doutor Paulo contava sobre meu
Essa afirmação indagativa quase me
avô, as graças e desgracenças de pai garimpeiro.
fazia sumir no estofado macio daquele sofá o café foi inevitável. Aliás,foram três rodadas e,
e, meio sem levantar a cabeça, respondia ao na última,já estavam todos ao redor da mesa da
Doutor Paulo: cozinha comendo uns biscoitos de queijo, ainda
- Sou neto do Vô CândidoCassiano,que quentes, do forno a lenha.
lhe mandouessacarta. Lá pelas tantas Seu Joel foi embora e
Tirei do bolso o envelope dobrado, de fiquei, eu e a mala, na casa daquela gente que
bordas coloridas de verde e amarelo, dos eu começava a conhecer. Me deram um quarto
tempos de um correio mais patriótico, e o mais pregado na cozinha; uma cama de colchão
Doutor Paulo, em tom de solenidade, começou macio, uma coberta verde e uma advertência:
a ler a folha amassada num silêncio sem fim. - Tratedese cobrir,issoaquinãoé o norte,
Eu aguardava o fim da leitura tal qual réu nãoé Maraçu,o frio aquifaz até o ossodoer.
espera a sentença de juiz.
Naquela noite demorei a dormir. Escutei
- Olhemoleque,tenho conhecimentocom todos os sons. Todos estranhos à minha casa.
seu avô pra mais de trinta anos e se você Som do riso das moças que se recolhiam; a
tiver herdadodez por cento da pessoadele, voz de Dona Carolina perguntando ao marido
é o suficientepara se tomar um homem de se a porta estava trancada; som dos cachorros
bem. Seu avô salvoumeu pai duas vezes no em latido de rua pouco iluminada; som de
garimpo.Umada maláriae a outrada morte grilo de quintal. Até o som do colchão, ao me
certaque vinha das mãosde doispistoleiros virar na cama, me trouxe no juízo o barulho
que queriamroubaras pedrasque meu pai da rede velha e da risada do meu avô quando
tinha achado.Aqui na minha casavocê não me embalava. Naquela noite, com o breu do
é visita, é da fam11ia.Vai ter casa,comidae quarto e o frio que já ameaçava com o assovio
roupalavadaaté acabaros estudos. do vento pela brecha da janela, deixei umas

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

lágrimas, com o som da saudade, marcarem o - Venha para o café, bote as vergonhas
travesseiro que já me trazia o primeiro sono, de ladoporqueaqui em casaninguémadula
o primeiro sonho dos sonhos fora da rede ... ninguém,fique à vontade.
Acordei cedo, temendo fazer feio. Onde Meio que torto de encabulado, ainda
já se viu homem sério e trabalhador alisar bicho do mato, sem muitos modos me sentei
cama até beirada do almoço? Dormir mais, só quase na beirada da cadeira, um pouco
se fosse motivo de doença. Esse foi o exemplo, afastado da mesa. Ali, na maior parte do
a educação de lá de casa. tempo de cabeça baixa, tomei' uma xícara de
Abri a porta do quarto e, aproveitando que café que a Diná me serviu e comi dois pedaços
não passava ninguém pela cozinha, corri para o de pamonha frita. Doutor Paulo tomava
banheiro num constrangimento só. A escova de vagarosamente o café numa caneca de metal
dente no bolso, uma toalha no ombro e a bexiga esmaltada e lia um jornaleco de poucas folhas.
cheia. Urinando ali, me vinha na ideia aquelas Dona Carolina ligou o rádio e Tonico e
mijadinhas sertanejas nas noites perto de casa, Tinoco encheram a cozinha com os ponteias
no meio do bananal. Laveio rosto, dei um jeito no da viola. Eu ali, quieto, calado, desassuntado
cabelo e fiquei sentado na cama com a porta do
de tudo.
quarto meio aberta. Espiava a quietude da casa
como um cachorro esperando ordem. Compouco Doutor Paulo colocou o Jornal sobre a
chegou Dona Carolina, já colocando panelas no cadeira e começou a dar as ordens:
fogão e uma mocinha, negra tal jabuticaba, se - Diná,vai acordaras meninas, mande
abeirou por ali também. Vim a saber depois, que que elasjá se arrumempara ir ao dentista
era a Diná, empregada, filha de outra que,já pela daquia pouco.Carolina,dê uma ajeitadano
idade, andava mais doente do que sã. meu paletóazul e na gravatapreta e avisa
Com o cheiro do café, Doutor Paulo se o Cabraldo açouguepara mandaruma boa
sentou à mesa e de lá mesmo me olhou no costela lá pro compadreJoel; ele gosta de
quarto e falou em voz alta: assarum bompedaçono espetoe vai gostar
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

doagradoparacombinarcomo chimarrão.E Depois das formalidades, o frade me


você,seu moço,vou lhe deixarna secretaria dispensou, dando uma lista de cadernos e
da escola.Pegue seus documentospara a livros e um tal fardamento para providenciar.
matrícula. Vai estudar no colégio Santo As aulas começariam em dez dias. Esses
Antônio,o melhordessasbandas. dez dias custaram tempo; dava onze e não
Saímostodos juntos no velho Ford.As moci- dava dez, pois, sem nada para fazer, após
nhas no banco de trás do automóvel e eu ali providenciar os tais cadernos e fardamento,
na frente com o Doutor Paulo. No trajeto ele achei por demais entediante ficar o dia inteiro
ia me mostrando a ruas, praças, comércio. naquela casa sem ocupação qualquer. Já com
O Colégio não era distante. Paramos. Do carro
só eu e ele descemos. Na secretaria ele me reco- a língua mais solta, me prontifiquei para
dar comida aos cães, às galinhas e molhar
mendou ao diretor, um frade velho de fala
a pequena horta do fundo do quintal. Mas
estrangeira, mas de certa simpatia. Fiquei ali
e ele seguiu com as filhas. Antes, porém, me nem isso me preenchia o tempo. Daí, tomei
o caminho da porta e andei Santana rua por
orientou como voltar para casa. Eu, que já
praça, praça por beco, beco por calçada;
havia andado por tudo quanto há de mato,
serra e invernada, não ia me perder dentro de cheguei a voltar à pensão de Seu Joel por
umas vezes e lá conversamos um pouco. Falei
cidade; no mais, eu tinha vergonha, mas tinha
de matrícula, dos cães e de galinhas. Minhas
boca também para perguntar.
novidades eram de pouco tamanho.
O Frade me pediu os papéis e ficou ali um
Sempre de cuia por perto, puxando o
tempo lendo tudo e conferindo. Viu minhas
tal chimarrão, Seu Joel fez outros elogios à
notas da escola de Maraçu e me advertiu
família do Doutor Paulo e ao próprio e não
sobre o rigor do Colégio Santo Antônio. Eu não
tinha notas altas, mas não estava na rabeira poupou boa falação do Colégio Santo Antônio.
do vexame; fiz o que pude até ali, como aluno - Estudamenino,aproveitaque o colégio
de escola de interior e casa de pouca gente é de primeira.Sabestu que de lájá se tem
estudada. muito homem graúdo por aí! Tem doutor,
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PedroSérqiodosSantos Maraçunão tem remorso

médico,advogado,delegadoe até político. sul e levantou por lá o negócio do charque,


Esseseu não colocomão no fogo por eles, levando um mundaréu de negros escravos
mas mesmo assim, inteligentes, muitos para onde só tinha brancos e índios.
estudaramno SantoAntônio. O negócio do charque cresceu e, já no
Eu guardava todos os conselhos e ouvia Império, o olho gordo do governo bateu de
atentamente a sabedoria do velho gaúcho em cima com a cobrança de imposto, cada dia uma
tom respeitoso de aceitação e da amizade que cobrança mais alta; e não deu outra, a turma
ia nascendo. se revoltou e começou uma verdadeira guerra.
- Por falar em político,esses bostas de Me contou Seu Joel, entre uma bicada
hoje em dia não valem nada. Se um eleitor e outra na cuia do chimarrão, que um tal de
qualquerpuxar um facão pra um safado Bento Gonçalves liderou essa guerra, que ele
desses,aposto que o engravatadose cag_a disse chamar Revolução Farroupilha. Os olhos
todo.Homemde políticaboamesmotinha lá dele brilhavam quando descrevia cada tiro,
noSul,nostemposdaRevoluçãoFarroupilha.
cada tombo, cada batalha. Era o povo do Sul
O gaúcho me contava as histórias de uma querendo fazer por lá um outro país. A turma
tal guerra dos farrapos, de como sua gente lutou estava mesmo revoltada com o Governo do
bravamente lá no Sul,que seu avô chegou a pegar Imperador.
nas armas e sentar praça nas tropas da fronteira.
Eu arregalava os olhos e os ouvidos e minha - Guri,nem te conto.Eratiropratodolado,
imaginação viajava naquelas batalhas que ele na estradaque beiravao rio na estânciado
relatava, como se o próprio tivesse lá disparado meu avô.Foisordadodo Imperadorcorrendo
seus tiros e arrancando espada de bainha. e morrendoum tanto, que por três meses
urubuficou de barrigacheia.
Com Seu Joel tomei conhecimento dos
interesses de Chimangos e Maragatos. Me Com aquela cena macabra, meu olho
contou ele que um tal de José Pinto, lá pelos arregalava mais e desconfiei da hora de
tempos da colônia, saiu do Ceará e foi para o arredar o pé dali.

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- Os homenseram bons de brigamesmo das aulas. Olhava mais do que falava, espiando
né? Mas Seu Joel,passei mesmo para uma a camaradagem dos já conhecidos e na
visita rápida, volto depois e o senhor me esperança de que, quem sabe um dia, também
contaquefim teve essadesgraceiratoda. tivéssemos amigos.
- As ordem, gurí, vem por aqui que te Vi de pronto que professor nenhum
contotudo, tudinho. amaciava o taco e as aulas corriam num
batidão só. A lei era só uma, ou estuda ou
Enquanto SeuJoel pegava o tal chimarrão
estuda. Teve um tal de Professor Ruben, de
outra vez, eu pegava a porta da rua e saía
física, que já foi avisando:
com aquelas cenas da tal guerra farroupilha
pensando que coisa daquela era só mesmo - Aí moçada,para cadahorade aula que
possível lá pelas bandas do sul, em tempos eu dou em sala vocês devem estudar pelo
de reinados e impérios. Aqui pelas bandas do menosquatroem casa...
cerradão as coisas pareciam mais tranquilas. Na mesma toada vieram os professores de
As aulas começaram. Com elas, as novi- latim, de geografia, de matemática e assim por
dades da escola, dos professores, das matérias diante. Percebi logo que da minha escolinha de
e dos colegas. Uns, com uma camaradagem já Maraçupouca coisa eu havia de aproveitar, acho
antiga, formavam seus grupos nas brincadeiras que só ia sobrar mesmo o diploma do ginásio.
e nos estudos; já tinham anos de convívio no Uma das primeiras boas lições de vida
mesmo colégio e no conhecimento das famílias. que tive na nova escola foi a de que a amizade
Outros, mais quietos que nem eu mesmo, eram pode nascer da necessidade. Com um mês e
vindos de outras escolas e de outras cidades. meio de aula eu já conseguia decorar bem
Tinha uns três que eram de outro Estado, um as declinações do latim e vi que a gramática
das Minas Gerais e dois da Bahia. não me daria problemas. Os colegas de sala,
A gente, que era chegante, ficava por ali, novos e antigos da escola, ficaram surpresos
encostado nas paredes na hora dos intervalos com meu desempenho na prova oral. Diante

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

do professor, de pé, o nervosismo não me E lá ia mais um para a sabatina que,


traiu, enquanto todos olhavam a possível na maioria das vezes, nos levava para uma
desgraça alheia, aguardando cada um sua vez. gagueira e um suor frio que não tinha mais
O professor em tom solene ordenou: fim. Fora isso, era o vexame de ouvir uma
descompostura diante de toda a classe.
- Vamósà declinação. Todavia, no mar do latim minha navegação
- Sím, Senhor: não pode se queixar desses males. Mas não
me faço de rogado, não. Porém, sempre pedia
Nominativo:agrícola; a Deus nas minhas orações nç,turnas que se
Genitivo:agrícolae; acabasse a matemática no mundo.
Dativo:agrícolae; Dona Violeta, a professora, tinha o péssimo
Acusativo:agrícolam; hábito de mandar alunos ao quadro para resolver
Ablativo:agrícola; as tais equações, que na minha cabeça eram
Vocativo:agrícola. sempre insolúveis, um mistério sem necessidade,
ou melhor, aquilo tudo tinha serventia sim,
-Muito bem,vamosaoplural: pensava eu, aquilo servia para o cristão expiar
- Sim,senhor: os pecados. Cada ida minha ao quadro era uma
vergonha desonrosa. Ainda bem que meu pai
Nominativo:agrícolae; e meu avô estavam longe, tomando o café de
Genitivo:agrícolarum; minha mãe e mal sabiam do meu descrédito
Dativo:agrícolís; público com o saber de Pitágoras.
Acusativo:agrícolas; Dia de sexta-feira já ficava eu na sala
Ablativo:agrícolís. de aula com a cabeça na folga do sábado.
Vocativo:agrícolae Pelas bandas da tarde, entrando para a noite,
eu ia à praça de Santana na companhia da
- Ótimo,vejo que o senhor estuda,pode camaradagem da escola. Eram praticamente
voltaraoseu lugar. os mesmos, os novatos, bichos do mato,
rejeitados e esquisitos: eu, Juca do Norte,
- Sim, senhor. Raimundinho, André, Romilson Orelha e o
- Venhaagora,LuzívandroPeixoto! Tonho Baiano. Às vezes o Banha ia também. Os

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

apelidos iam nascendo na turma e cada um que disparava e as amigas da donzela a faziam
se acostumasse com o seu. O Cebola, no início, corar e todos indagavam, quem seria o tal
não gostou do apelido, mas ninguém aguentava apaixonado das madrugadas. Um mistério
o bafo de onça que ele orgulhosamente mantido a sete chaves pelo locutor e seu
ostentava, e se mostrava para a turma como secretário, que cobravam três contos por cada
o arroto mais alto da escola após ingerir uma música oferecida; evidentemente, o segredo
tubaína inteira. era a alma do negócio e neles o cliente podia
confiar, como se faziam com os segredos
Uns e outros brinquedos de parque de pecaminosos despejados no confessionário.
diversão faziam a distração de novos e velhos Pela praça, na camaradagem dos amigos,
que perambulavam pela Praça Santana entre eu gastava as horas nos dias de folga, sem me
vendedores de pipoca, balões de gás, geladinho esquecer nos finais de semana que domingo
e amendoim. Mas destaque mesmo tinha aquele é dia de missa e, nas orações confiadas ae
arremedo de rádio.Três alto-falantesnaalturados minha mãe, eu fazia crédito à sua pessoa e
postes em pontos estratégicos da praça pegavam não perdia um sermão dominical.
carona na voz empastada do locutor que, mesmo Aos poucos não só a casa de Doutor Paulo
esbarrando vez por outra na gramática, fazia os foi me parecendo familiar, mas a própria cidade
jovens corações bateram mais forte: já era minha também. Voltava a Maraçu nas
férias e logo já estava a pensar na volta para
- Os senhorese as senhorasacaboude ouvir, Santana, para os livros, a escola, os amigos.
comNelsonGonçalves, a Normalista.
Agoraé dezoito À custa do Latim, consegui até uma certa
horase dezminutose a próximacanção,interpretada amizade com os colegas nativos de Santana,
porÂngelaMaria,vaiparaajovemqueestádevestido que me ensinavam matemática nas horas da
verdee laçobranconocabeloe quemofereceé aquele minha agonia numérica em troca de aula na
quese intitulaoApaixonadodasMadrugadas. língua de Pilatos. Essa minha facilidade no
latim chegou ao conhecimento do Doutor
Enquanto Ângela Maria encantava a Paulo quando, ao se encontrar com o frade
todos com o sucesso do momento, pelas diretor da escola na porta dos correios, ouviu
calçadas da praça um jovem coração feminino logo um elogio sobre a minha pessoa:

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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

- O Rapazotede Maraçu.vai indo bem -Sobremim?


doutor,é notávelseu desempenhono Latim, - É, o frade,diretorda escola,me dissedo
quemsabevai ser um clérigo... sucessoque vocêfaz como Latim,línguaque
- Ou bacharel, Seu Frade, Latim é vocêjá domina.
imprescindíveltambémparaum advogado. - Elefoi generoso,só faço o meu deverde
Enquanto riam ao falar da minha estudar.
possível e futura vocação, o frade completou: - É, mas parece que ,os números e a
- MClSo frangote nao é muito dado aos matemáticanãonasceramparavocê.
números. Percebendo que o frade já havia dado
- Paciência,ninguémé perfeitoSeuFrade. todas as informações sobre meus resultados
acadêmicos, não fugi da conversa:
Assim, naquele dia, quando cheguei em
casa, Diná me avisou: - Eu é que não nascipara a matemática.
Eu me esforçoe estudomuito,mas não...
-DoutorPaulo quer falar com você; ele
esta lá nosfundos. - Nãovenhasejustificar,nãoprecisa,não
sou seu pai, não estou lhe vigiandoas notas.
Entardecendo na varanda, Doutor Paulo
No mais, eu também era péssimo com as
lia o jornal do dia na espera do jantar e, sem contas,quandofiz o científico;todavia,meus
querer perturbá-lo, mas acatando sua ordem,
parabénspeloLatim!
me apresentei às falas:
Assim, fiquei mais aliviado com a
- Sentaaí, menino. postura benevolente do meu anfitrião e logo
E me encostei à mureta, cruzando os ele cuidou de chegar no resultado do meu
braços, como num gesto defensivo, ainda que chamamento à varanda.
desnecessário. - - Escuta,você gostariade trabalharum
- OuviboC1S
notíciassobrevocê. poucocomigono escritório?
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PedroSérgiodosSantos Maraçµ.não tem remorso

- MasDoutor, não sei nada de advocacia, dois. Eu preciso de ajuda e você aprende
deleis,nãoseicomopoderiaseressetrabalho. mais algumacoisana vida e no fim do mês
aindavai ter uns trocadosno bolso.
- Nada que seja tão difícil e não quero
atrapalhar seus estudos. Primeiro, eu - Façoquestãode dinheironão,senhor.
gostariade te mandar fazer um curso de - Oqueé issorapaz?Valorizeseu trabalho,
datilografiae depois você viria trabalhar todo homem é digno de seu salário.Depois,
comigoumas duas ou três vezespor semana não éjusto ficar aí tal qual,boi de canga,só
e poucas horas do dia, o suficiente para puxando carga pesada e ganhandoferrão
passar a limpo minhas peçasforenses e ao nosquartos.
mesmotempopor em práticaseu latim.
- Sim,senhor,entãoo senhordá as ordens
Eu, na posição de hóspede, no favor de quem e diz quandocomeço.
me recebia em sua casa, não me sentia muito Conforme o combinado eu ia ao escritório
à vontade par dizer um não. Ainda que ao me às segundas, quartas e sextas-feiras, a partir
receber em sua casa ele estivesse a pagar favores
das três da tarde. Nos primeiros três meses fiz
a meu avô, eu não via aquela situação como uma pouca coisa, pois era ainda iniciante no curso
simples imposição da gratidão, gostava dele e da
de datilografia, frequentando aulas no fim da
família. No mais, ter a oportunidade de trabalhar
tarde, me familiarizando com a velha Olivetti
num escritório de advocacia seria algo desafiador. verde de ferro e teclas pretas. Era uma ordem
Aprender datilografia, as leis e o trato forense com
alfabética completamente diferente daquela da
aquela gente formal e engravatada, poderia ser
minha cartilha escolar; não sei como meus dedos
interessante: aprenderam a dançar naquela desordem. Porém,
- Aceito sim, senhor, o que o senhor com menos de três meses eu já datilografava
mandareu faço. ofícios, petições e defesas no escritório.
- Olherapaz,não é bem uma questãode A generosidade do Doutor Paulo me
mando, mas uma oportunidadepara nós contemplou não só com dinheirinho no final do

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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

mês, como também com o pagamento integral Aquele ano chegava ao final com a
do curso de datilografia. Senti que aos poucos minha glória no Latim, a boa convivência
se formava entre nós uma relação de confiança com a História e a derrota na Matemática.
e eu, que pouco entendia das leis, servia pelo fiquei de prova final e acabei sendo
menos para escutá-lo quando ele conversava aprovado com nota mínima; creio eu que
comigo sobre algum processo como se estivesse a esta nota se somou a benevolência da
conversando sozinho, colocando em voz alta professora, embora, até então, eu duvidasse
seus pensamentos. Eu escutava tudo, raramente da humanidade de qualqµer professor
fazia uma pergunta e em hipótese alguma de Matemática. Ser generoso e professor
comentava com qualquer pessoa os rumos das de Matemática eram, para mim, coisas
conversas e das folhas datilografadas; ele sabia totalmente inconciliáveis. Desta forma,
bem que podia contar com meu sigilo. a vida me ensinou, mais uma vez, que o
prejulgamento causa cegueira n' alma.
Naquela toada acabei por exercitar mais
ainda o Latim, mesmo que fosse o latim forense. Ao final daquele ano, minha sombra
Assim, os reflexos logo apareceram na escola, já era mais urbana. Os amigos e os temas
quando o professorme pediu para auxiliá-loapós as das conversas já me colocavam na rotina da
aulasna correção de exercíciose provas dos alunos pequena cidade, que aos meus olhos de caipira
das séries anteriores. Evidente que esta situação adolescente, era uma metrópole.
me garantiu aumento do status entre os colegas, Tinha algum dinheiro poupado para
me salvando inclusive dos constrangimentos levar de Santana uns presentinhos de natal
do futebol, pois, míope e jogando sem os óculos, para a família em Maraçu e, enquanto
meu desempenho deixava muito a desejar. Assim, batia pernas nas lojas centrais buscando o
a complacência dos camaradas me garantia um agrado de um e de outro, minha cabeça me
lugar, ainda que secundário, no time e a caridade colocava nas ruas poeirentas de Maraçu,
alheia me poupava das críticasseveras pelas falhas onde por ali ainda deveriam estar os
e erros no gramado. colegas da infância.
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PedroSérgiodosSantos

Fiquei surpreso com a viagem de férias


ª? voltar para a casa de meu pai. Máquinas
- Maraçunãotem remorso

Buraco aqui, buraco ali, lama e atoleiro,


logo vim ~ s_aber s~a graça: Leo~egil_do,
gigantescas derrubaram a mata. Era aroeira cabra que ja tmha feito de tudo. Boiadeiro,
tom_bando, pequizeiro, guatambu, jatobá, lavrador, garimpeiro, quebrador de pedra e
angico e pau-ferro, tudo derretido na sacristão. Confessou-se desiludido com a vida
poeira daquele vão que se abria mundo e que há tempos vinha fugindo da "Guerra
afora, descendo pras bandas da velha Porto do formoso". Fiquei logo espantando com o
Nacional. Era gente chegando e saindo de termo e quis saber mais sobre a tal guerra e o
t~do quanto é canto que tinha aquele norte: homem velho foi relatando:
Pi~m, Alvorada, Natividade, São Sebastião, - Ói,sinhô num sabe, Iá pras bandasde
Miracema. Era um vai e vem de trabalhadores Trombase Formosotinha muita terra sem
amarrotados, aleijados, cegos, bêbados, índios dono. Nóis cá cum a pricisão e nem um
e umas poucas mulheres. O ônibus fazia já tiquimde terrapra prantá,nem um pezinde
umas paradas diferentes daquelas da minha
arroiz.Umdia,eu vortavade uma desobriga
primeira viagem. Era gente muito estranha
que o padre tinha ido fazê numa currutela
que ali circulava, mas era gente sofrida.
por lá e meu cunhado Tião Belo veio me
Logo na segunda vez que o ônibus encontrána estradapra modeme faláde um
pa~ou para pingas, café e mijada de quem ajuntamentode gente que ia tê na quarta-
qmsesse, num boteco cercado de tratores e feirana vendade seu Ribinhae queo Porfírio
lama, um homem pardo, sol que lhe tostava vinha falá cum nóis.Intocenóisfumu tudo
a pele, chapéu velho de palha, saco cheio pela na hora combinadae o Porfíriotava lá. Ele
metade e nó pela boca, e barba de semana, pregouum paper grande na parede com o
sentou-se ao meu lado. Depois de um silêncio
desenhode Goiáse foi falandoaqui é o rio,
de quinze minutos de estrada esburacada me
aquié as terra,aquié o Formosoe nóisvendo
perguntou sobre meu destino e de imediato
tudo aquilo.Um tar de Gerardãoque tava
me disse que ia para as bandas do Maranhão
uma tal de Imperatriz. ' cum elefoi dandoa cadaquar um papelote,
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

maiserapocosque tinha leiturapra modelê estivesse. O ônibus já tinha feito mais duas
aquilo.Intonceo Porfíriopegouo papere leu paradas para as pingas e mijadas, mas não me
pra nóis;tava escritoque nóis tinha quefazê levantei para não perder a fala daquele homem.
umasocíaçãopramodenóisficáfortee tomar Enquanto ele contava tudo nos detalhes, eu
pra nóis as terra que num tinha dono;ia sê me recordava dos Chimangos e Maragatos
um pedacinhode chão medido iguarzinho da luta Farroupilha de Seu Joel. Eram guerras
pra cadapai de famia. Porfíriofoi simbora tão distantes uma da outra, que tinham até
e nóis tocô de cárculoque aquilo era bom, objetivos diferentes, mas acho que eram lutas
se as terra num tinha dono,o governonum de gente boa, lutas pela dignidade. O motorista
oiavapra nóis,nóispegavaa terra,prantava novamente acelerava aquele motor barulhento
e vivia dela cum nossosfio. Ele disse que e fazia o ônibus romper aqueles vales de poeira
vortavacum oito dias.Nóisfeiz mais umas e lama, enquanto meu parceiro de viagem me
três riuniãofaiandode quinze dias,mais na contava dos acontecidos:
úrtimajá tinhaporláum pulíçae umjagunço
e na vendadoseu Ribinhaosjagunçojá tava - Homeminino,nóis fiquemo tudo besta
falandoque as terratinha dono,que era dos de vê uma caminhoneta chegar na casa
fazendero.O Porfírioriuniu cum nóis outra dum tar Tião Pires e o Porfíríoali mandá
veiz e ispricôque era mintiradosjagunço e os home descarregásete caixa cheiinhade
dospulíça,queaquilotudoeraterrasemdono espingardae pra mais de dez caixa de bala
mesmoe queessesf azenderoeratudogrileiro e o tar Gerardão,que andava com ele,já
cum documentofarsa que foi compradoem separouprum canto aquelesmais bestaque
cartóriosafadoe quese nóisquisesseas terra, nem eu que num sabia atirá direitoejá foi
nóistinha que sê home,peitáosjagunço e os dando as inspricaçãopra mode nóis colocá
puliçae quepra issoeleagarantíaas arma. balanas espingardae fazê pontaria.No dia
marcado,nóisajuntemouns quarentahome
Leovegildo narrava os acontecidos e e coma caminhonetado Gerardãoe otrosde
eu mergulhava naqueles fatos como se lá eu cavaloe mula, nóis rumemopras terra que
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PedroSérgiodosSantos Maraçµnão tem remorso

a dispaiso Porfírioia separáos pedaçopara perna dele e a dispais vortava cum mais
cada qual fazê suas casa e prantação.Era gente,maisbalae maisarroizefejãoe salpra
bem cedo,iscuroainda,quando nóis saímo nóis ir passandoaquelesdias.Nóis apiemo,
da casado tar TiãoPires,a dispaisde duas metemoafoicenomato,amarremouma rede
légua,quandonóisjá lá ia cheganono rio, nospé de pau,fizemouns trêsfogopra mode
tinha assim uns pé de pau e uma saroba cunzinhá o dicomê e acendê um cigarro,
de mato meio arta e de lá nóis só viu uma vi uns quatrosaí pra caçá uma capivarae
balaiadade tiro que vinha pra nossabanda. otrossubindomaisarta uma meia léguapra
Oshomedecerode ribada caminhoneta,nóis começávê aspartede terraquenóisiapissuí.
apiemodos cavaloe cacemolugá de amoitá Fiquemoali naqueledia e maisotro.Quando
e truxemotambémas espingarda.Ali atirou já tava ficando escuro, sapo e vagalume
quemsabiae quem nãosabia,foi muito tiro, começandono trabáio,e nóis ali arriunido
foi muita bala.O Porfíriogritava mode nóis no pé do fogo isperandocuzinhá um arroiz
pegáaquelescachorrodaquelesjagunço e o e um café,aí é que nóis viu tiro mesmo.Da
Gerardãovinha choferandoa caminhoneta, primeravez as bala em vinha só dum lado,
tinha levadouma bala na perna mais tava mas naquelahoraeu via tiro de toda banda.
atirandopra valer.A dispaisde um tempoos Eu me pegueicom NossaSenhorae o Divino
tiro parô.Nóis viu uns seis cabra correndo Pai Eterno,inté fiz promessapra pagar em
e devagarinhonóis foi se chegando;lá na Trindadee me deitei pelos mato. Saí com
sarobatinha dois morto.O Gerardãomandô uma ispingarda por precisão mais num
cavá dois buracoperto do rio e sipurtemo atirei prumodeos cabranão me vê. Os que
ali os condenado.Porfírioseguiu cum nóis se acoitôligeiroescapô,os que foram lerdo
mais duas léguase meia e mandô nóis apiá; tombara na bala. Fui me arrastandofeito
decemoasmatula, machado,foice, enxada cobrano mato, até fica iscutandolá longe
e ele mandô nóis ir se arranchandopor ali bemfracoum tiro aqui e acolá,me releitodo
mesmo. Ele ia vortá pra currutela com o nosispinhoe dispaisvi um fio de seu Ribinha
Gerardãopra mode arrumá remédio pra que escapôtambém.Nóisandemopelamata
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

até chegánum descampadoquejá beirava rumo de novo. Naquelanoite que passemo


uma léguae meia duma currutelapor nome lá na curruteladospreto,nóisouviu aquelas
de São João Queimado,que vivia ali uns cantoriadelesde coisaantigaquepareceinté
pretosdesdeos tempodosinscravo.Erauma que era do tempo dos inscravo.O fio de seu
gente queta, sem furdunço e as puliça e o Ribinha,a dispaisdequatrolégua,pegouotro
governonão amolavaeles.Lá um negopor caminhoe eu segui até Alvoradinha.Fiquei
nomedeJosuéamoitônóisuns trêsdias.Nóis por lá uns doismeisna casade um cumpade
ficô amoitadonum buraco nas pedra que meu queme deupousoe eu,puxavauns mato
ficava por detrás dum curral adondetinha pra ele na roça de arroiz.A dispaisde três
munta cana pratanda.Berandodepoisque semanaque eu tava em Alvoradinha,fui na
amanheceue nóisjá tava amoitado,começô vendacomprásale um litrodequerozenee vi
passáali um puliçae perguntandoprosnego doiscabracontandopro venderaque lápras
se elesviu os cabrado tiroteio,dizendoque bandasdo rio Formosoo tar Porfíriotomô
nóiseragentepirigosaquenóiseracomuniz, sabençado tiroteioe vortôlácommaishome
que nóisqueriatomar terrados outro.O tar e dessaveiz tinha trocadotiro com os puliça
Josué se fazia de besta e não dava notiça e osjagunço e pois elespra correrde novo,
nossa,os sordadosaía e ele mandava levá masjá tinha dado na rádio que o governo
água e comidapra nóis.Ossordadovortaro ia mandá uns sordadomais reforçadoe que
aindaduas veiz. A dispaisque num vortava o Porfírioagoraera comuniz.Saí da venda
mais,Josuéfoi lá no buracodas pedra e me calado,do jeito que entrei,vorteipra casa
perguntáse nóis era com o Muniz, entonce do cumpadecom as encomendae arrumei
eu arrispondique nóisnãoera com o Muniz, minhasmiudezanessesacoefui tiráuns dias
que nóis nem conheciao tar de Muniz, nóis mais na Santa Rita na casade uma tia véia
era com Porfírioe ele dissequejá conhecia que tenholá.Agradicimeu cumpadee saí na
o Porfírioe que era um home bom. Nóis amoitadada noite inté na estradaque tão
agradeceuoJosuée os otrospreto e quando fazendo aí pra Beléme pegueiuma garupa
clareou o dia outra veiz nóis peguemo o aí nessescaminhãode óleoque tão descendo
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PedroSérgiodos Santos

e subindotrecho,fui fondo inté Santa Rita,


lá tirei uns tempo na casadessa minha tia,
inté que chegôum sobrinhoe me contô que
meu fio se casôlá pra bandade Imperatrize
agoraa muié dele tájá parindoe que elejá
tem um chãozinhopor lá, intonce arrisorvi
vê meufio e meu netoque vai nascêe tô indo
pra lá,e ocêvai mesmopra onde?
Na minha rotina de vida de estudante
rotina pobre de rapaz que ainda se deslumbrava
' Capítulo n
com a cidadezinha maior que aquela onde
nasci, respondi sem muitos rodeios àquele
Duros tempos, leves sonhos
quase herói, daquilo que depois vim a saber,
era a tal Reforma Agrária:
- Vouparaa casade meu pai em Maraçu,
vouficarum mês e poucopor lá,depoisvolto
paraSantanaparacontinuaros estudos. "E dono de gado e gente,
Porque gado a gente marca
O homem disse já ter passado por
Tange, ferra, engorda e mata
Maraçu, na procura por alguma terra para
Mas com gente é diferente ..."
possuir, mas que naquela localidade não dava
para viver, pois todas as terras já tinham (DISPARADA- GERALDOVANDRÉ)
dono, e pobre ali só pisava a trabalho.

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o longe minha velha Maraçu vinha

A tomando forma de quem vem se


chegando. O ônibus descia a serra e o
longe da cidadezinha ia se tornando perto. No
meio da poeira, eu ia vendo as ruas que deixei
para trás e que agora a comparação com
Santana era inevitável. Para mim, Santana
era mesmo uma metrópole, se comparada a
Maraçu que, com suas poucas ruas, era um
vilarejo de conhecimento fácil e famílias
poucas.
Maraçu não tinha uma rodoviária; o
ônibus parava em frente ao "BardoAssombro".
Embora seu dono, Chico Timeleiro, tivesse
colocado outro nome na placa, quando

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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

Toinzinho Teixeira morreu e ele comprou carregar. Foi um resto de tarde de alegria e
o comércio de sua viúva, o estabelecimento muitas perguntas sobre a nova escola, a casa
ficou mesmo conhecido como "Bar do e a família do Doutor Paulo, sobre os novos
Assombro",uma vez que a casa que o abrigava amigos e o trabalho de auxiliar no escritório.
havia mais de trinta anos tinha mesmo fama Percebi um certo orgulho deles em ver meus
de local para visagem de almas. Uns falavam tímidos progressos na cidade grande.
em mortos de famílias que ali moraram,
À noite não ficamos a s-ós em família.
outros falavam ainda de assombrações dos
Velhos amigos, vizinhos e parentes vinham à
índios Avá-Canoeiro, cujos pedaços eram
nossa casa para me fazer as mesmas perguntas
jogados ali, na porta do bar, nos tempos em
que o Coronel]ales fazia suas matanças. já respondidas. Era muita conversa, muito
café com bolacha que minha mãe servia às
Não entendo bem desse negócio de visitas; e eu logo me aproximei do meu avô,
assombração, não sei se é caso de serviço para numa cadeira de encosto, para espreitar os
benzedura, culto de pastor crente, bênção de assuntos que tomavam outros rumos noite
padre ou de xangozeiro de umbanda. Só sei adentro.
que para mim, na minha chegada a Maraçu,
o Bar do Assombroera tão somente ponto de Naquela mesma noite fiquei sabendo
alegria, onde encontraria minha mãe sorrindo pelas bocas das visitas, particularmente do
na beira da calçada com um beijo e meu pai Juarez Jaú, que a cidade vivia um misto de
num abraço de confiança e saudade. O ônibus euforia e desconfiança com um tal de amianto
fez parada curta e seguiu viagem. Não vi mais que descobriram por lá.
Leovegildo; ele seguiu adiante e me deixou de Demês para outro a cidade recebeu gente
presente um pouco da luta daquele povo e das de todo canto. Eram uns tais engenheiros de
boas ideias e coragem de José Porfírio. São Paulo, de Minas Gerais, muito sujeito de
Tomei com meus pais o rumo de casa fala enrolada também chegou; não se sabe se
e a maleta pela mão, que não me deixaram eram americanos, alemães, mexicanos ou de

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

que buraco saíram. As roupas eram estranhas, se poderiam arrancar tais estacas, mesmo que
como aquelas que aparecem nos safáris ou em estivessem dentro da terra alheia.
filme de Tarzan. Vinha até gente graúda do Passei meus dias de férias a ouvir
governo junto com eles e sempre tinha um conversas de toda sorte pelas ruas de Maraçu.
jipe do exército com uns soldados para fazer Todos só falavam no tal amianto, sem saber
sombra. bem do que se tratava. Uns diziam ser uma
Eram homens que chegavam e partiam espécie de areia diferente, outros que era um
dias depois, após fazerem muitas perguntas e metal em pó que acharam nas terras por ali.
vasculharem todo o cartório para fuçarem nos Havia os que falavam que o tal amianto ia
documentos das fazendas e nas propriedades trazer riquezas para o município e tinha os
das roças. mais velhos que olhavam com desconfiança
EliasJaú disse a meu pai que a Ritinha do para toda aquela movimentação.
cartório não sabia mais o que fazer, de tanto De início, aqueles que queriam vender
pedido daquela gente estranha que tinha suas terras para os estrangeiros receberam
para atender. E nada podia negar, pois os tais o valor que pediram. Era alqueire de terra
homens do governo tinham ordens expressas vendido a peso de ouro. Os estrangeiros, gente
e escritas para receberem toda a colaboração esquisita, não pechinchavam pelas terras, nem
de civis, militares e eclesiásticos, para o bom faziam questão do gado, de cavalo, de carroça
desempenho de suas tarefas. ou de qualquer serventia que houvesse nas
Por aqueles dias ninguém sabia ao certo fazendas. O vendedor que tivesse uma roça de
que tarefas eram essas. Na mesma pressa milho, arroz ou qualquer que fosse, poderia
que chegavam ao cartório, corriam para as esperar para fazer a colheita.
fazendas com aparelhos de medição, trenas Os estrangeiros pouco falavam da nossa
e picaretas, com homens fincando estacas língua. Tinha sempre um sujeito do governo
brancas aqui e acolá e informando a todos junto com eles para facilitar a conversa e a
nas redondezas que, por ordem federal, não compra das terras.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Gente antiga, de muito tempo pelas bandas governo, com paga de preço menor e, para
de Maraçu,juntou o dinheiro das terras, trouxas não ficarem no prejuízo total, cuidaram logo
de roupas, panelas de cozinha e uns cachorros de comprar pedacinho de chão em outro canto
civis e se foram da cidade em caminhão cedido e providenciar um mandiocal, galinheiro
pelo governo, para comprarem propriedades e vaca leiteira para dar comida aos filhos.
em outros cantos e se arrancharem onde Deus Quem sempre arrotava de grande fazendeiro,
quisesse. Nas despedidas, sempre na frente do passou a grunhir baixinho em terra miúda.
BardoAssombro,a choradeira das comadres que
Enquanto isso, Maraçu via coisa que
ficavam se somava à choradeira das que partiam;
antes nunca se ouvia falar por aquelas bandas.
e os meninos pequenos, uns catarrentos e outros
Tratores e máquinas de toda raça invadiam a
buchudos, também choravam, só para ajudar,
cidade em direção às terras já desocupadas.
mesmo sem saber o porquê.
O comércio cresceu. Tinha gente abrindo
Tempos depois fiquei sabendo de gente pensão para todo lado, para dar pouso a uma
que procurou terras em Alvorada, Mambaí e peãozada que chegava de todo canto do país.
Taiobinha e por ali se assentaram depois de
Findadas as férias e estando já em
negociarem alguns alqueires e um bom gado.
Santana de volta aos estudos, por cartas
Soube também de gente que, com a fortuna
constantes da família e de amigos eu tinha
da dinheirama que recebeu pelas terras, foi
notícias certas do desenvolvimento de Maraçu
logo para a cidade grande, uns até para a
com o tal amianto. Diziam as cartas que o
Capital, compraram casa e, sem o costume do
dinheiro corria solto pelas ruas da cidade, que
trabalho da rua, foram comendo do dinheiro
agora também não eram poucas. O prefeito
que tinham, até cair na miséria com a família,
mandara abrir várias para construção de
numa indigência que colocariaJó a refletir.
residências, comércio e até uma "casa de
Aqueles que não quiseram aceitar recursos", com mulheres sem procedência
negócio de bom preço com os estrangeiros, que, atraídas pelo dinheiro fácil do amianto,
tiveram depois suas terras tomadas pelo também foram parar em Maraçu para dar
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

conforto aos homens do amianto em noites É bem verdade que em Maraçu qualquer
de cachaça e radiolas de ficha ou em dias de um abria comércio sem legalidade de prefeitura;
sol e feriados. eram tão poucos que se tornaram quase
um patrimônio do vilarejo. Mas com o tal
Senhoras de família, beatas e a Ritinha
amianto em bolsos e bocas, o comércio pegou
do cartório foram em comitiva reclamar ao
fogo e o prefeito viu aí uma boa oportunidade
prefeito do alvará expedido pela prefeitura
de arrecadar fundos. Fez tratativas com os
para o funcionamento da tal casa de recursos, vereadores que também colocaram cifrão
que ostentava placa colorida com o nome nos olhos e logo a cidade amanheceu com
"BoatedosEncantos".O prefeito, de cara limpa, leis para isso e aquilo e todas elas com taxas
preocupado só em agradar os graúdos do e tributos bem explícitos. Indagado pela
governo federal, que também estavam de olho tradicional comunidade maraçuense sobre o
na produção de amianto, foi curto e grosso com desassossego causado por tais leis, o prefeito
a comitiva: "As senhorassabem muito bem que sempre rebatia com o mesmo argumento: "A
qualquercidadedesenvolvidatem estabelecimentos prefeituracarecepôrordemnessecrescimentoe de
desta natureza e não se pode restringira livre recursospara atenderas necessidadesdo povo..."
iniciativadosnegócios;istoé a regrado capitalismo. e seguia de trololó emendando um discurso
E digo mais, no ritmo que cresceMaraçu,logoa como se estivesse em tempo de eleição.
BoatedosEncantosterá concorrentes, poissozinha Maraçu tocava seu desenvolvimento à
não consegueatendertoda a demanda,e ao invés custa do amianto e eu cá em Santana tocava
das senhorasestaremme perturbandocom coisa meus estudos. Como sempre, ia mal nas
pequena,deveriamestar em casa cuidandobem matemáticas e me virava muito bem no Latim
dos maridospara que eles também não passema e no mundo da História e da Geografia. Doutor
visitara boate.E passarbem".O prefeito saiu da Paulo dava como certa a minha carreira
prefeitura para outros compromissos com os jurídica. Rapidamente eu tomei conta da rotina
estrangeiros e deixou as bocas das senhoras forense. Conheciajuiz e cartório e pouco errava
com gosto de gás e bafo de faísca. na datilografia das peças processuais.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

A cada vez que eu voltava a Maraçu para viciado em erva dos índios guarani, povo do
férias semestrais, tinha a nítida impressão sul. Mas a tal erva era boa mesmo; gostava eu
de estar chegando em outra cidade. Não só de pegar o amargo depois de uma refeição,
pelo tamanho das ruas e construções, mas de prosa que se espichava em cadeira de
pela gente estranha que por ali passava ou varanda, quando eu contava também ao Seu
se alojava. As novidades deixaram de ser as Barini as mudanças que ocorriam em Maraçu.
minhas para ser as da cidade que crescia, com Na casa do Doutor Paulo me tornei
gente, problemas, pilantragens políticas de quase um filho; não me sentia mais acuado
toda sorte. como no início, mas também não me dava
Em Santana firmei amizades que se a certas folgas feito gato de armazém. Eu
tornaram um braço da minha família. Por era respeitador e sempre na prontidão para
vezes passava tardes e noites livres a conversar qualquer que fosse a serventia, comparecia ao
com Seu Barini enquanto ele enchia de água serviço até sem ser chamado e, na maioria das
quente sua cuia de chimarrão. Novas e velhas vezes, era dispensado.
histórias dos pampas me faziam viajar por Na escola peguei bom conhecimento
aquele mundo de chimangos e maragatos. com os frades e a camaradagem dos colegas
Por vezes cheguei a provar do mate quente era negócio certo nas provas difíceis, tanto
na cuia, oferecido gentilmente por Seu Barini. nas minhas, quanto nas deles.
De início, só aguentei o calor da água porque
estava acostumado ao café de minha mãe, Ao inteirar os dezessete anos, tive que
mas aquele caldo verde era de um amargo me alistar, dando como certo que no ano
sem destino. Confesso que algumas vezes seguinte estaria com a farda verde-oliva,
tomei por educação. Em outras, desconversei sentando praça no quartel do Tiro-de-Guerra.
em uma recusa e por fim comecei a gostar Na fila do alistamento, além de muitos
do diacho do mate; logo eu, um sujeito do colegas do colégio Santo Antônio, vi toda uma
cerrado, das matas do ipê e dos pequizeiros, matutagem de municípios vizinhos. Não sei

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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

onde ia ter quartel e fuzil para tanta botina, pelo Tiro-de-Guerra, embora ele mesmo
mas lei é lei, a gente tinha que se alistar e não gostasse muito de gente que tivesse
esperar que não acontecesse guerra que arma como instrumento de trabalho. Com
gastasse essa gente toda. 0 domínio que adquiri no mundo do latim
Naquele ano, no início de dezembro e frequentador da missa domingueira, fui
recebi meus pais na rodoviária de Santana. também convidado pelos frades do colégio a
Queriam ficar hospedados na pensão do seguir vida eclesiástica, com vaga certa em
Seu Barini, mas o Doutor Paulo em hipótese seminário nas Minas Gerais e, quem sabe,
alguma considerou esta situação. Fez poderia fazer estudos teológicos em Roma.
questão que ficassem em sua casa. Arrumou Eu ouvi tudo e busquei novamente uma
quarto, cama e mesa e os tratou na fineza de mudança, desta vez para a Capital, olhando de
gente importante. Dona Carolina pegou de perto as portas da Universidade e as provas
andança com minha mãe em lojas de tecidos do tal vestibular.
e aviamentos e o Doutor Paulo mostrava ao Meu pai me garantiu ainda algum
meu pai o bom comércio de Santana, e vez dinheiro para os estudos e levei uma carta
por outra soltava elogios a minha pessoa; meu de recomendação do Doutor Paulo para
pai retrucava sempre com os agradecimentos um desembargador que poderia me dar
pelo cuidado que ele dispensou a mim. um emprego no Tribunal. Nesta segunda
Assim, chegou o dia da minha formatura mudança eu já não chegava sozinho para
no científico. Teve missa e solenidade, Hino o desconhecido como desci do ônibus a
Nacional e diplomação. primeira vez em Santana. Vários camaradas
Meus pais, com orgulho do filho,já viam de escola também se abeiravam às portas da
na minha pessoa um bacharel de carreira universidade buscando carreira profissional.
promissora no fórum da cidade. O velho Joel Gostava eu das letras jurídicas, mas
Barini achava que eu tinha vocação para era mesmo apaixonado pela História e por
o oficialato militar e que poderia seguir fim acabei por iniciar uma licenciatura em
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Filosofia, coisa lá que eu não sabia ao certo o discurso de um tenente que, por hora e meia
que era, mas tinha o encanto da inteligência falou para uma tropa de duzentos e vinte
de grandes homens do passado e isto acirrava frangotes sobre a importância da pátria e o
minha curiosidade. perigo dos inimigos internos que rondavam a
Sabedor de minha opção, meu pai me nação. Ouvi falar de uns certos comunistas e
escreveu dizendo que de curiosidade ninguém subversivos e ao final cantei pela décima vez o
sobrevive, mas como eu era novo, ainda teria Hino Nacional e, com a mão direita estendida,
tempo para me arrepender e me voltar para o fiz o tal juramento, prometendo por tudo
Direito. Igualmente ouvi conselhos do Doutor que é mais sagrado que eu lutaria até morrer
Paulo quando lhe fiz uma visita, meses depois numa guerra, se preciso fosse, para salvar a
de ingressar na Faculdade. Ele, porém, foi mais pátria dos ditos inimigos.
ameno, falando-me que a tal Filosofia poderia Voltei aos estudos da Faculdade de
me ser útil futuramente quando adentrasse o Filosofiapassando a enfrentar textos e ideias
debate jurídico. dos gregos e romanos. O idealismo platônico
Com a matrícula efetivada e uma ficha e o realismo de Aristóteles me fascinavam
de frequência nas mãos, compareci ao Tiro- e cheguei a ler textos de Cícero e Platino
de-Guerra e fui dispensado do serviço militar, no original, graças ao Latim aprendido em
contrariando assim o oráculo do Seu Joel Santana. Alguns colegas do colégio também
Barini. Naquele dia fiquei em fila por longas se tornaram colegas de faculdade, fazendo
horas em sol de solidão. Fui examinado por outros cursos, e eu mergulhava agora em
médicos, como se cavalo fosse, em mãos novas ideias, com uma sombra de saudade
de veterinários. Marchei, tomei posição de de Santana, das ruas, da família do Doutor
sentido e descansar, em pé no cansaço do sol Paulo, das moças e namoricos domingueiros
ardente. Por fim, depois de ensaiar por nove na praça e das conversas com Seu Joel Barini.
vezes o Hino Nacional, começou a solenidade Deste eu ganhei na minha despedida uma
de Juramento à Bandeira Nacional e ouvi o cuia, com suporte, bomba e três pacotes de
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

erva-mate para prosseguir no saudável hábito - MuitoprazerSeu Gregório


...
do chimarrão. E me disse ele que, quando Estendi a mão àquele senhor que já beirava
a erva acabasse, era só lhe escrever que ele os setenta, com o indicativo dos cabelos brancos
mandaria mais. Afinal, Santana não era tão e marcas do tempo. Ele,de suspensóriose chapéu,
longe da Capital; nada que uma hora e meia já foi logo me interrogando:
de jardineira em estrada boa não pudesse
resolver. O correio e as encomendas de uma - Muito bem,meujovem, querdizerentão
cidade para outra andavam ligeiro e eu, de quevocêestudafilosofia?
bom grado, recebi o presente, e nas manhãs de - Sim senhor.
estudo ou nas tardes de domingo, esquentava
uma água e puxava um mate em homenagem - Coisabonitaa filosofia,não é?
ao velho amigo, regando as reflexões solitárias - É,sim, senhor.
de quem ainda tinha muita coisa a aprender.
- Tambémgostomuito de filosofia.Lá em
O curso de Filosofia por certo não faz de PortelândiadeMinas,de ondeeu vim,a gente
um qualquer, um sábio, mas por vezes tive que tem muitafilosofia,o povode lá temfilosofia.
enfrentar situações , no mínimo cômicas, por
causa da tal filosofia, que pouca gente sabe Confesso que não entendi muito a geo-
o que é, como ocorreu numa das visitas que grafia filosófica mineira a qual ele se referia,
fiz aos meus pais por ocasião do aniversário mas com um sorriso amarelo fiquei por ali,
de casamento, pois queriam reunir todos fingindo concordar com seus prolegômenos,
os filhos. Missa celebrada, e churrasco em quando ele finalmente disparou:
andamento, meu pai me apresentou a um -Então,gostomuito defilosofia,dê aí uma
conhecido seu, dizendo com certo orgulho: filosofadaparaeu ver!
- Venhacá, Gregório,
querote apresentar Para sair de tal enrascada me peguei com
aomeu filho,quemorana Capitale por láfaz tudo que foi santo e filósofo não canonizado,
faculdadedefilosofia. e para não deixar meu pai na vergonha, disse:

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- Seu.Gregório,
gente importantecomoo Aquela franqueza ingênua e inocente
senhor não merecefilosofadade improviso, dos comentários em sala de aula no Colégio
merececoisafina, pois me aguardeque vou santo Antônio, quando se debatia algum tema
mandarumabemcaprichada paraosenhor,por com professores de história e geografia, não
escrito,
emcanetatinteiroepapeldedncolibras. era mais possível na Universidade.
Depois dessa, fui por ali saindo de Se um colega mais afoito fazia uma
fininho e buscando uma boa cerveja gelada e crítica, um comentário mais ácido a partir de
a conversa festeira dos amigos. um texto lido, o professor dava pouco assunto;
e outro aluno, na surdina, logo repreendia o
Os meses transcorriam na universidade primeiro: "Calaa bocarapaz,vão te entregare
e, em meio às aulas e movimentação dos vocêacabaestragandotudo..."
corredores, fui tomando consciência do que
ocorrera no país enquanto eu estava no meu Cochichos, olhares, grupos de três ou
mundinho que se resumia a ruas de Santana e quatro conversando, reunidos aqui e ali...
cartas de Maraçu. Muitas vezes, quando ingenuamente eu me
aproximava, percebia que o assunto era
Ouvi, pela primeira vez, a expressão mudado, papéis recolhidos e guardados.
golpemilitare comecei a saber o que era uma
Mal chegou o final do ano e três colegas
ditadura. Esquerda, subversão, organização
de turma já não mais estavam na faculdade.
popular, reação, Direita, fascismo, PCB,PC do
Tomei conhecimento, à boca miúda, que
B, POLOP,MR8, SNI, passeata, luta armada,
dois foram presos em Belo Horizonte e uma
censura, atentado, sequestro, terrorismo,
colega foi mandada pelos pais para a Europa.
VARPALMARES,VPR, exílio, tortura, presos
Um professor do Departamento de Sociologia
políticos, pontos, ligas camponesas, revolução,
também desapareceu. Diziam que estava
Cuba, China, Albânia, Diretório Central, Centro
preso na Polícia do Exército.
Acadêmico, União Soviética, expropriação,
sindicato ... era todo um novo vocabulário, uma Na república em que eu morava, com
nova linguagem com a qual eu tomava contato. dois conhecidos de Maraçu e três de Santana,

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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

estudantes de Engenharia e Direito, sempre toda a ficha de professores e estudantes que


havia o aconselhamento de um para o outro: julgasse suspeitos. Qualquer participação
"Não te mete com comunistas...isso é perigoso
... no movimento estudantil era motivo de
pode dar cadeia; .." Em casa conversávamos indiciamento e comparecimento no tal DOPS.
sobre o que cada um ficava sabendo em suas Às vezes um comentário em sala de aula era
respectivas faculdades. Um certo temor 0 suficiente. Ninguém sabia como o Governo
geral pairava no ambiente e, com certeza, na sabia tanto, mas o fato é que eles sabiam.
Faculdade de Ciências Humanas a situação era
Mas, nem só de política vivia eu naquele
mais perigosa, por isso se voltavam para mim
campus, gostava também da conversa de gente
com maior preocupação. O Governo nutria
mais simples da faxina, e das rodas de capoeira.
um certo ódio "com H maiúsculo" contra os
Mestre Gentileza, um mulato sergipano com
cursos de Filosofia. Fiquei sabendo que, só no
quase sessenta anos, com um metro e sessenta
ano anterior à minha entrada, nove cursos
e cinco mais ou menos, e cabelos brancos,
tinham sido fechados no país e os de Sociologia
fazia volta nos ares e golpes que invejavam os
e História também estavam na mira.
de dezoito. O toque do berimbau às vezes me
Vicentão, um colega de futebol, hipnotizava, e além da turma do futebol, eu
estudante do terceiro ano de Jornalismo, fiquei por uns meses ensaiando uns passos e
foi ficando meu amigo e, aos poucos, vendo pernadas na roda de Angola em meio aos novos
minha ingenuidade política, foi me dizendo amigos. Mestre Gentileza tinha fama. Certa
como era o traçado dentro da Universidade; vez, com toda a educação e fineza que lhe eram
quem fazia parte de cada grupo político, peculiares, pediu que três rapazes deixassem
o que pensava cada grupo e o risco de se de perturbar uma mocinha que estava próxima
aproximar deste ou daquele colega ou ao hospital universitário. Estava ele com seu
professor. Nossos passos eram muito medidos chapéu e uma pastinha na mão onde levava
e pensados. A tal Assessoria de Segurança e seus papéis do trabalho de corretor de imóveis.
Informação passava para o famigerado SNI Os cabras continuaram a mexer com a moça
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

ignorando completamente as palavras de que planeta estava.E na toada dos meses eu


Mestre Gentileza, e a noite já ia adiantada. me virava com o dinheiro pouco que meu pai
Mestre Gentileza viu o perigo que a menina mandava; estudava em universidade pública,
corria nas mãos dos perversos, que já puxavam morava com colegas e qualquer trocado servia
os braços e a roupa da jovem de um lado para para um livro novo. Já de posse do Certificado
outro, fazendo chacota com o Mestre: Militar e Título Eleitoral, busquei tirar Carteira
de Trabalho e de motorista e me vi na obrigação
- Caífora velho,se manda,a coisaaqui é
de encontrar um emprego, ainda que fosse de
pra homem,vocêjá está mijandona botina!
salário pouco em parte do dia. Tendo refugado
Enquanto um deles terminava a frase, a faculdade de Direito, deixei de procurar o
Mestre Gentileza colocava sua pasta e seu chapéu tal Desembargador a quem fora indicado por
sobre o pequeno muro do hospital e calmamente Doutor Paulo.
dobrou a manga de sua camisa. O sujeito mal Buscando aqui e ali, fui a escritórios e
começou uma frase e sentiu um martelo rodado escolas e percebia a desconfiança das pessoas
assertando sua orelha esquerda e caiu de costas. quando eu dizia ser estudante; parecia estar
O segundo beijou o chão ralando o nariz depois escrito na minha testa algo como comunista ou
de uma rasteira e o terceiro levou um calcanhar subversivo.E eu não era nada disso.Tinha amigos
no estômago vomitando oque comera até na
nesse meio e admirava sua luta, mas ainda me
semana anterior. O primeiro ainda tentou se
sentindo devedor de certa obrigação a meu pai
levantar, mas no outro golpe viu tudo escurecer
e meu avô, evitava situações que pudessem lhes
e desmaiou por ali mesmo. Os outros correram
causar algum desagrado ou preocupação.
enquanto a mocinha assistia imóvel àquela cena
quase inacreditável. Por fim, Mestre Gentileza Sabedor de que eu procurava emprego,
ainda acompanhou a quase vitima até o ponto quando me encontrou próximo ao fórum na
de ônibus, ficando para trás e para uns poucos porta de um famoso escritório de advocacia,
curiosos o valentão no chão, meio tonto, meio Vicentão me fez outra proposta. Ficou de me
dolorido, talvez perguntando a si mesmo em arrumar uma vaga de revisor no jornal em que
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

trabalhava. O salário não era grande coisa, Até o fim daquele ano fiz revisão de textos
mas o horário era bom. Eu deveria chegar às todos os dias. Depoisda matéria pronta, antes de
sete do anoitecer e sair à meia-noite. Em cinco encaminhá-la ao setor de impressão, tínhamos
horas eu cumpriria minhas tarefas e teria o que entregá-la ao censor, que dava a autorização
resto do dia livre, com uma folga semanal. para a publicação. Vi muitas vezes outros
jornalistas na sala do censor levando bronca em
Três dias depois fui chamado ao jornal alta voz. Homens de certa idade ouviam tudo de
para um teste e uma entrevista. Deram-me uma cabeça baixa, em completa humilhação. Sorte
página na qual eu deveria encontrar e corrigir quando não vinha a demissão ou um Inquérito
os erros do texto. A tarefa não foi difícil. O Latim Policial.Doutor João Custódio, dono do jornal,
e a prática no escritório do Doutor Paulo foram acendia uma vela pra Deus e outra ao demônio.
para mim instrumentos úteis para aprender Diante do censor era dócil e obediente. Quando
bem o idioma. Na entrevista me fizeram este se ausentava por férias, doença, algum
algumas perguntas sobre disponibilidade feriado ou casualidade, despejava-se no jornal,
de tempo, disposição para guardar segredos às vezes até como matéria de capa, tudo aquilo
sobre as matérias que fossem de interesse do que a verdade exigia.
Jornal e, por fim, veio a pergunta de sempre, Quando a mão de ferro caía sobre o
se eu tinha ligações políticas. Recorrendo ao Jornal, Doutor João dizia aos coronéis que
vocabulário já aprendido, afirmei que não aquilo era fruto de jornalista desavisado, que
tinha qualquer vinculação com a esquerda ou iria punir o culpado, cortar salário, etc. Mas
com a direita, que meu negócio era apenas não deixava de alfinetar: "...também, o censor
estudar e trabalhar. nãoestavaaí, nãofalou nada... Ossenhoressabem
No dia seguinte fui chamado para o queeu nuncaafronteia censura...".
trabalho no Jornal 22 de Julho. Começava Frequentadores de uns certos churrascos
ali, sem eu saber, uma longa carreira de e eventos na fazenda do Doutor João, os
jornalista. coronéis engoliam as desculpas esfarrapadas

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PedroSérqiodos Santos
Maraçunão tem remorso
e faziam vista grossa para subversão no varejo
- Deix~de onda rapaz!Vai lá e se vira,
que o jornal alimentava. Doutor João, acusado
escrevela o que der no teu juízo, é só usar
pela esquerda de se alinhar à ditadura, fazia
uma linguagemde adivinhadore tudo bem
festas para os militares com bom uísque de tem bestaque acreditaem tudo! '
doze anos e vinhos importados, mulheres ao
dispor e comida com fartura. De outro lado, - Maseu acheique issoaquierasério!
nunca era importunado por dar emprego a este - ~ é! Le~a.mosbesteirasde horóscopo
ou aquele jornalista vermelho. Nunca negou tambem a seno, por isso não pode falhar
emprego àquele que estivesse respondendo nem um dia. Comoé, vai fazer ou tenho que
algum inquérito policialpor problemas políticos. arrumaroutro parao seu lugar?
E para os coronéis, dizia: "Deixaque eu controlo - Claro,claro,com um argumentodesse,
essescomunistazinhos de merdaque trabalhamno escrevoqualquercoisa.
meujornal...melhorelesporpertodo que longe...". - ~iquedespreocupado ... é só por um mês;
Assim, Doutor João jogava um jogo difícil de depoiste arranjooutra coisa.
ganhar. No máximo tentava uma sobrevivência
Sentei-me diante da máquina de
num túnel que parecia não ter mais saída.
escreve~ e fiquei a pensar no que ia publicar
Depois de muito revisar textos, fui p~ra orientar a vida de certas pessoas que
mandado para outro setor do jornal. O ma~ ler aquela tranqueira toda no dia
astrólogo Jaime Odara havia falecido de súbito, segm~te. Olhei horóscopos antigos em jornais
num fulminante infarto. Limeira, o redator- e ~e~1stas_velhos e fiz uma mistura geral de
chefe, então me chamou em sua sala e ordenou: adiv!nhaçoes e palpites vazios e assim virei
astrologo por um mês.
-Sentaali e podecomeçara datilografaro
horóscopode hoje! " Limeira era homem de palavra. No
mes seguint~ fui libe,rado daquele encargo
-Horóscopo???!!!Maseu nãoseinadadisso, de charlatamce profetica. Contratada uma
nuncafiz isso.Nemseiporondecomeçar! nova estagiária de jornalismo, foi a coitada
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

encarregada do horóscopo, da palavra da redação a publicar textos sobre a cultura


cruzada e da coluna diária de culinária. e o povo do Brasil. Assim por umas cinco ou
seis ocasiões cheguei a publicar matérias
Para minha surpresa, não voltei para a
sobre a Capoeira de Angola, sobre Mestre
revisão de textos. O Limeira me chamou na
Gentileza e sobre festas populares, tradições
sala dele e me mandou ir junto com Vicentão
e folclore.
cobrir a área de Polícia. Eu deveria andar com
ele uns quinze dias conhecendo as delegacias, NaFaculdade de Filosofiaeu acompanhava
os policiais e os bandidos mais populares e de longe a movimentação. As eleições de
começar a redigir matérias, pois o Vicentão Centros Acadêmicos e do Diretório Central
ia ser transferido para editaria de matérias eram uma verdadeira guerra ideológica. Cada
especiais. Agora eu ia ser repórter de verdade. qual queria ser mais vermelho que o outro;
Não faltaram, porém, as devidas advertências: siglas e organizações ora se juntavam, ora
se acusavam mutuamente de não serem tão
- O senhor faça somente a descrição vermelhas quanto pregavam e para ganhar a
dos fatos, não escreva comentáriosbestas eleição de um Centro Acadêmico valia tudo;
daquelesdefensoresde pobres e oprimidos, tudo em nome da revolução, como fez certa vez
porqueissocheiraa coisade comunista. um taljoseir Amarantes, que trouxe alunos
- 5im, senhor. secundaristas, disfarçados, no conchavo
com a comissão eleitoral, para votarem
Como eu tinha que entregar as matérias em sua chapa. Queria ele a presidência do
até as sete da noite, negociei uns horários com Centro Acadêmico de Engenharia, sob a
Vicentão e conciliava as aulas na universidade alegação de serem, ele e sua chapa, mq.is
com as idas às delegacias. Boa parte da apropriados que as chapas adversárias,
linguagem jurídica já era minha conhecida, para o difícil momento da nação.
desde os tempos de trabalho no escritório do
Doutor Paulo. Por vezes, quando a censura Não faltava a esquizofrenia megalômana
vetava certas matérias eu convencia o chefe naqueles debates eleitorais, bem à semelhança

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PedroSérqíodosSantos

dos velhos coronéis do interior. E não


- Maraçunãotem remorso

salva!". A chapa NADA comparecia a todos


os acalorados debates em auditórios sempre
faltavam também chapas anarquistas. Eram,
na verdade, estudantes de bom humor que lotados nas várias faculdades do Campus e,
faziam chacota com tudo aquilo, sem se sendo coerentes, não tinham nada a dizer, mas
preocuparem com as críticas que recebiam reivindicavam o tempo que lhes era destinado
mas cada crítica era um graveto a mais n~ e pediam que todos ficassei:n/H,_num c~lor de
trinta e cinco graus, em s1lenc10, ouvmdo o
fogueira da ironia. Por fim, depois de tanto
nada, numa profunda meditação da ausência
militante visionário montar chapa para o
do ser ... Enquanto a platéia vaiava a chapa
DCE e sonhar com a revolução nas ruas, os
NADA, seus integrantes reivindicavam à
anarquistas resolveram concorrer às eleições
comissão Eleitoralque o tempo fossedescontado,
com a chapa DEUS,e o argumento era único
pois o silêncio total era importante para s~
"com tanta bagunça só Deus salva o DCE!"'.
compreender a profundidade do Nada. Aprendi
Com este nome, a chapa tinha somente treze
desde cedo, que não importa qual seja a versão
itens em suas propostas. A carta-programa da linha vermelha e da ideologia praticante, o
começava reivindicando distribuição de comunista não aceita a crítica bem humorada
pente para as lindas militantes da esquerda
e o sarcasmo da piada quando ele é o alvo.
pentearem seus cabelos, como faziam as
boas moças de família que frequentavam a Eleições à parte, aos poucos fui vendo, no
Escola Normal e a Faculdade de Pedagogia e jornalismo de delegacias, o método brasileiro
finalizavam sua carta-programa com a frase de investigação policial, dividido em três fases:
'pelo amor de Deus!'. Com tanta disputa entre prisão,na maioria das vezes sem ordem da
~~apas vermelho-sangue, evidentemente esta justiça; porreteno acusado e confissão.Vivia-
rijo foi vencedora. Mas para os, anarquistas, se no reinado medieval da confissão, a rainha
a luta não acabara ali; no ano seguinte das provas. Depois da confissão só restava
uma nova chapa foi lançada e uma única entregar o preso à imprensa e àjustiça para um
linha continha todo o programa da chapa processo de cartas marcadas. Negros e pobres
NADA : "se Deus não salvou o DCE, NADA eram o depósito de esperança dos policiais
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

nos crimes sem solução. Dia após dia eu via os Findados os elogios, o chefe foi dando
horrores perpetrados nas delegacias e invejava os nós que queria. Ele nos disse que fora
o Vicentão, que agora só fazia matérias chamado pelo Exército e os generais lhe
mais interessantes e intelectualmente mais pediram que o Jornal soltasse em quatro
exigentes. Mas a inveja durou pouco. domingos uma série de reportagens sobre a
Numa tarde de novembro eu, o Vicentão Guerrilha do Araguaia, enaltecendo o regime
e o Cegonha, fotógrafo, fomos chamados na e fazendo alguns destaques especiais a um e
sala do dono do jornal, onde já se encontrava a outro militar, como se fossem heróis, para
o editor-chefe. No corredor só pensávamos servir de modelo a todos, principalmente a
numa coisa enquanto caminhávamos: jovens e adolescentes.
demissão. Cegonha, porém, nos acalmava: Junto com um grupo de mais quinze
- Peraí,gente! O motivo deve ser outro, outros jornalistas e fotógrafos de outros
porque para demitir basta passar no jornais, nós iríamos num avião da Força Aérea
departamentode pessoale assinar o aviso; até o Sul do Pará, teríamos um local próprio
nessa marmeladatem mais queijo... Vamos para redigir as matérias e proteção da Polícia
lá dissiparessastrevas. Federal durante todo o tempo, e ainda uma
Entramos na sala do todo-poderoso gratificação no salário. Era pegar ou largar.
e ele nos mandou sentar naquele sofazão Pegar era aceitar tudo o que os generais
macio, ofereceu cigarro, café e mandou impunham; largar significava ser demitido,
trazer água gelada. Ainda perguntou se fichado no SNI e sem outras possibilidades de
alguém aceitava um uísque. O homem emprego em curto prazo; isso se não ocorresse
fez rasgados elogios a cada um de nós e uma prisão por motivo qualquer.
ali eu permanecia no mais alto grau de Sem opções, arrumamos as malas e, no
abestalhamento diante do que poderia sábado pela manhã, fomos para o aeroporto
ser aquilo, onde poderia terminar aquele esperar o avião que já vinha de Belo Horizonte
desassuntamento sem propósito. com jornalistas de outras cidades. A nossa
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PedroSérgiodosSantos Maraçu.não tem remorso

seria a última parada do Hércules da FAB e ninguém ficava irritado com sua tertúlia
antes de chegar a Conceição do Araguaia. flácida para bovino dormitar.
Naquele grupo tinha jornalistas A poeirenta Conceição do Araguaia
vibrantes, eufóricos com a missão designada tinha um calor que queimava por dentro. Nos
pelo seu jornal, orgulhosos por se acharem mostraram lugar de comer e dormir e logo
prestativos aos generais. Outros eram disponibilizaram um soldado, um policial
indiferentes e outros, corno nós e a turma do federal e um jipe para cada equipe.
Rio de Janeiro, cumpríamos a obrigação corno
Fizemos urna rápida reunião de trabalho
quem torna um remédio amargo; aliás, acho
com todos os jornalistas. O colega do Rio de ,
que o caso não era nem para remédio, era Janeiro teve a ideia de distribuir ternas para
para veneno mesmo. cada grupo e, no fim do dia, nós colocaríamos
Ovôo foi tranquilo, apesar do desconforto em c?rnurn as matérias produzidas, que
do avião militar, e logo começou a camara- poderiam ser trocadas, uma vez que seriam
dagem e piadas descontraídas entre o grupo. publicadas em jornais diferentes. Assim, com
Um jornalista carioca perguntou por que o trabalho dividido, ficaria mais fácil para
chamávamos nosso fotógrafo de Cegonha; cada um. A turma de Belo Horizonte ficou
curiosamente eu não sabia explicar e nunca encar~egada de entrevistar camponeses
tinha atentado para o apelido, pois quando eu e habitantes locais, a equipe de São Paulo
cheguei no Jornal, ele já estava por lá havia deveria entrevistar os guerrilheiros presos, 0
nove anos. Mas Vicentão esclareceu tudo. grupo do Rio de Janeiro tentaria contato com
Tudo muito simples, o Almeida tinha o apelido índios e ribeirinhos e a nós coube entrevistar
de Cegonha porque levava todo mundo no mílitar~s e descobrir o tal herói que os
bico. Furava filas, entrava em locais proibidos, generais tanto queriam.
em repartição pública, banco e necrotério, Saí com o Cegonha, Vicentão e o policial
pulava muro, atuava de penetra em festa de no velhojipe do Exército.De início, nos quartéis
milionário e delegado, tudo por urna boa foto, ouvimos falar de um tal sargento Jurandir.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

Diziam que o homem sabia de cada canto Elecompletou: "ÉJura-Meningiteporquequando


de Conceição do Araguaia e que dezenas de nãomata,deixao cabraaleijado!".
guerrilheiros comunistas caíram nas mãos Naquela sacristia ouvi relatos mais
dele. Fora do quf1.rteloptamos por deixar o horrendos que as histórias que meu avô
jipe ao longe e sair a pé pelas ruas e bares me contava sobre a perseguição aos Avá-
para ouvir do povo o que diziam dos militares
Canoeiro. Toda a tortura que vi contra os
que ali atuavam na guerrilha. Toda vez que se
presos comuns nas delegacias da Capital
tocava no assunto, numa praça ou num bar,
não chegava minimamente perto do grau de
as pessoas saíam de perto, falavam pouco,
maldade dos tais militares na luta contra os
desconversavam. Estava realmente difícil
guerrilheiros. E não só estes eram atingidos.
construir ali um herói popular.
A população local, índios, pescadores e
Foi então que o Cegonha teve uma ótima ribeirinhos sofriam torturas e morte por se
ideia: "Vamosna igrejae no puteiro".Estranhar aproximarem dos guerrilheiros. Arrancavam
nós estranhamos, mas, sem rumo para o informações do povo local com a mesma
trabalho, acatamos de pronto a sugestão. crueldade de se arrancar as unhas, a língua, os
Na igreja o padre nos atendeu bem, nos olhos ou as orelhas na ponta de uma baioneta.
ofereceu água gelada e, acompanhado de Disseram que o tal Sargento Jura-Meningite
duas freiras e um paroquiano que disse ser acabou com o estoque de agulhas e alfinetes
catequista rural, nos relatou os horrores da da loja de costura de Dona Marcolina. Quando
guerrilha. Quando Vicentão perguntou sobre ia interrogar mulheres, diziam que o sargento
militares mais valentes e violentos, imaginei não lhes arrancava as unhas, mas lhes dava
altas patentes na boca do padre italiano. Mais um vidro de esmalte e ordenava que as unhas
uma vez me enganei. Imediatamente o padre fossem pintadas, e depois ia, vagarosamente,
e uma das freiras falaram o nome do Sargento enfiando agulhas e alfinetes embaixo delas,
Jurandir e o catequista emendou: "É o próprio até que as vítimas dessem as informações
Jura-Meningite!".Indaguei: "Jura-Meningite?". desejadas. Para aquelas mais resistentes a

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PedroSérgiodosSantos

agulha era esquentada até ficar em brasa.


- Maraçunãotem remorso

Emanuel Kant. chegamos, cada um pegou


O tal "Jura-Meningite" fazia sucesso nos ma das moças disponíveis e fomos para
quartéis. Confesso que saí da igreja com um ~ma mesa com uma cerveja gelada e muita
peso no estômago e quase posso afirmar que conversa. Vicentão quis mesmo falar com
os outros também. Tia Baby. Depois de alguma conver:ª' el~ nos
chamou a todos num canto do balcao e disse:
Chegamos a um puteiro que, segundo
o soldado nosso motorista, era o maior e - Tô entendendo. Vocês não querem
melhor da cidade. Se tem uma coisa que nada de cama com as meninas. É muita
soldado brasileiro entende, não é de guerra, perguntaçãoe poucofazimento.N_ão -sei se
mas de cabaré. são puliçaou comunista,mas aqui nao tem
disso,não. Nós tamo aqui é pra trabaiá e
A dona do estabelecimento, Tia Baby, nos
chegade papo!
recebeu na porta com cara de sono e de poucos
amigos e pediu que voltássemos depois das nove As moças foram logo para outra mesa
da noite, pois aí a função já teria começado. e se juntaram a fregueses que chegavam,
Voltamos ao quartel e ficamos sabendo querendo algo mais útil na funçã~ delas.
que o tal Sargento Jurandir fora cedido da Vicentão foi tratando de acalmar Tla Baby
Polícia Militar para o Exército e que não tinha dizendo que era jornalista e que talvez até seu
hora certa no quartel. Ele tinha total liberdade estabelecimento pudesse ficar mais famoso
dada pelo Coronel Comandante da unidade com propaganda em um jornal da Capital
para atuar onde e como quisesse, já que seu e a gente só queria mesmo umas poucas
trabalho de caça aos comunistas se mostrou informações. Depois de uma meia hora ~e
muito produtivo. O Coronel Sabiá escolheu a conversa mole e muitos elogios falsos, Tia
dedo os homens que ele queria nessa tarefa. Baby já cedia ao palavrório de Vicentão
enquanto eu e o Cegonha virávamos a quarta
F amos mais pontuais no puteiro da
Tia Baby, que a hora do passeio do filósofo cerveja gelada.
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PedroSérgiodosSantos

Quando Vicentão falou o nome do dito


- Maraçunão tem remorso

não aceita;todo serviço ele paga e ainda


dá um agradinhopras menina. Até eu já
cujo ~argento Jurandir, Tia Baby suspirou
fundó e foi logo retrucando: "Seé prafalar mal quis fazer uma cortesia pra ele, mas ele
dele,vocêssaiamdaquiagoramesmo,nem carece não aceitou.Quandochegaaqui, se estiver
pagara conta!".' fardadonão bebeem serviço;só vai mesmo
parao desfrutecom uma das menina.É um
Mais uma vez ânimos acalmados 1 homem muito justo, sim, senhor. Quando
Vicentão explicou que íamos fazer uma arguma mocinha novinha tá querendose
matéria enaltecendo o heroísmo do tal perdê, eu separo ela, ela não se deita com
sargento. A cafetina, então desarmada do mau homem nenhum antes de se deitá com
humor, passou a tecer elogios ao Sargento SargentoJurandir.Aquelaali,a Eldeneide,tá
Jurandir: comdezesseisanos,chegouaqui na semana
- Olha, ele é um homem muito bom. passada.Não quis mais trabaiáem casade
Podemfalar o que quiserdele, mas aqui ele famíliaporquetem ganhopoucoe não tem
semprefoi muito respeitadore também não horae nem dia de folga.As amigadisseram
deixasordadoque anda com elefazer troça a ela que na função de quenga o ganho é
aqui c'as menina. Ele não deixa ninguém melhore aquieu dou duasfolgapormês.Ela
aprontaraqui.Ai daqueleque,se elesouber, ainda é moça mesmo, mas eu já expliquei
bateuem algumameninaou saiu daquisem tudo pra ela. Tamosó esperandoo Sargento
pagar.Ele manda pegar o sujeitinho e dar Jurandirpassarpor aqui pra se deitá com
uma surraque nem o pai delenuncapensou ela,pradepoiselaatendêosoutros.Esseé um
em dar.O últimoquefez issoaquifoi Zeréia, agradoque eu não deixo nunca de oferecê
o fio do ChiquinhoLeso. Só não apanhou proSargentoJurandir".
maisna cadeiaporqueseu pai eracandidato
a vereadore se apegoucom tudo quantofoi Entrei na conversa e indaguei se ela
políticograúdoe no outro dia soltaramele. sabia do tal apelido de Jurandir-Meningite.
Nem cortesiada casa o SargentoJurandir Tia Baby não mudou o tom de fala e rebateu:
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

-Issoé coisaládessepovometidocomesses Depois,mandou chamar lá um tal de Capitão


taisde comunistas;é coisaládo trabalhodele. Braga e ordenou que ele nos acompanhasse.
Se ele bateou mata alguém,deve de ser pela O Coronel nos franqueou uma visita
obrigaçãoque todopoliçatem, mas paraisso a alguns indivíduos que foram presos e
nãodouassunto.Aql}-i nomeuestabelecimento interrogados pelo Sargento Jurandir e no
é lugar de respeitoe quando ele chega é outro pavilhão do quartel nos deparamos com
tratadopor SargentoJurandir mesmo,sem uma pequena cela onde estavam três homens
piadaou qualquerengraçamento, porqueele e duas mulheres. O grupo não era exatamente
é homembome sério. o que podemos chamar de presos. Estavam
Percebemos que ali no quengaral de Tia mais para farrapos humanos, com hematomas
Baby não ia ser possível obter mais do que a de cima abaixo e o mau-cheiro do pus nas
boa imagem de um protetor de puteiro. feridas, os vômitos e as fezes espalhados pelos
No dia seguinte, fomos ao quartel cantos da cela contaminavam o ar. Perguntar
onde ele estava servindo e conversamos àqueles presos algo sobre o Sargento Jurandir
com o Coronel Sabiá, que nos informou que era, no mínimo, pisotear suas desgraças.
ia ser difícil uma entrevista com o Sargento Entramos calados na companhia do Capitão
Jurandir pelos próximos vinte dias, pois ele Bragae saímos mudos. Ele, no entanto, proibiu
estava numa missão em São Sebastião e depois Cegonha de qualquer fotografia. Na saída do
iria para a Serra das Andorinhas, onde havia pavilhão o Capitão foi taxativo: "foi só chamar
por lá uma certa infestação de comunistas. o SargentoJurandirpara logoeles darem todo o
Cegonha reclamou, pois queria uma fotografia serviço.Depoisde rodareles dois dias a gentejá
com ele e o máximo que conseguiu foi uma sabiade tudo.SargentoJurandiré muitoeficiente."
foto cinco por sete que o Coronel retirou dos Na manhã seguinte, nos encontramos
arquivos militares, depois de muito reclamar. com os demais jornalistas e, na reunião,
Reclamou, mas cedeu a foto; afinal nós tínhamos o herói que os generais buscavam; só
estávamos ali a mando dos senhores generais. não tínhamos fotografia decente e entrevista.

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

No retorno à Capital publicamos a série Por outro lado, tinha também um certo
de reportagens sobre a Guerrilha. Cegonha fascínio pela filosofia, pela história e pelas
improvisou com a foto cinco por sete, ampliou ideias dos clássicos, equivocado na crença
e fez umas montagens com o rio Araguaia e de que se o mundo é o que é e nós pensamos
umas armas ao fundo da cena. Vicentão fez comopensamos, isto só é possível pelo esforço
um texto que variava entre a política e a hercúleo dos grandes filósofos pensadores. E
lição de Moral e Cívica da escola, contando, por que não entrar de cheio neste mundo?
claro, com a minha ajuda na criação do herói Lá pelo terceiro ano de faculdade, sem
encomendado pelos generais. Todavia, o saber bem que rumo tomar, resolvi, por
penúltimo parágrafo da matéria, que tomou precaução, fazer um curso de Francês, pois a
página inteira, Vicentão finalizou assim: língua de Descartes poderia me ser útil num
"Emseu destemorpela causada Pátria,Sargento curso de Mestrado, dentro ou fora do Brasil.
Jurandir não permite desordem ou subversão Afinal, ainda naqueles tempos, para sonhar
vermelhanem mesmono prost{buloda cidade". não se pagava impostos.
A ditadura prosseguia e eu me virava Fui até o tradicional curso de Francês da
entre a vida de estudante e de jornalista por AvenidaBuriti, fiz a matrícula, pechinchei na
necessidade. Pensei no que fazer após concluir mensalidade e saí com quinze por cento de
os estudos, se mergulhar de vez no mundo do desconto. Com todo aperto, consegui conciliar
jornal ou me dedicar à vida acadêmica. o horário da· faculdade com o trabalho no
Ojornalismo tinha algo fascinante que as Jornal e o curso de Francês, sem falar na
demais profissões não me possibilitavam. Eu sinuca à noite e no futebol com os amigos
podia antecipar a história, escrevê-la ou retê- duas vezes por semana.
la em minhas mãos antes mesmo que qualquer Nada de surpresas no primeiro dia de
pessoa tomasse conhecimento dos fatos. O aula do curso de Francês. Apresentação da
que iriam ler, comentar e debater amanhã ou professora, dos livros, de textos e do programa.
depois eu já estava escrevendo hoje. No segundo dia, porém, antes mesmo do
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

início da aula, estava eu pela varanda da Para minha surpresa, aquele oásis
escola quando parou um carro oficial, um no deserto em forma de mulher entrou na
Galaxi preto de· chapa branca. O motorista minha sala três minutos após o início da aula
engravatado deu a volta por trás do veículo e a professora fez as devidas apresentações:
e abriu a porta. Naquele instante não sei se o "Turma,temosuma novaaluna.É a LígiaMinatti.
sol iluminava minha visão ou se eu ficara cego Ela é estudante de Direito e junto conoscovai
do juízo, tal era a formosura que colocava os aprenderFrancês".
pés pela calçada e adentrava os corredores da Novamente flutuando pelo centro da sala,
escola como se flutuasse. Eram olhos verdes de ela veio e se sentou a duas carteiras da minha.
fazer inveja à bandeira nacional, pele alva e os Difícil ou quase impossível me concentrar na
cabelos mais belos que já tinha visto. A mim aula. A voz da professora era algo que eu ouvia
só me coube ouvir um musical "boa tarde", ao longe, muito longe ... Perto mesmo era só
que saiu dos seus lábios demonstrando, além a imagem daquela delicadeza toda. Quando
de tudo, educação e fineza. E eu, na caipirice aquelas mãos se puseram a escrever, tive
lá de Maraçu, mais para jegue que para gente, inveja da caneta que ela segurava. Daquele
nem consegui articular direito uma singela dia em diante, música para mim só tinha uma
resposta; fiquei boquiaberto, gaguejando só letra, uma palavra: Lígia.
Deus sabe o quê, enquanto ela passava por Aos poucos fui conseguindo me conter
mim em direção ao balcão de informações, e conter o embasbacamento que tomava
usando um sapato preto e um vestido azul que, conta de todo o meu ser matuto quando eu
na minha imaginação, era mais um manto para chegava perto dela. A conversa começou
aquela escultura viva de Da Vinci. a fluir e em casa resolvi redobrar e depois
Ainda que sem querer, tive que entrar para a triplicar meus estudos de Francês, pois eu
sala, pois a aulajá estava iniciando e a professora, não queria fazer feio diante dela, ou quem
batendo palmas, me acordava daquele sonho e sabe poderia, num golpe de sorte, até lhe ser
chamava todos para a lição do dia. útil em alguma dificuldade. Meus colegas até

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

já faziam chacota. Vicentão perguntava se eu de ônibusmesmo...E serianessemajestosoveículo


fazia faculdade de filosofia ou de francês ou se que eu a levariaao cinema?Assim, entre uma
eu queria mesmo era ser diplomata. Mais uma cerveja e outra, fui cuidando de me contentar
vez o velho e bomLatim ajudou-me nas aulas com a vida e tirar do juízo aquela que me,
de Francês. fazia crer que, diante dela, Ingrid Bergman,
Com a desculpa de estudar Francês, tive de Casablanca, não passava de uma mocinha
umas poucas oportunidades de me aproximar simpática do cinema de Hollywood.
de Lígia. Mas ela, do alto de sua refinada O semestre terminava e nossa
educação e sorriso ingênuo, não demonstrava convivência permanecia no terreno do
me olhar de qualquer modo que fosse além de coleguismo formal e distante. No semestre
um conhecido, no máximo, um colega de sala. seguinte ficamos em turmas e horários
Usando cá minhas roupas grosseiras, diferentes e eu raramente a encontrava no
com meu jeito maraçuense de andar, com curso de Francês. Tomei consciência, a duras
amigos do mundo da esquerda e do jornalismo penas, de que mulheres palpáveis, de carne
de distrito policial, me dei conta de que não e osso, deveriam ocupar o seu lugar e, assim,
iria despertar nada naquela poesia em forma procurei dar outros rumos ao meu coração,
de mulher, e que aquilo não passava de um mas, ao que parece, ele ficaria por muito
amor platônico. Suspeitava eu que já deveria tempo ancorado naquele mar de beleza.
ter muito marmanjo mais bem qualificado se
candidatando ao cargo de namorado.
Quando me sobrava um trocado para
uma cerveja no Laçode OuroChopp,ficava eu
numa prosa de pensamento imaginando ... E se
elaquisessealgocomigo,comque caraeu chegaria
na casa dela para pedi-la em namoro?Comque
roupairialá?Decarro?Nemsonhar...Tinhaque ir
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Capítulo III
Sopros que se arrastam

"É um grande esforço para o


pobre obter o que lhe falta, e
também um grande trabalho para
o rico conservar o que lhe sobra."

(ANTÔNIO CONSELHEIRO)
um sábado chuvoso de setembro,

N acordei com Vicentão batendo forte


na porta, gritando pelo meu nome. No
sono que tinha, pulei com o susto, me coloquei
de pé e fui abrir a porta:Já vai,já vai!
Vicentão entrou, me mandou sentar e
ficou me olhando com cara de "Valha-meDeus
e NossaSenhora!".Sentou no velho sofá e ali
ficou num "poisé, pois é...".
- Vicentão,você me acorda dessejeito
paraficar aí com cara de cachorroque viu
carrocinha? Desembuchalogo!Quemfoipreso
dessavez, ou a políciatá atrás é da gente?
Falalogo,senão mando chamar o Sargento
Jurandirlá de ConceiçãodoAraguaia!
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PedroSérgiodosSantos Maraçu.não tem remorso

- Deixede brincadeira,sente-seaí que a molecagem e, aos gritos, fazia meu pai baixar
coisaé séria! sua mão e sair resmungando:
-Diga logo! - Osenhoraindavai colocaressem~leque
- Vocêé um grandeamigoe não desejava a perder,meu pai!
dizerissoa você. - Calea bocae deixeo meninocomigo!
- Desembucha,rapaz! Meu avô me passava, então, uma
- Passei pelo Jornal para pegar um descompostura das bravas, mas não encostava
adiantamentoparapassaro fim de semanae a mão em mim, e por fim me fazia ver toda a
tinhachegadoessetelegramaparavocê.Como razão de meu pai.
eleestavaaberto,nãopudedeixarde ler. Em segundos minha memória se voltou
para a velha rede e todas as suas histórias de
Lentamente ele tirou aquele papel garimpagem, índios,jagunços e assombrações;
dobrado do bolso e me entregou. Sentado eu aquelas coisas que ele me contava sobre a
li, sentado me curvei mais ainda com o peso época em que os bichos falavam, e de boa
da morte de meu avô. Não contive as lágrimas memória recitava a história das modas de um
e o choro compulsivo diante do texto curto tal Randolfo Antônio, seu amigo de garimpo,
que informava, tão somente, que ele falecera e nesses versos ele alegrava minha infância:
naquela madrugada.
Incontrei cum u pápaventu
Mergulhei novamente na minha U calangu mais u sapu,
infância e me vi acolhido nos braços daquele Qui ia pru mutirão
que fazia brinquedos para mim em meio as Duma festa du macaco
suas baforadas no cigarro de fumo picado Fazê um arquêr de roça
a canivete. O velho Cândido Cassiano, que Lá na ponta do ressacu,
tantas vezes me livrou dos tapas certos que Na fazenda Du Orélu
eu levaria de meu pai por causa de alguma La na mata dus buracu.
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

Adianti eu topei um calango telefone de Maraçu, instalado na Ptef eitura,


A raposa e a cotia, na esperança de que, naquele sábado, alguém
Tava ali isbabacadu, atendesse. Por sorte, em conta da exploração
Sem sabê o qui fazia, do amianto que se expandia a passos largos,
Tava fazenu pandêru 0 prefeito receberia naquela manhã uma
Du fundu di uma bacia comitiva de empresários da Holanda, e sua
I tava fazenu hora secretária, Dona Neusa, atendeu a minha
Pra chegá na rancharia. ligação,já sabendo do que se tratava:
- Meu filho, pode deixar que eu vou
Eu ria aquele riso gostoso de criança que mandarum menino na tua casapara dar o
imaginava o mutirão dos bichos na fazenda e recado.Liguedaqui a vinte minutos que vai
ele completava os versos. ter algumparenteseu aqui.
Topei cum u tatu Depois de conversar com meu tio, fiquei
Lá nu limpu Du terrêru, sabendo que meu avô morrera dormindo
Êli vei nu mutirão na rede; com um enfarte aos seus oitenta
Esse era um cabacêru. e dois anos, o Senhor o recolhera como a
Chegô na festa gritanu: um pássaro para o seu jardim, o jardim dos
- Amolaa foiceligêru! inocentes, dando-lhe o prêmio de uma morte
sem sofrimento. Fiquei sabendo do velório, da
U macacu respodeu: hora do enterro e corri para a rodoviária, para
- Vem tomá caféprimêro. oito horas de viagem, buscando encontrar a
despedida do meu próprio passado.
Depois dessa viagem de lembranças e
lágrimas, levantei a cabeça e, com a mão de Com uma chuva fininha o caixão de meu
Vicentão no meu ombro, no silêncio solidário avô desceu à sepultura, num silêncio em que
da compaixão, fui buscar as providências. só se escutava o canto dos grilos após a bênção
Fui ao Jornai pedir para ligar para o único do padre. O povo de Maraçu, com a admiração
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

que tinha por meu avô, saiu dali de pouco a e máquinas movimentavam toneladas de
pouco, com boca fechada e olhos ao chão. Pela amianto e alargavam o sorriso dos políticos e
primeira e única vez vi um velório em Maraçu comerciantes que lucravam imensamente com
sem rodinhas de piada e cachaça. tudo isso. Eu, particularmente, preferia mais a
Tirei mais uns dias por ali, até a missa pacata Maraçu da minha infância nostálgica,
de sétimo dia. Em meio à dor e ao luto da dos causos contados pelo meu avô, mas sabia
família, fui percebendo que as mudanças do que aquela Maraçu não existia mais.
amianto em Maraçu não estavam limitadas Findado o luto e de volta à redação do
à exploração do mineral por aquelas terras. jornal, retomei a rotina de delegacias e aulas
Iniciava-se a construção de um grande na universidade.
parque industrial. Diziam-se nos bares, nas Não se passaram nem quatro semanas
bocas e nas praças que de Maraçu iria sair daquele sábado e Vicentão me_ acordou
produto para o Brasil e para o estrangeiro. novamente com socos na porta de casa.
Telhas, caixas d'água e outros elementos Juro que me levantei acreditando piamente
seriam ali fabricados. Maraçu começava a se que outra desgraça se abatera sobre minha
tornar referência industrial no sertão central família. Desta vez, Vicentão não enrolou
do Brasil. Por vezes vi o Doutor Altamir pelas tanto para falar:
ruas, em companhia de políticos e de uma
gente desconhecida, e a conversa deles era - Você se lembra do meu irmão que te
uma só: o amianto. Doutor Altamir, pelo visto, apresenteiuma vez quandoele veio aqui me
esquecera de vez a tragédia de seu pai e o visitare foi,inclusive,jogarbolacoma gente?
sumiço de seu filho.
- Lembro!Elemorreu?
Estrangeiros, a todo o momento, se faziam
- Não!Eleestá aquide novo!
presentes e uma gente vinda de todo canto se
alistava para o trabalho nas fábricas que estavam - E daí? Precisame acordarassim para
brotando no meio do cerradão. Caminhões avisarque elechegou?

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- É que ele veio para cá com mais dois -Minhaqjuda?Como?Eunãotenhodinheiro,


amigos,o Avelino,engenheiro,e uma tal de nãoconheçoninguéminfl.uente
noExército!
Consuelo,estudantede Veterinária. - Dinheiro não é problema, eles têm.
- E daí, Vicentão,o que é que tem ele Fizeramuma grandeoperaçãoem SãoPaulo
viajarcomosamigos?Elenãofoi estudarem e estãocommuita grana.
SãoPaulo,fazer Medicinapor lá? - Tá bom,e ondeé quevocêquerme enfiar
- É,foi para estudar,sim,só que está aqui nessahistória?
foragido.OpessoaldoExércitotá atrásdeles. - É que você conhecetudo quanto há de
O Chico,meu irmão,se meteuaí coma turma ladrãoe batedorde carteiradessacidade,já
do MRB;já pegaramuns lá em São Paulo, quevocêestáhátemposcobrindoasdelegacias
no Rio e em Minase elesfugiram para cá e para o Jornal.Pois agoraprecisamosachar
precisamsumir do país. uns caras aí que vendam uns documentos
furtados para que a gente possa montar
- E elesestãona sua casa? documentosfalsosparaelesfugirem.
- Não. Faleipara o velho,pai da minha - Vicentão,você é meu amigo,quaseum
namorada, que eles gostavam muito de irmãopara mim, mas nunca me meti com
pescaria e pedi para ele deixar os três coisade subversão,emboravocê saiba que
passaremuns doisdiaspegandolambarina eu tenho simpatiapela luta e pela causada
chácaradeleem Serrânia,mas issonãopode democracia,mas esse negóciode comprare
ficar assim,temosquesumir com elesdaqui, falsificardocumentotá indo longedemais.
senãovou presotambém! - Olha,vê se dá umjeito! É casode vida
-Temos??!O que é que eu tenho comisso? ou morte. Se pegarem eles, o Exércitovai
Nãosei nadado MRB,nem das açõesdeles! entregaros três para a OBANe vão soltar
eles,de avião,dentrodo mar para o almoço
- Calmaaí!Eu precisoda sua ajudapara dos tubarões,comojá fizeram com outros;
tirarelesdaqui. fora a torturaque aindavãosofrer!
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

Eu sempre tive cá um pressentimento de de ir à rodoviária, na seção de achados e perdidos,


que essa minha simpatia pela luta ainda ia me e alifazer a entrega do objeto de seu delito. Dizia
colocar em maus lençóis. Embora não fosse eu ele que estava colaborando para que a pessoa
um comunista ou militante da luta armada, não ficasse em total prejuízo, tendo que buscar
nunca gostei de . ver o grande pisando no nos órgãos públicos todos os seus documentos
pequeno, sempre sonhei com um país mais livre. novamente. Este senhor, conhecido pelo apelido
No mais, não pude colocar por terra a amizade de BrisaMansa,me confidenciou que nem sempre
do Vicentão nessa hora em que a morte beirava ele levava os documentos da vítima à seção
sua família. Em poucos minutos de ponderação, de achados e perdidos. Quando ele conseguia
resolvi cooperar' e passamos à definição das descobrir o endereço, ele ia pessoalmente à casa
estratégias para a produção dos documentos. do coitado e lá, com seu jeito humilde e conversa
Mandei o Vicentão arrumar fotografias três amaciada pelo ritmo caipira, dizia ter encontrado
por quatrq .ecinco por sete, dos três, e um pouco de os documentos na rua, na cidade vizinha, e nem
dinheiro para que eu pudesse ver o que conseguiria gratificâção ele queria, mas tão somente que o
com os xiquiteiros no centro da cidade. cidadão lhe pagasse o transporte, o almoço e o
De tanto fazer matérias policiais, passei dia de trabalho, pois largara seus afazeres para ali
a conhecer os pontos mais frequentados prestar aquele auxfüo. Gratidão é palavra mágica
por esses batedores de carteiras que que abre muitos bolsos e raramente ele não
desempenhavam seu ofício nos ônibus lotados ganhava mais um troco daquele que ele tinha na
pela manhã e pelas seis da tarde. No início, só boa conta dos abestalhados. ·
furtavam as carteiras, tiravam o dinheiro e Por uma dessas coincidências que só
jogavam os documentos fora. Deus pode explicar, encontrei Seu Brisa
Certa vez, no quarto Distrito conheci um Mansa num café tradicional no centro da
xiquiteiro que se mostrava uma pessoa muito cidade, local onde se poderia fazer qualquer
distinta e educada. Ele confessou que toda negócio, comprar uma asa de penico, uma
carteira que furtava, ele mesmo tinha o cuidado tampa de caixão, encomendar com pistoleiro

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

um encontro mais rápido de qualquer pessoa Encontrei uma mesa mais ao fundo,
comJesus. No afamado Café Bandeirante, Seu peguei uma garrafa de água mineral e um café
Brisa Mansa pitava um cigarrinho de palha, no balcão e me sentei com Seu Brisa Mansa,
com sua camisa xadrez, chapeuzinho surrado bastante constrangido, mas sem muita
na cabeça, botina e barba de sete dias. Um possibilidade de escolha naquela situação.
autêntico e ingênuo matuto na aparência. Temendo que coisa pior acontecesse com o
Como jornalista da área policial, eu irmão do Vicentão, me lembrei de minha mãe
tinha por pricípio relatar os fatos sem dizendo que quem está em correnteza de rio
desqualificar a pessoa do criminoso. Desta abaixo, para se salvar segura até em pau de
forma, angariei o respeito e a amizade de espinho. E ali estava eu, segurando em pau de
vários deles. Uns até tinham orgulho de espinho, iniciando uma negociação criminosa
ver sua foto publicada na minha página com um ladrão conhecido da polícia.
do 22 de Julho. Quando o jornal chegava na - Poisé, Seu BrisaMansa,tô precisando
cadeia, o preso, com orgulho, mostrava a da sua ajuda.
matéria para os colegas de cela e, quando o
- Podedizê,SeuMoço.
crime era pesado, ainda ganhava respeito e
consideração dos demais presos. - Bem,Seu BrisaMansa,tô precisandode
uns documentos...
Seu Brisa Mansa logo me reconheceu na
entrada do Café e me cumprimentou: - O sinhôquer tirarseus dicumento?
- Não.Não é bem isso,é que eu tô aí com
- S'tarde,seu moço!
um problemade umas pessoasque precisam
- Boatarde,Seu BrisaMansa.Queriater de documentospara sair do Brasil.São dois
um dedinhode prosacomo senhor. homense uma moça com idade entre vinte
- Uai,é prajá! e cincoe trinta anos.Comoo senhorsempre
"encontra"muito documentoperdidoporaí,
- Vamosali num cantomaisreservado. eu gostariade compraruns documentos,de
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

preferênciamais completos,comidentidade, do Café, quando a noite chegava. Paguei pela


CPFe título eleitorale tudo o mais que o colaboração e saí rapidamente dali, temendo
senhorpuder conseguir... e tremendo. Carregava aquele pacote como
- Modeo quê,que elesquersair do Brasil? quem carrega brasa na mão limpa.
- Sei direito não, Seu Brisa Mansa, Nunca tinha me envolvido com ações
também tô fazendofavor para um amigo;é de militância comunista, ou com os grupos
coisapolítica... da luta armada. Eu sabia das consequências
se eu fosse pego pela polícia política e não
-Entendo.Muitoque bem,vortedispaisde saíam da minha mente as cenas de tortura
amanhãque eu vou vê se achoos dicumento. de Conceição do Araguaia e a imagem do
- Fiquetranquiloque o pagamentoé na Sargento Jurandir. Do outro lado eu via o
hora.Quantocustaria? pânico estampado no rosto do Chico, irmão
do Vicentão, e de seus companheiros. Depois
- Se eu achar dicumentocompreto,uns
trezentoscruzeiro.Tá bão? que voltaram de Serrânia, passavam o dia
trancados no quarto, onde recebiam a comida
- Combinado,SeuBrisaMansa. e esperavam ansiosamente pela chegada dos
Apertei a mão do velhote e saí dali, documentos. Pela amizade que eu tinha pelo
na ligeireza de um calango que foge de Vicentão, que era como um irmão, não queria
carcará, nem olhei para trás, pois embora vê-los nas mãos dos militares, pois ali a morte
tudo estivesse às ocultas, eu tinha sempre a seria certa.
impressão de que nestas coisas a gente está Eu pensava em meus pais em Maraçu,
sempre vigiado. e pensava até na tênue esperança de um dia
Três dias depois recebi, dentro de me aproximar de Lígia, como forma de me
uma velha sacola de plástico amarela, os manter afastado e não me envolver com a
documentos que eu precisava. Seu Brisa luta armada, ainda que fosse à distância, o
-, que certamente não faria muita diferença
Mansa me entregou a encomenda na porta
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

para os militares, se eu fosse descoberto. De fiquei sabendo que eles conseguiram sair do
outro lado, eu não poderia desconsiderar o país e entraram na Europa através da Bélgica.
apelo do Evangelho que recebi em casa, na cuidei rapidamente de juntar todo o material
escola e na Igreja. A proposta e o dever de utilizado na fabricação dos documentos e fiz
olhar para os encarcerados, os perseguidos, uma fogueira no quintal de casa. As provas do
os fracos, era algo do qual eu não poderia, por meu trabalho viraram cinzas e eu fiquei sem
princípio, escapar. Eu não colaborava com a saber se eu realmente tinha essa capacidade de
luta armada por ser comunista, e nem sempre falsificar documentos tão bem que pudessem
concordei com certas práticas e ideias por eles ser convincentes, ou se minha competência
defendidas, mas comunistas ou não, ninguém era menor que a incapacidade de vigilância e
merece morrer, ainda mais na tortura. Em observação da polícia nos aeroportos. O fato
meio a esses conflitos, resolvi colaborar e, de é que meu medo de tudo isso era tão grande
alguma forma, evitar que fossem presos. que cheguei a enterrar as cinzas e plantar
Comprei régua, tinta, cola, tesoura e flores por cima.
mais algum material gráfico e montei uma Toquei a vida, os dias se passavam
mesa de trabalho para adaptar os documentos e eu procurava não pensar mais naquela
às fotografias que Vicentão providenciou, colaboração, ainda que pequena e passageira,
com a colaboração do Cegonha, que utilizou com a luta armada. Acordado eu racionalizava
o laboratório fotográfico do 22 de Julho para tudo, mas dormindo eu tinha pesadelos e
produzir as fotografias necessárias. volta e meia sonhava com a polícia invadindo
Em dois dias de trabalho os documentos minha casa, eu sendo preso e pressionado a
estavam prontos e, à custa de amizade e de um confessar tudo.
pouco de dinheiro, Vicentão conseguiu com O que me fazia esquecer um pouco toda
um agente da polícia federal os três passaportes essa situação da dureza da ditadura, que
para colocar no estrangeiro seu irmão e os de várias formas atingia nossas vidas, era
demais. Depois dos documentos entregues, sonhar com a Lígia. Passei a ser leitor diário
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

da coluna social do 22 de Julho na esperança As serenatas só não aconteceram porque


de, vez por outra, saber notícias de Lígia, de fui contido pelos amigos, que sabiam que
ver sua fotografia, que eu não hesitava em brincadeira de cantoria poderia acabar em
recortar e montar meu arquivo pessoal, ainda prisão por perturbar a ordem pública, ainda
que a chacota dos colegas fosse inevitável. mais acordando moça de família em casa de
Ela, como filha de ilustre magistrado, estava magistrado de renome.
com frequência nos eventos sociais da Capital Terminei a faculdade e a colação de
e sua beleza sempre era o alvo das câmeras grau teve tudo: festa, juramento, beca preta,
de fotógrafos de revistas e jornais que valsa e muito protesto contra a ditadura.
paparicavam a alta sociedade. Certamente, De presente, recebemos do Ministério da
na distância deste mundo, ela nunca olharia Educação a notícia de que o governo não iria
para um aprendiz de filósofo, meio jornalista, autorizar a emissão dos nossos diplomas, pois
meio gaudério, como dizia Seu Joel Barini. não iria diplomar um magote de subversivos;
Aqueles olhinhos verdes, o sorriso era isso que os militares pensavam de todo
mágico e os lindos cabelos como raios de aquele que cursava Filosofia. O tal diploma fez
sol em tarde chuvosa, ainda que a distância, falta para quem buscava o magistério como
iluminavam meus dias e eu ruminava tudo profissão. Eu continuei sobrevivendo como
engarranchando meus dedos nos acordes jornalista e fui promovido no 22 deJulho. Saí
dissonantes do violão, ouvindo e cantando da área policial e passei a cobrir o noticiário
as coisas da bossa nova, que sempre me da política local.
hipnotizou. Essa paixão mal resolvida por O regime militar dava sinais de que não
Lígia me empurrou um pouco para a música seria tão eterno quanto foi o Império Romano.
e para a boemia. Uma vez embriagado, O General Figueiredo tomou posse dizendo
tive a audácia, por duas vezes, de querer que iria fazer deste país uma democracia e
fazer uma serenata na casa dela, quando o afirmou: "Quemfor contraa abertura,eu prendo
relógio já passava das duas da madrugada. e arrebento!".E diante de uma jornalista,
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PedroSérgiodos Santos Maraçu.não tem remorso

daquelas que envergonham a categoria, deu a Numa dessas manifestações, fui


seguinte entrevista: com Vicentão e outros amigos. Eles, para
protestarem, e eu, a trabalho. Eu deveria
- General,é verdadeque o senhor gosta
fazer uma matéria sobre o evento, os políticos
muito de cavalos?
e seus discursos. A programação indicava que
O General ol.hou de cima abaixo para a viria gente de Brasília e políticos de vários
jornalista, que trajava um vestido lilás acima Estados.
do joelho, e disparou:
O povo se aglomerou em volta do
- E de éguatambém! palanque e o foguetório tomava conta do céu.
.~ssim vivíamos a luta pela Anistia, que Aquele cheiro de espetinho assado e os gritos
mobilizou pessoas e grupos diferenciados por de "olhaa águagelada",na boca dos ambulantes,
todo o país. Advogados, políticos, artistas, davam o tempero exato ao acontecimento.
professores universitários, gente de sindicato Os velhos e já conhecidos agentes das forças
jornalistas e outros tantos faziam comícios' de repressão policial ficavam por ali, tão
debates e agitação, ganhando simpati~ disfarçados e imperceptíveis quanto turistas
popular. Havia um cheiro de esperança europeus e japoneses em ensaio de carnaval
naqueles ares ... na quadra da Portela.
De longe vinham os gritos de quem Embora concordando com os protestos
esperava aflitamente pela Anistia. A imagem do povo, eu sempre estava em passeatas e
dos exilados era uma espécie de força moral manifestações com um colete da imprensa
~ara todos que saíam às ruas clamando por para evitar o máximo possível o confronto
liberdade e democracia. O próprio Vicentão com os militares que, volta e meia, acabavam
passou a frequentar passeatas e protestos com a festa na base do gás lacrimogêneo e
p~la ~nistia, mesmo sendo advertido pela cassetete. Mas, naquele dia, naquele comício
direçao do 22 de Julho. Ele queria a volta do pela Anistia, eu não vi sinais de que ocorreria
seu irmão. repressão armada. Depois de muita música e

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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

discursos de artistas, começaram os discursos sabiam o que dizer ou fazer diante de um


dos políticos; coisa a que já me acostumara a discurso que, até proferido sem palavras, fazia
ouvir. tremer os quartéis, pois o olhar do orador era o
bastante para fuzilar as mentes perversas que
Contudo, quando um tal Senador de
faziam este país se dobrar aos interesses norte-
Alagoas começou a falar, eu parei, olhei para
americanos.
o palanque e tive' a impressão de um silêncio
total ao meu redor. Eu só tinha olhos e ouvidos Naquele dia, o Senador Teotônio Vilela
para o palanque. Na condição de jornalista, era a voz do Brasil das roças, do Brasil sertanejo
eu estava bem próximo. Mas, naquele como ele também era. Do Brasil urbano, do
momento, eu não era um jornalista, nem Brasil das ruas e das escolas. Do Brasil das
mesmo militante ou panfleteiro de alguma fábricas e sindicatos. Do Brasil de Igrejas e de
organização vermelha. Eu era tão somente Universidades.DoBrasildos pobres e dos presos.
um brasileiro; e escutava as palavras daquele Teotônio Vilela era, ele mesmo, a encarnação da
velho senador, emolduradas pelo sotaque síntese de um Brasil que estava acordando de
nordestino, de uma lucidez cristalina que eu um longo sono cheio de pesadelos.
nunca tinha visto na boca de qualquer outro. Teotônio, que de vaqueiro a usineiro
Com o dedo indicador apontando para o chegou à política nos partidos conservadores
alto, seus gestos eram como os de um maestro dos coronéis do latifúndio, deu sustentação ao
comandando aquela orquestra política regime militar estando filiado à velha ARENA.
numa sinfonia da democracia, onde o povo Mas Teotônio era um homem de convicções
começava a suspirar outra vez. Ele falava e o e, acima de tudo, honesto. A violência do
povo calava para escutar sua voz contundente, regime não conseguia ser acobertada por uma
suas palavras que batiam na ditadura como os imprensa que ora era censurada, ora comprada.
chicotes no lombo dos negros no pelourinho. A No Brasil e no estrangeiro as denúncias eram
ditadura também se calava diante dele porque, graves. Em São Paulo, o Cardeal Arns era a voz
no seu desavergonhamento, os militares não dos que sofriam.

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Tudo isso calou fundo na consciência falandodejustiça, daformaçãode sindicatos


daquele sertanejo de Alagoas, que começou a e de cooperativas,falandode sonhosde dias
peregrinar por todos os Estados. E num olhar melhores.Os generais,que não mandaram
quase evangélico para com os pobres, assumiu obrasde combateà seca , mandarampara
suas dores, somando-se à dor do câncer que Alagoase para todo canto do país a polícia,
viria a lhe consumir. Teotônio era quase uma o Exército,a Aeronáuticae a Marinha,para
reedição de Antônio Conselheiro, um Antônio combateressesjovens. Eu vi osjovens nos
Conselheiro da política, bradando sua voz pela presídiosde Alagoas.Eu vi essesjovens nas
causa da verdade, fazendo do microfone seu cadeiasde outrosEstadosdo Sul e do Norte
cajado, atacando os poderosos e arrastando do Brasil,vi a morte,o medo e a tortura no
multidões. Teotônio Vilela bradava pela paz, rostode cadaum deles.Precisamosmostrar
pela justiça e não havia ódio, vingança em issoaomundo.Omundoprecisaver queesses
seu olhar. Mais que suas palavras, seus gestos presospolíticos,essesque os generaisdizem
calavam fundo uma nação e seu discurso era que são inimigosdo Estado, não passamde
implacável: idealistase ansiososporjustiça social.É por
issoquenãotenhomedode gritarnoParaná,
- "...Euvenhode uma terraondeo chicote em SãoPaulo,no Mato Grosso,na Bahia,no
bate firme no lombo dos trabalhadores! Ceará,no Amazonas,nos quatro cantos do
Venhodas Alagoas,do sertãodo semiárido, Brasil,anistiajá! Anistiajá! Liberdadepara
da seca, da fome , da pobrezae da miséria todos!Liberdadee anistia!..."
do povo.Porali, por anos e anos e décadas
não chegoua mão do Estado,não chegaram O País fervilhava com a Anistia.
a terra e a água,não chegaramo feijão e a Os exilados voltavam, aeroportos eram
farinha, não chegaramo leite, a escola,o invadidos pelas lágrimas e pelos holofotes e
hospitale o emprego.Mas um dia, por ali flashes das câmeras. Vislumbrava-se, com a
chegaramaquelesjovens cheios de ideais, força moral de Teotônio Vilela, a proposta por
falando em organizar os trabalhadores, eleições diretas em todos os níveis, inclusive
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PedroSérgiodos Santos Maraçunão tem remorso

para presidente da república. O número de Eleito, e com inflamados discursos na


partidos políticos existentes, apenas dois, foi Câmara Municipal, fazia duras críticas ao
ampliado. Esquerda e direita criavam suas transporte coletivo;ao mesmo tempo, atendendo
agremiações, umas cheias de ideias, outras de aos empresários que já vinham escolados na
ideologias, outras/de demagogia e outras com malandragem com os sindicatos de São Paulo,
tudo isto junto ... vendia seu apoio ao aumento das passagens.
As eleições chegavam e candidatos de Toda a trama se dava na calada da noite
todos os grupos sociais se apresentavam. Não quando os empresários pediam apoio do'
foi minha surpresa a candidatura e eleição vereador para que influenciasse o sindicato na
para vereador do velho conhecido do curso deflagração da greve dos motoristas. Com os
de engenharia,Joseir Amarantes. ônibus parados, o quebra-quebra e o protesto
do povo e dos estudantes eram inevitáveis.
As eleições nos Diretórios Estudantis Assim,com o argumento de aumentar salários
foram uma boa escola para as fraudes, compra dos motoristas, os empresários recebiam
de votos e outras bandalheiras próprias da do prefeito autorização para o aumento do
política. Joseir Amarantes aprendeu muito preço das passagens, incluindo, é claro, em
bem tudo isso e até eleitores mortos ajudaram a todo o cálculo, o dinheiro que seria pago
elegê-lo vereador, batendo duro num discurso aos dirigentes sindicais vermelhistas e ao
esquerdista, ético e moralizador. Durante o combativo vereador. Dessa forma, a greve
dia, nos palanques, Joseir atacava as péssimas anual chegava ao fim, o povo tinha os ônibus
qualidades do transporte público; à noite, de volta e uns, um pouco mais ricos e felizes,
jantava com donos de empresas de ônibus em posavam de heróis da crise e de troco ganhavam
restaurantes de cardápio francês e ali recebia mais alguns eleitores. Assim,já se planejava a
polpudas contribuições para campanha. J oseir, greve do ano seguinte, calculando quanto cada
que tinha o apoio do Sindicato dos motoristas um iria ganhar; afinal, quem vende caviar,
e dos estudantes, era um líder em ascensão de champanhe francês e vinho alemão, também
um povo que clamava por melhorias. precisa ter bons clientes.

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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso
Estes segredos sindicais e da vereança No anoitecer do dia do casamento os
populista eram guardados a sete chaves nas colegas do Jornal chegaram a me dar um
redações dos jornais. Sabíamos como tudo convite da imprensa para ir com a equipe
era feito, mas, nijo só o 22 de Julho, como do 22 de Julho, fazer a cobertura do evento.
também os demais jornais tinham interesses Trouxeram o convite e a credencial à minha
em informar sobre as greves só pelo que era mesa, me rodeando com chacotas, me
apresentado nos palcos, nunca nos bastidores. oferecendo um rolo de papel higiênico para
Resolvi deixar de lado a politicagem enxugar o rio de lágrimas e Dona Isabel,
barata do cotidiano, quando a esquerda já copeira, com um copo de água com açúcar,
ensaiava adotar como cartilha a Revolução cantando: "encosta sua cabecinha no meu
dos Bichos, de George Orwell. Minhas ombro e chora ..."
preocupações agora se voltavam para a coluna A despeito das brincadeiras dos colegas,
social do Jornal. Para minha derrota moral e que bem sabiam do meu amor quase platônico
emocional, foi noticiado em grande estilo o por Lígia, eu realmente sofria com aquele
noivado de Lígia. O sortudo era um bagual casamento. Confesso que busquei por algum
qualquer, que com certeza não lhe tinha um tempo estar à altura para me aproximar de
terço do amor que eu lhe devotava. Não me uma moça como Lígia. Sua vida sofisticada,
importei se os amigos acharam que isto -era sua fineza e o requinte de seu cotidiano
mero ciúme ou dor de cotovelo sem soluçao. realmente estavam distantes da vida de um
A festa de casamento não tardou a peão de redação de jornal, oriundo de uma
ocorrer. Mais de quinhentos convidados da faculdade de filosofia e com raízes sertanejas.
alta sociedade foram brindar a felicidade dos Meu mundo cão de delegacias, passeatas
noivos no salão do Jóquei Clube. As famílias de protesto e corrupção de políticos, estava
Minatti e Brito Mendes estavam agora ligadas muito longe do céu estrelado daquela deusa.
com as bênçãos do padre, o amém do povo e o A coluna social noticiava o casamento,
meu eterno inconformismo. com duas páginas inteiras de fotografias de
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Mara não tem remorso
PedroSérgiodosSantos
A duras penas fui voltando à vida
engravatados e mulheres brilhantes co ormal e os colegas do 22 deJulho,entendendo
cabelo armado de laquê. Foi o evento soei: ·eu drama, numa solidariedade silenciosa
do ano e, e~, tomando consciência definitiva .. .·não tocaram mais no assunto. Minha
de que L1g1anunca me vira senão como um fidelidade a Lígia, que antes era canina, fora
ponto ~erdid? no mar do seu passado de definitivamente banida. Seguindo à risca
formaçao poliglota, mergulhei por dias na · os conselhos do Vicentão, busquei afogar
carraspana, c~egando a esperar na calçada a mágoa nos braços de outra, de outra e de
qu_eo bar abnsse suas portas para ouvir 0 outra. A vida continuou.
Tno Parada Dura, Milionário e José Rico
João ~ineiro e Marciano, enchendo a cara d; Fui destacado pelo Jornal para cobrir
cerv~a, mal me importando se estava gelada matérias policiais sobre a contravenção e
ounao. o crime nos bairros nobres da cidade. Eram
prostíbulos de luxo funcionando em ricas
Minha sorte era ser conhecido dos mansões, rinhas de briga de galo e bancas de
garçons, que também conheciam o pessoal do jogo viciando pessoas que ali perdiam tudo,
J orn~l. Quando eu caía de bêbado,já chamavam deixando a família na miséria.
alguem do 22deJulhoe me recolhiam deitado na
Além da conivência de policiais, que
car~oceria da caminhonete que transportava
de um lado e de outro engordavam seus
bobmas de papel para a gráfica.
bolsos, novamente me deparei com o braço
Vicentão esperou uma oportunidade do stalinismo nos bordéis e bancas de
de me ver sóbrio, embora abatido e com dor jogo. Joseir Amarantes e seus militantes
de cabeça, que já era uma constante, e me comunistas eram assíduos frequentadores de
fez ver que a realidade dos amores perdidos tais estabelecimentos.
não t:r~inava no fundo das garrafas. Caso Com a confiança de certos policiais
~ontrano, meu trabalho e minha vida iriam conquistada anteriormente, quando eu ainda
Junto com o mijo azedo da cerveja no ralo do cobria os crimes comuns nas delegacias,
banheiro do boteco.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

fiquei sabendo que o vereador Joseir não era os bicheiros e contraventores tinham no
somente frequentador, mas sócio das bancas comunista um bom defensor e tudo caminhava
de jogo e dos bordéis, alegando para os para sua candidatura a uma vaga de deputado
íntimos que precisava de uma fonte de renda Estadual.
para sua campanha e para financiar a luta Novamente vieram as eleições, a
pelo socialismo. ·
democracia começava a engatinhar e gente
Joseir recebeu cotas de participação de bem se misturava no mesmo balaio dos
nos negócios da contravenção para colaborar oportunistas, buscando um lugar no poder. A
com os sócios majoritários na diplomacia poluição visual das campanhas tomava conta
com as autoridades policiais. À custa de de cada quarteirão das cidades, de cada poste
distribuir gentilezas, presentes e "vale-puta" de estrada, de cada porteira de fazenda.
para deputados, senadores e delegados,
Joseir garantia certa tranquilidade para A esquerda atacava fantasiada de
os empreendimentos do vício. Bastava um moralista e a direita se apoiava na imagem
cartãozinho seu com assinatura no verso e de eficaz e competente, assumindo o velho
o político passaria a noite inteira com uma jargão de um político paulista: "Roubo, mas
prostituta, a título de cortesia da casa. 1aço..I"
e

Fizemos a matéria, fotografamos tudo, Na enxurrada dos eleitos, daqueles


documentamos, mas nada foi publicado. que mesmo ganhando saem arranhados e
Soube, à boca miúda, que Doutor João fedendo,Joseir Amarantes tomou posse como
Custódio recebera ameaças veladas, depois deputado estadual e agora, com seu discurso
expressas, de que algo poderia acontecer com social-trabalhista e sua prática mafiosa, já
seus netos, caso o 22 deJulho divulgasse uma fazia planos políticos para além da Capital.
linha sobre o assunto. A vereança passou a ser coisa do passado;
Joseir crescia politicamente, o povo, os empolgado estava mesmo era com a nova fase
estudantes o viam como um líder popular, de sua vida, com a deputança.

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PedroSérqíodosSantos
Maraçunão tem remorso
Assim, o homem tomou gosto pela A cada vez que eu voltava a Maraçu a
coisa, fez conchavo com meio mundo de
doce lembrança de meu avô me acompanhava
vereadores no interior do Estado, pagava e sua imagem ao meu lado estava tanto na
almoço em churrascaria cara para prefeitos cidade quanto na varanda da casa do Sítio
visitantes e, na sobremesa, mulheres em Mandi.
quengaral de luxo, na cortesia dos negócios
da contravenção. Na frequência das viagens a Maraçu,
percebi que o desenvolvime~to prometi~o e
Agora, como deputado estadual, o garantido por Doutor Altamir, de fato tmha
nome de comunista não lhe caía bem; achou chegado para ficar. O amianto era o ouro do
algo mais simpático que lhe facilitasse cerrado e o próprio Altamir, agora presidente
também a entrada em igrejas de bíblia e alto- da Câmara Municipal, era porta-voz dos
falante, pois microfone e púlpito são amigos empresários locais e estrangeiros.
inseparáveis de político ambicioso, perdoem-
me o pleonasmo. O povo pobre de Maraçu tomou encanto
pelo trabalho de carteira assinada oferecido
Designado pelo Jornal para cobrir pelas empresas de minas e de fabricação.
eventos políticos por todo o Estado, passei Falava-se por toda a cidade em salário pago
a visitar Maraçu com mais frequência. Pude no banco e em décimo terceiro, coisa que
estar com mais facilidades nos ternos braços peão de roça não incluía em sua rotina, de um
de minha mãe, sob o olhar carinhoso do trabalho nas lidas rurais que, até então, era
meu pai. Com a irmã já casada, vi sobrinhos quase de servidão ao dono da fazenda.
nascerem e crescerem correndo, como
O comércio local ganhou um aqueci-
eu corri, pelas poeirentas ruas de Maraçu
mento que não foi coisa passageira, a cidade
ou brincando com os animais na pequena
cresceu e o amianto cobrou sua fatura em
propriedade rural da família, o Sítio Mandi,
poucos anos de exploração. As fibras extrema-
que era quase uma reedição viva do ambiente
mente finas daquele mineral flutuavam no ar
criado por Monteiro Lobato em sua ficção.
feito pluma, feito as fibras da paineira quando
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Assim, o homem tomou gosto pela A cada vez que eu voltava a Maraçu a
coisa, fez conchavo com meio mundo de doce lembrança de meu avô me acompanhava
vereadores no interior do Estado, pagava e sua imagem ao meu lado estava tanto na
almoço em churra.scaria cara para prefeitos cidade quanto na varanda da casa do Sítio
visitantes e, na sobremesa, mulheres em Mandi.
quengaral de luxo, na cortesia dos negócios Na frequência das viagens a Maraçu,
da contravenção. percebi que o desenvolvimento prometido e
Agora, como deputado estadual, o garantido por Doutor Altamir, de fato tinha
nome de comunista não lhe caía bem; achou chegado para ficar. O amianto era o ouro do
algo mais simpático que lhe facilitasse cerrado e o próprio Altamir, agora presidente
também a entrada em igrejas de bíblia e alto- da Câmara Municipal, era porta-voz dos
falante, pois microfone e púlpito são amigos empresários locais e estrangeiros.
inseparáveis de político ambicioso, perdoem- O povo pobre de Maraçu tomou encanto
me o pleonasmo. pelo trabalho de carteira assinada oferecido
Designado pelo Jornal para cobrir pelas empresas de minas e de fabricação.
eventos políticos por todo o Estado, passei Falava-se por toda a cidade em salário pago
a visitar Maraçu com mais frequência. Pude no banco e em décimo terceiro, coisa que
estar com mais facilidades nos ternos braços peão de roça não incluía em sua rotina, de um
de minha mãe, sob o olhar carinhoso do trabalho nas lidas rurais que, até então, era
meu pai. Com a irmã já casada, vi sobrinhos quase de servidão ao dono da fazenda.
nascerem e crescerem correndo, como O comércio local ganhou um aqueci-
eu corri, pelas poeirentas ruas de Maraçu mento que não foi coisa passageira, a cidade
ou brincando com os animais na pequena cresceu e o amianto cobrou sua fatura em
propriedade rural da família, o Sítio Mandi, poucos anos de exploração. As fibras extrema-
que era quase uma reedição viva do ambiente mente finas daquele mineral flutuavam no ar
criado por Monteiro Lobato em sua ficção. feito pluma, feito as fibras da paineira quando
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

abre frutos no tempo certo. Aparentemente O prefeito de Maraçu e o vereador Altamir


inofensivas, as fibras eram largamente tragadas logo trocaram as estratégias de uma política
pela respiração dos trab~lhadores q_ue,de sol de saúde eficiente para o município, tudo sob a
a sol, lidavam com'o amianto na mmeradora batuta do Deputado Joseir Amarantes, que agora
ou na fabricação d~ telhas e caixas d' água. buscava no Norte do Estado a ampliação de suas
bases eleitorais. E numa reunião com cervejada e
Seu Minerviho, amigo de meu pai, uísque escocês na casa de Altamir, o Deputado foi
aumentou e reformou sua casinha, comprou logoditando as regras para a felicidade de todos:
geladeira e televisão àcustadeumganhomelhor
na fábrica de telhas, onde era motorista. Mas - Ora,ora,SeuPrefeito,vou incluirsim no
não tardou, caiu doente, na respiração curta o orçamentodo próximoano,uma verba bem
fôlego lhe faltava e logo veio o diagnóstico: um polpudaparaserviçosdesaúdeno município
dos pulmões já era pedra pura, era o próprio de Maraçu,mas não me venha com essa
amianto em forma de pulmão. história de construirgrandes hospitaisno
Nesta toada, em cada rua o câncer se município,porqueistonão é lucrativo.
instalava em uma porta e o enfisema pulmonar - Mas deputado,tem gente com câncer
na outra. A pouca melhoria salarial das minas e pra todoladonessacidade.
das fábricas, que antes era sinal de qualidade
de vida, agora mal dava para pagar os remédios - Eu sei, senhorprefeito,eu sei, e vamos
e o carnê da funerária, tudo para a alegria de cuidarde todos,mas do nossojeito. O senhor
coveiros e farmacêuticos que iam garantindo faz assim:me mandaum projetoparaa saúde
seus empregos e ganho farto. expondoo problemadocâncere outrosmais,
e solicitoos recursosdeforma bemgenérica.
O câncer se alastrava como a peste na
Daí,eu vou aprovarrecursospara hospitais,
Europa medieval. As empresas do amianto
enfermarias,raioX e o que mais os médicos
silenciavam e era tudo muito natural. Se
pedirem;o senhorsabe que essas coisasde
um trabalhador morresse, três estavam de
hospitalsãomuito caras.
prontidão, a espera da vaga.

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- Sim,sei. O pioré que depoisa prefeitura - Bempensado,Deputado.


tem que dar manutençãopara tudo isso e
-Pois é, senhor Prefeito, com as suas
aindacontratarmédicose funcionários.
necessidades,os projetosda prefeiturae as
- Poisé, para·não ser precisotudo isso,a verbas do Estado,a gente vai longe.Esse
gente compra umas boas ambulânciasem amiantoé realmenteuma minade ouro.Com
São Pauloe ainda ganha uma comissãoda essadoenceiraatacandoo povona cidade,a
f ábrícae assimosenhornãodeixade atender gente vai ganharmuito dinheiro,pois nesse
seu eleitorado.Se o cabra ficar doente, o país, hospital mesmo só para rico, se for
senhorprontamentevai lhefazeruma visita, particular,ou do governopara os pobres,e
ou vai lá o seu secretáriode saúde e, vendo de preferêncialá na Capital.Ôh mocinha,
a precisão de socorro médico, empurra trazmaisum uísqueparamim quemeu copo
o vivente na ambulância e despacha o esvaziou...
desgraçadopara a Capital,pois lá eles dão
umjeito neleem qualquerhospital,e sefor da Nas cartas que eu recebia quinzenalmente
vontadede Deus,ele vai emboramais cedo. de meus pais, não faltava o obituário de
Em todo caso,a prefeituradeve alugaruma Maraçu. Eram velhos conhecidos, colegas
casa de apoio para servir de hospedagem de infância, vizinhos e gente da Igreja que
para os parentesdo doente.O senhor há de não conseguiam escapar de ter o pulmão
convirque é mais baratopara a prefeitura petrificado. Algumas vezes cheguei a visitar
compraras ambulânciase alugara casade alguns deles no hospital, aqui na Capital,
apoio,mantendopor lá um funcionáriopara no prelúdio da morte, que era deveras
marcarconsultase encaminharinternações, angustiante porque, não conseguindo mais
do que construire mantergrandeshospitais respirar, o roxo lhes tomava as faces e os
por aqui.Na cidademesmo,bastaum posto olhos lhes saltavam como se quisessem sair.
desaúdeparafazerpartos,darlombrígueiros Um velho amigo de meu pai, que sem
a meninoe receitarvacinas. qualquer parente por perto agonizava na
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

Santa Casa de Misericórdia, segurou minha pagobemaosmeus empregadose nãosou de


mão enquanto inutilmente buscava o ar e, ficarfiscalizandomatériadejornalista,ainda
num esforço hercúleo, me pediu que quando mais que a censuraafrouxouas pernascom
morresse não deixasse ele ser enterrado em essa tal abertura política.Mas essas duas
qualquer canto, mas que seu corpo fosse matérias que o senhor escreveupoderiam
levado para Maraçu. Eu olhava a agonia custarcaroaoJornalporquequaseperdemos
daquele homem e sua bondade ingênua de anunciantesde peso,cuja publicidadedeles
ainda querer retornar, mesmo depois de também paga seu salário...Olha,eu tenho
morto, à terra que lhe tirou o fôlego. respeitadomuito seu trabalhoe sei que há
Resolvi colocar a boca no trombone e anosvocêdemonstrouserum bomjornalista,
fazer do Jornal uma tribuna contra o amianto. mas agoranós vamos parar com isso:você
Mesmo sem grandes conhecimentos técnicos não escrevemais sobre amianto e eu não
escrevi duas matérias com severas críticas às publicomais.
empresas mineradoras e fabricantes, o que Saí dali com a boca amarga pelos
me rendeu um convite à sala do Doutor João argumentos que não pude nem ao menos
Custódio: expor; me vi o próprio Pilatos que lavava
as mãos diante de tanta gente que,
-Poismuito bem,o senhoragorapassoua inocentemente, morreria em Maraçu.
entendertambémde indústriae mineração?
Eu achei que havia designadoo senhor só No mundo do jornalismo a gente ganha
parafazer coberturade eventospolíticosna pouco, mas vive grandes emoções. As duas
Capitale no interiordo Estadoe nãoparase reportagens que fiz sobre o câncer e o amianto
meter em assuntosde economia! não foram em vão. Cinco meses depois fui
procurado por um importante jornal de São
- Maseu queriaapenas... Paulo, que tomou conhecimento do meu
- Osenhornãoquerianada,porqueaquino trabalho a partir de uma instituição europeia
Jornalquem quersou eu. O senhorsabeque que trabalhava em prol do meio ambiente.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

A tal Organização Ambiental Planeta já mais que os textos contundentes produzidos


vinha processando as fábricas de amianto na pelos colegas jornalistas. As fotografias
Europa e observava atentamente a atuação viajaram por todo o mundo e pessoas de
delas em países mais pobres. Passei a fornecer todas as partes tomaram conhecimento de
aos colegas do jornal de São Paulo todo 0 que Maraçu existia, e existia sob o chicote
material disponível sobre a exploração e as do amianto e das fábricas estrangeiras, que
fábricas de amianto em Maraçu. lentamente assassinavam aquela gente.
Dois meses após o primeiro contato com
os jornalistas de São Paulo, voltei a Maraçu
ciceroneando uma equipe de dois jornalistas,
um de São Paulo e outro de Roma, três
membros da Organização Ambiental Planeta
dois franceses e um italiano. Fomos às mina~
de amianto e às fábricas e a recepção não foi
das melhores. Ao perceberem as máquinas
fotográficas, os seguranças nos mandaram
sair do local, sob o argumento de que ali
era uma propriedade privada. Apesar das
dificuldades, várias fotos foram feitas.
Visitamos pessoas doentes, familiares
de mortos e gente que esperava a morte nos
hospitais da Capital e na tal casa de apoio de
Maraçu. Com muita precisão, as lentes das
máquinas fotográficas captaram os olhos e a
dor dos moribundos do amianto, das viúvas
e órfãos do amianto. Essas imagens falaram
157
156
Capítulo IV
Das tripas ao coração

"Dentro de mim há dois cachorros:


um deles é cruel e mau; o outro é
muito bom. Os dois estão sempre
brigando. O que ganha a briga
é aquele que eu alimento mais
freqüentemente."

(PROVÉRBIO DOS ÍNDIOS NORTE-AMERICANOS )


esolvi tirar uns dias de férias. Passaria

R uns três dias pescando lambaris no Rio


das Antas e ficaria dois dias em Santana
matando a saudade dos velhos amigos.
Passei uma manhã inteira na pensão do
Seu Barini, almocei por lá e não faltou o bom
chimarrão. Colocamos a conversa em dia e ele
elogiou minhas reportagens no 22 deJulho;era
na verdade um amigo generoso.
À tarde fui ao escritório do Doutor
Paulo. Ele não tinha audiências nem clientes
marcados naquele dia e a conversa se
prolongou até o entardecer. Fui convidado
para jantar em sua casa e pude rever o resto
da família. Não faltou o convite para pernoitar
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

ali, no mesmo quarto em que morei naqueles Frei Valeriano me acompanhou até o
anos do colégio. A conversa se estendeu e refeitório e passamos pelo claustro e pela capela
fomos dormir após a meia-noite. do convento, que exalavam um silêncio que
enchia a alma. Asflores e arbustos bem cuidados
Na manhã seguinte, tomei um café
no jardim traziam borboletas e passarinhos
com pão de queijo de fazer inveja a qualquer
que certamente alegravam a imagem de
cozinha mineira. Agradeci a hospedagem e o
São Francisco ali plantada. O sino já tocava
Doutor Paulo me deu uma carona, mais uma
chamando todos à refeição e dos corredores
vez, até a porta do Colégio Santo Antônio,
e da capela saíam os frades, uns em trajes
onde eu voltava também para rever os velhos
civis e outros no hábito marrom com o capuz
amigos franciscanos.
e o rosário que pendia do cordão amarrado à
Fuirecebido pelo Frei Valeriano na direção cintura. Todos se colocaram de pé ao redor das
da escola. Conversamos animadamente sobre mesas, aguardando que o frade guardião fizesse
os anos que ali estudei e sobre os colegas de a oração de bênção dos alimentos.
turma que, esparramados por esse mundão, O silêncio tomou conta do ambiente. O
estavam cada qual na sua profissão. Tive frade fez uma breve leitura de um texto bíblico
notícias de colegas na promotoria, uns e a oração. Logo em seguida, animadamente
médicos e outros já em altas patentes iniciamos o almoço. O refeitório era grande
militares. Umas professoras e outras casadas, e havia sete mesas com capacidade para
cheias de filhos. seis pessoas em cada. Ao todo, ocupávamos
Frei Valeriano me convidou para almoçar três mesas. Em uma das mesas ficavam os
no convento onde, além dos cinco padres que alimentos nas bandejas e cada um poderia
trabalhavam no colégio, estavam residindo, se servir como quisesse. Nas outras duas nós
havia dois meses, sete frades recém-saídos do almoçávamos.
noviciado, que se preparavam para os estudos Na mesa em que me sentei estavam o
superiores visando à ordenação sacerdotal. Frei Valeriano e os demais que trabalhavam

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PedroSérgiodosSantos Maraçu.não tem remorso

no colégio; na outra, ficaram os frades recém- o tal Sargento Jurandir, o Jura-Meningite, o


chegados do noviciado. torturador de Conceiçãodo Araguaia.
Comecei a almpçar e meus olhos corriam O almoço terminou e me apoiei na
pelo refeitório enquanto conversava com os cadeira, de pé, esperando a oração final. Falei
frades as amenidades do futebol e o elogio discretamente ao ouvido de Frei Valeriano
da massa e do bom vinho servidos. Por um que eu queria me confessar e ele prontamente
instante fixei os olhos no frade que, de hábito, me levou a uma pequena sala anexa à capela.
se sentava na extremidade da outra mesa. Sentando-se numa poltrona e colocando sua
Apesar de uma barba cheia que já se alongava estola, fez o sinal da cruz:
uns três centímetros abaixo do queixo, eu
busquei na memória aquele rosto. Eu tinha na - Em nome do Pai,do Filhoe do Espírito
mente uma quantidade enorme de rostos que Santo.Poisnão,meu filho,quepecadostem?
a atividade de jornalista me obrigava. - Frei, me perdoe, eu não queria me
confessar,mas,nervosocomoestou,foi o que
Engasguei, quase fiquei sem ar com um
me veio à cabeça,diante dos outrosfrades,
pedaço de tomate na minha garganta. Engasguei
para ter uma conversareservadae sigilosa
como quem vê satanás na esquina da rua de casa. com o senhor.Querialhe explicaro motivo
Engasguei como se todo o estômago voltasse à peloqualeu me engasgueiduranteo almoço.
boca numa mistura de choque e colapso.
- Sim,meu filho,podedizer.
Frei Juvêncio, meu vizinho de mesa,
cuidou de me acudir. Ele se levantou, bateu - Frei,eu reconheciaquelefrade de barba
nas minhas costas e quando recuperei o fôlego, que estavana ponta da outra mesa;aquele
frade é o SargentoJurandir,um sargento
me deu um pouco de água gelada. Passado o
torturador que prendia, batia e matava
constrangimento, terminei aquela refeição,
gente lá em Conceiçãodo Araguaia.Lá ele é
falando o mínimo possível. Eu reconheci aquele conhecidocomoJurandirMeningite,porque
rosto do frade atrás da barba, eu não tinha quandonão mata, aleija.Eu tenho certeza,
dúvida,não era o Capeta,mas era o seu secretário, Frei,é elemesmo.Oqueeleestáfazendoaqui?
164 165
PedroSérgiodos Santos Maraçu.não tem remorso

- Calma, meu filho. Entendo a sua que um dos milagresde São Franciscofoi
preocupação.Vou esclareceras coisas.Você pacificaro lobo de Gúbio,pois o animal
está certo;FreiJurandiré mesmoo Sargento assustava a todos em sua região e São
Jurandir,ou melhor,erao SargentoJurandir. Francisco,tocado pelo Espíritode Deus e
Agoraele é mesmo o FreiJurandir.Há três comgrandeamorpelascriaturas,conseguiu
anos ele procurounossa paróquiaem São estabelecera pazentreopovoe o lobo.Embora
João do Araguaia. Buscava afl.itamente seja esta uma históriamedievalque está no
uma orientaçãoespirituale FreiLeão,com limite entre o real e o lendário,no milagre
a mansidãoe santidadeque você conhece, narradona biografiado nossosanto o que
o acolheue iniciou uma caminhadade fé, maisimportaé a liçãodosfatos:deum ladoum
acompanhandoa conversãodesteirmão.No povoassustado,temerosoe ao mesmotempo
anoseguinte,elequisse tomarfradee entrou comraivadoanimal,e de outro,uma criatura
no postulantadode nossa ordem, cumpriu violenta,mas que por desconhecera paz de
aqueleano de experiênciacom humildade, Deus,usavaa violênciaparasaciarsuafome.
esforço nos estudos e busca de Deus na Com a intervençãodivina, nem a criatura
oração.Depois,comomanda a regra,elefoi deu continuidadeà sua violência,nem o povo
para o noviciado,quandorecebeuo hábitoe partiuparaa vingançae alimentouo animal
no final do anoprofessouos votosreligiosos, até a sua morte.
assumindocadanó daquelecordão:pobreza, - Frei, a história de São Franciscoe o
obediênciae castidade. loboé realmentebonita,mas para esse lobo,
- Mas Frei,comoé que ele deixouaquela quemfoi o SãoFranciscoque fez o milagre?
vida de violência,de torturador,o homem Achoque o senhornão entendeuo tamanho
era um verdadeiroterror,temidoem toda a do estragoque esse homem causoupor aí...
região? Comoessehomemveiopararaqui?
- Não sei te falar exatamentecomo tudo Novamente o frade, com toda a paciência
aconteceu,mas achoque você deveriasaber que lhe era própria, voltou a me falar da obra

166 167
PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

Divina, daquilo que o Espírito Santo é capaz O frade resumiu toda a explicação numa
de fazer na vida das pessoas, que vai além frase de São Paulo e eu saí dali, daquelas quatro
da nossa razão; e eu ali, escutava tudo, ainda paredes, ruminando a cena do refeitório e as
anestesiado pelo choque do engasgamento últimas palavras do frade sobre o assunto ...
do almoço, com o espanto de ter encontrado
ali, num convento, vestido de hábito - Meufilho,SãoPaulo,no quintocapítulo
franciscano e rezando com mansidão, o Jura da sua Carta aos Romanos,disse: "Onde
Meningite, o próprio Demônio das matas do abundou o pecado,superabundoua graça".
Araguaia. Aquilo era, no mínimo, um fato Saímos da sala, andei um pouco com
que colocaria qualquer um que se achasse o frade no átrio do convento e voltamos ao
normal a questionar sua própria lucidez. O colégio. Ali encontrei velhos funcionários da
frade explicava, explicava, falava e eu ali, escola, cumprimentei a todos e, deixando a
totalmente abestalhado diante do inesperado. formalidade do reencontro, ganhei as ruas
- Tudobem,Frei,entendoissoqueosenhor de Santana, ficando para trás o portão da
tá falando de conversão,mas esse homem escola, anexa ao convento, com uma pancada
é o pior que eu já vi no ramo da maldade, na alma, a ruminação dos fatos na mente e as
o senhornão sabe o quejá escrevisobreele palavras do frade emoldurando tudo: "onde
no 22 de Julho. Na verdade,quandofomos abundouo pecado,superabundoua graça"...
a Conceiçãodo Araguaiafazer as matérias Eu andava pelas calçadas com um
que os generaismandaram,nem chegamos estranhamento tão grande, que a surpresa
a encontrá-lo,pois ele estava pelos matos com tudo aquilo me apertava o estômago.
caçandogente comoquem caçaum animal. Meu pensamento ia e voltava às cenas dos
Em Conceiçãoeu vi só as consequências presos torturados em Conceição do Araguaia
de seus atos, eu vi terror nos olhos e nos e ao refeitório do convento. Como aquilo
corpos dos presos que sobreviveram ao era possível? Será que não haveria ali algum
interrogatório,o senhornãoentende... engano, eram de fato a mesma pessoa?

168 169
PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

Fui do convento à casa do Seu Joel Eu ri um riso amarelo e julguei que não
Barini onde eu havia deixado parte da minha era o caso de espichar o assunto do frade
bagagem e tão atordoado eu estava, que nem ou do sargento, naquelas circunstâncias,
saberia dizer por quais ruas exatamente eu com ele; não que ele não fosse de confiança
passei. Cheguei à pensão de Seu Joel e ele ou merecedor de minha total atenção, mas
estava cuidando de outros afazeres, de tal eu mesmo não tinha muita explicação para
modo que eu não quis interrompê-lo. Pedi aquela situação, então respondi:
um copo de água gelada à moça que estava
na recepção e me sentei numa das cadeiras -Não.Não,SeuJoel...Osoltá muitoquente
da varanda, daquelas cadeiras com fios de e vim meioapressadopelasruas,só isso.
plástico e encosto mais reclinado e ali eu - Tu ainda estás tomando chimarrão,
descansava um pouco o corpo da caminhada aindausas a cuiae a bombaque te dei?
no sol alto do dia, e a água gelada me ajudava - Semprequetenhoum tempinhoeu puxo
a por o juízo em ordem. Permaneci no silêncio
uma erva,SeuJoel.
de uma meia hora revendo todas as imagens e
tentando montar um quebra-cabeça com um - Bueno,então vou te dar aqui uns dois
cenário que tivesse lógica. Aliás, lógica é algo quilosde mate;é erva nativa da boa,moída
que sempre procurei nos momentos de crise. grossa,que um compadretrouxepra mim lá
Lógica: Onde estaria a razão das coisas? Onde de Livramento.
estaria a explicação racional de tudo? ... - Mas, Seu Joel, não carece,eu me viro
Decidi voltar à Capital no próximo por lá...
ônibus. Procurei, então, SeuJoel e me despedi. - Deixede cerimônia,compadreLourenço
Na sua constante gentileza, me perguntou: trouxedoisfardosde trinta quiloscadaum;
- Perece que tu estás meio atordoado, tenho erva aqui para muito tempo e sei
é cansaço mesmo ou vistes um fantasma que por lá tu só encontra erva em boteco
por aí? de posto de gasolinaquando argum irmão

170 171
PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

caminhoneirotraz lá do sul para aproveitar que me dei conta da situação; e num sorriso
a cargae ganharum dinheirinho,e às vezes sem graça, com um pedido de desculpas,
já é uma erva mais velha, então abre tua paguei a viagem, ele zerou o taxímetro, bati
mala, colocae$ta aqui porque é uma erva a porta do carro depois de pegar a mala e
novinha. fui para a casa. Naquele resto de noite comi
I
Assim, saí de Santana na camaradagem umas frutas e não tomei o velho e bom
do amigo, com dois quilos de mate na mala e chimarrão, pois eu tinha por certo que, com
uma tonelada de imagens na cabeça. Eu ia ter tanta coisa fervendo no juízo, se eu tomasse a
que tomar muito mate, na meditação solitária erva-mate, não iria dormir nada e bem sabia
da companhia do chimarrão, que me assistia que as férias tinham acabado e no outro dia o
no segurar da barba, enquanto o pensamento trabalho no 22 deJulho estava acumulado. Ao
pegava a vagar entre o centro e o norte do contrário, abri uma garrafa de vinho italiano
país, num passado sangrento e num presente e fui ver se achava sono e uma explicação
cheio de mistérios. para aqueles fatos estranhos no fundo de
cada taça que eu bebia.
Cheguei ao anoitecer na Capital. Tomei
um táxi e rumei para casa. Não vi o curto tempo A lógica dos fatos era para mim a mais
da corrida do veículo pelas avenidas largas. imperiosa das forças que movem o mundo.
Tempos depois de formado e já profissional Por isso acho que Nelson Rodrigues usava de
do Jornal, eu continuava morando próximo à tamanha ironia quando afirmava: "se os fatos
Universidade. O táxi parou na portado edifício estão contra mim, pior para os fatos". Por isso
e meu olhar distante revelava a qualquer um eu sempre achava que mais importante que
o meu grau de distração; era como alguém os fatos, eram as suas explicações, preferen-
dormindo de olhos abertos. O taxista, depois cialmente numa racionalidade que beirava
de falar comigo sobre o preço da corrida e as portas da matemática ou, no mínimo, do
não obter resposta, tocou no meu ombro e me método cartesiano. Embora não tendo me
perguntou se eu estava me sentindo mal, ao dedicado à filosofia como profissão ou como
172 173
PedroSérqiodosSantos Maraçunão tem remorso

professor, a filosofia nunca me abandonou, essa prática na redação do Jornal e os anos


meu olhar para o mundo era sempre pela de aprendizagem me ajudaram a formar uma
lente da razão e volta e meia eu me socorria ideia do que ocorrera com aquele frade.
a Aristóteles, Plat~o, São Tomás, Descartes e
Kant, meus preferidos, sem contudo olvidar Imediatamente pensei em chamar
de gente como Espinosa e Hegel, ou Hussel. Vicentão e despejar toda a história, mas ele
era um ateu convicto. No seu ateísmo ele
Particularmente, Descartes era para mim
buscava uma ética humanista fundamentada
um gênio redentor, pois conseguira, séculos
em suas leituras socialistas. Vicentão não era
depois de sua morte, recuperar em mim a
militante político, mas era convicto de que
boa imagem da matemática que eu perdera
tudo está resolvido no plano do materialismo
nos anos de colégio. Aquele raciocínio
histórico-dialético e algo me dizia que aquilo
perfeito descrito em seu método chegava,
não era para ser compartilhado com ele,
inclusive, a orientar minha rotina de trabalho
pois, de certo, ele iria querer, de imedi_ato,
quando me embrenhava numa matéria mais
transformar a história do Sargento que virou
investigativa. Eu conseguia, com a ajuda do
frade num episódio de capa de jornal, sem
mestre francês, equacionar rapidamente os medir consequências para quem lesse ou para
dados coletados por mim e por estagiários quem fosse alvo da matéria.
e no prazo mais curto possível eu dava um
furo de reportagem, vencendo a corrida da De início, eu percebia que a situação não
informação e deixando os concorrentes com era exatamente coisa para jornal, porque para
a lanterna na mão procurando uma saída. mim, se sobrepondo a minha racionalidade
filosófica, ainda estava o mistério; o mistério
Essa colaboração que eu sempre recebi das coisas de Deus, que eu não ousava
da filosofia me deu emprego certo e bom questionar ou tratar de forma superficial
salário no 22 deJulho.Doutor Custódio já me ou leviana. A fé que minha mãe plantara,
tinha certa amizade e não queria perder meu mesmo que ingênua, ecoava em minha alma
trabalho para jornais maiores. Mas nem toda com a força do martelo na bigorna. A lógica
174 175
PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

aristotélica e a dialética hegeliana não eram - Doutor,é o seguinte:sei queo que eu vou
mais fortes que as raízes que eu tinha da pedir ao senhor não é algo muito normal,
minha fé, plantada por minha mãe, desde a principalmentepara quem acaboude tirar
infância. · algunsdiasdeférias.
Eu tinha mesmo por ideia que o mistério - Poisdiga...
daquela conversão não era coisa para uma - Bem, Doutor, é que eu estou aí com
explicação montada por escolas de filosofia uns problemasde ordem pessoal que me
ou por ideologias sociais; e respeitador das impedemde trabalharpelospróximosdias.
coisas do Senhor, eu não quis expor aquele Assim, como hoje é sexta-feira,eu gostaria
fenômeno ao mundo poeirento e, às vezes de pedir mais uns dez dias de férias. De
mofado, dos jornais. antemão,já sei que isto é um peso grande
Passei a semana trabalhando como se para o Jornal,mas para aliviar um pouco
o problema,eu nem faço questão de ser
não trabalhasse; fiz tudo como uma mera
remunerado,ou mesmo,se o senhorpreferir
formalidade. Escrevi notícias da política e
podeconsideraressesdiasapenascomodias
da polícia como se uma fosse tão somente
de falta ao trabalhoe determinaro cortedo
extensão da outra e tudo que era produzido
meu ponto,mas a questãocentral,Doutor,é
pelos dois estagiários da minha área, eu dava que realmenteeu não possotrabalhar;não
como certo. sei se o senhorme entende...
Depois de muito pensar, tomei uma - Vocêestá doente?
decisão: iria entrar de férias outra vez no
dia seguinte. Assim, às oito da manhã bati na - Não,senhor.
porta da sala do diretor do Jornal: - Estáacontecendoalgumacoisacomsua
- Com licença,Doutor Custódio, posso famlliaem Maraçu?
entrar? -Não,senhor,maseunãopossotrabalharnos
- Claro,sente-se.Poisnão...? próximosdias.Tenhoumascoisaspararesolver.

176 177
PedroSérgiodos Santos Maraçunão tem remorso

-Pelovisto,então,issoé coisacommulher. Respirei um pouco aliviado, voltei à


Vocêandouembuchandoalgumadessasque minha mesa e à minha Olivetti, deixei tudo
andam atrás de você aqui na redaçãodo organizado como o chefe mandou e fui para
Jornal? casa. Arrumei a bagagem novamente e fui para
- Não,senhor.É que eu precisomesmome a rodoviária. Eu iria voltar para Santana; antes,
ausentarpor motivospessoais. porém, pedi ao motorista do táxi que parasse
na catedral. Deixei a bagagem no carro e por
- Olhe,eu não vou me meter na sua vida alguns minutos entrei no silêncio da igreja e ali
particular;só perguntei tudo isso porque nem sei se rezei direito, mas coloquei a ida para
fiquei preocupado,afinal, você está aqui Santana nas mãos de Deus e Nossa Senhora.
há tantos anos e nunca me deu trabalho Eu não ia para Santana como jornalista, mas
foi sempre um bom empregadoe lhe tenho'
como quem buscava o Mistério, um Deus que
muita consideração. Eu não sei em que rolo
quanto mais a gente conhece, mais tem para
vocêse meteu,nem querosaber,mas se isso
conhecer.Um Deus cuja sabedoria não tem fim.
é tão importanteassim,deixesuas matérias
Acho que era assim que os gregos pensavam
organizadascom os estagiários,avise na
sobre o termo mistério: um mar sem fim, cujo
chefiade redaçãosobresua ausênciae nem
mergulho, por mais profundo que seja, nunca
carecepassar no departamentode pessoal,
alcança sua totalidade.
pois não vou cortar seu ponto; depois eu
mesmoaviso.Masvocêvai ficar me devendo Voltando a Santana, procurei novamente
essa;quandotiverumacoberturamaioremais a pensão de Seu Joel Barini e, evidentemente,
demoradaem outra cidade,não vá ficar por ele ficou surpreso com a minha volta, pois da
aí choramingando paraganhargratificaçãoe vez anterior, ele sabia que eu aproveitara uns
horas-extrascomosemprevocêsfazem! dias de férias para rever os amigos.
- Agradeço,Doutor Custódio.Agradeço - Mas,tchê,o quefazes aqui,tens alguma
muito e podecontarcomigo.Muitoobrigado. reportagemimportante para fazer nessas
Vousaindoparanãolhetomarmaiso tempo. bandas?
178 179
PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- Não,senhor. Após o almoço peguei um dedo de prosa


-Entãofostesdemitido
eviestescaçartrabalho? com SeuJoel na varanda, enquanto ele regava
a boa erva na cuia enfeitada com o escudo do
- Não,senhor.
Grêmio. Em menos de vinte minutos tomei o
- Então,já sei, estás desmanteladopor rumo do Convento Santo Antônio.
algumrabode saíadaquide Santana.
Ao tocar a campainha da entrada
- Não,senhor. principal, veio o frade guardião abrir a porta
-Poistchê,emboralhetenhaapreçodesde e lhe perguntei pelo diretor da escola, Frei
que tu erasgurí,um frangotemeiopíazíto,é V aleriano. Fui informado que ele tinha ido ao
muitoestranhoque tu voltesparacáse nãoé centro da cidade buscar a correspondência
por nada disso.Mas,em todo caso,a pensão na caixa postal dos Correios e não demoraria
está às ordens, vou mandar arrumar um em seu retorno. O frade me ofereceu lugar de
quartopra ti, fique o quantoquiser. assento e uma água gelada e por ali fiquei por
- Agradeço,SeuJoel. Vou ficar aqui uns uns trinta minutos na espera pelo Frade.
dez diase se precisarlhepagoadiantado. Assim como Seu Joel, Frei V aleriano
- Ora,gurí, assim tu me ofendes.Larga ficou surpreso ao me ver novamente por ali,
disso,pega aí o rumo do teu canto, durma mas já dispensando o guardião que me fazia
tranquiloe fique à vontade. sala, Frei V aleriano, em sua perspicácia,
- Maisuma vez, muito obrigado,SeuJoel. indagou:
- O faro dejornalista te trouxe de volta
Larguei por ali a bagagem e almocei na porcausada conversãode FreiJurandír?
pensão. Comi um arroz com pequi, galinha
caipira e quiabo; tudo isso um santo remédio - Maisou menos.Osenhorquaseacertou.
para a memória, notadamente o pequi, que - Como quase? Existe quase nesta
nos faz lembrar dele por dias seguidos. história?
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Maraçunão tem remorso
PedroSérgiodosSantos

Imediatamente retruquei: - Entãovocê quer conhecere conversar


como FreiJurandir?
- Frei,eu não sou padre, nem levo vida
santa como voc~s,mas bem sei que certas - Sim, só não sei se ele vai quererfalar
coisasqueestãona contadomistériodeDeus, comigosobre essa vida criminosaque ele
a gente não saijogandopor aí em qualquer levava...
folha dejornal,que depoisde lida,vai parao - Acho que se for para falar só da vida
lixo,ou vira forro em gaiolade passarinho, criminosaele não vai falar mesmo, e nem
ou coisa pior, se pendurada em porta de eu, como superior dele, pediria isso a ele.
banheirode boteco, certamente lugar em Mas,se vocêquisersabertambémsobresua
que o senhor nunca entrou. Confessoque conversão,achoque elevai concordar.
vim pelofaro dejornalista e curiosidadede
- Claro,Frei! Isso, isso mesmo! Se ele
quem ganhou a vida até aqui escrevendoa
resolverfalar comigo,quero saber tudo de
históriadosoutros,mas tenho quasecerteza
sua vida,da vida do mundocãoaté essavida
de que a história do FreiJurandir merece
do convento.
molduramais nobre que as páginasde um
diáriopolicialescoe desportivo.Porém,mais - Certo.Vou ver isso com ele. Quemsabe
do que a curiosidade jornalística,fui tocado amanhã vocês possam ter essa conversa.
poruma certacuriosidadecristã,se é que ela Mas,me diga,o que vai fazer depoisque ele
existe, mas sempre acrediteinos exemplos; lhe contartudo?Não vai pôr nojornal toda
nos ruins que deixam marcas daquiloque a história,vai?
nunca se deve fazer, e nos bons, que nos - Não. Por certo que não! Quemsabe a
motivam a uma conversãocotidiana.Acho gente escreveum livro?Quemsabeo senhor
que esseFrei]urandir,mesmonoseu silêncio me ajudacomum textode um convertido,que
atual,tem muitoparalevarao mundo,como um diapoderáserútilparaedificaralguém...?
aquelescegosque gritavampor luz, quando
Jesuspassavapor eles. - Mepareceuma boaideia.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

- Seráque eu poderiausar um gravador mente as cenas de um barco numa tormenta,


durante a conversa,caso eu não consiga com gente gritando e alguém com um chicote
anotartudo? na mão a espancar as pessoas. A cena mostrava
- A princípionão vejo problemas.Porém,
o grande barco prestes a afundar e o indivíduo
mesmosendoo superior,vou conversarcom que segurava o chicote passando a controlar a
ele para que vocês possam ter um diálogo embarcação e saindo da tormenta, chegando
maistranquilo.Hojeelefoi comoutrosfrades a terra firme. Acordei com o despertador, que
ao leprosário;lá temos algumasatividades colocava ponto final ao sonho confuso e, me
recreativascom os internos.Volte amanhã aprontando rapidamente, tomei uma ligeira
às oito,passeo dia conosco,almoceporaqui. refeição e fui para o convento Santo Antônio,
chegando pontualmente às oito da manhã.
Agradeci imensamente a confiança que Frei Valeriano me recebeu na portaria
Frei Valeriano depositou em mim. Voltei à e, de forma gentil, me conduziu à sala do
pensão de Seu Joel e por ali passei o dia em capítulo, onde os frades costumeiramente
certa ansiedade. Comprei pilhas novas para se reuniam. Frei Valeriano me disse que
o gravador e uma meia dúzia de fitas k7. conversara com FreiJurandir sobre o assunto
Comprei filmes para a máquina fotográfica, e que ele aceitara falar, mas não gostaria
na esperança de ter algum retrato daquele realmente de publicações em jornal, no que eu
momento e, no fim do dia, voltei a ficar sentado prontamente concordei. Com alguns minutos
na varanda da velha pensão, conversando de atraso, por estar nos afazeres domésticos
amenidades com Seu Joel e tomando um dando alimento aos dois cães e às galinhas
chimarrão, à espera do jantar. do quintal, Frei Jurandir chegou à sala do
Com certa dificuldade, consegui dormir. capítulo com um ar tranquilo, hábito marrom
Não sei bem se naquela noite eu tive sonhos ou com mangas arregaçadas e o cordão branco
pesadelos, ou tudo junto. Na vaga recordação com os três nós na simbologia dos votos que
daquela manhã, ficaram registradas em minha fizera: obediência, castidade e pobreza.

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PedroSérgiodosSantos
Maraçunãotem remorso
Fomos apresentados um ao outro e Frei
tudo serácriadoe renovareisa face da terra.
valeriano generosamente disse ao frade que Ó Deus,que instruísteso coraçãode Vossos
eu tinha sido um bom aluno no Colégio Santo
fiéis com a luz do EspíritoSanto,fazei com
Antônio. Éclaro que ele não se recordava do meu
que apreciemosretamente todas as coisas
desempenho em ma,temática. Por fim, abriu as
segundoo mesmoEspíritoe gozemossempre
janelas da sala capitular e nos deixou a sós.
de sua consolação.Amém. Glóriaao Pai,
Tirei da minha pasta o gravador, peguei ao Filhoe ao EspíritoSanto. Comoera no
um bloco de papel e caneta e, quando perguntei princípio,agorae sempre.Amém.
se poderíamos gravar nossa conversa, Frei
Jurandir não se opôs, mas retrucou: Finalizada a oração, Freijurandir puxou
a conversa:
- Já que vamos ter uma longaconversa,
vamos rezar um pouco,juntos, para que - Poismuito bem, estou à sua disposição,
nossaspalavrasnão sejam em vão. Vamos embora não sei bem em que uma alma
pedira luz de Deus. pecadoracomoa minhapoderialheser útil.
Ele parou por uns instantes com o - Vejoque o senhoré um grandeartesão,
trabalho manual que iniciara, com objetos de
tem grandehabilidadecomas mãos.
uma caixa de madeira junto a mesa, e assim, - Não sou tudo isso, não; apenas me
rezamos , os dois, a oração do Espírito Santo, esforçopara fazer estes terçosde sementes
que há tempos eu não recitava, mas suas de açaí, pois vão ajudar na missão dos
palavras me vieram de imediato à mente e frades. Quandoeles saem em pregaçãopor
eu acompanhei o frade, que rezava de forma algumacidade,ensinamas pessoasa rezare
bastante contrita: distribuemestesterços.
- Vinde EspíritoSanto, encheio coração - Masestascontassãode açaí?
de Vossosfiéis e acendei neles o fogo do - Sim,o açaí,láno Pará,é o leitedopobre;é
Vossoamor.EnviaiSenhoro Vossoespíritoe nutritivo,alimentaas criançase atualmente
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PedroSérqiodosSantos
Maraçunão tem remorso
Fomos apresentados um ao outro e Frei tudo serácriadoe renovareisa face da terra.
valeriano generosamente disse ao frade que Ó Deus,que instruísteso coraçãode Vossos
eu tinha sido um bom aluno no Colégio Santo fiéis com a luz do EspíritoSanto,fazei com
Antônio. É claro que ele não se recordava do meu que apreciemosretamente todas as coisas
desempenho em ma,temática. Por fim, abriu as segundoo mesmoEspíritoe gozemossempre
janelas da sala capitular e nos deixou a sós. de sua consolação.Amém. Glóriaao Pai,
Tirei da minha pasta o gravador, peguei ao Filho e ao EspíritoSanto. Comoera no
um bloco de papel e caneta e, quando perguntei princípio,agorae sempre.Amém.
se poderíamos gravar nossa conversa, Frei
Jurandir não se opôs, mas retrucou: Finalizada a oração, Freijurandir puxou
a conversa:
- Já que vamos ter uma longaconversa,
vamos rezar um pouco,juntos, para que - Poismuito bem, estou à sua disposição,
nossaspalavrasnão sejam em vão. Vamos embora não sei bem em que uma alma
pedira luz de Deus. pecadoracomoa minha poderialheser útil.

Ele parou por uns instantes com o - Vejoque o senhoré um grandeartesão,


tem grandehabilidadecom as mãos.
trabalho manual que iniciara, com objetos de
uma caixa de madeira junto a mesa, e assim, - Não sou tudo isso, não; apenas me
rezamos , os dois, a oração do Espírito Santo, esforçopara fazer estes terçosde sementes
que há tempos eu não recitava, mas suas de açaí, pois vão qjudar na missão dos
palavras me vieram de imediato à mente e frades. Quandoeles saem em pregaçãopor
eu acompanhei o frade, que rezava de forma algumacidade,ensinamas pessoasa rezare
bastante contrita: distribuemestesterços.
- Vinde EspíritoSanto, enchei o coração - Masestascontassãode açaí?
de Vossosfiéis e acendei neles o fogo do - Sim,o açaí,lá no Pará,é o leitedopobre;é
Vossoamor.EnviaiSenhoro Vossoespíritoe nutritivo,alimentaas criançase atualmente
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ajudana rendadasfamz1ias. Depoisdo desca- - Na verdade eu escrevi uma parte da


roçamento,saindoa polpada fruta, aprovei- matéria.Orestofoi escritoporoutroscolegas
tamosas sementesparafabricaros terços;elas do Jornal.Mas eu estive em Conceiçãodo
são secadas,pintadase depoisfuradasuma a Araguaia;penaquenãofoipossívelencontrar
uma.O açaíé umafrutaabençoada; alimentao comsenhorpor lá,parauma entrevista.
corpoe, comsuassementes,o terçoalimentaa - De fato, eu tinha sido enviado pelo
alma.Écomose,defato,a palavradeDeusfosse comandantepara uma missãona Serradas
essassementesque vão nascer,crescere dar
Andorinhas.
frutosnavidadaspessoas.
- Ondeo senhornasceu?
- É,osenhor,peloquevejo,nãoé só um ágil
artesão;é um sábio,que contemplao mundo - Nasciem Araguacema.
em cada detalhee nele semprevê a mão de - Quala sua idade?
Deus... O senhorsabeque soujornalista,não
sabe? - Tenhotrinta e oitoanos.
- Sei,sim. FreiValerianome falou muito - Osenhorconviveucomseuspaisquando
bem do senhor. era criança?O senhortem irmãos?
- O senhor se importa de falar comigo - Sim, vivi com meu pai e minha mãe até
sobresua vida,seu passado? os dezesseisanose tenho quatroirmãos:três
homense uma mulher, hojetodoscasadose
- Não, até porque sei que vocêjá sabe
moramem Araguaína.
muita coisa.
- SuafamlÍiaera religiosa?Eracatólica?
- O senhor sabe quehá alguns anos fiz
uma matéria sobre o senhor, quando o - Sim. Meu pai era católico,mas pouco
senhorserviaem ConceiçãodoAraguaia? rezavae quase não ia à igreja,mas gostava
- Não sabia que era você quem tinha da festa de São Sebastião,era devoto dele.
escritoaquilo,mas, na épocaeu li ojornal. Minha mãe é católica,rezava o terço todos

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

os dias em casa e levava os filhos para a cursoe quandocompleteium anona Polícia,


catequesee paraa missa. fui promovidoa TerceiroSargento.
- Até que sé,:íeestudou quando estava - O senhorentãoparoude estudar?
comseuspais? - Quandofui para PortoNacionalpassar
- Fizaté o primeiroanocientífico.Quando uns tempos,aproveitei,fiz provade Supletivo
eu estavacom quinzeanos,fui trabalharde e conseguio diplomado Científico.
balconistano armazémde um tio meu, o tio - E como o senhorfoi parar no Exército
Erasmo.Comdezesseteme alisteie,já perto outravez, lá em Conceição?
de inteiraros dezoito,fui serviraoExército.
- Quando eu estava ainda em Porto
- Ondeo senhorserviu? Nacional,me encontreicomum grupamento
- No Quinto Batalhão de Infantaria e da Terceira Brigada de Infantaria, com
Selva,em Belémdo Pará.Fiqueipor lá um vários caminhões cheios de soldados e
ano, tirei meu tempo, saí com diploma de muitos veículoscom praçase oficiaisque se
méritoe volteiparacasa. deslocavampara Conceiçãodo Araguaia.Eu
estavanum postopolicialpróximoà Belém-
- Voltoua trabalharcomo tio? Brasz1iaquando um Capitão do Exército
- Não,no mesmomês que cheguei,abriua me viu e me chamou.Eu havia servidono
inscriçãoda PolíciaMilitar,fiz umas provas quartel quandoele ainda era tenente. Veio
e entrei. Eram provasfáceis,para escrever me cumprimentar,me perguntarpelavida e
poucacoisaefazerumascontas.Maispesado elogiouofato deeu ter me tomadomilitar.Ele
erao testefísico,mas eu tive bompreparono sesentou,pediuuma águafria e conversamos
exército.Depoisde seismesesna polícia,um um pouco. Me contou da missão que eles
tenente viu meus documentosdo exército, tinhamnocombateaoscomunistasna região
o diplomade mérito e me mandou fazer o do Araguaiae que precisavamde gente que
cursode Sargento.Passeimaisseismesesno tivesseconhecimentodaquelaregião.Assim,

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

depoisde uma meia hora de papo, ele disse - O senhor ainda permaneceuem Porto
que quandoa tropa se instalassena cidade Nacional?
ele ia falar com o tenente-coronele iriam - Fiqueilá ainda por um mês, então veio
requisitar à Polícia Militar que eu fosse um ofício do Exércitopara o Comandante
prestarserviçonaqueleComando,hajavista da PM e ele mandou que eu e mais dois
eu conhecerbem a regiãoe o assuntoser de colegas nos apresentássemosna unidade
interesseda SegurançaNacional. do exército em Conceiçãodo Araguaia,
-oqueosenhorsabiasobreoscomunistas? dentro do prazo de dois dias. Comoeu era
muito obediente e cumpridor das minhas
- Sabia o que já tinham me falado no obrigações, no dia seguinte estava em
exércitoquando lá servi e depoiso que me Conceição.Logo que cheguei por lá, na
falaram no curso de Sargentona PM. Me primeira semana fiquei ouvindo palestras
disseramque era uma gente perigosa,todos das sete da manhã até as nove da noite. Só
formadosno treinamentode Cubae que os paravam para almoçare lanchar.Falavam
maioreseram treinadosna própriaRússia. muito sobre os tais comunistas, falavam
Que queriamtomar o poder para confiscar de suas armas, do seu treinamento
tudo de todomundo,inclusiveas mulherese espetaculare dos que estavam infiltrados
as crianças.Disseramque o comunismoera no meio do povo, querendo arrastar todo
um grandemalparao Brasile parao mundo. mundo para a banda deles. Por fim, nos
Me lembrode um filme que passarampara mostraram que ali era a defesa da pátria,
todos os soldados,onde mostrava centenas era matar ou morrer e que se pegássemos
de pessoasmortas em uma área geladana alguns deles vivos, tínhamos que apertá-
Rússia;eram presosque morrerampor não los até que contassem sobre o paradeiro
concordarem com o Partido Comunista. dos outros.
Eu e todos os soldados,ainda muitojovens,
passamos a ter medo e ao mesmo tempo - Eles ensinaramo senhor a torturar os
muita raivadessestais comunistas. presos?
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PedroSérgiodos Santos Maraçunãotem remorso

- Eles,não muito, mas tinha por lá uns - Sei.Eu nãogostavadisso,não.Maso povo


certos militares americanos,uns três, que chamavaassim,paciência.Eu eraapenasum
davam explicaçõesonde bater, onde não sargentoque achavaque estava cumprindo
bater,comoafogaraté o pontode não matar meu dever, por isso eu colocavaa minha
e comodar choquesno sujeito, amarradono segurança,a dossoldadosdo meu pelotãoe a
pau-de-arara.Quandoa gente tinha todo o segurançada pátriaem primeirolugar.
equipamento,a gentefaziacomomandavam;
quandonãotinha,principalmentedentrodo - O senhorera muito temidona região.O
mato, a gente acabavabatendonelescom o senhoré queeramuito bravoou seuscolegas
que tinha mesmo:paus,cordas... que eramfrouxos?
- O que o senhorsentia ao agirassimcom - Naquelecomandonão tinha ninguém
ospresos? mole,nem da PM,nem do Exército,nem da
PolíciaFederal.Ali todomundo batiaduro.
- Primeiro,eu tinha medodeles.Eleseram
os tais comunistasperigososque os oficiais - O senhor acha que seu apelido era
nos contaram.Depois,eu tinha uma raiva injusto?
delesquandoencontravaalgumcolegamorto -Não sei,issoé por contado povo,mas no
na mata; muitos do exército com dezoito pelotãotodomundo tinha apelido.
ou dezenove anos morreram ali também.
No inícioera muito difíciltudo aquilo,mas - Mas o apelidoque lhe colocaramera
depois a gente ia se acostumando,porque temendosua malvadeza?
a gente via de tudo naquelasmatas. Podia - Era.Não nego meus pecados,não nego
estar dormindonuma barracae acordarde a podridãodos meus atos, não nego que
madrugadacomelatodafuradade balas. naquelemomentoeu nãovia o rostodeJesus
- O senhor sabe que ganhou o apelido naquelesque eram tidos como comunistas.
de Jura-Meningite,aqueleque quando não Eu não nego que perseguiJesus naqueles
mata aleija? homense mulheres.

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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

Houve um grande momento de silêncio fé; quando foi que ele se tornou Agostinho,
entre nós. O frade me falava isso com uma fala Francisco de Assis, Inácio de Loyola, Edith
serena, porém triste, com um olhar ao longe, Stein. Eu ansiava mesmo por saber em que
por vezes de cabeça baixa, passando a mão na momento ele mudou o registro de sua vida
barba longa, deixando de lado as contas de e por que ele agiu assim. Quebrei o silêncio
açaí, como se ele fosse o pecador e eu o padre e perguntei se ele queria água e, com seu
no confessionário. Preferi não me aprofundar gesto de cabeça, enchi dois copos com a água
mais nas torturas que ele praticara ou nos de uma garrafa de plástico que estava sobre
tiros e nas mortes naquelas matas. a mesa. Aquele líquido puro e cristalino nos
refrescou a conversa e, como um remédio que
Respeitei sua enorme generosidade de alivia as dores, parece também que limpava
estar ali para me contar o que eu quisesse ali todo aquele sangue derramado do qual
escutar. Porém, eu não precisava mais de fazíamos memória. Acho que ali eu passei a
detalhes de violência, pois eu mesmo tinha entender por que a água é sinal do batismo
visto as pessoas, no cárcere do Exército, para os cristãos, símbolo de vida, necessária
quando fiz a reportagem em Conceição. para a vida; ela alimenta, lava, limpa a alma,
e dela surge o homem novo. Das águas que
Saber que a violência existia, eu já sabia, lavaram o pecado, Noé assegurou a vida
vi tortura e torturador, ao vivo e em cores, vi das espécies, e das águas do Nilo, Moisés foi
a degradação total do ser humano, de quem retirado e foi salvo pela filha do faraó. E no
ofende e de quem é ofendido. O que eu buscava Jordão João Batista mostrou Jesus ao mundo
não era isso, mas aquele ponto mágico da Tomamos a água e quebrei o silêncio.
mudança, aquele momento em que acontece
o natal no coração do homem, aquela hora em
- E comofoi que o senhor resolveusair
que tudo perde a razão de ser porque só Deus
de tudo isso?Deixara vida militar, deixar
Pai se torna a razão total. Eu queria saber qual aquelaperseguiçãotoda?
foi a hora em que aquele frade foi São Paulo, - Eu nuncaresolvinada.No inícioa gente
de perseguidor dos cristãos a divulgador da pensa até que resolve alguma coisa, que
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PedroSérgiodos Santos Maraçu.não tem remorso

decide alguma coisa, mas depois a gente estabelecimento. É claroque eu sabiaque ali
descobreque não decide nada, que é Deus era um antro de pecado,mas no coraçãode
que age,quem decidepor nós. Eu fiquei em Tia Baby não tinha só o pecadode montar
Conceiçãodo Araguaiapor um ano e dois e manter a casa de prostituição.Tia Baby
mesese deste tempofiquei pelomenos nove tinha a caridadede escutarnossasdores,de
meses em acampamentopelas matas e em dar uma palavraamiga,de levarum doente
beirade rio.A vida não erafácil.Eu só ia à ao hospital,de visitarpresosou acudirquem
cidadepara levarum presoou para buscar quer que fosse,numa precisão;com ela não
munições e mantimentos. Por duas vezes tinha dianem hora.Porváriasvezesvi gente
pensei que ia morrercom a malária.Passei chegarpelosfundos da casadela,com certa
diascomfebrenumarede,recebendoa pouca vergonhade estarali,e em altasmadrugadas
medicaçãoqueosmédicosda força de Saúde eladeixarseu negócioporcontadasmeninas
me davam. Quandoa febre era maior eu e sair para acudir um precisado.Então,
desacordavae tinha sonhosque eu pensava naquela noite fui mesmo por lá para ter
que não iam terminar mais; eram sempre um dedo de prosa com ela. Eu estava meio
sonhosruins,comtiros,mortos,gritose fogo, abatido depois de duas maláriasseguidas.
muito fogo. Depoisque eu tive a segunda Elame recebeucom o sorrisode sempre.Ela
malária,me deramuma folga de dez dias e nuncamejulgava;sempreme acolhia.fiquei
fui a Conceiçãodo Araguaiadescansarum por ali até por volta da meia-noitee meia,
pouco.No terceirodia, resolvisair no início quandobateu o cansaço,e depoisde tomar
da noite. fui ao prostz'bulo,aquele mesmo três cafés, resolvi ir embora.Desciapelas
quevocêsrelataramna reportagem.Naquele ruas mal iluminadasde Conceiçãoquando
dia não fui com intençãode beberou fazer virei numa esquinae vi uma casapegando
farra com mulheres, porque também os fogo;acho que a famz1iaestava dormindo,
médicosme receitaramum remédioque não entãocorriaté a cisternada casano quintal,
se dava com o álcool.fui lá pela amizade já fui pegandoum balded'água,metendoo
mesmoque eu tinha pela Tia Baby,donado pé na porta da cozinhae fui jogando água.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Quandofui buscar o outro balde,tive a ideia deixeio local,andeipor uns três quarteirões
de sacaro revólvere daruns tirosparacima e choreiamargamentedepoisdaquelafrase.
para acordar a vizinhança. Dispareiuns Choreisentado na porta de uma farmácia,
tiros e comeceia gritar. Corrinovamente numa rua escura,tãoescuraquantoa minha
com a água ejoguei sobreuma cortinaque alma.Eu mesmome estranhava.Forte,duro,
pegavafogo.Aliás,tudo pegavafogo, até a sempre ríspido com os soldados e mais
madeirado telhado.A famz1.ia acordou;tinha endurecidoainda com aquelescomunistas,
muita gente na casa dormindoamontoada agora chorandopor causa de uma frase
pelos quartos,pela sala; era criançapara de uma criança.Eu era um monstro?Um
todo lado, nem deu tempo de contar. Eles matadorterrível?Já nãosabiabem quem eu
dormiam, não viam o fogo, não viam a era. Volteiao alojamentodo quartel,tomei
fumaça. O povo ao redor acordou,muita um remédio para dor de cabeça e dormi.
gente veio ajudar;porfim, todomundo saiu Fiquei ainda em Conceiçãopor três dias,
de casae conseguimosapagaro incêndio.A quandome veio novafebre, achoque era a
casaqueimouexatamenteaté a metade,mas maláriamal curadase repetindo.Destavez o
graças a Deus, ninguém morreu. Quando Capitãome colocounuma ambulânciae me
terminou tudo, o donoda casachorava,não mandou para um hospital em Araguaína.
peloincêndio,mas agradecendopelosocorro Era uma febre que não acabava,uma dor
prestado;e eu estava,aindanão sei por que, no corpoque me moíatodo,uma tremedeira
com uma criançapela mão, uma menina semfim. No hospital,eu me lembrode ouvir
de uns cincoanos,e ela, me reconhecendo, um médicocomentandocom outro que meu
dissepara a mãe e para os vizinhos:"Olha, fígadoestavamuitocomprometido. Eufiquei,
mamãe, é o SargentoJura-Meningite!Ele depoisdisso,desacordado porum bomtempo
não é só para matar não, ele é para salvar e novamente sonhei muito, com muitos
também!".Todosriram da criança,mas eu, tiros,dores,mortes.Mas o sonho agoraera
não sei por que, não me contive,largueia diferente,porque eu semprefugia daquela
mão dela e, sem me despedirde ninguém, cenae corriaparaapagaro incêndio,porque
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

a criança, no meu sonho, estava sempre foi até os padres e pediu que novamente
dizendoque eu não era só para matar, que um deles fosse ao hospital rezar por mim
eu eraparasalvartambém.E esta históriase e novamenteveio o PadrePauloCésar.No
repetiae repetiano meu sonho.Enquantoeu outro dia, lá estava Seu Ribamarna porta
estavainternado,a famILiaqueeu salvarado da casaparoquialpedindopara que o padre
incêndiofoi ao quartelde Conceiçãoparame fosse ao hospital.O padre, então, retrucou:
agradecere ali todossouberampeloCapitão "Nãoprecisa,Seu Ribamar,a gentejá foi lá
que eu estava hospitalizado.Seu Ribamar, duasvezes,jádei o sacramentoda unçãodos
o pai da famILia,juntou os cacos de sua enfermose a gente pode rezar por ele aqui
pobreza,fez um empréstimo,pagou o frete mesmo na igreja.Deus ouve nossa oração
de uma caminhonetee foi com a mulher, ondequerquea genteesteja".Muitocorretos
a cunhada e os sete filhos para Araguaína, e muito lógicosos argumentos do padre
se arranchoupor lá e montou um plantão com aquele matuto, mas o homem, além
na porta do hospitalesperandopela minha de matuto, era cabeçadura. Não reclamou,
melhora;e eu lá,desacordado.Temendoque mas ficou por ali. Horasdepois o padre o
eu morressesem o sacramento,SeuRibamar viu na porta da casa paroquial,sentado
chamou um dos padres que acabavamde no alpendre,ao lado de um cachorro,e ele
chegarà cidade;erampadresredentoristas, insistiu pela presençado padre novamente
daqueles que pregam missão, e o padre no hospital;pareceque ele só se contentava
foi com Seu Ribamar ao hospital. Depois coma oraçãode corpopresente...
fiquei sabendoque era um tal PadrePaulo FreiJurandir, por uns instantes, ao falar
César.O padre foi conduzidoaté mim. Eu isso, sorriu, respirou com um certo humor
permaneciadesacordado,com soroe aquela pela situação, mas prosseguiu.
mangueirade plásticono nariz.Rezoutudo
- O homem tanto insistiu que o padre
que tinha de rezar,me deu o sacramentoda
voltou lá. A enfermeirajá estava até de
unçãodosenfermose pensoque até perdoou
ironia;uma ironiaprofética,por assimdizer:
meuspecados.No diaseguinte,SeuRibamar
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

" EsseSargentodeve ter muito pecado,para paralítico;e procuravamintroduzi-lona casa


o padreter que vir aqui três diasseguidos..." e pô-lodianteDele.Masnãoachandoporonde
Seu Ribamar não se importava com o introduzir,por causada multidão,subiram
comentários,fazia aquilo que seu coração ao telhadoe por entre as telhaso arriaram
e sua fé mandc;ivam. Naqueledia eu ainda com o leitoao meioda assembleia,diantede
estavatomadopelafebre e adormecido,mas Jesus.Vendoafé quetinham,disseJesus:"Meu
de todos os gestos que o padre fez ao meu amigo,os teus pecadoste são perdoados".
lado,das palavrase oraçõesque entravam Entãoos escribase os fariseuscomeçarama
confusasem meus ouvidose se misturavam pensar e a dizer consigomesmos:"Quemé
na bagunça dos meus sonhos e pesadelos, este homem que profereblasfêmias?Quem
algo ficou bastante nítido para mim: a pode perdoar pecados se não unicamente
leitura do Evangelho.Escutei, entendi e Deus?Jesus, porém, penetrando nos seus
recebiaquelaspalavras,nãosó o som delasa pensamentos, replicou-lhes:"Que pensais
entrar em meus ouvidos,mas minha mente nos vossoscorações?Que é mais fácil dizer:
criou de imediatoa figura de um homem Perdoadoste são os pecados; ou dizer:
que, sentado à beira de um poço de água, Levanta-tee anda?Ora,paraque saibasque
me falava aquiloque, mesmo desacordado, o Filhodo Homem tem na terra poder de
eu ouviada bocado padre:"O Senhoresteja perdoarpecados(disseeleaoparalítico),eu te
convosco"- e respondiam- "Ele está no ordeno:levanta-te,tomao teu leitoe vai para
meio de nós". "Evangelhode Jesus Cristo tua casa".No mesmo instante, levantou-se
segundoSão Lucas":Naqueletempo estava ele à vista deles,tomou o leitoe partiu para
Jesus ensinando.Ao seu derredorestavam casa, glorificandoa Deus. Todos ficaram
sentadosfariseus e doutoresda lei, vindos transportados de entusiasmoe glorificavama
de todasas localidadesda Galiléia,daJudéia Deus;e tomadosdetemor,diziam:"Hojevimos
e deJerusalém.E o poder do Senhorfazia-o coisasmaravilhosas". Depoisdisso,ele saiu e
realizarvárias curas.Apareceramalgumas viu sentadoaobalcãoum coletorde impostos,
pessoas trazendo num leito um homem pornomeLevi,e disse-lhe:"Segue-me".
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- Foia primeiravez que o senhorouviu a mais escravode seus atospassados,mas que


leituradestaparte do Evangelho? daquela maca, daquela cama de hospital
- Não,nãofoi. Aindajovem, quandoeu ia poderianascerum homemnovo.Ao perdoar
à missa nos domingos,por tantas vezes eu os pecadosdo paralíticoe os meus também,
chegueia escutarestapalavradeJesus.Mas Jesus sempre escandaliza aqueles que
foi naquele dia:,naquela hora, que esta entendemajustiça de Deuscomouma régua,
palavrase tomou sementeparamim.A terra como uma balançade ourivesque, na sua
talvez não f asse tão boa,pois eu estava ali, precisão,medee pesa bempesadacadauma
de nossas faltas para ajuste de contas
febril,apagado,mas era essaa terra que eu
punitivas. De imediato, minha mente
tinha para ofertara Deus,para recebersua
adormecidapassou a repetir seguidamente
semente,e ela brotou.No meu sonho,eu me
aquele trecho do Evangelho,como se fosse
vi o próprioparalíticoque eralevadoaJesus.
um discoarranhado.Mas a cada repetição
Paralisado pelopesodosmeuspecados,tanta eu entendia o que de fato significava o
violência,tanta maldade.No meu sonho,os mistério,aquelemistériode Deus,poisDeus,
homensqueme carregavameramospróprios mesmo como mistério,é Aquilo no qual a
comunistasque eu persegui;vi o rosto de gente mergulhae descobrealgo,e esse algo
cadaum daquelesque eu prendi,segurando nos chama a mergulharmais e mais, num
na macaparame levaraJesus.Eparaaqueles conhecimentoe numa bondadesemfim. Dias
que achavamque eu erajá um condenadoà depoisacordeidaquelafebre.Ocorpomoído
paralisiaeterna,Jesus disse:"Seuspecados e a alma leve. Ao redor da minha cama
estão perdoados".Aí está a maravilha, a estavam o Ribamare a famILia.Ele ergueu
misericórdiae clemênciade Deus Pai: no nos braços,para me ver, a menina que eu
perdão.A misericórdianão estava na cura havia seguradono incêndio,e ela foi logo
físicadaqueleparalítico,queeraeu também; dizendo:"Olha,pai, ele não morreu;ele não
a misericórdiaestava em dizer ao meu tá mais doente,abriuo olho".Dissee sorriu.
matadore perseguidorque agoraele nãoera Recebios cumprimentose agradecimentos
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

do Ribamar.Nessassituações,sempre fico repassava em minha mente todo aquele


constrangido, pois vejo tais ações episódio,desde o incêndioaté a leitura do
simplesmentecomomeu dever.Mas aquela Evangelhono hospitale por outras eu via
criançarealmentedisse o que ocorrera;eu aquelacriançadizendo:"Elenão é só para
abri meus olhos, os olhos da alma, eu já matar,elesalvatambém".Noquartel,chorei
estavaficandoÍ'nelhore certamentetambém amargamentepensando em toda violência
me levantariada cama, o que hoje me faz quepratiquei,em todasaspessoasqueforam
repetircomoosJudeuso fazem todosos dias vítimas. Eu contínuo acreditando que o
quandoacordam,lembrandodo Salmo146: comunismoé algo errado,não tem futuro,
"Benditosejao Senhorque abreos olhosdos mas não acreditoque essaspessoastinham
cegos",e ao se ergueremda cama,repetem: quesofrertantoassim,pois,independentedo
"Bendito seja o Senhor que levanta os caminhopolíticode que cadauma, em cada
caídos".Depoisde uma conversaque não ser humanohá um poucoda criaçãode Deus,
passou de uns vinte minutos, Ribamar, é o rosto de Jesus em cada rosto que sofre.
confirmandocom os médicosque eu não ia Quandoeu conseguimaisforçasparaandar,
morrer,pelomenosdaquelavez,se despediu pedi a um soldadoque providenciasseum
e voltoucom a famILiapara Conceição,para jipe e me levasseà igreja.Os missionários
seus afazeres. Aos poucos a saúde foi redentoristasjá haviam partido; foram
chegando,veio até mais rápido do que eu semear a palavra de Deus em outro local.
imaginava.Depoisda altafui para o quartel Ali estavaapenaso pároco,FreiLeão.Entrei
da cidade,com atestadomédicopara quinze vagarosamentena igreja.Erapor volta das
dias de repouso. No quartel eu tinha três da tarde e somenteuma velha senhora
alojamento,comidae a ajuda do pessoalda rezavajunto ao santíssimo.Sentei-me em
enfermaria que, por recomendação do um bancona primeirafileirae fiqueiporum
superior,mantinhaum cuidadoespecialcom tempo a contemplarali o grande crucifixo,
a minha pessoa.Passavaos dias deitadoe Jesus pregadona cruz, com o sangue que
pensando em tu.do aquilo; por vezes eu escorriade suas mãos e de seus pés, com a
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PedroSérgiodos Santos Maraçunão tem remorso

coroa de espinhose todo perfurado;Jesus perseguiacom violênciaas pessoas e que


estavamuito ferido.Naquelacruz eu vi, um caindodocavalo,ficandocegoporum tempo,
porum, oscomunistasquesofreramviolência enxergou Jesus naqueles que eram
pelas minhas mãos e eu disse ao Cristo perseguidos.Assim elefoi me falandosobre
crucificadoque..eu nunca mais usaria de São Paulo e completou: "Você quer ser
violência contra qualquer pessoa, nem perdoado, quer que seus pecados sejam
mesmo contra um animal. Mais uma vez perdoados,poisvocêjá confessoutodos,você
chorei diante do Cristona cruz. Depois,já quer?" Com toda convicçãoe certeza no
mais calmo,fui à sacristiae me encontrei coração eu disse que sim. Então ele se
com o Frei Leão.Pedi para conversarum levantou, colocou as mãos sobre minha
poucoe ele,muitosolícito,me encaminhoua cabeçae depoisde fazer a oraçãosacerdotal
uma sala de atendimento.Me esforçando da absolvição,concluiu:"Emnomeda Igreja,
para ficar calmo e novamente não chorar, te perdoode todosos teus pecadosem nome
contei a ele tudo o que ocorreracomigo, do Pai,do Filhoe do EspíritoSanto.Amém.".
desde minha entrada na políciaaté o que Novamentese sentouao meu ladoe me disse
aconteceu no hospital, inclusive sobre a que a partir daqueleinstanteeu poderiaser
visita do padre redentoristae a leitura do um homem novo, um homem que se
Evangelho.Falei por mais de três horas levantariada maca dos pecados,não seria
seguidas;algumas vezes a minha fala foi mais paralisadopela violênciae pelo mal e
cortada pelas lágrimas,mas eu respirava que todasas vezes que eu me sentissefraco,
fundo e continuava. Silenciosamenteele tentado a cair, a Igrejaestariaali para me
escutoutudo.Aofinal,eleme dissequeaquilo segurar pela mão, que ali tinha uma
nãoeraexatamenteuma conversa,mas uma comunidadeque estaria rezandopor mim.
confissãode alguém que se depara com a Me disse,ainda,que eu não deixassede ir à
verdadee a luzdeDeus,e em brevespalavras, missame encontrarsemprequepossívelcom
me contou que a Igreja,no seu início,teve o Cristo,que na sua humildadese fez pão e
grandecontribuiçãode alguémque também vinhoparapermanecereternamenteconosco,
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

e que se a graça de Deus me perdooudos ave-marias e um pai-nosso eu estaria a


meuspecados,eu deveriame levantar,seguir meditaruma passagemda vidadeJesus,efoi
adiante e também dizer a outros que à sacristiae voltoucom um pequenofolheto
precisamdessagraça,que Deusestá ali de explicandotodoo terçoe ensinandoa oração
braçosabertospararecebercadaum. E mais comaquelasbolinhaspresasaocordãozinho.
uma vez ele se levantoue me pediu que eu O terçoque eu recebinaqueledia é esteaqui.
esperasseuns instantes enquanto ele iria
buscaralgo.Momentosdepoiseletrouxedois Frei Jurandir ficou de pé e, do bolso de
livros e me disse: "Aqui está o Novo seu hábito, abaixo do capuz, tirou um terço
Testamento, os evangelhosestão aí. Leia igualmente feito com sementes de açaí e uma
todososdiasum pequenotrecho,nãoprecisa cruz de metal e me disse:
ler muito de uma só vez; leia uma pequena -Esteaquié uma pequenaréplicadaquele
partee reflitasobreo queleu;assima palavra crucifixoda capelade São Damião,aquele
de Deusvai se firmandoem nossocoração. quefalou com SãoFrancisco,e hojeestá em
Esteoutrolivronarraa vidade SãoFrancisco Assis,naIgrejadeSantaClara.Daípordiante,
de Assis;achoque esta leituravai te ajudar meu amigo,fui me apegandoao Evangelho,
na caminhada.Eletambémfoi um cavaleiro, fui me encantandocom a simplicidadeda
lutou na guerra contra o Islã e depois se propostade SãoFranciscode Assise da vida
voltouparaDeus.Achoquevocêvai gostar". franciscanae, confiandonaquelaque pisa
Eporúltimo,eletiroudo capuzdoseu hábito na cabeçada serpente,com sua humildade
um objeto,pegou a minha mão, colocouo de Servado Senhor,a MulherVestidade Sol,
objeto e, fechando-a,me disse:"Isto é um dita porJoãono Apocalipse,aquiestou.
terço.Sempreque possível,reze o terço".Eu
retruqueidizendoque, quandocriança,via O frade disse tais palavras e apontou
minhamãe rezandoisso,mas nãosabianem para um quadro de Nossa Senhora das Graças,
mesmopor ondecomeçar.Entãoo FreiLeão na parede ao nosso lado. Na rapidez de um
pegouo terçoe me explicouque em cadadez relâmpago, me passou pela mente toda sua

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PedroSérgiodos Santos Maraçunão tem remorso

vida pregressa dominado pelo tal dragão da trajes que dão liberdade.A convite de uns
maldade, mas sustentei a entrevista. parentes,fui para PortoNacional;ali passei
uns dias e, para sobreviver,fui trabalhar
- Mas o senhor, quando se recuperou comoporteiroem uma escola.Depoisentrei
completamente da malária, voltou ao em contato com uns franciscanos, me
trabalhono quartel? interesseipela vida de São Franciscoe pela
-Não,fui diretoaomeucomandonacapital OrdemdosFradesMenores.Passeidoisanos
e pedi baixa,me desligueicompletamenteda visitando os frades e vendo seu trabalho
vida militar. com os pobres.Resolviser frade. A Graça
- O que osseussuperioresdisseramdisto?
de Deus me retirou do mundo e me levou
ao convento.Fiqueium ano e meio como
- O quejá era de se esperar.Disseram postulante,depois,um ano no noviciadoe
que eu estavasendoprecipitado,que com os agoraaquiestou.
bonsserviçosque eu tinha prestadoà nação,
- E hoje,o que o senhorfaz, comovive?
logoseriapromovidoa tenente. Que eu era
doído,que isso e aquilo.Entreino comando - Bem, sou frade. Faço o que o meu
sem muita conversa,entregueimeu pedido superiormanda,pois tenho também o voto
de exoneraçãoe saí calado, não discuti de obediência.Além das obrigaçõesda
com ninguém e ouvi a todos em silêncio. casa e das orações,temos estudos sobre a
Tão somente respondi reservadamentea Igreja,sobre a Ordeme sobre o Evangelho.
um coronelque me indagou se realmente Quatrovezespor semanapassoas tardesno
era aquiloque eu queria.Eu lhe disse que leprosário;lá sou catequistapara crianças
na minha vida eu não faria mais a minha e adultose organizeiuma escolade futebol
vontade, mas a vontade de Deus. Saí pela para crianças.Nas horasde folga,faço esses
porta do quartel como quem deixa um terçosde açaí,quevãoajudaralgunscristãos
grande peso para trás. Entregueilá todo o a alimentaremsua alma.
fardamentoe as minhas armase saí com os
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- Comoo senhorvê hoje,à distância,seu o rosário;ojejum e a caridadepara com os


passadona polícia? irmãos.São essas pedras que sustentam o
caminho da conversãodiária. Quanto aos
- Se em minhçivida eu fizer algode bom
Salmos,refl.itodia a dia o salmo cinquenta
para alguém, foi Deus quem fez através
e um, e sendomeu pecadomuito maiorque
da minha pessoa;se eu faço o que é ruim,
o pecadode Davi,rezocom ele:Tem piedade
a culpa é minha, das minhas fraquezas,o
de mim, ó Deus,por teu amor!Apagaminhas
pecadoé meu. Assim,o que eu fiz é fruto do
meu pecado;me arrependo,pedie peçotodos transgressões,por tua grande compaixão!
os dias o perdãode Deus,que é clementee Lava-me inteiro da minha iniquidade e
misericordioso,e hoje,se eu morresseagora, purifica-medo meu pecado!Poisreconheço
estaria pronto para prestar contas ao Pai minhas transgressõese diante de mim está
pelos meus pecados.Sei que não mereço sempremeu pecado;pequei contrati, contra
a graça do perdão, mas a misericórdia ti somente,pratiqueio que é mau aos teus
de Deus é tamanha, que todos, mais ou olhos.Tens razão,portanto,ao falar, e tua
menos pecadores,são chamados aos seus vitória se manifesta ao julgar. Eis que eu
braços.Luto dia a dia para entendero que nasci na iniqüidade,minha mãe concebeu-
disse São Paulo:"Ondeabundou o pecado, me no pecado.Eis que amas a verdade no
superabundoua graça",e caminhopisando fundo do ser, e me ensinasa sabedoriano
semprenasseispedrasda estradadasalvação. segredo.Purificameu pecadocom o hissopo
e ficareipuro,lava-me,e ficareimais branco
- Pedras?Quepedrassãoessas?
do que a neve.
- As que constroemo caminho seguro.
Somente essas constroem:A palavra de Mais um terço era terminado pelas mãos
Deusrevelada;a escritura;a eucaristia,pão ágeis de FreiJurandir. Esse, de contas marrons
da vida; a confissãodos pecados;a oração, nas ave-marias e brancas nos pai-nossos, me
particularmenteas horas com os salmos e foi dado de presente.

217
216
PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- Meu irmão,leveeste terço,ele é seu. que encontramos com a misericórdia de Deus


- Muito obrigadopelo presente, muito quando nos deparamos com nossos limites. '
gentilde sua parte. Não vi o caminho, as ruas, as casas, os
- A gentilezanãoé tanta assim,o presente prédios que estavam no trecho que percorri
é interesseiro.Quandorezar o terço,não se entre o convento e a pensão. Cheguei, me
esqueçade me incluirem suas orações;reze recolhi ao quarto e depois de repassar aquelas
por mim, rezepelaminha alma. cenas todas pela minha mente, desde a
reportagem que fiz a mando dos generais até
- Comcerteza,rezareipelo senhor e por o depoimento daquele frade, peguei o terço,
mim, igualmentepecador. olhei cada conta passando por meus dedos e
Coloquei o terço no bolso e ele nunca comecei a rezá-lo ...
mais me abandonou. Era inevitável não
lembrar daquele frade em minhas modestas
orações. Saí do convento após me despedir
de Frei Jurandir e de Frei Valeriano. Voltei à
Pensão de Seu Joel como quem tivesse sido
totalmente anestesiado por uma história
simples de um convertido e ao mesmo tempo
assombrosa, espetacular. Acho que assim
são as conversões; são situações simples
do cotidiano ou dos nossos limites que
questionam as pessoas: Um livro, uma palavra
do Evangelho, uma doença, um acidente,
um episódio triste. Fatos que às vezes são
repetidos várias vezes nas nossas vidas, mas
um dia, não se sabe por que, é em algum deles

218 219
Capítulo V
O Combate de São Jorge
contra o dragão de Maraçu

"Mãe,
Entre velhas páginas, uma folha
ainda verde da casa antiga."
(AucERurz)
o burburinho da nova Constituição

N que o Congresso estava construindo,


forças políticas se debatiam e de parte
a parte brigavam palmo a palmo por espaço
político e para assegurar na lei maior os
interesses de cada grupo.
No jornal passei a ser o editor-chefe da
política e Vicentão o editor geral. Penso que
ele ganhou o cargo não só pela competência,
mas como reconhecimento pelos anos de
fidelidade ao Doutor Custódio e também como
presente de casamento, por que não dizer?
Solteirão convicto, Vicentão, que
circulava de braço em braço nas bocas e
saias, caiu de encantos por Andreia, médica
223
PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

veterinária que clinicava para seus dois por quem Vicentão sempre teve consideração.
cachorros. Entre uma consulta e outra, um Porteiros, copeiros, operários, gente dos
exame canino e uma vacina, o sujeito foi sindicatos e motoristas ali se divertiam junto
ficando hipnotizado pelo sorriso da moça; com a turma do colarinho branco. Se numa
na loirice balzaquiana emoldurada sempre mesa falava-se animadamente da última
pelo jaleco branco da Clínica, ela o colocou viagem à Europa, na outra, com a mesma
de quatro e babando. Não chegaram a alegria contava-se a façanha de alguém que
completar seis meses de namoro, tempo conseguira êxito nas provas do supletivo de
suficiente para Vicentão despachar antigos primeiro grau.
entraves mulherísticos e lá estava ele de A música ficou na boa qualidade de
terno, gravata e flor na lapela, esperando Alceu Valença, Zé Ramalho, Fagner, Elba,
a noiva que adentrava a igreja ao som da Geraldo Azevedo, Gilberto Gil e Caetano, da
marcha nupcial. Bossa Nova e do bom samba da gente do Rio
A festa do casório foi presente do Doutor e de São Paulo, Adoniran Barbosa e Demônios
Custódio, que se aproveitou do evento para da Garoa.
convidar de gente ilustre a gato e rato. O 22 de Na mesa com os amigos, bebi pouco
Julhoestava em alta, de bem com o governo e e apreciei a boa companhia de Simone.
com muita verba publicitária; assim, a festa do Dancei pouco, pois, na verdade, não sou
Vicentão não ficou tão cara quanto indicavam exatamente um pé-de-valsa e, como manda
as aparências. a regra, bebi com moderação do bom vinho
Reservou-se espaço para amigos espanhol servido junto com o jantar, tudo
próximos e familiares dos noivos e o resto de bom gosto. Mas antes que este modesto
do salão se encheu de mesas para políticos, relato se transforme numa coluna social com
empresários, juízes, delegados de polícia, calendário retardado, não posso deixar de
desembargadores, promotores, religiosos, contar o que a política faz com o caráter do
militares, bicheiros e gente da arraia miúda ser humano.

224 225
PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Lá pelas duas da manhã, cansadas, corintianas. Mas a conversa prosseguiu até


Simone e sua irmã Franciele me pediram para que ele me chamou a atenção para um casal
levá-las para casa. Prontamente me dispus que há tempos estava na pista de dança.
a fazê-lo e em poucos minutos estavam no
- Sei que você conheceaqueleali, com a
aconchego do lar, vi~to que moravam a menos
mulherde vestidoverde...
de três quilômetros ;dali. Retornei à festa e ao
bate-papo com os amigos, uns pouco sóbrios, - Conheçosim,senhor,é o DeputadoJoseir
outros já embarcados no total delírio da Amarantese a esposadele.Eleé corintiano
música e da mente anestesiada pelo uísque também?
que era servido com fartura. - Não.Na torcidado Corinthiansnão tem
Sentei-me por uns instantes à mesa onde genteassim,não.
estava um velho desembargador aposentado, -Genteassim...comoassim,Desembargador?
conhecido dos tempos que ainda era juiz em
comarca vizinha de Maraçu. Tendo atuado - Vocênãosabecomoelefoi eleitopara a
também no Tribunal do Júri, por vezes o AssembleiaConstituinte?
entrevistei no início da minha carreira, sobre - Bem,só sei que, comoqualquerdos que
os crimes cujos processos estavam sob seu foram eleitos,ele se candidatoue foi eleito
comando. Doutor Guilherme sempre fora um pelo PDJ,pegando a penúltima vaga de
magistrado prudente e discreto, mas não há DeputadoFederalConstituinte,nãosei nada
como segurar a língua quando regada pelo mais.
vinho, particularmente quando este é de boa - Nãosabede ondevieramos recursosda
qualidade e quantidade. Ali conversávamos
campanha?
amenidades que iam e voltavam ao
campeonato brasileiro, posto que eu, como -Não,senhor.Comoelefoi um militantede
vascaíno convicto, não concordava, ainda esquerda,deve ter tido apoiode sindicatos,
que respeitosamente, com suas observações associações
profissionaise gruposassim.

226 227
PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

- Enganoseu, grandeengano... - Poisbem,meu caro,vocêsabe que esse


Coloquei minha cadeira mais próxima negóciode Segredode Justiçaem processoé
do Desembargador e, percebendo que sua coisamuitorelativa.Às vezeso processoestá
embriaguez poderia tne ajudar a ouvir uma em SegredodeJustiçaporquea leimanda,em
boa história, esquec~ que estava na festa de outras vezeso SegredodeJustiçavem até por
casamento do Vicentão e de imediato retomei ordemdo Presidentedo Tribunalparaimpor
meu faro jornalístico e puxei a língua do um certoabafamentoem processode gente
magistrado: graúda;coisaparaatenderinteressespolíticos
de poucavergonha,vocêsabecomoé...Poiseu
- Comoassim, Desembargador,como é estavaem meu gabinete,há mais ou menos
essenegóciode recursosparacampanha? dois anos e chegouum processodistribuído
- Olhe,venhacá... paraa minharelataria; issofoi poucoantesde
me aposentar.Pegueios autoscomocoisade
Me puxou pelo braço, chegou mais perto rotinae,nacapa,haviaocarimbodeSegredode
do meu ouvido, abaixou um pouco a cabeça e, Justiça.Comosempre,tinhaopéssimohábitode
no entortar da língua já pesada pelo álcool, foi levartrabalhoparacasae,porvezes,na calada
falando: danoite,eu liacommaistranquilidade aqueles
- Eu te conheçohá quasevinte anose sou quejá vinham com o voto mais ou menos
seu amigo.Poisvou te contar um segredo, rascunhadopela assessoria.Quandopeguei
mas você não pode escrever isso no seu aqueleprocesso,a narrativadosfatos,no voto,
jornal; se escrevervocê perde o amigo e mechamoua atenção.Então,coloquei ovotode
ainda ganha uns processos;e se brincar, ladoe mergulheina extensaleituradosautos,
ganhauma surra... quejá seapresentavam comdoisvolumes.Para
começar,os acusadoseramo Deputado Joseir
- Claro,Desembargador,o senhor sabe Amarantes,sua esposa,seu cunhadoJambão
que pode confiar em mim; nossa amizade Cardoso,um tal de ValdomiroMartinse mais
está acimade tudo. umas trêspessoas.O rololá erao seguinte:O
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

deputado,quena épocaeradeputadoestadual - OJambão,cunhadodo deputado,talvez


queriaporquequeriaserdeputadofederal,mas você o conheça, é dentista antigo, com
pareceque o dinheiroestavacurto;então,ele consultóriomontadoali pertoda rodoviária.
e o cunhadoresolveramacharum jeito mais Pois bem, os dois pegaram lá, a troco de
rápidode arrumardinheiro.Vocêéjornalista, quasenada,essesdocumentosdo talJuarez
já cobriua área'polidale sabe como é esse e resolverammontarum personagemfictício
negódodosxiquiteirosnocentrodaddade.Pois com os tais documentos.O deputadotrouxe
foi isso,o deputadoe o cunhadocompraram lá de sua fazenda em Certolândia,um peão
de um xiquiteiroum documentocompletinho de sua confiança.O sujeito fazia de tudo,
de um certo ddadão,pobre coitado,vitima dizem até que ele já tinha sido jagunço
de tudo,que teve a carteirafurtada.Eraum de fazendeiroslá na Bahia;ele era o tal
balconistae se chamavaJuarez. WaldomiroMartins. Eles pegaram, então,
os documentosdoJuarez e colocaramneles
Quando o Desembargador falou em os retratos três por quatro do Waldomiro,
xiquiteiro, confesso que tive um certo repuxo que passouassima se chamarJuarezPontes
na goela, ao me recordar dos negócios Peixoto.Daí foi tudo mais rápido. Foram
realizados com o Brisa Mansa para a obtenção no Banco Nacional e abriram conta em
de documentos falsos , anos antes, nos tempos nome do tal Juarez. Depois,pegaramuma
duros dos generais. Quando faço algo suspeito mulherquejá tinha trabalhadono comitêda
e outros tocam no assunto, ainda que aquilo campanhadodeputado- a ditacujaerapau-
não seja sobre o que fiz, tenho sempre a mandadomesmo- e levaramelae o "Juarez-
impressão que descobriram o malfeito, mas Waldomiro"no Cartóriodo Gonzagae ali
procurei não demonstrar nada e mesmo que o casaramos dois,tudo nessamentiraiadaque
nervosismo repentino me denunciasse, acho você tá vendo.Era trambiqueno duro;teve
que o Desembargador, já embriagado, não até festinha de casamento,com docínho,
seria capaz de perceber. Assim, ele prosseguiu refrigerante,bolo,cervejae foto dos noivos
relatando as tramoias do deputado: com os padrinhos. Depois de tudo isso,
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

contrataramum contadore montaramuma um café,não perdeu tempo:"Poisbem, seu


firma de atacadistaem nome do tal Juarez, Juarez,seu amigoaquime falavadosgrandes
com o Waldomiroaparecendoem tudo, negóciosde sua famfüa em MinasGerais,no
comose fosse ele,.Depoisde uns dois meses ramodo atacado";e o novoclienteemendou:
com o comérc;o funcionando, voltaram "NossafamlÍía tem negóciosdiversificados;
com o "Waldomiro-Juarez",ou "Juarez- na verdade, uma parte está no comércio
Waldomiro", comoqueira,noBancoNacional e outra na pecuária;nós temos no Brasil
e fizeram lá outra conta bancáriapara a a criaçãoexclusivade uma raça de gado
novafirma. OJambão,conhecidodo gerente, indianonas fazendasde Minas,da Bahiae
lhe disse ao apresentaro novo empresário do MatoGrosso".O gerente,animadocom os
que chegarana cidade,enquantoem outra bons negóciosà vista, abriu todasas portas
mesa "Waldomiro-Juarez"assinava uns do bancoao "Juarez-Waldomiro", deu cheque
documentos: "Esse Juarez é um grande especialpara a empresa,créditoautomático
sujeito;conheçoele desde menino quando de doismilhões,cartãode créditoe,de quebra,
morava lá em Minas; seu pai é grande "conseguiu"venderum segurode vida com
atacadistapor lá e agoraa famfüa resolveu prêmio de quatro milhões,figurando como
ampliar os negóciospor aqui". O gerente, beneficiáriaa tal esposadoJuarez.Ejá ficou
mais alegre que barata em loja de doce, acertadoque as parcelasdo seguroseriam
gostavada conversae Jambãojogou a isca pagascomdescontodiretona contabancária.
certa: "Olha,eu acho que o banco deveria Quandotodoonegóciodobancoficoupronto,o
dar um bom créditoa ele, um bom cheque- deputadoe oJambão,seu cunhado,buscaram
especial e você pode empurrar um bom oserviçodeum talMiguelãodeParanaíguara.
seguro que, com certeza, ele vai comprar; Porcoincidência, eujá conheciaessesujeito,
conheçobem a figura,é meiohipocondríaco, pois quandofuijuiz do TribunaldoJuri, um
tem uma saúde de ferro e se pela de medo processodelepassoupelasminhasmãos.Esse
de morrer"."Juarez-Waldomiro" retomou à Miguelãotinha , no serviçode pistolagem,a
mesa do gerente que, mandandolhe servir éticado menorprejuízo.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- Me perdoe, Desembargador,mas não qualidadesdofalecido,quesegundoele,conhe-


entendicomoé essaéticado menorprejuízo: cera na juventude, por outras paragens.
- OMiguelãode Paranaiguara
erahomem Por derradeiro,se dizia grande devedordo
desencamado,que tanto lheajudaraquando
de gestosmansose comportamentopacato.
vivo e de forma generosarepassavaà viúva
Semprede temq brancoe sem gravata,com
a quantianecessáriaparasair do aluguelou
sapato engraxadoe bíblia na mão, tinha
para asseguraruma boacriaçãoe educação
como ofício para sobreviver, a profissão
dosmeninos.Nãoraramenteficavaamigoda
de matador.Mas não era ele um matador
famfüae acabavaabastecendode companhia
qualquer.Seu serviçoera mais caro que o
a viúva em seusmaisdelicadosmomentosde
serviçode outrosmatadoressem ética,sem
solidão;claroque tudo dependiatambémse
escrúpulose sem coração.Miguelão,ao ser
a senhoraenlutadativesselá seus encantos
consultado inicialmente por um possível pessoais,poisaté queeleeracapazdeprestar
cliente,buscavasabertudo sobreaqueleque seus favores em camas de casal, mas não
iria"cantarprasubir".Ficavasabendoo que era homem de bebermuito para confundir
o desinfelizfez paramerecerseusserviços,se a visão.Veja,você,que nem todomatadoré
o cabraeracasado,se tinhafilhospequenose igual,tem matadorese matadores,pistoleiros
se tinha religião.Sódepoisde uma avaliação e pistoleiros
...
completa é que passava o preço para o
encomendante.Sendosempreo serviçomais - Odeputado,então,mandouo talMiguelão
caro da Capital,Miguelãoapresentavaum mataralguém?
preçoque incluía,além de seus honorários, - Não, ele não encomendoua morte de
uma boaajuda à famz1iado futuro defunto. ninguém. Apenas pediu para o Miguelão,
Assim,comcarade enlutado,andardiscreto, quandoele tivesseo serviçoencomendadoe
ele sempre compareciaao velóriodos alvos despachasseo viventea pedidode outro,que
de seusserviços.Doisou trêsdiasdepois,ia à ele avisasseao deputadoou aoJambão,e em
casada pobreviúva e alifalavadas grandes recompensapela informação,o pistoleiro
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

receberiamaisum trocado.Elesqueriam,na colocá-lono freezer, quejá estava ligadoà


verdade,acompanharo assassinatode um custade um pequenogerador,e queia deixar
qualquer,porquedefunto de morte matada o corpogeladinho,geladinho.Assimfoi feito.
no tiro, fica mais conservado antes do Terminadatodaa choradeiradoenterro,que
enterro.Recomendaram,porém, que o tiro já era lá pelas seis da tarde, o povofoi aos
não fosse no rosto e, de preferência,que poucos deixando o cemitério depois da
matasseo coitadocom um tiro só.Assimfez sepulturadevidamentefechadacoma massa
Miguelão. Logo foi contratado para um de cimento colocadaem última laje. Duas
serviço em CampoNorte; o desgraçadoia horas depois,já na noite escondedorados
morrer por motivo de chifre queimadona erros,a caminhoneteentrou no cemitérioe,
cabeçado mandante.Miguelãofez o serviço num serviçorápido,o cabrafoi retiradodo
comosemprefazia,matou o coitadocom um túmulo e do caixãoe colocadono freezer,na
único tiro na nuca, recebeu o dinheiro carroceriada caminhonete.]ambãoacertou
combinadocom o mandante,ricofazendeiro direitinho o dinheiro com o coveiro e
da região,e em seguidaavisouao deputado empurrouo pé no acelerador,de voltaparaa
que aquelejá não ia maisfazerpesoem cima Capital,com o sujeitodormindotranquilolá
da terra.Imediatamenteo deputadoacionou na carroceriae chegoupor volta das quatro
Jambão,que meteu um freezerna caminho- horas.Às seis,todosjá estavamprontospara
nete e foi com um peão da confiançadeles a pescaria no Araguaia. Foi Jambão e a
até CampoNorte. Chegandopor lá foi fácil esposa,o Deputado,seu filho mais velho e o
acharo velóriodosujeito.Maisquedepressa, peão que acompanhouJambão a Campo
foram atrásdo coveiro,chamaramo caboclo Norte,e foi "Waldomiro-Juarez" com a dita
num canto e colocaramna mão dele um cuja esposa. Chegandoem Barra do Rio,
tanto de dinheiroque o homemnunca tinha todos se registraramnum hotelzinho,mas
visto nem em sonhoe a única coisaque ele deixaram a caminhonete com o gerador
precisavafazer era desenterraro falecido ligadoestacionadaa uns cincoquilômetros
assim que a famz1iadeixasseo cemitérioe antes, num posto de gasolina, mediante
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

acertode uns trocadoscom o frentista,para tal esposa.Depoisque saíram das vistas do


vigiaro veículo.Quantoaogerador,disseram ribeirinhona escuridãodorioe da mata,sem
ao frentista que o freezer tinha que ficar muita demora pararam os motores das
ligado por causa do gelo e dos peixesjá canoasàs margensdo rio, próximo a uma
pescadosem outra regiãoe não queriamse estradinhade terracercadaporumaporteira
encontrarcoma políciae osfiscaisda pesca. semcadeado.Olugarjá tinhasidoaveriguado
Meteramum cadeadono freezere deixaram na pescaria que fizeram durante o dia
lá o carroaoscuidadosdofrentista,que sem anterior.Enquantoisso,o peão e o filho do
sabervigiavao morto.Dohotelforam até a deputado foram ao posto de gasolina,
beira do Araguaia e já alugaram duas pegaram a caminhonete com o freezer e
canoas, compraram iscas, montaram um foram ao encontrodo grupona escuridãodo
pequenoporto de apoiocom barracade sol, rio.Nas margensdo Araguaia"Waldomiro-
cervejagelada,tira-gostoe aparelhode som. Juarez"tirousua roupae a vestiuno defunto,
As mulheresnãoperderamtempo,colocaram colocouseu relógioem seu braçoe lhecalçou
biquíni e ficaram lá, quarandoao sol. Dia o par de botinas.Dalimesmo "Waldomiro-
normal de pesca e lazer entre familiarese Juarez"pegoua caminhonetee,junto com o
amigos.No dia seguintefoi a mesma coisa. peão e o filho do deputado, sumiram no
Quandojá anoitecia,]ambão e o Deputado poeirãoque a morteabafava.Como defunto
perguntaram a um ribeirinhoonde era o em uma das canoas,o gruposubiu maiso rio
melhorlocalparaa pescanoturnae uma boa e, num remansocheiode galhos,jogaram o
caçada de jacaré, que deixam seus olhos corpodo defunto,nãosem antesencharcá-lo
brilhandona batidada luz das lanternas.O de sangue de boi e uns pedaçosde carne
ribeirinho recomendou um recanto do fresca presos à sua roupa para atrair
Araguaia,a uns dez quilômetrosacima,bem rapidamenteaspiranhas.Voltaramà cidade.
próximoà fazendado prefeito.Então,numa Antes, porém, deram um rápidomergulho,
canoa saíram o deputado, Jambão e a todos encharcadosda cabeça aos pés, já
esposa.Na outra,"Waldomiro-]uarez" coma desembarcaramdas canoas gritando por
238 239
PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

socorro e chamando a atenção dos que Bombeiros,com ajuda de Jambão e do


bebiamnum barzinhoaliperto.As mulheres ribeirinho, localizaram o corpo de
choravam e a suposta viúva gritava e "Waldomiro-Juarez", já todo deformado,
simulavaseu desesperopelo afogamentodo atacadopelaspiranhase mordidonaspernas
marido que caíra no rio quando a "canoa por jacarés. O corpo estava de fato em
virou". Foiaquelecorre-corre.Chamaramo situaçãodeplorável.Jambãologogritou:"É
Corpode Bombeirosque, vindos de outra ele!É ele!É a roupa que ele tava, olha lá o
cidade,levaramduas horasparachegar.Um relógio dele!" gritava apontando para o
grupode homens,juntocom]ambão,pegou corpoenquantoos bombeiroso retiravamda
novamenteduas canoase foram ao suposto água.Na cidade,os bombeirosapresentaram
localdo afogamento.ClaroqueJambãonão rapidamenteo corpoao deputadoe à viúva,
mostrouo lugarcertoondejogaram o corpo agora devidamente confirmada nesta
e passaram a noite no corre-corree nos condição.A mulherviu a carado maridono
calmantespara a viúva. O peãoe o filho do gavetãodo carrodos bombeirose chorando
deputado logo apareceram por ali. gritou:"Amor,eu nãopossoviversem você!".
"Waldomiro-Juarez" pegoua caminhonetee E conformecombinado,coma amigaàs suas
voltou para a Capital,deixandoseu corpo costaseJambãotambém,elafoi desmaiando,
afogadolá no rio. Veja você,foi a primeira sendoabanadapor todos,que correramcom
vez que vi um defunto morrer duas vezes. elaparadentrodo hotel.E tomeáguae álcool
Naquela madrugada, os Bombeiros não pelasmãosparaver se a viúva recobravaos
acharam nada. No dia seguinte, também sentidos.O tenente disseao deputadoque o
nada.E a viúva chorava,insistiapela busca corpoteriaqueser levadoaoIML, na Capital,
do marido. O deputado e Jambão, na paraos examesde praxee o reconhecimento
solidariedadeda hora,faziam de tudo para oficial.O Deputado,subindono alto de seu
dar confortoa ela e faziam apelosao oficial cargo,chamou o tenente num canto e lhe
dos Bombeirospara continuar a busca. solicitouo favor:"Olha,tenente, issoé uma
Assim, no segundodia, no fim da tarde, os tragédiapara a esposae para os amigos;a

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PedroSérgiodos Santos Maraçunão tem remorso

gente vem para uma pescaria e para a pleiteado.O defuntofoi levadodiretamente


diversãoe o Juarez morre afogado.Ele era para a funerária encomendada pelo
como um irmão para mim. Eu queria lhe deputado e pela segunda vez teve velório,
pedir que não, prolongasse mais esse viúva chorando,benzeçãoe missa de corpo
sofrimento.OJambãomeu irmãoé dentistae presente.Grandehomemfoi oJuarez,grande
erao dentistadele.Poderiareconhecê-lo pela marido, grande empresário!Foi sepultado
arcadadentáriae depoisdissoo médicoaqui com direitoa lápidee uma dúzia de coroas
da cidade mesmo pode dar o atestado de de flores.Passadaa missa de sétimo dia, a
óbito. O senhor já viu aí as condições viúva,manipuladaporJambãoe o deputado,
emocionaisda viúva.Então,o que eu queria logoprocuroua seguradoracom certidãode
lhepedir,é que o senhorlevasseo corpopara óbito na mão e um advogadoa tiracolo.A
a Capitaljá com o atestado de óbito e o seguradoramontouprocessoadministrativo
deixasselá na funerária;se quiser,oJambão e prometeupagamentoda apóliceno prazo
acompanhao senhor e faz também o laudo de quinze dias. O Deputadofez pressãoem
odontológico; vamos deixar esse negóciode SãoPaulo,atravésde amigose conhecidose
IML de lado. O Secretáriode Segurançaé diminuíramo prazopara sete dias.Enfim,o
meu amigo e isso não vai dar bronca dinheirofoi depositadona conta da viúva
nenhuma. Quanto mais demorar esse que, tendoJambão ao seu lado e um peão
enterro,mais a viúva sofre e mais a famz1ia armado esperando ambos no carro,
sofre.E o senhorpodeter certezaque vou me compareceuao bancoe transferiuo dinheiro
empenharjunto ao governadorpara que o para outro banco e para as contas da
senhorsejapromovidoomaisrápidopossível, empresa,com a desculpade pagarcredores,
afinal,um militarcompetentecomoo senhor pois disse chorosaao gerente:"Não quero
tem que ser melhor aproveitadoem ações que,mesmodepoisde morto,o nomedo meu
estratégicaslá num batalhãoda Capitale maridofique sujo na praça".Diasdepoisa
nãonessefim de mundo".O deputadomexeu viúva recebeua parte que lhe cabia e uma
na vaidadedo tenente e conseguiuo favor passagemsó de ida parao Maranhão,com a
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PedroSérgiodos Santos Maraçunãotem remorso

recomendaçãode nunca mais voltar por nessas condiçõesde afogamento que não
aqui.Deixouprocuraçõespúblicaspara uns passa pelo IML não era normal. O pessoal
laranjasdodeputado,quelucrarammaisum da seguradoraregistroutodos esses dados
pouco vendendo. toda a mercadoria da do defunto suspeito e passou a investigar
empresasem notafiscale fechandoas portas qual foi o rumo que o dinheiro tomou.
do galpãoatacadistasem avisarnem mesmo Procurarama viúva na empresae no antigo
aos poucos empregados,que ficaram com endereçoe nem sinal dela. Depois,através
uma mãonafrente e outraatrás.É claroque da Justiça Eleitoral,descobriramque ela
o deputadoembolsoutudo isso,dinheirode estava residindonuma pequena cidadedo
seguro,de mercadoriase ainda do cheque Maranhão.Mandaram detetive para lá e
especiale do cartão de crédito do duplo- descobriramque a mulher era dona de um
falecido.Tirandoas poucasdespesascom a modesto veículo e uma pequena frutaria.
pescaria,com o coveiroe com o cachê da Isso não era coisa para uma mulher que
viúva,o saldofoi bastantepositivo,ajudando tinha tanto dinheiroem sua conta. Depois
muitosua campanhaparadeputadofederal. de um apertoaquie outroacolána delegacia
- Mas, Desembargador, tome mais uma local, a viúva abriu o bico e contou aos
taçade vinhoparamelhorara bocae ojuízo detetives o que ela sabia, ou seja, todo o
e me diga,comoissotudo chegounaJustiça? falso casamentoe a armaçãoda pescaria
com defunto preparado para morrer de
- Bem, meu caro, esse pessoal de novo. Os detetivesforam até CampoNorte
seguradora desconfia até da própria e começarama fazer perguntasao coveiro.
sombra. Eles pagaram o seguro, mas Nãodeu outra,elecomeçoua telefonarpara
ficaram desconfiados.Primeiro,porque o o Jambãoe no desesperode ser pegofalou
defunto tava muito bem mortinho, com coisasao telefonequejá estavagrampeado.
tudo muito certinho,atestadode óbitoe até Eratudo grampoilegal,mas essesdetetives
laudoodontológicode imediato.Issoé coisa não ligam para essas burocraciasda lei.
que não era comum. Pior ainda, defunto Deram lá um troco para os agentes da
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

políciae os caraspegaramo coveiro.Depois - E o processo,Desembargador,


que fim
de uns tapas e muita ameaçana delegacia, levou?
o coveirojá todo cagadode medo,entregou - Nãosei, meu amigo,realmentenão sei.
o jogo e disse para quem tinha vendido Eu me aposenteie passei a batata quente
o defunto. Daí pediram ordem do Juiz da paraoutro.
Comarcae abrirama sepultura,e lá estava
enterrado um caixão cheio de pedras. O dia já ia ameaçando clarear e eu estava
Aí começou por lá mesmo um inquérito, cansado, porém eufórico com toda aquela
indiciandotodo mundo, menos o deputado, história, mas acabei tendo que jurar para meu
que agoratem foro privilegiado.O processo amigo que não publicaria nem uma linha no
chegounaJustiçae depoisde muita pressão Jornal, pois o processo ainda estava sob o
políticaem cimado Presidentedo Tribunal, tal Segredo de Justiça. O Desembargador se
passoua correrem "SegredodeJustiça",por despediu e foi levado por seu motorista e eu
isso o povo não sabe o que o tal deputado segui para casa e não dormi. Mais uma vez
e sua quadrilha andam aprontando no engoli fatos e verdades sem compartilhá-los
mundo dafraude e do crime.Mastenho que com pessoa alguma e sem publicá-los.
reconhecer,o homem é bom de discurso,é
Na segunda-feira cheguei à redação do
um ótimo orador,não é?
Jornal por volta das dez. Tinha dormido um
- Sim, concordo com o senhor. Eu o pouco mais e às dez e meia teria uma reunião
conheci na universidade, militante do para a pauta geral da semana. Mariana,
movimento estudantil, líder da esquerda a estagiária, me trouxe um recado com a
comunistapor lá. palavra "urgente" destacada com caneta
- É,meu caro,os comunistasde ontemsão vermelha. Era o número telefônico de um tal
mais práticoscom os problemasda vida de Fernando Schiavo que pedia retorno de uma
hoje, principalmentequando o problemaé ligação. Vi o código telefônico e percebi que
dinheiro. era do Estado de São Paulo.

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Sentei à minha mesa, pedi à copeira que de uma instituição de pesquisa e um fotógrafo
enchesse minha garrafa térmica com água por nome Nilzardo. Levei-os ao hotel e logo
quente para o chimarrão e fui responder ao depois fomos jantar e conversar sobre o
recado com a urgência requerida. trabalho deles na luta contra o amianto.
Fiquei surpreso com a ligação. O tal Fui informado que duas das maiores
Fernando Schiavo conseguiu chegar ao meu empresas que atuavam em Maraçu, apesar de
nome através de outros jornalistas de São serem estrangeiras, tinham entre seus sócios
Paulo que escreviam sobre ecologia e meio um senador de São Paulo e um deputado do
ambiente. Tomei conhecimento que ele era Paraná, políticos que também já vinham sendo
engenheiro florestal, pesquisador na área de investigados por manterem trabalhadores como
arqueologia e trabalhava como professor em escravos em suas fazendas no Mato Grosso.
uma universidade. Disse-me que queria fazer
uma visita a Goiás e dentre os assuntos mais Fernando Schiavo desenvolvia pesquisa
importantes para ele estava a exploração do sobre problemas ambientais do Brasil, para
amianto em Maraçu. Ele me disse ao telefone sua Universidade e para uma instituição da
que meu nome já era uma referência em São Itália, país onde ele havia feito seu doutorado,
Paulo e fora do país na luta contra esta praga conforme me relatou. A noite já ia avançando
que matava de câncer tantos conterrâneos e Júlia pediu licença e subiu para seu quarto;
meus. igualmente fizeram Maria Augusta e Nilzardo.
De imediato me coloquei à disposição Eu e Fernando resolvemos terminar a
para recebê-lo juntamente com sua equipe garrafa de vinho e conversar mais um pouco,
e também para ir a Maraçu se eles assim o oportunidade em que fiquei sabendo de
desejassem. outras intenções suas em relação a Maraçu:
Quatro dias depois fui ao aeroporto - Com este sobrenome,imagino que o
receber Fernando Schiavo, sua esposa Júlia, senhor seja filho de italianos e não teve
também jornalista, Maria Augusta, diretora dificuldadesde estudarna Itália.
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PedroSérqíodosSantos Maraçu.nãotem remorso

- Maisou menos.Esseé um problemaque Porém,o que me chamou a atençãoneste


tambémme fez vir a Maraçu. caso, é que tudo isso está acontecendoem
- Comoassim? Que problemao senhor Maraçue o nome desta cidadetem um peso
teriaem Maraçu,professor? em minhavida,por issotambémestouaqui.
- Vocênasceuem Maraçu? - Mas Maraçu é uma cidade pequena,
sem qualqueratrativo turísticoou cultural
- Sim,nasci. de granderelevância.O quefaz uma pessoa
- Aindatem parentespor lá? culta e viajada como o senhor ter outro
- Sim, tenho.Quasetoda a minhafamz1ia interesseem Maraçualémdo amianto?
moraporláe,emborameusavósnãotenham - Há poucovocê me perguntouse eu era
nascidoem Maraçu,vieramdo Nordestenos filhode italianos.Naverdade,minhamãeera
anosquarentae láse instalaram. neta e meu paifilhode italianos.Meupai era
-Acontecequeprecisode maisajudapara engenheirocivil e veio com uma expedição
outrosproblemas,alémdaquelesprovocados do Governofazer umas prospecçõespara
peloamianto,que vocêbem conhece. a construçãode uma estrada, que depois
vim a saber que se tratava daquela que
- Poisnão,estouà sua disposição. seria a Belém-Brasztia.Quando veio por
- Eu me interesseipor esse problemado aqui,meu pai era ainda bemjovem, recém-
amiantoquandoaindaestavaestudandona casadoe recém-formado,e seis meses após
Europae por lá eu via as notíciasdo Brasil. o casamento,deixou minha mãe em São
O amiantofoi proibidona Europahá anos Paulona casa de seus pais e veio com um
em razãode sua toxidadee era de fato um grupo de engenheirose de militares do
escândaloparao mundoa forma e o descaso exércitoparaobservara região,fazer alguns
das autoridades brasileiras que ainda acompanhamentose começarum projeto.
permitem que pobrestrabalhadoresfiquem Quandoelesjá se deslocavamde voltaaoRio
à mercêda ganânciade algunsempresários. de Janeiro,vindos do Norte, aproveitaram
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

de algumas estradas ainda esburacadase lanternasnasmãos.Minutosdepoisvoltaram


poeirentaspara facilitar o trajeto. Quando com um menino trajandotão somente um
pararam o comboiode caminhõesa cerca shortinho;sem camisa e muito assustado,
de vinte quilômetros de Maraçu, para choravamuitoe,pelapoucaidade,nãosabia
acamparempor,uma noite, meu pai armou falar direito.O dia foi amanhecendoe nada
sua redeentreum caminhãoe outroe porali mais foi visto de qualquersinal de índiose
ficou olhandoas estrelasaté o sono chegar. ficaram ali os militarese engenheiroscom
Namatavizinhada estrada,osomdosbichos aquelacriançaque,pelascaracterísticas, não
da noiteeraintensoe um soldadono plantão era indígena.Um dos engenheirossugeriu
fazia a segurançade todos, pois onças e ao comandante do comboio,Major Sales,
cobraspoderiamfazer uma repentinavisita. que voltassema Maraçuou que parassena
Emtodoacampamentoo diade trabalhoe de próxima cidade e procurassempelos pais
viagemcomeçavacom o clareardo sol.Mas daquelemenino.Alguémpoderiater alguma
naquele dia, ainda não tinha amanhecido notícia de criança desaparecida.O Major
quandotodosacordaramassustadosao som não autorizou o retomo a Maraçu, pois
de tirosdisparadospelosoldadoquemontava atrasariaa viagem e, segundoo seujuízo,
guarda. Meu pai deu um pulo da rede e, iriaser gastoum combustíveldesnecessário.
próximoaofogo aceso,pôdever aindagente Taxativo, o Major afirmou: "Não vamos
correndopelamata e o soldadonervosocom voltar para Maraçu,não. Nada de voltar,
a armanas mãos.Quandoas coisasforam se atrasara viagem e gastar combustívelpor
acalmandominutosdepois,perceberamque causade um menininhodesses.Na próxima
se tratava de um grupode índios,por causa cidade a gente vê o que fazer com ele".
de alguns objetosdeixadospor ali e todos Meu pai teve dó da criança,pegou uma
ficaram ouvindonaquelaescuridãoo choro camisaem sua mala e vestiu nela.A camisa
de uma criança,que pareciabem próximo. grandenaquelecorpinhojá serviu também
Umsargentopegouum fuzil e saiu com dois de cobertorpara o frio. Meu pai pegou o
soldados para olhar as redondezas,com menino nos braços,acalmouseu choro,lhe
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PedroSérqiodosSantos Maraçunãotem remorso

deu água,um pedaçode bolachae um pouco coma boca.O meninofoi ficandoali naquela
de caféesfriadono soproaté tomá-lomomo. casa,dia apósdia, e depoisde três semanas,
O comboioseguiu em frente e só parou na meu pai procurouum advogadoamigopara
hora do almoço.·em Palmira,povoado de ter uma orientaçãosobre o que fazer com
duasruas e poucocomércio.Poralininguém o menino. O tal advogado,detentor de um
tinha notíciasobreaquelacriança,ninguém forte senso de praticidade,indagou:"Ora,
a conhecia.Meu pai conseguiuum pouco você achou o menino abandonado,cuidou
de leite,amassouumas bolachasnum prato deleaté agora.Tudosó dependedo que você
e improvisou um mingau. Assim foram e sua mulherestãoquerendo.Se nãoquerem
levandoa viagemde um povoadoa outro e ele com vocês,basta colocá-loem qualquer
meu pai foi conseguindoaqui e acoláumas orfanatopor aí, que as freirascuidarãodele
peças de roupas infantis e foi vestindo o melhor que os índios;agora,se você quiser
menino numa jornada que durou treze ficar com o menino,vá ao cartórioe registre
dias até chegarao Rio de Janeiro.Por lá, o ele comoseu e de sua mulher,mas em todo
Exércitodeu pouca importânciaà criança caso, guarde a ordem escrita que o major
e o Majordeu ao meu pai uma autorização lhe deu;é um documentooficialdo Exército,
formal para levá-lapara São Paulo.Assim, provade sua boafé.
meu pai chegoudiante de minha mãe com
um menino pequeno em seus braços, em A noite já ia mostrando seu peso em
meio a suas malas, roupas sujas e umas nosso cansaço, mas o vinho, um leve vinho
poucaslembrançasde aventurano sertão.O uruguaio, estava muito bom e percebi que
sentimentomatemo dé minha mãe, que até aquela história do engenheiro não era algo
então não tinha filhos, afloroufortemente que eu devesse desconsiderar. Sugeri que
diante do ménino.f oí lõgopegandoele no pedíssemos mais uma garrafa para que o
colo,depoislhêdêttbanho ecomidana bocae papo continuasse e depois de acionar o
foi percebêndoquea criança poucofalavaou garçom, fiquei ali tal qual uma coruja, atento
falava mais com osolhosassustadosdo que ao que viria:
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

- Então, professor,seu pai registrou o Acho que ela teve medo de me contar a
meninocomofilho? verdadee eu resolverbuscarminha fam{lia
biológica,e porfim eu me esquecerdeles.Ela
-Sim,elenãotevedúvida.Aindajovens,ele faleceuum ano antes da morte do meu pai
e minha mãe adotarama criançasem muita e por ela eu nada soube.Aliás,dela só tive
burocracia.Foramno cartório,levaramduas palavrasde amor,carinho,cuidadoe ternura.
testemunhas amimadas e deram o parto Ela era pianista, tocava para eu dormir,
comoparto naturalocorridona fazenda em tocavapara eu acordar.Passadostrês anos
Andradina.Logodepoisprocuraramo padre da minha adoção,minha mãe engravidoue
e batizarama criançae essacriançasou eu. aos seis anoseu ganheidois irmãosgêmeos,
Engoli o vinho engasgando, saindo um Bento e Clara.Crescemosjuntos e, apesar
pouco pelo nariz e até pelo ouvido, eu acho. da diferençade idade,nos dávamosmuito
Distraído pelo cansaço e pela bebida, eu bem e meus pais nunca demonstraramter
realmente não esperava por aquele desfecho qualquer diferença de sentimentos entre
e, no susto, me vieram de imediato as histórias os três filhos.Meu irmãoBento é médicoe
de meu avô sobre os A vá-Canoeiro, os índios trabalhano Hospitaldas Clfnicase minha
invisíveis. Era eu me engasgando outra vez irmãClaraseformouem Enfermagem,casou-
com a verdade. se e logoficouviúva;perdeuo maridoem um
acidentee descobriua paz na vida servindo
- O quê?!É o senhor?!- Exclameiainda aospobres.Éfreirae moranumacomunidade
tossindoassustadocomofato. paroquialpróximaaos{ndiosGuarani,no Rio
-Perdoe-me, nãoquislhedeixarengasgado Grandedo Sul,e nosfins de semanapassaos
com isso.Sim,sou eu. E meu paifaleceulogo sábadose domingosassistindodoentescom
após minha formatura. Antes, porém, ele hansen{ase.Eu me formei e fui estudar na
quisme contartudo o que sabiasobreo meu Itália.Lá fiz mestrado,doutoradoe amigos.
passado,achandoqueesteeraum direitomeu, Depoisde sete anospor lá, volteiao Brasile
apesarde minhamãe nuncater concordado. fiz concursopara professorna Universidade

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PedroSérqíodosSantos Maraçunãotem remorso

de SãoPaulo.Naquelaépoca,poucose falava contava as maldades do Coronel Jales contra


sobrea questãoambiental;oforte mesmoera os Avá-Canoeiro e o tal sumiço do seu neto.
a industrialização
do Estadoe do País.Eujá O professor falava de sua história e eu me
me interessavapelo meio ambiente desde recordava do meu avô contando sobre as
que me formei e voltei minhas pesquisas profecias do cego Ivonaldo dizendo à esposa
para esta área.~essaforma, quandoainda do Coronel que o menino voltaria, mas ela
estava estudandona Europa,fui indagado não ia viver para ver. Eu não podia dizer a
váriasvezessobreo problemado amiantono ele o que eu sabia sobre o sequestro do filho
Brasil.Inicialmenteeu me preocupavamais do Doutor Altamiro, pois seria antecipar
com desmatamento,mas depois de tanta algo que poderia não ser verdade. Pensei
rapidamente e resolvi escutar mais e falar
indagaçãoe tambémindignaçãodoseuropeus
menos, e esperar o momento oportuno para
sobre a produçãodo amianto aqui, resolvi contar algo ao professor, que pudesse lhe
estudar o assunto e encontreigrupos no ajudar no desvelamento do seu passado. Ele
Brasilquejá estavamcombatendoa extração falava e eu relembrava as histórias de meu avô
desse minério.E mais recentemente,li as e ao mesmo tempo observava que, pelo seu
suas matériassobreo amiantoem Maraçu. aspecto físico, aparentava idade compatível
O meu interessepor esseproblemacoincidiu com a do menino desaparecido.
com a curiosidadeque passeia ter sobre o
meu passado.Acho que é naturala todo ser - Assim, hoje estou por aqui, em busca
humano querer saber exatamentede onde do meu passadoe querendover "ín loco"
veio,comofoi gerado,emboraeu não tenha essa desgraçaque é o amianto na vida de
interesseem renegarde qualquerformameus tanta gente que tem adoecidoe encontrado
paise irmãos;elessãodefato minhafamz1ia. a morte.Temosque acharuma solução,um
caminhoparaacabarcoma ganânciadesses
O professor Fernando Schiavo relatava empresáriosque pautam seus lucros em
sua história e eu voltava à minha infância cima de cadáverescom pulmões de pedra.
escutando as palavras de meu avô, que Vocême ajuda?
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- Claro,professor,
claro!Soujornalista,,
mas refeição que minha mãe fazia questão de
antes de tudo,sou maraçuense,tenho amor servir, ainda que no improviso da chegada
pela minha terra_,onde aindamorammeus repentina. Com meus pais, minha irmã e
pais,meusirmãosemeusparentes.Maraçujá uma prima sentados à mesa, coloquei a todos
sofreumuitocomo amiantoejá envergonhou o motivo de minha ida repentina a Maraçu.
pordemaiso paíscomtantamorte. Mal acabei de contar a história do professor
Fernando Schiavo e meu pai já afirmava
Terminamos a garrafa de vinho e
taxativamente:
prometi voltar no dia seguinte após o almoço,
para seguirmos viagem até Maraçu. O dia - É ele,ofilhodoAltamiro,netodoCoronel
amanheceu e logo cheguei aoJornal. Conversei ]ales.
com Doutor Custódio, expliquei a importância
- Nãosei, meu pai, podeser, mas vamos
dos fatos e fui liberado, juntamente com
comcuidado.Nessaminhavidadejornalista
um fotógrafo para acompanhar o grupo até
vi muita coisa. Vi gente que acreditava
Maraçu.
piamenteserparentede alguéme de repente
De volta ao hotel, saímos em dois carros ver suas esperançasfrustradas;vamoscom
às treze e trinta horas. Por volta das dez da calma.Primeirovou acompanharoprofessor
noite estávamos chegando a Maraçu. Deixei- e os demais na investigaçãosobre essa
os em um hotel e fui para a casa de meu pai, desgraçado amianto,depoisa gente cuida
pegando a todos de surpresa com a minha disso.
chegada. Sempre gostei disso, de chegar sem
O esforço inicial da equipe se voltou para
avisar. Acordei meus pais que, de hábito,
o amianto. Foram às minas, às fábricas, aos
dormiam mais cedo, com as galinhas, como
postos de saúde e às casas de trabalhadores.
dizem no interior.
Quando o prefeito soube da presença da
Coloquei as malas no quarto que sempre equipe e que não se tratavam de empresários
me esperava e fui à cozinha para comer uma e investidores, cuidou logo de fazer pressão.
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PedroSérgiodos Santos Maraçunão tem remorso

O delegado, pau mandado do prefeito, e às amizades com encarregados do escritório


deu ordens ao destacamento da Polícia Militar central, fora promovido para trabalhar como
para manter vigilância cerrada ao grupo. Nos despachante e controlador de estoque no
três primeiros dias fomos abordados quatro almoxarifado e havia seis meses, à custa de
vezes pela polícia, s.ob diversos pretextos: nova promoção, trabalhava no escritório
blitz de trânsito, verificação de documentos, central, no arquivo de documentos da fábrica.
busca por suspeitos, etc., mas ninguém ficou Destaforma, com acesso a toda informação
intimidado. Bem sabíamos que nessa história de entrada e saída de recursos e dos projetos
toda do envenenamento do povo pelo amianto, da empresa a médio e longo prazos no Brasil,
os políticos locais eram também meninos de ele foi descobrindo um importante fato da
recado dos grupos estrangeiros que, à custa de corrupção e da degradação ambiental.
propina barata, montavam suas máquinas nas
Finalizando o sexto dia na cidade, mandei
minas, suas fábricas, destruíam o meio ambiente
um recado ao Jorge, através de um conhecido
e os órgãos de fiscalizaçãomunicipais, estaduais
de infância, para que ele nos encontrasse após
e federais faziam vista grossa.
a missa das sete da noite, na própria igreja,
Depois de um contato aqui e outro ali, para não levantar suspeitas dentro do cerco
chegamos a um empregado da fábrica, cujo constante que a polícia nos fazia diariamente.
pai falecera de câncer no pulmão havia dois Depois da primeira conversa, marcamos outra
anos. Jorge odiava o emprego, a fábrica, os para o dia seguinte, no mesmo local.
patrões estrangeiros que impunham regime Com uma pontualidade não costumeira
de trabalho rigoroso, com péssimas condições no Brasil, Jorge chegou com um envelope.
de segurança e higiene, mas era dali que E o padre, também interessado no assunto,
conseguia com o baixo salário sustentar a nos levou para uma das salas da catequese
mãe viúva, a esposa e três filhos. paroquial e ali o Jorge nos mostrou uma
Jorge passou dois anos na produção da cópia do projeto assinado pelo diretor de uma
mina, mas graças à conclusão do segundo grau das fábricas, encaminhado a São Paulo, e de
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

lá, depois de devidamente traduzido, seria na legislação brasileira é também irrisório.


encaminhado à Holanda. Assim, tais valores já estão incluídos no
O projeto, que tinha um carimbo de orçamento geral apresentado a seguir na
CONFIDENCIAL na primeira página, previa página 25."
a compra ou desapropriação de uma área Aquele item do projeto era a síntese
de cinco mil hectares, onde havia várias descritiva da associação macabra entre empre-
nascentes e cerrado natural, e indicativo de sários gananciosos e políticos brasileiros
boa produtividade de amianto. A empresa seguidores da ética da pilantragem, e acho
projetava aumentar em cinquenta por cento que ele contou quinhentos anos de história
a sua produção no prazo de três anos, e em brasileira em meia dúzia de linhas.
um dos itens do projeto estava textualmente
escrito: Aquele documento era tudo que
o pessoal da instituição de pesquisa e o
"1. 7-Asboas possibilidades produtivas da professor Fernando Schiavo buscavam para
área justificam um investimento significativo bombardear no Congresso Nacional, nas
na implantação do projeto. Os empecilhos Universidades e na mídia estrangeira, aquele
burocráticos do Governo brasileiro e centro de operações da morte instalado em
do governo local podem facilmente ser Maraçu.
transpostos com recursos de pouca monta,
repassados aos agentes públicos, sempre em Mas, havia um problema. Caso o docu-
espécie, através do nosso pessoal capacitado. mento se tornasse público, a empresa logo
E para não deixar problemas com a imagem saberia que Jorge teria sido o responsável pelo
da empresa e do projeto diante da mídia, seu vazamento. Neste caso, ele correria sério
já estamos prevendo no item referente risco de se encontrar em breve com seu pai.
ao desmatamento a chegada dos fiscais e O prefeito, pau mandado dos diretores
aplicação de multa, principalmente em razão da empresa, e os vereadores locais, dentre
de algumas minas de água. O valor das multas eles o Doutor Altamir, até então suposto pai
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

do professor Fernando, não hesitariam em sua imagem guerreira, está sempre a


solicitar à Polícia Militar um serviço extra lutar contra o dragão, a força do mal. O
contra Jorge ou contra qualquer um que Jorge,soldadode Deus,vence e vai vencer,
atrapalhasse os interesses do amianto. Em porque luta ao lado do Pai, clemente e
troca de um bom chµrrasco, umas caixas de misericordioso.Gostode SãoJorge porque
uísque importado e' um garrote, o sujeito também luto na vida;e mais do que eu, vejo
poderia sofrer um assalto mal explicado ou a luta de gente de bem como você contra
um atropelamento sem autoria certa e, como dragõescomoeste do amianto.
dizia o Leo Rodinho, faxineiro do Jornal, Há tempos eu estava com aquele
passaria o resto da vida morto, mortinho. Santinho de São Jorge que havia recebido
Com o documento nas mãos, nós ficamos na Igreja no dia de sua festa. Para que não se
ali reunidos até a madrugada, pensando rumos estragasse em meio aos documentos e outros
e soluções. Disparar a bomba na empresa papéis, mandei logo plastificá-lo; estava novo,
e nos políticos era fácil, mas o que fazer conservado, intacto. Na frente, a estampa de
com o Jorge? O professor Fernando Schiavo São Jorge em seu cavalo matando o dragão, e
fez uns telefonemas para São Paulo, Maria no verso, a oração de SãoJorge:
Augusta ligava para o pessoal da instituição
de pesquisa e até o padre foi telefonar para "Oh! São Jorge, meu Sçmto Guerreiro,
o bispo. E eu ali, com cara de "o que vai ser invencívelna fé em Deus, que trazeis em
de nós", fazendo sala para o Jorge, que já Vossorosto a esperançae confiança,abri
começava a ficar relativamente apreensivo meus caminhos.
com tudo, apesar de sua coragem e de seu Eu andareivestidoe armadocom vossas
espírito de colaboração. Abri minha carteira, armasparaquemeusinimigostendopésnão
tirei um santinho e disse a ele: me alcancem,tendo mãos não me peguem,
- Olha, eu não me chamoJorge, mas tendo olhos não me enxerguem e nem
sempre fui devoto de São Jorge, que na pensamentospossamter parame fazer mal.

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Armasdefogoo meucorponãoalcançarão, telefonemas. O padre disse que conseguiu


facase lançasse quebrarãosemaomeu corpo abrigo para Jorge e para sua família, por três
chegar,cordase correntesse arrebentarão meses, na diocese de Porto Alegre, a alguns
sem o meu corpo:amarrar. mil quilômetros de distância dali. Enquanto
GloriosoSão;Jorge, em nome de Deus isso, o professor ainda fazia algumas ligações.
estendei vosso1escudo e vossas poderas~ De volta à sala, Fernando Schiavo disse que
armas, defendendo-mecom vossa força e havia conseguido apoio para Jorge em São
grandeza. Ajudai-me a recuperar todo 0 Paulo. A associação de professores daria
desânimoe a alcançara graçaque vos peço. emprego para ele, com um salário um pouco
maior que aquele que ganhava em Maraçu.
Dai-mecoragem e esperança,
fortalecei
minha
fé e auxiliai-me
nestanecessidade.
Amém" -Então,Jorge,comoficamos?
- Tome,Jorge,
fiquecomestesantinho,reze Perguntou o professor Fernando, sabendo
a Deus,a NossaSenhorae peçaa intercessão da complexidade de todas aquelas mudanças
de SãoJorgeGuerreiro.Vocêé um SãoJorge na vida de Jorge.
dosdiasatuaisa lutarcontrao dragão. - Seinão,professor.Seinão.Sedependesse
de mim eu botava fogo naquelafábrica e
. Ele se emocionou, segurou o santinho,
deixou correr uma lágrima e me disse: tocavaessesestrangeirosdaqui de Maraçu.
Eles são assassinos,mataram meu pai e
-MeunomeéJorgeCastanheira Filho.Meu muita gente, e vão continuar matando se
pai tambémeraJorgee morreucombatendo alguém não fizer alguma coisa. Vou falar
0 dra_gão,
o~ melhor,morreusob O fogo do com a Gílma,minha mulher;ela sabe que
dragao.Muito obrigado.Vou ficar com ele, nossavida é difícilaquie nãovai serfácilem
vou guardare vou rezar. qualqueroutrolugar.A gente nasceuaqui e
os parentesmoramtodosaqui,mas eu sei da
O padre e a Maria Augusta voltaram importânciade divulgaresseprojetopara o
do escritório paroquial, onde faziam seus mundointeiro.
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- Então vá para casa, Jorge, converse Estávamos na sala, meu pai sentado
com a famz1ia,mas evite a conversacom em uma poltrona, o casal no sofá e eu numa
amigos e vizinhos, pois se você tiver que cadeira perto da porta da cozinha. Maria
sair de Maraçu,terá que sair àspressase às Augusta e Nilzardo ficaram na varanda. Meu
escondidas. pai olhava na minha direção e de mãos juntas
girava os dedos em flagrante nervosismo, me
- Eu sei,padr'e.Sei comosão essascoisas.
fuzilando com os olhos. Meu pai não era muito
Poisbem, vou indo para casa.Vou deixaro
diplomático com informações delicadas.
projetocomvocês,confioem vocês,confiono
Depois que ele avisou a vizinha que o marido
padre.
dela havia falecido, minha mãe não deixou
Combinamos nova reumao para dali mais ele dar notícias dessa natureza. Dois
a dois dias. Jorge saiu e ficamos com aquele meses antes, ele colocou a cabeça por cima do
documento e mil ideias. Pensávamos nas muro e gritou:
pessoas e nas instituições que primeiro - DonaNenzinha!ô DonaNenzinha!
receberiam cópias. Estrategicamente, quem
- Sim, senhor,descurpea demora.Tava
deveria primeiro receber as denúncias e por
onde começar o bombardeio.
ali colocandoum arroznofogo...
- É que ligaramagora aqui em casa lá
Enquanto esperávamos a decisão de Jorge
do posto de saúde e mandaramavisar que
e sua família, o professor Fernando resolveu ir
Seu Doca,seu marido,bateu com as quatro,
atrás do seu passado. Acordou cedo, foi à casa
morreuagorahá pouco.
de meu pai acompanhado de sua esposa Júlia
e de seus amigos e logo indagou a meu pai Dona Nenzinha quase morreu também.
por onde ele deveria começar, quem eram os As pernas bambearam, perdeu pressão no
mais velhos da cidade que poderiam informar sangue e arriou no chão; foi aquele Deus no
alguma coisa sobre uma criança desaparecia, acuda. Então, estava lá meu pai, já nervoso
sequestrada pelos índios. para falar tudo, assim, na bruta mesmo, para

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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

o professor Fernando. E ele tinha arrumado - Tomeaqui,professor,um cafezinho.


lá na Câmara Municipal uma fotografia do - Queronão,senhor.Queroé saberdessa
Coronel ]ales, quando mais moço; um era a históriadireitinho.Comoé? O que vocêsabe
cara do outro, parecia coisa de reencarnação, sobreo meu passado?
embora eu não acredite nisso.
- Bem,sei tudo e nãosei nada.O que todo
- Então,o ~enhorsabe por onde posso mundo nessa cidade sabe é isso que você,
começar,seráque alguémnessacidadepode maisou menos,jásabe:Ummeninopequeno
falar do sumiço de um menino pequeno foi sequestradopelos índios e nunca mais
nas mãos dos Avá-Canoeiro,lá pelos anos apareceu.Esse menino pode ser você;mas
cinquenta? preste atenção,professor,pode ser; não há
- Olhe,professor... provadefinitivadequeissosejaverdade.Eue
meu paivamosajudá-lo.Aliás,jácomeçamos
Meu pai tossia, girava os dedos, passava agir,mas temosque ir comcalmaporque,se
a mão na cabeça. tudo se confirmar,sua verdadeiraorigem
- Ô mulher, manda trazer aí um cafépra podeser um poucoproblemática.
nós aqui! - Pois é, professor,acho melhor - Comoassim,problemática?
o senhor perguntar isso para o meu filho
aqui. Enquanto meu pai buscava em seu
quarto o envelope com a fotografia do Coronel
- Comoé? Você tá sabendo de alguma Jales, fui contando ao professor tudo aquilo
coisaque aindanãome disse? que escutei da boca do meu avô, por noites e
O professor se virou para mim com um noites nas redes da varanda da minha casa do
tom de interrogatório policial, olhos fuzilantes sítio. Fui narrando o que o Coronel]ales fazia
e gesticulando. Meu pai interrompeu a com os índios A vá-Canoeiro, como pisava nos
curiosidade nervosa do professor Fernando pobres e como morreu na desgraça depois do
Schiavo com a chegada da bandeja do café. sumiço do neto. Não deixei de relatar o que

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

disse o cego Ivonaldo. Enfim, contei tudo o me abandonaramperto do acampamento,


que eu sabia e meu pai confirmou os fatos. mas não imagineique a históriafosse tão
dolorida assim, de uma dor que ainda
Por fim, ele mesmo concluiu que seus
pais biológicos, Doutor Altamir e sua mulher, continuaatual.
estavam ali a menos ;de mil metros, a poucos - Calma,professor... - Ponderei,tentando
quarteirões da casa deh1eu pai. Este,por sua vez, amenizara situação.- Pode até ser que o
não deixou de advertir ao professor Fernando senhornãosejafilhodoDoutorAltamire que
Schiavo sobre a personalidade peçonhenta e tudo nãopassede um engano.
interesseira que sempre teve o Doutor Altamir Júlia, que até então ficara calada sentada
e que, desde há muito no cargo de vereador, ao lado do marido e segurando firme a sua
se mantinha firme na defesa das empresas de mão, interveio:
exploração do amianto e não se cansava de
dizer em seus discursos eleitoreiros que ele era - Não,issoé quaseimpossível.Olheparaa
o pai do amianto em Maraçu, que desde muito carado Fernandoe olheparaessafotografia
jovem lutou para que o desenvolvimento do Coronel]ales. Tanta semelhançanão é
chegasse a Maraçu através do amianto. coincidência;pior ainda é quando a gente
junta tudo, a semelhança entre os dois
O professor Fernando, homem de e a história do desaparecimentodo neto
estudo e de luta pela causa do meio ambiente
do Coronel,com a situaçãoem que ele foi
e da saúde, se via ali diante de seu passado,
encontradopelopai. Issonão é coincidência;
um passado que, se confirmado, seria um
achoque agoraissoé a verdade.
presente ainda de morte e destruição, por
tudo que sua família biológica significou e Todos falavam, davam opiniões, até
ainda significava em Maraçu. minha mãe, que veio da cozinha com o café,
- Eu suspeitavade algo estranhoe meio entrou na conversa. E o professor Fernando
diferenteno meu passado,nessaforma como ficou calado, escutou, escutou, e depois,
meu pai me encontroudepoisque os índios secamente, interveio pondo-se de pé:

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PedroSérqiodosSantos
Maraçu.
nãotem remorso
- Chega.Vou lá na casa desse Doutor -Porfavor,me esperemum pouco,fiquem
Altamir agora.Alguémme acompanhaou
vou lásozinho? à vontade;Altamirestálánoquartovestindo
um temo. Tem reuniãoimportantehojena
Meu pai, que não era amigo do Doutor Câmara,com os diretoresda empresado
Altamir,mas tinha um;aconvivênciarespeitosa amianto.Uminstantesó.
se viu na obrigação d~ fazer as honras da casa:' A velha senhora tinha na façe o
- Não,professor,o que é isso?O senhor sorriso forçado da gentileza e as tatuagens
não vai sozinho,eu lhe acompanho,faço do sofrimento que a envelheceram mais
questão!Euconheçoo DoutorAltamirdesde ainda, Era ainda jovem quando perdera o
meninoe ele vai nos receber.Aliás,vamos filho nas mãos dos Avá-Canoeiro. Ela quase
todosjuntos lá. enlouqueceu, passou meses muda, deprimida,
num sofrimento só. Noresto davida, cuidou de
Assim,nos dirigimostodos à casa amarela um marido que viveu praticamente à custa da
da Rua Coronel Jales, que evidentemente fama do pai. Arrogante, pouco sofrido e pouco
reçebeu esse nome numa dessas homenagens interessado no filho desaparecido, a política
que Câmaras Municipais costumam prestar local e os negócios da famíliaeram, para ele,
a falecidos sem história ou com história mais importantes. Dona Esmeralda teve que
pouco recomendável... No casarão amarelo aturar também no casamento as amantes do
desgastado pelo tempo e com jeito de pouca marido, dentro e fora da cidade, inclusive o
reforma e manutenção, uma empregada nos sofrimento dele na cachaça quando uma delas
recebeu à porta e disse que ia chamar os faleceu em acidente na Belém-Brasília,Era, a
patrões, Logo veio Dona Esmeralda, esposa caráter, um viúvo da amante; por trinta dias
do Doutor Altamir, e nos convidou a entrar vestiu ternos pretos.
deixando todos confortavelmente sentado;
Enquanto ela nos recebia e nos alojava
na sala e, após os cumprimentos, foi chamar
o marido. a todos na sala de visitas cheia de retratos
da família nas paredes, o professor Fernando
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PedroSérqíodosSantos Maraçunãotem remorso

quase não se continha no nervosismo e na - Pois bem, DoutorAltamir, meu filho,


ansiedade. Mas ao mesmo tempo olhava que o senhorjá bem conhece,trouxe aqui a
fixamente para aquela que, certamente, era Maraçuseus colegaslá da Capital.Melhor,
sua mãe, quase como se pedisse colo, numa sãoamigosquevieramdeSãoPauloe querem
vontade enorme de djzer de uma vez por todas um dedode prosacomo senhor.
que ela poderia voltar a sorrir, com o rosto e - Ah! Sim, querem conversar sobre o
com a alma. Talvez quisesse ele colocá-la no amianto, o desenvolvimentode Maraçu...
colo e logo abraçá-la. Sãojornalistastambém?
Foram apenas cinco minutos de espera
Tomei a palavra e fui encaminhando a
na sala de visitas, tempo que, para o professor
conversa.
Fernando, foi o suficiente para aprender
enfaticamente o que era a tal teoria da -Nãoé bemisso,DoutorAltamir.Oamianto
relatividade do velho Einstein. tambémnosinteressae o22 deJulhomepediu
mais algumasmatériassobre esse assunto.
Finalmente entrou na sala o Doutor Masnósviemosaquiporoutromotivo.
Altamir em terno branco, cabelo bem penteado
e o bigode grisalho. E no conhecimento antigo -Poisnão...
com meu pai, foi logo nos cumprimentos - Na verdade, estamos aqui para
de forma efusiva, como ele o fazia com seus conversarmosum pouco sobre aquele caso
eleitores de cabresto. do desaparecimento do seufilho.
- Olhe,não queroparecergrosseirocom
- Muitobomdia!Masa que devoa honra vocêe oscolegasjornalistasquevieramde tão
da visita? Fiquemà vontade, vamos todos longe,maseu nãogostariamaisdefalarsobre
nosassentar. assunto que já trouxe tanto sofrimentoà
minhafamz1ia. Paranós é um casoencerrado
Meu pai tomou a palavra e fez as devidas e nãovejoquevalea penaficarcolocandoisso
apresentações.
em páginasdejornal.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

- Doutor Altamir, me desculpe a - Sim,senhor,achoque sou seu filho e de


insistência,mas eu não vim aqui para DonaEsmeralda.
entrevistaro senhor ou escrevermatéria Enquanto o DoutorAltamiro se surpreendia
sobreofato;a questãoé outra.
nas interrogações exclamativas,Dona Esmeralda
- E qualé a qu~stão? não aguentou os olhos firmes de Fernando e
bambeou as pernas e foi desmaiando. No corre
Enquanto estávamos nessa conversa
que acode, a colocaram deitada sobre o sofá,
de cercar bode fujão, Dona Esmeralda, que
trouxeram água, foram abanando um sopro de
tinha ido à cozinha provavelmente adiantar
ar e aos poucos ela foi recobrando a consciência.
um café, voltou e se colocou de pé, encostada
Uns quinze minutos depois, ela já estava lúcida,
à porta, presenciando tudo. E o professor
devidamente sentada ao lado do marido e o
Fernando, explodindo em agonia e com o
professor Fernando começou a narrar sua
envelope na mão, com a fotografia do Coronel
história, ao mesmo tempo em que mostrou a
Jales, pegou a palavra e foi soltando o verbo
fotografia do Coronel]ales e eles então puderam
ali, na dura, fazendo o chão tremer:
ver nitidamente a semelhança entre os dois.
- Doutor Altamir, eu sou o Fernando Dona Esmeralda não se conteve e mal
Schiavo.Sou professore engenheiroe moro deixou que Fernando concluísse toda a sua
em SãoPaulo.Essaé aJúlia,minha mulher, narrativa dos fatos e disse:
essa é a MariaAugusta e esse é o Nilzardo
quetrabalhamnumainstituiçãodepesquisa, - Fiquede pé, tire a camisa!
tambémem SãoPaulo.Defato,vimaquipara -Mas,mulher,o queé isso?- Interrompeu
o
verdepertooproblemadoamianto,masvim DoutorAltamirsementenderocomportamento
principalmente,para tentar resgatarmeu estranhodaesposa.
passado,pois achoque eu sou seu filho que - Calaa boca,Altamir!Você nunca fez
foi tiradodessafamz1iapelosAvá-Canoeiro. nadaparaacharnossofilho,agoraeu quero
- Meufilho??!!! ver essehomemsem camisa!
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

Dona Esmeralda parecia retomar as abraço demorado no choro convulsivo que


forças da leoa que defende o filhote, forças parecia querer buscar naquele calor dos
que os anos ocultaram. corpos de mãe e filho o resgate do passado
que estava irremediavelmente perdido, mas
- Moço,porfavor,tire a camisa,porfavor!
que agora poderia tomar novos rumos.
Sem fazer qualquer objeção, o Professor
Depois do longo abraço, Dona Esmeralda
Fernando puxou a camisa presa ao cinto da
ainda chorava mais calmamente e passava a
calça e foi abrindo um a um os botões e, ao
mão no rosto do filho como se contasse um
tirar a camisa, Dona Esmeralda chegou bem a um os fios de sua barba grisalha. Doutor
perto e o fez virar as costas, e ali estava o sinal Altamir se aproximou dele, também sem
de nascença, uma mancha preta em forma qualquer dúvida sobre a paternidade e lhe
de lua crescente, com mais ou menos cinco estendeu a mão, e por uns poucos instantes ele
centímetros. deixou os braços da mãe e trocou um abraço
A velha senhora alternava riso e choro, com o pai que, com economia de palavras e
tremia as mãos e buscava o rosto daquele que voz embargada, disse:
ela tinha certeza que era seu filho. Ela que - Sejabemvindo.
cuidara dele na primeira infância e conhecia
Fernando logo voltou aos braços da mãe
bem o sinal, sabia que aquela meia lua não
e por um tempo ainda ouviu seu choro, suas
era só dele, mas muitos na família eram assim
lamúrias pelo tempo perdido sem o filho, e as
marcados geneticamente.
palavras de euforia do reencontro.
Ela chorava, Fernando chorava, Júlia
Meu pai, sabiamente tomou conta da cena:
e Maria Augusta choravam. Doutor Altamir
olhava para a cara de cada um sem saber - Poisbem,DoutorAltamír,seu filho está
o que dizer, e Nilzardo resolveu fotografar aí, e eu acho que vocês têm muito o que
aquele momento de abraço entre o Professor conversarcom ele e talvez com a esposa
Fernando e sua mãe. Um abraço largo, um dele.Nósaquijá estamossobrando,achoque

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

meufilho e os outrosvão quererir comigo.O só alegria; chamou irmão, sobrinhos, netos,


ProfessorFemando vai ficandopor aí com a todos os parentes para conhecerem o filho
DonaJúliae maistardea gentese encontra. desaparecido. Tudo aquilo era mesmo um
milagre de Deus, dizia ela, e lá em casa meu
Dona Esmeralda veio até nós cheia pai se recordava do cego Ivonaldo:
de agradecimentos ~ eu não deixei que ela
prosseguisse muito: ' - Eh!O cegoIvonaldotinha razãoquando
foi lá benzer o Coronel.Ele fez profecia
- Ora,DonaEsmeralda,nãofizemosnada mesmo,quandodisseàquelaalemãnazista,
para achá-lo;ele simplesmenteme procurou a DonaOlga,que o meninoia voltar,mas ela
apóslerumamatériasobreMaraçueoamianto, não ia ter a alegriade vê-lo.Já faz mais de
e porcertacoincidência,depoisde ter escutado quinzeanosquea miserentamorreu.Euac~o
na infânciameu avôfalardo Coronel]ales, seu mesmoqueDeussó dá essesdonsda profecia
sogro,e odesaparecimento doneto,eusomente para os pequenos,para os pobres;para essa
deiestainformação aoProfessor Femandoe ele gente rica,cheia de orgulhoe racista,Deus
mesmoquisvir aqui hojeparatirartudo isso nãodá essagraça.
a limpo.Achoquefoi isso,DonaEsmeralda,o
destinolevou,o destinotrouxe. o professor Fernando e sua esposa foram
o alvo das atenções durante todo o dia. A mãe,
Fomos todos saindo, deixando agora emocionada, ora ria, ora chorava. Queria
a família mais completa e uma grande saber tudo da vida do filho, se ele tinha sido
quantidade de histórias para serem contadas bem cuidado, se passara fome, frio, doenças,
de porta a porta. E o brilho que agora estava onde morou, onde foi criado. Sua mãe lhe
no olhar de Dona Esmeralda, nem de longe contou seu nome de batismo e de seu primeiro
lembrava as rajadas de tristeza que o tempo registro: Severiano. Só assim lhe chamava.
lançou sobre aqueles olhos. Disse-lhe que quem escolheu seu nome foi o
Naquele dia, Doutor Altamir adiou todos avô Coronel Jales. Fernando não destratou a
os compromissos. A mãe, Dona Esmeralda, era em~ção da mãe, mas no fundo, gostou de não
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

ter tido esse nome, nem convivido com esse todos dormiram felizes no velho casarão do
avô, cuja história e a fama ele já bem sabia. Coronel Jales e o Doutor Altamir não ousou
Anoiteceu e o jantar foi servido em tom falar com a esposa qualquer coisa sobre o filho
solene e festivo; fomos chamados novamente recém-chegado. Mas, logo no dia seguinte, no
à casa do Doutor Pfltamir e até o bispo e 0 café da manhã as coisas foram se definindo:
vigário paroquial láfestavam. - Altamir,vou tomar um café aqui bem
Depois de toda a comemoração, rápidoe querouma carona;queroque você
Fernando e a esposa se despediram da família, me deixelá no hotelparaver nossofilho.
dos novos conhecidos e foram descansar - Vá comcalmaEsmeralda!Tá certoque é
suas emoções no hotel onde se hospedaram. nossofilho,masvocêviu queeleandametido
Dona Esmeralda, eufórica, não sabia se com o filho daqueleoutro,ojomalistazinho
acompanhava o filho ou se ficava em casa. de merda,que é filho dessacidadee fica só
Fernando ponderou,já chamando-a de mãe: fazendoreportagemem cimade reportagem,
- Olhe,mãe, a senhoranão vai mais me atacandoo amiantoe o desenvolvimento.
perder,estouaqui,vivo,comcasae endereço -Altamir,eunãoquerosaberdeamiantoe de
certo. Ainda vou ficar uns dias aqui em seusinteressespolíticos,
euqueroésaberdonosso·
Maraçue quandoeu voltarpara São Paulo, filho!Vocêvaimelevarouvouterqueira pé?
quero logo uma visita sua por lá, e bem - Calma/.Calma!Eu levo. Mas converse
demorada.Vou lhe mostrarminhasfotos da
com ele direitinho,mostre a ele que esse
infância e da juventude, vamos conversar jornalistajá foi até suspeito de subversão.
muito.
Vocêse lembrabemdaqueleSenadorqueveio
Fernando tratou educadamente o aqui comprarumas armasdo meu avô para
Doutor Altamir, mas sem o mesmo entusiasmo sua coleçãoe comentouque naqueletempoo
que dedicara a sua mãe e, ao que parece, a SNItava investigandoo rapaz,em razãodas
indiferença era recíproca. Naquela noite, matériasqueeleescreviang 22 deJulho.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

- Eu não vou me meter nisso. Se você pobres que davam à luz na maternidade
quiser,que fale com ele. Eu só quero agora pública ou nas mãos de parteiras, pelas roças
é ficar perto do meu filho. Paramim o meu do município. Logo ela, que perdera o filho,
filho estava morto e ressuscitoue você fica quase ainda um bebê, passava por cima de
aí pensando nessa porcariade amianto e sua dor para dar àquelas crianças pobres uma
subversão?Tenhapaciência!Vamos,que eu chegada ao mundo de forma mais digna. Por
estou compressa! anos e anos sua figura foi a de uma mulher com
Fernando pediu a Júlia, a Maria Augusta uma mão no trabalho e a outra no coração,
e ao Nilzardo que me acompanhassem até a passando entre os dedos as contas do rosário.
igreja, onde conversaríamos com o Jorge. Nunca se portou como mulher de político,
Naquela manhã, ele resolveu se dedicar à nora de coronel ou madame afrescalhada.
sua mãe. Fernando não esquecera e não Fernando viu tudo isso em sua mãe. A
deixou de amar aquela que lhe criou como dignidade em pessoa. Porém o mesmo não
filho, mas o reencontro com Dona Esmeralda podia ser dito de seu pai.
e a descoberta de uma mulher com aquela
- Meu filho, seu pai não pôde vir te ver
personalidade e com aquele amor foi, em
sua vida, um grande tesouro. Não só a mãe
agorapela manhã, mas me pediu para lhe
dizerque ele querum dedinhode prosacom
conversou com o filho querendo saber o que
vocêmaistarde,talvezà noite.
ele fez em todos esses anos. Ele também quis
saber sobre a vida da mãe. - Claro,minha mãe. Conversareicom ele.
Dona Esmeralda vivera para a casa, para
Mas,me contecomoa senhoraarrumatanto
os filhos, netos e marido, mas tinha tempo
tempo para cuidar dos pobres, além dos
afazeresdomésticos?
também para visitar os doentes, cuidar dos
pobres que procuravam a igreja e junto com A conversa se estendia. Fernando resolveu
outras senhoras chegou a formar um grupo sair a pé com a mãe e passear com ela de mãos
que preparava enxoval de bebê para mães dadas pelas ruas da cidade, indo até a praça

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PedroSérgiodos Santos Maraçunão tem remorso

central e depois ao centro de costuras, onde ela Enquanto Fernando fazia a alegria da
se reunia com as amigas e atendia aos pobres, na mãe, nós nos reuníamos com Jorge na mesma
Confraria de São Vicente de Paula. Ela, eufórica, sala da catequese no centro paroquial; desta
marchava pelas calçadas, parando a cada três vez ele foi acompanhado da esposa e, sentado
minutos e apresentav? o filho a uma conhecida, ao seu lado, de mãos dadas ele nos disse sobre
a uma amiga; não se continha de alegria, e seguia sua resolução:
sua caminhada, deixando nas casas as janelas
- Converseicomminhamulhersobreo que
apinhadas de gente curiosa com o milagre do
vocês me falaram. Nossosfilhos nasceram
retomo do menino Severiano. "Olhalá",diziam.
aqui, estão na escolae nós também temos
"Éo talquefoiroubadopelosíndios...elevoltou...olha
todososparentesporaqui.Nãosabemosonde
lá!".E ela, de braços dados com o filho, mostrava
vamosmorare que tipo de empregovou ter
a todos seu troféu maior, se sentindo a mais
longede Maraçu..Mas, domingo,na missa,
afortunada das mulheres, e ele, orgulhoso de
sua mãe. ouvimosa leiturada b{bliasobrea história
de Abraão.Ele teve coragemde pegar sua
Foi difícil eu não retornar aos tempos fama.ia,sairde sua terrae ir paraondeDeus
de estudante e não me recordar do filósofo o mandou.Achoque paratentar mudar esse
Santo Agostinho, ou melhor, não me recordar tipo de coisaque aconteceem Maraçu.,onde
da história de sua mãe, Santa Mônica, a matançade gente pelo amiantoé sempre
que por anos seguidos fincou os joelhos acobertadapor essesdeputadose senadores
no chão clamando a Deus pelo retorno do sem vergonha,a gente tem quefazer alguma
filho. Todavia, no caso de Agostinho, não se coisa mesmo. Ontem meu pai morreu por
tratava de um retorno físico, presencial, mas causa do amianto,agorapode ser a minha
espiritual. Tratava-se de sua conversão. Mas, vez e quem garante que algum dos meus
olhando para as duas, Dona Esmeralda e Santa filhos não vai morrer com essa desgraça?
Mônica, não se poderia olvidar do poder da Só faltam duas semanas para as férias
oração de uma mãe. escolares.Eu queriaque não divulgassemo
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PedroSérgiodosSantos Maraçu.não tem remorso

relatórioagora.Queesperassema gentesair, poderiam servir de base para um pequeno


transferir os meninos para outra escola e documentário de denúncia de tudo aquilo.
organizara vida... Tinha ele contato com um tal de Luiz Eduardo,
Júlia, empolgada com a coragem de pessoa já bastante experiente com filmagens
Jorge, com um sorriso no rosto e diante desta natureza.
/,

de todos que ali tinham o mesmo olhar de Após alguns telefonemas, Luiz Eduardo
cumplicidade, respondeu: se propôs a chegar em Maraçu no dia seguinte.
-Jorge,nãose preocupe,nósvamostopar Assim, almoçamos e passamos a tarde
essa brigajuntos. Fremostudo com calma reunidos, já com a presença de Fernando, na
e com firmeza. Nós vamos voltar para São varanda da casa de meu pai, sob o frescor da
Paulo,arrumar uma casa para você e sua sombra de uma velha j aqueira, elaborando um
famILia,seu emprego e a escola para as pequeno roteiro de filmagens e de atividades
crianças.Somentedepoisde tudo ajustado de tudo aquilo que, até então, descobrimos
é que daremosdivulgaçãoao documentoe emMaraçu.
partirparacimadosempresários. Ao anoitecer Fernando nos deixou. Disse
Maria Augusta reforçou as palavras de que passaria no hotel para um banho e trocar
Júlia e o Padre não deixou por menos. Tudo de roupa e iria ter a conversa com Doutor
agora era apenas uma questão de saber se Altamir. Ficamos apreensivos e ele se foi.
Jorge iria para São Paulo ou Porto Alegre. Ao chegar ao casarão do Coronel J ales,
Jorge e a esposa saíram confiantes da Fernando percebeu um movimento de carros
reunião, foram cuidar do resto de tempo que na porta. Quando entrou, foi logo recebido por
ainda lhes sobrava em Maraçu. Maria Augusta sua mãe, que o apresentou a alguns parentes
e Nilzardo nos propuseram convidar um mais distantes que ali foram para conhecê-
cinegrafista para vir imediatamente a Maraçu lo, e na festa da família ampliada, jantaram
fazer algumas imagens que posteriormente todos juntos. Um pouco mais tarde, com a

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

conversa já em beira de sono para as crianças ou morto. Agora que a parentadajá foi
e com as devidas despedidas, Doutor Altamir embora,podemosconversarum poucomais
chamou Fernando ao seu escritório, abriu tranquilos.Comosou seu pai e nunca tive a
uma garrafa de uísque envelhecido, ofereceu oportunidadede cuidarde você,gostariade
uma dose ao filho, que prontamente recusou, sabercomoestá sua vida hoje,se precisade
e acendeu um charutq, certamente cubano. O algo,se possolhe ajudarem algumacoisa...
tom solene e ao mesmo tempo informal dava
a entender que o assunto ali era para homens, Doutor Altamir temia que o filho
mas Dona Esmeralda não deu importâncía viesse reclamar por dinheiro e por um
para o nariz empinado do marido, entrou pouco do patrimônio deixado pelo avô. Suas
também no escritório e se sentou ao lado indagações não eram de generosidade ou de
do filho. Talvez a pouca sensibilidade do pai preocupado, mas de homem precavido
Doutor Altamir lhe tenha cegado as vistas com seu bolso e um tanto mesquinho.
do coração para perceber que em vinte e - Quantoa isso o senhorfique tranquilo,
quatro horas ele perdera aquela mulher agradeçosuapreocupação, mastenhoum bom
subserviente e sempre dócil ao seu comando. saláriocomoconsultorna áreade engenharia
Dona Esmeralda agora mostrava seu pulso e outrocomoprofessorde universidade.Júlia
firme, sua "ira santa", como dizia o cantor tambémganharazoavelmentebeme vivemos
que homenageou o senador Teotônio Vilela; com certa tranquilidadecom nossosfilhos.
de fato Dona Esmeralda mostrava agora todo Aliás,quero que o senhor e minha mãe os
o seu brilho. Doutor Altamir, ignorando por conheçamlogo.No mais, eu e meus irmãos
completo a nova postura da esposa, começou herdamosum certopatrimôniode meu pai,
a conversa com Fernando: que nosrendealgumacoisa;portanto,nãose
- Que alegria, meu filho, ter você de preocupequantoa isso.
volta, quando a gente pensava que nunca - Poisbem, mas vocêveio a Maraçucom
mais ia te ver, não sabíamosse estava vivo esserapazaí, o tal, metidoajomalista...
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

- Com todo respeito,mas acho que ele um municípiorico, mas infelizmenteesses


não é só metido a jornalista, acho que ele jornais da Capitalinsistemem falar mal da
é jornalista mesmo, deve ter mais de vinte nossa cidade.Acho que tudo isso é inveja,
anostrabalhandono 22 deJulho... pura inveja dos políticos de lá, que não
- Queseja.Mas/comovocê é meu filho, é aceitam o fato da natureza ter abençoado
recém-chegado aq~ino Estadoe em Maraçu, Maraçu com tanto amianto nessas terras.
eu queria te alertar para certas coisas, Comoa Capitalé lá, achoque eles queriam
porqueé o meu deverde pai. que o amiantotambém tivesse brotadopor
lá. Daí ficam insufiando essesjornalistas
-Pois não... a fazerem reportagenscontra Maraçu, e,
- Maraçuera um nada nesse sertão, só cuidadomeu filho, no meio dessagente tem
tinha poeira,umas três ruas e cercadapor até uns que vieramde grupossubversivos.
todos os lados por esses índios miseráveis - Mas,e os trabalhadoresque morreram
que te roubaramde nós. Seu avô, o Coronel ou adoeceramde câncer? Será que esse
]ales,foi quem colocouum poucode ordem
câncer também é fruto da inveja ou da
por aqui, espantandoessesAvá-Canoeiroe
imaginaçãodosjornalistas?
organizandoa distribuiçãodas terras.Mas
esses peões, quando pegavam um palmo - Sei onde você quer chegar,acho que
de terra qualquer,não faziam nada com a já tentaram lhe colocarcontra o povo de
terra a não ser plantar umas mandiocas, Maraçu.Defato, algumaspessoasadoecem
criar galinhas, cabritos e fazer farinha. e outrasmorremporaqui,mas issoé comum
Então, com muito esforço,depois que seu em qualquer local de grande produção.
avô morreu, nós conseguimostrazer para Trabalhadoresmorrem em Minas Gerais
Maraçu o desenvolvimento.Tudo isso que na extraçãodo ferro ou em Santa Catarina,
você viu hoje é graças ao amianto;ruas, nas minasde carvão,é normal,é o preçodo
escolas,energia, telefone, praças, prédios progresso.Melhorseriase vocênão andasse
e o comérciofaturando. Hoje Maraçu é com essa gente que vive mais da calúnia
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

contra Maraçue contra os empresáriosdo comunistafrustrado que quer, de um jeito


que observandonossarealidade.Ofato é que ou de outro, controlarou confiscarterras
todoo povode Maraçuéfeliz coma produção alheias.
e a indústriado amianto.
Fernando percebeu que o debate
- Bem, mas tzão parece que é isto que era estéril e cuidou de pôr logo um fim na
revelam os dados do próprio Ministério conversa, com um certo ar de desilusão
da Saúde e de organizaçõesestrangeiras quanto à figura do pai biológico.
que há tempos observamque em Maraçu,
um em cada cinco trabalhadoresadoece - Não sou comunista e conheçobem a
gravemente,e um em cadasete morre com questãoambientalno Brasile fora do Brasil.
câncer,e outros tantos logo cedo caem na Respeitoa sua posição,mas não concordo
covada invalidezpermanente... comela,e se o senhoraindase considerameu
pai,só querolhepediruma coisa...
- É,parecequevocêjá foi bemalimentado
com as mentiras dessa gente. Essesgrupos - Diga,meufilho.
nadasabemsobreo amiantoe essagenteque - Quantoa esteassunto,cadaum quefique
fala mal de Maraçué despeitada,invejosa com suas convicções,masjá que o senhoré
ou, no mínimo,é comunista! vereadore figura de tradiçãonesta cidade,
- O senhor já pensou que essas peçaao delegadoe aoprefeitoque paremde
pessoaspodem estar preocupadascom os mandarpoliciaisnosobservardurantetodoo
trabalhadoresdoentese comomeioambiente dia. Vim a Maraçucomautorizaçãodo chefe
que o amiantodestrói? do meu departamentona Universidade,e
órgãosde imprensadoBrasile doestrangeiro
- Vocêfique sabendoque todasas viúvas sabem da nossa presença aqui. Portanto,
de trabalhadoresrecebempensão.Ninguém se alguma coisa acontecercomigoou com
fica desamparadopela previdênciae esse meus amigos, todos saberão quem são os
negócio de meio ambiente é discurso de responsáveis.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Dona Esmeralda sentiu o clima tenso - Calma, calma, peço calma aos dois.
entre o pai e o filho e, ouvindo em uma orelha Acho que tudo isso não passa de um
a voz da justiça e na outra a da maternidade, equívoco do delegado e do prefeito; e se
rompeu seu silêncio e entrou na conversa dos às vezes a polícia fica de olho em algum
homens: estranho, é para a própria segurança
da cidade. No mais, os policiais não lhe
- Escutemaqui, eu não entendonada de conheciam, meu filho, nem a você, nem
política,amiantoou de meio ambiente,mas aos seus amigos de São Paulo. Mas não
isso não vai virar uma guerra entre nós. se preocupe, vou ainda hoje à noite na
Altamir,nossofilho vai andar nessa cidade casa do delegadoe o problemase resolve.
para onde ele quisere com quem ele quiser, Afinal, você é da minha famfüa e a famfüa
e se alguémda políciafor atrás dele,sou eu é a referênciadesta cidade
quem vai lá quebrara cara do delegado,já
que vocêé um bosta! - Acho bom mesmo,Altamir!Acho bom
mesmoque issosejarápido.E quantoa você,
- O que é isso,Esmeralda!
Me respeite! meufilho,aviselá no hotela sua esposa,que
Fernando se sentiu constrangido com já dormiu tantos anos com você, que hoje
a briga entre os pais e tentou apaziguar os vocêvai dormiraqui,em nossacasa,na sua
ânimos. Todavia Doutor Altamir percebeu casa,e nãoqueroouvirmaisnada!
que os tempos mudaram junto à esposa. A Dona Esmeralda deixou o recinto de
velha senhora se sentia, a cada momento, cabeça erguida, passo firme e sorriso no rosto,
mais fortalecida pela presença do filho e e os dois ficaram ali, com cara de recrutas que
também mais rejuvenescida, cheia de alegria, escutaram broncas e ordens de sargento, e
de coragem. Os olhos do Doutor Altamir o jeito foi obedecer. Doutor Altamir puxou
perceberam o olhar de soberania da esposa pelo rumo da casa do delegado e Fernando
transformada e, num ato de prudência, ele foi telefonar para a esposa, enquanto sua mãe
recuou: lhe arrumava o quarto.

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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

Depois de alguma conversa com uns ter trazido de volta o filho e, dando-lhe um
poucos parentes e irmãos na sala de visitas, beijo na testa, colocou sobre ele um lençol,
Fernando foi se deitar no conforto da cama ajeitou-lhe o travesseiro e saiu, apagando a
arrumada pessoalmente pela mãe, a despeito luz do quarto:
da casa contar com duas empregadas. Já - Deuste abençoe,meufilho!
no leito, Fernando viu a porta do quarto se
abrir e a mãe veio se sentar na beira da cama. O dia amanheceu e depois de um
Não lhe disse nada. Ficou uns dez ou quinze farto café com frutas, bolos e pães diversos,
minutos a lhe acariciar a face, os cabelos e a preparado nos mínimos detalhes por Dona
barba enquanto ele lhe segurava a outra mão. Esmeralda, Fernando saiu ao encontro dos
Por fim, ela lhe disse que em todos esses anos amigos. Luiz Eduardo chegaria às dez e
de sua falta, sentiu muito não poder ter lhe começariam as filmagens no mesmo dia.
ensinado, ainda quando criança, o sinal da Porém, antes de sair de casa, o pai, ao lhe dar
cruz e a oração do Anjo da Guarda, para quem bom dia, complementou:
ela sempre rezou pedindo para que tomasse - Podeandartranquilona cidade.Ontem
conta do filho ausente, e baixinho foi rezando mesmofalei com o delegadoe como prefeito
a oração, enquanto uma lágrima lhe caía no e essemal-entendidonãovai maisacontecer.
rosto:
- Folgoem sabê-lo.Agradecido.
"Santo Anjo do Senhor,
Meu zeloso guardador, Fernando balançou a cabeça e não
Sea ti me confioua PiedadeDivina, encompridou a conversa.
Sempre me rege, me guarde, No hotel nos reunimos rapidamente
Me governe e me ilumine. e, numa folha de papel, fizemos um breve
Amém!" roteiro dos principais pontos de filmagem
Ela rezou como se agradecesse ao anjo daquele dia. Iríamos à mina, depois à fábrica e
por tantos anos de trabalho bem feito e por então visitaríamos algumas viúvas.

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

LuizEduardo chegou à rodoviária pontual- invasão de máquinas e dólares. Era o contraste


mente às dez e trouxe bom equipamento. As entre um calango que ainda insistia em viver
lentes potentes da filmadora aproximavam em meio a plantas, flores e frutos silvestres,
bastante a imagem, ·facilitando a captação com as marcas de pneus de caminhão nas
da cena naquelas circunstâncias em que, estradas que mais pareciam as veias por onde
possivelmente, houvesse algum empecilho. sangrava o amianto.
Após um rápido café, ali mesmo num Na fábrica o jogo endureceu. A poucos
barzinho poeirento da rodoviária, saímos quilômetros da mina, a indústria com mais
todos, Fernando, Júlia, Maria Augusta, de quinhentos operários não nos permitiu
Nilzardo, Luiz Eduardo e eu, em dois carros. entrar. Poucas imagens do pátio foram feitas
A mina não era muito protegida com pelo portão vazado e pela cerca de alambrado.
cercas e vigilância e, como eu conhecia Os empregados que saíam na hora do
alguns dos empregados, não foi difícil a nossa almoço se esquivavam e não aceitavam falar
entrada para algumas tomadas. Luiz Eduardo conosco para uma rápida entrevista, porém
buscou as imagens fortes da escavação, do desnecessária, totalmente desnecessária, uma
pó e da poeira brilhosa do amianto respirada vez que os olhos assustados, a cabeça baixa,
constantemente pelos trabalhadores. o semblante preocupado e os passos ligeiros
foram devidamente flagrados pelas lentes
Rostos, pés, mãos, suor, cada detalhe
precisas e denunciadoras de Luiz Eduardo.
era registrado, assim como a evidente falta
de equipamentos de segurança e proteção Almoçamos no restaurante do hotel.
naquele ambiente de trabalho macabro. Depois de um rápido descanso, saímos pelas
Procuramos não demorar muito para não ruas sob um sol de quarenta graus.Fomos a um
atrair confusão. Já saindo da região da pequeno posto de saúde da prefeitura, que se
mineração, Luiz Eduardo pediu para pararmos improvisava como hospital, contando com os
o caro e filmou a rica flora do cerrado que abnegados funcionários que ali trabalhavam.
vinha, ano após ano, sofrendo com aquela Alguns enfermeiros e os poucos médicos
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PedroSérgiodosSantos Maraçu.nãotem remorso

atendiam aos doentes da rotina urbana e A câmera de Luiz Eduardo era perspicaz
aqueles muito atingidos pelo câncer ou por e captava os detalhes no olhar de cada doente
graves doenças pulmonares oriundas do e nas mãos generosas das enfermeiras, que
amianto. O paciente em estado grave tinha na faziam o máximo possível naquele caos
rodovia o caminho certo para algum hospital de lençóis sujos e lixo hospitalar por todo
de Santana ou da Capital. De lá, poucas vezes lado. Conversamos e, com a prestativa
um voltava vivo para Maraçu. colaboração jornalística de Júlia, que havia
Nos rostos que agonizavam e sofriam anos atuava na imprensa televisiva de
buscando o ar que o amianto lhes tirava, a São Paulo, filmamos as entrevistas com
morte, antes temida, agora era desejada como acompanhantes dos doentes.
um bem maior, por cada um daqueles que não Deixamos o posto de saúde e fomos
aguentavam mais o peso do sufocamento. visitar famílias cujos pais faleceram em
Nas enfermarias lotadas, com paredes razão do câncer. Eram tantas que, se
e pisos sujos e ventilação mínima, dois fôssemos a cada uma, o filme não seria de
ventiladores sopravam sobre os doentes e seus longa metragem, seria de eterna metragem,
acompanhantes o ar quente da morte; e volta em razão de um sofrimento que não tinha
e meia uma barata corria pelos pés das macas fim, na expressão de cada viúva, no choro de
e dos leitos que acolhiam os moribundos. cada criança sem pai.
A política de saúde de Maraçu seguia à Optamos por dez entrevistas, por dez
risca as recomendações do deputado Joseir casos que bem retratavam a foice ceifadora da
Amarantes, que muito alegrava as empresas indústria do amianto. Na primeira entrevista,
funerárias da cidade, cuja quantidade a viúva reuniu na sala humilde de uma casa de
aumentou de uma para cinco em sete anos, quatro cômodos e bancos de madeira, os oito
e todas com alta lucratividade, bastando filhos que perderam o pai havia dois meses.
observar o patrimônio dos proprietários, que A filha mais velha estava com treze anos e o
crescia a olhos vistos. mais novo com um ano e meio.
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PedroSérgiodosSantos
Maraçu.não tem remorso
Na segunda casa visitada, dona Suzana, daprefeiturafoi bãocomnóis;pagoutudodo
junto aos seus seis filhos, mostrava a fotografia velórioe do enterro,pagaraaté pra trazero
do marido, morto onze meses antes, no dia corpodele pra cá, nóis num pagou nada, o
do sepultamento. Luiz Eduardo bem captou
povoda prefeituraé muito bãomesmo.
na parede da casa a fotografia de casamento
dos dois. Os filhos, isem qualquer palavra, Ora, não havendo órgão público de
gritavam em seu silêncio e em sua pobreza, serviços funerários, esticamos mais dois dias
a dor de serem pisados pelo rico negócio do de estada em Maraçu e descobrimos que a
amianto. prefeitura fazia questão de pagar todos os
sepultamentos dos mortos pelo câncer do
As visitas prosseguiam e, em cada casa,
amianto, contratando os serviços das empresas
um drama; o mesmo drama. E na maioria
funerárias, sem qualquer legalidade nos
delas, um futuro incerto, a pobreza instalada.
pagamentos e, é claro, todos superfaturados,
Era a dor da perda aliada à dor da fome, da falta
de escola, de roupa e até de um remédio para em média de cinco a seis vezes superior ao
a criança chorosa e de narizinho catarrento, valor real. Desta forma, o lucro assassino
aconchegada no colo da mãe. do amianto gerava até uma lucratividade
corrupta e paralela nos meandros da miudeza
A ingenuidade foi bem captada por Júlia de funcionários municipais, sem deixar de
na entrevista da viúva na última residência lado, é óbvio, o percentual do prefeito e dos
visitada: vereadores. Os documentos chegaram às
- Óia,dona, o pessoalda prefeiturafoi nossas mãos e a entrevista foi feita com o
muito bãopra nóisem tudo.Quandoo Zemir nosso agente infiltrado com o compromisso de
ficoudoentee osmédicodaquidissequeerao ocultarmos o rosto do entrevistado e fazermos
tardo câncer,eleslogoarrumaraambulança a deformação da voz na edição do filme.
e levaraeleprum hospitalna capital,inté eu Finalizamos as filmagens e entrevistas
fuijunto. Mas Deusnum quis que elevivesse com sete horas de imagens que deveriam
muito.Emdoismêselemorreu.Mas opessoal ser editadas, infelizmente para um filme de
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PedroSérgiodosSantos

sessenta minutos. Jorge pediu demissão da


fábrica, providenciamos um caminhão para
sua mudança e, após o choro da despedida dos
parentes, ele embarcou num ônibus para São
Paulo, junto com a mulher e os filhos.
Nós partimos tafnbém de Maraçu com
volumosas e contundentes provas contra o
massacre da indústria do amianto. Professor
Fernando despediu-se da nova família com
ares de "nosveremosem breve".Evidentemente Capítulo VI
deixou lágrimas nos olhos da mãe e tudo já
acertado para sua visita no mês seguinte a Mãos do passado tocam lábios
São Paulo para conhecer os netos. Não se sabe do presente
ao certo se o Doutor Altamir ficou triste ou
aliviado com a partida do filho.

"A melhor definição de amor


não vale um beijo de moça
namorada"
(MACHADO DE Assis)

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asei e cresci em Maraçu e, depois de

N ter saído de casa, por diversas vezes


voltei à casa de meus pais. Mas agora,
sentado à minha mesa de trabalho na redação
do 22 de Julho, eu refletia na intensidade dos
últimos dias vividos naquela cidade.
Encontros, desencontros, morte e vida
em conflito, era um mar de emoções de
alegria, dos que expunham os limites do ser
humano na história e no tempo.
Sede um lado o sorriso de Dona Esmeralda
nos braços do filho era um alento para todos,
os olhos de tristeza e fome das crianças sem
pai, órfãos do amianto, martelavam meus
sonhos e pesadelos. Aquilo não poderia
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

continuar; a necessidade de lutar por essas produzidas por Nilzardo. Eu me juntaria a


crianças e por outras, para igualmente não eles para chegarmos a um consenso quanto
ficarem órfãs, era maior que a nossa própria ao texto que seria divulgado.
capacidade, que a nossa coragem. Com
coragem ou sem coragem, com capacidade ou Um episódio inusitado me fez engolir
sem capacidade, a denúncia tinha que ganhar em seco, perder a voz momentaneamente e
o mundo, o ataque às empresas do amianto sentir as pernas fraquejarem, como se ossos
e aos políticos corruptos não poderia parar, não houvesse para sustentá-las. Para minha
tinha que ser forte, contundente. sorte eu estava sentado, caso contrário o
desmantelo ao chão seria certo, colocando-
Tomei a rotina do 22 deJulhoinformando me em situação vexatória.
ao Doutor Custódio tudo o que se passou em
Maraçu, e para minha surpresa, mesmo sem Era uma tarde de domingo quando tomei
verbas públicas, como quase todos os jornais aquele avião para São Paulo. A pontualidade
do país, ele se dispôs a publicar tudo que fosse nunca fora uma das minhas qualidades,
de interesse do povo no combate ao amianto e porém, naquele dia, aproveitando uma carona
à canalhice política. Aguardávamos apenas a para o aeroporto, cheguei duas horas antes
edição do vídeo e a preparação das filmagens do voo. Cumprida a burocracia do embarque,
para ir a público, junto com o relatório da logo que chamado entrei na aeronave e t~mei
equipe. o meu assento. Por ali fiquei uns qumze
minutos com o olhar preso à revista oferecida
Três semanas depois, tomei um avião pela comissária de bordo, quando em u~a
para São Paulo, para uma reunião de trabalho nova leva de passageiros entrando no av1ao
com a equipe que esteve em Maraçu. Luiz em ritmo de gente atrasada, fez sentar-se ao
Eduardo viajara um dia antes com o filme meu lado aquela que há onze anos me fizera
quase todo finalizado. Fernando, Júlia e mergulhar o nome nos copos de cerveja que
Maria Augusta faziam a redação final do regaram meu amor não correspondido. Era
texto e analisavam as melhores fotografias ela, ali, em carne, osso e aquela aura que a
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

tornava sempre brilhante, sempre diferente sair do anonimato, depois de muito relutar
das mulheres comuns que pisam em nossos comigo mesmo, sem saber se valeria a pena
corações. aquela conversa ou se serviria tão somente
para aprofundar a minha velha dor da perda:
Ela, de pé, ajeitando a bagagem nos
maleiros, e eu, pas!llo na poltrona, mal - Então,Lígia,comoestávocê?
podendo acreditar que aquela imagem era
real. Quando ela se sentou ao meu lado e, sem - Lígia?Vocêsabemeu nome?
me reconhecer me cumprimentou com um - Claro!Vocêtalveznãose lembrede mim,
simples "boatarde",eu me engasguei, perdi o ou melhor,com certeza não se recorda... O
fôlego e o coração disparou. Em milésimos de tempo passou, agora estou de barba e ela
segundos me corrigi, dizendo a mim mesmo já está ficando grisalha.Fomoscolegasna
que era hora de manter a calma, respirar AliançaFrancesa!
fundo, me comportar como uma pessoa
- Nossa!Claro!É você,agorame lembro;
civilizada, como um cavalheiro, e não passar
tantasvezesvocême ajudoucoma tabelade
recibo de um abestalhado apaixonado; ou ela
ainda iria acabar achando que estava sentada verbos.Me pareceque naquelaépocavocê
ao lado de um completo idiota. Respirei erajornalista!
fundo e respondi: "Boa tarde! Me desculpe, -Sim,soueu mesmo,e continuojornalista,
me engasgueicom uma balinha".Ela, com um trabalhono 22 deJulho.
sorriso, balançou a cabeça e passou a ajeitar o
- Ótimo!Concluiuo cursode Francês?
cinto de segurança.
- Não,não.Não tive tempo de continuar.
Fiquei uns minutos em silêncio, tentando
articular o início de uma conversa. Percebi Após o segundo semestre meu tempo foi
certa tensão em Lígia com a decolagem, engolidopelo trabalho.E você, estava na
como normalmente ocorre com tanta gente. faculdade,seformou?Ouvidizerque vocêse
Quando o avião estabilizou o voo, resolvi casou...
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

O sorriso das formalidades do reencontro Procurei não aprofundar o assunto,


cedeu lugar a uma face triste, um breve silêncio que percebi ser bastante dolorido, e levei a
e a resposta que eu nunca esperei ouvir: conversa para outro rumo, respondendo de
pronto sua indagação:
- Sim,concluía faculdadee me casei.Mas
há seis mesesfiquei viúva. - E você,se casou?
1

Que ninguém me interprete mal, posto - Nada. Caseinão. A vida não me deu
que para mim o casamento de Lígia era um fato esse prêmio.Quemsabe o futuro ainda me
consumado, mas ao ouvir aquilo, eu não sabia reservaestasurpresa?
se ria de contentamento ou se me solidarizava O sorriso voltou ao seu rosto e procurei
com a dor daquela que eu sempre amei. Mais ser mais leve no diálogo.
uma vez firmei ojuízo, tomei tino na respiração,
coloquei um ar de seriedade na cara e respondi: - Tem visto algum colegadaquelanossa
turma de Francês?
- Meuspêsames!Sintomuito pelaperda. - Apenas uma, a Julieta. Vocêse recorda
- Eh!É difícil,todaperdaé difícil. dela?Aquelamorena,paraense.
- Mascomoissose deu? - Vagamente...
- Meu maridofaleceuem um acidentede - Ela se casou com um vizinho de meus
carro,viqjandoa negócios,
numarodoviaemSão paise às vezesa vejoquandoosvisito.Evocê,
Paulo.Aliás,estouindopara lá buscaralguns trabalhandomuito noJornaloujá está como
documentos paraoprocesso de inventário. chefe,só dandoordensaosnovatos?
- Vocêtem filhos? - Já tive boas oportunidadesno Jornal e
- Sim, duas. Uma com oito e outra com em algunscanaisde televisão,mas a notícia
seis anos.Aos poucosvão se adaptandocom ferve no meu sangue,não consigodeixarde
a ausênciado pai.Eraum bompai. ladoojornalismoinvestigativo.Aliás,estou
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

indoa SãoPauloparaterminaruma matéria Com o interesse demonstrado, a conversa


densaque há temposcomeceia investigaros tomou corpo, falamos de fatos e do Direito,
fatos. inclusive com boas sugestões dadas por Lígia
-Possosaberdoquese trata,ou é segredo? para o encaminhamento das denúncias no meio
jurídico. Mas todo esse conteúdo de conversa
- Paravocênãotenhosegredos! era para mim secundário diante do fato de ter
ali ao meu lado, por uma hora e meia, a dona
Era uma resposta no mínimo ousada,
dos olhos verdes mais lindos que já vi.
para alguém cuja convivência não passava da
formalidade, mas não resisti e confesso que Ao chegar em São Paulo tive dúvidas se
se ela perguntasse mais sobre meu coração eu o voo durou realmente uma hora e meia, pois
confessaria tudo ali mesmo. eu tinha a nítida sensação de que não haviam
passado quinze minutos desde que Lígia se
- Ora,ora,entãome conte! sentara ao meu lado.
- Estou,juntamente com alguns amigos, No decorrer da viagem,Lígiafoi se tomando
preparando um filme documentário,um mais informal no diálogo e, chegando ao
texto e uma reportagemsobrea exploração aeroporto, prontamente carreguei sua bagagem
do amianto e o câncer que ele causa nos até o saguão e, com a desculpa de precisar de
trabalhadoresde Maraçu. alguma orientação jurídica no caso do amianto,
- Mas que interessante!Gostoda questão passando óleo de peroba na cara de pau, tomei
ambiental. Quando me formei, acabei coragem e pedi o número de seu telefone,
por fazer uma especializaçãoem Direito prometendo-lhe não incomodar muito:
Ambiental, mas os afazeres da casa e o - Claro,claro!Sem problemas,pode me
cuidadocom as criançasme levarama me ligar quando quiser, terei todo prazer em
dedicarao lare deixeia carreiraprofissional ajudá-los, e quando tudo estiver pronto,
em segundo plano. Mas andei lendo algo querover o documentárioe ler os textos de
sobreosproblemasde Maraçu. denúnciado amianto.
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso

Retirou da bolsa uma pequena caderneta lanche, nos sabotando com um bom vinho
e uma caneta tão delicada quanto a sua dona e chileno. Depois da segunda taça, não resisti e
anotou o número do telefone. Nos despedimos contei a todos sobre meu encontro com Lígia
ali; uma amiga esperava por ela e eu tomaria um e, é claro, tive que contar também o que se
táxi. Ela segurou minha mão quando eu a estendi passou quando eu a conheci.
e me deu dois beijinhos no rosto, na formalidade Júlia, sinceramente, dizia:"que coisa linda!".
de quem parte. Depois daquele aperto de mão e Maria Augusta se mostrava emocionada.
daqueles dois beijos, fiquei ali, vendo sua partida Nilzardo ironizava dizendo:
com a amiga rumo ao estacionamento, segurando
- Vejam vocês, como uma mulher, até
aquele papel com o número do seu telefone,
mesmo sem querer,faz um homem duro e
como quem segura um bilhete premiado ao
racionalcomonossoamigoarriarospneus...
descobrir que ganhou sozinho na loteria. Bem
sabia que aquele era apenas o número de um Fernando não deixou por menos:
telefone; poderia não me levar a lugar algum, mas - Quandoelefala o nomedelaé quaseum
poderia ser uma segunda chance. Eu tive vontade boboperfeito.
de pular de contentamento, abraçar todos que
E Luiz Eduardo pediu para ser o padrinho
passavam por mim e gritar feito um doido, mas
do casamento, aliás,posto reivindicado por todos.
agora era hora de ter calma, de dar um passo de
cada vez, de esperar que ela se adaptasse à viuvez Tomando as rédeas da conversa, fiquei
e amargasse todo o luto que ainda tinha que ser de pé e disparei:
engolido. - Senhorese senhoras,deixemoso vinhoe
Cheguei para a reumao na casa de as delíciasda mesae vamosaotrabalho,pois
Fernando por volta das sete e meia da agora,mais do que nunca, queroeste filme,
noite. Todos já estavam lá e antes que nos esta reportagem,tudoperfeito para que a
debruçássemos noite adentro sobre todo Lígía tenha uma boa impressãodo nosso
o material do amianto, Júlia nos serviu um trabalho.

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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso

Tomei uma salva de vaias e gargalhadas, Com o apoio de diversas instituições,


e na solidária chacota de todos, partimos para principalmente dos países cujas empresas
o trabalho, pois nosso tempo era curto. exploravam o amianto em Maraçu, fizemos
inicialmente a distribuição do filme na
Luiz Eduardo apresentou o filme que
Europa. Com o título "Respirandoo ar da Morte",
sintetizou em sessenta[minutos toda a barbárie
o filme e o livreto chocaram a opinião pública.
do amianto. Houve algum debate para o corte
Manifestações de rua começaram a surgir nas
de uma ou outra cena e a inclusão de outras portas das embaixadas do Brasil em diversos
excluídas. Batemos o martelo e o filme estava países e na porta dos escritórios das sedes das
pronto. Eram três e meia da madrugada quando empresas assassinas.
fomos dormir. Às oito da manhã já estávamos
de pé e, depois de um rápido café, avaliamos Os europeus se deram conta de que parte
o texto produzido por Júlia e Maria Augusta. da riqueza que circulava em suas cidades,
Selecionamos as fotografias apresentadas por parte do emprego gerado por suas empresas
Nilzardo,que ilustrariam o texto, e eu apresentei e dos bons salários pagos na Europa eram
um escrito, como minuta daquilo que seria uma fruto da destruição ambiental do cerrado e
matéria padrão a ser enviada para agências de das matas ciliares. Fruto da poluição de rios
notícias do Brasil e do estrangeiro. e córregos e profunda contaminação das
águas. Fruto da morte de plantas e animais.
Com tudo pronto, passamos à fase Fruto, principalmente, da morte, da doença
seguinte. Contávamos com o apoio da e da invalidez de centenas de trabalhadores
Universidade, da Igreja e de Organizações de pobres do Brasil. A última cena do filme, na
defesa do meio ambiente. Tivemos recursos qual um trabalhador da mina, tossindo, cospe
suficientes para a edição do filme com sangue sobre uma planta, finaliza as imagens.
quinhentas cópias produzidas. O livreto com E a câmera paralisada na mancha de sangue
o texto de Júlia e Maria Augusta teve uma deixa subir na tela o letreiro mostrando os
tiragem inicial, em Português e Inglês, de nomes de todos os mortos e inválidos à custa
cinco mil cópias. do amianto.
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Na Europa, há anos o amianto fora das ameaças, obtivemos na Justiça a ordem
proibido; aquilo que não servia aos europeus judicial para apresentar o filme em qualquer
matava aqui os brasileiros. As cenas do filme cidade do País, em qualquer canal de televisão,
e o texto bilíngue foram um soco no estômago se fosse possível.
das plateias nas igrejas, nas universidades e
nos sindicatos. Onde; era projetado, o filme O filme foi lançado no Brasil e o
causava imediata revolta. documento fornecido por Jorge relatando
a má fé das empresas do amianto, que já
A mídia foi mobilizada, matérias contabilizavam em seus projetos, gastos
contundentes eram publicadas em vários com multas ambientais, mortes e invalidez
países a partir do filme e do texto que de trabalhadores, bem como a propina paga
enviei, traduzido para o Inglês e Francês. Em a políticos e autoridades brasileiras, foi
poucos dias a cotação das ações das empresas entregue solenemente ao Ministério Público
começou a cair na bolsa e a reação foi imediata Federal, fato amplamente noticiado, para o
no Brasil.
constrangimento de muitos.
Quando as autoridades brasileiras Maraçu tomou páginas e páginas do
procuraram saber quem tinha feito o filme noticiário do país e a cidade foi invadida pela
e quem tinha produzido o texto, já nos imprensa nacional e estrangeira, colocando os
preparávamos para o lançamento do filme, empresários do amianto em xeque. Obrigados
no mesmo dia e hora em Porto Alegre, São a receber a mídia, davam desculpas evasivas
Paulo e Salvador. enquanto as imagens da morte e da destruição
Políticos, pressionados por diretores das ambiental eram contundentes.
empresas de amianto que lhes financiavam as Jorge e sua família viviam em relativa
campanhas eleitorais, dentre eles o deputado tranquilidade em uma modesta casa num
Joseir Amarantes, procuravam, por sua bairro da Grande São Paulo, com os meninos
vez, pressionar o governo para impedir o na escola e Jorge mantendo, com o apoio da
lançamento do filme. Tudo em vão. Diante esposa, o pequeno negócio de conserto de
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PedroSérgiodosSantos
Maraçunão tem remorso
roupas e calçados, iniciado com a ajuda da
- Tenhoa impressãode que minhaviuvez
Paróquia Santa Cecília que os acolheu por começoualguns anos antes da morte dele;
recomendação do padre de Maraçu, uma vez
e para piorar,para espantode todos,meu
que a melhor opção para a família foi de fato
. ' ' e de minha famr1ía,uma mulher que mora
viver em São Paulo e não em Porto Alegre.
lá em SãoPaulose habilitouno processode
Nos dias que ant~cederam o lançamento inventáriocom a certidãode nascimentode
do filme no Brasil, intensifiquei os contatos um meninode quatroanos,filho dele.
com Lígia. Sempre com uma desculpa
diferente, fui me aproximando dela. Ora lhe Em poucas palavras ela resumiu um
dava um livro de Direito Ambiental ora um casamento de abandono e de fachada. Duas
disco do cantor preferido. Virei d; avesso coisas me vinham à mente: Como um idiota,
livr~rias e lojas de disco para descobrir o que por qualquer razão que fosse, poderia deixar
ha;7i~ de melhor e mais raro. Nunca gostei de de lado uma mulher maravilhosa como
musica estrangeira, mas descobri até disco de aquela? Pensava também que ali estava
cantor americano convertido ao islamismo um coração que precisava ser habitado por
afinal, gosto é gosto. ' alguém que realmente a amasse.
Nossa amizade foi se fortalecendo e Convidei Lígia para o lançamento do
fui percebendo que, por trás de uma mulher filme em São Paulo e, para a minha surpresa,
linda, de educação refinada e cercada de ela aceitou. Foi ao lançamento, apresentei-a
familiares, havia uma pessoa relativamente aos meus amigos e ela percebeu a seriedade do
solitária. Confidenciou-me ela que o marido, que fazíamos. Acho que ganhei alguns pontos
em_que pese ter sido um bom pai, sempre fora na minha imagem. Afinal, ela ficou sabendo
mais voltado para os negócios do que para a que boa parte das denúncias começou com as
esposa. Os anos de casamento foram anos de minhas antigas reportagens sobre o amianto.
longa ausência dele. Enfim, num jantar ela Na fria noite paulistana, após o lança-
desabafou emocionada.
mento do filme, com o cinema da Universidade
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superlotado de estudantes,jornalistas, profes- refinamento e a delicadeza e eu a rudeza; um


sores, autoridades da justiça e até políticos, sujeito com gestos ainda primitivos, comendo
saímos para jantar. um peixe com farinha e pimenta, usando
sempre a mesma botina e dormindo tod~
Na mesa, Júlia e Maria Augusta se dia numa rede, hábito que nunca abandonei
aproximaram de Lígia e a conversa, que fluía desde a infância. Ela bem sabia quem eu era.
animada, colocava-a rhais à vontade entre os
novos amigos. Fernando e LuizEduardo davam Fiquei de pé, pedi silêncio a todos que
indiretas a Lígia sobre os meus interesses na mesa conversavam e riam, me virei para
quase indisfarsáveis, enquanto Nilzardo não Lígia, olhei-a fixamente e desatei a falar:
perdia a oportunidade de fotografar todos,
- Lígía,jáse vãoquasedozeanosdesdeque
com garfos, copos e sorrisos.
te conheci.Tevi pelaprimeiravezquandovocê
Foi então que resolvi partir para o tudo entrouna recepçãoda escolade Francêscom
ou nada. Depois de uma garrafa de vinho um vestidoazul.Paramim, vocênão andava
italiano e já começando a segunda, aproveitei por aquela escola,meus olhos só te viam
a presença de um menino que por ali passava fiutuar. Por todo aquelesemestreeu fica~a
vendendo flores e comprei todas; umas loucoparachegaro dia das aulasde Frances
quinze rosas vermelhas. O menino alegrou-se e estudavafeito um doídosó para ser útil a
com a venda e a gorjeta graúda quando lhe você em algummomento.Ver você era algo
deixei o troco da nota de cem. De relance me mágico,esplendoroso. Você,a princesada alta
passou pela mente os anos de ausência de sociedade e eu,um matutodeMaraçu,umjeca
Lígia, a minha tristeza e o seu sofrimento de bemretratadoporMonteiroLobato.Vio tempo
mulher abandonada pelo marido. Nos últimos passar,fiqueicaladoe mejogueina bebidapor
meses me deixei conhecer por ela, quase por um bomtempoquandovocêse casou...
completo. Ela bem sabia sobre meu caráter,
meu jeito caboclo-sertanejo de ver o mundo, Eu fazia meu discurso de pé, olhando
mesclado por uma pitada de filosofia. Ela era o para ela. O pessoal da minha mesa foi ficando
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

em silêncio e depois, tomado de emoção e de está aqui, sentada ao meu lado num bar,
vinho, nem percebi que os clientes das outras junto com meus amigos de luta. Olha,sou
mesas pararam de conversar, os garçons meioprimitivomesmo e não levojeito para
pararam de servir, os balconistas pararam de discurso.Paraacabarlogocom essaagonia
atender, a moça do caixa parou e a pessoa da que me sufoca nesses doze anos, quero te
cozinha, também em ,silêncio, veio assistir à dizerquesó me apaixoneiporvocêuma vez,
cena: na primeira vez que te vi; e desta paixão
nunca mais me curei. Nunca lhe disse isto
- Lígia, há mais ou menos três meses por causa das circunstâncias entre nós,
quando te reencontrei,já viúva, naquele mas agora,só peçoque recebaestasfiarese
voo para São Paulo,fiquei tão chocadoao o único poema que conseguidecorarnessa
te ver ali sentada ao meu lado,que minhas minha vida, de autoria de um velho amigo
pernas tremiam e foi difícil segurar o de Maraçu,EmtlioVieira:
queixo. Mas agora, dane-se tudo! Dane-se
o mundo e dane-se o que as pessoas vão "Vinhascomosonhoqueabraçou minhaalma,
pensar de mim se faço um papel de maluco perdidona distânciasedutora
ou ridículo,não me importa.Voufalar tudo quandoeu bebialágrimasdefogo
e faça você o que quiser depois. Guardei comoum arco-írisno rio da vida.
fotografias tuas por todos esses anos,
todas as que estavam na coluna social do Meuamorvarridopelasventanias,
22 de Julho. Estãonuma pasta na segunda Quasenãoo quiseste.E nem saberias
gaveta do armáriodo meu quarto,se quiser quantoamorexisteno matiz das cores
conferiré só mandaralguémir até lá neste que tenhoguardadasnofundo dosolhos.
momento; a empregadaestá em casa e a
autorizo a abrir a pasta. Você era para Nãoum amorde amoresvários- eu
mim a princesafechada em seu castelono quiserate dar- ressaídode beijos.
alto da montanha e, imaginem só, agora Nãoum velhoamorde amoresvelhos,
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Maraçunão tem remorso
PedroSérgiodosSantos

Masquerote dar - e queres- suponho, choravam também, e eu ali, sem me dar


um amor-menino,amorde se ninar, conta do que se passava. Aquele beijo era o
fruto do teu ventre,sonhodo teu sonho. mergulho mais profundo na vida.
Encerrei o poema, entreguei as flores Depois do beijo, Lígia me abraçou
para Lígia e ela sorrig'. com os olhos cheios demoradamente mais uma vez, e ao pé do
d' água. O silêncio airtda se mantinha em meu ouvido sussurrou carinhosamente:
todo o ambiente. A tensão ali me fez lembrar - Cachorro!Você quer me matar do
as arenas romanas quando todos ficavam à coração?Temosmuito o que conversar,mas
espera do gesto do imperador com o polegar issonãovai ser aqui.
para cima ou para baixo, decidindo pela vida
Nos sentamos e o gerente do restaurante,
ou pela morte do gladiador. Era o próprio
Maracanã lotado esperando pela cobrança num gesto de simpatia, trouxe taças para
do pênalti aos quarenta e quatro minutos as pessoas da nossa mesa, uma garrafa de
do segundo tempo, numa final de Vasco e champanhe e disse:
Flamengo. - Esta é por conta da casa.Afinal, não é
Lígia se levantou, pegou as flores e disse: todo dia que celebramosaqui o amor desta
maneira.
- Agoraquemestáfracadaspernassou eu.
A partir daquele momento, em meio a
Mesmo assim, ela teve forças para tanta emoção e às conversas que naturalmente
dar um passo na minha direção, passar as iam surgindo, Lígia, sentada ao meu lado,
mãos pelo meu pescoço, beijar a minha boca segurou minha mão e não soltou mais. Pouco
demoradamente e depois me dar um longo antes de sairmos, Fernando sentenciou:
abraço. Para mim era como se tudo ao meu
lado estivesse rodando. As pessoas romperam - Viramsó,quantacoisanos trouxea luta
o silêncio e aplaudiram o beijo, gritavam pela causa do amianto?Redescobriminha
e assoviavam; as mulheres, emocionadas, família, minha mãe, meus irmãos.E parece
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PedroSérgiodosSantos

que agoratemospor aquium novocasal.


- Pena que eu não estava com vocês em
Maraçuparaver estacenadoseu reencontro
coma famllÍa- respondeuLígia.
Aquela foi uma ri.oite gloriosa e decisiva
para a luta na causa do amianto e para o meu
coração.

Capítulo VII
Ruminando a espera dois
passarinhos

"Eu vou-me embora


E na hora vai cantar um passarinho
Porque eu vou sozinho
Eu, a viola e Deus."
(ROLANDO BoLDRIN)

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ndo remoendo o tempo, do jeito que

A o tempo me remoeu. Tem um poeta,


daqueles grandes do Brasil, um tal de
Rolando Boldrin, que faz mais que poesia;
ele faz filosofia também, daquelas que gente
que tem diploma de filósofo profissional,
como eu, não sabe fazer. Ele debulha seus
pensamentos de um jeito tão seu, mas o que
ele diz é verdade de vida, ao menos da minha
vida. Ele andou dizendo coisas que daqui,
vendo esses ventos todos do alto do Sítio de
Nossa Senhora d' Abadia e os verdes diferentes
no pasto e nas matas, vejo todas como uma
espécie de profecia para mim. E lá do radio,
coisa de relíquia que herdei de minha avó,

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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

daqueles de caixa de madeira e botão dourado Nesse particular de achar a flor-de-lis,


para achar a sintonia certa, escuto o Boldrin acho que já achei e ela tá dormindo bem ali,
profetizar com sua viola: pertinho de mim num sono de sonhos bons e
"Correum boatoaquidondeeu moro sorriso doce. Lígia e eu, depois de tempos de
Queasmágoaqueeuchorosãomarponteada. casados, cuidando só de suas duas filhas, agora
Queno capimmascadodo meu boi já quase moças, prestes a entrar na faculdade,
A babasemprefoi santa e purificada. resolvemos adotar um menininho. Obichinho tá
Dizque eu ruminodesdemenininho com dois anos e é tal qual um bezerrinho forte,
Fracoe mirradinhoa raçãoda estrada. que pula muito. A mãe morreu, o pai sumiu e ele
Voumastigandoo mundo e ruminando é nossa alegria, presente maior da vida.
E assimvou tocandoessavida marvada..."
Penso no mundo que ele vai encontrar,
Vejo o gado ruminar esse capim numa
nessas bestagens de informática e computador,
rotina sem fim, numa sabedoria e numa
paciência que pouca gente tem; aquela de que vende verdade por mentira e mentira por
pegar os fatos da vida e ruminá-los, trazê- verdade, colocando até as picaretagens da
los do bucho para a boca, para extrair deles televisão no bolso. É por vezes um mundo de
as melhores lições, aquilo que Deus quer nos coisas que um cabra meio primitivo como eu
dizer. Por isso eu rumino e concordo com o não consegue entender. Quem fez reportagens
fim da profecia de Boldrin: quase a vida inteira numa Olivetti de tecla dura,
"Temum ditadotido comocerto quem encontrava palavra certa de homem para
Quecavaloespertonãoespantaa boiada. homem até no trato com seu Brisa Mansa, boas
E quemrefu.gao mundoresmungando informações gerais na enciclopédia Barsa e no
Passaráberrandoessavida marvada. Almanaque de Santo Antônio, e fortificante
Cumpadimeu que inveieceucantando para curar as doenças de ocasião no Biotônico
Dizque ruminandodá pra serfeliz. Fontoura, não entende como essas máquinas
Porissoeu vagueioponteando são mais do que palavras ditas de boca e o olhar
E assimprocurandominhafior-de-lis." da gente com o selo da moral.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

Penso nesse mundo que toma rumos da madeira macia, uns carrinhos de boi para
de uns te~pos que eu não gostaria de ver, vender na festa de Trindade, toda vez que me
de certas ditaduras que se criam às sombras vê com a cuia na mão puxando um mate, com
de democracia, principalmente feitas ou a erva verdinha, verdinha, diz que só bebo
incentivadas por aqueles que tanto sofreram isso porque não aprendi a pastar; depois ele
nas mãos de poderosos. São ditaduras de dá uma risada larga. E isso ele repete sempre
grupelhos, que nos tomam os filhos das que me encontra, falando em voz alta para
mãos, os valores e tradições de um tempo todos rirem ...
cantado e contado pelos velhos, pela família.
Se antes os jovens marchavam contra a Penso no mundo que vi passar pela poeira
morte do regime militar, hoje marcham de Maraçu. Da exploração do amianto, hoje
por drogas , perversões da moral e contra a quase extinta graças à pressão estrangeira por
família. Ditaduras que não consideram mais causa da pouca vergonha nacional, só falta
as palavras dos avós, de gente como meu avô uma coisinha de nada de coragem da Justiça,
Cândido Cassiano ou das glórias contadas por para pôr no pilão e socar, definitivamente,
Seu Barini sobre os homens, Chimangos e esses assassinos, que fizeram sofrer tanta
Maragatos, batalhadores pelas nossas terras gente de minha terra. Sei não se essa Justiça
do Sul. E por falar nisso, desisti de acender ainda não vai roer a corda e prevaricar na hora
o cachimbo, mas voltei ao chimarrão· ele da onça beber água; afinal, tem uns bestas por
que nunca deixa a gente ruminar sozinho. ' ' aí falando que este é o país da impunidade ...
O mate faz boa companhia enquanto passo É coisa nenhuma, pois aqui se pune muito
~ mão na barba branca que agora tem que e mal punido, é só ver em nossas cadeias a
fie~~ de molho com esse mundo aí que se geral da pobreza que ali se amontoa. Passei
av1zmha na garupa das tais tecnologias e anos no Jornal vendo esses coitados jogados
da dita sociedade globalizada. Amigo meu, nas celas de presídios e delegacias porque
Seu Rufino, que com seus cabelos brancos furtaram duas melancias ou três galinhas.
aprendeu a fazer, no artesanato do canivete e Entretanto, barões, viscondes, princesas e
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PedroSérqiodosSantos Maraçunãotem remorso

sinhazinhas dos dias de hoje, frequentadores foi ordenado e hoje reza sua missa diária como
de palácios e shoppings, não colocam os pés capelão da policia militar, enfiando a mão
por ali, não, senhor. Podem até fazer o mal- no buraco da serpente, passando seus dias a
feito que os devotos de 'São Judas Iscariotes' pregar em quartéis de Minas Gerais, fazendo
e os de 'São Pilatos', respectivamente, cada por ali sua catequese da paz.
um no seu oficio, nãb vão acusá-los, com Penso num mundo que vive à procura
libelos de trinta e três páginas, nem julgá-los de ilusionistas, para fazer deles seus ídolos e
duramente com sentença registrada, lavando seus líderes. Hoje, por exemplo, aqui mesmo
suas mãos, e jogá-los no xadrez por um tempo na capital, o tal ilusionista que fez defunto
quase eterno. No máximo vão dizer que eles ressuscitar e morrer pela segunda vez nas
são jovens excêntricos. águas do Araguaia quer largar sua deputança
Penso no mundo que não aprende a na Câmara Federal para ser prefeito. A
perdoar e por isso faz guerra, que mata mais rafaméia, na sua miudeza de dar dó, vai
pela própria falta de perdão. Mas tem gente gritando vivas sem saber o tamanho da mão
corajosa que levanta a cabeça para abaixá-la e do sujeito; coitado, ele não leva o dinheiro
dizer que errou. Vi como o Frei Jurandir quis não, só carrega o cofre, lembrando muito bem
ser ordenado sacerdote na igreja de Conceição os seus bons e velhos tempos de militante
e uma cambada do povo não quis, dizendo que estudantil e socialista praticante.
ali não ia ser ordenado o tal Menigite. É claro Penso e rumino um mundo que deveria
que não foram todos, mas foram suficientes ser feito com gente que só tivesse coração
para deixar o frade constrangido e carecendo de mãe, como a minha mãe, que no seu
do bispo pegar seu cajado de pastor para fazer silêncio aprendido com a outra Mãe, falava
suas ovelhas reconhecerem seu lugar. Essas alto dentro de casa com filhos travessos ou
mesmas tais ovelhas que agora se parecem respeitosamente com o marido, sem deixa-
mais com os porcos da Granja Solar da ficção los impunes em seu olhar de mestra, ou
de George Orwell. Mas, apesar de tudo, o frade como o de Dona Esmeralda, que rezou a vida
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso

inteira pela volta do filho e este a encontrou vezes, ficar em silêncio, sem o barulho das
com o coração doce e forte. Não mais caiu modas do mundo e o feitiço de suas cores,
no cabresto de seu marido e arduamente num silêncio como esse que preenche todo
defendeu o filho que por diversas vezes 0 dia aqui pelas bandas do sítio, que até faz a
voltou a Maraçu para visitá-la e fazer também gente escutar o barulho do capim crescendo.
o necessário combate 1 contra o amianto. A Penso no mundo que não dá crédito de
guerra entre pai e filho foi declarada, mas o fé à fé de quem faz romaria, de quem acredita
velho Altamir, um dia num discurso arrojado em benzeção e de quem reza seus longos
na Câmara de Vereadores, querendo agradar rosários com lenços tortos que mal prendem
plateia de empresários e bajuladores, deu os cabelos brancos. À fé de quem acende sua
duas voltas de angina e dor no relógio do vela no pé da santa e pede a Deus para ~andar
peito e tombou num enfarto. A viuvez de chuva. Mais uma vez me desculpe o leitor se
Dona Esmeralda foi toda na formalidade invoco o rádio, herança de minha avó, para
do riscado, mas assim que acabou o tempo me socorrer nas minhas ruminações, mas
das trevas, tirou o vestido preto, pegou sua quando me vejo na estrada que por ve~es
malinha e um xale florido e foi tirar uma escorrega os pés nas armadilhas do Coisa
etapa com filho, os netos e a nora em São Ruim canto e rezo uma ave-maria diferente,
Paulo, reviver a vida com a familiagem que dess;s inventadas por alguém que poderia
o tempo lhe roubou. Existem certos filhos ser um católico apostólico goiano, mineiro ou
que não estão desaparecidos, não foram paulista, um que rezasse assim como o Renato
sequestrados pelos índios, mas precisam Teixeira rezou:
voltar à casa do Pai, à casa dos pais, dos avós,
ao coração de cada um deles. Uma volta que É de sonhoe de pó,o destinode um só
só ocorre depois de um combate interior e Feitoeu perdido,em pensamentos
do reconhecimento de si mesmo, como ser Sobreo meu cavalo,é de laçoe de nó
ruminante, que deve ruminar também como Dejibeira ojiló, dessavida,
seus pais ruminaram as tramas do tempo. Às Cumpridaa só
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PedroSérgiodosSantos
Maraçunão tem remorso
Soucaipira,pirapora do Coronel J ales e comandar os gestos de Seu
NossaSenhorade Aparecida Canhoto na matança dos Avá-Canoeiro. Na
Iluminaa mina escurae funda tristeza das vistas, vejo que as rezas do Beato
O trem da minhavida
Antônio Conselheiro, as pregações de Frei
Penso no munçlo cheio da razão e Damião que chegaram a se avizinhar pela
da lógica, daquelas reuniões vermelhas Bahia e os conselhos de meu Padre Cícero do
e revolucionárias da universidade, de Juazeiro, não encontram eco nesse mundo que
professores e estudantes, da redação do jornal vira as costas para Nosso Senhor, um mundo
comandada por Vicentão e do olhar fuzilante mandado por essa cabroeira de televisão que
nas marchas dos quartéis do Exército em bota ameninada a se perder, em tempo real.
Conceição. O mundo que precisa , assim como A rede amarela, velha e remendada, eu a
eu, dessa luz na mina escura e funda, e que trouxe de Maraçu. Volto-me para ela e agora
ainda carece de sentir o vento que bate no meu corpo ela sustenta enquanto vejo os
rosto, os pés que tremem e o coração que gela trovões no céu acinzentado quase escuro às três
quando a gente pisa na passarela gigante, da tarde, deixando ali de lado minhas botinas
suspensa no ar, carregando cada um e todos marrons de poeira e montaria. Meu chapéu de
para a casa da mãe em Aparecida do Norte. couro, pendurei no prego do batente da janela,
Coisa assim de fé, da fé daquele tipo de junto com minha viola que às vezes dedilhava
gente que também acreditava no milagre da em canções caboclas, para que, de tudo um
distribuição de terras em Trombas e Formoso pouco eles fossem testemunhas. Coloquei os
e na profecia santa de Zé Porfírio, ou nas olhos no tempo e me alegro com a chuva que
ladainhas que rezou Antônio Conselheiro vai cair sobre todos nós, sobre os pés de mangas
embalando o sono do povo da pele queimada e sobre os cabritos e os jumentos, depois de
pelo solo quente do chão baiano, como se meses de seca e queimadas injustas, como se
estivesse a expulsar demônios como os tais a cada verão fôssemos novamente batizados e
que depois viriam a montar praça na cacunda víssemos a vida sair de dentro do chão.
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PedroSérgiodosSantos

Na rede, meio sentado, meio deitado agoniado. Aqui na rede, balançada pelo vento,
' espero Lígia acordar de seu sono, de sonh_os
vou debulhando as sementes de açaí, nas
ave-marias do terço que ganhei do frade, rimados, para o jantar e a prosa da noite
enquanto espero vou rezando para que calma, na esperança ainda de que recebamos,
alguns passarinhos retornem pelas suas asas depois da chuva, a visita de uma lua cheia que
próprias, por bondade de Deus, ao carinho mandei instalar para ela.
da minha mão. De três verdinhos, um está FIM.
sempre por aqui, solto, pois nunca gostei Cincodejulho de 2012 - noitede lua cheia..
de gaiola, ora traquinando, ora assentado
na mansidão, as outras duas caturritas, que
cuidei no cajueiro desde pequenas, amassando
a comida, colocando nos biquinhos abertos
e aquecendo o ninho, defendo-as de gatos e
serpentes oportunistas, esquecendo-se do
amor que lhes dei, tomaram voos, com a mesma
cor nas asinhas, para os rumos dos espinhos
e das fumaças das queimadas, iludidas pelo
mundo, pensando que gavião e carcará já se
converteram em beija-flores. Acordado ou
dormindo, com o gosto amargo do silêncio
na boca, meu coração dói de saudade dessas
duas passarinhas, uma dor que não passa, não
passa não, e vivo assombrado com essa dor
'
pois toda cantiga de passarinho que escuto eu
penso logo que são elas voltando. Quando saio
pelos matos e vejo uns voando, penso logo que
são elas, mas estão longe e meu coração dói,
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t
Em apoio à sustentabilidade, à preservação
ambiental, a ASA EDITORAGRÁFICA/ KELPS, declara
que este livro foi impresso com papel produzido
de florestas cultivadas em áreas não degradadas e
que é inteiramente reciclável.

Este livro foi impresso na oficina da ASA EDITORA GRÁFICA/ KELPS, no


papel: off set 75g,
Dezembro, 2013

A revisão final desta obra é de responsabilidadedo autor

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