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MARAÇII
·~
REMORSO:
1ª Edição
w
Goiânia - 2013
Revisão:Joana D'arc Moreira Borges
Editoração eletrônica: José Sérgio de Souza
Capa: José Sérgio de Souza
Printed in Brazil/Impresso no Brasil, 2013
Conselho Editorial:
André Vicente Pires Rosa - UFPE/Recife
Alamiro Velludo Salvador Neto - USP/São Paulo
Cesar de Oliveira Barr~s Leal - UFC/Ceará
Franciele Silva Cardoso - UFG/ Goiás
Gil Cesar de Paula - PUC/GO
Jane Araujo dos Santos - MPT
Luiz Eduardo Jorge - PUC/GO
Miguel Jorge - UBE/GO
Pedro Sergio dos Santos- UFG/Goiás
Sergio Salomão Shecaira - USP/São Paulo
Silzia Alves Carvalho Pietrobom - UFG/Goiás
Capítulo I
As lições que se balançavam..................................... 1
Capítulo II
Duros tempos, leves sonhos..................................... 61
Capítulo III
Sopros que se arrastam............................................. 113
Capítulo IV
Das tripas ao coração................................................. 159
Capítulo V
O Combate de São Jorge contra
o dragão de Maraçu ................................................... 221
Capítulo VI
O passado toca lábios do presente ........................... 311
Capítulo VII
Ruminando a espera de dois passarinhos .............. 337
V
Capítulo I
As lições que se balançavam
(ELO
MAR f IGUEIRAMELO)
velha rede amarela balança na varanda
sempre com a mãozinha esquerda, e depois A rede me tomava nos braços como se
percebi,já um pouco mais velho, que amarrar eu, na minha infância de seis anos, fosse seu
sapatos nunca foi o meu forte, por isso a vida filho, e disputava minha maternidade, ou
inteira calcei botinas. paternidade, sei lá, com meu pai e meu avô
que, ora um, ora outro, se balançavam comigo
Se os gregos não precisaram de escola
em conversas que anoiteciam meu sono.
para deixar sua sabedoria ao mundo, também
não precisei de professor e giz para descobrir Foi na escola da rede na varanda que
algumas das mais esquisitas variações da tomei notícia da história daquele arremedo
condição de gente que se diz vivente pela de cidade, de tudo que eu ouvia no início
graça de Deus. Longe de mim querer fazer como coisa de valentia, heroísmo e macheza
juízo de quem quer que seja, ou me comparar dos protagonistas das cenas descritas pelo
com os outros, mas se você tiver a coragem meu avô, pelo meu pai e confirmadas pelos
de ler esses pensamentos, vai querer saber outros mais velhos. Tarde da vida, concluí que
por que eu os pensei assim e não de outra Maraçu deveria se chamar "marassangue".
maneira. De sorte que minha melhor escola, Mas não um sangue de honra, de orgulho,
quando não foi a vida, vivida por mim, foi a daquele que a gente enche a boca para
vida em lição de meu pai e de meu avô, que falar de heróis nacionais. Era um sangue de
eu aprendia a cada noite no balanço da rede ruindade podre mesmo, de fedentina, da pior
que me servia de sala de aula, enquanto os maldade humana. E olha eu sendo injusto com
mais velhos comentavam o dia de trabalho, as a maldade, como se bicho fosse ruim assim.
histórias de trancoso, as políticas, as caçadas,
as doenças e curas quando haviam, seja por Meu avô se referia àqueles tempos em
ervas ou benzeções, pois médico ainda era que Carlos Prestes passava por esse cerradão,
fulano de pouca presença e credibilidade por descendo com seus parceiros para o norte,
aquele sertão. Depois tive escola de banco e numa empreitada de política militar de pouca
professora de giz, sim, mas para aquela escola clareza, mas de muita especulação para quem
lá de casa, diploma é pouco. os via passar. Prestes levantava mais poeira nas
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ideias dos caboclos do que nas poucas estradas quanto há que saí fogo e faz barulhocom
de rodagens para carros de bois. Porém, pólvora;era tanta munição que pensavam
Prestes, na sua marcha de esperança, passou até que era casode guerraoutravez,já que
e ficaram aqueles que, já desenganados com o Paraguainão miava mais pra espantá
o garimpo do século passado, queriam fazer ninguém.Podiaser com outro vizinho mas,
do leito do Tocantins o pilar central de uma qual nada, era com os Avá que ele queria
produção de gado e de arroz, transformando briga.Gentedura essesAvá-Canoeiro, difícil
a todo custo o cerrado bruto e selvagem de de um qualquerde nóssair.comelesna mão;
pequi, tatu, guariroba, anu, jatobá, mulata, forçamuita e atrevimentotava ali naqueles
cajuzinho, lobo-guará, bacupari, ema, araçá, homens; mas coitados,não tinham arma
periquito, araticum, cascavel, ingá, lambari, nem munição,mas o Coronel]ales tinha. E
ipê, capivara, lobeira, jaguatirica, gameleira gastançacom arma num era nada para ele.
(desculpe-me pela rima) juriti, guatambu, Mandoubuscáde tudo quantoeravariedade
mutum, e outros seres plantados ou andantes, de arma em São Pauloe depois,no dia da
em fazendas com paiol e fartura de pouca chegadados caixote com as tais, foi uma
variedade que a natureza desconhece. As festa de noitee dia.O Coroneldeu armapara
terras dessas fazendas tinham dono e de seus todo mundo; não ficou um só f azendeíro,
donos, o velho Cândido Cassiano foi assim me ou quem tivesse qualquerpedaçode terra,
contando: sem sua espingardaou revólver e muita
bala; pólvora e chumbo dava na canela,
- Pensaque elessão bobos?Sãonão,mas até mulher e menino receberamarma. E
hoje são menos que nos tempos do Coronel mais,o Coroneldava um garrotepara quem
]ales. Hoje tá uns poucos socados nesses trouxesseum Avá-Canoeiromorto.Nem era
matos,só procurandode novo pra reavero precisolevaro corpotodo do índio,bastava
queé deles,queo Coroneljalestomoue botou a cabeça,ou as duasorelhas.Sefosseorelha,
pra correros que sobrou.Coroneljalestinha tinha que ser as duas, senão ele acabaria
pra maisde trintajagunçosarmadosde tudo pagandoum garrote para cada orelha do
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Os Avá-Canoeiromorriam sim, mas eram mais jovem e duas mais velhas, velhas mesmo;
de luta.Eleseramgrandes,fortes e lutavam, me pareciam bem doentes e mendigavam
lutavam,mas quem é quepodecomarmade um pouco de comida pelas ruas de Maraçu
fogo,quenãocarecede lutano tapa,só de boa trajando uns farrapos de roupa. Vejo hoje,
pontaria.e de longederrubaum sem nemsujar pelas lentes da minha barba, que aqueles eram
a mãodagente...OsAvá,àsvezes,atépegavam talvez uns poucos sobreviventes dos feitos do
um ou outrojagunçomais boboda tropado Coronel]ales e do Seu Canhoto.
Coronelmaselesnãotinhamtinode atirar,e se
Vejo as mães hoje ameaçando meninos
aprendessem, ondeelesiamtermunição?Tinha
com o Bicho-Papão na hora de comer ou
jeito não,o destinodo PovoInvisívelerasumir
dormir, dizendo que o bicho vai pegá-los se
no matoou se amostrarsó com as cabeçasna
não obedecerem. Meus temores de menino,
portado bardo ToinzinhoTeixeira. E o Coronel
no canto da velha rede nas noites de conversa
]alesfalavaparaquemquisesseouvir:"Numdô do meu avô, eram talvez mais reais que
dezanose a gentejá limpouessasterrasdesses o Bicho-Papão; ainda que essa realidade
índiosimundose safados". estivesse num passado bem distante de mim,
eram eles, os Avá-Canoeiro, o Povo Invisível,
Acho que se a rede tivesse canto, eu o Coronel e Seu Canhoto.
ficava lá bem quietinho na escuta da matança O Velho Cândido Cassiano, provocado
dos Avá. Meu medo de menino ficava entre por meu pai, que não tinha lá muita prosa com
o Coronel ]ales, Seu Canhoto e os Avá; esse Doutor Altamir, filho do CoronelJales, repetia
nome de povo invisível tinha um mistério que a história do sumiço do neto do Coronel, e a
se assemelhava a coisa do encantado. Eu não noite ficava pequena para os detalhes:
conheci o tal Coronel e o dito Seu Canhoto das
histórias do meu avô, mas eles me impunham "... quem viu o Coronel]ales naqueles
um respeito temeroso que eu não sei de onde arroubosde valentiae desenvolvimentoem
vinha. Avá-Canoeiro de verdade, confesso Maraçu,nãoreconheciamaiso homemcaído
que só vi uma vez. Eram uns três: um índio na cachaçadaquelejeito. Era uma paixão
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
O Coronel Jales foi se acabando por ali na mesma toada em que Maraçu se levantava
na cachaça e morrendo num dia pelo outro como cidade, depois como comarca e por
com velório de pouca reza e enterro com fim virando diocese com bispo e catedral
chuva fininha para regar os prantos da viúva. em homenagem a Nossa Senhora das Dores.
No velório ela chegou a lembrar ao filho que a Pensava eu como menino que ora falava fino,
reza do cego de nada adiantou. Se a velha Olga ora grosso, na mesma palavra: O que há de ser
não se esqueceu do cego Ivonaldo, eu também essa cidade para mim que quero ter profissão,
não esqueci, apesar de só conhecê-lo pela virar o mundo e saber das coisas da capital e
boca do meu avô. Minha mãe, que tinha por
desse Brasil?
costume, vez por outra, me dar lombrigueiro,
também me levava à Dona Neném, beata Por aqueles tempos, Doutor Altamir,
caridosa e solteirona que sucedeu o cego já eleito vereador à custa de queimar mais
Ivonaldo no ofício da benzeção. Assim, por um pouco do resto da herança do pai, e uns
qualquer queixa mais séria de minha parte, e outros votos roubados aqui e acolá, fazia
sobre uma dor de barriga ou de cabeça, minha promessas de desenvolvimento rápido para
mãe procurava remédio na farmácia do Seu Maraçu, arrotando pelos quatro cantos que
Mendes e na volta me encostava para ser era dono de bom prestígio junto aos mais
benzido por Dona Neném. A voz era da velha importantes deputados do Estado e que
beata, mas quando ela começava a reza e já ouvira até confidências do governador,
cruzava aqueles ramos sobre minha cabeça, quando estivera no palácio para noite de festa
eu fechava os olhos e parecia que eu estava e porre dos figurões.
diante do cego Ivonaldo das histórias do meu
"De onde viria tal desenvolvimento para
avô. Eu ficava temeroso com uma possível
Maraçu?" - indagava meu pai, com o mesmo
profecia dela no final da benzeção, como fez o
cego Ivonaldo para a mulher do Coronel. espanto do meu avô, pois aquela região só
produzia aquilo que as demais tinham com
Fui crescendo por ali, no balanço da fartura: arroz, gado e umas variedades das
rede e sem perceber que meu avô envelhecia coisas da roça. Mas o vereador falava no tal
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
desenvolvimento em tom mais alto que o Eram estradas que eu não sabia ao certo
prefeito, como uma garantia dos tais amigos aonde chegariam e se chegariam, pois um
deputados que tinham projetos importantes espírito curioso e ao mesmo tempo indefeso
para o município de Maraçu. Só dependiam como o meu, não tinha porto de chegada,
do governador, que estava muito ocupado nem por conta própria, nem arrebatado por
naquela ocasião. Mas, assim que os projetos qualquer força do destino que o levasse. Meu
fossem aprovados, Maraçu iria ser outra pai, ao contrário, obstinado em ver o filho um
cidade, sob as bênçãos do progresso e do doutor, bacharel em qualquer ciência, não
dinheiro. Desse jeito ia o vereador com sua se rendeu às lágrimas de minha mãe pelos
prosa fácil e convencimento difícil. cantos da casa e caçou jeito de me despachar
Meu tamanho de rapazote vinha para Santana, cidade mais próspera, perto
chegando com os dias que eu acordava com da Capital, com boa escola e com gente da
a buzina da carroça do leiteiro. Eu pulava da confiança de meu avô, que me manteria sob
rede velha com a certeza de que, por certo, vigilância e cuidado.
jamais a deixaria e saía correndo para comprar Na mala, umas cinco ou seis mudas de
o pão para a mesa da manhã de todos. No café, roupa, sendo uma mais nova, num tergal de
os adultos trocavam umas conversas bobas primeira para dia de missa e almoço em casa
de sonhos acontecidos na noite e falavam de gente graúda, o resto era roupa de briga
do fazer daquele dia e eu preparava meus mesmo; uma Bíblia,uma medalha de São Bento
sonhos, indo meio a contragosto para a escola, e uma novena de Nossa Senhora do Perpétuo
deixando para trás as baforadas do cigarro do Socorro, que minha mãe colocou de alimento
meu avô. Enquanto isso, ele ajeitava as coisas para minha fé; um caderno, uns retratos da
para ir ao sítio, depois que uns pingos de café família, conselhos, ordens e lembranças,
manchavam a toalha branca da mesa, para a tudo bem dobradinha e arrumado no fundo
agonia de minha mãe, pois feriam o bordado da bagagem; eu não poderia esquecer nada.
de sua delicadeza, apontando para a boca Deveria me lembrar principalmente de
fumacenta do velho Cândido Cassiano. voltar, me lembrar que meu lugar era ali, em
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
Maraçu. Quando entrei na jardineira, deixei as rios deixavam sob mistério. Mas com mistério
lágrimas de minha mãe, o abraço de meu pai ou sem mistério, as pontes eram desvendadas
e dois irmãos mais novos. Minha irmã não foi metro por metro.
se despedir de mim porque estava adoentada Asoitohorasdeviagemsetransformaram
e, olhando no meu rosto como o escultor olha em doze e eu cheguei a Santana já na beira
para a obra em seu ofício, meu avô gravou em da noite de uma segunda-feira tristonha, sem
meus ouvidos esta última recomendação: "Vá pôr do sol. Santana era, naquele momento, um
buscar a sabedoria lá fora, mas foi aqui que amontoado de casas e prédios de dois andares
Deus te plantou". que me ofuscavam como tamanho de cidade
Na previsão de oito horas de viagem de que eu ainda não me dera conta, pois, com
Maraçu até Santana, caiu chuva de despedida as cinco ruas de Maraçu na lembrança, meu
por todo o caminho. A Jardineira atolava em referencial urbano era outro, bem distante
pé-de-serra e por vezes descia desembestada daquele que agora me recebia.
por ladeira vestida de lama, atravessando Remediei a fome e a vontade da natureza,
ponte de dois paus, somente por adivinhação
nuns minutos que passei entre a sala de jantar
do motorista, no rumo de quem já é parente
e um banheiro de uma pensão vizinha ao
da estrada, há anos vendo os rios mais altos
ponto de parada das jardineiras. Aliás, não era
que a terra em tempos de pasto verde. Eu
uma pensão, era a Pensão Uruguaiana que,
pensava que a Jardineira ia na rodada das
águas toda vez que a gente chegava perto depois, tomei conhecimento que pertencia
de um rio. O motorista dava uma parada, a um casal de sulistas, senhor Joel Barini e
mandava o pessoal tirar as botinas e levantar Dona Maria Inês, gente de quem me tornei
a bainha das calças e ele, na cautela, jogava a amigo. Já de barriga cheia e a cabeça também
jardineira rio adentro, com água pelo motor abarrotada de dúvidas, fiquei escorado numa
e a danada era valente e boa de nado. De lado aroeira no alpendre da pensão, com a mala
a outro não errava nem um palmo das pontes aos pés e um pedaço de papel amassado nas
estreitas de madeira, que por dias e dias os mãos. Aquele endereço era, para mim, como
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Parece que a noite não impediu que os seu] oel à frente, falante, cumprimentava
rumos fossem chegando e já não me sentia todo mundo:
mais tão perdido quanto no momento em que -Boas,compadrePaulo!
desci da jardineira. Seu Joel pegou o chapéu e -Boanoite,compadre!
disse para a mulher:
-Boanoite,comadre!
- Volto logo,vou só deixar esse gurí na -Boanoite, compadreBarini,a comadre
casado compadre. comovai? !
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lágrimas, com o som da saudade, marcarem o - Venha para o café, bote as vergonhas
travesseiro que já me trazia o primeiro sono, de ladoporqueaqui em casaninguémadula
o primeiro sonho dos sonhos fora da rede ... ninguém,fique à vontade.
Acordei cedo, temendo fazer feio. Onde Meio que torto de encabulado, ainda
já se viu homem sério e trabalhador alisar bicho do mato, sem muitos modos me sentei
cama até beirada do almoço? Dormir mais, só quase na beirada da cadeira, um pouco
se fosse motivo de doença. Esse foi o exemplo, afastado da mesa. Ali, na maior parte do
a educação de lá de casa. tempo de cabeça baixa, tomei' uma xícara de
Abri a porta do quarto e, aproveitando que café que a Diná me serviu e comi dois pedaços
não passava ninguém pela cozinha, corri para o de pamonha frita. Doutor Paulo tomava
banheiro num constrangimento só. A escova de vagarosamente o café numa caneca de metal
dente no bolso, uma toalha no ombro e a bexiga esmaltada e lia um jornaleco de poucas folhas.
cheia. Urinando ali, me vinha na ideia aquelas Dona Carolina ligou o rádio e Tonico e
mijadinhas sertanejas nas noites perto de casa, Tinoco encheram a cozinha com os ponteias
no meio do bananal. Laveio rosto, dei um jeito no da viola. Eu ali, quieto, calado, desassuntado
cabelo e fiquei sentado na cama com a porta do
de tudo.
quarto meio aberta. Espiava a quietude da casa
como um cachorro esperando ordem. Compouco Doutor Paulo colocou o Jornal sobre a
chegou Dona Carolina, já colocando panelas no cadeira e começou a dar as ordens:
fogão e uma mocinha, negra tal jabuticaba, se - Diná,vai acordaras meninas, mande
abeirou por ali também. Vim a saber depois, que que elasjá se arrumempara ir ao dentista
era a Diná, empregada, filha de outra que,já pela daquia pouco.Carolina,dê uma ajeitadano
idade, andava mais doente do que sã. meu paletóazul e na gravatapreta e avisa
Com o cheiro do café, Doutor Paulo se o Cabraldo açouguepara mandaruma boa
sentou à mesa e de lá mesmo me olhou no costela lá pro compadreJoel; ele gosta de
quarto e falou em voz alta: assarum bompedaçono espetoe vai gostar
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- Os homenseram bons de brigamesmo das aulas. Olhava mais do que falava, espiando
né? Mas Seu Joel,passei mesmo para uma a camaradagem dos já conhecidos e na
visita rápida, volto depois e o senhor me esperança de que, quem sabe um dia, também
contaquefim teve essadesgraceiratoda. tivéssemos amigos.
- As ordem, gurí, vem por aqui que te Vi de pronto que professor nenhum
contotudo, tudinho. amaciava o taco e as aulas corriam num
batidão só. A lei era só uma, ou estuda ou
Enquanto SeuJoel pegava o tal chimarrão
estuda. Teve um tal de Professor Ruben, de
outra vez, eu pegava a porta da rua e saía
física, que já foi avisando:
com aquelas cenas da tal guerra farroupilha
pensando que coisa daquela era só mesmo - Aí moçada,para cadahorade aula que
possível lá pelas bandas do sul, em tempos eu dou em sala vocês devem estudar pelo
de reinados e impérios. Aqui pelas bandas do menosquatroem casa...
cerradão as coisas pareciam mais tranquilas. Na mesma toada vieram os professores de
As aulas começaram. Com elas, as novi- latim, de geografia, de matemática e assim por
dades da escola, dos professores, das matérias diante. Percebi logo que da minha escolinha de
e dos colegas. Uns, com uma camaradagem já Maraçupouca coisa eu havia de aproveitar, acho
antiga, formavam seus grupos nas brincadeiras que só ia sobrar mesmo o diploma do ginásio.
e nos estudos; já tinham anos de convívio no Uma das primeiras boas lições de vida
mesmo colégio e no conhecimento das famílias. que tive na nova escola foi a de que a amizade
Outros, mais quietos que nem eu mesmo, eram pode nascer da necessidade. Com um mês e
vindos de outras escolas e de outras cidades. meio de aula eu já conseguia decorar bem
Tinha uns três que eram de outro Estado, um as declinações do latim e vi que a gramática
das Minas Gerais e dois da Bahia. não me daria problemas. Os colegas de sala,
A gente, que era chegante, ficava por ali, novos e antigos da escola, ficaram surpresos
encostado nas paredes na hora dos intervalos com meu desempenho na prova oral. Diante
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apelidos iam nascendo na turma e cada um que disparava e as amigas da donzela a faziam
se acostumasse com o seu. O Cebola, no início, corar e todos indagavam, quem seria o tal
não gostou do apelido, mas ninguém aguentava apaixonado das madrugadas. Um mistério
o bafo de onça que ele orgulhosamente mantido a sete chaves pelo locutor e seu
ostentava, e se mostrava para a turma como secretário, que cobravam três contos por cada
o arroto mais alto da escola após ingerir uma música oferecida; evidentemente, o segredo
tubaína inteira. era a alma do negócio e neles o cliente podia
confiar, como se faziam com os segredos
Uns e outros brinquedos de parque de pecaminosos despejados no confessionário.
diversão faziam a distração de novos e velhos Pela praça, na camaradagem dos amigos,
que perambulavam pela Praça Santana entre eu gastava as horas nos dias de folga, sem me
vendedores de pipoca, balões de gás, geladinho esquecer nos finais de semana que domingo
e amendoim. Mas destaque mesmo tinha aquele é dia de missa e, nas orações confiadas ae
arremedo de rádio.Três alto-falantesnaalturados minha mãe, eu fazia crédito à sua pessoa e
postes em pontos estratégicos da praça pegavam não perdia um sermão dominical.
carona na voz empastada do locutor que, mesmo Aos poucos não só a casa de Doutor Paulo
esbarrando vez por outra na gramática, fazia os foi me parecendo familiar, mas a própria cidade
jovens corações bateram mais forte: já era minha também. Voltava a Maraçu nas
férias e logo já estava a pensar na volta para
- Os senhorese as senhorasacaboude ouvir, Santana, para os livros, a escola, os amigos.
comNelsonGonçalves, a Normalista.
Agoraé dezoito À custa do Latim, consegui até uma certa
horase dezminutose a próximacanção,interpretada amizade com os colegas nativos de Santana,
porÂngelaMaria,vaiparaajovemqueestádevestido que me ensinavam matemática nas horas da
verdee laçobranconocabeloe quemofereceé aquele minha agonia numérica em troca de aula na
quese intitulaoApaixonadodasMadrugadas. língua de Pilatos. Essa minha facilidade no
latim chegou ao conhecimento do Doutor
Enquanto Ângela Maria encantava a Paulo quando, ao se encontrar com o frade
todos com o sucesso do momento, pelas diretor da escola na porta dos correios, ouviu
calçadas da praça um jovem coração feminino logo um elogio sobre a minha pessoa:
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso
- MasDoutor, não sei nada de advocacia, dois. Eu preciso de ajuda e você aprende
deleis,nãoseicomopoderiaseressetrabalho. mais algumacoisana vida e no fim do mês
aindavai ter uns trocadosno bolso.
- Nada que seja tão difícil e não quero
atrapalhar seus estudos. Primeiro, eu - Façoquestãode dinheironão,senhor.
gostariade te mandar fazer um curso de - Oqueé issorapaz?Valorizeseu trabalho,
datilografiae depois você viria trabalhar todo homem é digno de seu salário.Depois,
comigoumas duas ou três vezespor semana não éjusto ficar aí tal qual,boi de canga,só
e poucas horas do dia, o suficiente para puxando carga pesada e ganhandoferrão
passar a limpo minhas peçasforenses e ao nosquartos.
mesmotempopor em práticaseu latim.
- Sim,senhor,entãoo senhordá as ordens
Eu, na posição de hóspede, no favor de quem e diz quandocomeço.
me recebia em sua casa, não me sentia muito Conforme o combinado eu ia ao escritório
à vontade par dizer um não. Ainda que ao me às segundas, quartas e sextas-feiras, a partir
receber em sua casa ele estivesse a pagar favores
das três da tarde. Nos primeiros três meses fiz
a meu avô, eu não via aquela situação como uma pouca coisa, pois era ainda iniciante no curso
simples imposição da gratidão, gostava dele e da
de datilografia, frequentando aulas no fim da
família. No mais, ter a oportunidade de trabalhar
tarde, me familiarizando com a velha Olivetti
num escritório de advocacia seria algo desafiador. verde de ferro e teclas pretas. Era uma ordem
Aprender datilografia, as leis e o trato forense com
alfabética completamente diferente daquela da
aquela gente formal e engravatada, poderia ser
minha cartilha escolar; não sei como meus dedos
interessante: aprenderam a dançar naquela desordem. Porém,
- Aceito sim, senhor, o que o senhor com menos de três meses eu já datilografava
mandareu faço. ofícios, petições e defesas no escritório.
- Olherapaz,não é bem uma questãode A generosidade do Doutor Paulo me
mando, mas uma oportunidadepara nós contemplou não só com dinheirinho no final do
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mês, como também com o pagamento integral Aquele ano chegava ao final com a
do curso de datilografia. Senti que aos poucos minha glória no Latim, a boa convivência
se formava entre nós uma relação de confiança com a História e a derrota na Matemática.
e eu, que pouco entendia das leis, servia pelo fiquei de prova final e acabei sendo
menos para escutá-lo quando ele conversava aprovado com nota mínima; creio eu que
comigo sobre algum processo como se estivesse a esta nota se somou a benevolência da
conversando sozinho, colocando em voz alta professora, embora, até então, eu duvidasse
seus pensamentos. Eu escutava tudo, raramente da humanidade de qualqµer professor
fazia uma pergunta e em hipótese alguma de Matemática. Ser generoso e professor
comentava com qualquer pessoa os rumos das de Matemática eram, para mim, coisas
conversas e das folhas datilografadas; ele sabia totalmente inconciliáveis. Desta forma,
bem que podia contar com meu sigilo. a vida me ensinou, mais uma vez, que o
prejulgamento causa cegueira n' alma.
Naquela toada acabei por exercitar mais
ainda o Latim, mesmo que fosse o latim forense. Ao final daquele ano, minha sombra
Assim, os reflexos logo apareceram na escola, já era mais urbana. Os amigos e os temas
quando o professorme pediu para auxiliá-loapós as das conversas já me colocavam na rotina da
aulasna correção de exercíciose provas dos alunos pequena cidade, que aos meus olhos de caipira
das séries anteriores. Evidente que esta situação adolescente, era uma metrópole.
me garantiu aumento do status entre os colegas, Tinha algum dinheiro poupado para
me salvando inclusive dos constrangimentos levar de Santana uns presentinhos de natal
do futebol, pois, míope e jogando sem os óculos, para a família em Maraçu e, enquanto
meu desempenho deixava muito a desejar. Assim, batia pernas nas lojas centrais buscando o
a complacência dos camaradas me garantia um agrado de um e de outro, minha cabeça me
lugar, ainda que secundário, no time e a caridade colocava nas ruas poeirentas de Maraçu,
alheia me poupava das críticasseveras pelas falhas onde por ali ainda deveriam estar os
e erros no gramado. colegas da infância.
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maiserapocosque tinha leiturapra modelê estivesse. O ônibus já tinha feito mais duas
aquilo.Intonceo Porfíriopegouo papere leu paradas para as pingas e mijadas, mas não me
pra nóis;tava escritoque nóis tinha quefazê levantei para não perder a fala daquele homem.
umasocíaçãopramodenóisficáfortee tomar Enquanto ele contava tudo nos detalhes, eu
pra nóis as terra que num tinha dono;ia sê me recordava dos Chimangos e Maragatos
um pedacinhode chão medido iguarzinho da luta Farroupilha de Seu Joel. Eram guerras
pra cadapai de famia. Porfíriofoi simbora tão distantes uma da outra, que tinham até
e nóis tocô de cárculoque aquilo era bom, objetivos diferentes, mas acho que eram lutas
se as terra num tinha dono,o governonum de gente boa, lutas pela dignidade. O motorista
oiavapra nóis,nóispegavaa terra,prantava novamente acelerava aquele motor barulhento
e vivia dela cum nossosfio. Ele disse que e fazia o ônibus romper aqueles vales de poeira
vortavacum oito dias.Nóisfeiz mais umas e lama, enquanto meu parceiro de viagem me
três riuniãofaiandode quinze dias,mais na contava dos acontecidos:
úrtimajá tinhaporláum pulíçae umjagunço
e na vendadoseu Ribinhaosjagunçojá tava - Homeminino,nóis fiquemo tudo besta
falandoque as terratinha dono,que era dos de vê uma caminhoneta chegar na casa
fazendero.O Porfírioriuniu cum nóis outra dum tar Tião Pires e o Porfíríoali mandá
veiz e ispricôque era mintiradosjagunço e os home descarregásete caixa cheiinhade
dospulíça,queaquilotudoeraterrasemdono espingardae pra mais de dez caixa de bala
mesmoe queessesf azenderoeratudogrileiro e o tar Gerardão,que andava com ele,já
cum documentofarsa que foi compradoem separouprum canto aquelesmais bestaque
cartóriosafadoe quese nóisquisesseas terra, nem eu que num sabia atirá direitoejá foi
nóistinha que sê home,peitáosjagunço e os dando as inspricaçãopra mode nóis colocá
puliçae quepra issoeleagarantíaas arma. balanas espingardae fazê pontaria.No dia
marcado,nóisajuntemouns quarentahome
Leovegildo narrava os acontecidos e e coma caminhonetado Gerardãoe otrosde
eu mergulhava naqueles fatos como se lá eu cavaloe mula, nóis rumemopras terra que
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PedroSérgiodosSantos Maraçµnão tem remorso
a dispaiso Porfírioia separáos pedaçopara perna dele e a dispais vortava cum mais
cada qual fazê suas casa e prantação.Era gente,maisbalae maisarroizefejãoe salpra
bem cedo,iscuroainda,quando nóis saímo nóis ir passandoaquelesdias.Nóis apiemo,
da casado tar TiãoPires,a dispaisde duas metemoafoicenomato,amarremouma rede
légua,quandonóisjá lá ia cheganono rio, nospé de pau,fizemouns trêsfogopra mode
tinha assim uns pé de pau e uma saroba cunzinhá o dicomê e acendê um cigarro,
de mato meio arta e de lá nóis só viu uma vi uns quatrosaí pra caçá uma capivarae
balaiadade tiro que vinha pra nossabanda. otrossubindomaisarta uma meia léguapra
Oshomedecerode ribada caminhoneta,nóis começávê aspartede terraquenóisiapissuí.
apiemodos cavaloe cacemolugá de amoitá Fiquemoali naqueledia e maisotro.Quando
e truxemotambémas espingarda.Ali atirou já tava ficando escuro, sapo e vagalume
quemsabiae quem nãosabia,foi muito tiro, começandono trabáio,e nóis ali arriunido
foi muita bala.O Porfíriogritava mode nóis no pé do fogo isperandocuzinhá um arroiz
pegáaquelescachorrodaquelesjagunço e o e um café,aí é que nóis viu tiro mesmo.Da
Gerardãovinha choferandoa caminhoneta, primeravez as bala em vinha só dum lado,
tinha levadouma bala na perna mais tava mas naquelahoraeu via tiro de toda banda.
atirandopra valer.A dispaisde um tempoos Eu me pegueicom NossaSenhorae o Divino
tiro parô.Nóis viu uns seis cabra correndo Pai Eterno,inté fiz promessapra pagar em
e devagarinhonóis foi se chegando;lá na Trindadee me deitei pelos mato. Saí com
sarobatinha dois morto.O Gerardãomandô uma ispingarda por precisão mais num
cavá dois buracoperto do rio e sipurtemo atirei prumodeos cabranão me vê. Os que
ali os condenado.Porfírioseguiu cum nóis se acoitôligeiroescapô,os que foram lerdo
mais duas léguase meia e mandô nóis apiá; tombara na bala. Fui me arrastandofeito
decemoasmatula, machado,foice, enxada cobrano mato, até fica iscutandolá longe
e ele mandô nóis ir se arranchandopor ali bemfracoum tiro aqui e acolá,me releitodo
mesmo. Ele ia vortá pra currutela com o nosispinhoe dispaisvi um fio de seu Ribinha
Gerardãopra mode arrumá remédio pra que escapôtambém.Nóisandemopelamata
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
60
o longe minha velha Maraçu vinha
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso
Toinzinho Teixeira morreu e ele comprou carregar. Foi um resto de tarde de alegria e
o comércio de sua viúva, o estabelecimento muitas perguntas sobre a nova escola, a casa
ficou mesmo conhecido como "Bar do e a família do Doutor Paulo, sobre os novos
Assombro",uma vez que a casa que o abrigava amigos e o trabalho de auxiliar no escritório.
havia mais de trinta anos tinha mesmo fama Percebi um certo orgulho deles em ver meus
de local para visagem de almas. Uns falavam tímidos progressos na cidade grande.
em mortos de famílias que ali moraram,
À noite não ficamos a s-ós em família.
outros falavam ainda de assombrações dos
Velhos amigos, vizinhos e parentes vinham à
índios Avá-Canoeiro, cujos pedaços eram
nossa casa para me fazer as mesmas perguntas
jogados ali, na porta do bar, nos tempos em
que o Coronel]ales fazia suas matanças. já respondidas. Era muita conversa, muito
café com bolacha que minha mãe servia às
Não entendo bem desse negócio de visitas; e eu logo me aproximei do meu avô,
assombração, não sei se é caso de serviço para numa cadeira de encosto, para espreitar os
benzedura, culto de pastor crente, bênção de assuntos que tomavam outros rumos noite
padre ou de xangozeiro de umbanda. Só sei adentro.
que para mim, na minha chegada a Maraçu,
o Bar do Assombroera tão somente ponto de Naquela mesma noite fiquei sabendo
alegria, onde encontraria minha mãe sorrindo pelas bocas das visitas, particularmente do
na beira da calçada com um beijo e meu pai Juarez Jaú, que a cidade vivia um misto de
num abraço de confiança e saudade. O ônibus euforia e desconfiança com um tal de amianto
fez parada curta e seguiu viagem. Não vi mais que descobriram por lá.
Leovegildo; ele seguiu adiante e me deixou de Demês para outro a cidade recebeu gente
presente um pouco da luta daquele povo e das de todo canto. Eram uns tais engenheiros de
boas ideias e coragem de José Porfírio. São Paulo, de Minas Gerais, muito sujeito de
Tomei com meus pais o rumo de casa fala enrolada também chegou; não se sabe se
e a maleta pela mão, que não me deixaram eram americanos, alemães, mexicanos ou de
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
que buraco saíram. As roupas eram estranhas, se poderiam arrancar tais estacas, mesmo que
como aquelas que aparecem nos safáris ou em estivessem dentro da terra alheia.
filme de Tarzan. Vinha até gente graúda do Passei meus dias de férias a ouvir
governo junto com eles e sempre tinha um conversas de toda sorte pelas ruas de Maraçu.
jipe do exército com uns soldados para fazer Todos só falavam no tal amianto, sem saber
sombra. bem do que se tratava. Uns diziam ser uma
Eram homens que chegavam e partiam espécie de areia diferente, outros que era um
dias depois, após fazerem muitas perguntas e metal em pó que acharam nas terras por ali.
vasculharem todo o cartório para fuçarem nos Havia os que falavam que o tal amianto ia
documentos das fazendas e nas propriedades trazer riquezas para o município e tinha os
das roças. mais velhos que olhavam com desconfiança
EliasJaú disse a meu pai que a Ritinha do para toda aquela movimentação.
cartório não sabia mais o que fazer, de tanto De início, aqueles que queriam vender
pedido daquela gente estranha que tinha suas terras para os estrangeiros receberam
para atender. E nada podia negar, pois os tais o valor que pediram. Era alqueire de terra
homens do governo tinham ordens expressas vendido a peso de ouro. Os estrangeiros, gente
e escritas para receberem toda a colaboração esquisita, não pechinchavam pelas terras, nem
de civis, militares e eclesiásticos, para o bom faziam questão do gado, de cavalo, de carroça
desempenho de suas tarefas. ou de qualquer serventia que houvesse nas
Por aqueles dias ninguém sabia ao certo fazendas. O vendedor que tivesse uma roça de
que tarefas eram essas. Na mesma pressa milho, arroz ou qualquer que fosse, poderia
que chegavam ao cartório, corriam para as esperar para fazer a colheita.
fazendas com aparelhos de medição, trenas Os estrangeiros pouco falavam da nossa
e picaretas, com homens fincando estacas língua. Tinha sempre um sujeito do governo
brancas aqui e acolá e informando a todos junto com eles para facilitar a conversa e a
nas redondezas que, por ordem federal, não compra das terras.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
Gente antiga, de muito tempo pelas bandas governo, com paga de preço menor e, para
de Maraçu,juntou o dinheiro das terras, trouxas não ficarem no prejuízo total, cuidaram logo
de roupas, panelas de cozinha e uns cachorros de comprar pedacinho de chão em outro canto
civis e se foram da cidade em caminhão cedido e providenciar um mandiocal, galinheiro
pelo governo, para comprarem propriedades e vaca leiteira para dar comida aos filhos.
em outros cantos e se arrancharem onde Deus Quem sempre arrotava de grande fazendeiro,
quisesse. Nas despedidas, sempre na frente do passou a grunhir baixinho em terra miúda.
BardoAssombro,a choradeira das comadres que
Enquanto isso, Maraçu via coisa que
ficavam se somava à choradeira das que partiam;
antes nunca se ouvia falar por aquelas bandas.
e os meninos pequenos, uns catarrentos e outros
Tratores e máquinas de toda raça invadiam a
buchudos, também choravam, só para ajudar,
cidade em direção às terras já desocupadas.
mesmo sem saber o porquê.
O comércio cresceu. Tinha gente abrindo
Tempos depois fiquei sabendo de gente pensão para todo lado, para dar pouso a uma
que procurou terras em Alvorada, Mambaí e peãozada que chegava de todo canto do país.
Taiobinha e por ali se assentaram depois de
Findadas as férias e estando já em
negociarem alguns alqueires e um bom gado.
Santana de volta aos estudos, por cartas
Soube também de gente que, com a fortuna
constantes da família e de amigos eu tinha
da dinheirama que recebeu pelas terras, foi
notícias certas do desenvolvimento de Maraçu
logo para a cidade grande, uns até para a
com o tal amianto. Diziam as cartas que o
Capital, compraram casa e, sem o costume do
dinheiro corria solto pelas ruas da cidade, que
trabalho da rua, foram comendo do dinheiro
agora também não eram poucas. O prefeito
que tinham, até cair na miséria com a família,
mandara abrir várias para construção de
numa indigência que colocariaJó a refletir.
residências, comércio e até uma "casa de
Aqueles que não quiseram aceitar recursos", com mulheres sem procedência
negócio de bom preço com os estrangeiros, que, atraídas pelo dinheiro fácil do amianto,
tiveram depois suas terras tomadas pelo também foram parar em Maraçu para dar
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
conforto aos homens do amianto em noites É bem verdade que em Maraçu qualquer
de cachaça e radiolas de ficha ou em dias de um abria comércio sem legalidade de prefeitura;
sol e feriados. eram tão poucos que se tornaram quase
um patrimônio do vilarejo. Mas com o tal
Senhoras de família, beatas e a Ritinha
amianto em bolsos e bocas, o comércio pegou
do cartório foram em comitiva reclamar ao
fogo e o prefeito viu aí uma boa oportunidade
prefeito do alvará expedido pela prefeitura
de arrecadar fundos. Fez tratativas com os
para o funcionamento da tal casa de recursos, vereadores que também colocaram cifrão
que ostentava placa colorida com o nome nos olhos e logo a cidade amanheceu com
"BoatedosEncantos".O prefeito, de cara limpa, leis para isso e aquilo e todas elas com taxas
preocupado só em agradar os graúdos do e tributos bem explícitos. Indagado pela
governo federal, que também estavam de olho tradicional comunidade maraçuense sobre o
na produção de amianto, foi curto e grosso com desassossego causado por tais leis, o prefeito
a comitiva: "As senhorassabem muito bem que sempre rebatia com o mesmo argumento: "A
qualquercidadedesenvolvidatem estabelecimentos prefeituracarecepôrordemnessecrescimentoe de
desta natureza e não se pode restringira livre recursospara atenderas necessidadesdo povo..."
iniciativadosnegócios;istoé a regrado capitalismo. e seguia de trololó emendando um discurso
E digo mais, no ritmo que cresceMaraçu,logoa como se estivesse em tempo de eleição.
BoatedosEncantosterá concorrentes, poissozinha Maraçu tocava seu desenvolvimento à
não consegueatendertoda a demanda,e ao invés custa do amianto e eu cá em Santana tocava
das senhorasestaremme perturbandocom coisa meus estudos. Como sempre, ia mal nas
pequena,deveriamestar em casa cuidandobem matemáticas e me virava muito bem no Latim
dos maridospara que eles também não passema e no mundo da História e da Geografia. Doutor
visitara boate.E passarbem".O prefeito saiu da Paulo dava como certa a minha carreira
prefeitura para outros compromissos com os jurídica. Rapidamente eu tomei conta da rotina
estrangeiros e deixou as bocas das senhoras forense. Conheciajuiz e cartório e pouco errava
com gosto de gás e bafo de faísca. na datilografia das peças processuais.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
A cada vez que eu voltava a Maraçu para viciado em erva dos índios guarani, povo do
férias semestrais, tinha a nítida impressão sul. Mas a tal erva era boa mesmo; gostava eu
de estar chegando em outra cidade. Não só de pegar o amargo depois de uma refeição,
pelo tamanho das ruas e construções, mas de prosa que se espichava em cadeira de
pela gente estranha que por ali passava ou varanda, quando eu contava também ao Seu
se alojava. As novidades deixaram de ser as Barini as mudanças que ocorriam em Maraçu.
minhas para ser as da cidade que crescia, com Na casa do Doutor Paulo me tornei
gente, problemas, pilantragens políticas de quase um filho; não me sentia mais acuado
toda sorte. como no início, mas também não me dava
Em Santana firmei amizades que se a certas folgas feito gato de armazém. Eu
tornaram um braço da minha família. Por era respeitador e sempre na prontidão para
vezes passava tardes e noites livres a conversar qualquer que fosse a serventia, comparecia ao
com Seu Barini enquanto ele enchia de água serviço até sem ser chamado e, na maioria das
quente sua cuia de chimarrão. Novas e velhas vezes, era dispensado.
histórias dos pampas me faziam viajar por Na escola peguei bom conhecimento
aquele mundo de chimangos e maragatos. com os frades e a camaradagem dos colegas
Por vezes cheguei a provar do mate quente era negócio certo nas provas difíceis, tanto
na cuia, oferecido gentilmente por Seu Barini. nas minhas, quanto nas deles.
De início, só aguentei o calor da água porque
estava acostumado ao café de minha mãe, Ao inteirar os dezessete anos, tive que
mas aquele caldo verde era de um amargo me alistar, dando como certo que no ano
sem destino. Confesso que algumas vezes seguinte estaria com a farda verde-oliva,
tomei por educação. Em outras, desconversei sentando praça no quartel do Tiro-de-Guerra.
em uma recusa e por fim comecei a gostar Na fila do alistamento, além de muitos
do diacho do mate; logo eu, um sujeito do colegas do colégio Santo Antônio, vi toda uma
cerrado, das matas do ipê e dos pequizeiros, matutagem de municípios vizinhos. Não sei
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso
onde ia ter quartel e fuzil para tanta botina, pelo Tiro-de-Guerra, embora ele mesmo
mas lei é lei, a gente tinha que se alistar e não gostasse muito de gente que tivesse
esperar que não acontecesse guerra que arma como instrumento de trabalho. Com
gastasse essa gente toda. 0 domínio que adquiri no mundo do latim
Naquele ano, no início de dezembro e frequentador da missa domingueira, fui
recebi meus pais na rodoviária de Santana. também convidado pelos frades do colégio a
Queriam ficar hospedados na pensão do seguir vida eclesiástica, com vaga certa em
Seu Barini, mas o Doutor Paulo em hipótese seminário nas Minas Gerais e, quem sabe,
alguma considerou esta situação. Fez poderia fazer estudos teológicos em Roma.
questão que ficassem em sua casa. Arrumou Eu ouvi tudo e busquei novamente uma
quarto, cama e mesa e os tratou na fineza de mudança, desta vez para a Capital, olhando de
gente importante. Dona Carolina pegou de perto as portas da Universidade e as provas
andança com minha mãe em lojas de tecidos do tal vestibular.
e aviamentos e o Doutor Paulo mostrava ao Meu pai me garantiu ainda algum
meu pai o bom comércio de Santana, e vez dinheiro para os estudos e levei uma carta
por outra soltava elogios a minha pessoa; meu de recomendação do Doutor Paulo para
pai retrucava sempre com os agradecimentos um desembargador que poderia me dar
pelo cuidado que ele dispensou a mim. um emprego no Tribunal. Nesta segunda
Assim, chegou o dia da minha formatura mudança eu já não chegava sozinho para
no científico. Teve missa e solenidade, Hino o desconhecido como desci do ônibus a
Nacional e diplomação. primeira vez em Santana. Vários camaradas
Meus pais, com orgulho do filho,já viam de escola também se abeiravam às portas da
na minha pessoa um bacharel de carreira universidade buscando carreira profissional.
promissora no fórum da cidade. O velho Joel Gostava eu das letras jurídicas, mas
Barini achava que eu tinha vocação para era mesmo apaixonado pela História e por
o oficialato militar e que poderia seguir fim acabei por iniciar uma licenciatura em
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
Filosofia, coisa lá que eu não sabia ao certo o discurso de um tenente que, por hora e meia
que era, mas tinha o encanto da inteligência falou para uma tropa de duzentos e vinte
de grandes homens do passado e isto acirrava frangotes sobre a importância da pátria e o
minha curiosidade. perigo dos inimigos internos que rondavam a
Sabedor de minha opção, meu pai me nação. Ouvi falar de uns certos comunistas e
escreveu dizendo que de curiosidade ninguém subversivos e ao final cantei pela décima vez o
sobrevive, mas como eu era novo, ainda teria Hino Nacional e, com a mão direita estendida,
tempo para me arrepender e me voltar para o fiz o tal juramento, prometendo por tudo
Direito. Igualmente ouvi conselhos do Doutor que é mais sagrado que eu lutaria até morrer
Paulo quando lhe fiz uma visita, meses depois numa guerra, se preciso fosse, para salvar a
de ingressar na Faculdade. Ele, porém, foi mais pátria dos ditos inimigos.
ameno, falando-me que a tal Filosofia poderia Voltei aos estudos da Faculdade de
me ser útil futuramente quando adentrasse o Filosofiapassando a enfrentar textos e ideias
debate jurídico. dos gregos e romanos. O idealismo platônico
Com a matrícula efetivada e uma ficha e o realismo de Aristóteles me fascinavam
de frequência nas mãos, compareci ao Tiro- e cheguei a ler textos de Cícero e Platino
de-Guerra e fui dispensado do serviço militar, no original, graças ao Latim aprendido em
contrariando assim o oráculo do Seu Joel Santana. Alguns colegas do colégio também
Barini. Naquele dia fiquei em fila por longas se tornaram colegas de faculdade, fazendo
horas em sol de solidão. Fui examinado por outros cursos, e eu mergulhava agora em
médicos, como se cavalo fosse, em mãos novas ideias, com uma sombra de saudade
de veterinários. Marchei, tomei posição de de Santana, das ruas, da família do Doutor
sentido e descansar, em pé no cansaço do sol Paulo, das moças e namoricos domingueiros
ardente. Por fim, depois de ensaiar por nove na praça e das conversas com Seu Joel Barini.
vezes o Hino Nacional, começou a solenidade Deste eu ganhei na minha despedida uma
de Juramento à Bandeira Nacional e ouvi o cuia, com suporte, bomba e três pacotes de
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
- Seu.Gregório,
gente importantecomoo Aquela franqueza ingênua e inocente
senhor não merecefilosofadade improviso, dos comentários em sala de aula no Colégio
merececoisafina, pois me aguardeque vou santo Antônio, quando se debatia algum tema
mandarumabemcaprichada paraosenhor,por com professores de história e geografia, não
escrito,
emcanetatinteiroepapeldedncolibras. era mais possível na Universidade.
Depois dessa, fui por ali saindo de Se um colega mais afoito fazia uma
fininho e buscando uma boa cerveja gelada e crítica, um comentário mais ácido a partir de
a conversa festeira dos amigos. um texto lido, o professor dava pouco assunto;
e outro aluno, na surdina, logo repreendia o
Os meses transcorriam na universidade primeiro: "Calaa bocarapaz,vão te entregare
e, em meio às aulas e movimentação dos vocêacabaestragandotudo..."
corredores, fui tomando consciência do que
ocorrera no país enquanto eu estava no meu Cochichos, olhares, grupos de três ou
mundinho que se resumia a ruas de Santana e quatro conversando, reunidos aqui e ali...
cartas de Maraçu. Muitas vezes, quando ingenuamente eu me
aproximava, percebia que o assunto era
Ouvi, pela primeira vez, a expressão mudado, papéis recolhidos e guardados.
golpemilitare comecei a saber o que era uma
Mal chegou o final do ano e três colegas
ditadura. Esquerda, subversão, organização
de turma já não mais estavam na faculdade.
popular, reação, Direita, fascismo, PCB,PC do
Tomei conhecimento, à boca miúda, que
B, POLOP,MR8, SNI, passeata, luta armada,
dois foram presos em Belo Horizonte e uma
censura, atentado, sequestro, terrorismo,
colega foi mandada pelos pais para a Europa.
VARPALMARES,VPR, exílio, tortura, presos
Um professor do Departamento de Sociologia
políticos, pontos, ligas camponesas, revolução,
também desapareceu. Diziam que estava
Cuba, China, Albânia, Diretório Central, Centro
preso na Polícia do Exército.
Acadêmico, União Soviética, expropriação,
sindicato ... era todo um novo vocabulário, uma Na república em que eu morava, com
nova linguagem com a qual eu tomava contato. dois conhecidos de Maraçu e três de Santana,
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso
trabalhava. O salário não era grande coisa, Até o fim daquele ano fiz revisão de textos
mas o horário era bom. Eu deveria chegar às todos os dias. Depoisda matéria pronta, antes de
sete do anoitecer e sair à meia-noite. Em cinco encaminhá-la ao setor de impressão, tínhamos
horas eu cumpriria minhas tarefas e teria o que entregá-la ao censor, que dava a autorização
resto do dia livre, com uma folga semanal. para a publicação. Vi muitas vezes outros
jornalistas na sala do censor levando bronca em
Três dias depois fui chamado ao jornal alta voz. Homens de certa idade ouviam tudo de
para um teste e uma entrevista. Deram-me uma cabeça baixa, em completa humilhação. Sorte
página na qual eu deveria encontrar e corrigir quando não vinha a demissão ou um Inquérito
os erros do texto. A tarefa não foi difícil. O Latim Policial.Doutor João Custódio, dono do jornal,
e a prática no escritório do Doutor Paulo foram acendia uma vela pra Deus e outra ao demônio.
para mim instrumentos úteis para aprender Diante do censor era dócil e obediente. Quando
bem o idioma. Na entrevista me fizeram este se ausentava por férias, doença, algum
algumas perguntas sobre disponibilidade feriado ou casualidade, despejava-se no jornal,
de tempo, disposição para guardar segredos às vezes até como matéria de capa, tudo aquilo
sobre as matérias que fossem de interesse do que a verdade exigia.
Jornal e, por fim, veio a pergunta de sempre, Quando a mão de ferro caía sobre o
se eu tinha ligações políticas. Recorrendo ao Jornal, Doutor João dizia aos coronéis que
vocabulário já aprendido, afirmei que não aquilo era fruto de jornalista desavisado, que
tinha qualquer vinculação com a esquerda ou iria punir o culpado, cortar salário, etc. Mas
com a direita, que meu negócio era apenas não deixava de alfinetar: "...também, o censor
estudar e trabalhar. nãoestavaaí, nãofalou nada... Ossenhoressabem
No dia seguinte fui chamado para o queeu nuncaafronteia censura...".
trabalho no Jornal 22 de Julho. Começava Frequentadores de uns certos churrascos
ali, sem eu saber, uma longa carreira de e eventos na fazenda do Doutor João, os
jornalista. coronéis engoliam as desculpas esfarrapadas
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PedroSérqiodos Santos
Maraçunão tem remorso
e faziam vista grossa para subversão no varejo
- Deix~de onda rapaz!Vai lá e se vira,
que o jornal alimentava. Doutor João, acusado
escrevela o que der no teu juízo, é só usar
pela esquerda de se alinhar à ditadura, fazia
uma linguagemde adivinhadore tudo bem
festas para os militares com bom uísque de tem bestaque acreditaem tudo! '
doze anos e vinhos importados, mulheres ao
dispor e comida com fartura. De outro lado, - Maseu acheique issoaquierasério!
nunca era importunado por dar emprego a este - ~ é! Le~a.mosbesteirasde horóscopo
ou aquele jornalista vermelho. Nunca negou tambem a seno, por isso não pode falhar
emprego àquele que estivesse respondendo nem um dia. Comoé, vai fazer ou tenho que
algum inquérito policialpor problemas políticos. arrumaroutro parao seu lugar?
E para os coronéis, dizia: "Deixaque eu controlo - Claro,claro,com um argumentodesse,
essescomunistazinhos de merdaque trabalhamno escrevoqualquercoisa.
meujornal...melhorelesporpertodo que longe...". - ~iquedespreocupado ... é só por um mês;
Assim, Doutor João jogava um jogo difícil de depoiste arranjooutra coisa.
ganhar. No máximo tentava uma sobrevivência
Sentei-me diante da máquina de
num túnel que parecia não ter mais saída.
escreve~ e fiquei a pensar no que ia publicar
Depois de muito revisar textos, fui p~ra orientar a vida de certas pessoas que
mandado para outro setor do jornal. O ma~ ler aquela tranqueira toda no dia
astrólogo Jaime Odara havia falecido de súbito, segm~te. Olhei horóscopos antigos em jornais
num fulminante infarto. Limeira, o redator- e ~e~1stas_velhos e fiz uma mistura geral de
chefe, então me chamou em sua sala e ordenou: adiv!nhaçoes e palpites vazios e assim virei
astrologo por um mês.
-Sentaali e podecomeçara datilografaro
horóscopode hoje! " Limeira era homem de palavra. No
mes seguint~ fui libe,rado daquele encargo
-Horóscopo???!!!Maseu nãoseinadadisso, de charlatamce profetica. Contratada uma
nuncafiz isso.Nemseiporondecomeçar! nova estagiária de jornalismo, foi a coitada
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PedroSérqíodosSantos
nos crimes sem solução. Dia após dia eu via os Findados os elogios, o chefe foi dando
horrores perpetrados nas delegacias e invejava os nós que queria. Ele nos disse que fora
o Vicentão, que agora só fazia matérias chamado pelo Exército e os generais lhe
mais interessantes e intelectualmente mais pediram que o Jornal soltasse em quatro
exigentes. Mas a inveja durou pouco. domingos uma série de reportagens sobre a
Numa tarde de novembro eu, o Vicentão Guerrilha do Araguaia, enaltecendo o regime
e o Cegonha, fotógrafo, fomos chamados na e fazendo alguns destaques especiais a um e
sala do dono do jornal, onde já se encontrava a outro militar, como se fossem heróis, para
o editor-chefe. No corredor só pensávamos servir de modelo a todos, principalmente a
numa coisa enquanto caminhávamos: jovens e adolescentes.
demissão. Cegonha, porém, nos acalmava: Junto com um grupo de mais quinze
- Peraí,gente! O motivo deve ser outro, outros jornalistas e fotógrafos de outros
porque para demitir basta passar no jornais, nós iríamos num avião da Força Aérea
departamentode pessoale assinar o aviso; até o Sul do Pará, teríamos um local próprio
nessa marmeladatem mais queijo... Vamos para redigir as matérias e proteção da Polícia
lá dissiparessastrevas. Federal durante todo o tempo, e ainda uma
Entramos na sala do todo-poderoso gratificação no salário. Era pegar ou largar.
e ele nos mandou sentar naquele sofazão Pegar era aceitar tudo o que os generais
macio, ofereceu cigarro, café e mandou impunham; largar significava ser demitido,
trazer água gelada. Ainda perguntou se fichado no SNI e sem outras possibilidades de
alguém aceitava um uísque. O homem emprego em curto prazo; isso se não ocorresse
fez rasgados elogios a cada um de nós e uma prisão por motivo qualquer.
ali eu permanecia no mais alto grau de Sem opções, arrumamos as malas e, no
abestalhamento diante do que poderia sábado pela manhã, fomos para o aeroporto
ser aquilo, onde poderia terminar aquele esperar o avião que já vinha de Belo Horizonte
desassuntamento sem propósito. com jornalistas de outras cidades. A nossa
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PedroSérgiodosSantos Maraçu.não tem remorso
seria a última parada do Hércules da FAB e ninguém ficava irritado com sua tertúlia
antes de chegar a Conceição do Araguaia. flácida para bovino dormitar.
Naquele grupo tinha jornalistas A poeirenta Conceição do Araguaia
vibrantes, eufóricos com a missão designada tinha um calor que queimava por dentro. Nos
pelo seu jornal, orgulhosos por se acharem mostraram lugar de comer e dormir e logo
prestativos aos generais. Outros eram disponibilizaram um soldado, um policial
indiferentes e outros, corno nós e a turma do federal e um jipe para cada equipe.
Rio de Janeiro, cumpríamos a obrigação corno
Fizemos urna rápida reunião de trabalho
quem torna um remédio amargo; aliás, acho
com todos os jornalistas. O colega do Rio de ,
que o caso não era nem para remédio, era Janeiro teve a ideia de distribuir ternas para
para veneno mesmo. cada grupo e, no fim do dia, nós colocaríamos
Ovôo foi tranquilo, apesar do desconforto em c?rnurn as matérias produzidas, que
do avião militar, e logo começou a camara- poderiam ser trocadas, uma vez que seriam
dagem e piadas descontraídas entre o grupo. publicadas em jornais diferentes. Assim, com
Um jornalista carioca perguntou por que o trabalho dividido, ficaria mais fácil para
chamávamos nosso fotógrafo de Cegonha; cada um. A turma de Belo Horizonte ficou
curiosamente eu não sabia explicar e nunca encar~egada de entrevistar camponeses
tinha atentado para o apelido, pois quando eu e habitantes locais, a equipe de São Paulo
cheguei no Jornal, ele já estava por lá havia deveria entrevistar os guerrilheiros presos, 0
nove anos. Mas Vicentão esclareceu tudo. grupo do Rio de Janeiro tentaria contato com
Tudo muito simples, o Almeida tinha o apelido índios e ribeirinhos e a nós coube entrevistar
de Cegonha porque levava todo mundo no mílitar~s e descobrir o tal herói que os
bico. Furava filas, entrava em locais proibidos, generais tanto queriam.
em repartição pública, banco e necrotério, Saí com o Cegonha, Vicentão e o policial
pulava muro, atuava de penetra em festa de no velhojipe do Exército.De início, nos quartéis
milionário e delegado, tudo por urna boa foto, ouvimos falar de um tal sargento Jurandir.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso
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PedroSérgiodosSantos
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
No retorno à Capital publicamos a série Por outro lado, tinha também um certo
de reportagens sobre a Guerrilha. Cegonha fascínio pela filosofia, pela história e pelas
improvisou com a foto cinco por sete, ampliou ideias dos clássicos, equivocado na crença
e fez umas montagens com o rio Araguaia e de que se o mundo é o que é e nós pensamos
umas armas ao fundo da cena. Vicentão fez comopensamos, isto só é possível pelo esforço
um texto que variava entre a política e a hercúleo dos grandes filósofos pensadores. E
lição de Moral e Cívica da escola, contando, por que não entrar de cheio neste mundo?
claro, com a minha ajuda na criação do herói Lá pelo terceiro ano de faculdade, sem
encomendado pelos generais. Todavia, o saber bem que rumo tomar, resolvi, por
penúltimo parágrafo da matéria, que tomou precaução, fazer um curso de Francês, pois a
página inteira, Vicentão finalizou assim: língua de Descartes poderia me ser útil num
"Emseu destemorpela causada Pátria,Sargento curso de Mestrado, dentro ou fora do Brasil.
Jurandir não permite desordem ou subversão Afinal, ainda naqueles tempos, para sonhar
vermelhanem mesmono prost{buloda cidade". não se pagava impostos.
A ditadura prosseguia e eu me virava Fui até o tradicional curso de Francês da
entre a vida de estudante e de jornalista por AvenidaBuriti, fiz a matrícula, pechinchei na
necessidade. Pensei no que fazer após concluir mensalidade e saí com quinze por cento de
os estudos, se mergulhar de vez no mundo do desconto. Com todo aperto, consegui conciliar
jornal ou me dedicar à vida acadêmica. o horário da· faculdade com o trabalho no
Ojornalismo tinha algo fascinante que as Jornal e o curso de Francês, sem falar na
demais profissões não me possibilitavam. Eu sinuca à noite e no futebol com os amigos
podia antecipar a história, escrevê-la ou retê- duas vezes por semana.
la em minhas mãos antes mesmo que qualquer Nada de surpresas no primeiro dia de
pessoa tomasse conhecimento dos fatos. O aula do curso de Francês. Apresentação da
que iriam ler, comentar e debater amanhã ou professora, dos livros, de textos e do programa.
depois eu já estava escrevendo hoje. No segundo dia, porém, antes mesmo do
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso
início da aula, estava eu pela varanda da Para minha surpresa, aquele oásis
escola quando parou um carro oficial, um no deserto em forma de mulher entrou na
Galaxi preto de· chapa branca. O motorista minha sala três minutos após o início da aula
engravatado deu a volta por trás do veículo e a professora fez as devidas apresentações:
e abriu a porta. Naquele instante não sei se o "Turma,temosuma novaaluna.É a LígiaMinatti.
sol iluminava minha visão ou se eu ficara cego Ela é estudante de Direito e junto conoscovai
do juízo, tal era a formosura que colocava os aprenderFrancês".
pés pela calçada e adentrava os corredores da Novamente flutuando pelo centro da sala,
escola como se flutuasse. Eram olhos verdes de ela veio e se sentou a duas carteiras da minha.
fazer inveja à bandeira nacional, pele alva e os Difícil ou quase impossível me concentrar na
cabelos mais belos que já tinha visto. A mim aula. A voz da professora era algo que eu ouvia
só me coube ouvir um musical "boa tarde", ao longe, muito longe ... Perto mesmo era só
que saiu dos seus lábios demonstrando, além a imagem daquela delicadeza toda. Quando
de tudo, educação e fineza. E eu, na caipirice aquelas mãos se puseram a escrever, tive
lá de Maraçu, mais para jegue que para gente, inveja da caneta que ela segurava. Daquele
nem consegui articular direito uma singela dia em diante, música para mim só tinha uma
resposta; fiquei boquiaberto, gaguejando só letra, uma palavra: Lígia.
Deus sabe o quê, enquanto ela passava por Aos poucos fui conseguindo me conter
mim em direção ao balcão de informações, e conter o embasbacamento que tomava
usando um sapato preto e um vestido azul que, conta de todo o meu ser matuto quando eu
na minha imaginação, era mais um manto para chegava perto dela. A conversa começou
aquela escultura viva de Da Vinci. a fluir e em casa resolvi redobrar e depois
Ainda que sem querer, tive que entrar para a triplicar meus estudos de Francês, pois eu
sala, pois a aulajá estava iniciando e a professora, não queria fazer feio diante dela, ou quem
batendo palmas, me acordava daquele sonho e sabe poderia, num golpe de sorte, até lhe ser
chamava todos para a lição do dia. útil em alguma dificuldade. Meus colegas até
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
(ANTÔNIO CONSELHEIRO)
um sábado chuvoso de setembro,
- Deixede brincadeira,sente-seaí que a molecagem e, aos gritos, fazia meu pai baixar
coisaé séria! sua mão e sair resmungando:
-Diga logo! - Osenhoraindavai colocaressem~leque
- Vocêé um grandeamigoe não desejava a perder,meu pai!
dizerissoa você. - Calea bocae deixeo meninocomigo!
- Desembucha,rapaz! Meu avô me passava, então, uma
- Passei pelo Jornal para pegar um descompostura das bravas, mas não encostava
adiantamentoparapassaro fim de semanae a mão em mim, e por fim me fazia ver toda a
tinhachegadoessetelegramaparavocê.Como razão de meu pai.
eleestavaaberto,nãopudedeixarde ler. Em segundos minha memória se voltou
para a velha rede e todas as suas histórias de
Lentamente ele tirou aquele papel garimpagem, índios,jagunços e assombrações;
dobrado do bolso e me entregou. Sentado eu aquelas coisas que ele me contava sobre a
li, sentado me curvei mais ainda com o peso época em que os bichos falavam, e de boa
da morte de meu avô. Não contive as lágrimas memória recitava a história das modas de um
e o choro compulsivo diante do texto curto tal Randolfo Antônio, seu amigo de garimpo,
que informava, tão somente, que ele falecera e nesses versos ele alegrava minha infância:
naquela madrugada.
Incontrei cum u pápaventu
Mergulhei novamente na minha U calangu mais u sapu,
infância e me vi acolhido nos braços daquele Qui ia pru mutirão
que fazia brinquedos para mim em meio as Duma festa du macaco
suas baforadas no cigarro de fumo picado Fazê um arquêr de roça
a canivete. O velho Cândido Cassiano, que Lá na ponta do ressacu,
tantas vezes me livrou dos tapas certos que Na fazenda Du Orélu
eu levaria de meu pai por causa de alguma La na mata dus buracu.
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso
que tinha por meu avô, saiu dali de pouco a e máquinas movimentavam toneladas de
pouco, com boca fechada e olhos ao chão. Pela amianto e alargavam o sorriso dos políticos e
primeira e única vez vi um velório em Maraçu comerciantes que lucravam imensamente com
sem rodinhas de piada e cachaça. tudo isso. Eu, particularmente, preferia mais a
Tirei mais uns dias por ali, até a missa pacata Maraçu da minha infância nostálgica,
de sétimo dia. Em meio à dor e ao luto da dos causos contados pelo meu avô, mas sabia
família, fui percebendo que as mudanças do que aquela Maraçu não existia mais.
amianto em Maraçu não estavam limitadas Findado o luto e de volta à redação do
à exploração do mineral por aquelas terras. jornal, retomei a rotina de delegacias e aulas
Iniciava-se a construção de um grande na universidade.
parque industrial. Diziam-se nos bares, nas Não se passaram nem quatro semanas
bocas e nas praças que de Maraçu iria sair daquele sábado e Vicentão me_ acordou
produto para o Brasil e para o estrangeiro. novamente com socos na porta de casa.
Telhas, caixas d'água e outros elementos Juro que me levantei acreditando piamente
seriam ali fabricados. Maraçu começava a se que outra desgraça se abatera sobre minha
tornar referência industrial no sertão central família. Desta vez, Vicentão não enrolou
do Brasil. Por vezes vi o Doutor Altamir pelas tanto para falar:
ruas, em companhia de políticos e de uma
gente desconhecida, e a conversa deles era - Você se lembra do meu irmão que te
uma só: o amianto. Doutor Altamir, pelo visto, apresenteiuma vez quandoele veio aqui me
esquecera de vez a tragédia de seu pai e o visitare foi,inclusive,jogarbolacoma gente?
sumiço de seu filho.
- Lembro!Elemorreu?
Estrangeiros, a todo o momento, se faziam
- Não!Eleestá aquide novo!
presentes e uma gente vinda de todo canto se
alistava para o trabalho nas fábricas que estavam - E daí? Precisame acordarassim para
brotando no meio do cerradão. Caminhões avisarque elechegou?
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
um encontro mais rápido de qualquer pessoa Encontrei uma mesa mais ao fundo,
comJesus. No afamado Café Bandeirante, Seu peguei uma garrafa de água mineral e um café
Brisa Mansa pitava um cigarrinho de palha, no balcão e me sentei com Seu Brisa Mansa,
com sua camisa xadrez, chapeuzinho surrado bastante constrangido, mas sem muita
na cabeça, botina e barba de sete dias. Um possibilidade de escolha naquela situação.
autêntico e ingênuo matuto na aparência. Temendo que coisa pior acontecesse com o
Como jornalista da área policial, eu irmão do Vicentão, me lembrei de minha mãe
tinha por pricípio relatar os fatos sem dizendo que quem está em correnteza de rio
desqualificar a pessoa do criminoso. Desta abaixo, para se salvar segura até em pau de
forma, angariei o respeito e a amizade de espinho. E ali estava eu, segurando em pau de
vários deles. Uns até tinham orgulho de espinho, iniciando uma negociação criminosa
ver sua foto publicada na minha página com um ladrão conhecido da polícia.
do 22 de Julho. Quando o jornal chegava na - Poisé, Seu BrisaMansa,tô precisando
cadeia, o preso, com orgulho, mostrava a da sua ajuda.
matéria para os colegas de cela e, quando o
- Podedizê,SeuMoço.
crime era pesado, ainda ganhava respeito e
consideração dos demais presos. - Bem,Seu BrisaMansa,tô precisandode
uns documentos...
Seu Brisa Mansa logo me reconheceu na
entrada do Café e me cumprimentou: - O sinhôquer tirarseus dicumento?
- Não.Não é bem isso,é que eu tô aí com
- S'tarde,seu moço!
um problemade umas pessoasque precisam
- Boatarde,Seu BrisaMansa.Queriater de documentospara sair do Brasil.São dois
um dedinhode prosacomo senhor. homense uma moça com idade entre vinte
- Uai,é prajá! e cincoe trinta anos.Comoo senhorsempre
"encontra"muito documentoperdidoporaí,
- Vamosali num cantomaisreservado. eu gostariade compraruns documentos,de
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso
para os militares, se eu fosse descoberto. De fiquei sabendo que eles conseguiram sair do
outro lado, eu não poderia desconsiderar o país e entraram na Europa através da Bélgica.
apelo do Evangelho que recebi em casa, na cuidei rapidamente de juntar todo o material
escola e na Igreja. A proposta e o dever de utilizado na fabricação dos documentos e fiz
olhar para os encarcerados, os perseguidos, uma fogueira no quintal de casa. As provas do
os fracos, era algo do qual eu não poderia, por meu trabalho viraram cinzas e eu fiquei sem
princípio, escapar. Eu não colaborava com a saber se eu realmente tinha essa capacidade de
luta armada por ser comunista, e nem sempre falsificar documentos tão bem que pudessem
concordei com certas práticas e ideias por eles ser convincentes, ou se minha competência
defendidas, mas comunistas ou não, ninguém era menor que a incapacidade de vigilância e
merece morrer, ainda mais na tortura. Em observação da polícia nos aeroportos. O fato
meio a esses conflitos, resolvi colaborar e, de é que meu medo de tudo isso era tão grande
alguma forma, evitar que fossem presos. que cheguei a enterrar as cinzas e plantar
Comprei régua, tinta, cola, tesoura e flores por cima.
mais algum material gráfico e montei uma Toquei a vida, os dias se passavam
mesa de trabalho para adaptar os documentos e eu procurava não pensar mais naquela
às fotografias que Vicentão providenciou, colaboração, ainda que pequena e passageira,
com a colaboração do Cegonha, que utilizou com a luta armada. Acordado eu racionalizava
o laboratório fotográfico do 22 de Julho para tudo, mas dormindo eu tinha pesadelos e
produzir as fotografias necessárias. volta e meia sonhava com a polícia invadindo
Em dois dias de trabalho os documentos minha casa, eu sendo preso e pressionado a
estavam prontos e, à custa de amizade e de um confessar tudo.
pouco de dinheiro, Vicentão conseguiu com O que me fazia esquecer um pouco toda
um agente da polícia federal os três passaportes essa situação da dureza da ditadura, que
para colocar no estrangeiro seu irmão e os de várias formas atingia nossas vidas, era
demais. Depois dos documentos entregues, sonhar com a Lígia. Passei a ser leitor diário
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso
Estes segredos sindicais e da vereança No anoitecer do dia do casamento os
populista eram guardados a sete chaves nas colegas do Jornal chegaram a me dar um
redações dos jornais. Sabíamos como tudo convite da imprensa para ir com a equipe
era feito, mas, nijo só o 22 de Julho, como do 22 de Julho, fazer a cobertura do evento.
também os demais jornais tinham interesses Trouxeram o convite e a credencial à minha
em informar sobre as greves só pelo que era mesa, me rodeando com chacotas, me
apresentado nos palcos, nunca nos bastidores. oferecendo um rolo de papel higiênico para
Resolvi deixar de lado a politicagem enxugar o rio de lágrimas e Dona Isabel,
barata do cotidiano, quando a esquerda já copeira, com um copo de água com açúcar,
ensaiava adotar como cartilha a Revolução cantando: "encosta sua cabecinha no meu
dos Bichos, de George Orwell. Minhas ombro e chora ..."
preocupações agora se voltavam para a coluna A despeito das brincadeiras dos colegas,
social do Jornal. Para minha derrota moral e que bem sabiam do meu amor quase platônico
emocional, foi noticiado em grande estilo o por Lígia, eu realmente sofria com aquele
noivado de Lígia. O sortudo era um bagual casamento. Confesso que busquei por algum
qualquer, que com certeza não lhe tinha um tempo estar à altura para me aproximar de
terço do amor que eu lhe devotava. Não me uma moça como Lígia. Sua vida sofisticada,
importei se os amigos acharam que isto -era sua fineza e o requinte de seu cotidiano
mero ciúme ou dor de cotovelo sem soluçao. realmente estavam distantes da vida de um
A festa de casamento não tardou a peão de redação de jornal, oriundo de uma
ocorrer. Mais de quinhentos convidados da faculdade de filosofia e com raízes sertanejas.
alta sociedade foram brindar a felicidade dos Meu mundo cão de delegacias, passeatas
noivos no salão do Jóquei Clube. As famílias de protesto e corrupção de políticos, estava
Minatti e Brito Mendes estavam agora ligadas muito longe do céu estrelado daquela deusa.
com as bênçãos do padre, o amém do povo e o A coluna social noticiava o casamento,
meu eterno inconformismo. com duas páginas inteiras de fotografias de
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Mara não tem remorso
PedroSérgiodosSantos
A duras penas fui voltando à vida
engravatados e mulheres brilhantes co ormal e os colegas do 22 deJulho,entendendo
cabelo armado de laquê. Foi o evento soei: ·eu drama, numa solidariedade silenciosa
do ano e, e~, tomando consciência definitiva .. .·não tocaram mais no assunto. Minha
de que L1g1anunca me vira senão como um fidelidade a Lígia, que antes era canina, fora
ponto ~erdid? no mar do seu passado de definitivamente banida. Seguindo à risca
formaçao poliglota, mergulhei por dias na · os conselhos do Vicentão, busquei afogar
carraspana, c~egando a esperar na calçada a mágoa nos braços de outra, de outra e de
qu_eo bar abnsse suas portas para ouvir 0 outra. A vida continuou.
Tno Parada Dura, Milionário e José Rico
João ~ineiro e Marciano, enchendo a cara d; Fui destacado pelo Jornal para cobrir
cerv~a, mal me importando se estava gelada matérias policiais sobre a contravenção e
ounao. o crime nos bairros nobres da cidade. Eram
prostíbulos de luxo funcionando em ricas
Minha sorte era ser conhecido dos mansões, rinhas de briga de galo e bancas de
garçons, que também conheciam o pessoal do jogo viciando pessoas que ali perdiam tudo,
J orn~l. Quando eu caía de bêbado,já chamavam deixando a família na miséria.
alguem do 22deJulhoe me recolhiam deitado na
Além da conivência de policiais, que
car~oceria da caminhonete que transportava
de um lado e de outro engordavam seus
bobmas de papel para a gráfica.
bolsos, novamente me deparei com o braço
Vicentão esperou uma oportunidade do stalinismo nos bordéis e bancas de
de me ver sóbrio, embora abatido e com dor jogo. Joseir Amarantes e seus militantes
de cabeça, que já era uma constante, e me comunistas eram assíduos frequentadores de
fez ver que a realidade dos amores perdidos tais estabelecimentos.
não t:r~inava no fundo das garrafas. Caso Com a confiança de certos policiais
~ontrano, meu trabalho e minha vida iriam conquistada anteriormente, quando eu ainda
Junto com o mijo azedo da cerveja no ralo do cobria os crimes comuns nas delegacias,
banheiro do boteco.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso
fiquei sabendo que o vereador Joseir não era os bicheiros e contraventores tinham no
somente frequentador, mas sócio das bancas comunista um bom defensor e tudo caminhava
de jogo e dos bordéis, alegando para os para sua candidatura a uma vaga de deputado
íntimos que precisava de uma fonte de renda Estadual.
para sua campanha e para financiar a luta Novamente vieram as eleições, a
pelo socialismo. ·
democracia começava a engatinhar e gente
Joseir recebeu cotas de participação de bem se misturava no mesmo balaio dos
nos negócios da contravenção para colaborar oportunistas, buscando um lugar no poder. A
com os sócios majoritários na diplomacia poluição visual das campanhas tomava conta
com as autoridades policiais. À custa de de cada quarteirão das cidades, de cada poste
distribuir gentilezas, presentes e "vale-puta" de estrada, de cada porteira de fazenda.
para deputados, senadores e delegados,
Joseir garantia certa tranquilidade para A esquerda atacava fantasiada de
os empreendimentos do vício. Bastava um moralista e a direita se apoiava na imagem
cartãozinho seu com assinatura no verso e de eficaz e competente, assumindo o velho
o político passaria a noite inteira com uma jargão de um político paulista: "Roubo, mas
prostituta, a título de cortesia da casa. 1aço..I"
e
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PedroSérqíodosSantos
Maraçunão tem remorso
Assim, o homem tomou gosto pela A cada vez que eu voltava a Maraçu a
coisa, fez conchavo com meio mundo de
doce lembrança de meu avô me acompanhava
vereadores no interior do Estado, pagava e sua imagem ao meu lado estava tanto na
almoço em churrascaria cara para prefeitos cidade quanto na varanda da casa do Sítio
visitantes e, na sobremesa, mulheres em Mandi.
quengaral de luxo, na cortesia dos negócios
da contravenção. Na frequência das viagens a Maraçu,
percebi que o desenvolvime~to prometi~o e
Agora, como deputado estadual, o garantido por Doutor Altamir, de fato tmha
nome de comunista não lhe caía bem; achou chegado para ficar. O amianto era o ouro do
algo mais simpático que lhe facilitasse cerrado e o próprio Altamir, agora presidente
também a entrada em igrejas de bíblia e alto- da Câmara Municipal, era porta-voz dos
falante, pois microfone e púlpito são amigos empresários locais e estrangeiros.
inseparáveis de político ambicioso, perdoem-
me o pleonasmo. O povo pobre de Maraçu tomou encanto
pelo trabalho de carteira assinada oferecido
Designado pelo Jornal para cobrir pelas empresas de minas e de fabricação.
eventos políticos por todo o Estado, passei Falava-se por toda a cidade em salário pago
a visitar Maraçu com mais frequência. Pude no banco e em décimo terceiro, coisa que
estar com mais facilidades nos ternos braços peão de roça não incluía em sua rotina, de um
de minha mãe, sob o olhar carinhoso do trabalho nas lidas rurais que, até então, era
meu pai. Com a irmã já casada, vi sobrinhos quase de servidão ao dono da fazenda.
nascerem e crescerem correndo, como
O comércio local ganhou um aqueci-
eu corri, pelas poeirentas ruas de Maraçu
mento que não foi coisa passageira, a cidade
ou brincando com os animais na pequena
cresceu e o amianto cobrou sua fatura em
propriedade rural da família, o Sítio Mandi,
poucos anos de exploração. As fibras extrema-
que era quase uma reedição viva do ambiente
mente finas daquele mineral flutuavam no ar
criado por Monteiro Lobato em sua ficção.
feito pluma, feito as fibras da paineira quando
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
Assim, o homem tomou gosto pela A cada vez que eu voltava a Maraçu a
coisa, fez conchavo com meio mundo de doce lembrança de meu avô me acompanhava
vereadores no interior do Estado, pagava e sua imagem ao meu lado estava tanto na
almoço em churra.scaria cara para prefeitos cidade quanto na varanda da casa do Sítio
visitantes e, na sobremesa, mulheres em Mandi.
quengaral de luxo, na cortesia dos negócios Na frequência das viagens a Maraçu,
da contravenção. percebi que o desenvolvimento prometido e
Agora, como deputado estadual, o garantido por Doutor Altamir, de fato tinha
nome de comunista não lhe caía bem; achou chegado para ficar. O amianto era o ouro do
algo mais simpático que lhe facilitasse cerrado e o próprio Altamir, agora presidente
também a entrada em igrejas de bíblia e alto- da Câmara Municipal, era porta-voz dos
falante, pois microfone e púlpito são amigos empresários locais e estrangeiros.
inseparáveis de político ambicioso, perdoem- O povo pobre de Maraçu tomou encanto
me o pleonasmo. pelo trabalho de carteira assinada oferecido
Designado pelo Jornal para cobrir pelas empresas de minas e de fabricação.
eventos políticos por todo o Estado, passei Falava-se por toda a cidade em salário pago
a visitar Maraçu com mais frequência. Pude no banco e em décimo terceiro, coisa que
estar com mais facilidades nos ternos braços peão de roça não incluía em sua rotina, de um
de minha mãe, sob o olhar carinhoso do trabalho nas lidas rurais que, até então, era
meu pai. Com a irmã já casada, vi sobrinhos quase de servidão ao dono da fazenda.
nascerem e crescerem correndo, como O comércio local ganhou um aqueci-
eu corri, pelas poeirentas ruas de Maraçu mento que não foi coisa passageira, a cidade
ou brincando com os animais na pequena cresceu e o amianto cobrou sua fatura em
propriedade rural da família, o Sítio Mandi, poucos anos de exploração. As fibras extrema-
que era quase uma reedição viva do ambiente mente finas daquele mineral flutuavam no ar
criado por Monteiro Lobato em sua ficção. feito pluma, feito as fibras da paineira quando
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
ali, no mesmo quarto em que morei naqueles Frei Valeriano me acompanhou até o
anos do colégio. A conversa se estendeu e refeitório e passamos pelo claustro e pela capela
fomos dormir após a meia-noite. do convento, que exalavam um silêncio que
enchia a alma. Asflores e arbustos bem cuidados
Na manhã seguinte, tomei um café
no jardim traziam borboletas e passarinhos
com pão de queijo de fazer inveja a qualquer
que certamente alegravam a imagem de
cozinha mineira. Agradeci a hospedagem e o
São Francisco ali plantada. O sino já tocava
Doutor Paulo me deu uma carona, mais uma
chamando todos à refeição e dos corredores
vez, até a porta do Colégio Santo Antônio,
e da capela saíam os frades, uns em trajes
onde eu voltava também para rever os velhos
civis e outros no hábito marrom com o capuz
amigos franciscanos.
e o rosário que pendia do cordão amarrado à
Fuirecebido pelo Frei Valeriano na direção cintura. Todos se colocaram de pé ao redor das
da escola. Conversamos animadamente sobre mesas, aguardando que o frade guardião fizesse
os anos que ali estudei e sobre os colegas de a oração de bênção dos alimentos.
turma que, esparramados por esse mundão, O silêncio tomou conta do ambiente. O
estavam cada qual na sua profissão. Tive frade fez uma breve leitura de um texto bíblico
notícias de colegas na promotoria, uns e a oração. Logo em seguida, animadamente
médicos e outros já em altas patentes iniciamos o almoço. O refeitório era grande
militares. Umas professoras e outras casadas, e havia sete mesas com capacidade para
cheias de filhos. seis pessoas em cada. Ao todo, ocupávamos
Frei Valeriano me convidou para almoçar três mesas. Em uma das mesas ficavam os
no convento onde, além dos cinco padres que alimentos nas bandejas e cada um poderia
trabalhavam no colégio, estavam residindo, se servir como quisesse. Nas outras duas nós
havia dois meses, sete frades recém-saídos do almoçávamos.
noviciado, que se preparavam para os estudos Na mesa em que me sentei estavam o
superiores visando à ordenação sacerdotal. Frei Valeriano e os demais que trabalhavam
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PedroSérgiodosSantos Maraçu.não tem remorso
- Calma, meu filho. Entendo a sua que um dos milagresde São Franciscofoi
preocupação.Vou esclareceras coisas.Você pacificaro lobo de Gúbio,pois o animal
está certo;FreiJurandiré mesmoo Sargento assustava a todos em sua região e São
Jurandir,ou melhor,erao SargentoJurandir. Francisco,tocado pelo Espíritode Deus e
Agoraele é mesmo o FreiJurandir.Há três comgrandeamorpelascriaturas,conseguiu
anos ele procurounossa paróquiaem São estabelecera pazentreopovoe o lobo.Embora
João do Araguaia. Buscava afl.itamente seja esta uma históriamedievalque está no
uma orientaçãoespirituale FreiLeão,com limite entre o real e o lendário,no milagre
a mansidãoe santidadeque você conhece, narradona biografiado nossosanto o que
o acolheue iniciou uma caminhadade fé, maisimportaé a liçãodosfatos:deum ladoum
acompanhandoa conversãodesteirmão.No povoassustado,temerosoe ao mesmotempo
anoseguinte,elequisse tomarfradee entrou comraivadoanimal,e de outro,uma criatura
no postulantadode nossa ordem, cumpriu violenta,mas que por desconhecera paz de
aqueleano de experiênciacom humildade, Deus,usavaa violênciaparasaciarsuafome.
esforço nos estudos e busca de Deus na Com a intervençãodivina, nem a criatura
oração.Depois,comomanda a regra,elefoi deu continuidadeà sua violência,nem o povo
para o noviciado,quandorecebeuo hábitoe partiuparaa vingançae alimentouo animal
no final do anoprofessouos votosreligiosos, até a sua morte.
assumindocadanó daquelecordão:pobreza, - Frei, a história de São Franciscoe o
obediênciae castidade. loboé realmentebonita,mas para esse lobo,
- Mas Frei,comoé que ele deixouaquela quemfoi o SãoFranciscoque fez o milagre?
vida de violência,de torturador,o homem Achoque o senhornão entendeuo tamanho
era um verdadeiroterror,temidoem toda a do estragoque esse homem causoupor aí...
região? Comoessehomemveiopararaqui?
- Não sei te falar exatamentecomo tudo Novamente o frade, com toda a paciência
aconteceu,mas achoque você deveriasaber que lhe era própria, voltou a me falar da obra
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso
Divina, daquilo que o Espírito Santo é capaz O frade resumiu toda a explicação numa
de fazer na vida das pessoas, que vai além frase de São Paulo e eu saí dali, daquelas quatro
da nossa razão; e eu ali, escutava tudo, ainda paredes, ruminando a cena do refeitório e as
anestesiado pelo choque do engasgamento últimas palavras do frade sobre o assunto ...
do almoço, com o espanto de ter encontrado
ali, num convento, vestido de hábito - Meufilho,SãoPaulo,no quintocapítulo
franciscano e rezando com mansidão, o Jura da sua Carta aos Romanos,disse: "Onde
Meningite, o próprio Demônio das matas do abundou o pecado,superabundoua graça".
Araguaia. Aquilo era, no mínimo, um fato Saímos da sala, andei um pouco com
que colocaria qualquer um que se achasse o frade no átrio do convento e voltamos ao
normal a questionar sua própria lucidez. O colégio. Ali encontrei velhos funcionários da
frade explicava, explicava, falava e eu ali, escola, cumprimentei a todos e, deixando a
totalmente abestalhado diante do inesperado. formalidade do reencontro, ganhei as ruas
- Tudobem,Frei,entendoissoqueosenhor de Santana, ficando para trás o portão da
tá falando de conversão,mas esse homem escola, anexa ao convento, com uma pancada
é o pior que eu já vi no ramo da maldade, na alma, a ruminação dos fatos na mente e as
o senhornão sabe o quejá escrevisobreele palavras do frade emoldurando tudo: "onde
no 22 de Julho. Na verdade,quandofomos abundouo pecado,superabundoua graça"...
a Conceiçãodo Araguaiafazer as matérias Eu andava pelas calçadas com um
que os generaismandaram,nem chegamos estranhamento tão grande, que a surpresa
a encontrá-lo,pois ele estava pelos matos com tudo aquilo me apertava o estômago.
caçandogente comoquem caçaum animal. Meu pensamento ia e voltava às cenas dos
Em Conceiçãoeu vi só as consequências presos torturados em Conceição do Araguaia
de seus atos, eu vi terror nos olhos e nos e ao refeitório do convento. Como aquilo
corpos dos presos que sobreviveram ao era possível? Será que não haveria ali algum
interrogatório,o senhornãoentende... engano, eram de fato a mesma pessoa?
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso
Fui do convento à casa do Seu Joel Eu ri um riso amarelo e julguei que não
Barini onde eu havia deixado parte da minha era o caso de espichar o assunto do frade
bagagem e tão atordoado eu estava, que nem ou do sargento, naquelas circunstâncias,
saberia dizer por quais ruas exatamente eu com ele; não que ele não fosse de confiança
passei. Cheguei à pensão de Seu Joel e ele ou merecedor de minha total atenção, mas
estava cuidando de outros afazeres, de tal eu mesmo não tinha muita explicação para
modo que eu não quis interrompê-lo. Pedi aquela situação, então respondi:
um copo de água gelada à moça que estava
na recepção e me sentei numa das cadeiras -Não.Não,SeuJoel...Osoltá muitoquente
da varanda, daquelas cadeiras com fios de e vim meioapressadopelasruas,só isso.
plástico e encosto mais reclinado e ali eu - Tu ainda estás tomando chimarrão,
descansava um pouco o corpo da caminhada aindausas a cuiae a bombaque te dei?
no sol alto do dia, e a água gelada me ajudava - Semprequetenhoum tempinhoeu puxo
a por o juízo em ordem. Permaneci no silêncio
uma erva,SeuJoel.
de uma meia hora revendo todas as imagens e
tentando montar um quebra-cabeça com um - Bueno,então vou te dar aqui uns dois
cenário que tivesse lógica. Aliás, lógica é algo quilosde mate;é erva nativa da boa,moída
que sempre procurei nos momentos de crise. grossa,que um compadretrouxepra mim lá
Lógica: Onde estaria a razão das coisas? Onde de Livramento.
estaria a explicação racional de tudo? ... - Mas, Seu Joel, não carece,eu me viro
Decidi voltar à Capital no próximo por lá...
ônibus. Procurei, então, SeuJoel e me despedi. - Deixede cerimônia,compadreLourenço
Na sua constante gentileza, me perguntou: trouxedoisfardosde trinta quiloscadaum;
- Perece que tu estás meio atordoado, tenho erva aqui para muito tempo e sei
é cansaço mesmo ou vistes um fantasma que por lá tu só encontra erva em boteco
por aí? de posto de gasolinaquando argum irmão
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
caminhoneirotraz lá do sul para aproveitar que me dei conta da situação; e num sorriso
a cargae ganharum dinheirinho,e às vezes sem graça, com um pedido de desculpas,
já é uma erva mais velha, então abre tua paguei a viagem, ele zerou o taxímetro, bati
mala, colocae$ta aqui porque é uma erva a porta do carro depois de pegar a mala e
novinha. fui para a casa. Naquele resto de noite comi
I
Assim, saí de Santana na camaradagem umas frutas e não tomei o velho e bom
do amigo, com dois quilos de mate na mala e chimarrão, pois eu tinha por certo que, com
uma tonelada de imagens na cabeça. Eu ia ter tanta coisa fervendo no juízo, se eu tomasse a
que tomar muito mate, na meditação solitária erva-mate, não iria dormir nada e bem sabia
da companhia do chimarrão, que me assistia que as férias tinham acabado e no outro dia o
no segurar da barba, enquanto o pensamento trabalho no 22 deJulho estava acumulado. Ao
pegava a vagar entre o centro e o norte do contrário, abri uma garrafa de vinho italiano
país, num passado sangrento e num presente e fui ver se achava sono e uma explicação
cheio de mistérios. para aqueles fatos estranhos no fundo de
cada taça que eu bebia.
Cheguei ao anoitecer na Capital. Tomei
um táxi e rumei para casa. Não vi o curto tempo A lógica dos fatos era para mim a mais
da corrida do veículo pelas avenidas largas. imperiosa das forças que movem o mundo.
Tempos depois de formado e já profissional Por isso acho que Nelson Rodrigues usava de
do Jornal, eu continuava morando próximo à tamanha ironia quando afirmava: "se os fatos
Universidade. O táxi parou na portado edifício estão contra mim, pior para os fatos". Por isso
e meu olhar distante revelava a qualquer um eu sempre achava que mais importante que
o meu grau de distração; era como alguém os fatos, eram as suas explicações, preferen-
dormindo de olhos abertos. O taxista, depois cialmente numa racionalidade que beirava
de falar comigo sobre o preço da corrida e as portas da matemática ou, no mínimo, do
não obter resposta, tocou no meu ombro e me método cartesiano. Embora não tendo me
perguntou se eu estava me sentindo mal, ao dedicado à filosofia como profissão ou como
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PedroSérqiodosSantos Maraçunão tem remorso
aristotélica e a dialética hegeliana não eram - Doutor,é o seguinte:sei queo que eu vou
mais fortes que as raízes que eu tinha da pedir ao senhor não é algo muito normal,
minha fé, plantada por minha mãe, desde a principalmentepara quem acaboude tirar
infância. · algunsdiasdeférias.
Eu tinha mesmo por ideia que o mistério - Poisdiga...
daquela conversão não era coisa para uma - Bem, Doutor, é que eu estou aí com
explicação montada por escolas de filosofia uns problemasde ordem pessoal que me
ou por ideologias sociais; e respeitador das impedemde trabalharpelospróximosdias.
coisas do Senhor, eu não quis expor aquele Assim, como hoje é sexta-feira,eu gostaria
fenômeno ao mundo poeirento e, às vezes de pedir mais uns dez dias de férias. De
mofado, dos jornais. antemão,já sei que isto é um peso grande
Passei a semana trabalhando como se para o Jornal,mas para aliviar um pouco
o problema,eu nem faço questão de ser
não trabalhasse; fiz tudo como uma mera
remunerado,ou mesmo,se o senhorpreferir
formalidade. Escrevi notícias da política e
podeconsideraressesdiasapenascomodias
da polícia como se uma fosse tão somente
de falta ao trabalhoe determinaro cortedo
extensão da outra e tudo que era produzido
meu ponto,mas a questãocentral,Doutor,é
pelos dois estagiários da minha área, eu dava que realmenteeu não possotrabalhar;não
como certo. sei se o senhorme entende...
Depois de muito pensar, tomei uma - Vocêestá doente?
decisão: iria entrar de férias outra vez no
dia seguinte. Assim, às oito da manhã bati na - Não,senhor.
porta da sala do diretor do Jornal: - Estáacontecendoalgumacoisacomsua
- Com licença,Doutor Custódio, posso famlliaem Maraçu?
entrar? -Não,senhor,maseunãopossotrabalharnos
- Claro,sente-se.Poisnão...? próximosdias.Tenhoumascoisaspararesolver.
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PedroSérgiodosSantos
Maraçunãotem remorso
Fomos apresentados um ao outro e Frei
tudo serácriadoe renovareisa face da terra.
valeriano generosamente disse ao frade que Ó Deus,que instruísteso coraçãode Vossos
eu tinha sido um bom aluno no Colégio Santo
fiéis com a luz do EspíritoSanto,fazei com
Antônio. Éclaro que ele não se recordava do meu
que apreciemosretamente todas as coisas
desempenho em ma,temática. Por fim, abriu as
segundoo mesmoEspíritoe gozemossempre
janelas da sala capitular e nos deixou a sós.
de sua consolação.Amém. Glóriaao Pai,
Tirei da minha pasta o gravador, peguei ao Filhoe ao EspíritoSanto. Comoera no
um bloco de papel e caneta e, quando perguntei princípio,agorae sempre.Amém.
se poderíamos gravar nossa conversa, Frei
Jurandir não se opôs, mas retrucou: Finalizada a oração, Freijurandir puxou
a conversa:
- Já que vamos ter uma longaconversa,
vamos rezar um pouco,juntos, para que - Poismuito bem, estou à sua disposição,
nossaspalavrasnão sejam em vão. Vamos embora não sei bem em que uma alma
pedira luz de Deus. pecadoracomoa minhapoderialheser útil.
Ele parou por uns instantes com o - Vejoque o senhoré um grandeartesão,
trabalho manual que iniciara, com objetos de
tem grandehabilidadecomas mãos.
uma caixa de madeira junto a mesa, e assim, - Não sou tudo isso, não; apenas me
rezamos , os dois, a oração do Espírito Santo, esforçopara fazer estes terçosde sementes
que há tempos eu não recitava, mas suas de açaí, pois vão ajudar na missão dos
palavras me vieram de imediato à mente e frades. Quandoeles saem em pregaçãopor
eu acompanhei o frade, que rezava de forma algumacidade,ensinamas pessoasa rezare
bastante contrita: distribuemestesterços.
- Vinde EspíritoSanto, encheio coração - Masestascontassãode açaí?
de Vossosfiéis e acendei neles o fogo do - Sim,o açaí,láno Pará,é o leitedopobre;é
Vossoamor.EnviaiSenhoro Vossoespíritoe nutritivo,alimentaas criançase atualmente
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Fomos apresentados um ao outro e Frei tudo serácriadoe renovareisa face da terra.
valeriano generosamente disse ao frade que Ó Deus,que instruísteso coraçãode Vossos
eu tinha sido um bom aluno no Colégio Santo fiéis com a luz do EspíritoSanto,fazei com
Antônio. É claro que ele não se recordava do meu que apreciemosretamente todas as coisas
desempenho em ma,temática. Por fim, abriu as segundoo mesmoEspíritoe gozemossempre
janelas da sala capitular e nos deixou a sós. de sua consolação.Amém. Glóriaao Pai,
Tirei da minha pasta o gravador, peguei ao Filho e ao EspíritoSanto. Comoera no
um bloco de papel e caneta e, quando perguntei princípio,agorae sempre.Amém.
se poderíamos gravar nossa conversa, Frei
Jurandir não se opôs, mas retrucou: Finalizada a oração, Freijurandir puxou
a conversa:
- Já que vamos ter uma longaconversa,
vamos rezar um pouco,juntos, para que - Poismuito bem, estou à sua disposição,
nossaspalavrasnão sejam em vão. Vamos embora não sei bem em que uma alma
pedira luz de Deus. pecadoracomoa minha poderialheser útil.
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depoisde uma meia hora de papo, ele disse - O senhor ainda permaneceuem Porto
que quandoa tropa se instalassena cidade Nacional?
ele ia falar com o tenente-coronele iriam - Fiqueilá ainda por um mês, então veio
requisitar à Polícia Militar que eu fosse um ofício do Exércitopara o Comandante
prestarserviçonaqueleComando,hajavista da PM e ele mandou que eu e mais dois
eu conhecerbem a regiãoe o assuntoser de colegas nos apresentássemosna unidade
interesseda SegurançaNacional. do exército em Conceiçãodo Araguaia,
-oqueosenhorsabiasobreoscomunistas? dentro do prazo de dois dias. Comoeu era
muito obediente e cumpridor das minhas
- Sabia o que já tinham me falado no obrigações, no dia seguinte estava em
exércitoquando lá servi e depoiso que me Conceição.Logo que cheguei por lá, na
falaram no curso de Sargentona PM. Me primeira semana fiquei ouvindo palestras
disseramque era uma gente perigosa,todos das sete da manhã até as nove da noite. Só
formadosno treinamentode Cubae que os paravam para almoçare lanchar.Falavam
maioreseram treinadosna própriaRússia. muito sobre os tais comunistas, falavam
Que queriamtomar o poder para confiscar de suas armas, do seu treinamento
tudo de todomundo,inclusiveas mulherese espetaculare dos que estavam infiltrados
as crianças.Disseramque o comunismoera no meio do povo, querendo arrastar todo
um grandemalparao Brasile parao mundo. mundo para a banda deles. Por fim, nos
Me lembrode um filme que passarampara mostraram que ali era a defesa da pátria,
todos os soldados,onde mostrava centenas era matar ou morrer e que se pegássemos
de pessoasmortas em uma área geladana alguns deles vivos, tínhamos que apertá-
Rússia;eram presosque morrerampor não los até que contassem sobre o paradeiro
concordarem com o Partido Comunista. dos outros.
Eu e todos os soldados,ainda muitojovens,
passamos a ter medo e ao mesmo tempo - Eles ensinaramo senhor a torturar os
muita raivadessestais comunistas. presos?
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Houve um grande momento de silêncio fé; quando foi que ele se tornou Agostinho,
entre nós. O frade me falava isso com uma fala Francisco de Assis, Inácio de Loyola, Edith
serena, porém triste, com um olhar ao longe, Stein. Eu ansiava mesmo por saber em que
por vezes de cabeça baixa, passando a mão na momento ele mudou o registro de sua vida
barba longa, deixando de lado as contas de e por que ele agiu assim. Quebrei o silêncio
açaí, como se ele fosse o pecador e eu o padre e perguntei se ele queria água e, com seu
no confessionário. Preferi não me aprofundar gesto de cabeça, enchi dois copos com a água
mais nas torturas que ele praticara ou nos de uma garrafa de plástico que estava sobre
tiros e nas mortes naquelas matas. a mesa. Aquele líquido puro e cristalino nos
refrescou a conversa e, como um remédio que
Respeitei sua enorme generosidade de alivia as dores, parece também que limpava
estar ali para me contar o que eu quisesse ali todo aquele sangue derramado do qual
escutar. Porém, eu não precisava mais de fazíamos memória. Acho que ali eu passei a
detalhes de violência, pois eu mesmo tinha entender por que a água é sinal do batismo
visto as pessoas, no cárcere do Exército, para os cristãos, símbolo de vida, necessária
quando fiz a reportagem em Conceição. para a vida; ela alimenta, lava, limpa a alma,
e dela surge o homem novo. Das águas que
Saber que a violência existia, eu já sabia, lavaram o pecado, Noé assegurou a vida
vi tortura e torturador, ao vivo e em cores, vi das espécies, e das águas do Nilo, Moisés foi
a degradação total do ser humano, de quem retirado e foi salvo pela filha do faraó. E no
ofende e de quem é ofendido. O que eu buscava Jordão João Batista mostrou Jesus ao mundo
não era isso, mas aquele ponto mágico da Tomamos a água e quebrei o silêncio.
mudança, aquele momento em que acontece
o natal no coração do homem, aquela hora em
- E comofoi que o senhor resolveusair
que tudo perde a razão de ser porque só Deus
de tudo isso?Deixara vida militar, deixar
Pai se torna a razão total. Eu queria saber qual aquelaperseguiçãotoda?
foi a hora em que aquele frade foi São Paulo, - Eu nuncaresolvinada.No inícioa gente
de perseguidor dos cristãos a divulgador da pensa até que resolve alguma coisa, que
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PedroSérgiodos Santos Maraçu.não tem remorso
decide alguma coisa, mas depois a gente estabelecimento. É claroque eu sabiaque ali
descobreque não decide nada, que é Deus era um antro de pecado,mas no coraçãode
que age,quem decidepor nós. Eu fiquei em Tia Baby não tinha só o pecadode montar
Conceiçãodo Araguaiapor um ano e dois e manter a casa de prostituição.Tia Baby
mesese deste tempofiquei pelomenos nove tinha a caridadede escutarnossasdores,de
meses em acampamentopelas matas e em dar uma palavraamiga,de levarum doente
beirade rio.A vida não erafácil.Eu só ia à ao hospital,de visitarpresosou acudirquem
cidadepara levarum presoou para buscar quer que fosse,numa precisão;com ela não
munições e mantimentos. Por duas vezes tinha dianem hora.Porváriasvezesvi gente
pensei que ia morrercom a malária.Passei chegarpelosfundos da casadela,com certa
diascomfebrenumarede,recebendoa pouca vergonhade estarali,e em altasmadrugadas
medicaçãoqueosmédicosda força de Saúde eladeixarseu negócioporcontadasmeninas
me davam. Quandoa febre era maior eu e sair para acudir um precisado.Então,
desacordavae tinha sonhosque eu pensava naquela noite fui mesmo por lá para ter
que não iam terminar mais; eram sempre um dedo de prosa com ela. Eu estava meio
sonhosruins,comtiros,mortos,gritose fogo, abatido depois de duas maláriasseguidas.
muito fogo. Depoisque eu tive a segunda Elame recebeucom o sorrisode sempre.Ela
malária,me deramuma folga de dez dias e nuncamejulgava;sempreme acolhia.fiquei
fui a Conceiçãodo Araguaiadescansarum por ali até por volta da meia-noitee meia,
pouco.No terceirodia, resolvisair no início quandobateu o cansaço,e depoisde tomar
da noite. fui ao prostz'bulo,aquele mesmo três cafés, resolvi ir embora.Desciapelas
quevocêsrelataramna reportagem.Naquele ruas mal iluminadasde Conceiçãoquando
dia não fui com intençãode beberou fazer virei numa esquinae vi uma casapegando
farra com mulheres, porque também os fogo;acho que a famz1iaestava dormindo,
médicosme receitaramum remédioque não entãocorriaté a cisternada casano quintal,
se dava com o álcool.fui lá pela amizade já fui pegandoum balded'água,metendoo
mesmoque eu tinha pela Tia Baby,donado pé na porta da cozinhae fui jogando água.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
Quandofui buscar o outro balde,tive a ideia deixeio local,andeipor uns três quarteirões
de sacaro revólvere daruns tirosparacima e choreiamargamentedepoisdaquelafrase.
para acordar a vizinhança. Dispareiuns Choreisentado na porta de uma farmácia,
tiros e comeceia gritar. Corrinovamente numa rua escura,tãoescuraquantoa minha
com a água ejoguei sobreuma cortinaque alma.Eu mesmome estranhava.Forte,duro,
pegavafogo.Aliás,tudo pegavafogo, até a sempre ríspido com os soldados e mais
madeirado telhado.A famz1.ia acordou;tinha endurecidoainda com aquelescomunistas,
muita gente na casa dormindoamontoada agora chorandopor causa de uma frase
pelos quartos,pela sala; era criançapara de uma criança.Eu era um monstro?Um
todo lado, nem deu tempo de contar. Eles matadorterrível?Já nãosabiabem quem eu
dormiam, não viam o fogo, não viam a era. Volteiao alojamentodo quartel,tomei
fumaça. O povo ao redor acordou,muita um remédio para dor de cabeça e dormi.
gente veio ajudar;porfim, todomundo saiu Fiquei ainda em Conceiçãopor três dias,
de casae conseguimosapagaro incêndio.A quandome veio novafebre, achoque era a
casaqueimouexatamenteaté a metade,mas maláriamal curadase repetindo.Destavez o
graças a Deus, ninguém morreu. Quando Capitãome colocounuma ambulânciae me
terminou tudo, o donoda casachorava,não mandou para um hospital em Araguaína.
peloincêndio,mas agradecendopelosocorro Era uma febre que não acabava,uma dor
prestado;e eu estava,aindanão sei por que, no corpoque me moíatodo,uma tremedeira
com uma criançapela mão, uma menina semfim. No hospital,eu me lembrode ouvir
de uns cincoanos,e ela, me reconhecendo, um médicocomentandocom outro que meu
dissepara a mãe e para os vizinhos:"Olha, fígadoestavamuitocomprometido. Eufiquei,
mamãe, é o SargentoJura-Meningite!Ele depoisdisso,desacordado porum bomtempo
não é só para matar não, ele é para salvar e novamente sonhei muito, com muitos
também!".Todosriram da criança,mas eu, tiros,dores,mortes.Mas o sonho agoraera
não sei por que, não me contive,largueia diferente,porque eu semprefugia daquela
mão dela e, sem me despedirde ninguém, cenae corriaparaapagaro incêndio,porque
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso
a criança, no meu sonho, estava sempre foi até os padres e pediu que novamente
dizendoque eu não era só para matar, que um deles fosse ao hospital rezar por mim
eu eraparasalvartambém.E esta históriase e novamenteveio o PadrePauloCésar.No
repetiae repetiano meu sonho.Enquantoeu outro dia, lá estava Seu Ribamarna porta
estavainternado,a famILiaqueeu salvarado da casaparoquialpedindopara que o padre
incêndiofoi ao quartelde Conceiçãoparame fosse ao hospital.O padre, então, retrucou:
agradecere ali todossouberampeloCapitão "Nãoprecisa,Seu Ribamar,a gentejá foi lá
que eu estava hospitalizado.Seu Ribamar, duasvezes,jádei o sacramentoda unçãodos
o pai da famILia,juntou os cacos de sua enfermose a gente pode rezar por ele aqui
pobreza,fez um empréstimo,pagou o frete mesmo na igreja.Deus ouve nossa oração
de uma caminhonetee foi com a mulher, ondequerquea genteesteja".Muitocorretos
a cunhada e os sete filhos para Araguaína, e muito lógicosos argumentos do padre
se arranchoupor lá e montou um plantão com aquele matuto, mas o homem, além
na porta do hospitalesperandopela minha de matuto, era cabeçadura. Não reclamou,
melhora;e eu lá,desacordado.Temendoque mas ficou por ali. Horasdepois o padre o
eu morressesem o sacramento,SeuRibamar viu na porta da casa paroquial,sentado
chamou um dos padres que acabavamde no alpendre,ao lado de um cachorro,e ele
chegarà cidade;erampadresredentoristas, insistiu pela presençado padre novamente
daqueles que pregam missão, e o padre no hospital;pareceque ele só se contentava
foi com Seu Ribamar ao hospital. Depois coma oraçãode corpopresente...
fiquei sabendoque era um tal PadrePaulo FreiJurandir, por uns instantes, ao falar
César.O padre foi conduzidoaté mim. Eu isso, sorriu, respirou com um certo humor
permaneciadesacordado,com soroe aquela pela situação, mas prosseguiu.
mangueirade plásticono nariz.Rezoutudo
- O homem tanto insistiu que o padre
que tinha de rezar,me deu o sacramentoda
voltou lá. A enfermeirajá estava até de
unçãodosenfermose pensoque até perdoou
ironia;uma ironiaprofética,por assimdizer:
meuspecados.No diaseguinte,SeuRibamar
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
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vida pregressa dominado pelo tal dragão da trajes que dão liberdade.A convite de uns
maldade, mas sustentei a entrevista. parentes,fui para PortoNacional;ali passei
uns dias e, para sobreviver,fui trabalhar
- Mas o senhor, quando se recuperou comoporteiroem uma escola.Depoisentrei
completamente da malária, voltou ao em contato com uns franciscanos, me
trabalhono quartel? interesseipela vida de São Franciscoe pela
-Não,fui diretoaomeucomandonacapital OrdemdosFradesMenores.Passeidoisanos
e pedi baixa,me desligueicompletamenteda visitando os frades e vendo seu trabalho
vida militar. com os pobres.Resolviser frade. A Graça
- O que osseussuperioresdisseramdisto?
de Deus me retirou do mundo e me levou
ao convento.Fiqueium ano e meio como
- O quejá era de se esperar.Disseram postulante,depois,um ano no noviciadoe
que eu estavasendoprecipitado,que com os agoraaquiestou.
bonsserviçosque eu tinha prestadoà nação,
- E hoje,o que o senhorfaz, comovive?
logoseriapromovidoa tenente. Que eu era
doído,que isso e aquilo.Entreino comando - Bem, sou frade. Faço o que o meu
sem muita conversa,entregueimeu pedido superiormanda,pois tenho também o voto
de exoneraçãoe saí calado, não discuti de obediência.Além das obrigaçõesda
com ninguém e ouvi a todos em silêncio. casa e das orações,temos estudos sobre a
Tão somente respondi reservadamentea Igreja,sobre a Ordeme sobre o Evangelho.
um coronelque me indagou se realmente Quatrovezespor semanapassoas tardesno
era aquiloque eu queria.Eu lhe disse que leprosário;lá sou catequistapara crianças
na minha vida eu não faria mais a minha e adultose organizeiuma escolade futebol
vontade, mas a vontade de Deus. Saí pela para crianças.Nas horasde folga,faço esses
porta do quartel como quem deixa um terçosde açaí,quevãoajudaralgunscristãos
grande peso para trás. Entregueilá todo o a alimentaremsua alma.
fardamentoe as minhas armase saí com os
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Capítulo V
O Combate de São Jorge
contra o dragão de Maraçu
"Mãe,
Entre velhas páginas, uma folha
ainda verde da casa antiga."
(AucERurz)
o burburinho da nova Constituição
veterinária que clinicava para seus dois por quem Vicentão sempre teve consideração.
cachorros. Entre uma consulta e outra, um Porteiros, copeiros, operários, gente dos
exame canino e uma vacina, o sujeito foi sindicatos e motoristas ali se divertiam junto
ficando hipnotizado pelo sorriso da moça; com a turma do colarinho branco. Se numa
na loirice balzaquiana emoldurada sempre mesa falava-se animadamente da última
pelo jaleco branco da Clínica, ela o colocou viagem à Europa, na outra, com a mesma
de quatro e babando. Não chegaram a alegria contava-se a façanha de alguém que
completar seis meses de namoro, tempo conseguira êxito nas provas do supletivo de
suficiente para Vicentão despachar antigos primeiro grau.
entraves mulherísticos e lá estava ele de A música ficou na boa qualidade de
terno, gravata e flor na lapela, esperando Alceu Valença, Zé Ramalho, Fagner, Elba,
a noiva que adentrava a igreja ao som da Geraldo Azevedo, Gilberto Gil e Caetano, da
marcha nupcial. Bossa Nova e do bom samba da gente do Rio
A festa do casório foi presente do Doutor e de São Paulo, Adoniran Barbosa e Demônios
Custódio, que se aproveitou do evento para da Garoa.
convidar de gente ilustre a gato e rato. O 22 de Na mesa com os amigos, bebi pouco
Julhoestava em alta, de bem com o governo e e apreciei a boa companhia de Simone.
com muita verba publicitária; assim, a festa do Dancei pouco, pois, na verdade, não sou
Vicentão não ficou tão cara quanto indicavam exatamente um pé-de-valsa e, como manda
as aparências. a regra, bebi com moderação do bom vinho
Reservou-se espaço para amigos espanhol servido junto com o jantar, tudo
próximos e familiares dos noivos e o resto de bom gosto. Mas antes que este modesto
do salão se encheu de mesas para políticos, relato se transforme numa coluna social com
empresários, juízes, delegados de polícia, calendário retardado, não posso deixar de
desembargadores, promotores, religiosos, contar o que a política faz com o caráter do
militares, bicheiros e gente da arraia miúda ser humano.
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recomendaçãode nunca mais voltar por nessas condiçõesde afogamento que não
aqui.Deixouprocuraçõespúblicaspara uns passa pelo IML não era normal. O pessoal
laranjasdodeputado,quelucrarammaisum da seguradoraregistroutodos esses dados
pouco vendendo. toda a mercadoria da do defunto suspeito e passou a investigar
empresasem notafiscale fechandoas portas qual foi o rumo que o dinheiro tomou.
do galpãoatacadistasem avisarnem mesmo Procurarama viúva na empresae no antigo
aos poucos empregados,que ficaram com endereçoe nem sinal dela. Depois,através
uma mãonafrente e outraatrás.É claroque da Justiça Eleitoral,descobriramque ela
o deputadoembolsoutudo isso,dinheirode estava residindonuma pequena cidadedo
seguro,de mercadoriase ainda do cheque Maranhão.Mandaram detetive para lá e
especiale do cartão de crédito do duplo- descobriramque a mulher era dona de um
falecido.Tirandoas poucasdespesascom a modesto veículo e uma pequena frutaria.
pescaria,com o coveiroe com o cachê da Isso não era coisa para uma mulher que
viúva,o saldofoi bastantepositivo,ajudando tinha tanto dinheiroem sua conta. Depois
muitosua campanhaparadeputadofederal. de um apertoaquie outroacolána delegacia
- Mas, Desembargador, tome mais uma local, a viúva abriu o bico e contou aos
taçade vinhoparamelhorara bocae ojuízo detetives o que ela sabia, ou seja, todo o
e me diga,comoissotudo chegounaJustiça? falso casamentoe a armaçãoda pescaria
com defunto preparado para morrer de
- Bem, meu caro, esse pessoal de novo. Os detetivesforam até CampoNorte
seguradora desconfia até da própria e começarama fazer perguntasao coveiro.
sombra. Eles pagaram o seguro, mas Nãodeu outra,elecomeçoua telefonarpara
ficaram desconfiados.Primeiro,porque o o Jambãoe no desesperode ser pegofalou
defunto tava muito bem mortinho, com coisasao telefonequejá estavagrampeado.
tudo muito certinho,atestadode óbitoe até Eratudo grampoilegal,mas essesdetetives
laudoodontológicode imediato.Issoé coisa não ligam para essas burocraciasda lei.
que não era comum. Pior ainda, defunto Deram lá um troco para os agentes da
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PedroSérqíodosSantos Maraçunão tem remorso
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
Sentei à minha mesa, pedi à copeira que de uma instituição de pesquisa e um fotógrafo
enchesse minha garrafa térmica com água por nome Nilzardo. Levei-os ao hotel e logo
quente para o chimarrão e fui responder ao depois fomos jantar e conversar sobre o
recado com a urgência requerida. trabalho deles na luta contra o amianto.
Fiquei surpreso com a ligação. O tal Fui informado que duas das maiores
Fernando Schiavo conseguiu chegar ao meu empresas que atuavam em Maraçu, apesar de
nome através de outros jornalistas de São serem estrangeiras, tinham entre seus sócios
Paulo que escreviam sobre ecologia e meio um senador de São Paulo e um deputado do
ambiente. Tomei conhecimento que ele era Paraná, políticos que também já vinham sendo
engenheiro florestal, pesquisador na área de investigados por manterem trabalhadores como
arqueologia e trabalhava como professor em escravos em suas fazendas no Mato Grosso.
uma universidade. Disse-me que queria fazer
uma visita a Goiás e dentre os assuntos mais Fernando Schiavo desenvolvia pesquisa
importantes para ele estava a exploração do sobre problemas ambientais do Brasil, para
amianto em Maraçu. Ele me disse ao telefone sua Universidade e para uma instituição da
que meu nome já era uma referência em São Itália, país onde ele havia feito seu doutorado,
Paulo e fora do país na luta contra esta praga conforme me relatou. A noite já ia avançando
que matava de câncer tantos conterrâneos e Júlia pediu licença e subiu para seu quarto;
meus. igualmente fizeram Maria Augusta e Nilzardo.
De imediato me coloquei à disposição Eu e Fernando resolvemos terminar a
para recebê-lo juntamente com sua equipe garrafa de vinho e conversar mais um pouco,
e também para ir a Maraçu se eles assim o oportunidade em que fiquei sabendo de
desejassem. outras intenções suas em relação a Maraçu:
Quatro dias depois fui ao aeroporto - Com este sobrenome,imagino que o
receber Fernando Schiavo, sua esposa Júlia, senhor seja filho de italianos e não teve
também jornalista, Maria Augusta, diretora dificuldadesde estudarna Itália.
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PedroSérqíodosSantos Maraçu.nãotem remorso
deu água,um pedaçode bolachae um pouco coma boca.O meninofoi ficandoali naquela
de caféesfriadono soproaté tomá-lomomo. casa,dia apósdia, e depoisde três semanas,
O comboioseguiu em frente e só parou na meu pai procurouum advogadoamigopara
hora do almoço.·em Palmira,povoado de ter uma orientaçãosobre o que fazer com
duasruas e poucocomércio.Poralininguém o menino. O tal advogado,detentor de um
tinha notíciasobreaquelacriança,ninguém forte senso de praticidade,indagou:"Ora,
a conhecia.Meu pai conseguiuum pouco você achou o menino abandonado,cuidou
de leite,amassouumas bolachasnum prato deleaté agora.Tudosó dependedo que você
e improvisou um mingau. Assim foram e sua mulherestãoquerendo.Se nãoquerem
levandoa viagemde um povoadoa outro e ele com vocês,basta colocá-loem qualquer
meu pai foi conseguindoaqui e acoláumas orfanatopor aí, que as freirascuidarãodele
peças de roupas infantis e foi vestindo o melhor que os índios;agora,se você quiser
menino numa jornada que durou treze ficar com o menino,vá ao cartórioe registre
dias até chegarao Rio de Janeiro.Por lá, o ele comoseu e de sua mulher,mas em todo
Exércitodeu pouca importânciaà criança caso, guarde a ordem escrita que o major
e o Majordeu ao meu pai uma autorização lhe deu;é um documentooficialdo Exército,
formal para levá-lapara São Paulo.Assim, provade sua boafé.
meu pai chegoudiante de minha mãe com
um menino pequeno em seus braços, em A noite já ia mostrando seu peso em
meio a suas malas, roupas sujas e umas nosso cansaço, mas o vinho, um leve vinho
poucaslembrançasde aventurano sertão.O uruguaio, estava muito bom e percebi que
sentimentomatemo dé minha mãe, que até aquela história do engenheiro não era algo
então não tinha filhos, afloroufortemente que eu devesse desconsiderar. Sugeri que
diante do ménino.f oí lõgopegandoele no pedíssemos mais uma garrafa para que o
colo,depoislhêdêttbanho ecomidana bocae papo continuasse e depois de acionar o
foi percebêndoquea criança poucofalavaou garçom, fiquei ali tal qual uma coruja, atento
falava mais com osolhosassustadosdo que ao que viria:
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso
- Então, professor,seu pai registrou o Acho que ela teve medo de me contar a
meninocomofilho? verdadee eu resolverbuscarminha fam{lia
biológica,e porfim eu me esquecerdeles.Ela
-Sim,elenãotevedúvida.Aindajovens,ele faleceuum ano antes da morte do meu pai
e minha mãe adotarama criançasem muita e por ela eu nada soube.Aliás,dela só tive
burocracia.Foramno cartório,levaramduas palavrasde amor,carinho,cuidadoe ternura.
testemunhas amimadas e deram o parto Ela era pianista, tocava para eu dormir,
comoparto naturalocorridona fazenda em tocavapara eu acordar.Passadostrês anos
Andradina.Logodepoisprocuraramo padre da minha adoção,minha mãe engravidoue
e batizarama criançae essacriançasou eu. aos seis anoseu ganheidois irmãosgêmeos,
Engoli o vinho engasgando, saindo um Bento e Clara.Crescemosjuntos e, apesar
pouco pelo nariz e até pelo ouvido, eu acho. da diferençade idade,nos dávamosmuito
Distraído pelo cansaço e pela bebida, eu bem e meus pais nunca demonstraramter
realmente não esperava por aquele desfecho qualquer diferença de sentimentos entre
e, no susto, me vieram de imediato as histórias os três filhos.Meu irmãoBento é médicoe
de meu avô sobre os A vá-Canoeiro, os índios trabalhano Hospitaldas Clfnicase minha
invisíveis. Era eu me engasgando outra vez irmãClaraseformouem Enfermagem,casou-
com a verdade. se e logoficouviúva;perdeuo maridoem um
acidentee descobriua paz na vida servindo
- O quê?!É o senhor?!- Exclameiainda aospobres.Éfreirae moranumacomunidade
tossindoassustadocomofato. paroquialpróximaaos{ndiosGuarani,no Rio
-Perdoe-me, nãoquislhedeixarengasgado Grandedo Sul,e nosfins de semanapassaos
com isso.Sim,sou eu. E meu paifaleceulogo sábadose domingosassistindodoentescom
após minha formatura. Antes, porém, ele hansen{ase.Eu me formei e fui estudar na
quisme contartudo o que sabiasobreo meu Itália.Lá fiz mestrado,doutoradoe amigos.
passado,achandoqueesteeraum direitomeu, Depoisde sete anospor lá, volteiao Brasile
apesarde minhamãe nuncater concordado. fiz concursopara professorna Universidade
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PedroSérqíodosSantos Maraçunãotem remorso
- Claro,professor,
claro!Soujornalista,,
mas refeição que minha mãe fazia questão de
antes de tudo,sou maraçuense,tenho amor servir, ainda que no improviso da chegada
pela minha terra_,onde aindamorammeus repentina. Com meus pais, minha irmã e
pais,meusirmãosemeusparentes.Maraçujá uma prima sentados à mesa, coloquei a todos
sofreumuitocomo amiantoejá envergonhou o motivo de minha ida repentina a Maraçu.
pordemaiso paíscomtantamorte. Mal acabei de contar a história do professor
Fernando Schiavo e meu pai já afirmava
Terminamos a garrafa de vinho e
taxativamente:
prometi voltar no dia seguinte após o almoço,
para seguirmos viagem até Maraçu. O dia - É ele,ofilhodoAltamiro,netodoCoronel
amanheceu e logo cheguei aoJornal. Conversei ]ales.
com Doutor Custódio, expliquei a importância
- Nãosei, meu pai, podeser, mas vamos
dos fatos e fui liberado, juntamente com
comcuidado.Nessaminhavidadejornalista
um fotógrafo para acompanhar o grupo até
vi muita coisa. Vi gente que acreditava
Maraçu.
piamenteserparentede alguéme de repente
De volta ao hotel, saímos em dois carros ver suas esperançasfrustradas;vamoscom
às treze e trinta horas. Por volta das dez da calma.Primeirovou acompanharoprofessor
noite estávamos chegando a Maraçu. Deixei- e os demais na investigaçãosobre essa
os em um hotel e fui para a casa de meu pai, desgraçado amianto,depoisa gente cuida
pegando a todos de surpresa com a minha disso.
chegada. Sempre gostei disso, de chegar sem
O esforço inicial da equipe se voltou para
avisar. Acordei meus pais que, de hábito,
o amianto. Foram às minas, às fábricas, aos
dormiam mais cedo, com as galinhas, como
postos de saúde e às casas de trabalhadores.
dizem no interior.
Quando o prefeito soube da presença da
Coloquei as malas no quarto que sempre equipe e que não se tratavam de empresários
me esperava e fui à cozinha para comer uma e investidores, cuidou logo de fazer pressão.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
- Então vá para casa, Jorge, converse Estávamos na sala, meu pai sentado
com a famz1ia,mas evite a conversacom em uma poltrona, o casal no sofá e eu numa
amigos e vizinhos, pois se você tiver que cadeira perto da porta da cozinha. Maria
sair de Maraçu,terá que sair àspressase às Augusta e Nilzardo ficaram na varanda. Meu
escondidas. pai olhava na minha direção e de mãos juntas
girava os dedos em flagrante nervosismo, me
- Eu sei,padr'e.Sei comosão essascoisas.
fuzilando com os olhos. Meu pai não era muito
Poisbem, vou indo para casa.Vou deixaro
diplomático com informações delicadas.
projetocomvocês,confioem vocês,confiono
Depois que ele avisou a vizinha que o marido
padre.
dela havia falecido, minha mãe não deixou
Combinamos nova reumao para dali mais ele dar notícias dessa natureza. Dois
a dois dias. Jorge saiu e ficamos com aquele meses antes, ele colocou a cabeça por cima do
documento e mil ideias. Pensávamos nas muro e gritou:
pessoas e nas instituições que primeiro - DonaNenzinha!ô DonaNenzinha!
receberiam cópias. Estrategicamente, quem
- Sim, senhor,descurpea demora.Tava
deveria primeiro receber as denúncias e por
onde começar o bombardeio.
ali colocandoum arroznofogo...
- É que ligaramagora aqui em casa lá
Enquanto esperávamos a decisão de Jorge
do posto de saúde e mandaramavisar que
e sua família, o professor Fernando resolveu ir
Seu Doca,seu marido,bateu com as quatro,
atrás do seu passado. Acordou cedo, foi à casa
morreuagorahá pouco.
de meu pai acompanhado de sua esposa Júlia
e de seus amigos e logo indagou a meu pai Dona Nenzinha quase morreu também.
por onde ele deveria começar, quem eram os As pernas bambearam, perdeu pressão no
mais velhos da cidade que poderiam informar sangue e arriou no chão; foi aquele Deus no
alguma coisa sobre uma criança desaparecia, acuda. Então, estava lá meu pai, já nervoso
sequestrada pelos índios. para falar tudo, assim, na bruta mesmo, para
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Maraçu.
nãotem remorso
- Chega.Vou lá na casa desse Doutor -Porfavor,me esperemum pouco,fiquem
Altamir agora.Alguémme acompanhaou
vou lásozinho? à vontade;Altamirestálánoquartovestindo
um temo. Tem reuniãoimportantehojena
Meu pai, que não era amigo do Doutor Câmara,com os diretoresda empresado
Altamir,mas tinha um;aconvivênciarespeitosa amianto.Uminstantesó.
se viu na obrigação d~ fazer as honras da casa:' A velha senhora tinha na façe o
- Não,professor,o que é isso?O senhor sorriso forçado da gentileza e as tatuagens
não vai sozinho,eu lhe acompanho,faço do sofrimento que a envelheceram mais
questão!Euconheçoo DoutorAltamirdesde ainda, Era ainda jovem quando perdera o
meninoe ele vai nos receber.Aliás,vamos filho nas mãos dos Avá-Canoeiro. Ela quase
todosjuntos lá. enlouqueceu, passou meses muda, deprimida,
num sofrimento só. Noresto davida, cuidou de
Assim,nos dirigimostodos à casa amarela um marido que viveu praticamente à custa da
da Rua Coronel Jales, que evidentemente fama do pai. Arrogante, pouco sofrido e pouco
reçebeu esse nome numa dessas homenagens interessado no filho desaparecido, a política
que Câmaras Municipais costumam prestar local e os negócios da famíliaeram, para ele,
a falecidos sem história ou com história mais importantes. Dona Esmeralda teve que
pouco recomendável... No casarão amarelo aturar também no casamento as amantes do
desgastado pelo tempo e com jeito de pouca marido, dentro e fora da cidade, inclusive o
reforma e manutenção, uma empregada nos sofrimento dele na cachaça quando uma delas
recebeu à porta e disse que ia chamar os faleceu em acidente na Belém-Brasília,Era, a
patrões, Logo veio Dona Esmeralda, esposa caráter, um viúvo da amante; por trinta dias
do Doutor Altamir, e nos convidou a entrar vestiu ternos pretos.
deixando todos confortavelmente sentado;
Enquanto ela nos recebia e nos alojava
na sala e, após os cumprimentos, foi chamar
o marido. a todos na sala de visitas cheia de retratos
da família nas paredes, o professor Fernando
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ter tido esse nome, nem convivido com esse todos dormiram felizes no velho casarão do
avô, cuja história e a fama ele já bem sabia. Coronel Jales e o Doutor Altamir não ousou
Anoiteceu e o jantar foi servido em tom falar com a esposa qualquer coisa sobre o filho
solene e festivo; fomos chamados novamente recém-chegado. Mas, logo no dia seguinte, no
à casa do Doutor Pfltamir e até o bispo e 0 café da manhã as coisas foram se definindo:
vigário paroquial láfestavam. - Altamir,vou tomar um café aqui bem
Depois de toda a comemoração, rápidoe querouma carona;queroque você
Fernando e a esposa se despediram da família, me deixelá no hotelparaver nossofilho.
dos novos conhecidos e foram descansar - Vá comcalmaEsmeralda!Tá certoque é
suas emoções no hotel onde se hospedaram. nossofilho,masvocêviu queeleandametido
Dona Esmeralda, eufórica, não sabia se com o filho daqueleoutro,ojomalistazinho
acompanhava o filho ou se ficava em casa. de merda,que é filho dessacidadee fica só
Fernando ponderou,já chamando-a de mãe: fazendoreportagemem cimade reportagem,
- Olhe,mãe, a senhoranão vai mais me atacandoo amiantoe o desenvolvimento.
perder,estouaqui,vivo,comcasae endereço -Altamir,eunãoquerosaberdeamiantoe de
certo. Ainda vou ficar uns dias aqui em seusinteressespolíticos,
euqueroésaberdonosso·
Maraçue quandoeu voltarpara São Paulo, filho!Vocêvaimelevarouvouterqueira pé?
quero logo uma visita sua por lá, e bem - Calma/.Calma!Eu levo. Mas converse
demorada.Vou lhe mostrarminhasfotos da
com ele direitinho,mostre a ele que esse
infância e da juventude, vamos conversar jornalistajá foi até suspeito de subversão.
muito.
Vocêse lembrabemdaqueleSenadorqueveio
Fernando tratou educadamente o aqui comprarumas armasdo meu avô para
Doutor Altamir, mas sem o mesmo entusiasmo sua coleçãoe comentouque naqueletempoo
que dedicara a sua mãe e, ao que parece, a SNItava investigandoo rapaz,em razãodas
indiferença era recíproca. Naquela noite, matériasqueeleescreviang 22 deJulho.
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- Eu não vou me meter nisso. Se você pobres que davam à luz na maternidade
quiser,que fale com ele. Eu só quero agora pública ou nas mãos de parteiras, pelas roças
é ficar perto do meu filho. Paramim o meu do município. Logo ela, que perdera o filho,
filho estava morto e ressuscitoue você fica quase ainda um bebê, passava por cima de
aí pensando nessa porcariade amianto e sua dor para dar àquelas crianças pobres uma
subversão?Tenhapaciência!Vamos,que eu chegada ao mundo de forma mais digna. Por
estou compressa! anos e anos sua figura foi a de uma mulher com
Fernando pediu a Júlia, a Maria Augusta uma mão no trabalho e a outra no coração,
e ao Nilzardo que me acompanhassem até a passando entre os dedos as contas do rosário.
igreja, onde conversaríamos com o Jorge. Nunca se portou como mulher de político,
Naquela manhã, ele resolveu se dedicar à nora de coronel ou madame afrescalhada.
sua mãe. Fernando não esquecera e não Fernando viu tudo isso em sua mãe. A
deixou de amar aquela que lhe criou como dignidade em pessoa. Porém o mesmo não
filho, mas o reencontro com Dona Esmeralda podia ser dito de seu pai.
e a descoberta de uma mulher com aquela
- Meu filho, seu pai não pôde vir te ver
personalidade e com aquele amor foi, em
sua vida, um grande tesouro. Não só a mãe
agorapela manhã, mas me pediu para lhe
dizerque ele querum dedinhode prosacom
conversou com o filho querendo saber o que
vocêmaistarde,talvezà noite.
ele fez em todos esses anos. Ele também quis
saber sobre a vida da mãe. - Claro,minha mãe. Conversareicom ele.
Dona Esmeralda vivera para a casa, para
Mas,me contecomoa senhoraarrumatanto
os filhos, netos e marido, mas tinha tempo
tempo para cuidar dos pobres, além dos
afazeresdomésticos?
também para visitar os doentes, cuidar dos
pobres que procuravam a igreja e junto com A conversa se estendia. Fernando resolveu
outras senhoras chegou a formar um grupo sair a pé com a mãe e passear com ela de mãos
que preparava enxoval de bebê para mães dadas pelas ruas da cidade, indo até a praça
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PedroSérgiodos Santos Maraçunão tem remorso
central e depois ao centro de costuras, onde ela Enquanto Fernando fazia a alegria da
se reunia com as amigas e atendia aos pobres, na mãe, nós nos reuníamos com Jorge na mesma
Confraria de São Vicente de Paula. Ela, eufórica, sala da catequese no centro paroquial; desta
marchava pelas calçadas, parando a cada três vez ele foi acompanhado da esposa e, sentado
minutos e apresentav? o filho a uma conhecida, ao seu lado, de mãos dadas ele nos disse sobre
a uma amiga; não se continha de alegria, e seguia sua resolução:
sua caminhada, deixando nas casas as janelas
- Converseicomminhamulhersobreo que
apinhadas de gente curiosa com o milagre do
vocês me falaram. Nossosfilhos nasceram
retomo do menino Severiano. "Olhalá",diziam.
aqui, estão na escolae nós também temos
"Éo talquefoiroubadopelosíndios...elevoltou...olha
todososparentesporaqui.Nãosabemosonde
lá!".E ela, de braços dados com o filho, mostrava
vamosmorare que tipo de empregovou ter
a todos seu troféu maior, se sentindo a mais
longede Maraçu..Mas, domingo,na missa,
afortunada das mulheres, e ele, orgulhoso de
sua mãe. ouvimosa leiturada b{bliasobrea história
de Abraão.Ele teve coragemde pegar sua
Foi difícil eu não retornar aos tempos fama.ia,sairde sua terrae ir paraondeDeus
de estudante e não me recordar do filósofo o mandou.Achoque paratentar mudar esse
Santo Agostinho, ou melhor, não me recordar tipo de coisaque aconteceem Maraçu.,onde
da história de sua mãe, Santa Mônica, a matançade gente pelo amiantoé sempre
que por anos seguidos fincou os joelhos acobertadapor essesdeputadose senadores
no chão clamando a Deus pelo retorno do sem vergonha,a gente tem quefazer alguma
filho. Todavia, no caso de Agostinho, não se coisa mesmo. Ontem meu pai morreu por
tratava de um retorno físico, presencial, mas causa do amianto,agorapode ser a minha
espiritual. Tratava-se de sua conversão. Mas, vez e quem garante que algum dos meus
olhando para as duas, Dona Esmeralda e Santa filhos não vai morrer com essa desgraça?
Mônica, não se poderia olvidar do poder da Só faltam duas semanas para as férias
oração de uma mãe. escolares.Eu queriaque não divulgassemo
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PedroSérgiodosSantos Maraçu.não tem remorso
de todos que ali tinham o mesmo olhar de Após alguns telefonemas, Luiz Eduardo
cumplicidade, respondeu: se propôs a chegar em Maraçu no dia seguinte.
-Jorge,nãose preocupe,nósvamostopar Assim, almoçamos e passamos a tarde
essa brigajuntos. Fremostudo com calma reunidos, já com a presença de Fernando, na
e com firmeza. Nós vamos voltar para São varanda da casa de meu pai, sob o frescor da
Paulo,arrumar uma casa para você e sua sombra de uma velha j aqueira, elaborando um
famILia,seu emprego e a escola para as pequeno roteiro de filmagens e de atividades
crianças.Somentedepoisde tudo ajustado de tudo aquilo que, até então, descobrimos
é que daremosdivulgaçãoao documentoe emMaraçu.
partirparacimadosempresários. Ao anoitecer Fernando nos deixou. Disse
Maria Augusta reforçou as palavras de que passaria no hotel para um banho e trocar
Júlia e o Padre não deixou por menos. Tudo de roupa e iria ter a conversa com Doutor
agora era apenas uma questão de saber se Altamir. Ficamos apreensivos e ele se foi.
Jorge iria para São Paulo ou Porto Alegre. Ao chegar ao casarão do Coronel J ales,
Jorge e a esposa saíram confiantes da Fernando percebeu um movimento de carros
reunião, foram cuidar do resto de tempo que na porta. Quando entrou, foi logo recebido por
ainda lhes sobrava em Maraçu. Maria Augusta sua mãe, que o apresentou a alguns parentes
e Nilzardo nos propuseram convidar um mais distantes que ali foram para conhecê-
cinegrafista para vir imediatamente a Maraçu lo, e na festa da família ampliada, jantaram
fazer algumas imagens que posteriormente todos juntos. Um pouco mais tarde, com a
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
conversa já em beira de sono para as crianças ou morto. Agora que a parentadajá foi
e com as devidas despedidas, Doutor Altamir embora,podemosconversarum poucomais
chamou Fernando ao seu escritório, abriu tranquilos.Comosou seu pai e nunca tive a
uma garrafa de uísque envelhecido, ofereceu oportunidadede cuidarde você,gostariade
uma dose ao filho, que prontamente recusou, sabercomoestá sua vida hoje,se precisade
e acendeu um charutq, certamente cubano. O algo,se possolhe ajudarem algumacoisa...
tom solene e ao mesmo tempo informal dava
a entender que o assunto ali era para homens, Doutor Altamir temia que o filho
mas Dona Esmeralda não deu importâncía viesse reclamar por dinheiro e por um
para o nariz empinado do marido, entrou pouco do patrimônio deixado pelo avô. Suas
também no escritório e se sentou ao lado indagações não eram de generosidade ou de
do filho. Talvez a pouca sensibilidade do pai preocupado, mas de homem precavido
Doutor Altamir lhe tenha cegado as vistas com seu bolso e um tanto mesquinho.
do coração para perceber que em vinte e - Quantoa isso o senhorfique tranquilo,
quatro horas ele perdera aquela mulher agradeçosuapreocupação, mastenhoum bom
subserviente e sempre dócil ao seu comando. saláriocomoconsultorna áreade engenharia
Dona Esmeralda agora mostrava seu pulso e outrocomoprofessorde universidade.Júlia
firme, sua "ira santa", como dizia o cantor tambémganharazoavelmentebeme vivemos
que homenageou o senador Teotônio Vilela; com certa tranquilidadecom nossosfilhos.
de fato Dona Esmeralda mostrava agora todo Aliás,quero que o senhor e minha mãe os
o seu brilho. Doutor Altamir, ignorando por conheçamlogo.No mais, eu e meus irmãos
completo a nova postura da esposa, começou herdamosum certopatrimôniode meu pai,
a conversa com Fernando: que nosrendealgumacoisa;portanto,nãose
- Que alegria, meu filho, ter você de preocupequantoa isso.
volta, quando a gente pensava que nunca - Poisbem, mas vocêveio a Maraçucom
mais ia te ver, não sabíamosse estava vivo esserapazaí, o tal, metidoajomalista...
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
Dona Esmeralda sentiu o clima tenso - Calma, calma, peço calma aos dois.
entre o pai e o filho e, ouvindo em uma orelha Acho que tudo isso não passa de um
a voz da justiça e na outra a da maternidade, equívoco do delegado e do prefeito; e se
rompeu seu silêncio e entrou na conversa dos às vezes a polícia fica de olho em algum
homens: estranho, é para a própria segurança
da cidade. No mais, os policiais não lhe
- Escutemaqui, eu não entendonada de conheciam, meu filho, nem a você, nem
política,amiantoou de meio ambiente,mas aos seus amigos de São Paulo. Mas não
isso não vai virar uma guerra entre nós. se preocupe, vou ainda hoje à noite na
Altamir,nossofilho vai andar nessa cidade casa do delegadoe o problemase resolve.
para onde ele quisere com quem ele quiser, Afinal, você é da minha famfüa e a famfüa
e se alguémda políciafor atrás dele,sou eu é a referênciadesta cidade
quem vai lá quebrara cara do delegado,já
que vocêé um bosta! - Acho bom mesmo,Altamir!Acho bom
mesmoque issosejarápido.E quantoa você,
- O que é isso,Esmeralda!
Me respeite! meufilho,aviselá no hotela sua esposa,que
Fernando se sentiu constrangido com já dormiu tantos anos com você, que hoje
a briga entre os pais e tentou apaziguar os vocêvai dormiraqui,em nossacasa,na sua
ânimos. Todavia Doutor Altamir percebeu casa,e nãoqueroouvirmaisnada!
que os tempos mudaram junto à esposa. A Dona Esmeralda deixou o recinto de
velha senhora se sentia, a cada momento, cabeça erguida, passo firme e sorriso no rosto,
mais fortalecida pela presença do filho e e os dois ficaram ali, com cara de recrutas que
também mais rejuvenescida, cheia de alegria, escutaram broncas e ordens de sargento, e
de coragem. Os olhos do Doutor Altamir o jeito foi obedecer. Doutor Altamir puxou
perceberam o olhar de soberania da esposa pelo rumo da casa do delegado e Fernando
transformada e, num ato de prudência, ele foi telefonar para a esposa, enquanto sua mãe
recuou: lhe arrumava o quarto.
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Depois de alguma conversa com uns ter trazido de volta o filho e, dando-lhe um
poucos parentes e irmãos na sala de visitas, beijo na testa, colocou sobre ele um lençol,
Fernando foi se deitar no conforto da cama ajeitou-lhe o travesseiro e saiu, apagando a
arrumada pessoalmente pela mãe, a despeito luz do quarto:
da casa contar com duas empregadas. Já - Deuste abençoe,meufilho!
no leito, Fernando viu a porta do quarto se
abrir e a mãe veio se sentar na beira da cama. O dia amanheceu e depois de um
Não lhe disse nada. Ficou uns dez ou quinze farto café com frutas, bolos e pães diversos,
minutos a lhe acariciar a face, os cabelos e a preparado nos mínimos detalhes por Dona
barba enquanto ele lhe segurava a outra mão. Esmeralda, Fernando saiu ao encontro dos
Por fim, ela lhe disse que em todos esses anos amigos. Luiz Eduardo chegaria às dez e
de sua falta, sentiu muito não poder ter lhe começariam as filmagens no mesmo dia.
ensinado, ainda quando criança, o sinal da Porém, antes de sair de casa, o pai, ao lhe dar
cruz e a oração do Anjo da Guarda, para quem bom dia, complementou:
ela sempre rezou pedindo para que tomasse - Podeandartranquilona cidade.Ontem
conta do filho ausente, e baixinho foi rezando mesmofalei com o delegadoe como prefeito
a oração, enquanto uma lágrima lhe caía no e essemal-entendidonãovai maisacontecer.
rosto:
- Folgoem sabê-lo.Agradecido.
"Santo Anjo do Senhor,
Meu zeloso guardador, Fernando balançou a cabeça e não
Sea ti me confioua PiedadeDivina, encompridou a conversa.
Sempre me rege, me guarde, No hotel nos reunimos rapidamente
Me governe e me ilumine. e, numa folha de papel, fizemos um breve
Amém!" roteiro dos principais pontos de filmagem
Ela rezou como se agradecesse ao anjo daquele dia. Iríamos à mina, depois à fábrica e
por tantos anos de trabalho bem feito e por então visitaríamos algumas viúvas.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
atendiam aos doentes da rotina urbana e A câmera de Luiz Eduardo era perspicaz
aqueles muito atingidos pelo câncer ou por e captava os detalhes no olhar de cada doente
graves doenças pulmonares oriundas do e nas mãos generosas das enfermeiras, que
amianto. O paciente em estado grave tinha na faziam o máximo possível naquele caos
rodovia o caminho certo para algum hospital de lençóis sujos e lixo hospitalar por todo
de Santana ou da Capital. De lá, poucas vezes lado. Conversamos e, com a prestativa
um voltava vivo para Maraçu. colaboração jornalística de Júlia, que havia
Nos rostos que agonizavam e sofriam anos atuava na imprensa televisiva de
buscando o ar que o amianto lhes tirava, a São Paulo, filmamos as entrevistas com
morte, antes temida, agora era desejada como acompanhantes dos doentes.
um bem maior, por cada um daqueles que não Deixamos o posto de saúde e fomos
aguentavam mais o peso do sufocamento. visitar famílias cujos pais faleceram em
Nas enfermarias lotadas, com paredes razão do câncer. Eram tantas que, se
e pisos sujos e ventilação mínima, dois fôssemos a cada uma, o filme não seria de
ventiladores sopravam sobre os doentes e seus longa metragem, seria de eterna metragem,
acompanhantes o ar quente da morte; e volta em razão de um sofrimento que não tinha
e meia uma barata corria pelos pés das macas fim, na expressão de cada viúva, no choro de
e dos leitos que acolhiam os moribundos. cada criança sem pai.
A política de saúde de Maraçu seguia à Optamos por dez entrevistas, por dez
risca as recomendações do deputado Joseir casos que bem retratavam a foice ceifadora da
Amarantes, que muito alegrava as empresas indústria do amianto. Na primeira entrevista,
funerárias da cidade, cuja quantidade a viúva reuniu na sala humilde de uma casa de
aumentou de uma para cinco em sete anos, quatro cômodos e bancos de madeira, os oito
e todas com alta lucratividade, bastando filhos que perderam o pai havia dois meses.
observar o patrimônio dos proprietários, que A filha mais velha estava com treze anos e o
crescia a olhos vistos. mais novo com um ano e meio.
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PedroSérgiodosSantos
Maraçu.não tem remorso
Na segunda casa visitada, dona Suzana, daprefeiturafoi bãocomnóis;pagoutudodo
junto aos seus seis filhos, mostrava a fotografia velórioe do enterro,pagaraaté pra trazero
do marido, morto onze meses antes, no dia corpodele pra cá, nóis num pagou nada, o
do sepultamento. Luiz Eduardo bem captou
povoda prefeituraé muito bãomesmo.
na parede da casa a fotografia de casamento
dos dois. Os filhos, isem qualquer palavra, Ora, não havendo órgão público de
gritavam em seu silêncio e em sua pobreza, serviços funerários, esticamos mais dois dias
a dor de serem pisados pelo rico negócio do de estada em Maraçu e descobrimos que a
amianto. prefeitura fazia questão de pagar todos os
sepultamentos dos mortos pelo câncer do
As visitas prosseguiam e, em cada casa,
amianto, contratando os serviços das empresas
um drama; o mesmo drama. E na maioria
funerárias, sem qualquer legalidade nos
delas, um futuro incerto, a pobreza instalada.
pagamentos e, é claro, todos superfaturados,
Era a dor da perda aliada à dor da fome, da falta
de escola, de roupa e até de um remédio para em média de cinco a seis vezes superior ao
a criança chorosa e de narizinho catarrento, valor real. Desta forma, o lucro assassino
aconchegada no colo da mãe. do amianto gerava até uma lucratividade
corrupta e paralela nos meandros da miudeza
A ingenuidade foi bem captada por Júlia de funcionários municipais, sem deixar de
na entrevista da viúva na última residência lado, é óbvio, o percentual do prefeito e dos
visitada: vereadores. Os documentos chegaram às
- Óia,dona, o pessoalda prefeiturafoi nossas mãos e a entrevista foi feita com o
muito bãopra nóisem tudo.Quandoo Zemir nosso agente infiltrado com o compromisso de
ficoudoentee osmédicodaquidissequeerao ocultarmos o rosto do entrevistado e fazermos
tardo câncer,eleslogoarrumaraambulança a deformação da voz na edição do filme.
e levaraeleprum hospitalna capital,inté eu Finalizamos as filmagens e entrevistas
fuijunto. Mas Deusnum quis que elevivesse com sete horas de imagens que deveriam
muito.Emdoismêselemorreu.Mas opessoal ser editadas, infelizmente para um filme de
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PedroSérgiodosSantos
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asei e cresci em Maraçu e, depois de
tornava sempre brilhante, sempre diferente sair do anonimato, depois de muito relutar
das mulheres comuns que pisam em nossos comigo mesmo, sem saber se valeria a pena
corações. aquela conversa ou se serviria tão somente
para aprofundar a minha velha dor da perda:
Ela, de pé, ajeitando a bagagem nos
maleiros, e eu, pas!llo na poltrona, mal - Então,Lígia,comoestávocê?
podendo acreditar que aquela imagem era
real. Quando ela se sentou ao meu lado e, sem - Lígia?Vocêsabemeu nome?
me reconhecer me cumprimentou com um - Claro!Vocêtalveznãose lembrede mim,
simples "boatarde",eu me engasguei, perdi o ou melhor,com certeza não se recorda... O
fôlego e o coração disparou. Em milésimos de tempo passou, agora estou de barba e ela
segundos me corrigi, dizendo a mim mesmo já está ficando grisalha.Fomoscolegasna
que era hora de manter a calma, respirar AliançaFrancesa!
fundo, me comportar como uma pessoa
- Nossa!Claro!É você,agorame lembro;
civilizada, como um cavalheiro, e não passar
tantasvezesvocême ajudoucoma tabelade
recibo de um abestalhado apaixonado; ou ela
ainda iria acabar achando que estava sentada verbos.Me pareceque naquelaépocavocê
ao lado de um completo idiota. Respirei erajornalista!
fundo e respondi: "Boa tarde! Me desculpe, -Sim,soueu mesmo,e continuojornalista,
me engasgueicom uma balinha".Ela, com um trabalhono 22 deJulho.
sorriso, balançou a cabeça e passou a ajeitar o
- Ótimo!Concluiuo cursode Francês?
cinto de segurança.
- Não,não.Não tive tempo de continuar.
Fiquei uns minutos em silêncio, tentando
articular o início de uma conversa. Percebi Após o segundo semestre meu tempo foi
certa tensão em Lígia com a decolagem, engolidopelo trabalho.E você, estava na
como normalmente ocorre com tanta gente. faculdade,seformou?Ouvidizerque vocêse
Quando o avião estabilizou o voo, resolvi casou...
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
Que ninguém me interprete mal, posto - Nada. Caseinão. A vida não me deu
que para mim o casamento de Lígia era um fato esse prêmio.Quemsabe o futuro ainda me
consumado, mas ao ouvir aquilo, eu não sabia reservaestasurpresa?
se ria de contentamento ou se me solidarizava O sorriso voltou ao seu rosto e procurei
com a dor daquela que eu sempre amei. Mais ser mais leve no diálogo.
uma vez firmei ojuízo, tomei tino na respiração,
coloquei um ar de seriedade na cara e respondi: - Tem visto algum colegadaquelanossa
turma de Francês?
- Meuspêsames!Sintomuito pelaperda. - Apenas uma, a Julieta. Vocêse recorda
- Eh!É difícil,todaperdaé difícil. dela?Aquelamorena,paraense.
- Mascomoissose deu? - Vagamente...
- Meu maridofaleceuem um acidentede - Ela se casou com um vizinho de meus
carro,viqjandoa negócios,
numarodoviaemSão paise às vezesa vejoquandoosvisito.Evocê,
Paulo.Aliás,estouindopara lá buscaralguns trabalhandomuito noJornaloujá está como
documentos paraoprocesso de inventário. chefe,só dandoordensaosnovatos?
- Vocêtem filhos? - Já tive boas oportunidadesno Jornal e
- Sim, duas. Uma com oito e outra com em algunscanaisde televisão,mas a notícia
seis anos.Aos poucosvão se adaptandocom ferve no meu sangue,não consigodeixarde
a ausênciado pai.Eraum bompai. ladoojornalismoinvestigativo.Aliás,estou
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
Retirou da bolsa uma pequena caderneta lanche, nos sabotando com um bom vinho
e uma caneta tão delicada quanto a sua dona e chileno. Depois da segunda taça, não resisti e
anotou o número do telefone. Nos despedimos contei a todos sobre meu encontro com Lígia
ali; uma amiga esperava por ela e eu tomaria um e, é claro, tive que contar também o que se
táxi. Ela segurou minha mão quando eu a estendi passou quando eu a conheci.
e me deu dois beijinhos no rosto, na formalidade Júlia, sinceramente, dizia:"que coisa linda!".
de quem parte. Depois daquele aperto de mão e Maria Augusta se mostrava emocionada.
daqueles dois beijos, fiquei ali, vendo sua partida Nilzardo ironizava dizendo:
com a amiga rumo ao estacionamento, segurando
- Vejam vocês, como uma mulher, até
aquele papel com o número do seu telefone,
mesmo sem querer,faz um homem duro e
como quem segura um bilhete premiado ao
racionalcomonossoamigoarriarospneus...
descobrir que ganhou sozinho na loteria. Bem
sabia que aquele era apenas o número de um Fernando não deixou por menos:
telefone; poderia não me levar a lugar algum, mas - Quandoelefala o nomedelaé quaseum
poderia ser uma segunda chance. Eu tive vontade boboperfeito.
de pular de contentamento, abraçar todos que
E Luiz Eduardo pediu para ser o padrinho
passavam por mim e gritar feito um doido, mas
do casamento, aliás,posto reivindicado por todos.
agora era hora de ter calma, de dar um passo de
cada vez, de esperar que ela se adaptasse à viuvez Tomando as rédeas da conversa, fiquei
e amargasse todo o luto que ainda tinha que ser de pé e disparei:
engolido. - Senhorese senhoras,deixemoso vinhoe
Cheguei para a reumao na casa de as delíciasda mesae vamosaotrabalho,pois
Fernando por volta das sete e meia da agora,mais do que nunca, queroeste filme,
noite. Todos já estavam lá e antes que nos esta reportagem,tudoperfeito para que a
debruçássemos noite adentro sobre todo Lígía tenha uma boa impressãodo nosso
o material do amianto, Júlia nos serviu um trabalho.
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PedroSérgiodosSantos Maraçunãotem remorso
em silêncio e depois, tomado de emoção e de está aqui, sentada ao meu lado num bar,
vinho, nem percebi que os clientes das outras junto com meus amigos de luta. Olha,sou
mesas pararam de conversar, os garçons meioprimitivomesmo e não levojeito para
pararam de servir, os balconistas pararam de discurso.Paraacabarlogocom essaagonia
atender, a moça do caixa parou e a pessoa da que me sufoca nesses doze anos, quero te
cozinha, também em ,silêncio, veio assistir à dizerquesó me apaixoneiporvocêuma vez,
cena: na primeira vez que te vi; e desta paixão
nunca mais me curei. Nunca lhe disse isto
- Lígia, há mais ou menos três meses por causa das circunstâncias entre nós,
quando te reencontrei,já viúva, naquele mas agora,só peçoque recebaestasfiarese
voo para São Paulo,fiquei tão chocadoao o único poema que conseguidecorarnessa
te ver ali sentada ao meu lado,que minhas minha vida, de autoria de um velho amigo
pernas tremiam e foi difícil segurar o de Maraçu,EmtlioVieira:
queixo. Mas agora, dane-se tudo! Dane-se
o mundo e dane-se o que as pessoas vão "Vinhascomosonhoqueabraçou minhaalma,
pensar de mim se faço um papel de maluco perdidona distânciasedutora
ou ridículo,não me importa.Voufalar tudo quandoeu bebialágrimasdefogo
e faça você o que quiser depois. Guardei comoum arco-írisno rio da vida.
fotografias tuas por todos esses anos,
todas as que estavam na coluna social do Meuamorvarridopelasventanias,
22 de Julho. Estãonuma pasta na segunda Quasenãoo quiseste.E nem saberias
gaveta do armáriodo meu quarto,se quiser quantoamorexisteno matiz das cores
conferiré só mandaralguémir até lá neste que tenhoguardadasnofundo dosolhos.
momento; a empregadaestá em casa e a
autorizo a abrir a pasta. Você era para Nãoum amorde amoresvários- eu
mim a princesafechada em seu castelono quiserate dar- ressaídode beijos.
alto da montanha e, imaginem só, agora Nãoum velhoamorde amoresvelhos,
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Maraçunão tem remorso
PedroSérgiodosSantos
Capítulo VII
Ruminando a espera dois
passarinhos
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ndo remoendo o tempo, do jeito que
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
Penso nesse mundo que toma rumos da madeira macia, uns carrinhos de boi para
de uns te~pos que eu não gostaria de ver, vender na festa de Trindade, toda vez que me
de certas ditaduras que se criam às sombras vê com a cuia na mão puxando um mate, com
de democracia, principalmente feitas ou a erva verdinha, verdinha, diz que só bebo
incentivadas por aqueles que tanto sofreram isso porque não aprendi a pastar; depois ele
nas mãos de poderosos. São ditaduras de dá uma risada larga. E isso ele repete sempre
grupelhos, que nos tomam os filhos das que me encontra, falando em voz alta para
mãos, os valores e tradições de um tempo todos rirem ...
cantado e contado pelos velhos, pela família.
Se antes os jovens marchavam contra a Penso no mundo que vi passar pela poeira
morte do regime militar, hoje marcham de Maraçu. Da exploração do amianto, hoje
por drogas , perversões da moral e contra a quase extinta graças à pressão estrangeira por
família. Ditaduras que não consideram mais causa da pouca vergonha nacional, só falta
as palavras dos avós, de gente como meu avô uma coisinha de nada de coragem da Justiça,
Cândido Cassiano ou das glórias contadas por para pôr no pilão e socar, definitivamente,
Seu Barini sobre os homens, Chimangos e esses assassinos, que fizeram sofrer tanta
Maragatos, batalhadores pelas nossas terras gente de minha terra. Sei não se essa Justiça
do Sul. E por falar nisso, desisti de acender ainda não vai roer a corda e prevaricar na hora
o cachimbo, mas voltei ao chimarrão· ele da onça beber água; afinal, tem uns bestas por
que nunca deixa a gente ruminar sozinho. ' ' aí falando que este é o país da impunidade ...
O mate faz boa companhia enquanto passo É coisa nenhuma, pois aqui se pune muito
~ mão na barba branca que agora tem que e mal punido, é só ver em nossas cadeias a
fie~~ de molho com esse mundo aí que se geral da pobreza que ali se amontoa. Passei
av1zmha na garupa das tais tecnologias e anos no Jornal vendo esses coitados jogados
da dita sociedade globalizada. Amigo meu, nas celas de presídios e delegacias porque
Seu Rufino, que com seus cabelos brancos furtaram duas melancias ou três galinhas.
aprendeu a fazer, no artesanato do canivete e Entretanto, barões, viscondes, princesas e
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PedroSérqiodosSantos Maraçunãotem remorso
sinhazinhas dos dias de hoje, frequentadores foi ordenado e hoje reza sua missa diária como
de palácios e shoppings, não colocam os pés capelão da policia militar, enfiando a mão
por ali, não, senhor. Podem até fazer o mal- no buraco da serpente, passando seus dias a
feito que os devotos de 'São Judas Iscariotes' pregar em quartéis de Minas Gerais, fazendo
e os de 'São Pilatos', respectivamente, cada por ali sua catequese da paz.
um no seu oficio, nãb vão acusá-los, com Penso num mundo que vive à procura
libelos de trinta e três páginas, nem julgá-los de ilusionistas, para fazer deles seus ídolos e
duramente com sentença registrada, lavando seus líderes. Hoje, por exemplo, aqui mesmo
suas mãos, e jogá-los no xadrez por um tempo na capital, o tal ilusionista que fez defunto
quase eterno. No máximo vão dizer que eles ressuscitar e morrer pela segunda vez nas
são jovens excêntricos. águas do Araguaia quer largar sua deputança
Penso no mundo que não aprende a na Câmara Federal para ser prefeito. A
perdoar e por isso faz guerra, que mata mais rafaméia, na sua miudeza de dar dó, vai
pela própria falta de perdão. Mas tem gente gritando vivas sem saber o tamanho da mão
corajosa que levanta a cabeça para abaixá-la e do sujeito; coitado, ele não leva o dinheiro
dizer que errou. Vi como o Frei Jurandir quis não, só carrega o cofre, lembrando muito bem
ser ordenado sacerdote na igreja de Conceição os seus bons e velhos tempos de militante
e uma cambada do povo não quis, dizendo que estudantil e socialista praticante.
ali não ia ser ordenado o tal Menigite. É claro Penso e rumino um mundo que deveria
que não foram todos, mas foram suficientes ser feito com gente que só tivesse coração
para deixar o frade constrangido e carecendo de mãe, como a minha mãe, que no seu
do bispo pegar seu cajado de pastor para fazer silêncio aprendido com a outra Mãe, falava
suas ovelhas reconhecerem seu lugar. Essas alto dentro de casa com filhos travessos ou
mesmas tais ovelhas que agora se parecem respeitosamente com o marido, sem deixa-
mais com os porcos da Granja Solar da ficção los impunes em seu olhar de mestra, ou
de George Orwell. Mas, apesar de tudo, o frade como o de Dona Esmeralda, que rezou a vida
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PedroSérgiodosSantos Maraçunão tem remorso
inteira pela volta do filho e este a encontrou vezes, ficar em silêncio, sem o barulho das
com o coração doce e forte. Não mais caiu modas do mundo e o feitiço de suas cores,
no cabresto de seu marido e arduamente num silêncio como esse que preenche todo
defendeu o filho que por diversas vezes 0 dia aqui pelas bandas do sítio, que até faz a
voltou a Maraçu para visitá-la e fazer também gente escutar o barulho do capim crescendo.
o necessário combate 1 contra o amianto. A Penso no mundo que não dá crédito de
guerra entre pai e filho foi declarada, mas o fé à fé de quem faz romaria, de quem acredita
velho Altamir, um dia num discurso arrojado em benzeção e de quem reza seus longos
na Câmara de Vereadores, querendo agradar rosários com lenços tortos que mal prendem
plateia de empresários e bajuladores, deu os cabelos brancos. À fé de quem acende sua
duas voltas de angina e dor no relógio do vela no pé da santa e pede a Deus para ~andar
peito e tombou num enfarto. A viuvez de chuva. Mais uma vez me desculpe o leitor se
Dona Esmeralda foi toda na formalidade invoco o rádio, herança de minha avó, para
do riscado, mas assim que acabou o tempo me socorrer nas minhas ruminações, mas
das trevas, tirou o vestido preto, pegou sua quando me vejo na estrada que por ve~es
malinha e um xale florido e foi tirar uma escorrega os pés nas armadilhas do Coisa
etapa com filho, os netos e a nora em São Ruim canto e rezo uma ave-maria diferente,
Paulo, reviver a vida com a familiagem que dess;s inventadas por alguém que poderia
o tempo lhe roubou. Existem certos filhos ser um católico apostólico goiano, mineiro ou
que não estão desaparecidos, não foram paulista, um que rezasse assim como o Renato
sequestrados pelos índios, mas precisam Teixeira rezou:
voltar à casa do Pai, à casa dos pais, dos avós,
ao coração de cada um deles. Uma volta que É de sonhoe de pó,o destinode um só
só ocorre depois de um combate interior e Feitoeu perdido,em pensamentos
do reconhecimento de si mesmo, como ser Sobreo meu cavalo,é de laçoe de nó
ruminante, que deve ruminar também como Dejibeira ojiló, dessavida,
seus pais ruminaram as tramas do tempo. Às Cumpridaa só
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PedroSérgiodosSantos
Maraçunão tem remorso
Soucaipira,pirapora do Coronel J ales e comandar os gestos de Seu
NossaSenhorade Aparecida Canhoto na matança dos Avá-Canoeiro. Na
Iluminaa mina escurae funda tristeza das vistas, vejo que as rezas do Beato
O trem da minhavida
Antônio Conselheiro, as pregações de Frei
Penso no munçlo cheio da razão e Damião que chegaram a se avizinhar pela
da lógica, daquelas reuniões vermelhas Bahia e os conselhos de meu Padre Cícero do
e revolucionárias da universidade, de Juazeiro, não encontram eco nesse mundo que
professores e estudantes, da redação do jornal vira as costas para Nosso Senhor, um mundo
comandada por Vicentão e do olhar fuzilante mandado por essa cabroeira de televisão que
nas marchas dos quartéis do Exército em bota ameninada a se perder, em tempo real.
Conceição. O mundo que precisa , assim como A rede amarela, velha e remendada, eu a
eu, dessa luz na mina escura e funda, e que trouxe de Maraçu. Volto-me para ela e agora
ainda carece de sentir o vento que bate no meu corpo ela sustenta enquanto vejo os
rosto, os pés que tremem e o coração que gela trovões no céu acinzentado quase escuro às três
quando a gente pisa na passarela gigante, da tarde, deixando ali de lado minhas botinas
suspensa no ar, carregando cada um e todos marrons de poeira e montaria. Meu chapéu de
para a casa da mãe em Aparecida do Norte. couro, pendurei no prego do batente da janela,
Coisa assim de fé, da fé daquele tipo de junto com minha viola que às vezes dedilhava
gente que também acreditava no milagre da em canções caboclas, para que, de tudo um
distribuição de terras em Trombas e Formoso pouco eles fossem testemunhas. Coloquei os
e na profecia santa de Zé Porfírio, ou nas olhos no tempo e me alegro com a chuva que
ladainhas que rezou Antônio Conselheiro vai cair sobre todos nós, sobre os pés de mangas
embalando o sono do povo da pele queimada e sobre os cabritos e os jumentos, depois de
pelo solo quente do chão baiano, como se meses de seca e queimadas injustas, como se
estivesse a expulsar demônios como os tais a cada verão fôssemos novamente batizados e
que depois viriam a montar praça na cacunda víssemos a vida sair de dentro do chão.
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Maraçunãotem remorso
PedroSérgiodosSantos
Na rede, meio sentado, meio deitado agoniado. Aqui na rede, balançada pelo vento,
' espero Lígia acordar de seu sono, de sonh_os
vou debulhando as sementes de açaí, nas
ave-marias do terço que ganhei do frade, rimados, para o jantar e a prosa da noite
enquanto espero vou rezando para que calma, na esperança ainda de que recebamos,
alguns passarinhos retornem pelas suas asas depois da chuva, a visita de uma lua cheia que
próprias, por bondade de Deus, ao carinho mandei instalar para ela.
da minha mão. De três verdinhos, um está FIM.
sempre por aqui, solto, pois nunca gostei Cincodejulho de 2012 - noitede lua cheia..
de gaiola, ora traquinando, ora assentado
na mansidão, as outras duas caturritas, que
cuidei no cajueiro desde pequenas, amassando
a comida, colocando nos biquinhos abertos
e aquecendo o ninho, defendo-as de gatos e
serpentes oportunistas, esquecendo-se do
amor que lhes dei, tomaram voos, com a mesma
cor nas asinhas, para os rumos dos espinhos
e das fumaças das queimadas, iludidas pelo
mundo, pensando que gavião e carcará já se
converteram em beija-flores. Acordado ou
dormindo, com o gosto amargo do silêncio
na boca, meu coração dói de saudade dessas
duas passarinhas, uma dor que não passa, não
passa não, e vivo assombrado com essa dor
'
pois toda cantiga de passarinho que escuto eu
penso logo que são elas voltando. Quando saio
pelos matos e vejo uns voando, penso logo que
são elas, mas estão longe e meu coração dói,
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t
Em apoio à sustentabilidade, à preservação
ambiental, a ASA EDITORAGRÁFICA/ KELPS, declara
que este livro foi impresso com papel produzido
de florestas cultivadas em áreas não degradadas e
que é inteiramente reciclável.