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Igor Rossoni

Maria da Conceição Pinheiro Araujo


Maria das Graças Meirelles Correia
(Org.)

Vera Cruz:
nas letras da docência
Uma coletânea de textos redigidos pelos docentes da
Rede Municipal de Educação de Vera Cruz
Vera Cruz:
nas letras da docência
Vera Cruz: nas letras da docência
Copyright © 2012, Igor Rossoni, Maria da Conceição Pinheiro Araújo e Maria das Graças Meirelles Correia (Org.)
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação de direitos autorais (Lei nº 9.610/98).
Capa
Núbia Moura Ribeiro
Foto da capa
Gal Meirelles
Revisão
Gal Meirelles
Editoração
Núbia Moura Ribeiro
Produção editorial
Gal Meirelles e Núbia Moura Ribeiro

Sistema de Bibliotecas – IFBA

Vera Cruz: nas letras da docência / Igor Rossoni; Maria da Conceição Pinheiro
Araújo; Maria das Graças Meirelles Correia (Organizadores). - Salvador:
IFBA, 2012.
128 p.
ISBN 978-85-8140-000-6
1. Narrativas. 2. Ilha de Itaparica. I. Título.
CDU 82-34
Igor Rossoni
Maria da Conceição Pinheiro Araújo
Maria das Graças Meirelles Correia
(Org.)

Vera Cruz:
nas letras da docência

Salvador - BA
2012
Sumário
Apresentação
Quando a paixão nos move – Núbia Ribeiro ............................................................................... 09
O desafio da educação em Vera Cruz – Heder Amaro Velasques de Souza ....................................... 12

Parte I
Prefácio – Oficinas de produção textual em Vera Cruz: memória e experiência docente – Maria da
Conceição Pinheiro Araújo ....................................................................................................... 17
Conceição: praia da emoção – Adriana Alves dos Santos .............................................................. 24
A localidade de Tairu – Ângela da Silva Moreno .......................................................................... 26
Terno da estrela: o resgate da cultura de Jiribatuba – Ana Maria Silva Carmo .................................. 28
A comunidade de Baiacu – Áurea Menezes da Cruz ..................................................................... 32
História de Cacha Pregos – Cristiane dos Santos Cruz .................................................................. 34
Ponta Grossa: um lugar em Vera Cruz – Elienai Lima de Jesus ........................................................ 36
Memória de Tairu – Eliene Chagas da Silva ................................................................................. 40
Pesca e festa em Tairu – Ivone Silva Dórea ................................................................................. 42
A chegada do Ferry Boat em Coroa – Jacira Moreira Freitas .......................................................... 48
Memória, história de vida e formação docente dos professores do município de Vera Cruz – João Carlos
Pharaoh ................................................................................................................................. 51
Memórias de Barra do Pote: o surgimento da escola – Lorena de Castro e Silva Santana .................. 55
Saveiros da Ilha – Luciene Barbosa Azevedo .............................................................................. 59
Coroa e Barra do Gil – Maria Floricéia Ramos ............................................................................. 63
Zé de Vale, você conhece? – Maria Núbia Alves da Silva ................................................................ 70
Minha Ilha – Maria Telma dos Santos Santana ............................................................................ 73
Memorial: a história dos professores na comunidade de Aratuba – Miraci Carvalho de Souza ............ 78
A localidade de Tairu – Neuza Monteiro da Conceição Lima ......................................................... 82
Memórias de Catu – Rosimere Oliveira Silva Ferreira ................................................................... 84
O amor em Mar Grande – Shirley Cristina S. Conceição ................................................................ 88
Cacha Pregos: alguns aspectos – Silvia Andrea Almeida Patrício .................................................... 89
Juerana: o resgate de uma história – Sortenenes C. da Silva ......................................................... 92
Sobre pessoas e lugares do projeto Shops (Lojas) – Wilma Godoy ................................................. 96

Parte II
Ouvir estrelas – Igor Rossoni ................................................................................................................... 101
Em sala de aula – Ana Cristina Paixeco ..................................................................................... 104
Uma história de leitura e escrita – Nilma dos Anjos Santos .......................................................... 107
Primeiros momentos – Patrícia Kipper ....................................................................................... 111
Ideias do cotidiano, abrindo os olhos para sala de aula – Tereza Antônia ........................................ 113

Posfácio
Ler, ouvir, escrever – Maria das Graças Meirelles Correia .............................................................121
Apresentação
Quando a paixão nos move
Núbia Moura Ribeiro*

D izem que as coisas feitas com paixão têm maior possibilidade de dar certo. Como o Projeto
Baía de Todos os Santos nasceu de uma paixão, o dito vem se confirmando e o Projeto nasceu
abençoado desde sua origem. Tudo começou em dezembro de 2007, numa tarde de sol, na linda
Colina de São Lazaro, quando pesquisadores estavam reunidos para discutir um projeto que
contribuísse para a estruturação da pesquisa no Estado, projeto que teria o apoio da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) e da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP).
Naquela reunião, Jailson Bittencourt de Andrade, o atual coordenador no Projeto Baía de Todos os
Santos (BTS), um velejador apaixonado pelas águas verdes esmeraldas da Baía e ciente dos
problemas que seus habitantes e o ambiente enfrentam, propôs que a Baía de Todos os Santos
fosse o eixo de estruturação do projeto para desenvolver a pesquisa no Estado. Embora naquela
reunião a opção fosse priorizar as pesquisas em Engenharia e em Tecnologia da Informação, todos
reconheceram a importância de um projeto estruturante focado na BTS, o que levou Robert
Verhine, o então diretor científico da FAPESB, a disponibilizar o espaço da FAPESB para apoiar a
formulação da proposta. Assim, durante o ano de 2008, um grupo de trabalho, multidisciplinar e
multiinstitucional, discutiu e elaborou uma proposta que, em dezembro de 2008, resultou na
assinatura de um convênio entre a FAPESB e as instituições parceiras, para realização de um projeto
de pesquisa com duração de dois anos.
* Núbia Moura Ribeiro, doutora em Química Orgânica, é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da
Bahia (IFBA).
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Na verdade, a concepção do Projeto BTS, discutida e proposta pelo grupo de trabalho, prevê
a realização de pesquisas ao longo de 30 anos, para que levantamentos de dados oceanográficos,
químicos e biológicos possam permitir o acompanhamento, o diagnóstico e a realização de
simulações mais próximas possíveis da realidade. Assim sendo, o projeto, apoiado pela FAPESB, é
apenas a semente de uma árvore que deve se desenvolver por, pelo menos, três décadas.
Imbuídas da mesma paixão que levou ao surgimento do projeto BTS, as “Oficinas para
produção textual” também são fruto de esforço movido por um poderoso sentimento. Gal
Meirelles, uma fotógrafa, professora, pesquisadora e moradora de Baiacu, povoado de pescadores
da contra-costa da Ilha de Itaparica, no coração da Baía, havia se integrado à equipe do projeto BTS.
Inquieta, criativa, preocupada com “seu povo” – os moradores da Ilha — ela perguntou-nos se
haveria possibilidade de organizarmos oficinas para os professores da Rede Municipal de Vera Cruz,
um dos municípios da Ilha de Itaparica. Não tínhamos recursos no projeto para esta atividade,
porém lembrando que o projeto não nasceu em um banco, mas nasceu sobretudo porque
encontrou eco nos corações, podíamos esperar bons desdobramentos...
O IFBA, antigo CEFET-BA, leva em seu nome e na sua prática o caráter tecnológico, mas é uma
instituição onde o sentimento de amor e respeito pelas pessoas ainda emerge e encontra espaço
para expressar-se. Em relação às Oficinas, primeiro Maria da Conceição Pinheiro Araújo, uma
doutora do IFBA e entusiasta do ensino de Língua Portuguesa, cedeu suas tardes de sábado para
realização dos encontros com os professores de Vera Cruz. Em seguida, numa reunião com o Pró-
reitor de Extensão, Carlos d´Alexandria Bruni, sem qualquer obstáculo, ficou acertado o apoio do
IFBA para a realização das Oficinas como uma atividade integrada ao projeto BTS.
No processo de seleção, inscreveu-se mais que o dobro do número de vagas oferecidas para

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as Oficinas, aproximadamente 170 inscritos para as 50 vagas iniciais. Neste processo seletivo, foi
detectado, também, outro grupo de professoras que mereciam atenção especial e, mais uma vez,
pudemos ver o poder de um sentimento enraizado na luta por algo melhor para as pessoas. Igor
Rossoni, um doutor em literatura da UFBA, um sulista que foi conquistado pelo calor desta terra,
aceitou ministrar as oficinas para um segundo grupo de professoras.
E assim começaram os encontros, previstor para ocorrerem em seis tardes de sábados. Pude
estar com o grupo em alguns momentos. Encantava-me observar quanto conhecimento não
consciente sobre a BTS havia naquelas pessoas, conhecimento tácito, vivencial, amalgamado nas
células, nos gestos, no olhar das pessoas. Pessoas cheias de esperanças, de garra, que precisam
vislumbrar uma chama da qual possam se aproximar e ampliar o alcance da luz. Uma pequeníssima
parte do tesouro de cada uma das pessoas está legado aqui, foi materializado em palavras, na
escolha de um tema que suas histórias de vida levaram-nos a achar importante, uma fagulha de
memórias, algo que valoriza o lugar onde vivem.
Esta apresentação não é, como pode ser visto pela narrativa, apenas a apresentação de uma
coletânea de memórias de docentes de Vera Cruz, é a apresentação de uma história de
confluências, de convergências especiais onde o saber e o conhecimento dão as mãos na busca de
vencer a difícil travessia do espaço que aparentemente separa a vida comum e a vida acadêmica.
Delicie-se com os fragmentos de lembranças destes professores que revelam facetas e
histórias de um lugar que não é dos deuses, mas de Todos os Santos.

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O desafio da educação em Vera Cruz
Heder Amaro Velasques de Souza*

O s indicadores sociais e de desenvolvimento humano no Brasil colocam na ordem do dia a


necessidade urgente de o país rediscutir as suas políticas, no sentido de resolver
problemas históricos, ainda bastante evidentes e que o colocam em situação muito incômoda,
interna e externamente. Má distribuição de renda, desemprego, desassistência na saúde e má
qualidade da educação representam alguns desses entraves, que constituem os pilares das
desigualdades sociais existentes.
O Brasil ainda apresenta resultados muito ruins em políticas essenciais, dentre as quais a
Educação, sem dúvida, é a mais importante. A Educação é o Direito Constitucional que
possibilita o acesso a todos os demais direitos. A partir do ano de 2005, com a implementação
do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), o baixo desempenho do país na área
da Educação ficou ainda mais evidente. O Ministério da Educação estabeleceu como meta para
o ano de 2021 o IDEB de 6,4, estando hoje o indicador, ainda distante, com valor de 4,6. Na
Região Nordeste, o distanciamento das metas projetadas é ainda maior, de modo que os
municípios nordestinos apresentam IDEB muito abaixo da média nacional. Na Bahia, a situação
não é diferente.
No Município de Vera Cruz, segundo a avaliação realizada em 2009, o IDEB ainda
apresenta números muito baixos: 3,1 nos anos iniciais e 2,1 nos anos finais do Ensino
* Heder Souza é Secretário de Educação do Município de Vera Cruz.
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Fundamental. Entre os fatores que incidem e são determinantes para a situação descrita, local
e nacionalmente, a formação de professores ocupa lugar central. A formação inicial e
continuada de professores é, reconhecidamente, um dos principais desafios do país,
constituindo-se numa política permanente adotada pelo Ministério da Educação,
principalmente nos últimos dez anos.
Desde 2009, o Município de Vera Cruz vem desenvolvendo as suas próprias políticas
nessa área, em consonância com as diretrizes nacionais da Educação. Também foram
estabelecidas algumas parcerias importantes, as quais resultaram em atividades pontuais e
projetos de formação e qualificação da atividade docente no Município. As parcerias com
entidades filantrópicas locais, por exemplo, resultaram na oferta de cursos nas áreas de
Educação Ambiental, Educação para as relações étnico raciais, saúde do escolar etc.
Nesse sentido, teve um lugar de destaque a pareceria estabelecida com o Instituto
Federal da Bahia (IFBA). A instituição ofereceu aos professores da Rede Municipal de Ensino,
durante o ano de 2010, o curso de Leitura e Produção de Textos, no âmbito do Projeto Bahia de
Todos os Santos (Projeto BTS). O curso, além de trabalhar habilidades e conteúdos específicos
atinentes à formação dos professores, promoveu a valorização, incentivo e elevação da auto-
estima, já que abriu um novo espaço de enunciação, do qual se originou, entre outros produtos,
esta coletânea.
Os textos aqui editados representam um pouco do olhar que cada educador deste
município possui acerca de sua realidade, bem como de sua experiência e formação docentes.
Essa parceria representou uma experiência muito significativa, no sentido de que possibilitou

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concretizar o regime de colaboração previsto em lei, na Constituição Federal e na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB). A Secretaria de Educação de Vera Cruz e o IFBA
materializaram, na prática, essa parceria tão importante para o desenvolvimento do país, mas
ainda tão distante de ocorrer em muitas outras realidades. Agradecemos a oportunidade e
parabenizamos a todos os professores envolvidos por mais essa conquista, ao tempo em que
nos colocamos à inteira disposição para as novas ações que ainda serão empreendidas a partir
dessa parceria.

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Parte I
Oficinas de produção textual em Mar Grande:
memória e experiência docente
Maria da Conceição Pinheiro Araújo

O projeto “Oficinas de produção textual” idealizado por Núbia Moura Ribeiro (docente do
IFBA) e Maria das Graças Meirelles Correia (quando atuava junto à Secretaria de Educação do
Município de Vera Cruz), como ação decorrente do Projeto “Estudo Multidisciplinar da Baia de
Todos os Santos” (Projeto BTS), teve como objetivo principal instrumentalizar docentes do
município de Vera Cruz, no que se refere à produção textual, numa perspectiva de resgate da
memória das diversas localidades da Ilha. Assim, por ser docente do IFBA, estar inserida na
comunidade, na qualidade de moradora de Mar Grande e, principalmente, desejando contribuir, de
alguma forma, para a melhoria da qualidade da educação no referido município, aceitei o convite
para ministrar as oficinas. O projeto propunha seis oficinas, que aconteceram entre outubro e
dezembro de 2010, na Biblioteca Aristóteles Gomes, em Mar Grande, e que resultaram na
publicação dos textos produzidos individualmente pelos docentes: esta coletânea.
A primeira oficina de produção textual iniciou, conforme calendário previamente
estabelecido, no dia 02/10/2011. A oficina transcorreu de forma tranquila e respondeu às
expectativas estabelecidas no programa das oficinas. O programa, bem como o cronograma de
aulas e textos a serem utilizados durante as oficinas foram entregues neste primeiro momento. O
* Maria da Conceição Pinheiro Araújo, doutora em Teoria da Literatura, é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia da Bahia (IFBA).
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objetivo final foi cumprido, ou seja, todos os 7 grupos formados naquele dia produziram um texto e,
ao final, todos os textos foram socializados entre os grupos para que fizessem observações que
considerassem importantes como, por exemplo, questões de acentuação, pontuação, ortografia,
coesão, coerência, entre outras. Esta atividade deveria ser feita e entregue na oficina do dia 23/10,
além da leitura do texto proposto e a pesquisa sobre tipologias e gêneros textuais como atividade
programada.
Na segunda oficina, no dia 23/10, após a solicitação das atividades que deveriam ter sido
cumpridas pelos professores, o clima tornou-se desconfortável para todos os presentes devido ao
não cumprimento das atividades propostas na oficina anterior. Assim, nenhum texto foi corrigido
pelos grupos. Como foram formados 7 grupos e o grupo produtor do texto não poderia fazer
observações sobre o próprio texto, cada texto deveria ter observações de 6 grupos, totalizando 42.
No momento da recolha da atividade, apenas 9 textos foram entregues, mas alguns participantes
chegaram atrasados e, portanto, entregaram após a solicitação da recolha e outros fizeram a
atividade durante a realização da oficina. Ao final da oficina, tivemos o seguinte resultado dos
textos entregues para observações finais da ministrante da oficina: “O professor faz a diferença” –
01 grupo; ”Experiências de leitura e escrita” - 02 grupos; “Nossas experiências: ler e escrever” – 03
grupos; “Rumo ao mundo da leitura e escrita” – 04 grupos ; “Memória de leitura e escrita” – 04
grupos; “Recordando nossas histórias” – 05 grupos; “Memórias do nosso aprendizado” – 05
grupos.
Total de textos com observações feitas pelos grupos: 24
Total de textos que não foram entregues: 18
Total de textos que deveriam ser entregues: 42

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Constatação: apenas 57% da atividade foi concluída. Conseguimos, portanto, sensibilizar
apenas um pouco mais da metade dos participantes quanto à execução da atividade.
Pelo fato de a maioria não ter cumprido as atividades propostas, os encaminhamentos da
oficina ficaram comprometidos e o objetivo final daquele dia, uma nova produção textual de
gêneros distintos, não foi alcançado. Diante do exposto, a atividade para esta oficina foi
reorientada da seguinte forma:
1) Leitura do texto de número 5.
2) Entrega dos textos com as observações para leitura em grupo e considerações sobre as
observações.
3) Os 12 participantes presentes que não estiveram na primeira oficina formaram dois grupos
( 6 componentes) e cada grupo produziu um texto que foi permutado para observações. Tema dos
textos: a) “Como aprendi a ler e escrever”; b) “ As vivências do ler e escrever”.
4) Ao final da oficina, todos os textos foram recolhidos para observações finais da
ministrante.
5) Atividade programada: levantar, por escrito, os pontos principais destacados na leitura do
texto 5 e elencar dúvidas para discussão na oficina do dia 20/11.
No dia 20/11, a terceira oficina foi bastante produtiva e cumprimos as atividades que foram
dispostas em dois momentos:
1) Discussão do texto 5 a partir da proposta de atividade programada, explicitada no item 5,
acima.
2) Apresentação, em multi mídia, dos aspectos observados na leitura que a ministrante fez
dos textos produzidos na oficina 1 e das observações posteriores feitas pelos grupos.
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Os participantes avaliaram que o método de digitalização dos textos após as correções e
apresentação, para toda a turma, dos problemas encontrados serviu de avaliação para que todos
pudessem ver que muitas das dificuldades encontradas na produção textual não dizem respeito a
apenas um ou outro participante, mas são questões coletivas que indicam problemas da própria
formação profissional.
Na quarta oficina (27/11), seguimos o programa e discutimos sobre características históricas e
sociais da Ilha de Itaparica para estimular a produção do esboço para a concretização do texto final
(individual). Na oficina seguinte (04/12), procedemos o método de orientação individualizada
devido a alguns problemas de entendimento da proposta de produção individual. A correção dos
textos foi feita individualmente e todos deveriam fazer as correções propostas e enviar via email
para que, na última oficina, discutíssemos apenas questões de normatização dos textos para
publicação. Infelizmente isto não aconteceu porque muitos encontraram problemas no envio do
texto. Então, na última oficina (11/12), retomamos o método de orientação individual para que todos
pudessem enviar o texto posteriormente. Combinamos que quem não conseguisse enviar por
email, entregaria à coordenação das oficinas para que enviassem à ministrante para uma correção
final. Este processo foi lento, com alguns percalços e, ao término, 23 participantes entregaram o
texto final sobre algumas comunidades de Vera Cruz, particularmente aquelas em que os
participantes ministram aulas.
O que tenho a dizer sobre a experiência? Muito gratificante. As pessoas, independente das
dificuldades que têm com a escrita, têm importantes e reveladoras informações que precisam ser
contadas para as gerações futuras. Jacques Le Goff, estudioso da memória, diz que precisamos
rememorar, no presente, o passado, para que possamos transformar o futuro naquilo que

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esperamos que ele seja. E, não tenho dúvida, todos nós que acompanhamos as oficinas, queremos
uma educação no mais alto nível de qualidade. Tanto para mim, quanto para os participantes foi um
desafio. Sei das inúmeras dificuldades enfrentadas por muitos, desde driblar as tarefas domésticas
para chegar no ponto na hora em que o transporte passava, até encontrar uma solução quando ele
não chegava. Também, tenho convicção de, muitas vezes, ter sido “rígida” e até mesmo
intransigente, mas é nisto que acredito: no trabalho. Em muitos momentos, achei que a proposta
da publicação não aconteceria. Mas, aquelas pessoas que “suportaram” as minhas cobranças no
que diz respeito à frequência e cumprimento das tarefas, tenho certeza, sentirão orgulho pelo
resultado final dos textos ora publicados. Quero dizer a todos: obrigada pela oportunidade de estar
com vocês, de aprender e, principalmente, de ter contribuído para que pudessem produzir textos
tão significativos.
A emoção tomou conta de mim, várias vezes, durante a leitura e correção final dos textos.
São muitas histórias de amor, perseverança, coragem, luta para superar dificuldades e vencer
desafios. Algumas histórias, em particular, contaram a minha própria história de filha de costureira
e eletricista que investiram na minha educação. Como todos que escrevem os textos, também
escolhi ser professora. Foi a labuta diária de meus pais e, principalmente, o sonho de minha mãe de
ver os filhos instruídos, que possibilitaram, hoje, o meu título de “doutora em letras”, única de toda
a família, que, espero, ser exemplo para a nova geração. Outras me fizeram relembrar das tantas
vezes que vim “passar as férias na Ilha”, em casa de parentes. Inconscientemente, foram essas
vindas para cá no verão que, talvez, tenham marcado a minha memória a ponto de escolher a Ilha
como local para a minha atual morada.
Os textos que compõem a coletânea trazem à tona a memória, individual e coletiva, das

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muitas comunidades que constituem esse universo, denominado, popularmente, a Ilha. A memória
aparece como elemento de resgate de identidades locais. Aqui estão representadas, pelas falas das
autoras e autores, as localidades de Tairu, Cacha-Pregos, Mar Grande, Jiribatuba, Baiacu, Ponta
Grossa, Barra do Pote, Coroa, Barra do Gil, Itaparica, Aratuba, Catu, Juerana. São textos
autobiográficos ou biografias individuais e coletivas, que resgatam e reconstroem diferentes
aspectos da vida comunitária, as tradições locais relativas às atividades econômicas masculinas
como a pesca de arrasto, a produção de cal, a extração do coco, ou as femininas, como a produção
de tapetes, a mariscagem entre outras; as festas e manifestações populares, com destaque para a
festa de Iemanjá, as festas dos terreiros de candomblé, o Terno da Estrela ou Zé do Vale; as histórias
de antigos saveiristas, a denúncia da degradação ambiental, a chegada do Ferry Boat, o processo de
implantação das escolas e a história das primeiras professoras, entre tantos outros temas centrais
ou periféricos. As vozes que narram essas histórias são seus próprios personagens: os professores
de Vera Cruz.
A publicação deve ser material bibliográfico para as escolas da Bahia, particularmente, dos
municípios de Vera Cruz e Itaparica, e, ainda, servir de fonte de inspiração para o surgimento de
outras narrativas que fortaleçam e completem a memória dessas pequenas localidades que
tiveram suas histórias culturais, suas micro-narrativas, até então ofuscadas tanto pela negação
dessa identidade local quanto pela dívida educacional nunca paga pelo seu responsável, o estado
brasileiro. Felizmente, estamos numa outra temporalidade e torna-se, cada vez mais, urgente o
pagamento desse ônus, como reparação histórica para uma população marginalizada pela
desqualificação. Não é à toa que a Ilha apresenta um dos mais baixos IDH da Bahia. As narrativas
aqui revelam, ao contrário, pessoas altivas e histórias vitoriosas, desconhecidas ou não grafadas e,
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por que não dizer, nativas. Nelas, o ilhéu se verá, se reconhecerá, ao tempo em que se sentirá
valorizado, e alçado à categoria de sujeito que faz parte da história não contada desse país.

Mar Grande, 12/07/2011

Foto da Oficina ministrada em 02/10/10, na Biblioteca de Mar Grande

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Conceição, praia da emoção
Adriana Alves dos Santos

N uma tarde de sexta-feira, os cheiros envolventes do quitute baiano rasgam as lembranças


culturais multicoloridas, entranhadas no povo alegre e hospitaleiro. O vento a bater na proa
do barco, nas ruínas da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, despertara-me para uma incessante
busca da história da praia de Conceição, no município de Vera Cruz. As ruínas da referida igreja é
uma atração construída no século XVIII pelo padre Inácio Alves Pereira e outros jesuítas. Ainda hoje,
a comunidade participa das missas, recebe a benção e depois vai à praia curtir o verão.
Na praia de Conceição, vemos areias extensas, brancas, e na vazante apresentam-se piscinas
naturais. Tocada pelo som da maré que anuncia a inclusão do amor, saboreio o alimento com sabor
picante. Ao entardecer, a brisa do mar toca o corpo suado do pescador que busca sua rede no mar.
Os ensaios, nos finais de semana, com samba de roda, mostram a participação de crianças,
adolescentes e idosos que batem as mãos, os pés e rodopiam ao som do atabaque.
Anualmente, em dezembro, o céu se encobre de aviões que procuram a pista de pouso. Na
sede do Aeroclube da Bahia, uma movimentação de aeronaves no período de ritmo quente, espera
a chegada do neto de seu Manuel Jacinto Alves, o jogador José Fábio Alves de Azevedo, revelado
pelo Bahia, apelidado por Fabão, que compra peixes na Colônia de Pesca e Aquicultura. Esta
entidade apoia projetos sociais como a Regata Mirim e a Baraúna Capoeira Angola, com o Mestre
Luiz Preto.
Durante o ano inteiro, as nuvens coloridas no céu buscam a liberdade dos pára-quedistas, nos

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dias iluminados e ardentes de sol. Fico a olhar, do jardim da minha casa, a passarela do mais
sofisticado Club Med, pólo de devaneios dos turistas que dançam aos ritmos alucinantes e
aplausivos do berimbau, na ilha de Itaparica.

Fotos da Praia de Conceição.

Manguezal Hotel Igreja

Barco dos pescadores Pescador construindo o seu barco


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A localidade de Tairu
Ângela da Silva Moreno

S egundo moradores, a origem do nome da localidade de Tairu se relaciona com o nome de um


fruto que brota na praia, o “airu”. As pessoas juntavam-se para colher essas frutas e assim
batizaram o nome da localidade: Tairu. Trata-se de um bairro que tem o nome registrado no mapa
da Ilha de Itaparica, mais precisamente no município de Vera Cruz. Na década de 1990, a cidade não
tinha água encanada, luz, telefone, pavimentação nas ruas e a estrada era de chão. Não existia
transporte, as pessoas andavam longas distâncias a pé; não tinham postos de saúde, escolas
públicas infantis, só a Escola Arte é Saber e, assim, as crianças só eram matriculadas a partir dos sete
anos de idade. Hoje, a localidade está melhor, bem atualizada, com tecnologia, escolas e outros.
Conversando com um morador, ele falou que a pesca, antigamente, era bem farta. Com a
rede de arrastão na praia, os pescadores pegavam toneladas de grandes peixes e, para carregá-los,
era preciso usar caçamba. Ele disse, também, que na praia tinham muitas tartarugas e encalhavam
baleias. Mas, com o passar do tempo, o pescado foi ficando escasso, pois o homem tem interferido
na produção. Um dos fatores mais graves é a pesca predatória, pesca com bomba. Em época de
reprodução, no mangue pegam os caranguejos pequenininhos.
Outra preocupação é com algumas marisqueiras que retiram as ostras cortando os galhos
dos mangues, isto é, destruindo a natureza. Na praia, em algumas localidades da ilha, outros
pescadores tiram polvos com “Q-boa”, prejudicando o habitat de seres vivos como algas, búzios e
outros, além de mergulhadores que não deixam esses moluscos crescerem. Além do aquecimento

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global, que tem prejudicado o desenvolvimento de peixes, ostras, moluscos e siris, o aquecimento
das águas provoca a diminuição de tamanho dos animais. Enfim, é preciso ter uma consciência
crítico-construtiva que vise a cuidar, conservar e melhorar as condições do nosso planeta para
habitação das gerações vindouras.

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Terno da Estrela: o resgate da cultura de Jiribatuba
Ana Maria Silva Carmo

M eus pais influenciaram a minha escolha. Nascidos e criados em Jiribatuba, eles me ensinaram
a ver a localidade não como ponto turístico, mas sim como minha segunda casa. Tenho
muitos parentes que moram lá, e sempre passei as férias com a minha família. Desde pequena,
frequentando um lugar, aprende-se a amá-lo e valorizar sua comunidade, suas tradições e
idiossincrasias.
Os jovens de hoje não valorizam as histórias de suas comunidades, suas tradições; os de
Jiribatuba não são diferentes, muitos não conhecem as histórias que permeiam a comunidade. Este
texto apresenta como principal objetivo visibilizar uma parte da cultura de uma localidade de Vera
Cruz, mostrar aos jovens residentes desta e de outras localidades a tradição do terno, culto católico
de Natal, trazido para o Brasil ainda nos primórdios da formação da identidade cultural brasileira, e
que, ainda hoje, se mantém vivo nas manifestações folclóricas de muitas regiões do país, destaca
ainda a importância de se conhecer e valorizar as raízes identitárias da comunidade onde se vive.
Segundo a tradição católica, quando Jesus nasceu, surgiu no céu uma estrela muito brilhante.
Então, os três Reis Magos do Oriente, que estudavam as estrelas – Melchior, Gaspar e Baltazar –,
perceberam que aquela estrela luminosa, como jamais tinham visto, trazia uma mensagem: a do
nascimento do Rei dos Judeus. E, acompanhando a trajetória que a estrela indicava, chegaram a
Belém, após 13 dias de viagem. Encontraram o menino e sua mãe, fizeram atos de adoração e
ofertaram seus presentes, ouro, significando riqueza; incenso, significando sabedoria e mirra,

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indicando o poder que a criança teria sobre o mundo. O acontecimento é comemorado no dia 6 de
janeiro, como Dia de Reis. Nesse dia, uma festa, trazida para o Brasil pelos jesuítas portugueses,
relembra a passagem da história cristã. Aqui chegando, misturou-se com nossa cultura e tornou-se
mais uma de nossas manifestações folclóricas e passou a ser denominada Terno dos Reis.
Em alguns países de origem latina, especialmente aqueles cuja cultura tem origem
espanhola, o Terno dos Reis passou a ser a mais importante data comemorativa católica, mais
importante, inclusive, que o próprio Natal. No Brasil, a data, e consequentemente a comemoração,
é ignorada por muitas pessoas, sendo o dia 25 de dezembro muito mais celebrado. Mas existem
muitos lugares em que essa tradição é valorizada, entre eles, Jiribatuba.
Terno da Estrela é o nome atual dado ao Terno de Jiribatuba. Os nomes foram modificados no
decorrer do tempo, dentre os nomes utilizados temos Gavião, Ternos das Flores e Terno das
Orquídeas. A mudança de nome deve-se à influencia de outras localidades, talvez como forma de
identificar cada grupo, diferenciando-os dos demais. Na Lapinha, por exemplo, bairro de Salvador
onde a tradição também é mantida, o nome escolhido foi Terno da Anunciação.
O Terno em Jiribatuba, apesar de ter sido uma tradição criada há muito tempo, levou alguns
anos sem ser celebrado. Segundo moradores locais, terminou por falta de pessoas para continuar.
Mas, em 2007, algumas integrantes da comunidade resolveram reviver essa tradição e, desde
então, o Terno da Estrela sai pelas ruas de Jiribatuba a alegrar o povo; em outros períodos do ano,
faz apresentações nas demais localidades da Ilha, levando o nome de Jiribatuba e mostrando a
importância de se conhecer as tradições.
O Terno de Jiribatuba é composto, em sua maioria, por mulheres, o que também é uma
peculiaridade local. Na celebração, têm as pastoras, a estrela, a porta-estandarte, as ciganas e os
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três reis, cada integrante tem um papel na composição do terno. As pastoras cantam ao redor da
estrela que simboliza a indicação que levou os Reis Magos até o local onde Jesus nasceu; a porta-
estandarte representa Maria, a mãe de Jesus, canta os hinos e segura o símbolo do Terno, uma
estrela; as ciganas representam as dançarinas que acompanhavam o menino Jesus e cantam suas
músicas em torno dos três reis que representam os três Reis Magos, homenageados na celebração.
O Terno sai da igreja à meia-noite, hora do nascimento de Jesus, depois de cantarem e
dançarem na igreja, entoando músicas de adoração ao Senhor. Vejamos um trecho de uma das
músicas:
“Nos prostramos reverentes
Para adorar o onipontente
O nosso terno da estrela do oriente
Que festejar veio também”
As músicas seguem um padrão, com algumas variações, por exemplo, a inserção do nome do
terno da comunidade, nesse caso Terno da Estrela.
Depois da adoração, as participantes seguem para as ruas, onde as pessoas as aguardam para
cantarem e celebrarem o nascimento de Jesus. Enquanto passam pelas casas, todos são recebidos
com alegria, bebem e comem junto com os moradores; durantes estes momentos, pedem dinheiro
para ajudar na comemoração do ano seguinte. Ao percorrerem as ruas, cantam as músicas,
convidando o povo a acompanhá-los. Vejamos um trecho de umas das músicas de chamamento:
“Senhora, dona de casa de alta consideração
Venha nos abrir a porta

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Pois tem grande coração
Acordai quem estás dormindo
Que a noite pouco resta
É o terno da estrela
Que hoje está em festa”
Depois da comemoração, todos seguem para suas casas, felizes por terem resgatado uma
tradição tão bela, cientes de estarem, de alguma forma, celebrando a comunidade em que vivem.
Pensar no nosso lugar de origem é refletir sobre nós mesmos, é percorrer os caminhos de
nossas vidas. Jiribatuba também faz parte de mim, apesar de não ter nascido no município, tenho
orgulho dessa terra. Lembro das histórias contadas por meus pais, meus avós e, também, minhas
próprias vivências, os banhos de mar no Bom Jardim, os passeios na praça...
Conhecer a tradição do Terno de Jiribatuba é adentrar na memória cultural desse município.
Quais as histórias de suas comunidades? Sabe contá-las?

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A comunidade de Baiacu
Áurea Menezes da Cruz

A Vila de Pescadores de Baiacu é uma comunidade pertencente ao município de Vera Cruz,


situada na ilha de Itaparica. É um recanto rico em histórias e natureza, com seu parque
ecológico, manguezais de incontáveis belezas naturais e a antiga Igreja de Nosso Senhor da Vera
Cruz, catalogada entre as primeiras edificações religiosas do país, por onde passaram Padre Manuel
da Nóbrega e José de Anchieta. Distante de Salvador aproximadamente 40 quilômetros, está na
contra costa da ilha, possui variação vegetal pertencente a província atlântica: manguezal, restinga
e mata secundária.
A localidade de Baiacu é remanescente da primeira ocupação da ilha de Itaparica, em 1560. Na
concepção de estudiosos, como Ubaldo Osório, o nome da localidade de Baiacu tem origem no
pescado de mortífero veneno, descrito por Pero de Magalhães Gandâvo, na História da Província de
Santa Cruz. A comunidade de Baiacu recebe esse nome em virtude de se relacionar à quantidade
significativa de peixes da espécie baiacu, que ali existia na época da colonização e ficou assim
designada e conhecida até a atualidade. Por sinal, o nome Baiacu vem sofrendo uma variação
fonológica ou mudança em curso para o nome Baiaco. As pessoas não falam o nome corretamente
porque, dizem, a palavra Baiacu dá uma rima.
Baiacu é a mais antiga e importante colônia de pescadores que tem a ilha de Itaparica. Em
1560 (séc. XVI), o jesuíta português Luis da Grã e seus companheiros de catequese aportaram na
ilha e se instalaram em uma aldeia indígena localizada no alto de uma colina. Ali construíram a

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segunda igreja católica do Brasil, sob a invocação do Nosso Senhor da Vera Cruz. Esse templo foi
construído à base de óleo de baleia. Ele está em estado de arruinamento. Encontra-se localizado em
um cemitério, um dique – primeiro reservatório de abastecimento de água da ilha. Mais de 400 anos
depois, o alto da colina, onde haviam aportado os portugueses, foi denominado Vila de Baiacu.
Com a expulsão dos jesuítas, os habitantes, aos poucos, foram abandonando o povoado de
Vera Cruz, mudando para terras baixas, mais próximas do mar, formando, então, a vila que recebe o
nome de Baiacu, como dito, devido à predominância de um peixe da mesma designação: baiacu, ou
conforme era chamado pelos índios tupinambá, mayacu.
Baiacu possui um canal de águas tranquilas e manguezais. A pesca de xangó – um peixe
minúsculo, conhecido em alguns lugares como pititinga – baiacu, tainha, camarão, siri, aratu e
diversos tipos de mariscos é a base da economia e do sustento do seu habitante.
Eu sou moradora da comunidade de Baiacu desde que nasci, há trinta e seis anos. Já pensei
em morar em outro lugar para estudar, mas não tive coragem de abandonar a minha família e a
minha terra natal. Então, resolvi me acomodar e continuar desfrutando do lugar calmo que é o
Baiacu.

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História de Cacha Pregos
Cristiane dos Santos Cruz

L ocalizada a 31,5 milhas náutica de Salvador, Cacha Pregos, parte do Município de Vera Cruz,
igual às outras localidades, dispõe de uma rica história sobre o seu surgimento. Anteriormente,
seu nome, escolhido pelos moradores da época, era Monte Alegre, pois aqui morava um povo
muito festeiro.
Com o passar do tempo e com a chegada de pescadores de outros lugares, o nome mudou:
“CACHA PREGOS”. Este nome surgiu porque existia um lugar próximo da localidade onde os
peixes, antes chamados de peixe prego e hoje peixe agulha, ficavam em cardumes e não
conseguiam sair por causa da maré baixa. Esses peixes vinham pelo rio Jaguaripe, que deságua na
praia, facilitando o trabalho dos pescadores que, às vezes, pegavam os peixes com as mãos, sem a
ajuda de nenhum objeto de pesca. Este lugar era tido como uma grande caixa de peixe sendo daí
que surgiu o nome Cacha Pregos.
Esta comunidade, como as outras da ilha de Itaparica, no seu surgimento tinha muitos
problemas: não tinha água tratada nem energia elétrica. O primeiro prefeito foi quem providenciou
um gerador — que tinha hora para ligar e desligar e ficava em uma praça, hoje chamada Praça do
Motor — para a população não ficar totalmente no escuro, à luz de velas ou de candeeiros. Já a
água, para o consumo doméstico, vinha de poços subterrâneos, escavados nos fundos das casas,
de onde surgia uma água salobra, que era utilizada para os afazeres domésticos.
A água que era utilizada para o consumo humano, os moradores tinham que pegá-la de

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canoa, em um lugar chamado Fonte do Mato. Os moradores não faziam esse percurso só para o
consumo, mas, também, para o seu sustento, vendendo latas de águas para os veranistas. Outra
fonte de sustento era vender cocos secos e verdes, produtos que, nesta localidade, já foram até
exportados para outros lugares. O belo manguezal e a praia servem de locais onde a população de
Cacha Pregos e de outros lugares vem, ainda hoje, buscar sustento.

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Ponta Grossa: um lugar em Vera Cruz
Elienai Lima de Jesus

A comunidade de Ponta Grossa localiza-se na contra costa do município de Vera Cruz. São 7,5 km
de estrada de puro barro até chegar em Barra Grande, localidade vizinha, via térrea, e por via
marítima as comunidades vizinhas são Campinas, Baiacu e Matarandiba. A localidade tem em média
450 a 600 moradores e, aproximadamente, 150 a 200 casas. Todos os habitantes da comunidade
são filhos, netos, sobrinhos, primos de pescadores ou de marisqueiras, que sentem orgulho de
morar nessa área e manter viva a arte milenar da pesca, profissão exercida por discípulos de Jesus
Cristo, caracterizada pela união, força, coragem e respeito à mãe natureza, mas que ainda é vista
por alguns com desprezo, desrespeito, acredito que por falta de conhecimento.
O que me levou a pesquisar esta comunidade tão simples, mas, ao mesmo tempo, tão bela, foi
justamente a vontade de mostrar, para outras localidades do litoral veracruzense, que na contra
costa não tem apenas lama, manguezal e animal, tem, também, pessoas de costumes simples, cuja
profissão é ser pescador ou marisqueira e do mar retiram todo o seu sustento. Os tipos de mariscos
encontrados aqui são chumbinho, ostra, siri, aratu, lambreta, peguari e sururu, além de vários tipos
de peixe.
Ao entrevistar alguns moradores e pescadores da comunidade sobre o porquê do nome
Ponta Grossa, alguns disseram que têm várias versões para o nome escolhido e contam que,
segundo uma delas, antigamente, por essa redondeza, passavam muitos barcos de cargas para
vender mercadorias e, sempre que podiam, atracavam seus barcos em uma ponta de terra que ia de

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encontro ao mar. Então, começaram a chamar esse local de Ponta Grossa e começaram a construir
casas feita de palha, depois feitas com barro (as famosas casas de taipa), para o descanso, dando
início à expansão da localidade como é conhecida até hoje.
Perguntei, também, se eles gostavam de fazer parte da comunidade e praticar a profissão de
pescador ou de marisqueira. Eles responderam que sentem um imenso prazer em morar na
localidade e adoram exercer a profissão, porém, é uma atividade que exige muito esforço físico e é
pouco valorizada. Comentaram, ainda, que agora começam a respirar com mais tranquilidade por
que hoje tem a Colônia de Pescadores Z-11, situada na comunidade de Baiacu, que organizou todos
da área de pescado e marisco e vem lutando em prol da classe, buscando o cumprimento dos
direitos garantidos por lei, antes tão massacrada pelo governo, que nem sequer reconhecia a
atividade como profissão. Perguntei para eles o que na comunidade os moradores gostam, o que
não gostam e o que gostariam que houvesse. Todos responderam que na comunidade tem uma
escola do Ensino Fundamental 1, um mercado, três igrejas, sendo uma católica onde funciona a
escola de Educação Infantil, e duas evangélicas, um posto médico desativado, uma sede
comunitária, onde funciona o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), atendendo
crianças de 6 a 16 anos de idade, no turno oposto ao da escola; três bares e a Ong Manguezal Meu
Quintal, que faz um trabalho de educação ambiental com foco na preservação de manguezais,
berçário do mar, tão extenso na comunidade e apreciado por aqueles que vêm nos visitar.
Quanto ao que não gostam, responderam “não gostamos, é ver nossos jovens sem uma
perspectiva de trabalho. Já o que queremos é o término da construção da praça, local de lazer das
crianças, jovens e adultos, que todos utilizam o espaço para jogar dominó e muita conversa fora,
admirando a magnitude da lua; uma biblioteca, para que os estudantes possam fazer suas

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pesquisas e ler bons livros; cursos profissionalizantes para todos os jovens da comunidade e a
melhoria do campo de futebol, para que se possam praticar esse esporte, aprovado por aqueles
que curtem um babinha, momento de pura descontração, garantindo energia renovada para pegar
no trabalho, no dia seguinte”.
Ponta Grossa, por ser afastada das outras localidades, apresenta ainda um aspecto muito
rústico, de muita mata, apicuns (campos de areias), ótimos para fazer caminhada, manguezais
cheios de vidas e um povo muito hospitaleiro, características de um lugar interiorano, comparado
às outras comunidades com melhor infraestrutura.
Quem vem conhecer o local raramente se arrepende, pois a comunidade passa para os
visitantes uma áurea de tranquilidade, digna de uma vila de pescadores e marisqueiras que sentam
em suas portas, para catar os mariscos, que tanto alimenta o turista. Se você tiver vontade de
passar alguns momentos de puro relaxamento e descontração, venha conhecer esse lugar, ele não
apresenta luxo, mas tem muito a oferecer, como por exemplo: conhecer e mariscar nas coroas
espalhadas por todos os lados da contra costa; passear nos apicuns entre os boinhos (espécie de
crustáceo pequeninos), encontrado nessa região; fazer passeio de canoa ou de barco de fibra pelos
arredores; observar o manguezal e, se quiser, caminhar dentro dele ou, simplesmente, tomar uma
bebida com os amigos, deliciando-se com algum fruto do mar, preparado no Bar do Ito, na rua
principal ou no Bar do Dilcinho, situado na decida do porto, de frente com a maré .
Enfim, esta é a minha comunidade, “a menina dos meus olhos”, que apresenta o por do sol
mais bonito que já vi, exalando o mais saudável perfume: “a liberdade”, tão desejada por muitos e,
no entanto, oferecida para poucos.

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Fotos de Ponta Grossa.

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Memória de Tairu
Eliene Chagas da Silva

N o momento da escrita desse texto, vêm à minha memória lembranças da localidade de Tairu. Há
trinta e quatro anos, um lugar quase primitivo, uma comunidade humilde, de descendentes
africanos e indígenas. Lugar de difícil acesso que, para chegar à praia, era preciso seguir trilhas, em meio
aos matagais ou atravessar um pequeno rio. Chegando ao outro lado, nos deparamos com coqueirais e
dunas de areias, onde havia pequenos barracos de palhas com varas e madeira para segurar o seu teto;
canoas e pouco material para pequenas pescas; uma praia deserta e de ondas fortes.
Lembro de três ruas: a principal, que dava para Cacha Pregos; uma transversal, que dava para a
rua hoje chamada de Helenita Lima, onde se encontravamalgumas casas de taipa, afastadas umas das
outras, um número pequeno de casas de tijolos, uma igreja paroquial, um chafariz e coqueiros nas ruas
embelezavam a localidade de Tairu.
À noite, sem energia, o céu era uma paisagem das mais belas que já pude apreciar, com milhares
de estrelas. Fiquei maravilhada quando me deparei com esse cenário lindo, pois em Salvador não tinha
visto beleza igual!
Hoje, Tairu sofreu mudanças positivas na sua economia, na sua paisagem e na sua educação. Uma
evolução. Naquela época tudo era muito precário. Conversando com um nativo chamado Luis Lima,
residente em Tairu, ele me perguntou se eu sabia o que era goga e se eu já tinha provado o prato.
Respondi que não e ele disse que, feita com café e farinha, essa mistura alimentara muitas famílias no
passado e, quando “a maré não estava para peixe”, comiam carne do coco e saboreavam sua água
fresca e doce.
Ele comentou, ainda, sobre sua experiência escolar, relembrando que a primeira professora de
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Tairu foi a sua tia Lindalva: “eu estudava com ela, na casa dela, e aprontava. Quando não realizava as
atividades, ela me deixava de castigo”. O morador falou que gostava de ficar de castigo, pois a
professora só o dispensava com um bom prato de comida gostosa e, segundo ele, naquele tempo, era
muito difícil a vida para todos da comunidade. Hoje, entretanto, afirma que tudo evoluiu e, quanto à
alimentação, ele pode até saborear uma picanha. Outra professora, também, o ajudou muito: Pró
Cleuza, que chegou a Tairu ainda nos tempos difíceis da família Lima.
Atualmente, existe um grande número de pessoas que vieram de outros municípios próximos de
Vera Cruz. A população de Tairu aumentou e conta com uma quantidade de escolas para suprir as
necessidades desta comunidade. A primeira escola, depois da escola da Tia Lindalva, foi construída no
antigo chafariz, chamada Voluntárias Sociais, que atende o Ensino Fundamental I e, na mesma rua, a
Escola Paroquial, que hoje também atende o mesmo público. Depois veio o Ginásio Municipal de Vera
Cruz, que atende ao Ensino Fundamental II, e mais duas escolas, conveniadas com a prefeitura de Vera
Cruz, que atende à Educação Infantil: a Escola O Senhor é nossa Justiça, que fica na rua de cima, próxima
à Avenida Beira Rio, e o Centro Educacional Evangélico Inovação (C.E.E.I.), localizado na rua da rodagem
de Cacha Prego, que atende também, crianças de creche e realiza trabalho voluntário. Existe, também, a
Escola Arte e Saber, instituição particular, com endereço na rua principal de Tairu, que oferece da
Educação Infantil ao Ensino Fundamental II.
Fico feliz por pertencer a Tairu e participar da educação dessa comunidade. Há sete anos, decidi
ser professora e resolvi dedicar-me à realização do projeto educativo que visa valorizar pessoas e suas
respectivas culturas. A escola onde trabalho surgiu nessa mesma época: uma associação chamada
Centro Educacional Evangélico Inovação. No inicio, era só educação infantil mas hoje abrange o Ensino
Fundamental I, em Aratuba, contribuindo para gerar renda e formar pessoas desta comunidade que
adotei como minha gente e meu povo.

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Pesca e festa em Tairu
Ivone Silva Dórea

A palavra motivação, segundo o dicionário de Coutinho e Ribeiro, publicado pela Companhia


das Letras, significa: 1) Ato de motivar; 2) Exposição de motivos ou causas; 3) O que explica ou
motiva uma coisa; 4) Estímulo, interesse. A partir da quarta significação, posso explicar minha
motivação sobre a temática “a pesca na localidade de Tairu”: a adoração que os pescadores sentem
pelo mar, pela pescaria, pela maré e todo o envolvimento emocional e religioso de uma vida ligada
ao mar.
Escreveu Ubaldo Osório, em seu livro História e Tradição da Ilha de Itaparica, que os filhos da
ilha “têm um caso amoroso pela ilha em que nasceram. Além da terra, a canoa, a mulher e os filhos
são os objetos dos seus cuidados”. A constatação dessa afirmativa sustenta minha total admiração
ao povo deste paraíso baiano.
Os índios Tupinambá foram os primeiros habitantes da ilha, daí a origem do seu nome. Conta
uma das lendas que a palavra Itaparica vem do Tupi e significa “cerca feita de pedras”, por causa
dos arrecifes que contornam toda a costa da ilha. Mas, há dúvidas em torno de topônimos sobre o
nome da Ilha. Teodoro Sampaio apresenta "itaparica" de origem tupy significando cerca feita de
pedra; Ubaldo Osório, diz que é uma corruptela da palavra "Caparica" povoação da margem do Tejo
e, finalmente, J. M Macedo propõe derivar-se de "Taparica", nome do chefe indígena pai da índia
Paraguaçu, esposa de Diogo Alvares, o Caramuru.
A beleza do lugar foi reconhecida desde o seu descobrimento. Em 1763, Itaparica, que era a

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maior ilha da colônia, chamou a atenção pela vegetação exuberante, manguezais, restingas e
belíssimas praias de águas cristalinas. Foi, então, incorporada aos bens da coroa, iniciando, assim, o
seu desenvolvimento econômico com a plantação de cana de açúcar, trigo e criação de gado, ainda
no século XVI. Depois veio a pesca das baleias em escala industrial, a maior atividade econômica nos
séculos XVII e XVIII. Neste período, antigos e belíssimos sobrados, existentes até hoje, hospedaram
imperadores brasileiros, como D. Pedro I e D. Pedro II.
A Ilha de Itaparica nasceu assim no imaginário da população nativa: um local cheio de beleza,
mistérios, magia e muitas histórias sendo contadas nos becos, nas matas, nos bares e nas varandas.
Localizada a 13 km de Salvador( via Ferry-boat), é a maior das 56 ilhas da Baía de Todos os Santos e
possui mais de 40 km de praias, com abundante vegetação tropical, onde predominam
exuberantes coqueirais e onde há muita história para contar, tendo defronte a cidade de Salvador,
ao longe, separada pela Baía de Todos os Santos. “A ilha”, como é carinhosamente chamada pelos
moradores, veranistas e turistas, tem 246 km², com habitantes distribuídos em dois municípios:
Itaparica, onde se localiza a única fonte de água hidromineral à beira mar das Américas, e Vera Cruz,
que se dá o luxo de ter a sede com outro nome, assim: Vera Cruz, capital: Mar Grande.
Entre Itaparica, sede do município, e Cacha Pregos, pontos extremos da costa da ilha,
existem praias belíssimas, com ótimas condições para banho e segurança. Uma linha de recifes lhe
serve de quebra mar, diminuindo a força das ondas e formando um viveiro natural de polvos,
lagostas e outros mariscos, sendo que a maioria destas praias tem águas rasas, mansas e mornas.
Percebe-se que em toda história e em fontes diversas a respeito da Ilha existem referências à
pesca e ao mar, com a praia de Tairu não poderia ser diferente. São histórias ligadas ao surgimento
da localidade e aos feitos dos pescadores, festas religiosas e profanas da comunidade que
começam ou terminam no mar.
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A Praia de Tairu é umas das praias da ilha e do município de Vera Cruz. Localiza-se a mais ou
menos 22 km de distância de Bom Despacho, fica depois de Barra Grande e antes de Aratuba.
Na década de 1980, os pescadores desta localidade utilizavam canoas a remo feitas a partir do
tronco de uma única árvore . Este meio de locomoção para a pescaria é uma herança dos índios
tupinambás, que habitavam a ilha quando aqui chegou Diogo Alvares , o Caramuru.
No passado, as redes de pesca eram confeccionadas com cordão grosso pelos hábeis
pescadores e depois de prontas eram mergulhadas em um coxo de madeira, onde havia um líquido
feito com a entrecasca da aroeira. A rede, assim, após ser tingida, teria uma durabilidade maior.
Os mestres eram o Sr. Barreira, o Sr. Carlinhos, Ceará e Lai. Segundo o dicionário de Coutinho
e Ribeiro, mestre é o comandante de pequena embarcação, contudo, o pescador Ceará,
complementa dizendo que o título de mestre é dado ao pescador que sabe o ponto do peixe, sabe
navegar e se livrar da tempestade. O pescador Esmeraldo Lima continua explicando que o mestre
sabe o mês para cada peixe, o local onde o pescado se encontra e a posição da maré ideal para cada
tipo de pescaria, sendo, também, responsável pela divisão do pescado entre os pescadores e
tripulantes da embarcação. Quando possível, oferta os peixes pequenos à comunidade onde vive.
São homens que servem como referência de boa conduta aos moradores locais .
O ofício ou arte de pescar somente era transmitido aos filhos de pescadores que mostrassem
interesse e aptidão para a pescaria. Um exemplo é o do pescador Esmeraldo Lima de quarenta e um
anos, que começou a pescar com o pai, o mestre Carlinhos, quando tinha doze anos. Interesse e
dedicação são características fundamentais para o aprendizado deste ofício que possui variadas
formas de trabalho. Existe a pesca com linha, a pesca com rede de arrasto, a pesca de mergulho
com compressor, a pesca com tarafa, dentre tantas outras.
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Arrastão ou puxada de rede
O arrastão é uma tradição nos meses de novembro, dezembro e janeiro quando o mar em
Tairu fica propício à puxada de rede. Nesse tipo de pescaria, a rede é colocada em volta de um
cardume e o cabo do fundo pode ser puxado até formar um saco, onde todo o peixe fica
aprisionado. Esta forma de pescar é artesanal, e o pescado serve para consumo e para
comercialização.
Na localidade de Tairu ocorre esse tipo de pesca contando com a participação de parentes
dos pescadores e da comunidade em geral. Na rede vêm vários tipos de peixes de pequeno e médio
porte, como pititinga, sororoca, robalo, bicuda, camarão, dentre outros. A divisão é feita pelo
mestre em duas partes onde 50% do pescado vai para o dono da rede e os 50% restantes é dividido
entre os pescadores que ajudaram a puxar a rede.
A comunidade também ajuda a puxar a rede e é presenteada com os peixes pequenos que
são tratados à beira mar. É um momento muito alegre em que todos se encontram e festejam a
fartura da pescaria, motivam as crianças a participarem da pesca familiar, reúnem parentes que
moram em outras localidades da ilha, propiciando conhecer novas pessoas que podem ser
veranistas ou turistas; enfim, é um momento de socialização fraternal.
Atualmente, a localidade de Tairu possui quatro barcos de madeira que funcionam com
motor e uma canoa de fibra motorizada cujos mestres-pescadores são Tinho, Jailton, Carlos, Pote e
Sheu. A pesca através da puxada de rede começa na localidade com os mestres-pescadores se
revezando no mar: cada dia da semana pertence a um barco. Assim, todos pescam e todas as
famílias têm oportunidade de participar da pescaria. Apesar da pesca ser farta, durante a maior

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parte do ano, os pescadores não vivem exclusivamente da pesca, todos exercem outra profissão e
pescam em momentos oportunos.
Festa dos pescadores
Os negros trazidos da costa africana nos meados do século XVII, “pelo capitão de navios
Pedro Athaide, introduziram, na ilha, o candomblé, com os seus Babalaôs, seus Axôguns e as suas
Ialorixás”. Iemanjá é considerada a mãe de todos os orixás e de tudo o que existe na terra. Apesar
da modernidade, a poderosa Senhora das Águas ainda tem seu dia comemorado em dois de
fevereiro. Nesse dia, em Tairu, os adeptos do culto afro, turistas e curiosos participam da festa para
a entrega do presente à Rainha do Mar. A praia é enfeitada com fitas brancas e azuis, são dispostos
balaios enfeitados com fitas e flores para que as pessoas coloquem os mais variados presentes,
bilhetes, cartas, jóias, perfumes, sabonetes e espelhos – já que a mãe das águas é uma entidade
famosa por sua vaidade e beleza. São entoadas cantigas e o perfume de água de cheiro, misturado
com alfazema, circula no ar tornando a atmosfera mística e envolvente.
Os fogos de artifício anunciam o momento de embarcar a imagem e os balaios com os
presentes nos barcos que irão seguir em procissão marítima até um ponto seguro, afastado da
praia, onde os balaios serão depositados no mar. Segundo os pescadores e os participantes,
quando o presente é aceito por Iemanjá, os balaios afundam espontaneamente. Existe, nesse
momento, uma magia contagiante. Impossível resistir a fazer um pedido ou, simplesmente,
agradecer por poder participar de um momento místico, em que a fé é a única explicação para tanta
beleza. Também é difícil resistir a um mergulho em pleno alto mar.

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Fotos de Tairu.

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A chegada do Ferry Boat em Coroa*
Jacira Moreira de Freitas

S abe-se que os povos da Ilha são de origem negra, branca e dos índios Tupinambá. Aqui chama a
atenção essas tribos que nos deixou de herança a constituição física, costumes e,
principalmente, a atividade da pesca. É bom lembrar, também, que o Município de Vera Cruz
tornou-se emancipado em 31 de julho de 1962, e que o povoado de Coroa faz parte da história deste
município. Segundo pesquisa, o povoamento da Coroa começou com as famílias Moreira, Teixeira,
Bahiense, Nascimento e Freitas, que possuem documentação de terras datada de 1915.
Coroa está localizada entre dois povoados: Barra do Gil (terra da fazenda de Sr. Francisco de
Araújo) e o Mangue do Botão, pequenino lugar do povoado de Barra do Pote que não aparecia no
mapa e, ainda hoje, é separada destas localidades por rios ao norte e ao sul. O povoado de Coroa
tem 2.500 km de praias acidentadas, com muitas pedras, não só nos Arrecifes da Pinauna, como na
parte rasa, além de ter uma enorme coroa de areia, de onde lhe veio o nome.
Como sempre foi sabido, “o indo e vindo” das pessoas da ilha para Salvador, inclusive dos
coroeiros ou coroenses, como somos chamados, acontecia em transportes marítimos: lanchas à
gasolina e saveiros à vela de içar e de pena, que, por anos, faziam a travessia regular entre a ilha e
Salvador. A chegada e partida, por via terrestre, surgiu através da BA 001, em 1969, pela ligação da
Ponte do Funil e se tornou outra opção para chegar à Salvador. Posteriormente, em 07/12/1972, a
implantação do sistema Ferry Boat foi o “boom” que mudou a ilha e, por conseguinte, a Coroa. Toda

* Este artigo é fruto das anotações no diário da amiga “Maria”, 76 anos, veranista que virou moradora da localidade de Coroa.
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Ilha, também, se abriu para os avanços que, enfim, chegaram em Coroa: a energia elétrica (1972), a
água encanada (1973) e a instalação de telefone (1978) em algumas casas.
Antes do Ferry, todo abastecimento da ilha era por via marítima, inclusive os caixões de
defuntos. Como não havia energia, os pescadores traziam gelo de Salvador, via lanchas, cobertos
de serragem, para gelar o pescado que era vendido na cidade. As mulheres sofriam em sua
atividade econômica, devido à falta de energia. Algumas delas costuravam tapetes à mão, à luz de
vela, para alguns tapeteiros em Salvador — Kennedy Bahia era um destes — e, apesar do esforço,
eram muito mal pagas. Além desse trabalho remunerado, como em outras comunidades as
mulheres trabalhavam muito na esfera doméstica, retiravam e carregavam, das cisternas, cavadas
nos quintais, a água necessária para sobrevivência de toda a família. Era água salobra, só usada para
o banho e asseio da casa. Não servia para beber nem para lavar roupa. Elas, então, se
responsabilizavam, ainda, por buscar água para beber e cozinhar, com latas na cabeça, no rio
conhecido como Catita.
As novidades que o Ferry trouxe continuaram acontecendo: na Educação, a maioria das
escolas tinha apenas o Ensino Fundamental, então em Tairu chegou o Ensino Médio e um curso
profissionalizante, este último hoje não existe mais. Havia a Escola Professor Jorge Calmon, que era
metade municipal e a outra metade estadual, mas hoje já está totalmente municipalizada; e ainda
duas escolinhas paroquiais, mantidas pela Igreja Católica para crianças de dois a seis anos de idade.
Quanto à saúde, só existia o Hospital Maria Amélia Santos, em Mar Grande, hoje ainda em
funcionamento; os postos de saúde eram precários e funcionavam nas principais localidades. O
posto médico de Coroa recebeu o nome de um de seus filhos: Dr. Dermeval Avelar.
Outro ponto importante, que deve ser levado em conta, foi o aparecimento das seitas e

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religiões. Antes, existia apenas a Igreja Católica e o único Terreiro de Candomblé de Dona Antonia.
Hoje, temos as protestantes: Batista, Adventista, Testemunha de Jeová e outras que agora não
lembro os nomes. Finalmente lembro que a Coroa, na sua simplicidade, faz parte do contexto da
minha vida: aqui nasci, cresci, estudei. Trabalho, sou professora, vivo com a família, feliz e
aproveitando todas as mudanças que vem ocorrendo nessa localidade.

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Memória, história de vida e formação docente dos
professores do município de Vera Cruz
João Carlos Pharaoh

S egundo Freire, o homem, um ser inacabado, toma consciência do seu inacabamento e busca,
através da educação, realizar plenamente sua pessoalidade. O presente trabalho insere-se
numa perspectiva de pesquisa, em meio a diversos questionamentos sobre a educação. Este texto
pretende esclarecer algumas questões acerca da educação, evidenciando as contribuições da
utilização de abordagens metodológicas que lançam mão dos recursos da memória e de histórias
de vida para a compreensão de processos mais amplos que influenciam na formação e na prática
profissional de docentes. O texto pretende analisar as relações entre ensino, memória, histórias de
vida, formação docente e o quanto é importante não apenas como resgate da história de vida do
professor, mas como possibilidade de refletir a prática atual, procura entender sua ressignificação,
nos últimos anos, para que se tenha mais consciência das influências que redundaram na sua
conduta como professor, em sala de aula.
Para Nóvoa, na vida do professor há “fases” ou “estágios”. Os professores passam pelas
mesmas etapas, as mesmas crises, os mesmos acontecimentos ou percursos diferentes, de acordo
com o momento histórico que vive. Diante dessa constatação, vários questionamentos aparecem:
que imagem as pessoas têm de si, como professor, em situação de sala de aula, em momentos
diferentes de sua vida, na relação com seus alunos, no trabalho de sala de aula? Como se
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posicionam em relação ao conhecimento da matéria que lecionam? Em qual nível de competência
se colocam, ao longo dos anos? Há satisfação ou não com o trabalho? Quais os melhores anos da
docência e os momentos de “tédio”, “crises”, “desgastes” que afetam docentes, a partir da
aproximação, cada vez maior, da instituição onde trabalham?
Analisando o pensamento de Nóvoa e a pesquisa realizada, pode-se refletir sobre nossa
história de vida educativa como espaço de construção de conhecimentos, a fim de que se tenha a
necessária competência pedagógica e a crescente preocupação com uma atuação mais eficaz que
construa perspectivas a partir de inserções na realidade. O trabalho de pesquisa que realizei neste
ano de 2010, entrevista com 30 professores, não se constitui um registro autobiográfico, mas como
uma tentativa de compreender e refletir, a partir de um esforço de elaboração histórica, as
conexões entre a história que cada um vive ou viveu e a história da qual cada um também é produto,
e se elas influenciaram ou influenciam o exercício da profissão. A memória é desprezada por
muitos, principalmente, pelo paradigma da modernidade, sendo, sobretudo, o conjunto de
descobertas e diversas possibilidades e limites enfrentados que dão razão ao futuro e sentido ao
presente.
Com isso, desenvolve-se a necessidade de falar da família, das escolas nas quais trabalhamos;
dos professores e dos alunos com quem convivemos; da ideologia, das teorias e do pensamento
pedagógico que nos formaram; dos recursos, dos métodos de ensino, da política nacional, da
política educacional adotadas em nossa formação; da condição subjetiva do profissional da
educação; enfim, das experiências acumuladas durante a nossa vida.
Os entrevistados expuseram que a atividade docente é de grande relevância social e que os
realiza profissionalmente. Porém, a docência está interligada às instituições: família, poder público,

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entre outras, que nem sempre viabilizam o desenvolvimento e as condições para um trabalho
pleno. Ainda assim, a profissão é capaz de trazer satisfação profissional e social. Enfatizando, mais
particularmente, a educação formal, os entrevistados reivindicam a necessidade de valorização
dos profissionais que atuam e, também, algumas propostas de valorização da educação como
ampliação dos espaços e oportunidades educativas e educadoras. Eles apontam que as
transformações sociais e econômicas influenciam a mudança de um modelo educativo.
Em tempos passados, quando a escola de Educação Básica tinha o mesmo status que hoje
têm as universidades públicas, o acesso à educação era restrito à classe dominante. A abertura da
educação formal, como direito de todos, ponto indispensável para o avanço e mobilidade social,
causou uma desorganização, devido à demanda e às próprias mudanças na sociedade, tais como
industrialização, êxodo rural, mão de obra feminina, entre outros, que é preciso ser revista e
reorganizada. Porém, em tempos de contemporaneidade, não se pode esperar que esta
organização venha do outro. É preciso entender a escola como bem público, portanto, sendo
direito e dever de todos participar de forma democrática e, através de discussão coletiva, buscar
melhorias para a mesma.
A escola — gerida e acompanhada por todos na sociedade, onde nem o professor, nem o
diretor, nem os pais nem o próprio estudante se sinta vítima do famoso algoz invisível: o sistema —
poderá promover adaptações, tanto física e profissional como socialmente. Entretanto, ainda há
um longo caminho a percorrer, considerando que a qualidade do ensino nas escolas públicas sofreu
um retrocesso — prova disso são os baixos rendimentos registrados pelo Ministério da Educação,
em determinadas regiões do país — e é valido afirmar que o desempenho e a formação docente
têm contribuído para este quadro educacional recente.

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Constatamos, por meio das entrevistas, que há um déficit no sistema educacional, que
desgastou a identidade profissional dos professores e fez com que se perdessem de vista padrões
de qualidade de ensino. A revalorização do profissional, nesta perspectiva, pode propiciar ao
professor melhoria na sua prática docente. A ação de mostrar, com propostas concretas, para a
sociedade a sua importância enquanto agentes educacionais — visibilizando as suas contribuições
para o crescimento do país — viabiliza o esclarecimento de fatos, até então pouco considerados, e
se reveste de extrema ajuda para rever práticas pedagógicas desenvolvidas por educadores
anônimos, que se propõem a expor suas vidas.
Segundo os professores entrevistados: “a educação é o verdadeiro instrumento de
transformação social e que o esforço coletivo de pais, alunos, professores, enfim, de toda a
comunidade, pode transpor as barreiras da desigualdade”. Complemento, ainda, que nós,
docentes, precisamos redimensionar nossas experiências de formação e prática profissional para
possibilitar novas opções de teorias e práticas, na realização do ensino, questionando os processos
sociais e pessoais de construção que não se sedimentem na realidade, situando limites necessários
à consolidação pedagógica, através de experiências pessoais, diversificando o material, as técnicas
didáticas, os procedimentos avaliativos, construindo um novo percurso pedagógico
comprometido com anseios pessoais, profissionais e de cidadania.

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Memórias da localidade de Barra do Pote:
o surgimento da escola
Lorena de Castro e Silva Santana

E scolhi falar sobre o surgimento das escolas em Barra do Pote, porque considero que este foi o
fato mais importante que aconteceu na comunidade. Sou moradora desta localidade e filha de
uma professora, por isso conheço a história de Barra do Pote de perto.
Barra do Pote é uma comunidade de pequeno porte do município de Vera Cruz, localizada
entre os bairros de Coroa e Conceição. É muito procurada, no verão, por veranistas, em virtude da
bela praia, calma e que oferece muita segurança para os banhistas. Durante o inverno, a localidade
é bastante calma e suas ruas são pouco movimentadas, mas isso não se repete durante o período
compreendido entre os meses de outubro a março, em que muitas pessoas frequentam as praias e
os bares, deixando a Barra do Pote com bastante movimento.
Em geral, é um lugar bom para morar, dispõe de serviços básicos para a população desfrutar,
sem maiores problemas, como posto de atendimento da Embasa; Posto Médico; Mercado, onde
podemos pagar contas e sacar dinheiro; bares, lanchonetes, pizzarias, sorveterias, pousadas,
enfim, quase tudo que se deseja ter por perto. Mas Barra do Pote não foi sempre assim.
Antigamente, como quase todas as localidades aqui da ilha, não dispunha de serviços que, hoje, são
facilmente encontrados. Podemos citar, por exemplo, a existência de escolas no bairro. Para que
alguma criança da localidade pudesse ingressar nos estudos, era necessário ir para a localidade
vizinha, em Coroa, onde a prefeitura mantinha uma casa alugada e uma professora leiga, que,
ministrava aulas e que, também, era da Barra do Pote: a professora Almira.
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Hoje, com 69 anos, “Dona Mirinha”, como é conhecida, ainda chamada por muitos de “minha
mestra”, relata a dura missão de ir e vir, andando pela praia, durante todo o ano, para exercer a
profissão que ela escolheu. Relembra, ainda, que, naquela época, o município não era emancipado
e tinha que andar ao município de Itaparica para receber dinheiro.
Os alunos, por sua vez, também iam andando, em baixo de sol e chuva, todos os dias, para a
localidade de Coroa. Muitos desistiam no meio do caminho ou, até mesmo, repetiam o ano, muitas
vezes, pois as condições eram muito precárias; por exemplo, cada aluno tinha que levar seu
assento, pois não havia carteiras na casa onde estudavam. Em muitos casos, esses assentos eram
caixotes, que serviam de cadeira para duas crianças. As séries eram misturadas, todos estudavam o
mesmo assunto, não importando a idade ou o nível do estudante. Este quadro contribuía para que o
número de pais que colocavam seus filhos na escola ser mínimo.
Isso aconteceu assim por muitos anos, até que, após a emancipação política do município de
Vera Cruz, em 1962, e depois de Rafael Marques (morador da Barra do Pote) ser eleito prefeito, e
sensibilizar-se com a árdua tarefa dos alunos, inclusive de seus filhos, para estudar, que decidiu
alugar uma casa, na localidade, para, enfim, as crianças não precisarem mais sair da comunidade
para estudar em outra.
Por intermediação da Prefeitura em parceria com o Estado, essa escola passou a se chamar
Sabino Marques. Assim feito, a partir daquele ano, todos os alunos de Barra do Pote começaram a
estudar na própria Barra do Pote. Além disso, foram separados, cada um estudando em sua série e
com professoras diferentes. Essa situação perdurou-se, por alguns anos, até que o então prefeito
Joseir construiu um prédio escolar, para acabar com as aulas em casas alugadas. A escola continuou

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a ser chamada de Sabino Marques, em homenagem ao pai do prefeito Rafael Marques, que foi o
precursor da ideia da localidade ter uma escola.
A escola foi construída com apenas duas salas de aula, mas, com o passar dos anos, o número
de alunos só crescia. O prédio, então, começou a ficar pequeno para tantos alunos. Eram alunos de
todas as idades, dos 5 aos 17 anos. Percebeu-se, a partir da demanda, a necessidade de se criar uma
escola para as crianças menores, para separá-las dos alunos maiores, pois eram muitos os conflitos
ocorridos na escola. O problema foi levado até o prefeito da época, Aginoel A. dos Santos, que
abraçou a ideia imediatamente, mas como não dispunha de recursos para ampliar ou construir um
novo prédio escolar, expôs a proposta de se ministrar aulas, aos alunos menores, na igreja católica
da localidade. E assim foi feito. Durante muito tempo, a igreja católica, localizada à beira mar, serviu
de escola para muitas crianças da comunidade. A prefeitura pagava às professoras leigas para
ensinar, basicamente, às crianças ler e escrever, para, depois dos 7 anos, passar para a escola
Sabino Marques. Por muitos anos, a rotina escolar das crianças da Barra do Pote repetia-se assim:
iniciavam seus estudos na igreja e depois passavam para o prédio grande.
Depois da municipalização da escola Sabino Marques, foi mudado o seu nome para Escola
Municipal Gaudêncio Acelino Marques, também, parente próximo do prefeito Rafael Marques.
Nesse mesmo período, uma moradora da localidade, D.Detinha — que tinha um terreno ao lado da
igreja e percebeu que o espaço da escola, também, ficara insuficiente para o número de crianças
que ali estudavam — doou, então, um pedaço do seu terreno para que a prefeitura construísse
outro prédio escolar para retirar as crianças da igreja. Uma nova escola foi construída, ao lado da
igreja católica e lhe foi dado o nome da, então, primeira dama do município, Alina Freitas Aquilino
dos Santos. Escola esta que recebia apenas alunos pequenos, iniciantes nos estudos. Esta realidade

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perdura até os dias atuais, e a localidade de Barra do Pote dispõe de duas unidades escolares, que
recebem tanto alunos da própria comunidade como, em sua maioria, crianças oriundas das
localidades vizinhas.
Já estudei na escola Gaudêncio e, hoje, participo diretamente de todo este universo
educacional, pois sou gestora das duas unidades escolares citadas. Considero, então, que este foi o
fato mais marcante dessa localidade, que tem poucos moradores nativos, mas um enorme número
de migrantes que aqui residem e, juntos colaboram efetivamente, para o desenvolvimento de
Barra do Pote.

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Saveiros da Ilha
Luciene Barbosa Azevedo

O amor pela natureza, pelas tradições e por uma pessoa que sempre quis, de alguma forma,
registrar a história desse pedaço do paraíso, foi o que me levou a pesquisar a trajetória dos
saveiros da Ilha. Uma das recordações mais felizes deste lugar é o das corridas de saveiros. Eu
participava de todas as corridas. Conheci algumas localidades, o seu povo e suas belezas. O verão
contemplava o ritual da preparação das embarcações, a alegria dos tripulantes, o mar de cor azul
turquesa, tudo era muito divertido.
Os saveiros sempre fizeram parte deste cenário exuberante, mas infelizmente estão
desaparecendo. Ao longo dos anos, o povo desta terra sobreviveu e transportou sonhos e
mercadorias nessas embarcações. Os amantes e mestres de saveiros recordam com nostalgia
grandes aventuras. Em minhas andanças, para a construção desse texto, conheci pessoas que
fazem parte desse universo peculiar.
Seu Guidu, 55 anos, construtor de embarcações, em um estaleiro em Cacha Pregos, aprendeu
a profissão com o pai, mestre Massu. Ele tem alguns funcionários que realizam diversas funções na
construção naval, entre eles o aprendiz Adriano Penha do Bonfim que relatou, com entusiasmo, o
prazer de fazer parte desse processo. Seu Guidu fala, com tristeza, da possibilidade do
desaparecimento dos barcos de madeira: “Há vinte anos estou nesta profissão, amo o que faço e a
falta de incentivo colabora para a situação que vivemos hoje”.
Seu Alberto Bartolomeu Dias, popularmente conhecido como seu Zuca, com seus 95 anos de

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pura alegria e vitalidade, e um vigor de dar inveja aos mais jovens, falou que o saveiro o ajudou a
sustentar sua família, transportava açúcar, peixe seco, carvão, piaçava e outras mercadorias para o
sul da Bahia. Passava dias distantes da família e quando voltava trazia novas mercadorias. As
viagens, segundo ele, eram divertidas e perigosas, principalmente no inverno. Muitas vezes
escapou da morte, quando enfrentou ventos fortes e chuva, mas para ele o saveiro era um meio de
sobrevivência, e ele tem saudades dessa época. Sua esposa, D. Maria da Glória Santana Dias, com
90 anos, também se lembra dessa fase, pois ficava à espera das boas novas. Vivia na labuta de
educar os filhos e a mariscar para ajudar a manter a família. Mulher guerreira, que sempre sonhou
em ver os filhos “formados“ e viver uma vida mais tranquila.
Seu Jessé, também morador de Cacha Pregos, é outro nome a ser lembrado, conhece muito
bem a história de sua comunidade. Sonha em ver a beleza e a cultura do lugar valorizadas. Fez parte
da organização do Clube de Saveiros da Ilha de Itaparica, instituição responsável pela
administração, fiscalização e divulgação do calendário das corridas, que sempre acontecem entre
os dias 4 e 13 de dezembro, na semana do marinheiro.
As corridas estão divididas por categorias: Classe A, B, C, D, E, pesca e catraia, cada uma com
tamanho diferente de embarcação. A classe E é a única que corre com duas velas de pena. Além do
espetáculo maravilhoso na Baía de Todos os Santos, é uma oportunidade ímpar para contemplar a
natureza ao sabor do vento e descobrir a diversidade cultural do nosso município. Dentre as várias
corridas, existe uma que tem um brilho maior para os apaixonados por saveiros: a JOÃO DAS
BOTAS, nome dado em homenagem a um nativo de Itaparica que, no período da Independência da
Bahia, saiu de Itaparica em um saveiro com os canhões para expulsar os portugueses, em 7 de
janeiro de 1823 e que se tornou patrono da Marinha do Brasil.

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Cosme Lima Azevedo, homem forte de espírito guerreiro, com seus 78 anos, também ajudou
a construir a história dos saveiros. Sempre envolvido nas questões que dizem respeito à
preservação da memória do seu povo, é respeitado e admirado por todos. Participou das corridas
de saveiro como fiscal e barco de apoio. Construiu um pequeno barco do tipo catraia em seu
quintal, para incentivar os netos e sobrinhos netos a velejarem com prazer e respeitar a natureza.
Relata que antigamente o saveiro tinha uma importância muito grande para os nativos, todos
tinham como transporte esses barcos tão desprotegidos, mas que ajudaram na trajetória de muitos
nesta ilha. Na conversa com Sr. Cosme, fiquei surpresa ao saber que aqui na ilhah avia uma atividade
agrícola muito intensa, plantava-se milho, abacaxi, café, melancia e outros alimentos. É isso
mesmo, café, abacaxi, coco, e muito mais, e essas mercadorias eram escoadas através dos saveiros
para Salvador e eram vendidas no porto da Preguiça. Ele espera que seus netos e bisnetos possam
conhecer as belas histórias deste município e assim preservá-las.
Para completar minhas andanças, conversei com o Sr. Manuel Nascimento Azevedo,
saveirista e um apaixonado pelo mar. Homem de caráter ímpar, pessoa generosa e de coração
puro, com seus 80 anos lembra, com entusiasmo e emoção, as aventuras e tormentas vividas nesse
imenso mar. Com suas mãos firmes e calejadas, ainda hoje costura vela para saveiro, como nunca.
Desde menino vive do mar e, durante muitos anos, transportou palha de coqueiro para as caieras de
Salvador, pacotes (feixes de lenha) entre outras mercadorias, para a região do subúrbio ferroviário.
Sr. Manuel contou que o mais gostoso era fazer as peixadas nas viagens, tudo era feito no
fogareiro, existia fartura de peixe e preferia navegar à noite, pois de dia o sol quente castigava a
todos e, às vezes, o vento arriava e tinham que remar. Sempre que estavam chegando, tocavam o
búzio para avisar aos moradores e todos corriam para a praia. O antigo saveirista guarda, em suas

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recordações, fatos inusitados como, por exemplo,
uma mulher que fez xixi dentro do chifre de boi, e
outra que “deu a luz” na embarcação.
Hoje não existe mais esse comércio
frenético com os saveiros, o progresso chegou e
com ele a história vai se perdendo, mas um grupo
de pessoas, que foram protagonistas dessas
histórias, espera que haja um registro das
memórias. O clube de saveiros tem como objetivo
promover a integração das comunidades,
preservar as histórias de embarcações como
catraias, canoas e, principalmente, saveiros, e
contribuir para o desenvolvimento turístico e
ambiental da região.
Após esses relatos, observei que, em algum
lugar do passado, está um pouco de nós, está
aquilo que deu origem ao ser que somos hoje, e
que muitas pessoas nos iluminaram e ajudaram na
trajetória. É preciso registrar a história desse povo
para que possamos entender e valorizar a nossa
cultura. Os saveiros, além de fazerem parte deste
cenário, contribuíram para o desenvolvimento da
região, por isso devemos preservá-los.
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Coroa e Barra do Gil
Maria Floricéa Ramos
curioso o fato de que as pessoas que moram na localidade de Coroa apresentam características
É étnicas que só encontramos ali. Pelo menos, no que tange a quantidade de pessoas, a grande
maioria apresenta olhos azuis ou verdes, é branca, com traços faciais finos, cabelos castanhos,
lisos, cheios e longos.
É possível que a justificativa maior para a curiosidade questionada seja a ligação, inicialmente
por trilhas, entre a localidade citada e um ponto da contra costa, especialmente, a Fazenda Burgos,
pela estrutura física daquele lugar, as ruínas dos sobrados, o tanque para reservar água de chuvas,
semelhante ao Tanque das Lendas que fica na estrada do Baiacu, canaletas de pedras vindas do
morro e que serviam de esgoto para o sobrado ali existente, canhão próximo à maré,
provavelmente com data de 1823, ocasião em que muitas lutas se travaram naquela região, uma vez
que os invasores ou os soldados que vinham pelo canal do funil passavam por ali, com destino à
Fortaleza de São Lourenço, em Itaparica. Todos os dados levam-nos a crer que ali no Burgo, se
concentrava uma quantidade considerável de colonizadores. Como o acesso à localidade de Mar
Grande obrigava-os a fazer parada em Coroa e Barra do Gil, para dali seguirem para Salvador,
acredita-se que a extensão daquelas famílias que residiam na Fazenda Burgos se concentrava na
Coroa.
Diferente de Barra do Gil, que, também, tinha vias de acesso para o Burgo por terra e pelo Rio
da Penha, época em que esse rio era navegável, dispondo inclusive de um ancoradouro chamado

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Ponte dos Burgos. O curso desse rio pode ser seguido ainda hoje, partindo da curva da Penha na
rodovia, com destino ao Burgo por dentro das matas e com destino ao Mar Grande, beirando suas
margens, chegando à ponte que liga Penha à Gamboa, encontrando ali o Forno da Penha, ou seja,
forno da caieira. Em seu curso, pode-se perceber pés de mangues, planta característica de área da
contra costa e não de praia.
As diferenças étnicas entre as duas localidades, Coroa e Barra do Gil , apesar de tão próximas,
são visíveis sem dificuldades, predominando na segunda, a população de cor negra. É possível que a
carência pela mão de obra dos escravos nas caieiras existentes na Penha, Gamboa e Ilhota, nas
olarias em Barra do Gil, na colheita de coco, na aquisição de casca de ostra, matéria prima para a cal,
fizessem com que a população negar fosse obrigada a se concentrar nessa área. Sua mão de obra
era obrigatória. Próximas a Mar Grande eram oito caieiras, sendo 4 em Ilhota, 3 em Gamboa e 1 na
Penha. A cal ali produzida era usada na construção em Salvador e construções locais. Como não
havia como construir sem o óleo da baleia, a pesca desse peixe era desenvolvida em grande escala.
A família Galvão tinha o domínio político e econômico de toda a área da Penha. Pode-se ver
até hoje o Forno da Penha, o casarão e a Igreja da Penha, pontos históricos da ilha de Itaparica. Não
há uma comprovação, imagina-se que os colonizadores, por questões preconceituosas e culturais,
escolheram a Coroa para ali se agruparem.
Existem ali duas famílias tradicionais: a família dos Moreira e a dos Bahiense de Freitas,
conservando as características físicas citadas neste relato.
Mas é preciso falas de duas épocas distintas: uma do período colonial, a outra o da
emancipação de Vera Cruz. Assim, quero escrever, também, sobre o conhecimento vivenciado
exatamente na época da emancipação de Vera Cruz, ou seja, dos anos de 1962 até os tempos atuais.
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A década de 1960 representou momento marcante na vida dos veracruzenses. Não apenas para os
filhos desta terra, mas para tantos, que, pelo longo tempo de veraneio, passavam a amar o local e
considerarem-se nativos.
Decisões políticas tornaram Vera Cruz, que faz parte da Ilha de Itaparica, emancipada e
elevada a categoria de município. Aos 31 dias do mês de Julho de 1962, a Ilha de Itaparica dividiu-se
em dois municípios, o que leva o nome da Ilha e o de Vera Cruz. Com saudade, muitos veranistas
lembram do pacato povoado chamado Mar Grande.
Vejamos o que diz, em seus escritos, o antigo veranista José Augusto Bebert: “Shakespeare
afirma, numa de suas melhores peças, que a felicidade mora nas ilhas”. Concordo inteiramente com
ele, acho que a felicidade mora na ilha de Itaparica, em Mar Grande. Bebert continuava falando de
sua inveja dos amigos que moram em Mar Grande e falava especialmente de Fernando Protásio,
destacado jornalista do diário A Tarde que deixou Salvador para morar aqui definitivamente.
Exclamou “quando ele morrer não irá para o céu. Já está lá”.
Essa Mar Grande eu alcancei. Travessias em saveiros se preferisse. Eu escolhia vir de lancha.
Eram duas inicialmente: Águia e Gaivota, essa última de propriedade do Sr. Horácio, também
proprietário da Fazenda dos Burgos, citada no início deste texto.
Existe a história do pagamento de 200 reis para saltar dos barcos e ser carregado por
praieiros fortes, bastava segurar com firmeza em seu carregador e chegava-se em terra firme sem
se molhar. Não fui dessa época, porém a tradição permaneceu por muito tempo. Bastava a lancha
não encostar na ponte, devido à maré baixa e então os botes e homens carregadores se
aproximavam para ganhar seu dinheiro. Fui da época dos botes e, por vezes, meu pai me carregava.
Não era sempre, somente nas férias. Quando vinha de Salvador para ficar com minha família. Quer
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saber o meu destino? Fazenda dos Burgos, meu pai foi o tutor daquela fazenda de 1965 a 1985,
aproximadamente.
Grande parte do que contam os historiadores eu vivenciei.
Querem saber como eu ia de Mar Grande até a fazenda? O transporte em toda a ilha era feito
de carroças ou no lombo de animais. Carro tinha apenas um jipe e dele falarei mais adiante. Era
assim que eu ia, montada, e não era a cavalo com cela, era em um burro com cangalha e panacuns
repletos de latas de querosene e a feira que meu pai fazia, começando suas compras na venda de
Américo e Dona Celina de quem era muito amigo e lhes vendia azeite de dendê, ovos de galinha de
quintal, cana, uma espécie de troca; em Romeu, ele só entregava dendê, não era de muita amizade
com esse; vendia azeite de dendê para Leda, vendedora de acarajé naquela época. Saíamos do
Duro, em Mar Grande, eu ainda não estava montada, andava pela praia, às vezes pendurada no
arame farpado das cercas, no percurso entre o Duro e a Ilhota, isto quando a maré estava cheia. Na
Ilhota, meu pai passava na venda de Dórico para cobrar o que havia vendido; por último, Vevé na
Gamboa, e ai partíamos. Eu montava e meu pai, às vezes, ia andando. Algumas vezes, passávamos
na Penha, já anoitecendo. O clima amedrontava. Muitos coqueiros, a antiga casa onde fazia cal,
uma ou outra pessoa era encontrada nesse trajeto. Seguíamos uma estrada por entre os coqueiros,
que chamávamos estrada de cascalho que dava acesso à pista de barro aberta pela Petrobras
quando fazia sonda de petróleo, naquelas localidades. Chegávamos a via de acesso para o Burgos
partindo de Barra do Gil. Chegávamos em casa nove, dez horas da noite. No dia seguinte, lá estava
eu no Burgos. Naquela época, apenas Burgos, sem muito significado a não ser pelo prazer de estar
em fazenda, onde as únicas pessoas que ali se encontravam eram meus pais e cinco irmãos. Visita só

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dos pescadores do Baiacu que chegavam para trocar bacias de peixe por cana e dendê cozido para
saciar a fome, e água para saciar a sede. Água ali era líquido muito precioso. Meu pai ia buscar
distante com latas no animal. Naquele lugar não existia lençol freático. As águas de chuva eram
represadas por algum tempo. No verão, firme, até para os animais ficava difícil.
Uma grande história, uma grande memória estava ao meu alcance. Era muito jovem, não
sabia o valor daquele pedaço para a historia de Vera Cruz. Hoje eu tenho certeza ser ali um sítio onde
arqueologia e antropologia se misturam. Falta a pesquisa.
Ao retornar das férias, uma trajetória um tanto diferente. Nossos animais, os mesmos com
cangalha e panacuns, transportando nossas coisas. De repente, uma curiosidade: encontramos,
pela estrada, lavadeiras com suas trouxas a caminho da lancha que as conduziam para Salvador,
tapeceiras com seus tapetes prontos para entregar à tapeçaria Renol e outros industriários que
usavam a mão de obra de mulheres de Mar Grande e de outras localidades, que, muitas vezes, se
reuniam em grupo, na costura de um mesmo tapete, tão grande ele era.
Voltemos para a historia pós-emancipação. Ainda Mar Grande, mas também Vera Cruz. Casa
nova, é claro, politicamente a presença de um dirigente torna-se indispensável. Tudo começa com
Sr. Almiro Antunes de Brito, filho desta terra. Era manso, porém, homem de pulso e soube conduzir
seu governo. Ele governou no período de 1963 a 1967 e passa o governo para o Dr. Lívio Garcia
Galvão, entre 1967 e 1971. Dr. Juvenal Galvão era filho do 1º dentista da ilha na época.
Gostaria de comentar sobre o Dr. Lívio Galvão, como era conhecido. A falada e conhecida
Penha, alvo de tantas histórias de onde saía o principal material para as construções da época, a cal,
é também refugio habitacional da família Galvão. Além do casarão, cada um foi construindo sua

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própria casa. Começa ali o desenvolvimento de um conjunto arquitetônico propício ao gosto
daquele que tem poder aquisitivo privilegiado e podia sustentar o seu prazer de estar na Ilha.
Percebe-se ainda hoje a predominância do poder e da vaidade. São muitos os políticos que
veraneiam ali. Um grande e triste detalhe: sumiram os coqueiros vistos de Salvador.
Lívio Galvão foi o primeiro proprietário de um automóvel em Vera Cruz. Era um jipe que foi
transportado para a ilha no navio João das Botas que fazia o trajeto de Salvador para Maragojipe,
São Roque, dentre outras localidades. Uma bonita história envolve esse carro. Já na condição de
prefeito, o Dr. Lívio Galvão fazia transporte de Mar Grande para Itaparica da merenda escolar que
servia a todos as localidades do novo município. Pode-se chamar essa distribuição da merenda de
verdadeira peregrinação. Observemos como era o processo: a professora Enecy, responsável por
distribuir a merenda, pegava o jipe com destino à Itaparica. A merenda era embarcada em um dos
navios, João das Botas ou Anunciada, seguia viagem e em cada localidade da contra costa se
encontrava um administrador em sua canoa e a ele era entregue a merenda destinada a escola
daquela localidade. Baiacu, Matarandiba, Catu, Jiribatuba e Cacha Pregos, que finalizava a
trajetória por mar. Dali até Barra Grande, a entrega era feita através de animais e outros. O carro
que a professora deixara em Itaparica, à esperava em Barra Grande, para chegar a esse destino
dependia de horário das marés. Todo o trânsito era pela praia.
A energia elétrica era para poucos e por tempo limitado. O fornecimento apenas para a sede
era feito através de gerador. Vinte e uma horas era o limite. Para todo o restante do município,
restava o candeeiro a gás, aladim (candeeiro de manga de vidro) e, depois, os avanços do bibi-gás,
movido a botijão.
As mudanças para o município começam com a construção da Ponte do Funil e implantação
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do Sistema Ferry Boat. Barra do Gil, que serve como título deste relato, foi ponto de concentração
de trabalhadores das empresas envolvidas na construção da rodovia estadual. Vale acrescentar
que grande parte do material empregado na construção da rodovia BA-oo1, chegava pelo mar e era
conduzido pela praia, levado por caçamba até o local, hoje conhecido como Pedrão. Até se
instalaram os alojamentos. Como vinham as caçambas? De navio.
Um fato curioso aconteceu durante o transporte desses materiais: um motorista,
desinformado do processo das marés, foi pego de surpresa nas imediações da ilhota e viu sua carga
de tambores de combustível boiar. Se não fosse a ajuda de pescadores e demais moradores, que,
com a experiência, trouxeram os tambores para a praia, toda a carga teria sido levada pelas ondas.

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Zé de Vale, você conhece?
Maria Núbia Alves da Silva

E m uma localidade de Vera Cruz, Gameleira, tem um “Terno de Reis”, hoje conhecido como
grupo cultural Zé de Vale. Já teve registrada sua participação na “Caminhada Axé”, na Feira do
Município em Salvador, também na Mostra de Arte e Educação em Vera Cruz, e em muitos outros
eventos culturais.
Conta dona Fia, que quando era mocinha, e hoje com 80 anos, já assistia às apresentações de
Zé de Vale pelas ruas do Areal, Gameleira e, também, em Mar Grande a convite dos veranistas. A
referida senhora lembra-se dos antigos presidentes (personagem da dramatização): Donguinha,
Virissão e Fernando, todos já falecidos. Vale ressaltar que este grupo existe desde os anos 1940.
Com todos os personagens, verdadeiramente, caracterizados, além dos pandeiros,
tambores e outros instrumentos, ouvimos a cantiga que narra a historia segundo a qual o
personagem Zé de Vale é preso por roubar cana. Como sua mãe tem condições financeiras, oferece
tudo pela liberdade do filho, liberdade que é sempre negada. E um dos versos cantado pelo
presidente é muito interessante: “Quem tiver seu filho, dê educação, para não sofrer dor no
coração”. Neste instante, os versos fazem com que todos passem a refletir sobre a questão da
importância de educar os filhos. E quando o pedido é feito em nome da Bandeira do Rei ele é aceito
e, imediatamente, Zé de Vale é solto.
Sua liberdade é comemorada com um lindo samba de roda e o grupo finaliza pelas ruas
cantando:

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Ê Zé de Vale
Quando sai a passeia
Não vá corta as canas dos canaviá
Não se esqueça Sr. Zé de Vale
Do conselho que eu lhe dei
Não vá tirar a caninha verde
Pro saldado não lhe prendê
(Bis – Ê Zé de Vale...)

O que me levou a escrever sobre Zé de Vale foi a mistura de vários sentimentos: orgulho,
prazer, carinho e felicidade, sentimentos estes que me levaram, também, a ser uma das integrantes
do grupo, entretanto, ultimamente, por alguns problemas de saúde, não mais participo. Mas
confesso que é muito grande a emoção que sinto ao assistir a apresentação de Zé de Vale.
E é preciso que o Governo, através dos órgãos competentes, possa incentivar as
manifestações populares, para que a cultura e a arte, existentes em todo o país, não morram.
Procuro aqui, através deste pequeno texto informativo e de fotos do meu acervo particular,
registrar um pouco da história de Zé de Vale, para que muitos tenham oportunidade de conhecer.

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Fotos de Ze do Vale.

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Minha Ilha
Maria Telma dos Santos Santana
Não nasci em Itaparica, mas, por sorte, vim morar, com dois anos de idade, nesse maravilhoso
lugar, cheio de praias lindas, com lugares especiais, cheio de cultura e com pessoas encantadoras,
muito educadas, entre outros adjetivos. Eis os motivos pelos quais decidi escrever sobre a
localidade onde vivo e mostrá-la para o mundo.
A mais famosa ilha da Baía de Todos os Santos, Itaparica, é dividida em dois municípios:
Itaparica e Vera Cruz. Itaparica significa: ita= pedra, parica= cerca, portanto, Itaparica em tupi
significa "cerca de pedras". Não é a toa que a Ilha, cercada por uma barreira de recifes, foi assim
batizada. Com uma vasta vegetação tropical e um rico patrimônio cultural e natural, a paisagem
encanta pela beleza e riqueza histórica. Segundos os geólogos, há 10 mil anos, houve uma grande
explosão em que a terra se rachou e o oceano invadiu a terra rachada formando a Baía de Todos os
Santos, com mais de 400 ilhas. Ainda hoje a Ilha é ligada ao continente por um cordão umbilical
subterrâneo, no fundo da baía. Cordão de onde flui água potável.
Esse fenômeno fez de Itaparica a única estância hidromineral à beira mar do mundo. Nas
bucólicas praias da ilha encontramos água potável mineral de boa qualidade para o consumo. As
praias que circundam os 240km² de seu entorno oferecem opções de mergulhos, caminhadas,
cavalgadas, passeios de bicicleta, aventuras em caiaques e grandes piscinas naturais de águas
calmas, ideais para relaxar, curtindo o sol e a brisa dos ventos. Se você procura aventura, com boa
dose de sossego, a Ilha de Itaparica é a pedida ideal.

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Na Ilha, destacam-se algumas praias:
Ponta de Areia: Esta bela praia, de águas mansas, tornou-se, nos últimos anos, um dos
principais destinos turísticos da Baía de Todos os Santos. Pela proximidade à Salvador, vários
saveiros e escunas lotados de turistas costumam desembarcar lá no verão, buscando o seu
clima pitoresco, apimentado pela culinária regional servida nas muitas barracas da praia.
Manguinhos: Pequena enseada de águas límpidas e quentes, que oferece boas condições
para a prática de mergulho e de outros esportes náuticos. Um vilarejo modesto, composto,
em sua maioria, por casas de veraneio, oferece uma infra-estrutura ainda mínima.
Porto Santo: Apresenta um mar de águas calmas e propícias para prática de qualquer tipo de
esporte náutico, durante todos os períodos das marés. As areias semi desertas, repletas de
búzios, também possuem formações rochosas em todo o trecho. Na parte sul, próxima ao
local de atracação dos ferry-boats, predomina a vegetação característica de mangue.
Gameleira: Oferece um mar de águas mornas e calmas, propícias para banhos e qualquer tipo
de esporte náutico, em todos os períodos das marés. Suas extensas areias encontram-se à
frente do vilarejo de mesmo nome, e apresentam inúmeras barracas que servem petiscos.
Com razoável infra-estrutura, Gameleira, em sua parte norte, ainda possui, num pier de
pedras, um bom ponto para a pesca de linha.

Como chegar à Ilha de Itaparica


A Ilha está a 284 km de Salvador.
Por via aérea: O Aeroclube da Bahia, em Itaparica, tem capacidade para receber aviões de
porte médio, tipo Fokker-50, Bandeirantes e Brasília.
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Por via marítima: A ilha de Itaparica fica a 45 minutos de Salvador - 12 milhas náuticas - com os
acessos facilitados por sua integração ao sistema ferry-boat e catamarã, que liga o Terminal de São
Joaquim, em Salvador, ao de Bom Despacho, na ilha.
Se preferir, a travessia pode ser feita em lanchas, que partem do Centro Náutico da Bahia para
Mar Grande.
Em Bom Despacho, existe lotação e ônibus, que interligam as diversas localidades da ilha.
Gameleira: Origem
A localidade tem o nome de Gameleira pela existência de muitas árvores com este nome
(gameleira), também conhecidas como urucu louco na língua nagô. Os devotos do candomblé
utilizavam as gamelas feitas das árvores pelos moradores para colocar as comidas dos Orixás, em
oferendas às entidades. Além de fazer gamelas, essa árvore era utilizada como matéria prima na
manufatura de tamancos.
Gameleira faz fronteira ao norte com BOM DESPACHO, ao oeste com a BA 001 no sentido
BOM DESPACHO-NAZARÉ, e ao sul com Porto Sobrado, Bolandeira, Barroca, e ao leste com a Baía
de Todos os Santos. Gameleira surgiu a partir de uma fazenda que pertencia a uma família Belga, e
nessa fazenda trabalhavam pessoas do povoado. As mulheres trabalhavam quebrando coquinhos,
usados na fabricação de óleo, e os homens colhiam dendê, usado na fabricação do azeite.
Todos os produtos extraídos na fazenda eram comercializados na Feira de Água de Meninos
ou na Feira de São Joaquim. Os produtos eram embarcados e iam de saveiros para Salvador, onde
depois de vendidos geravam fonte de sustento para os moradores.
O embarque das pessoas se dava assim: as mulheres embarcavam nos braços dos homens, da
praia até o saveiro, e os homens iam aos ombros de outros da praia até o saveiro.
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A localidade dividia-se em três faixas de terras: a primeira pertencia à família de Drº Lívio
Galvão; a segunda, pertencia à família de Arlindo Batista Vilar; a terceira, pertencia à família de
Reinaldo de Barros; todas essas faixas de terra vão da praia até o Marcelino, localidade pertencente
a Itaparica.
As pessoas na localidade viviam em terrenos arrendados e pagavam uma taxa a essas
famílias. Muitas das moradias eram construídas de taipa, outras de argamassa, óleo de baleia e cal;
iluminadas por candeeiros. A iluminação surgiu na década de 1970, só quem tinha televisão na
localidade eram as pessoas mais favorecidas economicamente.
Na localidade, as pessoas viviam da colheita e da venda de frutas da época: manga, caju,
dendê, mandioca; os homens também trabalhavam na pescaria; e as mulheres tiravam seu
sustento do veraneio, lavando e cozinhado para os veranistas.
Atualmente a comunidade Gameleira se desenvolveu nos aspectos socioeconômico e
cultural. Este povo herdou de seus ancestrais, dos negros vindos da África, também dos nativos
tupinambá, a arte culinária, as danças, as cantigas, enfim, o jeito de ser.

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Fotos de Gameleira.

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Memorial: a história dos professores
na comunidade de Aratuba
Miraci Carvalho de Souza

S egundo Paulo Freire, "intenção sem ação é ilusão. Ouse fazer e o poder lhe será dado". O
trabalho é um exercício diário. Toda decisão acertada é proveniente da experiência. “E toda
experiência é proveniente de uma decisão acertada ou não acertada, já que pelo erro dos outros o
homem sensato deve corrigir os seus”.
Escolhi escrever sobre esse tema porque, na verdade, não apago da memória as situações
vividas e as grandes dificuldades enfrentadas pelos professores no passado, década de 1960, que
chegavam a fim de ministrar aulas para nós que residíamos na localidade de Aratuba. Essa é uma
das tantas experiências que me faz lembrar coisas boas e não tão boas assim, mas que estão
guardadas.
Na comunidade de Aratuba, antes da Emancipação Política do Município, a exemplo de
tantas outras da ilha, o sistema de ensino era problemático, precário. Não existiam, naquele
período, nas comunidades, profissionais qualificados, com formação adequada, para ali atuarem
como professores. Então, alguns fazendeiros escolhiam e convidavam pessoas que tinham algum
conhecimento de leitura e escrita para ministrar aulas em suas casas ou em qualquer ambiente,
sem nenhuma estrutura, em muitos casos, lugares nada apropriados para a prática pedagógica.
Essas pessoas eram as professoras leigas. Minha mãe era uma delas.
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As aulas aconteciam, na maioria das vezes, numa pequena igreja católica. Ali, elas
ministravam aulas para crianças, jovens e adultos, sem as mínimas condições para proporcionar um
ensino de qualidade, mas atendiam a todos, com respeito e dignidade. Esse era o papel das grandes
heroínas. Não era, somente, a professora Maria Ana (minha mãe) que sofria com tamanhas
dificuldades, mas tantas outras que se disponibilizavam a atender aqueles que as procuravam,
muito embora, num espaço físico inadequado e com recursos humanos e materiais insuficientes.
Enfim, ministrar aulas, naquele tempo e lugar, era mesmo sacerdócio e amor ao próximo.
Por volta da década de 1960, surgiu a primeira escola na localidade de Aratuba, a Escola
Municipal Leovigildo Azevedo Monteiro, e fez a maior alegria de toda criançada e, também, dos
seus familiares. Naquele momento, o município, já separado de Itaparica, com autonomia
governamental, começava a construir suas escolas, graças à grande luta e perseverança das
professoras leigas. Aratuba foi uma das comunidades contemplada com uma escola municipal. No
ano de 1966, chegou a primeira professora formada, Srª. Iolanda, vinda de Salvador, para ministrar
aulas na localidade. Instalou-se na casa de um dos fazendeiros, Sr. Aureliano Monteiro, fato comum
para tantas outras que chegavam naquela época.
Anos mais tarde, já na década de 1970, foi construído um novo prédio, mas o nome da escola
continuou o mesmo e as professoras passaram a morar na escola onde ministravam as suas aulas,
juntamente com a sua colega Mª Ana, a professora leiga, minha mãe. Nos anos 1980, os
governantes lançaram novos olhares para a educação, graças a Deus. Começaram pela qualificação
dos professores leigos, proporcionaram cursos para formar os professores do município e
melhoraram suas condições de trabalho. Os profissionais foram convidados para participar do
projeto (LOGOS I e II), no município de Itaparica, por dois anos, e, em nossa comunidade, a

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professora Maria Ana Carvalho de Souza fez o curso e formou-se em 1982. Foram mudanças para
melhor, sem dúvida, pois toda comunidade escolar e local passou a ver seus educadores e
educandos crescendo e desenvolvendo-se com aprendizagens significativas.
Em tempos atuais, todo o sistema educacional vem melhorando. Como filha dessa grande
mulher, carregando fortes características de minha genitora, no ano de 1985, eu comecei a minha
grande jornada, iniciando o curso de magistério, no município de Itaparica, no Colégio Municipal
Jutahy Magalhães, o qual conclui em 1988. Logo após a minha formatura, comecei a ministrar aulas,
na escola onde minha mãe lecionava há mais de 15 anos. Cerca de cinco anos depois, fui trabalhar
numa creche, em uma turma de pré-escola e com Educação Infantil. No ano de 2005, fui convidada
para dirigir a Escola Aureliano, onde exerci função de diretora, por quatro anos.
Minha jornada continuou. Ainda em 2005 — por exigência da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Básica (LDB), que impõe a licenciatura para todos os professores, a fim de que possam
continuar atuando em sala de aula — decidi graduar-me, fiz o vestibular da FACE e fui aprovada.
Matriculei-me na unidade de Santo Antonio de Jesus, num período de muita luta: dirigia a escola e,
junto com a comunidade escolar, fundamos uma nova escola de Educação Infantil, na localidade de
Nova Divinéia, realizando um grande sonho pessoal e de toda comunidade local. Também
continuava lecionando numa turma de 4º ano, e tinha que frequentar as aulas, na faculdade, aos
sábados.
Hoje são vários educadores atuando em nossa escola, com melhores condições, pois são
qualificados profissionalmente. Ainda não alcançamos a condição desejada, mas, sem dúvidas, não
estamos mais como antes. E, como muitos sabem, ninguém é professor por acaso. Insistência e
ousadia fazem dos profissionais de educação pessoas capazes e corajosas, que carregam dentro de
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si o espírito do semeador. Estamos dispostos a lançar, nesse sistema, as boas sementes, pois somos
perseverantes e acreditamos que, em algum momento, colheremos os grandes frutos, seremos
respeitados como seres humanos que têm a grande perspectiva de um mundo melhor e uma
educação de qualidade, efetivamente, para todos.

Fotos de:
Maria Ana Carvalho de Souza e Miraci Carvalho de Souza

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A localidade de Tairu
Neuza Monteiro da Conceição Lima

E scolhi escrever sobre a localidade de Tairu porque me chamou a atenção o simples mas curioso
fato de quase 90% da sua população ter o mesmo sobrenome: Lima. Tudo começou por volta de
1880, quando uma família, que tinha como sobrenome Lima, ocupou um pequeno pedaço de terra
denominado “Fazenda Matange”. O patriarca tinha alguns escravos que, segundo relatos, em
pouco tempo, foram tornados alforriados por conta da libertação da escravatura.
Com a chegada dessa família, vieram outras que tinham grau de parentesco com a que já
estava instalada na comunidade. No que se refere ao matrimônio, como não havia outras pessoas
que ali moravam, além dos parentes, não restava alternativa a não ser contrair núpcias com os
próprios aparentados. Assim, a família foi se espalhando.
As pesquisas revelam que nessa fazenda tem uma fonte milagrosa, que fica situada em
Parapatinga. Anualmente, aos 28 de outubro, as pessoas se reúnem para festejar e homenagear o
padroeiro daquele local, São Simão. Esse dia era comemorado com as pessoas tomando banho
nessa fonte milagrosa, e as pessoas acreditavam que todos aqueles que ali se banhavam não
ficariam doente nunca mais. Essa tradição se perpetua até hoje.
Investiguei o modo de vida dessas pessoas e, segundo relatos, quando as crianças nasciam,
como não tinha cartório, os pais e responsáveis anotavam as datas de nascimentos de seus filhos e
escreviam na parede, com pedaço de carvão. Quando juntava mais de dez crianças na localidade,
chamavam um tabelião que fazia os registros das mesmas. Esse serviço era pago com galinhas e

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peixes secos e frescos, pois a fonte ou meio de sobrevivência era a criação de pequenos animais, a
pesca e as plantações. Com o passar do tempo, começaram a aparecer outros trabalhos, como:
padaria, farmácia, transporte alternativo, entre outros. A dificuldade era grande em termo de
transporte. Para se deslocar, por exemplo, até o hospital para “ganhar neném”, tinha que ir de
jegue ou barco. Infelizmente, algumas gestantes morriam durante a viagem, na hora do parto.
Os primeiros habitantes foram homenageados, por exemplo, o Sr. Januário, com nome de
escola, que fica situada na Av. Beira Rio, em Tairu.

Foto da rua D. Elenita Lima, moradora cujo nome foi adotado


em uma rua situada em Tairu.

Fota da Escola Voluntárias Sociais, localizada na Rua Elenita Lima.

Foto da Igreja de Santo Antônio


em homenagem ao padroeiro da Localidade de Tairu.

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Memórias de Catu
Rosemeire Oliveira Silva Ferreira

E m Vera Cruz, existe um lugar muito aconchegante e cheio de histórias para contar. Um pedaço
da linda ilha de Itaparica: Catu. A comunidade fica a 4 km da entrada da localidade de Berlinque,
na rodovia principal. Para chegarmos até lá, temos de seguir por uma estrada de chão ou podemos
ir pelo mar, sendo esta viagem muito mais gostosa e bonita, pois, na chegada pelo mar, podemos
desfrutar de uma das mais lindas paisagens desta ilha. O nome Catu é de origem indígena, que
expressa a ideia de “bom” e “belo”, pois Katu também significa “bonito”.
Antes existia em Catu um rio que ficava entre Catu e Jiribatuba. Era muito estreito, havia
coroas de areia, as margens eram tão próximas que era possível entregar objetos em mãos entre as
margens. A localidade de Catu pertencia à Jiribatuba. Era conhecida como Catu de Baixo e,
Jiribatuba era denominada Santo Amaro de Catu. Houve então a mudança e o desmembramento
aconteceu, tornando-se duas localidades, porque os moradores de Catu de Baixo não aceitaram a
mudança de nome para Jiribatuba: eles não queriam perder sua identidade. Em Catu, a maioria das
pessoas é tem parentesco entre si. Contam que, numa tempestade de verão, dois pescadores se
perderam pelo desvio dos ventos e o barco em que eles estavam veio parar nos arredores da
Fazenda de Catu. Eles resolveram ficar por lá e constituíram família.
Para compor o texto, com informações mais precisas, entrevistei algumas pessoas, entre
elas, destaco D. Maria da Conceição Santos, 59 anos, descendente de escravos. Sua avó, Dona
Simpricia Maria da Conceição, foi escrava. Faleceu há 27 anos, com 114 anos de idade. Os escravos

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viviam nas senzalas e cuidavam das fazendas. Eles trabalhavam na casa de farinha e na lavoura.
Segundo D. Maria, as terras de Catu pertenciam a três famílias: Pinho, Machado e Coelho. A família
Coelho era descendente de portugueses. Em Catu havia três senzalas: uma no sobrado 1, situado
próximo à Jiribatuba; a outra, no sobrado 2, no lado oposto, próximo à Cacha Pregos; e a terceira
ficava na Mangueira das Abóboras, no Calado. As ruínas das senzalas, infelizmente, não existem
mais. Foram destruídas pelos novos donos das terras. Fizeram loteamentos e casas. A entrevistada
contou, também, que no Porto existia uma caieira. A cal era feita das cascas de ostras. Tendo como
proprietário o Sr. Demétrio, chefe de seu pai, Sr. Laudelino. Era ele quem comandava todo o
serviço. A casa em que ela mora hoje foi construída nas terras do Sr. Demétrio.
No Calado existiam dois casarões onde os moradores pegavam água para beber de uma
fonte, conhecida como “Fonte da Praia”. Essa fonte fica nas areias da praia e quando a maré está
baixa, é só esgotar a água salgada das manilhas, que já se pode beber água “doce” que brota dos
minadouros. Os antigos casarões foram comprados por japoneses que, depois de um longo tempo,
os abandonaram, e os casarões foram destruídos pelo tempo e pela força das águas. Para que a
“Fonte da Praia” não deixasse de existir, assim como aconteceu com as ruínas das senzalas e a
caieira, os moradores resolveram colocar manilhas nos minadouros. Hoje, existem apenas dois
minadouros nas areias da praia, um é reservado para beber e o outro para banho. Apesar de que
algumas pessoas não respeitam este acordo dos moradores.
Segundo relato de outro entrevistado, o Sr. Pedro Lurico Julio dos Santos, 74 anos, pescador,
com muita perfeição para a pesca e que fabrica, manualmente, muzuás, os moradores sobrevivem,
atualmente, da pesca, da mariscagem, do artesanato, da confecção de redes e muzuás e da
pequena agricultura. Foi dito, também, que uma boa parte das terras de Catu foi vendida para

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estrangeiros, que se acham no direito de “proibir” os nativos, que moram nos arredores de suas
terras, de reformar suas casas ou, até mesmo, de construir algo nas terras que lhes pertenciam
desde muitas gerações, como a de Seu Pedro, cuja casa pertenceu aos seus avôs e era de taipa, em
outros tempos, tipo de moradia predominante do lugar. Ainda existem casas de taipa, daquele
tempo, em Catu. A proibição de livre acesso, instituída pelos novos proprietários, gerou caminhos
entrecortados por cercas, impedindo os filhos da terra de transitarem por lugares antes de livre
acesso e os impede, até mesmo, de colher frutos de árvores plantadas por eles. Houve até,
necessidade de intervenção da justiça para que os moradores pudessem passar por um dos
caminhos que dá acesso à praia.
Em Catu, podemos encontrar igrejas, sendo uma católica que fica em frente à praia. Há
também escola e creche, que no momento está desativada por falta de crianças de 3 a 5 anos de
idade, havendo apenas seis e que por este motivo não forma turma, mas estas crianças estudam na
escola do Ensino Fundamental I. Temos também temos a sede, restaurantes e bares.
Portanto, Catu, “bom” e “bonito”, é um lugar muito interessante para conhecer, tomar um
banho de mar e, logo depois, se deliciar com as águas dos minadouros, sem contar com a deliciosa
culinária. As cozinheiras de lá sabem fazer uma deliciosa moqueca.

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Fotos de Catu.

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O amor em Mar Grande
Shirlei Cristina S. Conceição

A tualmente moro em Mar Grande, mas, por muito tempo, residi em Salvador. O que me
motivou a escrever esse texto foi o amor que minha avó sentia por esse lugar chamado Mar
Grande. Minha avó, filha de um auxiliar de médico legista, que, no verão, vinha à Ilha veranear, se
apaixonou por um nativo. Ao longo de anos, namoraram, depois casaram e moraram aqui até os
seus filhos completarem o tempo para irem ao ginásio, época em que foram morar em Salvador.
O que mais me deixa apaixonada por essa história é que minha avó, professora, casou-se com
um analfabeto e meu avô morreu sem saber escrever o seu próprio nome. Com essa historia de
amor, vem, também, o amor por Mar Grande visto que a minha avó, que se chamava Raimunda
Veloso, escreveu diversas letras de músicas sobre Mar Grande, inclusive o hino desta localidade. D.
Raimunda trabalhou aqui como a primeira professora formada em magistério, pois, naquela época,
só havia professoras leigas.
Até os dias atuais, a minha tia e minha mãe querem ter um sonho realizado: ver uma escola,
nesta Vera Cruz, nomeada Raimunda Veloso em homenagem à matriarca apaixonada pelo
município, tanto quanto pela sua vida profissional.

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Cacha Pregos: alguns aspectos
Silvia Andrea Almeida Patrício

T odos os verões, passo em Cacha Pregos. Sou uma admiradora incondicional. Uma admiração
que vai além do potencial histórico e cultural do lugar. A localidade revela uma foto-lembrança
da minha infância, adolescência e chega à fase adulta, sem dúvida, com muitos momentos
inesquecíveis. Cacha Pregos pertencente ao município de Vera Cruz, Ilha de Itaparica, e tem hoje
muitos habitantes fixos, sem contar a população flutuante, constituída de veranistas. A pesca
sempre foi a atividade principal do lugar; o coco já foi o principal produto agrícola, sendo
comercializado em outros municípios. A localidade, por sua vez, tornou-se atração turística não só
pelas praias e pela tranquilidade como pela curiosidade que seu nome desperta nas pessoas
procedentes de outros estados.

CACHA-PREGOS: Origem do nome


CACHA, modificação da palavra caixa. PREGOS, espécie de peixe associado às poças
formadas na maré baixa. O nome foi dado a este lugar pelo português ARKILEU, no século XVIII. Na
época dos jesuítas, em mil setecentos e pouco, existia, no lugar, muito peixe agulha que os
primitivos chamavam de peixe prego. Em Ponta das Carapebas, um lugar situado bem no fim da
ilha, tinha um lugar onde os peixes ficavam presos e depois não conseguiam sair. Daí veio o nome
cacha, que quer dizer lugar ou recipiente para guardar ou prender objetos, e pregos,de peixe
prego. Então, Cacha Pregos: o lugar que prendia os peixes.

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Produtividades e características de Cacha Pregos
1*Óleo de peixes, azeite de dendê, carvão, cal, colchão de capim Marcele, colcha de retalhos,
cordas, redes , munzuá, cofo , cesto, ripixeu etc.
2* Estaleiros navais, construção de barcos à vela de içar, vela de pena, barcos a motores,
escunas, carpinteiros, calafates, marceneiros e pintores.
3*Negócios, as senhoras transportavam tudo isso: canoas com tonéis e latas de água e bacias
de roupas para lavar, passar e entregar nas casas das freguesas, tudo da fonte do mato em
Tapacirica e do buraco do Angico.
4*Produção agrícola: mamão, limão, abacate, milho, cajarana, frutapão, carambola, ingá,
banana, melancia, acerola, sapoti, pimentão e coco.
5*Aspectos marítimos: existiam muitos saveiros à vela, que transportavam mercadorias do
sul do recôncavo baiano para a capital do Estado, Salvador.
6*Alfaiates e costureiras confeccionavam até lembranças de Cacha Pregos, além de velas
para barcos, e todos os tipos de costuras.
7*Pescarias: pesca de rede, de calão, de tainheira, de puçá, de tarrafa, de redinha, de linha de
chumbada, através de canoas a remo e vela, saveiro de vela de pena; os pescados eram
negociados com os geleiros que conduziam para o comércio de Nazaré das Farinhas.
8*Marisqueiras: associadas a colônia de pescadores z-10 de Cacha Pregos, vendem produtos,
como sururu, salambi, papafumo, caranguejo, siri catado e na casca, peguari, ostra, aratu.
9*Há ainda pedreiros, de grande e médio portes, metalúrgicos e aprendizes.

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10*Alimentação: mungunzá, mingau, beiju, acarajé, bolos de aipim, milho, tapioca, cocadas
de todos os tipos, queijadas, bolacha de goma, salgados, geladão, pindunça, canjicão e
pamonha.
11*Comércio: em geral armazém, mercadinho, padarias, lojas, quitandas, bares e
restaurantes, pousadas, hotéis, sorveterias e lanchonetes.
12* São oferecidos aos turistas passeios de barcos e escunas a motores para a ilha dos Garcês
ou Ilha do Amor, pequeno recanto entre Cacha Pregos e a ilha dos Garcês.

Pessoas importantes:
1- PHILADELFO VIRPEDO ROCHA, primeiro mestre no estaleiro
2-BRAZ FELISBERTO DE SANTANA, servidor e amigo da comunidade
3-JESSÉ BARBOSA RAMOS, mestre e grande amigo de todos os moradores e dos veranistas.

Aos moradores agradeço a ajuda para realização desta pesquisa e vai um agradecimento
maior e especial para um senhor muito querido e amado por todos, sr. JESSÉ BARBOSA RAMOS,
que me cedeu, como referência bibliográfica, seu Diário Informativo (2009). Que Deus abençoe e
dê muitos anos de saúde e paz para ele e seus entes queridos.

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Juerana: o resgate de uma história
Sortenenes C. da Silva

A spectos históricos
Juerana, nome de uma árvore desta localidade, local onde se colocavam oferendas aos
deuses deste povo que ainda tem muita fé e crendices. Esta árvore ficava próxima ao Rio do Peri,
porém foi extraída por serralheiros há mais de 30 anos. Juerana era composta de três rios: Rio do
Carro, Rio do Peri e Rio do Meio, e está localizada na contra costa da Ilha de Itaparica, no município
de Mar Grande. Pertence aos terrenos das Fazendas Santa Rosa e Fazenda dos Sagres.
O Srº José Ramos (1898 – 2005) era conhecido popularmente por Zeca Preto, negro sábio, de
muita fé e segredos, que creio ter vindo de outra cidade onde exercia a profissão de vaqueiro.
Juntamente com outros amigos, Srº Adalberto e Srº Alfredo, residiu na Beribeira e trabalhou para
Srº Barnabé. Zeca Preto e seus amigos decidiram morar em Juerana que era conhecida como Areia
Branca.
Indo e vindo, conheceu dona Minha Veia, Maria das Dores da Conceição, mulher cabocla, de
beleza invejável. Zeca Preto não resistiu. Os dois “se juntaram” e passaram a residir no povoado. Ela
passou a exercer a profissão de parteira, a qual herdou da mãe Mariquinha e, aos poucos, foram
chegando irmãos e irmãs e outros parentes para morar no locak.
O povoado era dividido em Areia Branca e Pau Forro. Pau Forro não tinha moradores
suficientes para predominar nas decisões; sendo assim, aconteceu a unificação: Pau Forro e Areia
Branca, em homenagem a belíssima árvore que havia na comunidade, ficaram conhecidos como
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Juerana. Porém, nem todos os moradores ficaram satisfeitos e organizaram grupos culturais para
demonstrar sua rivalidade: Samba de roda, Pega Qió, Maria Barreira, Boi janeiro e outros, que se
encontravam e faziam suas apresentações, tradicionalmente, nos meses de janeiro, junho e
setembro, com desafios e requebrados das cadeiras daquelas moças e senhores que tinham as
habilidades de carregarem potes d'água na cabeça com mãos nas cinturas. Suas cantigas de roda e
samba aconteciam em noites de lua cheia. Naquela época, não tinha energia elétrica, porém tinha o
calor e o suor forte que atraiam para disputa e paqueras os poucos homens que moravam neste
lugarejo.
Aspectos religiosos
Segundo dona Qió, algumas freiras italianas irmãs, Joana, Elisa e Clara, que faziam parte do
convento de Itaparica, passaram a visitar e doar alimentos para o povo que residia na localidade. Os
mesmos sobreviviam do cultivo da mandioca, produção de farinha, plantio de milho, colheita de
castanha de caju, mariscavam e caçavam. Durante encontros entre as freiras e os moradores, em
discussões e opiniões, aceitaram a imagem do Senhor do Bonfim como padroeiro do povoado de
Juerana. As mulheres, inclusive dona Qió, sua mãe e suas irmãs construíram a capela do Senhor do
Bonfim. As primeiras ofertas foram doadas pelo senhor Barnabé; a imagem do padroeiro Senhor do
Bonfim chegou na capela na década de 1960, no mês de setembro. Os festejos aconteciam sempre
no 3º domingo do mês, havendo mudanças a partir de nomeações de padres na matriz de Mar
Grande. As festas que aconteciam no povoado, no mês de setembro, passaram a ser realizadas no
mês de janeiro, seguindo o Padroeiro do Estado, contrariando os moradores antigos que ainda
residem na comunidade. Após alguns anos, surgiu a comunidade de Vila da Mata, fundada por

93
imigrantes. Vindos do município de Nazaré das Farinhas, Srº Bartolomeu (Bertinho) e Srº Antonio
que, juntamente com a família, trouxeram a imagem de São José, padroeiro dos agricultores que é
homenageado com missas e procissões no dia 19 de março.
Falando de beleza e natureza não é possível esquecer os cultos afros dos terreiros de
candomblé das rezadeiras que aqui residem: o terreiro de candomblé do senhor Jaime,
(Babalorixá) com registro na Federação Nacional de cultos afro brasileiros. A última festa pública
do terreiro aconteceu em agosto de 1990. Infelizmente, o mesmo adoeceu e veio a óbito em
novembro de 2010. A viúva e seus filhos continuam no mesmo local. No terreiro da dona Das Dores,
são feitas oferendas e festas para os orixás: Iemanjá no mês de fevereiro, Oxossi e Cosme e Damião,
tendo ainda o caboclo Pena Branca e o Erê Palma Branca. Nos meses de agosto e setembro,
acontecem as festas e oferendas, quando necessário aos espíritos (deuses) Bom Babá e Egum
entre outros. A comunicação é feita através da língua africana Iorubá. Os endromedários de cada
manifestante dependem da manifestação dos espíritos. Não podemos esquecer da única rezadeira
que aqui mora, senhora Malvina, pessoa tranquila, acolhedora, avó, bisavó, senhora através de
quem conheci a eficácia das folhas.
Atualmente na comunidade encontram-se novas religiões tais como: Missão Betesda,
Batista, Assembléia de Deus e outras.
Escolhi escrever sobre esta localidade por maravilhosos motivos, porém cito alguns: por ter
sido convidada pelo ex-vereador Toinho a dar aula na localidade, em 1992, na Escola Municipal
Almiro Antunes de Brito; ouvir e conhecer os personagens e contos da fundação da localidade; ser
casada com o sobrinho de uma das fundadoras do povoado e participar do desenvolvimento

94
educacional, social e cultural, durante a minha atuação como professora, no período de um ano e
alguns meses. Logo após, fui nomeada diretora da unidade escolar citada anteriormente,
assumindo a direção por mais de dezesseis anos.
Sinto-me feliz por ter contribuído com o sucesso dos profissionais que foram ex- alunos da
escola, inclusive o atual diretor Adenilson, conhecido popularmente como Picuri e outros técnicos
de enfermagem, pedagogos; bem como o atual comerciante que ingressou na escola já adulto com
objetivo de aprender a ler e escrever para ter autonomia de administrar seu próprio
estabelecimento, Bar e Mercearia do Dedego.
Acredito nesse povo que tanto lutou e continua lutando, na participação coletiva através da
educação e nas orações, confiando na transformação, no progresso e sucesso da comunidade de
Juerana.

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Sobre pessoas e lugares do projeto “Shops” (Lojas)
Wilma Godoy

C onvidada a atuar como intérprete, no Projeto “Shops” (Lojas), realizado na Baía de Todos os
Santos, nos municípios de Vera Cruz e Itaparica, pelos ingleses, Rebecca French e Andrew
Mottershead, em 2008, marquei um encontro com os artistas, em Mar Grande. Eles queriam
publicar um trabalho sobre o comércio da Ilha e contei-lhes que já morava aqui, há dez anos, e que,
quando cheguei, a maioria das frutas e verduras eram compradas na mão de um vendedor que
comercializava os produtos, em cima de um burrico, de porta em porta. Eles ficaram fascinados e
perguntaram se eu poderia agendar um encontro com esse vendedor.
Passaram-se alguns dias, eles retornaram a ligação e combinamos para nos encontrarmos em
Itaparica. Lá, fizemos uma intervenção com alguns clientes do Mercadinho Litoral, na rua principal.
À medida que os clientes iam entrando, o casal inglês e eu íamos entrevistando-os. Eles, fazendo as
perguntas e eu funcionando como intérprete. Depois, eram convidados a participarem de uma foto
para o nosso projeto chamado Lojas. A ideia foi aceita pela maioria que ia se colocando no meio da
rua para compor a montagem desta foto. De repente, Andrew me chama lá de fora, pedindo para
que eu o ajude e, logo, me deparei com o cenário que estava sendo “arrumado”. Para a foto ficar
perfeita, eu, ao mesmo tempo, tinha que traduzir as informações dele, e pedir para o grupo de
pessoas que estavam posando, não se mexerem. Além disso, um cachorro que fazia parte dessa
montagem, não podia sair do lugar e os carros e transeuntes impacientes querendo passar, tinham
que esperar! Em frações de segundos, tudo estava em alerta total, qualquer deslize, a tentativa
seria um fracasso! Foi uma experiência bastante interessante.
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Marcamos, posteriormente, um terceiro encontro, na casa da mãe do Sr. Rosalvo, o
vendedor ambulante, com o seu burrico Medalha, carregado de frutas e verduras, no Riachinho, em
frente à funerária. Sr. Rosalvo nos contou um pouco de sua vida. Informou-nos que antes de
“Medalha” ser o transporte para os seus produtos, era um boi, chamado “Belo Mimo”, quem fazia
o “serviço”, mas por uma fatalidade, o boi caiu num buraco e não resistiu. Ainda durante a
conversa, perguntamos se podíamos acompanhá-lo e fotografar todo o percurso da sua “loja
ambulante” e o contato com os seus clientes.
Era um sábado, do verão baiano, no mês de janeiro, quando saímos, debaixo de um sol
causticante, através do morro do Riachinho até o outro lado, no Parque das Mangueiras e Jaburu.
Caminhamos por 5 horas e quando oferecíamos água para o Sr. Rosalvo, ele nos agradecia e
recusava dizendo que não sentia sede porque era um homem feito de couro. No trajeto, ele foi nos
contando que era vendedor desde os 8 anos e que deixava suas propriedades na Mata da Fazenda
Grande, terras entre Juerana e Misericórdia, todos os dias, às 7h da manhã, sete dias por semana, e
cavalgava por uma hora até chegar em Mar Grande. Contou- nos, também, que as terras, que hoje
considerava suas, mas que antes tinham sido arrendadas pelo antigo dono, era o local onde seu pai
e outros vizinhos, outrora, tinham sido escravos. Quando o Sr. João Santana, dono das terras,
faleceu, ninguém da família do falecido veio procurá-lo para definir o que seria feito: “A gente
fiquemo lá paralisado (por 25 anos) e a família do seu João Santana não fizeram mais percuração, de
modos que hoje a gente se uniu com o INCRA, fizemos documentos e a terra é nossa”.
Apesar de aparentar mais velho do que sua fisionomia mostra, seu Rosalvo se considera um
astuto homem de negócios. Perguntei-lhe o que ele achava de sua profissão e ele respondeu: “Ah,
eu acho a minha profissão uma grande beleza. É de grande sastifação. Tenho meu gadozinho,

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minhas prantação, meus animalzinho, muinta manga, muinto coco, muinto caju, muinta banana e
limão e todo tipo de horta: feijão, aipim, batata-doce, abroba e mio. Tô muinto filiz!”
No começo de 2010, recebi, via correio, dois exemplares do livro publicado: um para mim e
outro para o seu Rosalvo, cujos autores são Andrew e Rebecca com o título: People, places,
processs: The Shops Project by Frenchmothershead.

98
Parte II
Ouvir estrelas
Igor Rossoni1

R egistrar por palavras é um ato de amor.


A seleção de termos, a combinação deles em respeito à satisfação em obter êxito no que se
enseja perpassa a lógica de devotar precisão e responsabilidade na geração de sentido; sucesso
que não se distancia de dar ao outro a oportunidade de manter movimento de contato e
aproximação. Assim, não se escreve, não se fala, enfim, não se produz texto se não houver em
mente a presença do outro. Portanto, antesmente, comunicar é comungar com o semelhante um
tecido de encontro. Este parece ser o elemento chave da comunicação: o encontro. Mesmo que o
que se diga ou registre sob a forma de signos não disponha a mesma direção. O enlevo a iluminar é
de ordem anterior. Antes, o espírito do encontro, depois as consequencias que cada situação
impõe. Para isso a palavra converge; embora pouco se pense nesta qualidade intrínseca que
ambienta horizontes. As coisas existem, as coisas acontecem; as palavras dão sentido e
determinação. Geram possibilidades.
Penso, agora, em pequeno compêndio de certo fazedor de férteis anarquias com palavras. E
como elas podem nos aproximar de outros e de nós mesmos. Conta, com palavras, uma estória que
se quer história; ou – no caso – o inverso; que sugere dar no mesmo. Retrata o que é: um encontro
amoroso. Assim diz, por outras palavras: “Sombra-boa não tinha e-mail, escreveu bilhete: Maria me

1 Docente da Universidade Federal da Bahia.


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espere embaixo do ingazeiro quando a lua tiver arta. Amarrou o bilhete no pescoço do cachorro e
iscou – vai Ramela, passa... Maria leu e sorriu...”
Súbito, o primeiro encontro, o primeiro sorriso, o primeiro contato já se deu. Antes de nos
encontrarmos com Maria e Sombra-boa, topamos com uma coisa esquisita que vem.
Simplesmente, vem. Algo que não detectamos de imediato, nem de-como. Entretanto, à medida
que vamos na leitura, vimos em nós mesmos, Marias e Sombras-boas que somos, por não sermos. E
vivemos cada ínfimo de contato com sutilezas nossas que naquele momento, sem a aproximação
com o texto, por ventura, não havíamos acionado. Então, sorrimos; ou não. Alguém que não nos
conhece escreveu algo que nós vivemos ali ou no passado; quem sabe ainda viveremos. Pouco
importa. O que vislumbramos é vida pulsante. Nossa vida, própria. Vida-de-outro em comunhão. E
um silêncio estrondosamente a ocupar e preencher – a partir daí – pensamentos e sensações.
Então, de algo simples, por vezes grafado “errado” – para além do registro sígnico – outra
ordem de validade estabelece. A de que não se espera e satisfaz. E tudo, neste caso, se abriria ao
inebriamento. Não há necessidade de nominar o fazedor de amanhecimentos; nem de contar o
final daquela história, vez que já realizou a tarefa a que se propôs, por antes se fazer linguagem, do
que linguagem de algo. Colocou-nos diante do outro. E de nós mesmos.
Escolhi, para a ocasião, uma fala-escrita terna, por singela. Mera contingência. Ao inverso, a
palavra também se presta. O peso, a vibração que encorpa é o destino que a ela se projeta. No
entanto, aí reside o problema “de algo” e não de linguagem. Assim, a linguagem – e aqui digo do
modo mais amplo possível – está para o encontro; enquanto que a linguagem de algo o confirma ou
o destrói. Já se registrara pela palavra: “ai palavras, ai palavras, que estranha potência a vossa”. De
fato, assim é o sucesso, a cada coisa a devida validade.
102
O que se tem na coletânea Vera Cruz: nas letras da docência é um esforço-de. Exercício, à mão
armada, de – ao atingir ao outro – ferir-se de profundo naquilo que mais se crê ou se devota: a
docência. Lidar com palavras, lidar com ideias, lidar com o semelhante impondo ao “de algo”
fruição de linguagem; encontro de sensações; doce maquinaria de aconchegamento. Se ainda
estágio de em-avanço, o que repercute é a própria motivação do ir se fazendo na medida em que se
vive, em que se respira e se sonha. Não importa. Por mais uma vez e sempre, o encontro já se deu. A
oportunidade concretizou-se. O edifício tramou sujeito a sujeito em novas futuridades.
Assim, a presente coletânea – de encontro-em-encontro – agora esbarra contigo, prezado
leitor. Achegue-se de um tanto, anime retinas. Pequenas ondulações desde ao longe, daqui – do
espírito das palavras – estrelam-se.
Em busca-de.

103
Em sala de aula
Ana Cristina Paixeco

N o meio da aula, aconteceu uma briga entre dois colegas. Era uma turma com vinte e dois
alunos, onde há dois irmãos com faixa etária de onze e doze anos, Davi e Robson,
respectivamente. Eram os mais agitados da turma. Pode-se imaginar quem teria começado a briga.
Os demais alunos começaram a relatar o fato, informando que os irmãos provocaram tudo.
Davi e Robson foram os últimos a chegar à sala. Nesse dia, o tempo estava muito chuvoso e
eles chegaram encharcados. Perguntei onde eles estavam para ficarem daquele jeito; informaram
terem acordado as cinco horas da manhã para recolherem as vacas do pasto. Depois disso tiraram
roupas limpas da mochila e foram em direção ao banheiro para se trocar!
Bastou uns cinco minutinhos da chegada à sala, para provocarem a briga. Eles queriam
comandar a turma: tanto os colegas de sala quanto os das outras turmas, buscando demostrar
quem mandava “no pedaço”. Não respeitavam as professoras e muito menos os demais
funcionários, principalmente a diretora; que me informou que não aguentava mais de tanto
mandar chamar a mãe na escola e dar-lhes suspensão. Nada adiantava. Foi preciso eu resolver esse
problema em sala, pois a secretaria não sabia mais o que fazer a respeito. Comecei a pensar como
seria a vida desses meninos fora da escola, porque haviam me dito que acordaram muito cedo para
trabalhar e depois virem para escola.
Como pode duas crianças acordar tão cedo para trabalhar?
Foi aí que resolvi fazer uma visita a casa deles. Chegando lá, vi que a casa era pequena, com

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dois cômodos. A mãe ainda possui mais três filhos. Na casa também morava o marido, padrasto dos
menores. A situação era precária, às vezes não tinham nem o que comer, relatou a mãe, por isso
Davi e Robson precisavam acordar tão cedo para trabalhar. Informou também que sempre era
chamada na escola para receber queixa dos meninos e se lamentava por não saber mais o que fazer
com eles. Diante dessa situação, ela chegou a comentar que pensava em devolver os garotos ao pai;
entretanto, tem outra família e as condições dele também não eram boas. Assim, não via outra
solução. Regi – o padrasto – também não aguentava mais de tantas reclamações tanto da escola,
como dos vizinhos. Eu estava ouvindo tudo com atenção, tudo que a mãe falava e como falava,
achando que não tinha solução para aquelas crianças. Eles eram tão pequenos para que ela
entregasse os pontos daquela maneira.
Então pedi: – mãe tenha paciência, procure entendê-los para poder saber o por quê desse
comportamento, acompanhe o dia a dia para ajudá-los.
– Olhe professora, eu não estou brincando não, o caso é sério. Eu penso seriamente em
entregar ao pai; sabe o que eles dizem? ‘‘Que não querem ir, e se forem morar com o pai, vão fugir’’.
E então professora, o que fazer?
Eu disse:
– É mãe, realmente a senhora tem que dar muito conselho e carinho pra ver se eles mudam
principalmente esse comportamento.
Depois dessa conversa com a mãe dos meninos, fui dar aula e comecei a olhá-los com outros
olhos. Aqueles dois garotos eram carentes de carinho e atenção. Naquele dia mesmo, provocaram
um briga muito agressiva com o colega e fui ao encontro para evitar o pior; quase fui atingida por
uma tesoura que Davi segurava na mão. Encaminhei os dois para a direção e eles começaram a
105
chorar, pedindo desculpas pelo acontecido. A diretora redigiu uma suspensão para os dois; os
mesmos choravam muito e diziam que a mãe e o padrasto iam bater neles como sempre, quando
recebiam queixas. Observei a cena e descobri como eram tão meninos ainda e não aqueles
valentões da sala, que eles buscavam demonstrar; pareciam outros meninos.
Eu, vendo aquela cena na direção, pude observar que esses garotos eram daquele jeito
devido ao modo de vida que viviam; acordando cedo para trabalhar, sem carinho dos pais, sem
alimentação adequada na hora certa, sendo espancados de vez em quando pela mãe.
Realmente é um modo de vida muito duro para duas crianças.

106
Uma história de leitura e escrita
Nilma dos Anjos Santos

C omeço esta história lembrando de minha infância. Sempre fui uma criança dedicada aos
estudos. Naquele período não havia escolas com Educação Infantil, por isso muitas vezes
estudávamos na antiga igreja católica da localidade de Barra do Gil, onde moro. Muitas vezes fui
convidada a recitar poemas em eventos festivos.
Durante brincadeiras de bonecas, minhas colegas e eu simulávamos uma sala de aula,
recortávamos papéis e escrevíamos tarefinhas para as bonecas como se pudessem realizar tais
coisas.
Apesar dos momentos prazerosos, tenho algumas recordações não muito agradáveis, mas
que trouxeram contribuição importante para minha vida. Quando cursava a primeira série do
Ensino Fundamental no período vespertino, antigo primário, não me recordo qual a razão, sempre
adormecia durante as aulas. Situação complicada, pois, se eu adormecia, após a realização das
tarefas e da leitura, a professora deixava-me dormir; no entanto, se fosse antes da execução das
tarefas ela me acordava puxando-me a orelha ou jogando água gelada em meu rosto. Ao realizar as
avaliações regulares, infelizmente, não conseguia tirar boas notas. Entretanto, em minha casa
respondia a todas as avaliações sem fazer consultas. A professora conversou com meus pais na
tentativa de convencê-los a permitir que eu fizesse a recuperação, mas meu pai não consentiu. Em
verdade isso foi apenas um estímulo, pois repeti a mesma série e não mais tirei notas ruins nas
avaliações, sendo sempre aprovada com mérito.

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Minha mãe esforçou-se para manter-nos na escola. Todos os anos trabalhava como
doméstica a fim de comprar nossos materiais; enquanto isso eu cuidava da casa. Naquela época
cursava a quarta série. Recordo-me da emoção quando minha mãe comprou meu livro integrado.
Ter um livro com todas as disciplinas era um sonho! Tiramos até uma foto para registrar o momento.
No período, já criava, com conhecidos, peças teatrais, participávamos de grupos de teatro e
dança, o que contribuiu para expressar-me publicamente.
Durante o curso de Magistério, em escola estadual de Vera Cruz, a professora de Literatura
solicitou-nos um trabalho em que devíamos ler vários livros e apresentarmos a vida e obra dos
autores, em formato de seminários. Um deles foi Jorge Amado, marcando-me assim a figura
inebriante de Quincas Berro d'Agua e a forma interessante de construir a referida narrativa.
Às vezes a vida parece irônica, entretanto, creio nada acontecer por acaso. Chegara o fim do
curso de magistério: o dia da formatura. Fui escolhida para ser a juramentista da turma. Estava tudo
preparado, inclusive meu pequeno mas sincero texto, de aproximadamente seis linhas. No
entanto, ao chegar ao colégio uma das professoras organizadoras do evento pegou-me pelas mãos
e disse: “É você mesmo que eu estou procurando!”. Recebi naquele instante a responsabilidade
para ser a oradora da turma. Como iria memorizar uma folha completa em tão pouco tempo? Dei
umas voltas caminhando pelo corredor fazendo a leitura oral e lá fomos nós. Naquela ocasião,
estava presente um presbítero da Igreja Evangélica Assembléia de Deus e, segundo relatos dele, ao
presenciar minha exposição oral, dissera para Deus que a igreja estava precisando de uma
secretária assim. Acreditem, era vinte e três de janeiro de mil novecentos e noventa e nove; cinco
meses depois – exatamente no dia vinte e três de maio – visitei a congregação e lá entreguei minha

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vida ao Senhor Jesus Cristo, aceitando-o como meu único e suficiente Salvador. Após o batismo, o
primeiro cargo que recebi foi o de secretária. Deus sabe o que faz!
Aí começa minha trajetória como professora. Não fui logo para sala de aula. Inicialmente,
alguns colegas e eu resolvemos dar aulas de reforço em um espaço alternativo. Não permaneci por
muito tempo, vez que fui convidada para trabalhar numa panificadora.
A Prefeitura Municipal de Vera Cruz abriu inscrições para concurso público para professores.
Muitas vezes íamos e voltávamos andando para Mar Grande assistindo aulas a fim de prepararmo-
nos para a referida seleção. Consegui ser aprovada e fui encaminhada para uma das escolas de
Barra do Pote. Infelizmente, ainda não tinha experiência para trabalhar com Educação Infantil.
Passei apenas três meses naquela escola e fui transferida para outra em que passei a lecionar em
turma de quarta série. Já se passaram, desde então, aproximadamente onze anos de experiência
no processo de ensino e aprendizagem. Sempre gostei de trabalhar com turmas maiores, pois
amplia-se o estado de troca de informações. A possibilidade de criação, de raciocínio, exposição do
pensamento e compreensão dos conteúdos facilita o trabalho do professor. O maior desafio é
justamente quando os alunos não se mostram aptos, ou seja, não desenvolveram as habilidades
que lhes seriam necessárias para um bom encaminhamento neste processo. É mais trabalhoso
alfabetizar um aluno que já deveria estar preparado para dar continuidade ao processo de leitura e
escrita. Nesse sentido, resolvi enfrentar um desafio e assumi uma turma com característica de
alfabetização. Surgiu, então, a possibilidade de trabalhar com o Projeto Alfa e Beto, valendo-me do
método Dom Bosco. Ao observar o trabalho de algumas colegas alfabetizadoras, percebi que se
preocupavam muito com a grafia correta, porém este projeto utilizava justamente os sons para
formar as palavras. Essa experiência contribuiu muito para compreender o processo de formação

109
das palavras e, respeitando a diversidade, não considerar taxativamente como erro quando um
aluno escreve /gudi/ ao invés de /gude/, /bunitu/ ao invés de /bonito/. Acredito que se o aluno
consegue discernir as diferenciações de sons que uma mesma letra pode possuir, sem dúvida
escreverá com maior segurança. Atualmente, cursando Letras Vernáculas, percebo a importância
de conhecermos a própria língua, origem e variações para então trabalhá-la com os alunos.
As oficinas de Leitura e Escrita proporcionaram reflexões sobre o que é ler, o que é a palavra e
a importância desta na construção de um texto. Uma forma prática de incentivar os alunos à prática
da leitura é a construção do cantinho da leitura. Sempre gostei de utilizar tal recurso em sala de
aula. É gratificante perceber o interesse dos alunos que, talvez por mera curiosidade, manuseiem
um livro e de repente desejem levá-lo para casa e partilhá-lo com os familiares. Com o Projeto “Se
Liga”, do Instituto Airton Senna, essa prática foi reforçada em minhas salas de aula. Seja na leitura
individual ou coletiva, a troca das informações após a leitura é fator primordial para a construção do
gosto pela leitura. Já afirmava Monteiro Lobato: “Quem não lê, mal ouve, mal fala e mal vê”. É óbvio
que ler é muito mais que decodificar. Perpassa pela construção social do indivíduo, do seu
conhecimento de mundo para interpretar de forma consciente e atribuir um “juízo” consciente
sobre o que foi lido.
Ainda estou caminhando nesse processo de formação de leitores, embora acredite que ele
seja contínuo na vida de cada ser humano.

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Primeiros momentos
Patrícia Kipper

A vida acorda todos os dias, ora cheia de motivação, ora cheia de ira.
O sol despontava sutil, quando de repente, a melodia harmoniosa do silêncio foi desafinada. O
celular tocou como sinal rachado, produzindo um barulho infernal. O som foi ouvido por mais duas
.

vezes, rendi-me ao compromisso da consciência, antecipadamente firmado.


Produção textual? Não sabia ao certo o que me esperava, talvez precisasse reinventar, quem
sabe até recriar, para o novo, eu não estava de portas abertas, mas resolvi arriscar.
Soprei a nuvem de minhas dúvidas e saí pensando, será que vou mergulhar em mais um dia
cansativo?

Texto argumentativo
Comunicação, oralidade e escrita.
É de grande valor estar atualizado sobre a nossa própria língua, nossos hábitos linguísticos,
ortografia e tudo o que envolve a comunicação.
Segundo professores de Língua Portuguesa, como abordado nestas oficinas de produção
textual, o importante é estabelecer um processo de comunicação claro, em que se possa
compartilhar conhecimentos. Em certas ocasiões o tipo de comunicação escolhida dependerá do
nível intelectual tanto dos locutores como dos interlocutores; nesses casos deve prevalecer o bom
senso.
111
Ao redigir, o bom domínio da gramática e de suas regras nunca será demais, pois para a
oralidade, por ser efetivada de maneira natural, esta ocorre no âmbito da informalidade, a
depender do público alvo. Entretanto, quando se diz respeito à escrita, as regras devem ser
seguidas ao máximo para se fazer entender, mesmo quando se quer transmitir o conteúdo de
forma simples e clara, pois isso não quer dizer que as palavras difíceis ou em desuso serão aplicadas,
mas o texto produzido deve seguir a ortografia oficial da língua na qual a produção está sendo
escrita.
Só é comunicação aquilo que se pode entender.

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Idéias do cotidiano, abrindo os olhos para sala de aula
Tereza Antônia

Q uando a criança faz o percurso de casa para a escola traz consigo muitas informações do
cotidiano. Passa por rios, pontes, estradas, ruas, comércio informal e formal como
supermercados, livrarias, padarias, farmácias, hospitais e diversas formas de comercialização.
Enfrenta situações que fazem parte do seu dia a dia como violência em todas as modalidades. Sem
falar nas incivilidades das quais são vítimas. Quando traça o caminho percorrido, passa por
diferentes tipos de paisagens que certamente pela sua imaturidade não compreende que tudo faz
parte do sistema e que, no futuro, terá visão para uma abordagem cientifica através da pesquisa.
A criança é um sujeito social e histórico que está inserida em uma sociedade na qual partilha
de determinada cultura. É profundamente marcada pelo meio social em que se desenvolve, mas
também contribui com ele. A criança, assim, não é uma abstração, mas um ser produtor e produto
da história e da cultura.
O professor não se dá conta de tanta informação trazida pelos seus alunos e que pode ser
trabalhada nas diversas disciplinas, em praticas educativas que fortalecerão conhecimentos desses
alunos no futuro. Partindo do princípio que todo indivíduo já nasce com propensão ao
conhecimento, as informações acima mencionadas traduzem os diversos pilares da educação, que
saindo do currículo tradicional iremos aplicar o currículo vivo, trazendo as experiências do
cotidiano para sala de aula.
Os assuntos discutidos na sala de aula não são estranhos a esses alunos porque os mesmo já
113
os conhecem, só restando a parte acadêmica e a concretização de tudo absorvido nos livros e no
cotidiano. Quando já temos informação de algo, fica mais fácil compreender, já que o
desconhecido é misterioso e incompreendido. Assuntos que criança gosta são assuntos sobre os
quais eles se interessam, tais como música, dança, teatro, internet, por meio dos quais eles têm
facilidade de absorver informações porque fazem parte do seu Eu. É a base, a iniciativa necessária
para professores e alunos poderem desenvolver a criatividade plena em seu cotidiano.
Um planejamento visando essas informações contidas no cotidiano que eles vivenciam é
abrir horizontes a um público que continua sendo motivo de discussão pela maneira que vem
sendo abordadas as várias temáticas na aquisição do conhecimento. Não é fácil fazer alguém
aprender partindo do nada. Como o nada não existe, iremos partir do tudo, tudo que vemos,
colhemos, convivemos, conhecemos, participamos e partilhamos. Até nossas sensações,
emoções, perdas e ganhos são trabalhadas, sentidas e avaliadas.
Segundo Luis Carlos de Menezes, é essencial a convicção de que todos podem aprender. Sem
essa certeza, é comum atribuir responsabilidades para fora da escola ou inventar casos perdidos
que legitimariam o “lavar as mãos”. A questão que se coloca, então, é como lidar com uma criança
que ainda não chegou a aprender o que seus colegas já conseguiram. A primeira iniciativa para isso
é valorizar o que ela já sabe. Se um aluno sente dificuldades em determinadas disciplinas, pode ser
sugerido trabalhos coletivos, com estudos de vários gêneros onde irão interagir com outros
colegas, no uso de diferentes habilidades.
Quando falamos do cotidiano dos nossos alunos não podemos esquecer da grande
importância das brincadeiras que eles trazem para as escolas. É necessário que o educador insira o

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brincar em um projeto educativo, o que supõe intencionalidade, ou seja, ter objetivos e consciência
da importância de sua ação em relação ao desenvolvimento da aprendizagem.
A relação entre os jogos e a aprendizagem significativa destaca que a boa escola não é
necessariamente aquela que possui uma quantidade enorme de caríssimos brinquedos eletrônicos
ou jogos ditos educativos, mas a que dispõe de uma equipe de educadores que saiba como utilizar a
reflexão que o jogo desperta, saiba fazer de simples objetos naturais uma oportunidade de
descoberta e exploração imaginativa. Uma caixa de fósforos, uma lupa e uma fita métrica, em mãos
de uma verdadeira educadora, valem bem mais que uma coleção fantástica de brinquedos
eletrônicos que emitem sons e luzes e que, por se apresentarem perfeitos demais, roubam espaços
à imaginação.

A criança e a linguagem: interação e inclusão social


As crianças, desde muito cedo, convivem com a língua oral em diferentes situações: os
adultos que a cercam falam perto delas e com elas. A linguagem ocupa, assim, um papel central nas
relações sociais vivenciadas por crianças e adultos. Por meio da oralidade, as crianças participam de
diferentes situações de interação social e aprendem sobre elas próprias, sobre a natureza e sobre a
sociedade.
Vivenciando tais situações, as crianças aprendem a falar muito cedo e, quando chegam ao
ensino fundamental, salvo algumas exceções, já conseguem interagir com autonomia. Na escola
aprendem a produzir textos orais mais formais e se deparam com outros que não são comuns no
cotidiano de seus grupos familiares ou de sua comunidade. Na escola elas ampliam suas

115
capacidades de compreensão e produção de textos orais, o que favorece a convivência delas com
uma variedade maior de contextos de interação e a sua reflexão sobre as diferenças entre essas
situações e sobre os textos produzidos.
O mesmo ocorre com relação à escrita. As crianças e os adolescentes observam palavras
escritas em diferentes suportes, como placas, outdoors, rótulos de embalagens: escutam histórias
lidas por outras pessoas etc. Nessas experiências culturais com práticas de leitura e escrita, muitas
vezes mediadas pela oralidade, meninos e meninas vão se constituindo como sujeitos letrados.
Reconhecendo essa diversidade e a necessidade de investirmos na formação dos estudantes
para lidar de forma autônoma e crítica com situações do cotidiano, podemos trabalhar com uma
gama variada de gêneros textuais na escola, promovendo, assim, situações de leitura, produção de
textos e reflexões sobre os aspectos sociais do cotidiano e outras variedades textuais de forma
interdisciplinarizada.
Os textos devem estar baseados no cotidiano dos alunos, considerando sempre suas
experiências e anseios. É importante nós, educadores, promovermos atividades que envolvam
essa diversidade textual e levarmos os estudantes a construírem conhecimentos sobre os gêneros
textuais e seus usos na sociedade. Do ponto de vista do método de trabalho, se quisermos
trabalhar no sentido de uma sociedade democrática, é relevante a criação de espaços pedagógicos
onde, tanto o professor quanto os estudantes, possam elaborar propostas de atividades, de
projetos de planejamento com ideias do cotidiano.
A escola potencializa, desse modo, a vivência da infância pelas crianças, etapa essa tão
importante da vida, em que tanto se aprende. Assim, considerando a participação ativa das crianças

116
e adolescentes na escola, em espaços e tempos adequados à singularidade dessa fase da vida, a
experiência de aprender ganha significado social na perspectiva da construção da autonomia e da
cidadania, como mencionamos anteriormente.
Na interação com seus pares e com os professores, por meio de variadas e dinâmicas
atividades, as crianças vivenciam os processos de aprender e também de ensinar, com empenho,
responsabilidade e alegria. É imprescindível que todos se sintam à vontade e tenham espaços para
manifestar seus gostos e desgostos, suas alegrias e contrariedades, suas possibilidades e limites,
seus sim e seus não.
Para finalizar, considerando as questões apresentadas, em função das ideias do cotidiano no
planejamento escolar, deve-se ter ênfase na oralidade e em outras formas de expressão. Por meio
da participação ativa dos educandos em atividades interativas e lúdicas, consequentemente, será
um bom caminho para orientar os processos de ensino-aprendizagem ao longo do ensino
fundamental – a escola precisa ser séria, mas não precisa ser sisuda, como dizia Paulo Freire.

117
Posfácio
Ler, ouvir, escrever
Maria das Graças Meirelles Correia*

“A palavra foi feita para dizer”


Graciliano Ramos

N ão é fácil ter o que dizer – ou melhor – escrever após a riqueza de tantas experiências
apresentadas na coletânea Vera Cruz: nas letras da docência. Entretanto, a dificuldade,
necessariamente, não se efetiva pela falta de ter o que dizer ou escrever. Ao invés, solidifica-se,
pois, à vastidão dos temas abordados se soma ainda reflexões sobre o ensino e a aprendizagem da
leitura e da escrita nas escolas brasileiras. Este tema, motivador das oficinas que resultaram na
presente coletânea, estrutura o esforço reflexivo sobre, e segue, de modo sucinto, teorizado neste
ensaio, à guisa de posfácio.
Para o senso comum é corriqueira a percepção de leitura e escrita como procedimentos
indissociáveis. Além disso, circula a noção de que os processos de ensino e de aprendizagem que
garantem a aquisição de ambas são de responsabilidade da escola, cabendo, portanto, ao
professor – sobremodo àqueles dedicados à docência de língua materna – a responsabilidade de
ensinar a ler e a escrever.

* Maria das Graças Meirelles Correia é fotógrafa e professora, atua, sobretudo no registro documental de tradições populares
e na formação de docentes em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.
121
Do ponto de vista dos estudos mais contemporâneos em linguística1 , há considerações de
que os procedimentos de leitura e de escrita estão intimamente relacionados. Entretanto, os
indivíduos operacionalizam habilidades distintas para a aquisição de competências tanto em uma
particularidade quanto em outra. Assim, quem “lê bem” – que significa possuir índices frequentes
de práticas leitoras, quer sejam laborativas ou de entretenimento – não é, necessariamente, um
escritor eficiente.
O uso da língua – entendido como conjunto de processos dinâmicos que, por meio da
interação, permite a comunicação entre os indivíduos – é fato social e histórico marcado pelas
interações culturais que identificam tempo-espacialmente um grupo de pessoas. Não existe língua
sem falante e, por sua vez, a realização de qualquer evento linguístico está impregnada do conjunto
de práticas individuais e coletivas que caracterizam determinado falante. Por meio desses
conceitos, é facilmente perceptível que existe língua fora dos muros da escola e que, antes mesmo
de inserir-se nos contextos da Educação Infantil, a criança já mantinha contato com determinado
contexto linguístico. Todavia, é na escola que as crianças vão se conscientizar do uso reflexivo da
língua e do conjunto de padrões paradigmáticos por intermédio dos quais são garantidas as
práticas comunicacionais.
No dia a dia, durante o uso cotidiano, os falantes – quer criança, quer adulto – usam a língua de
1 Luciano Amaral Oliveira, em recente publicação dedicada aos docentes alerta: “Ninguém nos ensinou a falar português.
Tivemos que estudar para aprender a escrever. Isso implica fato importante: a fala e a escrita não são a mesma coisa, embora
estejam intrinsecamente relacionadas. Todo brasileiro, alfabetizado ou não, sabe português. E isso é uma afirmação óbvia
porque conseguimos nos comunicar oralmente em português com todos os outros brasileiros. Entretanto, e infelizmente,
nem todos os brasileiros sabem ler e escrever. In: Coisas que todo professor de português precisa saber: a teoria na prática. São
Paulo: Parábola Editorial, 2010. p. 109-110
122
modo reflexo; ou seja, as pessoas falam porque o falar é uma condição inata do homem, mas
necessariamente não ficam perscrutando sobre organização sintática ou morfológica das frases.
Nesse sentido, os problemas de ensino da fala são reduzidos em âmbito escolar. Todavia,
proporcionalmente inversas são as aflições que acercam o ensino da escrita. No Brasil, segundo os
dados do próprio Ministério da Educação, são alarmantes os problemas de aquisição de
competência escrita pelos estudantes da Educação Básica. Por intermédio dos números do Índice
de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), cerca de 25% dos estudantes egressos das séries
iniciais do Ensino Fundamental não conseguem decodificar textos escritos em língua materna. Ou
seja, crianças entre 9 e 14 anos saem da escola sem saber ler, e no curso da vida escolar – dado o
aproveitamento em Língua Portuguesa e Redação nos concursos vestibulares e no Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM2) – não conseguem sanar as deficiências para tornarem-se leitores e
escritores competentes. Quanto à leitura, em pouco mais de meia década, se analisado o acesso ao
livro por meio das políticas públicas de distribuição de livros didáticos e paradidáticos, os índices
melhoraram significativamente: os brasileiros em idade escolar passaram de 1,8 livro per capita, em
2003, para 4,7, em 2010 3. Entretanto, não há estudos oficiais sobre o aproveitamento em escrita,
daí os parâmetros mais justificáveis se balizarem nos dados do ENEM.

2 Em site oficial, o MEC divulgou, por áreas, tabela com os resultados do aproveitamento no ENEM referentes ao ano de 2010.
Em escala decrescente, os rendimentos foram assim apresentados: Matemática e suas tecnologias: notas mínimas de 313,4 e
máximas de 973,2; Ciências da Natureza e suas tecnologias: 297,3 e 883,7; Ciências Humanas e suas tecnologias: 265,1 e 883,7 e,
por último, Linguagens, Códigos e suas tecnologias com menores índices mínimos, 254,0 e máximos, 810,1. In:
sistemasenem2.inep.gov.br/resultadosenem. Acesso aos 30 de julho de 2011.
3 In: http://www.cultura.gov.br/site/2010/08/11. Acesso aos 30 de julho de 2011.
123
Assim, afinal, a que se devem tantos fracassos na aprendizagem da leitura e, sobretudo, na
aprendizagem da escrita? Primeiramente, vale advertir que as causas aqui apontadas como
principais serão diretamente relacionadas com supostas estratégias que derivam das dificuldades
no trato com a língua escrita e, consequentemente, com a produção de textos. Nesses termos,
assinala-se – de modo mais detido – o conceito de texto. Segundo Ingedore Koch, “texto é um
evento sociocomunicativo que ganha existência dentro de um processo interacional. Todo texto é
o resultado de uma produção entre interlocutores (...)” 4. Da citação, convém destacar o termo
“interacional” e analisá-lo: um texto é, portanto, a resultante da interação entre quem fala/escreve
e ouve/lê. Com base neste conceito, é possível destacar que a produção de um texto, falado ou
escrito, pressupõe processos dinâmicos que geram sentidos em contextos históricos
determinados. Talvez aí resida o principal problema da escola: o ensino de língua não prepara os
estudantes para se tornarem sujeitos de um processo interacional, pois a produção de língua, ao
passo que é produto, é também e, ao mesmo tempo, processo. Em linhas gerais, aos estudantes é
ensinado um conjunto de regras socialmente amorfas, do qual são obrigados a decorar – de
maneira segmentada – nomenclaturas e conceitos. Pouco tempo se reserva à reflexão sobre a
necessidade de os estudantes se tornarem falantes reflexivos da língua, de modo a garantir que se
apropriem de processos de produção linguística que lhes assegurem – com êxito – produções em
modalidade formal de língua. Raras vezes o estudante é convidado a refletir sobre o fato de que a
escrita “envolve aspectos lingüísticos, cognitivos, pragmáticos, sociohistóricos e culturais” 5, os
quais pressupõem sua interação com o grupo em que está inserido. Com menor frequência ainda é

4 Koch, Ingedore Villaça. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2009. p. 13.
124
instigado a responder: para que escrever?; por que escrever?; para quem escrever?; onde escrever?
e quando escrever? A escola se resume a exigir que produzam as famigeradas redações que – via de
regra – destinam-se a leitura apressada dos professores de Língua Portuguesa. Neste cenário, se ao
estudante resta pouco tempo para a reflexão; para o professor – que na grande maioria acumula
entre 40 a 60 horas aulas semanais, e no caso de Língua Portuguesa, nas séries finais do Ensino
Fundamental, o acumulo de três turmas, com média de 30 estudantes por cada 20 horas – a
assertiva não é diferente. Assim, como refletir e promover a reflexão, com qualidade, de
aproximadamente noventa alunos, caso seja produzido um texto individual por semana? Nesta
estrutura, no pouco tempo disponível, os processos avaliativos em produção textual, sobretudo
nas escolas públicas da educação básica, restringem-se à “correção” de erros de ortografia, de
concordância etc. Assim, o professor propõe um tema, solicita a escrita da redação e marca a data
para entrega. Recebe os textos, corrige-os, atribui-lhes uma nota e os devolve ao estudante. Este,
por seu turno, restringe-se – quando muito – a comparar o próprio texto com o dos colegas e a
reclamar das baixas notas. Uma vez escrita e avaliada, a produção textual cai no ostracismo. A
redação, que é também processo, poderia ser usada como reflexão sobre o fato de a escrita ser um
contínuo de construção textual em que o sujeito tem algo a dizer a outrem, em determinada
relação de tempo e espaço; ao invés, é esquecida e – na maioria dos casos, jogada no lixo. O texto,
caso tomado como processo, deveria servir para ambos – estudantes e professores – exercitarem
seus conhecimentos linguísticos, enciclopédicos, textuais e, sobretudo, interacionais.
As práticas de ensino nas escolas brasileiras – certamente não apenas na rede pública –

5 Idem, p. 36.
125
pautam-se no mero decorar de normas. Dentre as práticas cotidianas em sala de aula, é esquecido
que conhecimentos linguísticos auxiliam ao falante a exercitar o domínio do código escrito comum
com o leitor, no qual estão implicadas normas ortográficas, lexicais e sintáticas; que podem
atualizar os conhecimentos enciclopédicos na medida em que o processo de escrita prevê a
rememoração dos conhecimentos de mundo, a reflexão sobre eles e a consequente renovação de
ideias e pré-conceitos. A produção de textos em âmbito escolar não precisa se fincar na repetição
de redação, redação, redação, até porque REDAÇÃO não é gênero textual. Este fator contribui de
modo negativo na motivação dos discentes, pois devido à consciência metagenérica própria a
todos os falantes, o estudante sabe que seu produto – a redação – terá aplicação social restrita à
apressada leitura do professor. Ao invés, a produção escolar poderia preparar os estudantes, por
intermédio do exercício de conhecimentos textuais, a descobrirem a riqueza dos gêneros textuais,
e propor reflexões sobre a função cotidiana de cada um. Por fim, produções textuais em sala de
aula seriam excelentes para fomentar relações entre sujeitos comunicantes: o docente incentivaria
o estudante a se comunicar por intermédio da escrita – escrevendo textos com possibilidade de uso
social em via impressa ou digital – e, ao mesmo tempo, no curso da escrita/reescrita, haveria
interação mais profícua entre docentes e discentes.
Em que pese as digressões epistemológicas, as propostas para melhorar os índices de leitura
e escrita nas práticas escolares no Brasil dependem de ações simples, mas de efeito imensurável e
duradouro. Este foi o caso da coletânea Vera Cruz: nas letras da docência. A proposta partiu de uma
ideia simples: exercitar oficinas de produção textual que promovessem a reflexão sobre o processo
de leitura e escrita, tornando os textos produzidos socialmente úteis. O objetivo desta coletânea

126
foi, em primeira instância, servir como referência aos docentes que a produziram para possíveis
usos em sala de aula. Uma vez proposta a finalidade para os textos, faltava sensibilizar os docentes
para a nobreza da causa. Então, de modo responsável e cuidadoso, foi elaborado um projeto a ser
executado interinstitucionalmente: de um lado a Prefeitura do Município de Vera Cruz, cujos
representantes – diante do caos histórico da educação municipal – propõem intervenções; e de
outro, docentes ligados a grupos de pesquisa de Universidades Públicas. O projeto Oficinas para
produção textual objetivava oferecer oficinas para docentes da rede municipal de Vera Cruz
visando despertar-lhes para os processos reflexivos que os torna agentes de linguagem com vistas
a sensibilizar-lhes sobre as práticas docentes de ensino de língua portuguesa. As oficinas –
ministradas por professores-pesquisadores – buscaram extrair ao máximo as potencialidades de
escrita/reescrita dos textos propostos, optando pela construção de pequenas narrativas
memorialísticas que descrevessem aspectos cotidianos dos seus respectivos lugares bem como as
práticas de sala de aula. Então, o produto deste simples projeto, prezado leitor, é o conjunto de
palavras docentes que você acabou de ler. Para alguns dos escritores aqui relacionados,
certamente, são as primeiras a virem a público. E para eles, a leitura que você, leitor, acabou de
realizar é um regozijo, pois potencializa-lhes a capacidade comunicativa além de dar a conhecer
sobre realidades que constituem a educação em nosso país.
Conforme dito no texto de apresentação, a coletânea Vera Cruz: nas letras da docência
contém uma pequena chama dos seus escritores. Esta chama materializa em palavras os
conhecimentos linguísticos e de mundo de cada docente que participou das oficinas. Resulta do
esforço de muitos, que enredados nas malhas institucionais desburocratizaram os trâmites e
127
revestiram de boa vontade estas páginas que lhes chegam às mãos. Que ações como as vivenciadas
possam ser repetidas, pois, se são verdadeiros os esforços para a qualidade da educação no país,
não é possível fazê-lo sem ouvir e ler seus principais atores: docentes e estudantes.

Referências:
1. Koch, Ingedore Villaça. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2009.
2. Oliveira, Luciano Amaral. Coisas que todo professor de português precisa saber: a teoria na prática. São Paulo:
Parábola Editorial, 2010.

128
Quantas vezes encontramos um livro produzido por
professores que labutam no ensino público?
Raramente. E é justamente isso que
Vera Cruz: nas letras da docência

Vera Cruz: nas letras da docência nos traz:


as vozes de professores que, no cotidiano,
lidam com a educação básica. No universo
editorial brasileiro, coletâneas como esta
são incomuns. Esta, leitor, nos transporta
para salas de aula na Ilha de Itaparica por
meio da escrita dos professores e, de certo,
servirá como incentivo para outras vozes docentes.

Luciano Amaral

Realização:

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