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O CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO
A filosofia de Baruch de Espinosa e o pensamento complexo
Humberto Mariotti
Espinosa bem sabia que nem todo mundo pode fazer filosofia. (...) Fazer filosofia
tem uma causa; não fazer, também. Uma das causas da não-filosofia é que a regra, em
uma sociedade, é antes a superstição, a servidão e a obediência, em vez do
conhecimento, da liberdade e da compreensão
(André Scala)
Introdução
O propósito deste ensaio é mostrar que vários dos insights que hoje fazem parte de
teorias importantes da atualidade já se encontravam, no século 17, no pensamento de
Espinosa.
O pensamento complexo, em especial o concebido por Edgar Morin, é uma dessas
teorias. No entanto, desde já ressalvo que não pretendo de modo algum reduzir Espinosa
ao pensamento complexo nem o contrário. Busco apenas pontos comuns, os quais, como
se verá ao longo do texto, existem e têm importância, pois Espinosa influenciou — em
alguns casos profundamente — muitos dos que viriam depois dele. Não poderia deixar de
ser assim, aliás, se considerarmos a ousadia, a postura em muitos aspectos radical e o
rigor conceitual com que ele desenvolveu suas idéias. Por tudo isso, é quase certo que
quem tem interesse pelo pensamento complexo cedo ou tarde acabe por se interessar
também por Espinosa.
História
A partir de 1492, ano da descoberta da América, os judeus que viviam na Espanha
viram-se no seguinte dilema: converter-se ao cristianismo ou ser expulsos do país, não
sem antes de ter seus bens confiscados. Diante dessas circunstâncias, a família Espinosa
emigrou para Portugal, sua terra de origem, imaginando que assim resolveria o problema.
Mas sua tranqüilidade não durou muito: poucos anos depois, viu-se na mesma situação.
Por isso, os Espinosas decidem emigrar de novo. Vão primeiro para Nantes, na
França, e depois para Amsterdã, onde nasce Baruch, em 21 de novembro de 1623. Essa
época ficou conhecida como o Século de Ouro da Holanda. Entre outras figuras ilustres,
lá nasceram o pintor Rembrandt, em 1606 e, um mês antes de Espinosa, Johannes
Vermeer, também pintor, e Anton van Leeuwenhoek, o inventor do microscópio.
Baruch de Espinosa é, com toda a justiça, considerado um dos grandes da história da
filosofia — “o filósofo dos filósofos” ou, como disse Bertrand Russell, “o mais nobre e o
mais amável dos grandes filósofos”. Ainda assim, suas idéias foram amplamente
rejeitadas em sua época. Mesmo antes de escrever suas obras principais, ele foi
excomungado pela comunidade judaica de Amsterdã em julho de 1656. Tinha então 24
anos de idade. Seus livros, quase todos publicados postumamente, foram proibidos e
postos no Índex do Vaticano. O filósofo morreu em 1677, aos 44 anos.
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Filosofia
Entre os que influenciaram a filosofia de Espinosa, é importante destacar Aristóteles,
os estóicos, Descartes e Giordano Bruno, este último cosmólogo e poeta além de filósofo.
E também vítima da ortodoxia: em 1600, foi queimado numa das fogueiras da Santa
Inquisição. Eis algumas de suas idéias: a) a realidade é una; b) Deus e a realidade são
uma coisa só; c) a mente e a realidade também são unas; d) o propósito da filosofia é
perceber a unidade que existe na diversidade e buscar a síntese dos opostos. 1
Espinosa é um filósofo racional e revolucionário. Seu pensamento é imanentista. A
seu ver, é possível compreender a totalidade do real por meio da razão. Para ele, a
compreensão do todo não é um simples exercício intelectual: é um exercício de liberdade.
Seu ponto de partida é ousado: se Deus é onipresente, não há como imaginá-lo fora do
mundo. O divino faz parte de tudo o que existe no mundo natural. Não é, pois,
transcendente, mas sim imanente. Na verdade, Ele é a própria Natureza, o conjunto de
todos os seres, vivos ou não, o que evidentemente inclui os humanos, suas mentes e seus
corpos. Daí a conhecida expressão espinosana: Deus sive Natura (Deus, isto é, a
Natureza).
Trata-se, assim, de um pensamento monista e naturalista. Deus — ou a Natureza —
é uma substância única que tem atributos (qualidades essenciais, infinitas, que constituem
o seu ser) dos quais nós, humanos, conhecemos dois: a extensão (que é a essência da
concretude, da materialidade) e o pensamento (que é a essência da compreensibilidade, da
inteligibilidade). Os atributos se manifestam por dois modos ou maneiras finitas de
expressão. Em termos de ser humano, o atributo extensão se expressa por meio do corpo.
Dizemos então que nosso corpo é um modo finito do atributo extensão da substância
única (ou Deus, ou a Natureza). Já nossa mente (alma) é um modo finito do atributo
pensamento dessa mesma substância.
Para tornar mais claro o conceito de modos, alguns comentadores costumam
compará-los à espuma que coroa as ondas quando o mar está agitado. A espuma é
efêmera, finita: quando as águas se acalmam ela desaparece, porque volta a fazer parte do
todo perene que é massa oceânica. A substância única e seus atributos compõem o que
Espinosa chama de Natureza naturante. Os modos — finitos e temporais — constituem a
3
Com efeito, é ponto pacífico que a superstição, sob todas as suas formas, tem sido e
é amplamente utilizada para conquistar e exercer o poder. Os que a usam para tais fins o
fazem basicamente por meio do jogo entre o medo e a esperança: em doses
cuidadosamente calculadas, atenuam o primeiro e realçam a segunda. Nos tempos atuais,
o marketing político-eleitoral e a manipulação das populações por meio das mídias são
instrumentos para alcançar esses objetivos. O slogan “a esperança venceu o medo”, por
exemplo, foi muito usado por políticos no Brasil em tempos recentes. Com eficácia mas
não com veracidade, como aliás é próprio dos ilusionismos.
É óbvio que quanto mais ignorância mais superstição e mais medo e, assim, mais
pessoas manipuláveis e obedientes. Essa conclusão vale — com as peculiaridades
inerentes a cada caso — para a filosofia, a política e a religião. Os “poderes mágicos” e
“saberes ocultos” — e o medo e a esperança que eles suscitam — se baseiam num ponto
central: a reserva de saber, que gera a reserva de poder. A primeira assume formas tão
variadas quanto bem conhecidas: os segredos, os arcanos, os mistérios, os esoterismos, os
códigos e os enigmas dos quais só uns poucos têm a chave.
Tudo isso produz e mantém o medo — que muitas vezes se apresenta disfarçado em
fervor, respeito e admiração —, mas conserva também a esperança de que um dia ele
desapareça. O objetivo dessa manipulação não é fazer com que o medo tenha fim, mas
sim atenuá-lo, o que se consegue de muitos modos, em especial mediante promessas só
moderadamente cumpridas. Pois se o fossem em excesso, o medo também diminuiria
demais e a esperança teria um crescimento exagerado, o que comprometeria a eficácia da
receita de poder.
A superstição e o poder por ela produzido pressupõem que todas as pessoas
envolvidas no processo, estejam em que lado estiverem, sejam condicionadas pelas
dicotomias do raciocínio binário: dominadores e dominados; líderes e seguidores;
sacerdotes e leigos; especialistas e não-especialistas; candidatos e eleitores; e assim por
diante. Aqui, a essência do poder se manifesta pelo clientelismo em suas múltiplas
formas. Convém destacar, uma vez mais, que sem a prevalência da lógica do “ou/ou” o
jogo medo/esperança dificilmente poderia ser utilizado para produzir dominação. Em
conseqüência, seria bem mais difícil construir e manter autoritarismos e despotismos. Eis
por que para Espinosa a crença em deuses autoritários e transcendentes está entre as
superstições que é necessário denunciar.
Ainda no Tratado teológico-político, o filósofo examina as diferenças entre a lei de
Moisés e a lei de Cristo.3 A lei mosaica prevê a retaliação: olho por olho, dente por dente,
posição aliás típica da lógica binária. A lei cristã prevê a polaridade oposta: a aceitação, a
resignação. Em termos políticos, a lei mosaica se manifesta geralmente em Estados fortes
e poderosos, e a lei cristã tende a produzir Estados fracos e oprimidos. Com base nas
idéias de Max Weber, expostas em sua obra A ética protestante e o espírito do
capitalismo4, há quem associe com o catolicismo a fraqueza do Estado nos países
subdesenvolvidos (ou em desenvolvimento; valha o eufemismo), em especial na América
Latina.
Além disso, Espinosa observa que a relação de Moisés com Deus foi externa: o
profeta ouviu a palavra divina. Já Cristo teve com a divindade uma relação interna, in
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pectore. Por isso, o filósofo sustenta que a verdade do cristianismo está no Evangelho de
São João, que diz que o homem está e é em Deus: encarnação não significa que Deus
veio para viver entre os homens, mas sim neles.5 Porém, ao adotar a interpretação de que
Deus quando encarnado esteve entre os homens, a Igreja reafirma a transcendência divina
e define a humanidade como um imenso grupo sujeitado.
O conhecimento e o método
Como vimos, Espinosa diz que Deus é a causa de si mesmo — causa sui — e de
tudo o que existe, e que essa condição pode ser conhecida pela razão humana. No Tratado
da correção do intelecto6, ele afirma que a razão e a imaginação devem ser separadas e
que a razão pode conhecer a totalidade do mundo real, desde que para tanto siga um
método adequado. No entanto, a razão espinosana não exclui o que ele chama de paixões
positivas — a alegria e o amor. Ao contrário, ela é uma via para chegar a essas paixões e
vivê-las. A idéia de que as emoções podem e devem ser controladas por emoções mais
fortes e orientadas pela razão é um dos pontos centrais do pensamento do filósofo.
Espinosa distingue três espécies de conhecimento. A primeira é o conhecimento
sensível, que se caracteriza pela subjetividade e pela imaginação. Não é um conhecimento
adequado, porque vê tudo em termos de absolutos que estão sempre em antagonismo e
produz idéias imprecisas, opiniões. O conhecimento sensível gera paixões que escravizam
as pessoas a tudo o que é externo. É próprio dos indivíduos passivos.
O conhecimento racional vê as coisas de modo abrangente. Com isso, elas passam a
ser entendidas sem levar em conta as dimensões em que usualmente dividimos o tempo:
passado, presente e futuro. Pois para Espinosa o tempo é irreal: como está logo no início
da Ética, o que se costuma chamar de eternidade não é uma temporalidade interminável,
mas sim a ausência de tempo. Tendo compreendido isso, o homem racional pode ver o
mundo como Deus o vê: sub specie aeternitatis, isto é, em termos de eternidade no
sentido espinosano da palavra. O conhecimento racional corresponde ao proporcionado
pela ciência. Por meio dele, o homem se põe num estado contemplativo da ordem do
Universo.
O conhecimento intuitivo, ou intuição intelectual, é o mais importante dos três. Por
meio dele, chegamos às idéias adequadas e alcançamos a condição de indivíduos ativos,
que conhecem as idéias, suas causas e efeitos e suas ligações (Espinosa sustenta que uma
idéia isolada nada significa: é preciso conhecer também os modos pelos quais ela se liga a
outras idéias). Esse conhecimento permite, enfim, que descubramos a origem das
essências infinitas, o que se consegue mediante a compreensão da ordem necessária e
imutável da substância única. É o que o filósofo chama de amor intelectual a Deus — a
alegria que resulta de conhecer as coisas pelas causas.
Embora inacabado, o Tratado é um texto importante, pois prepara o caminho para a
Ética, que é a obra maior do filósofo. A idéia básica do método espinosano consiste em
examinar o pensamento não apenas depois de estruturado, mas investigar o processo de
sua formação. Ele procura formas de “melhorar e esclarecer o intelecto”: é preciso
descobrir como o conhecimento é produzido, descobrir a gênese do que se quer conhecer,
conhecer pelas causas. A verdade não está fora do processo do conhecimento, faz parte
7
dele. Não importa tanto o que uma pessoa disse a outra, isto é, a conclusão — o
resultado, o efeito — a que ela chegou. Importa, isso sim, saber como ela chegou a essa
conclusão, a esse conhecimento: descobrir o caminho, o processo, o passo-a-passo de seu
pensamento.
O método espinosano é reflexivo: propõe que lidemos com “a idéia da idéia”. A
correção do intelecto se faz basicamente pelo auto-exame, como hoje diz Morin. 7 Por
meio dele, o pensamento retrocede sobre si mesmo e se auto-investiga. Trata-se de pensar
o pensamento: ele deve se auto-examinar para descobrir como alcança o conhecimento.
É, sem dúvida, aquilo que Morin denomina de conhecimento do conhecimento, expressão
que aliás dá título a este ensaio. O propósito é examinar o pensamento e o conhecimento,
descobrir seus processos, sua mecânica e sua complexidade com o fim de melhorá-los.
Construímos o mundo em que vivemos por meio de nossa interação com ele. Essa
noção, hoje assente em algumas escolas importantes de ciência cognitiva, já estava
presente nos textos espinosanos: “A idéia é o próprio ato de conhecer”. 8 Três séculos
depois, o poeta espanhol Antonio Machado escreveria em seu livro Provérbios y cantares:
“O caminho se faz ao andar”. Mais ainda: o filósofo abre o Tratado da correção do
intelecto dizendo que a experiência lhe ensinou que tudo o que acontecia no cotidiano era
vão e fútil; que todas as coisas que ele temia não eram nem boas nem más em si, a mente
é que as construía, ora de uma forma, ora da outra. 9
O empenho de Espinosa na reforma do intelecto exprime uma tendência
proeminente em sua época. A partir de então, pouco se falou sobre esse assunto. Nos
últimos tempos, porém, autores como Morin falam em reformar o sistema de pensamento
atualmente hegemônico — o modelo linear-cartesiano, que freqüentemente chamo
também de raciocínio binário ou lógica do “ou/ou”. As propostas atuais para tal reforma
podem parecer diferentes da espinosana, mas em essência não o são. Por isso, importa
reconhecer no pensamento complexo da escola moriniana as mesmas orientações básicas
da filosofia de Espinosa: a imanência e o diálogo incessante entre pensamento e
sentimento, objetividade e subjetividade, a razão e as paixões.
Embora a mais de três séculos de distância, o objetivo do pensamento complexo
revela ressonâncias espinosanas: corrigir o intelecto, para que isso nos leve a mudar nosso
modo de ver a nós mesmos, os outros e o mundo. Isto é: conhecer a totalidade sem perder
de vista as partes que a integram nem deixar de perceber o modo como elas interagem. O
método de Morin visa a examinar o intelecto com o propósito de corrigi-lo, de torná-lo
mais abrangente sem perder de vista os detalhes, torná-lo mais amplo sem perda da
profundidade. Não por acaso, são esses também os pontos fundamentais do Tratado da
reforma do intelecto, de Espinosa:
- Para o ser humano, não existem verdades a não ser as criadas por seu intelecto.
- As verdades assim construídas não precisam de validação transcendente, pois
fazem parte do próprio processo dessa construção.
- O objetivo do conhecimento correto é fazer com que o homem saiba que é parte de
uma totalidade, e que por isso sua mente está unida à Natureza. Porém, para entender essa
ligação e vivê-la, ele precisa agir na condição de parte e usar os recursos que essa
condição lhe proporciona. (Nos dias atuais, diríamos: pensar global e agir local).
8
Descartes deixou duas questões sem solução filosófica: a) a relação entre Deus e o
mundo; b) a relação entre o corpo e a alma. Espinosa não conseguiu solucionar
totalmente o segundo problema, mas resolveu o primeiro com o conceito de substância
única. O conceito de substância já existia em Aristóteles. Descartes retomou-o e concebeu
a dualidade da substâncias (res cogitans, a coisa pensante, e res extensa, a coisa extensa).
Espinosa estabeleceu a unificação radical das duas substâncias cartesianas.
A alma é o modo pensamento da substância única. O corpo é o modo extensão dessa
mesma substância. Na Ética, o filósofo diz que a mente é a idéia do corpo. Tudo o que
existe é ao mesmo tempo corpo e idéia — ou, como se diz em termos de pensamento
complexo, opostos ao mesmo tempo antagônicos e complementares. A alma e o corpo são
manifestações (ou atributos paralelos) da mesma substância, isto é, Espinosa vê a relação
entre corpo e mente como um paralelismo psicofísico. Essa idéia certamente influenciou
Varela, que: a) definiu a mente como o cérebro em funcionamento; b) cunhou o seguinte
raciocínio: a mente faz parte do cérebro; o cérebro faz parte do corpo; o corpo faz parte
do mundo; logo, a mente faz parte do mundo (isto é, da Natureza). Assim — diz Espinosa
—, tudo o que ocorre no pensamento tem seu equivalente na extensão e vice-versa. Eis o
que Morin chama de dualidade na unidade — a unidualidade. Aristóteles, grande
inspirador de Espinosa, dizia que o ente é uno e múltiplo ao mesmo tempo. É a teoria da
analogia: passagem de um modo de ser a outro; do uno ao múltiplo e vice-versa, numa
dinâmica circular. Eis o que Morin chama de unitas multiplex, a unidade na
multiplicidade. Se pensarmos assim, as coisas vão pouco a pouco se tornando mais
claras, o que não acontece quando se pensa em termos de ou isso ou aquilo.
De acordo com Espinosa, o corpo é uma máquina complexa, que opera por meio de
estados de movimento e repouso (ou de velocidades e lentidões, como prefere dizer
Deleuze). É composto de partículas menores, que funcionam da mesma maneira. Por isso,
o organismo não pode ser visto como um simples conjunto de órgãos. Seu equilíbrio
interno é alcançado por meio de mudanças constantes, que interagem e se harmonizam
com modificações também incessantes do ambiente.
Em outros termos, o que acontece no corpo repercute no ambiente (onde estão, é
claro, outros corpos) e vice-versa. 12 No século 19, o fisiologista francês Claude Bernard
escreveu que as condições da vida não estão nem no organismo nem no meio exterior,
mas nos dois ao mesmo tempo. Esse lado espinosano antecipador da biologia tem sido
notado por vários comentadores.
Como acabamos de ver, o filósofo encara o corpo como um sistema composto de
sub-sistemas e situado dentro de um sistema maior. Ao se expressar dessa maneira, ele
antecipa também a etologia — o estudo do comportamento dos animais e do modo como
eles se adaptam ao ambiente. No entender de Deleuze 13, a etologia se aplica também aos
seres humanos, pois nenhum ser vivo pode ser compreendido sem que se levem em
consideração suas relações com o ambiente. Nesse sentido, para esse filósofo francês a
Ética não é uma moral, mas sim uma etologia. Chamo a atenção para o fato de que tudo
isso é muito semelhante àquilo que hoje se denomina de “acoplamento estrutural”.
A autoprodução
10
A natureza humana
Ao comentar obras políticas de pensadores de destaque, Espinosa observa que seus
autores muitas vezes tendem a se referir a seres humanos fictícios. Seguindo a
12
A liberdade e a felicidade
No Tratado teológico-filosófico, o filósofo examina a irracionalidade do povo, o fato
de ele parecer se orgulhar de seu estado de servidão e, paradoxalmente, lutar para manter-
se nele e não em liberdade. As pessoas invocam um Deus transcendente, criador e moral
como autoridade porque sua propensão para a obediência as leva a tanto.
Para Espinosa, permanecer passivo diante das paixões é um estado de servidão. Em
termos literários, essa condição é extremamente bem apresentada pelo escritor inglês
Somerset Maugham em Servidão humana, romance que é a sua obra-prima. No enredo, o
personagem principal, Philip, se apaixona de tal modo por uma mulher, Mildred, que
acaba perdendo a liberdade.
Já sabemos que Espinosa não opõe binariamente razão e paixão, bem e mal,
egoísmo e altruísmo e outras condições. Vê os seres humanos como eles são: passionais e
racionais, bondosos e perversos. Se a razão e a emoção estão sempre em confronto em
nossa natureza, isso no entanto não nos deve servir de pretexto para renunciar à
racionalidade. O “grande remédio” contra as paixões consiste em compreendê-las e
perceber suas relações com causas externas
Vimos que, no entender do filósofo, Deus — a Natureza — atua de acordo com a
necessidade inerente à sua essência. Isso quer dizer que Ele é livre, pois age segundo essa
necessidade. Assim, necessidade e liberdade não se opõem, complementam-se. Do
mesmo modo, o homem livre é aquele que tem capacidade para agir segundo as
13
necessidades da sua essência, e não premido por diretivas externas. “Nunca somos livres
em virtude da nossa vontade, mas em virtude da nossa essência e daquilo que dela
decorre”.26 O homem é livre quando tem potência para agir, e isso acontece quando ele
encontra as idéias e as paixões adequadas à sua essência. A liberdade está ligada ao
conhecimento, pois este amplia nossa potência para agir. Liberdade de conhecimento
implica liberdade de pensamento. Já a felicidade, escreve Espinosa, “não é o prêmio da
virtude, mas a própria virtude; e não gozamos dela por refrear as paixões, mas, ao
contrário, gozamos dela por poder refrear as paixões”. 27
Para ele, o Bem e o Mal não existem como categorias absolutas. O que há é o bom e
o mau, tal como os experienciamos. O bom e o mau são dois modos de existir, modos
qualitativos e subjetivos. Não são polarizados: entre eles há nuanças, gradações. Aquilo
que é experienciado por um dado indivíduo como bom pode ser menos bom para outro,
muito menos bom para um terceiro e assim sucessivamente, até que se chega ao que é
experienciado como mau. E vice-versa.
O indivíduo livre (razoável, forte) é aquele que tem potência para agir e escolher os
encontros que lhe convêm — os bons encontros. O indivíduo fraco (servil) é o que busca
a escravidão, que não tem suficiente força de existir para escolher os bons encontros e por
isso os vivencia de maneira aleatória. Nesse caso, ao contrário do indivíduo livre, ele terá
mais maus encontros do que bons e, em conseqüência, tenderá a ser queixoso e a atribuir
a culpa de seus infortúnios a fatores externos. Com isso, sua potência para agir diminuirá
até chegar ao virtual desaparecimento.
Nos dois últimos livros da Ética, Espinosa sustenta que: a) se aquilo que nos
acontece é determinado a partir de fora, somos escravos, estamos em servidão; b) se o
que nos ocorre vem de nossa autodeterminação, somos livres. Em termos atuais, diríamos
que no primeiro caso ele fala de grupos sujeitados. No segundo, de grupos-sujeito. Nessa
linha de raciocínio, conclui que a essência das sociedades humanas é a obediência. Esta,
por sua vez, se liga às noções de culpabilidade e à polaridade Bem/Mal. Podemos dizer,
então, que a obediência tem muito a ver com nosso condicionamento pela lógica
linear/binária. Sem ele, seria muito mais difícil construir e manter comunidades humanas
em termos de mando-obediência.
Considerações finais
Poderíamos ir bem mais longe, mostrando os pontos de contato entre a filosofia
espinosana e o pensamento complexo e, em ambos os casos, a insistência na necessidade
de mudar o modo de pensar (“corrigir o intelecto”) para compreender de outro modo a
realidade.
A chamada idéia de progresso é um exemplo dessa necessidade. Entre vários outros
autores, Jean-Pierre Vernant34 observa que essa idéia, tal como foi e ainda é entendida no
Ocidente, nos convenceu de que virá um futuro que trará soluções para todos os nossos
problemas e, mais ainda, acabará com os egoísmos nacionais e injustiças sociais. Sob esse
ponto de vista, a idéia de progresso é uma impostura que pretende nos fazer crer na
possibilidade de — no habitual estilo “ou/ou” — substituir homens só egoístas por outros
só altruístas. O que nos pedem é, nada mais nada menos, que acreditemos na existência
de seres humanos que são uma coisa ou outra: só justos ou só pecadores; só competitivos
ou só cooperativos; só racionais ou só emocionais. O que nos pedem é que continuemos a
nos auto-enganar com essa fantasia, para cuja criação e manutenção é indispensável a
lógica binária. Ainda não aprendemos, com Espinosa e muitos outros, que o ser humano é
por natureza passional e racional, sapiens e demens.
16
A idéia de progresso (boa parte da qual é alimentada pelas mídias, pela sociologia,
psicologia e ciência política convencionais) nos fez acreditar piamente que a ciência e a
tecnologia são capazes de produzir seres humanos idealizados e unilateralizados. Vários
modelos já foram propostos: o Homo sovieticus, o Homo economicus, o Homem da
companhia e assim por diante. Volta e meia, um ou mais deles são declarados extintos e
logo substituídos — sempre no tradicional estilo “ou/ou” — por outros, que só diferem
dos anteriores em seus aspectos superficiais.
A origem da idéia de progresso remonta à Grécia antiga. Naquela época, porém, ela
era diferente da atual. Para os gregos, como assinala Vernant, progresso significava sair
da barbárie. Quanto a nós, em muitos casos tudo indica que estamos no caminho inverso.
É o que mostram vários dos efeitos colaterais da tecnociência ou a ela ligados, dos quais
convém lembrar alguns: a devastação do meio ambiente; o economicismo tecnocrático; o
desemprego e a exclusão social; a fome no mundo; os autoritarismos disfarçados em
democracia, cujos governantes são eleitos por populações alienadas e manipuladas pelo
marketing eleitoral. E assim por diante. Nada disso, é claro, implica negar os benefícios
da tecnociência. Meu objetivo é alertar para os desastres da utilização da lógica binária
como pensamento único o que, entre outras coisas, a transformou num instrumento de
auto-engano.
A prevalência dessa lógica nos levou a uma mentalidade predatória e a um
comportamento sociopático, gerador de injustiças sociais e, no limite, incompatível com a
preservação do mundo natural. Trata-se de um ideário (ou melhor, de uma ideologia)
insustentável, apesar de toda a retórica que proclama o inverso. Como se sabe, as
expressões “sustentabilidade”, “desenvolvimento sustentável” e suas variantes (“auto-
sustentabilidade”, “crescimento sustentável” e assim por diante), de tanto serem usadas
por indivíduos que desconhecem o seu significado — principalmente o seu significado
político — transformaram-se em chavões, em meros slogans.
E não poderia deixar de ser assim, porque, como também é sabido, a grande maioria
dos que usam essas expressões ignora que as idéias a que elas se referem são
incompatíveis com a prevalência do pensamento linear-cartesiano como modelo de
pensamento quase único em nossa cultura. Por outro lado, é preciso não esquecer que a
retórica ecológica “alternativa”, também radical, apocalíptica e polarizadora,
freqüentemente leva ao equívoco oposto.
Esses e outros unilateralismos têm levado pessoas de boa fé a cair na armadilha do
“ou/ou”, e a imaginar, por exemplo, que é possível substituir tout court a competição pela
cooperação. Isso equivale a retirar da sociedade todos os pecadores e substitui-los pelos
justos; descartar todos os egoístas e deixar só os altruístas; eliminar os maus Samaritanos
substitui-los por bons Samaritanos; afastar todos os “falcões” e pôr em seu lugar somente
“pombas” — remover uma ficção e substitui-la por outra, enfim. Ao cair nesse tipo de
cilada, alguns dos bem intencionados propositores da cultura de paz, por exemplo, têm
adotado o mesmo maniqueísmo cultivado pelos que apóiam a cultura da guerra. (Nos
EUA, na época da Segunda Guerra Mundial, “pacifista” era e ainda hoje é, em certas
áreas, uma expressão pejorativa, que significava e significa algo entre covarde e traidor).
Essa espécie de maniqueísmo já havia sido denunciada por Espinosa.
17
ver o mundo de um modo simplista e rudimentar: se o produtor for bem sucedido, será
premiado; se fracassar ou errar, será punido. “Ou/ou”. Essa mentalidade de
vitória/derrota, lucros/perdas, virtude/pecado permeia toda a nossa cultura, e os
avaliadores desses méritos ou deméritos estão sempre fora do processo. São instâncias
“transcendentes” (os deuses, os governos, o “mercado”), que vigiam, fiscalizam e julgam
sem participar diretamente.
Convém acrescentar que a idéia de criação não existe no pensamento grego. O Deus
de Aristóteles, por exemplo, não é criador. Já o Deus do cristianismo é criador e separado
de suas criaturas: ou o Criador ou as criaturas. Estas, por sua vez, também têm suas
criações e, como vimos, podem ser punidas ou recompensadas por elas, sempre a critério
da instância transcendente. Portanto, o poder reside no poder de julgar, e quem julga
precisa estar “de fora”. Ou seja, é conveniente para o observador não fazer parte do
processo que observa.
Mesmo que pudesse ser julgado por suas criações, o Deus do cristianismo não
poderia ser punido nem recompensado, pois é onipotente. Guardadas as proporções
devidas, esse raciocínio também vale para as instituições humanas poderosas, das quais
algumas já foram citadas: os governos — em especial as ditaduras e as
pseudodemocracias, o que é quase a mesma coisa — e o “mercado”. É claro que uma
estrutura de poder como essa só é possível mediante a hegemonia de uma lógica
fragmentadora e polarizadora como o pensamento linear/binário.
Conhecer e julgar separando sempre os efeitos das causas equivale, em muitos
casos, a acreditar que os fins justificam os meios, pois o que interessa são os resultados, a
bottom line. Porém, como mostra Espinosa, o produtor é responsável pelo produto sim —
mas não na qualidade de alguém que “fabrica” algo alienado, separado dele. É
responsável porque não se separa do produto, e por isso mantém com ele uma relação
ampla e profunda de atenção, participação e cuidado. Esse é o sentido espinosano do que
chamamos de responsabilidade. Nessa ordem de idéias, os fins (os resultados, os
produtos) nem sempre justificam os meios. Costumamos legitimar algumas de nossas
ações com o argumento de que “a causa é nobre”. No entanto, a nobreza de uma causa
surge ao longo do processo, não no resultado — do mesmo modo que a verdade surge ao
longo do processo do conhecimento, não em seu término: “O caminho se faz ao andar”.
Espinosa e o pensamento complexo são difíceis de entender porque propõem a
compreensão da totalidade e suas relações com as partes. Para entendê-las, é preciso
compreender que o produtor produz o produto, que por sua vez produz o produtor, isto é,
que a Natureza é autoprodutora. Ela não produz o que é possível, mas o que é necessário
à sua essência, e é assim que também se auto-regula. Não há supérfluos, acidentais ou
possíveis: há o necessário.
Infelizmente, porém, estamos condicionados a desconhecer a circularidade e a
proclamar nossa suposta condição de indivíduos “lógicos”, “racionais”, “realistas e
“pragmáticos”. Entretanto, como resultado do unilateralismo dessa “lógica”, dessa
“racionalidade” e desse “pragmatismo”, tornamo-nos cada vez mais incapazes de
entender o que é diálogo, cidadania, cultura de paz, responsabilidade sócio-ambiental,
19
economia solidária e, por último porém nunca menos importante, o que é democracia
realmente participativa.
NOTAS
1. Will Durant, A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1991, pp. 156-157.
2. Gilles Deleuze, Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002, p. 81.
3. Marilena Chauí, “Espinosa, vida e obra”. Em Os pensadores. Espinosa. São Paulo: Abril
Cultural, 1983, p. xiii.
4. Max Weber, The protestant ethic and the spirit of capitalism. Nova York: Charles Scribner’s
Sons, 1958.
5. Chauí, “Espinosa, vida e obra”, op. cit., p. xiii.
6. Consultei duas traduções dessa obra para o português. Uma, de Carlos Lopes de Mattos, faz
parte do volume Espinosa (Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, pp.41-68). Outra,
de Lívio Teixeira, está disponível em volume separado e tem o título de Tratado da reforma
da inteligência. Para manter a proximidade com o original (Tractatus de intellectus
emendatione), adoto neste ensaio o título que está em Os pensadores, mas uso como
referências essa tradução e a de Teixeira.
7. Edgar Morin, Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, pp. 161-166 e
244-245.
8. Ética, livro III, proposição XLIII, escólio.
9. Tratado da correção do intelecto, [1].
10. Gregory Bateson, Mind and nature: a necessary unity. Nova York: Avon Books, 1980.
11. Bertrand Russell, Historia de la filosofia occidental. Madrid: Espasa Calpe, 1995, p. 190, vol.
II.
12. Marilena Chauí, Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995, p. 54.
13. Deleuze, op. cit., p. 130.
14. Chauí, Espinosa: uma filosofia da liberdade, op. cit., p. 55.
15. Humberto Mariotti, As paixões do ego: complexidade, política e solidariedade. São Paulo:
Palas Athena, 2000, p.316.
16. Emmanuel Kant, Crítica da faculdade do juízo, 292.
17. Stuart Kauffman, At home in the universe: the search for the laws of self-organization and
complexity. Nova York e Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 274.
18. Marilena Chauí, A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 763.
19. Chauí, A nervura do real, op. cit., p. 766.
20. Chauí, “Espinosa, vida e obra”, op cit., p. xiv.
21. António Damásio, Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 41.
22. Ética, livro IV, proposição IX, escólio.
23. Ética, livro V, proposição III.
24. Morin, La méthode 5. L’humanité de l’humanité: l’identité humaine. Paris: Seuil, 2001, pp.
116-117.
25. Deleuze, op. cit., p. 95.
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