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Batman Begins

Em 14 de julho de 1789, a Bastilha de Paris era tomada pelos revolucionários. Era a


primeira grande revolução moderna: a revolução francesa. Os revolucionários
prometiam a um país decadente e imerso no caos a “liberdade, fraternidade, igualdade”.
O reino da razão devia purgar todo o passado francês, de modo a que um novo mundo
pudesse surgir. O curioso é que a primeira revolução moderna é também o primeiro
período de terror moderno. Ao som da tal “liberdade, fraternidade e igualdade”, os auto-
proclamados “esclarecidos” e “amigos da liberdade” faziam uso do terror e da mais
atroz violência para controlar quem quer que fosse suspeito de conspirar contra a
Revolução. Vimos o primeiro momento da história moderna em que o terror se
mascarou de bondade, a violência de compaixão e o ressentimento de amor.
E são esses os três estágios da revolução: ressentimento, violência e terror. Estes são
perfeitamente analisados na trilogia Batman de Cristopher Nolan. Através dos filmes de
Nolan, vamos tentar fazer uma anatomia da revolução, desde a sua génese no individuo
até às suas consequências mais sociais mais vastas percebendo também qual é a
alternativa saudável e justa ao processo revolucionário.
Comecemos, portanto, pelo início: Batman Begins, o primeiro filme da franquia. Se,
segundo a nossa proposta, o primeiro estágio da revolução é o ressentimento, é
exatamente esse o tema deste filme.
Todos conhecemos a já famosa história das origens de Batman: filho do grande
filantropo, a verdadeira alma de Gotham, Thomas Wayne, o menino Bruce Wayne
cresce num ambiente de grandeza moral e prosperidade. O seu pai é o seu grande ídolo
e modelo. O filme de Nolan apresenta-nos a perda desse Paraíso inicial, a Queda (tanto
de Bruce Wayne quanto de toda a Gotham) no caos. A trilogia de Nolan é, assim, uma
perfeita passagem de um paraíso perdido para o paraíso reconquistado, dos mares da
revolução para a ilha da ordem.
A primeira queda de Bruce Wayne é bastante literal. Enquanto brinca no pátio da casa,
cai numa gruta em que é rodeado por milhares de morcegos. O menino Wayne fica
aterrorizado, o medo domina-o. Bruce perdeu a sua inocência e, daí em diante, tem de
lidar com um sentimento que nunca tinha tido até então: medo.
A queda de Bruce é, contudo, completada quando os seus pais são brutalmente
assassinados à saída de um teatro. Bruce vê-se completamente órfão, entregue ao medo,
expulso do paraíso. É aqui que Bruce começa a germinar um sentimento revolucionário:
Bruce Wayne torna-se um ressentido. O seu maior desejo é vingar a morte do seu pai. E
o estágio final da sua Queda é a sua tentativa de matar o assassino dos seus pais.
É aqui que tudo muda. Bruce percebe que a vingança nada resolve, que o seu
ressentimento é, na verdade um problema seu. Bruce começa a perceber que, na
verdade, o seu desejo de vingar o seu pai é também uma tentativa de vingar Gotham.
Como logo descobrimos, o assassino do seu pai é, na verdade, um mero desgraçado, um
produto de uma cidade em ruínas em que o caos e o crime se tinham tornado a única
forma de garantir o próprio pão.
De modo a lutar pela verdadeira justiça e poder, efetivamente, retirar a sua cidade, a
cidade a que o seu pai dedicou toda a sua vida, Bruce sabe que tem de entender o crime
nas suas entranhas mais profundas, deve submergir no caos para que possa, depois de o
entender, lutar a boa luta.
Começa a sua crise de identidade: Bruce abandona todo o seu conforto e viaja para os
confins no mundo. Lá passa pelas mais tribulações e humilhações, dá de caras com a
escória da humanidade e, parece ter perdido todo o senso de propósito de vida. É ai que
surge um homem misterioso, Ra’as Al Ghul, que convida Wayne a abandonar a sua
própria inércia para defender a verdadeira ordem e justiça ao entrar na “Liga das
Sombras”. Lá, Wayne é ensinado nas mais diversas artes marciais, a honra de um
guerreiro, aprende a disciplina e a temperança, a focar a sua atenção e a “mind your
surroundings”: acima de tudo, Wayne aprende a lidar com o medo que o dominava. E
para selar essa dura jornada iniciática, Ra’as Al Ghul pede a Bruce que mate um dos
criminosos que a organização capturou.
Bruce está diante do dilema que guiou toda a sua vida até então: vingar ou não vingar;
abraçar o ressentimento ou rejeitá-lo. É aqui que percebemos a diferença essencial entre
a revolução e a justiça. Enquanto que a “Liga das Sombras” busca vingança sobre
Gotham, “purgar a cidade através do fogo”, batalhar o caos com o próprio caos; Wayne
decide que o seu caminho passa pelo perdão, pela guerra justa, não aquela que não olha
a meios para atingir os seus fins.
Ao rejeitar a “Liga das Sombras”, Bruce Wayne rejeitou a revolução e abraçou a
verdadeira justiça. Contudo, para que a sua luta possa acontecer numa sociedade
decadente, imersa no crime e na tragédia, Bruce deve tornar-se um símbolo, tal como o
seu pai. Das sombras de Gotham, nasce o cavaleiro das trevas: Batman. O seu medo, o
morcego, tornou-se a sua força; as trevas da revolução de Ra’as Al Ghul, tornar-se-ão
um símbolo de justiça. Em vez de vingar Gotham, Batman decide perdoar Gotham e
salvá-la.
Logo descobrimos que o grande plano de Ra’as Al Ghul é usar o sistema de canalização
de Gotham para espalhar uma droga alucinogénia que induziria o medo em toda a
cidade. Para levar a cabo a sua revolução, tal como os revolucionários franceses, Ra’as
Al Ghul sabe que tem de dominar através do medo. Assim como na Revolução francesa
o terror se mascarou de bondade, a violência de compaixão e o ressentimento de amor, a
“Liga das Sombras” também corrompe as palavras de modo a esconder as suas
verdadeiras intenções.
Quando Bruce e Ra’as se voltam a encontrar, este diz-lhe: “When a forest grows too
wild, a purging fire is inevitable and natural”, “Over the ages, our weapons have grown
more sophisticated. With Gotham, we tried a new one: Economics. But we
underestimated certain of Gotham's citizens... such as your parents. Gunned down by
one of the very people they were trying to help. Create enough hunger and everyone
becomes a criminal. Their deaths galvanized the city into saving itself... and Gotham
has limped on ever since. We are back to finish the job. And this time no misguided
idealists will get in the way. Like your father, you lack the courage to do all that is
necessary. If someone stands in the way of true justice... you simply walk up behind
them and stab them in the heart.”
Aquilo a que Ra’as Al Ghul chama de “verdadeira justiça” é, na verdade, a sua própria
inversão, o uso de inocentes, de qualquer meio, para atingir os seus objetivos. O
verdadeiro idealista não é o pai de Batman, é Ra’as Al Ghul. É este quem deseja mudar
o mundo segundo a sua vontade, submetendo ao terror quem não aceitar as suas ideias.
Como a Rachel deixa claro ao Bruce: “It's not who you are underneath, it's what you do
that defines you.”
É através dos seus frutos que se conhece uma árvore, e ainda que Ra’as Al Ghul ou os
revolucionários franceses prometessem a “liberdade, fraternidade e igualdade”, as suas
ações são o mero espalhar do medo e da violência.
Assim, quando, na cena final do filme, depois de derrotar Ra’as Al Ghul, Bruce Wayne,
ao lado de Alfred, vê os escombros da sua antiga casa, este diz-nos que a vai
reconstruir:
“Bruce Wayne : Rebuild it. Just the way it was, brick for brick.

Alfred Pennyworth : *Just* the way it was, sir?


Bruce Wayne : Yeah. Why?
Alfred Pennyworth : I thought this might be a good opportunity for improving the
foundations.”
Em vez de destruir Gotham, a sua casa e as suas origens, Bruce decide que a vai
reconstruir, ainda que aprimorando as suas fundações. Em vez da revolução, Bruce
optou pela reforma, respeitando o legado do seu pai, daqueles que vieram antes dele, e
tentando perpetuar um futuro justo para as gerações futuras. Tal como Edmund Burke,
Bruce acredita que a sociedade é “uma comunidade de almas que reúne os mortos, os
vivos e os que ainda não nasceram”. Contra o ressentimento, Bruce escolheu o perdão: a
justiça.

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