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UNIVERSIDADE DO VALE DOS SINOS – UNISINOS

ANÁLISE DO FILME “PARASITA”


PSICOLOGIA SOCIAL II
DIENNIFER COUTO BITTENCOURT
O filme Parasita, com a direção e roteiro de Bong Joon-ho, foi ao
público em novembro/2019 aqui no Brasil, e desde então vem cada vez mais
ganhando espaço na mídia. Ele concorreu ao Oscar 2020, sendo indicado em 6
categorias, e saindo vencedor de 4 delas, dentre as categorias a de “Melhor
Filme”, um acontecimento mundialmente histórico para a academia de cinema.
Parasita se passa na Coréia do Sul, nos dias de hoje. É o país com a
menor taxa de natalidade do mundo, e de uma grande densidade demográfica
em decorrência da migração populacional do campo para as cidades nos anos
de 1970-1990, e a grande maioria da sua população vive em zonas urbanas e
aglomeradas. O país vive um sistema capitalista democrático presidencialista,
como vivemos aqui no Brasil, onde há a divisão dos três poderes: executivo,
legislativo e judiciário, sendo esse sistema o núcleo da principal crítica do filme.
Em termos gerais, o filme conta a história contrastada de duas famílias:
a família de Kim, motorista desempregado que vive em uma miséria, e a família
dos Park, abastada e cheia de privilégios. Kim Ki-taek mora com sua esposa,
Choong-sook, e seus dois filhos, Ki-woo e Ki-jeong, em um apartamento
pequeno e “intermediário”, que se parece mais com um porão, onde eles
diariamente têm uma vista “poluída” da cidade, a qual seria interpretada como
a “parte pobre”. Kim luta constantemente atrás de trabalhos para sustentar sua
família, e não ganha o suficiente para tal feito, situação que conseguimos
constatar desde o primeiro frame do filme. A família de Kim permanece
constantemente unida na luta pela sobrevivência, e uma das características
mais marcantes da família, que aparece ao longo do filme, é o fato de eles
estarem frequentemente com um aspecto sujo, e com “cheiro de pobre”. Já a
família de Park, além da visível higiene, é uma família desunida, com um pai
muito ocupado no trabalho, e os filhos muito alienados do mundo, vivendo em
uma espécie de redoma causada pela mãe. Os Park habitam uma casa
gigantesca para quatro pessoas (que, intencionalmente, consiste no mesmo
núcleo que a família de Kim: pai, mãe, filho e filha, criando um contraste social
dualista, como uma espécie de espelho) e que têm uma vista “limpa”, que pode
ser interpretada como a “parte rica”.
Bong Joon-ho procura, de forma caricata, abordar o contraste social
causado pelo capitalismo, representado principalmente pelas casas dos
personagens: os ricos vivem em cima, e os pobres em baixo (nível
intermediário). Porém, ainda temos o “porão”, nível mais baixo que o
intermediário, e que aparece no decorrer da trama, desempenhando um papel
ainda mais importante nesse jogo social. Um ponto interessante abordado no
filme é o fato de que a riqueza não traz a vivência, a sabedoria e a malícia; pelo
contrário, ela acomoda e ofusca a realidade, o que fica nítido durante o filme,
visto que a família de Kim aplica vários golpes e passam despercebidos. Um a
um, a família de Kim ganha a confiança dos patrões e consegue se infiltrar na
casa deles: Kim como motorista particular, Choong como governanta, e os
filhos como professores particulares das crianças, e dessa forma induz-se, pela
primeira vez no filme, a noção de parasitismo como uma medida desesperada
de sobrevivência, implícita por Bong Joon-ho no título. No decorrer do filme, o
diretor trata comicamente da esquematização das mentiras e dos golpes da
família de Kim para se infiltrarem na casa dos Park, coisa que só se torna
possível devido à ingenuidade deles.
Assim que a família toda consegue infiltrar-se na casa dos Park, eles
decidem realizar uma viagem em família, e Kim e sua família se aproveitam da
ausência dos patrões para se apropriarem da mansão. Com o passar do filme,
temos a cena em que a antiga governanta da família dos Park ressurge, e a
família de Kim descobre a existência de um “porão” na casa, como se fosse um
bunker, que abriga o marido da ex-empregada há anos. Assim como a família
de Kim, mas de uma maneira diferente, os dois personagens praticam
parasitismo na casa dos Park, com o intuito de buscar um refúgio de
acontecimentos passados. Quando Moon-gwang tenta contestar o esquema de
golpes da família de Kim, ocorre uma espécie de “guerra pela sobrevivência”
entre as duas famílias, com Moon-gwang sendo praticamente morta nesse
lance de cenas, e juntamente com o seu marido são trancados e abandonados
no bunker.
Logo após o frame da briga, a família dos Park retorna à residência
devido à chuva ter estragado o passeio, e encontra tudo devidamente
organizado e limpo, com Kim e sua família espalhados e escondidos pela casa.
Em seguida, a família de Kim foge para seu apartamento, na chuva torrencial, e
é então que sucede uma das cenas do filme que mais destaca os desníveis
sociais do capitalismo. Quando a família de Kim chega em sua residência, eles
encontram tudo completamente alagado e destruído, totalmente inabitável.
Enquanto isso, no outro lado da cena, a casa dos Park plenamente habitável, e
em perfeito estado, com o filho mais novo do casal dormindo em uma barraca
no jardim que não inunda, metaforizando o privilégio dos ricos, enquanto a
família de Kim não tem mais um teto pra morar e têm que buscar abrigo para
passar o resto da noite, tudo isso resultado da mesma chuva.
Na manhã seguinte, o frame de cenas mais marcante do filme: a Sra.
Park no banco de trás do carro falando ao telefone, o Kim como seu motorista
na frente, e o Sr. Park também atrás tampando o nariz com as mãos,
evidenciando o mau cheiro do motorista, o “cheiro de pobre” que fica implícito
na cena. No decorrer da cena, a Sra. Park fala durante a conversa no telefone:
“Hoje o céu está tão azul, e sem poluição. Sim, graças à chuva de ontem!”, e
nesse momento a cena corta para um frame de Kim em seu apartamento na
noite anterior, tentando resgatar alguma coisa daquele lugar completamente
alagado e destruído. Logo após, Sra. Park diz: “É mesmo. Aquela chuva foi
uma verdadeira benção!”, e nesse momento, o enquadramento perfeito,
fazendo questão de nos evidenciar as duas realidades: a benção que a chuva
foi pra parcela rica, por “limpar a poluição”, que aqui também pode ser feita a
analogia de que o pobre é a “sujeira” da cidade, e a catástrofe que foi para a
parcela pobre, porque lhe tirou o pouco que restava, deixando apenas a
amargura, e a raiva por conta de toda a injustiça que se vive nesse sistema
capitalista. No decorrer da trama, o espectador é sempre incitado sobre sua
capacidade de sentir empatia ou não, e nos faz sempre ter uma visão de
ambos os lados da história.
Ao longo da história, o clima de tensão vai crescendo entre os patrões
e os empregados, pois ao ver a facilidade da vida dos Park, Kim começa a
sentir uma espécie de raiva com inveja, situação que prejudica a convivência
entre eles. Nas cenas finais do filme, acontece a festa de aniversário da filha
dos Park, festa essa que Kim e sua família ajudou a organizar. A festa
acontece no dia seguinte ao dia da chuva, o dia em que a família de Kim
perdeu tudo, e esse contexto lhes causou uma mistura de sentimentos ruins e
negativos, circunstância que instigou ainda mais a família a efetuar o golpe final
nos Park. Durante a festa, o filho de Kim vai até o porão e, sem querer, liberta o
”prisioneiro” – Geun-sae, marido de Moon-gwang, que se encontrava morta.
Geun-sae passou anos no bunker idolatrando o Sr. Park como um Deus,
enviando mensagens em código Morse por sinais de luzes, tentando um
contato. Contudo, ao sair do porão, em consequência dos acontecimentos
recentes, o homem sente uma sede pela morte e por vingança, e sendo assim,
esfaqueia a filha dos Park no meio de sua festa de aniversário, matando-a, e
em seguida parte para cima do Sr. Park. O patrão ordena que Kim ataque
Geun-sae, para proteger o resto de sua família, mas quando ele vê a
expressão de nojo do patrão ao se deparar com a imagem e o cheiro de Geun-
sae, Kim aparenta reconhecer que sua família e ele são equivalentes, e ao
invés de matá-lo, ataca o Sr. Park e se refugia no bunker, deixando assim uma
metáfora implícita de que Kim não estava matando apenas o seu patrão,
estava matando o privilégio de classes, estava matando a injustiça do sistema
capitalista.
Este poder de matar, que perpassa todo o corpo social da
sociedade nazista, se manifesta, antes de tudo, porque o poder de
matar, o poder da vida e de morte é dado não simplesmente ao
Estado, mas a toda uma série de indivíduos, a uma quantidade
considerável de pessoas. No limite, todos têm o direito de vida e de
morte sobre o seu vizinho, no Estado nazista, ainda que fosse pelo
comportamento da denúncia, que permite efetivamente suprimir, ou
fazer suprimirem, aquele que está a seu lado. (Foucault, 2005,
p.303)
Ao final do filme, a família de Kim é julgada e condenada pelos seus
crimes, e os patriarcas vendem a mansão, com o intuito de recomeçar longe
daquele lugar. Tempo se passou, e com a família totalmente desmembrada, e
o pai refugiado, o filho de Kim descobre que seu pai ficou refugiado no bunker
da mansão, e frequentemente o visita, decodificando o código Morse que seu
pai lhe envia através das luzes da casa, assim como Geun-sae supunha que
fazia como Sr. Park. O filho, então, traça um monólogo, dizendo que vai
estudar até conseguir comprar aquela casa, em uma espécie de tributo à sua
família. Mas, enquanto isso, continua nos apartamentos do subterrâneo, pois
no fim de tudo, voltaram à estaca zero.
Uma das maiores reflexões, trazidas metaforicamente ao longo do
filme, foi a estrutura de andares que se baseia nas classes sociais do
capitalismo, o que explicita bem as hierarquias que Foucault ressalta nas
Técnicas de Racionalização do modo Disciplinar do Biopoder , “depois de uma
primeira tomada de poder sobre o corpo que se faz consoante o modo de
individualização, temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, não é
individualizante mas que é massificante, se vocês quiserem, que se faz em
direção no do homem-corpo, mas do homem-espécie” (Foucault, 2005, p.289).
No andar mais alto, temos os ricos, a família Park, com todos os seus
privilégios que os fazem ter poderes sobre os mais pobres, que estão no andar
abaixo deles, no intermediário, que seria representado pela família do Kim.
Ainda temos um andar mais baixo, o “porão”, representado pelo bunker onde
Geun-sae se refugiava, e onde ele e sua esposa foram aprisionados pela
família de Kim no filme, que estavam um andar acima, e não queriam perder
seus “privilégios”. Essa situação tem relação com o conceito de Racismo de
Estado que Foucault analisa em Aula 17 de março de 1976: “Com efeito, que é
o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de
que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve
morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a
distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças
como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma
maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu;
uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos
outros.” (Foucault, 2005, p.299).
É interessante notar que, ao longo da trama, a família de Kim queria o
privilégio dos ricos, e tinha muito claro em mente a desigualdade social à qual
eles eram acometidos pela opressão do sistema e pela classe alta. Mas, assim
que tiveram seus “privilégios” ameaçados, não hesitaram em reproduzir o que
mais julgavam em seus patrões, pois foram cegados pelo deslumbre do que
poderiam um dia ter e, de certa forma, foram ingênuos, assim como os Park, os
quais eles tanto riam e tiravam sarro, pois deixaram Geun-sae escapar e
arruinar os seus esquemas. De certa forma, ambos Geun-sae e família de Kim
estavam no mesmo andar, no subterrâneo, soterrados pela desigualdade
social, mas um pequeno momento na vida de cima já foi o suficiente para que a
soberba aparecesse, assim, iniciando uma espécie de luta pela riqueza, pelos
privilégios e pelos status quo, tomando lugar do que deveria ser uma união de
classes contra a desigualdade promovida pelo sistema diariamente, pois o
único desfecho visível para pobreza vs. riqueza é a violência, mesmo que
signifique aniquilar o “concorrente”, porque a visão encerada de uma
conciliação entre ricos e pobres não existe fora dos filmes de ficção.
Isso tudo retrata um dos maiores problemas na luta de classes: a falta
de união dos pobres para contrapor as desigualdades sociais do capitalismo.
Claro que, falando de um lugar privilegiado, onde não há a necessidade
fisiológica de uma luta pela sobrevivência, é fácil tecer comentários e reflexões
sobre como deveria ser, mas na hora que o dinheiro aperta e que falta comida
na mesa para a família, e o indivíduo vê uma maneira de ascender e deter de
tudo que sempre quis, mesmo que para isso tenha que “eliminar” seus
concorrentes, essa parece a solução mais plausível. Porém, isso não quer
dizer que não seja passível a reflexão de que, se a classe buscasse mais por
uma união, talvez uma força maior fizesse alguma diferença, nem que seja
mínima, pois sabemos que o sistema em si já está quebrado, e que o Estado é
um instrumento que tem muita força, mas é gradualmente e constantemente
que se constroem revoluções e que se reivindicam direitos, pois como teceria
Foucault em “A genealogia do Poder”, a partir do texto “Introdução - Por uma
genealogia do Poder”, de Roberto Machado, “Rigorosamente falando, o poder
não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer
que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona
como uma maquinaria, como uma máquina social que não está situada em um
lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social.”
(Machado, 1989, p.14).
REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. (2005) "Aula de 17 de março de 1976" In:_. Em defesa


da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, p.285-315.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France


(1975-1976), (trad. de Maria Ermantina Galvão). São Paulo: Martins Fontes,
2000.

FOUCAULT, Michel; MACHADO, Roberto. Microfísica do poder: Introdução –


“Por uma genealogia do poder”. 8. ed. Rio de Janeiro: Graal, p.8-23, 1989.

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