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Faculdade Católica de Fortaleza

Narcélio Ferreira de Lima

O PENSAMENTO SITUACIONAL NA OBRA “DEUS EM BUSCA DO


HOMEM” EM DIÁLOGO COM A RAZÃO MODERNA

Monografia apresentada ao Departamento


de Filosofia da Faculdade Católica de
Fortaleza, como requisito parcial para
obtenção do grau de Bacharel em
Filosofia, tendo como orientador o Prof.
Ms. Pe. Judikael Castelo Branco
(Faculdade Católica de Fortaleza – FCF)

Fortaleza
2013
2

Faculdade Católica de Fortaleza


Narcélio Ferreira de Lima

O PENSAMENTO SITUACIONAL NA OBRA “DEUS EM BUSCA DO


HOMEM” EM DIÁLOGO COM A RAZÃO MODERNA

Defesa em ____/ ____/ ________ Nota Obtida: ________

Banca Examinadora

____________________________________
Prof. Orientador

____________________________________
Prof. Examinador

Fortaleza
2013
3

Ao meu Pai-fundador:
Pe. Caetano Minette de Tillesse, NJ
(in memoriam)
4

Agradeço ao Deus da Bíblia e dos Profetas que me concedeu o dom de viver e amá-
lo e que me inspirou este trabalho;

À minha família biológica, em especial meus dois grandes heróis: meus pais Isaura e
Francisco; à minha família religiosa: O Instituto Religioso Nova Jerusalém e à minha
família espiritual que este mesmo Deus me concedeu pelo seu próprio merecimento.
Devo grande parte do que sou hoje a vocês!

À minha comunidade acadêmica, a Faculdade Católica de Fortaleza – FCF, em seus


respectivos discentes, mestres, funcionários e colaboradores, de cujo amor e
dedicação não caberiam traduzir em tão poucas páginas; rumo aos 150 anos de
formação no Estado do Ceará. De maneira especial louvo a dedicação da Profª Ir.
Maria Celeste pelo carinho e competência comprovada por esta casa.

A dois grandes mestres-amigos que sem eles este trabalho por certo não existiria:
minha irmã de Comunidade, Professora Aíla Luzia Pinheiro de Andrade que nos
proporcionou a oportunidade de conhecer e aprofundar o pensamento de Abraham
Joshua Heschel nesta Casa e que dedicou parte de seu tempo calculado a estar
conosco pesquisando a obra deste grande homem através do Grupo de Estudo
“Consciência religiosa e condição humana em Abraham Joshua Heschel”. Por fim,
ao Professor Padre Judikael Castelo Branco que aceitou o desafio de me orientar
neste trabalho, além de demonstrar tamanha seriedade e capacidade na
transmissão de conhecimentos que ampliaram o horizonte de nosso entendimento
com segurança, simpatia e responsabilidade, homem ao qual tenho como referência
de fé e humanidade.

A todos aqueles que, de alguma forma ou outra, me ajudaram a ser o que sou.
5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 07

1 VIDA E OBRA DE ABRAHAM JOSHUA HESCHEL


1.1 Quem é Abraham Joshua Heschel ........................................................... 09
1.2 A filosofia do Judaísmo e o Hassidismo ................................................... 13
1.3 A filosofia Hescheliana ............................................................................. 17

2 O “PENSAMENTO SITUACIONAL” EM ABRAHAM JOSHUA HESCHEL


2.1 Teologia e Filosofia ................................................................................ 20
2.2 Ideias e Eventos .................................................................................... 22
2.3 Memória e Insight .................................................................................. 24
2.4 O pensamento situacional ..................................................................... 26

3 HESCHEL E A MODERNIDADE
3.1 Razão e fé ............................................................................................... 32
3.2 O papel da Sagrada Escritura e dos Profetas ......................................... 35
3.3 A modernidade e a religião ...................................................................... 37

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 40

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 42


6

Não é o mero sentimento, mas a ação,


que irá mitigar a miséria do mundo, a
injustiça na sociedade e a alienação do
povo com relação a Deus. Somente a
ação aliviará a tensão entre o homem e
Deus.
Heschel
7

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa procura apresentar as principais ideias do filósofo


Abraham Joshua Heschel (1907-1972), influente rabino ortodoxo polonês do círculo
do hassidismo (corrente de mística e piedade judaica) sobre sua então elaborada
ideia de “pensamento situacional”, mais precisamente descrita na obra “Deus em
Busca do Homem”, datada de 1952 e traduzida para a língua portuguesa em 1975.

O primeiro capítulo visa apresentar a pessoa de Heschel (por enquanto


pouco conhecido no Brasil), sua biografia, sua formação religiosa e a influência do
hassidismo em seu pensamento, dar a conhecer sua formação intelectual e registrar
as atividades que marcaram sua vida e a das sociedades em que esteve inserido,
por isso utilizamos aqui um número significativo de linhas.

Heschel declara seu pensamento filosofia da religião, mas


especificamente uma filosofia do judaísmo, pois não toma como ponto de partida os
dogmas, entendidos como verdades prontas da religião, mas prefere se embasar na
didática aberta e questionadora do pensar filosófico. A filosofia hescheliana tem
como pressuposto o amor de Deus que busca o homem, ideia presente em todo
pensamento de Heschel que aponta Deus como sujeito supremo da realidade que
nos envolve e não apenas como objeto de nossa reflexão. Heschel pode ser
considerado humanista e faz um humanismo dito sagrado, uma antropologia que vê
no ser humano à imagem de seu Criador e, por isso mesmo, dotado de
possibilidades, tornando-o digno e capaz de superar a si mesmo, fazendo-o sentir
responsável por si, pela criação e pela resposta a esse Deus que o busca
incessantemente.

O segundo capítulo busca restabelecer alguns problemas esquecidos, os


elementos fundamentais para a elaboração de uma filosofia da religião. Buscamos
extrair também alguns temas essenciais para a definição do que Heschel traduz por
“pensamento situacional” com suas devidas contribuições para o pensamento
religioso em confronto com a “religião moderna”, pois sabemos que a filosofia
ocidental é predominantemente marcada pela filosofia grega na qual a racionalidade
8

é seu principal objeto, embora hoje em dia não se negue outras formas de
conhecimento, como lembra São Tomás, por exemplo. Por outro lado, a cultura
oriental nos apresenta outra forma de conceber a realidade que se dá inicialmente
através da ênfase do papel afetivo no conhecimento, tratando-se aqui do
conhecimento intuitivo ou “pensamento criativo”, sem negar, é óbvio, a importância
da especulação. Longe de se opor ao decisivo e fundamental papel da razão no
conhecimento humano, Heschel não rejeita, mas antes visa complementar o
conhecimento intelectivo, procurando dar ênfase ao papel da memória, do insight e
da imparcialidade nos eventos concretos nos quais vive o homem para assim chegar
ao que ele chama de pensamento situacional, pois, para Heschel, não é o mero
sentimento que poderá aliviar as tensões entre o homem e Deus. O conhecimento
ou “pensamento situacional” de que nosso autor trata é a consciência do homem
religioso que faz a experiência do insight (“estalo”, o despertar das ideias internas
adormecidas), passando de espectador a sujeito que age para a transformação da
realidade, como fizeram os profetas bíblicos, o que constitui seu método
epistemológico.

No terceiro capítulo procuramos, por fim, através dos temas abordados,


acompanhar o percurso de Heschel, a partir de suas ideias e testemunho de vida
para nos confrontarmos com as questões que nos atingem diretamente,
especialmente o que diz respeito à consciência religiosa, ao seu humanismo e ao
diálogo com o pensamento moderno, extraindo daqui algumas de suas contribuições
para a cristalização do que o mesmo entende por pensamento situacional.

Na obra “Deus em busca do homem” Heschel se explica, ele escreve o


que experimenta interiormente, fazendo jus a todo drama de sua vida, por isso
achamos por bem ser guiados pela mesma obra, visando atingir um
autodiscernimento antropológico proposto por ele, e encontrar, assim, caminhos
sólidos para um frutuoso diálogo com o pensamento moderno.

Abraham Joshua Heschel escreve como um filósofo ocidental, um


scholar judeu, um rebe hassídico e como um poeta que assume uma
inabalável confiança no amor de Deus pela Humanidade. E também
ele sublinha a compaixão dos profetas hebreus e seu radicalismo
ético. (KAPLAN apud LEONE, 2002, p. 204.)
9

1 Vida e Obra de Abraham Joshua Heschel

1.1 Quem é Abraham Joshua Heschel

Abraham Joshua Heschel nasceu em 11 de janeiro de 1907 em Varsóvia,


Polônia, e faleceu aos 65 anos em Nova York a 23 de dezembro de 1972.
Conhecido rabino e descendente de família também rabina, filho mais moço de uma
prole de seis filhos do casal Moshé Mordehai Heschel, falecido quando Heschel
tinha apenas nove anos de idade, e Reizel Heschel, filha do Rabi Abraham Joshua
Heschel de Apt, contemporâneo do famoso Rabi Israel Ben Eliezer, o “Baal Shem
Tov”. Como se vê, Heschel herdou o nome de seu avô materno. Seus irmãos eram
Sara, Devora Miriam, Esther Sima, Gittel e Jacob. Sua ascendência deixa
transparecer que esta trazia em si certa honra no universo judaico.1

Foi educado desde cedo nos círculos do hassidismo da Polônia, corrente


de mística e piedade judaica que veremos adiante. Alí, Heschel foi estudando e
tornando-se mais tarde rabino ortodoxo. Sua formação acadêmica se dá na
Universidade de Berlim e Frankfurt, onde se tornará mais conhecido. A tese de seu
doutorado foi defendida em 1933 com tema sobre os Profetas com esta e uma
biografia de Maimônides, Heschel se aproxima de Martin Buber (1878-1965),
tornando seu discípulo e posteriormente seu substituto no Centro de Cultura Judaica
de Frankfurt, devido à transferência de Buber a Jerusalém em 1937.2

Pouco tempo depois Heschel é obrigado a deixar a Alemanha devido às


crescentes rejeições aos judeus. Retorna então para a Polônia e lá permanece até
umas seis semanas antes da invasão das tropas nazistas. Consegue escapar para
Londres e lá encontra seu irmão Jacob, mas perde seus familiares em Varsóvia,
perde também uma irmã durante o bombardeio, mais tarde sua mãe e uma outra
irmã são mortas pelos alemães, uma de suas irmãs, a que morava em Viena, foi

1
Cf. SUSANNAH HESCHEL. Abraham Joshua Heschel (biografia)
http://home.versatel.nl/heschel/Susannah.htm. Acesso em 05/08/2013 e XAVIER, Antonio Thadeo de
Oliveira. “Israel, eco de eternidade”. Kairós. Fortaleza, 2005. Ano II, n.2, p. 284-303.
2
Cf. ZAMITH, Dom Joaquim de Arruda [Introdução] In: HESCHEL, A. J. Deus em busca do homem.
São Paulo: Paulinas, 1975. p. 5-6.
10

levada para Auschwitz e é assassinada logo em sua chegada. Com ajuda do


presidente do Hebrew Union College, Julian Morgenstern, Heschel consegue migrar
para Nova York, em março de 1940, nesta difícil, mas ao mesmo tempo, brilhante
situação, pois daqui surgem muitas de suas obras. Homem de cultura clássica e
religiosa, começa a escrever diversos livros e, ao mesmo tempo, se engaja naquela
sociedade. Conhece Martin Luther King em 1963 numa conferência nacional de
judeus e cristãos, a partir de então, participava ativamente de marchas e
manifestações pacíficas a favor da vida, dos direitos humanos, da justiça e da paz,
especialmente no que dizia respeito ao diálogo entre as religiões e aos direitos
civis.3 A respeito relembra Heschel: “Quando marchei com Martin Luther King em
Selma, Alabama, senti que minhas pernas rezavam”4. A partir desse momento
Heschel passa a ser conhecido pelo público em geral, inclusive é convidado para
programas televisivos, nos quais, na maioria das vezes, falou como judeu,
representante do hassidismo contemporâneo.

Os anos que Heschel trabalhou como instrutor em Cincinatti (EUA) foram


solitários, morava num dormitório de estudantes entre as cartas com pedido de
ajuda de seus familiares da Europa e de estudantes pouco interessados em textos
judaicos. No Hebrew Union College Heschel fez amigos, entre eles alguns rabinos e
professores. Através de um desses professores, conhece sua esposa, Sylvia Straus,
uma pianista, sua conterrânea, que veio de Cleveland para estudar em Cincinatti.
Casaram-se em dezembro de 1946 em Los Angeles, para onde os pais de Sylvia
haviam emigrado. Pouco antes disso, Heschel havia recebido convite para ensinar
nos Estados Unidos, no Jewish Theological Seminary e Sylvia foi incentivada a
estudar com um pianista nova-iorquino, o que fez com que os dois mudassem para
Nova York logo após o casamento.5 O casal Heschel teve uma filha a qual deram-lhe
o nome de Susannah, que se tornou mais tarde sua maior biógrafa.6

3
Cf. ZAMITH In: HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 6
4
Cf. HAZAN, Maria da Glória. Filosofia do Judaísmo em Abraham Joshua Heschel: Consciência
Religiosa, Condição Humana e Deus [Tese de Mestrado] São Paulo, PUC: 2006, p. 33.
5
Cf. HAZAN, Filosofia do Judaísmo em Abraham Joshua Heschel, p. 31-32.
6
Susannah Heschel dispõe de um site que contém informações mais detalhadas da biografia de seu
pai: <http://home.versatel.nl/heschel/Susannah.htm>.
11

É nos Estados Unidos que Heschel elabora suas obras mais conhecidas,
pôde escrever em inglês em 1951 Man is not alone (O Homem não está só) e The
Shabbat (O Sábado). Em 1952, a obra God in search of Man (Deus em busca do
Homem) e, em 1954, Man’s quest of God (O homem à procura de Deus), trazendo
algo inovador, rompendo, de certa forma, com o posicionamento tradicional do
hassidismo frente à modernidade e com os cientistas da religião num contexto pós-
guerra.7

Seu contato efetivo com a Igreja Católica se dá no encontro com o


Cardeal Augustin Bea8 (1881-1968), primeiro presidente do então novo Secretariado
para a Unidade dos Cristãos, influente nos trabalhos do Concílio Ecumênico
Vaticano II pela unidade dos cristãos e pelo diálogo entre as religiões não cristãs, a
começar pelo judaísmo, sendo então a ponte entre Heschel e o Pontífice Paulo VI.
Esse mesmo encontro fez com que Heschel sofresse com a reprovação de seus
correligionários mais conservadores.9

Na segunda metade dos anos 1960 Heschel é incumbido de uma


importante missão, que contribuiria um tanto com o que ele entendia por ética
religiosa. A pedido do Comitê Judaico Americano vai a Roma e encontra-se
pessoalmente com o Papa Paulo VI por diversas vezes logo nos primórdios do
Concílio10, envolvendo-se nos trabalhos do Secretariado e posicionando-se
claramente nas questões sobre a relação entre cristãos e judeus quando achava que
o mesmo órgão estava esfriando suas declarações, por isso, acredita-se que a
Declaração Nostra Aetate11, a qual inocenta o povo judeu em geral da crucifixão de
Cristo tenha sua influência, declaração esta que Bea fica responsável pela
apresentação. Um cisma de dezoito séculos estava para ter um desfecho positivo,
graças à contribuição e insistência de Heschel. Hazan comenta que, numa visita do
casal Heschel ao Papa Paulo VI em 1970, nosso autor é elogiado por suas obras,
que são chamadas pelo Pontífice de “muito espirituais e muito bonitas” e que os

7
Cf. HAZAN, Filosofia do Judaísmo em Abraham Joshua Heschel, p. 32.
8
O Papa João Paulo II dedicou discurso ao Centenário do nascimento de Augustin Bea em 19 de
dezembro de 1981 disponível no site oficial do Vaticano (Roma, 1981), relembrando sua
personalidade e importantes trabalhos na área da unidade da Igreja e do ecumenismo.
9
Cf. ZAMITH In: HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 6.
10
Cf. ZAMITH In: HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 6
11
“Nostra Aetate”, do latim, “na nossa época”, é o nome desta Declaração do Papa Paulo VI datada
de 28 de outubro de 1965 que trata sobre a relação da Igreja Católica com as religiões não cristãs.
12

católicos deviam lê-las. O Papa ficou sabendo do impacto de suas obras na vida dos
jovens, que para ele representava “uma bênção” e finalizou com um pedido para
Heschel continuar escrevendo.12

O final da vida deste homem foi marcado por muito trabalho, sempre
insatisfeito com as crises trazidas pela desumanização da sociedade moderna e
engajado na luta pela transformação da mesma. Deu sua última aula na sexta-feira
(22 de dezembro de 1972) no Seminário Teológico Judaico de Nova York e voltou
para casa, passando o início do Shabbat13 com a família e, segundo testemunho de
sua filha, Susannah Heschel, eles planejavam ir à Sinagoga no sábado pela manhã,
o que não pôde acontecer, pois Heschel não acordou definitivamente. Heschel havia
também convidado Luther King para estar com a família, mas este foi assassinado
antes que o fizesse.

Para a tradição judaica, considera-se um sinal de grande devoção a


morte serena durante o sono, ainda mais no Shabbat. Essa morte é
chamada de “beijo de Deus”; Deus havia beijado sua alma. Esta
importante figura do século XX, intelectualmente reconhecida, este
fervoroso religioso humanista, morreu aos 65 anos de idade em Nova
York, deixando um legado importantíssimo. Sua obra permanece
indagando a sociedade moderna quanto a sua ética e os religiosos
quanto a sua postura ativa no mundo.14

Na audiência geral de 1973, um ano após sua morte, o Papa Paulo VI


citava um texto seu, o que até então não era costume em audiências papais a
citação de autores não cristãos. O Papa discursava sobre o tema da procura de
Deus, o que constitui o centro de toda obra de Heschel: “[...] teremos a surpresa de
descobrir que Deus veio à nossa procura muito antes que nós começássemos a
procurá-lo, e que Ele nos procura infinitamente mais do que somos capazes de fazê-
lo”.15 Assim conclui Zamith:

12
Cf. HAZAN, Filosofia do Judaísmo em Abraham Joshua Heschel, p. 36.
13
Na tradição bíblica antiga o dia iniciava-se com o cair da tarde (Cf. Gênesis 1,5.8.13.19.23 e 31).
Como na tradição bíblica as leis mais antigas tem maior autoridade, conservou-se a ideia de santificar
o sábado, que em hebraico,shabbat quer dizer “descanso”, e esse é o termo da criação. Sua
observação aparece no livro do Êxodo como o quarto mandamento da Lei ou Toráh (Cf. Êxodo 20,8-
11), o que para um judeu constitui ato sagrado. Segundo Heschel, talvez o sábado seja a ideia que
expresse o que é mais característico no judaísmo (Cf. HESCHEL, Deus em busca do Homem, p.
522).
14
Cf. HAZAN, Filosofia do Judaísmo em Abraham Joshua Heschel, p. 38-39.
15
Cf. ZAMITH In HESCHEL, A. J. Deus em busca do homem, p. 5.
13

Falecido em 1972, aos 65 anos, Abraham Heschel já era


considerado, não só pelos seus, mas por muitos cristãos, um
profundo teólogo, verdadeiro místico, bem como um homem capaz
de testemunhar pela sua vida e suas ações, no meio das situações
problemáticas de hoje, as vontades do seu Deus – um profeta dos
nossos tempos!16

1.2 A filosofia do Judaísmo e o Hassidismo

Caberia aqui nos perguntar se é possível haver de fato no judaísmo uma


filosofia, tal como a compreendemos em seus termos técnicos. Heschel lembra-nos
que o termo judaísmo na frase “filosofia do judaísmo” não constitui nem objeto nem
sujeito, pois para nosso autor o judaísmo não é objeto ou tema de seu pensamento,
muito menos uma fonte de ideias como, por exemplo, a filosofia de Kant, de Platão
etc. Para Heschel o judaísmo é realidade, drama histórico e compromisso de um
povo com Deus e não apenas uma experiência ou sentimento, o que facilitaria a
elaboração de uma reflexão de cunho filosófico; compreender esses fatos seria
tarefa de uma filosofia do judaísmo.17

Como dissemos antes, Heschel trata de filosofia da religião, mas não de


qualquer religião senão a sua, pessoalmente, e utiliza na maioria das vezes esse
18
método o qual intitula “autodiscernimento” e o termo “judaísmo” como sujeito.19
Por isso é tão comum notarmos em sua obra temas e termos específicos do
judaísmo, bem como a maneira de nosso autor abordá-los. Poderíamos citar em
especial a observância da Lei e suas devidas prescrições (mitsvot,em hebraico):
esta ética só se define como fundamental se revela o valor e a finalidade de cada
ação. É exatamente essa prática dos mandamentos que forma um caminho especial
para um encontro com Deus; é a vida no judaísmo que permite atingir a fé judaica.

16
ZAMITH In: HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 5.
17
Cf. HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 40.
18
Heschel defende a existência de dois tipos de filosofia, o primeiro seria filosofia entendida como
processo de pensamento conceitual, de análise do conteúdo do pensamento. Um segundo tipo de
filosofia seria a de “autocompreensão radical”, também chamado de autoconhecimento ou
autodiscernimento. Segundo Heschel, a primeira das três máximas inscritas no portal do templo de
Apolo em Delfos (“Conhece-te a ti mesmo”) tem sido de diversos modos preocupação central da
filosofia, enfatizada por Sócrates e Platão. Cf. Deus em busca do Homem, p. 19 e nota).
19
Cf. HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 40.
14

Aqui, vida e fé não se separam, mas devem acontecer mutuamente num dinamismo
harmônico e vital.

Heschel concorda que a filosofia não surge do acaso e se desenvolve


num específico modo de pensar, dentro de determinadas maneiras e categorias,
lembra-nos que a filosofia ocidental é marcada predominantemente pelo modo de
pensar dos gregos e, além disso, comparando Israel com a Grécia, constata que
suas doutrinas e categorias são diferentes, assim como a Bíblia e a doutrina de
Aristóteles. Não apenas as categorias divergem como o critério de avaliação desses
pensamentos, o contexto e formas de orientação específicas que as modelam, “não
somente uma estrutura mental, mas também certa disposição ou maneira de
entrelaçar e inter-relacionar intuições e percepções, um único tear de conceitos.” 20

A mente humana, por ser unilateral, não consegue atingir toda a realidade
de uma única vez, ou percebemos os aspectos comuns das coisas que se
expressam ou os elementos que as diferem. Na história dos conceitos houve
períodos em que o olhar para o universal foi mais forte e ainda outros em que o
estudo da particularidade mais interessava. Fílon de Alexandria chegou a rejeitar o
específico e a diferença tanto no judaísmo como no helenismo. Queria dizer assim
que ambos teriam a mesma mensagem, como se o êxtase dos cultos helênicos, por
exemplo, fosse idêntico ao transe profético quando se recebia a revelação. Depois
disso muitos tentaram fazer tal relação, mas assim complementa Heschel:

O que eles não conseguiram entender foi a riqueza única do insight


espiritual contida nas ideias proféticas do pathos divino. O
pensamento hebraico age dentro de categorias diferentes daquelas
de Platão ou Aristóteles, e as diferenças de opiniões entre seus
respectivos ensinamentos não são meramente uma matéria de
diferentes modos de expressão, mas de diferentes modos de pensar.
Insistindo nos elementos comuns de razão e revelação, uma síntese
de duas forças espirituais foi atingida com o sacrifício de alguns de
seus inigualáveis insights.21

Por uma questão de honestidade intelectual o pensamento judaico não se


estendeu às culturas não-judaicas a fim de adquirir novos elementos, por mais que
isso seja vital em seu contexto histórico. Heschel afirma que essa tentativa de

20
HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 30.
21
HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 31.
15

encontrar uma síntese entre a metafísica grega e o pensamento judaico não se dá


de forma sub specie æternitas (do latim, “sob forma de eternidade”), isto é, não
constitui algo fundamental. Jerusalém e Atenas têm mundos espirituais diferentes,
mas geográfica e historicamente não estão tão distantes uma da outra. Enquanto os
profetas atuavam de um lado, Péricles pensava de outro.22

Dentre as várias correntes de pensamento no judaísmo está o


Hassidismo, pelo qual Heschel e muitos outros, como seu amigo Martin Buber, é
fortemente influenciado. No hebraico, a palavra hassid traz a raiz de hesed, que quer
dizer amor, compaixão, misericórdia, mas especialmente quer significar
solidariedade. Sabe-se que no judaísmo da Diáspora sempre existiram comunidades
que assumiam o nome hassidim, que quer dizer “piedosos” ou “devotos”. A
comunidade hassídica é também chamada de comunidade mística dos “piedosos”.
Buber e Heschel são uns de seus maiores estudiosos e propagadores, embora
apenas Heschel tenha nascido dentro desse círculo.

O fundador do Hassidismo, entendido como movimento histórico dentro


do judaísmo foi o Rabi Israel ben Eliezer (1700-1760), apelidado de Baal Shem Tov
(“o possuidor do Bom Nome”). O movimento surgiu na Polônia no século XVIII
caracterizado num esforço pela renovação da mística judaica, na tentativa de
provocar uma verdadeira teshuváh, quer dizer, “retorno” à piedade, santidade e
união com Deus aqui mesmo na terra, possibilitando assim uma nova conotação no
termo “piedade”, ou seja, uma vida nova.23

Ao lado de Shem Tov está um outro famoso rabino, Menahem Mendel de


Kotzk (falecido em 1859), estes são os dois mestres dos quais o próprio Heschel
declara ter influência. Eles representam duas visões judaico-hassídicas a respeito do
mundo. Enquanto Shem Tov deixava transparecer um hassidismo por misericórdia,
compaixão e alegria, reconhecendo a presença de Deus nos seres, nas coisas e nos
eventos, Kotzk representava o hassidismo da indignação com este mundo e sentia
sua dor, portanto, a justiça severa frente ao pecado e a corrupção, o que exigiria
uma redenção cósmica. Heschel chegou a comparar o sentimento de Kotzk com o

22
Cf. HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 31-32.
23
Cf. VON ZUBEN, Newton Aquiles [Introdução e tradução] In: BUBER, Martin. Eu e Tu. Editora
Cortez & Moraes: São Paulo,1979. p. 35.
16

de Kierkegaard.24 Como vemos, a influência do hassidismo no pensamento e nas


obras de Heschel é bastante central.

Essa tradição religiosa representa uma grande herança de riqueza mística


e espiritual ao mundo ocidentalizado que, assim como para Buber e Heschel, não
somente influenciou seus pensamentos como os ajudou a moldá-lo. Segundo Buber,
um dos fatores mais vitais nesse movimento é que os hassidim contavam histórias
de seus líderes, os quais são chamados tzadikim em hebraico, e ainda:

A palavra utilizada para narrá-las é mais que mero discurso;


transmite às gerações vindouras o que de fato ocorreu, pois a própria
narrativa passa a ser acontecimento, recebendo a consagração de
um ato sagrado.25

Buber ainda afirma que não se trata de pura e simples narração, é mais
que uma reflexão, pois nela está a essência que continua vivendo ao longo das
gerações e quando narrada adquire nova força. Nos primórdios do movimento as
histórias eram transmitidas oralmente e só depois foram escritas, pois os textos que
foram surgindo deixam transparecer que eram utilizados mais precisamente para
uso pessoal que público. Inicialmente se utilizava apenas de lendas e o uso do mito
é tardio; Buber explica ainda que o ritmo interno da comunidade hassídica
possibilitava estilo próprio e o que os hassidim contavam a respeito de seus mestres
não se adaptava a qualquer molde literário senão por lendas. A obra hassídica,
portanto, “queria dizer muito mais do que ela podia conter” e foi dando-se de forma
inacabada, jamais tornou-se obra individual ou arte popular, embora “metal
precioso”.26

O hassidismo é “uma tradição religiosa viva e cheia de piedade”, ele


representa uma reação antirrabínica tradicional legalista e intelectual que emergia
desde então. Os hassidim “enfatizavam a simplicidade, a devoção de cada dia, na
27
concretude de cada momento e na santificação de cada ação” , inspirada na
tradição dos salmos e dos Profetas Bíblicos.

24
Cf. LEONE, Alexandre G. A imagem divina e o pó da terra: humanismo sagrado e crítica da
modernidade em A. J. Heschel. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: FAPESP, 2002, p. 27-28.
25
BUBER, Martin. Histórias do Rabi. São Paulo: Editora Perspectiva, 1967. p. 11
26
BUBER, Histórias do Rabi, p. 11-12.
27
VON ZUBEN In: BUBER, Eu e Tu, 1979. p. 35.
17

No hassidismo é inconcebível a separação entre ética e religião, assim


também acontece com a relação direta com Deus e os irmãos, a ética não é
concebida como puro ditame de normas, a própria kabbalah ou “mística” judaica se
torna ethos, mas, lembra Buber, que o hassidismo não deve ser confundido com
esta, apenas absorveu o necessário de fundamentação teológica para a
compreensão da vida pautada na responsabilidade de cada indivíduo.

O ensinamento hassídico é essencialmente uma orientação para


uma vida de fervor, em alegria entusiástica. Tal ensinamento, porém,
não é uma teoria que exista independente de sua realização. Mais
que isto, é a complementação teórica de vidas realmente vividas por
tzadikim e hassidim, principalmente nas seis primeiras gerações do
movimento [...].28

Em outras palavras Buber quis dizer que é possível contemplar Deus em


tudo, atingi-lo em cada ação pura. Lembra também que não se trata de um
pensamento panteísta, pois aqui se trata de uma complementação de vidas
(especialmente entre tzadikim e hassidim) e não uma relação de absorção entre
Deus e o mundo, o que possibilita intitular essa relação de “panenteísta”, isto é,
revela a relação do mundo como “mundo-em-Deus”.

1.3 A filosofia Hescheliana

Heschel insiste em dizer que sua obra trata de filosofia da religião,


especialmente da filosofia do judaísmo, visto que compreendia a filosofia não num
sentido limitado, mas aberto e questionador. Não fosse isso, bem que poderíamos
classificar sua obra como teologia do judaísmo, mas Heschel reafirma que a teologia
tem um caráter essencialmente dogmático em oposição ao pensar filosófico ao
dizer: “Teologia começa com dogmas, filosofia começa com problemas. Filosofia vê,
antes, o problema, teologia tem a resposta por antecipação.” 29

Na busca por compreensão dos problemas religiosos de nosso tempo,


nosso autor se utiliza de um tipo de pensamento o qual intitula “situacional”, fazendo

28
BUBER, Histórias do Rabi, p. 20.
29
HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 16.
18

deste seu método epistemológico. Este método, o qual veremos adiante, distingue-
se daquele que se dá pelos conceitos (desenvolvido pelo raciocínio). O pensamento
(ou conhecimento) situacional preocupa-se com as situações, supondo experiência
interior e levando-nos ao engajamento.

A partir daqui notamos o interesse de Heschel pelos eventos bíblicos que


ajudam a definir a fé do povo judeu ao Deus de Israel. Em sua obra, não trata de
dogmas ou verdades reveladas e que se tornaram mais tarde o conteúdo da fé, mas
o inverso. Heschel procura aprofundar as situações que lhe são anteriores, busca
não tanto levantar a filosofia de uma doutrina, mas a filosofia de acontecimentos
concretos, de atos e intuições. A fé, segundo Heschel, é objeto da teologia, ele toma
para sua reflexão o “ato de crer”, que define como “a fé em profundidade” ou o
substratum do qual ela emerge.

Heschel entende a religião como sendo também fonte de conhecimento


ou insights, e propõe o retorno dessa religião aos elementos que comprovam sua
autenticidade, pois entende religião como resposta aos problemas fundamentais do
homem. O tema da consciência religiosa e Deus deixa transparecer que a filosofia
hescheliana tem caráter noético, isto é, um interesse pela prática.30

Para o judaísmo o termo consciência ocupa lugar de fundamental


importância, pois é considerado atributo divino, é o que diferencia o ser humano de
todos os outros animais, e é exatamente esse encontro com o outro que possibilita o
conhecimento de si mesmo.

Como bom judeu hassid e rabino, Heschel revela em sua filosofia seu
grande conhecimento sobre a Bíblia, que aparece como fonte de inspiração de seu
pensamento, no qual os mandamentos da Toráh ocupam lugar especial. Segundo
ele, “Os dez mandamentos foram traduzidos em todas as línguas, e seu vocabulário
tornou-se parte da literatura de todas as nações”.31

Heschel é humanista, mas faz um humanismo sagrado, pois aqui concebe


o ser humano a partir de uma concepção bíblica: esse ser humano começa a ser
visto não pelo que é no momento presente, mas pela sua possibilidade, ou seja,

30
Cf. HESCHEL, Deus em busca do Homem, p. 15-33.
31
HESCHEL, Deus em busca do Homem, p. 522.
19

aquilo que este pode vir a ser. Quando Heschel elabora um estudo sobre o Sábado,
por exemplo, afirma que este representa a realeza de cada homem; anula a
distinção entre o patrão e o escravo, entre o rico e o pobre, entre o sucesso e a
derrota, quer dizer que todos os homens são iguais e nobres: o maior pecado do
homem para Heschel é esquecer que é um príncipe.32 Num contexto trágico
marcado pelo holocausto e pela guerra, no qual a religião perdeu mais ainda sua
força, a postura de Heschel foi de responsabilidade, engajando-se na sociedade na
qual esteve inserido e tentando reconstruir o homem desumanizado da
modernidade.

Segundo Leone, Heschel poderia ser classificado como um dos maiores


pensadores do judaísmo da segunda metade do século XX na Europa e com maior
repercussão. Ao lado de Lévinas, mesmo tendo os dois pouca relação entre si,
aborda tema parecido: “o humano em sua dimensão de dignidade e ética, diante de
uma civilização cada vez mais desumanizante.” 33

32
Cf. HESCHEL, Deus em busca do Homem, p. 523.
33
LEONE, A imagem divina e o pó da terra, p. 24-25.
20

2 O Pensamento Situacional em Abraham Joshua Heschel

2.1 Teologia e Filosofia

Heschel inicia sua obra “Deus em busca do Homem” fazendo um exame


de consciência em nome da própria religião moderna. Ele não culpa a ciência
secular ou a filosofia antirreligiosa pelo atrofiamento da religião, mas considera
importante que a própria religião reconheça que se tornou irrelevante, insensível,
opressiva e insípida, ainda mais quando o conteúdo da fé é substituído por sua
simples profissão ou outras variações. Assim, a religião tem se tornado mais uma
herança tradicional do que uma fonte de vida, marcada por inúmeras crises em seu
passado.34

Mas Heschel não é pessimista para com a religião moderna e, como


dissemos antes, ainda a aponta como fonte de conhecimento e resposta; desde os
tempos mais remotos da história do homem a religião teve papel importante no que
toca seus problemas fundamentais por sempre lhe oferecer uma resposta às
questões que dizem respeito à existência. Heschel ressalta que a religião não pode
fechar os olhos a estes problemas, pois quando ela se torna irrelevante quanto a
eles sua crise se estabelece. Nosso autor acredita que o primeiro papel de uma
filosofia da religião é perceber essas questões humanas para quais a religião se
apresenta como resposta. Portanto, a pesquisa de um filósofo da religião deve tocar
a consciência humana e aprofundar ensinamentos e atitudes da tradição religiosa.35

Afirmamos anteriormente que Heschel não é anti-intelectualista. De fato,


afirma existir conceitos mortos, mas também conceitos vivos. Os conceitos mortos
são comparados com uma pedra plantada, que nada germina, e os conceitos vivos
como sementes, assim, uma resposta dada sem pergunta é privada de vida,
podendo até chegar ao intelecto, mas não atingindo a alma, portanto não será força

34
Cf. HESCHEL, A.J. Deus em busca do Homem. Paulinas: São Paulo, 1975, p. 15.
35
Cf. HESCHEL, Deus em busca do Homem, p. 15
21

criativa36. Em outras palavras poderíamos dizer que assim é a religião sem a


reflexão.

Heschel se propõe a investigar problemas esquecidos da religião para


restabelecê-los, em busca de novas interpretações. Para isso, afirma que o método
filosófico chega a ser mais eficaz do que a teologia, tendo em vista o seu caráter
indagador nos aspectos descritivo, normativo e histórico. Heschel ainda define a
filosofia como “a arte de fazer as perguntas certas” e que a inspiração desta filosofia
depende da compreensão (insight) na tentativa de oferecer uma resposta. Por isso
mesmo, o pensamento de Heschel não tem como ponto de partida a teologia, pois
esta começa com dogmas ou tendo respostas por antecipação.

Outra importante diferenciação levantada por Heschel é que não são


apenas os problemas da filosofia que são diferentes da teologia, mas o próprio
status de ambas. A filosofia possui um determinado princípio, mas não possui um
fim; antes das soluções, a consciência do mesmo princípio se sobressai. Diz ainda
que as respostas dadas pela filosofia podem ser consideradas “problemas
disfarçados”, pois suas respostas suscitam novos problemas. Na religião acontece o
inverso, o mistério das respostas está sobre todas as questões. A filosofia costuma
universalizar os problemas, já a religião tem em foco os problemas pessoais do
homem37, ou seja, o problema da filosofia da religião, como disse Heschel, não é
como esse homem pode chegar à compreensão de Deus, mas de que maneira nós,
pessoalmente, podemos chegar à compreensão de Deus; aqui o filósofo jamais
pode considerar-se apenas um espectador da realidade, mas testemunha das ações
dos outros, num comprometimento com as mesmas.38

A categoria do inefável, segundo Hazan, é um pressuposto que possibilita


um parâmetro entre o pensar situacional-filosófico, visto que põe o homem diante do
outro, do mundo e de Deus, constituindo assim tema fundamental para uma filosofia
da religião judaica. Com efeito, esse conceito acarreta consigo o amor como

36
Cf. HESCHEL, Deus em busca do Homem, p. 15
37
Cf. HESCHEL, Deus em busca do Homem, p.16-17.
38
Cf. ZAMITH, Dom Joaquim de Arruda [Introdução] In: HESCHEL, A. J. Deus em busca do homem.
São Paulo: Paulinas, 1975, p. 7.
22

exigência, fazendo com que o homem olhe para fora de si em toda sua singularidade
e necessidade.39

Heschel sustenta a tese de que a sublimidade é um tema caro à Bíblia


hebraica, que não se encontra na literatura clássica grega e que aparece sobretudo
no livro de Isaías sem negar, obviamente, a validade da definição feita pelos
filósofos antigos como Homero ou Ésquilo.40 Para o judaísmo o sublime está
relacionado a um tipo de beleza especial e misteriosa, já para o termo grego se
referia a um tipo de estilo, à beleza natural externa ou habilidade humana. A palavra
só começou a ser empregada nesse contexto pelo primeiro século de nossa era
dentro da cultura clássica grega. Para Heschel, o sublime é dedução da grandeza
interior da alma do homem, e a atitude desse homem ante o sublime não é outra
senão o êxtase da admiração.41 O sublime é assombroso, causa espanto e
admiração e leva o homem bíblico a louvar seu Criador, como evoca o Salmo 66:
“Louvai a Deus com brados de júbilo, todas as terras. Cantai a glória do seu nome,
dai glória ao seu louvor. Dizei a Deus: Quão terrível és tu nas tuas obras” (versos 2-
3).

Sabemos que desde a Idade Média foi estabelecida a crise entre ciência e
religião, e a partir do século XIX, segundo nosso autor, esse emblema tem ganhado
nova roupagem, agora a discussão passa a ser feita entre o tipo de saber conceitual
e o tipo de pensamento fenomenológico-existencial, isto é, aquele tipo de
pensamento que analisa a situação do homem, o que veremos a seguir.

2.2 Ideias e Eventos

Para Heschel o judaísmo não pode ser resumido nem por um conjunto de
conceitos, nem por um simples conjunto de eventos, mas com os dois,

39
Cf. HAZAN, Maria da Glória. Filosofia do Judaísmo em Abraham Joshua Heschel: Consciência
Religiosa, Condição Humana e Deus (Tese de Mestrado). São Paulo: PUC, 2006, p. 36.
40
Heschel se vale aqui do pensamento de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), citando-o: “Você
poderia descobrir algo de sublime, de nosso ponto de vista a respeito do termo, na literatura grega
clássica? A sublimidade é de origem hebraica.” HESCHEL, Deus em busca do Homem, 1975, p. 57.
41
Cf. HESCHEL, Deus em busca do Homem, p.58.
23

inseparavelmente. O objeto da filosofia do judaísmo não pode ser outro senão o


próprio judaísmo, uma vez que este possui essas duas facetas. Portanto, não é justo
esquecer o drama, a experiência de vida e as tensões que a Bíblia apresenta e
tentar extrair dela apenas princípios. Tal tentativa seria como reduzir uma pessoa
viva a um diagrama.42

A Bíblia está repleta de vida. Heschel nos faz lembrar, por exemplo, o
êxodo do Egito, a revelação do Sinai e a calúnia de Míriam contra Moisés como
exemplos que ilustram alguns dos grandes eventos que o povo judeu experimentou.
Do outro lado cita “O Senhor é único” e “Justiça tu buscarás” como umas das ideias
da fé judaica. Como vimos, a filosofia do judaísmo é constituída de ideias e
eventos.43

Moisés Maimônides (1135-1204), grande filósofo judeu da idade média


classificou a essência do judaísmo em treze itens de fé, o que ficou conhecido por
credo maimonideano. Heschel os cita e analisa, como também o faremos:

1. A existência de Deus; 2. Sua unidade; 3. Sua imaterialidade; 4.


Sua eternidade; 5. Deus como o objeto de adoração; 6. Revelação
por meio de seus profetas; 7. A proeminência de Moisés entre os
profetas; 8. Todo o pentateuco foi divinamente dado a Moisés; 9. A
imutabilidade da Lei da Torá; 10. A onisciência de Deus; 11.
Recompensa e punição; 12. A vinda do Messias; 13. Ressurreição.44

Heschel lembra que os itens 6, 8, 12 e 13 têm domínio de princípios


ligados diretamente a eventos, todos os demais estão intimamente ligados aos
princípios da fé de Israel, ou seja, para Maimônides é na ideia que a realidade se
expressa, mas para o homem bíblico, como lembra Heschel, é nos eventos e nas
ideias que essa realidade se expressa. Quando um judeu expressa sua fé ao dizer
“creio”, está, ao mesmo tempo, querendo afirmar: “lembro”, mostrando que a
essência do judaísmo aceita ideias e relembra os eventos. Eventos e ideias fazem
parte do sumário da fé judaica.

Numa perspectiva judaica o conhecimento de Deus não se dá através de


métodos gregos, em especial pelas ideias de bondade ou perfeição, mas antes pela

42
Cf. HESCHEL, Deus em busca do Homem, p.38.
43
Cf. HESCHEL, Deus em busca do Homem, p. 38.
44
HESCHEL, Deus em busca do Homem, p. 38-39.
24

percepção dos atos de Deus na história e na vida do homem especificamente, o que


mostraria o cuidado de Deus para com o ser humano. A bondade de Deus aqui não
pode ser entendida como força cósmica, mas antes como ato divino de compaixão
pelo homem numa situação específica, como lembra Heschel: “Não sabemos como
45
a bondade de Deus é, mas como ela ocorre.” Poderíamos ilustrar isso com a
concepção da atenção de Deus para com o sofrimento do homem: Deus não se
mostra indiferente, mas se solidariza mesmo com os maus.

A questão agora não deve ser a tentativa de reconciliar a Bíblia com a


doutrina de Aristóteles a respeito do homem e do universo, mas verificar o que a
Bíblia diz por si mesma, trazendo para nós a mesma indagação que fizemos no
início deste trabalho: quais são as questões fundamentais a respeito de nós mesmos
e que a religião conhece as respostas? E como indaga Heschel: a que ideias um
homem religioso se refere?

Segundo Hazan, no pensamento hescheliano a consciência religiosa


acontece no evento, na medida em que há aqui o encontro do humano com o
sagrado, no momento em que Deus lança a pergunta e o homem o responde. Todas
as indagações serão vãs se Deus não lançar as perguntas, portanto, a consciência
religiosa se faz quando Deus toma a iniciativa e os dois travam diálogo.46

2.3 Memória e Insight

Heschel reconhece que não apenas a Bíblia traz preocupações com


problemas religiosos do homem. Em todos os tempos e culturas, sempre houve a
tentativa de dar resposta às questões que tocam nossa existência, ou seja, aos
nossos problemas fundamentais. Por isso mesmo, o homem tem buscado a Deus.
Muito se deve à filosofia que muito iluminou o campo da moral, por exemplo. Mas o
que Heschel tenta destacar é o papel da Bíblia nesse dilema de Deus com o homem
e vice-versa, pois segundo ele, o período bíblico representa um grande capítulo na

45
HESCHEL, Deus em busca do Homem, p. 39.
46
Cf. HAZAN, Filosofia do Judaísmo em Abraham Joshua Heschel [resumo].
25

história desses dois. A Bíblia representa mil anos de iluminação ou de insights e é


para ela que Heschel tenta voltar nossa atenção.

O que temos nós e o povo da Bíblia em comum? As ansiedades e os


prazeres da vida; o sentido da beleza e a resistência a ele; a
consciência de estar afastado de Deus e momentos de anelo para
encontrar um caminho até ele.47

Já que o conceito central do judaísmo é a aceitação da realidade de Deus


ou do “Deus Vivo”, todo o pensamento judaico parte dessa perspectiva, tudo é visto
a partir dessa ótica, o que vale dizer que qualquer problema do homem religioso
refletido na filosofia do judaísmo se resume nos fundamentos para a fé do homem
na realidade desse Deus Vivo. É dessa relação vital que partirá vários outros
questionamentos referentes à presença de Deus e a busca do homem.

Diante de tantos eventos e conceitos dentro da fé judaica uma coisa é


certa, segundo Heschel há uma luta pelo insight do qual a fé judaica extraiu sua
força. Não se trata de recordar simples eventos, nem mesmo de resumir essa
experiência na herança de uma doutrina. A Bíblia deixa transparecer que seu
conteúdo não se limita a inspirações proféticas, mas revela muitas buscas e anseios
humanos oriundos de lábios não-proféticos. O que vale dizer que a Bíblia tem uma
palavra de Deus para o homem, mas também deste homem para Deus e uma
palavra acerca de Deus, revelando insights humanos, tal como ilustra, sobretudo, a
literatura sapiencial nos livros de Jó, Provérbios, Eclesiastes e a espontaneidade
humana no livro dos Salmos.

Heschel defende que a origem do pensamento religioso é composta de


memória (tradição) e insight pessoal, e ainda: “Devemos confiar em nossa memória
e devemos esforçar-nos para obter insight recente”. Há aqui, além da transmissão
da fé, o convite ao homem para sua própria busca, como evoca o livro do
Deuteronômio: “Reconhece, pois, hoje, e considera no teu coração que só o Senhor
é Deus lá em cima no céu, e aqui embaixo na terra; e nenhum outro há” (Dt 4,39) e
como convida o salmista: “Provai e vede como o Senhor é bom” (Sl 34,9). 48 Heschel

47
HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 43.
48
Em nota da página 45 Heschel lembra que o verbo hebraico empregado no versículo 9 do Salmo
34 O verbo “provar” na língua hebraica é ta’am e tem o mesmo sentido de perceber, experimentar e
pode ser utilizado num contexto de julgamento.
26

tenta explicar esse “experimentar” do salmo utilizando-se de outra citação bíblica, o


Cântico de passagem do Mar Vermelho: “Este é o meu Deus, portanto, eu o
glorificarei; Ele é o Deus de meu pai, por isso eu o exaltarei” (Ex 15,2), o que para
Heschel mais parece um insight próprio da pessoa que experimentou Deus
pessoalmente (“eu o glorificarei”) e que consequentemente professa “ele é o Deus
de meu pai, por isso o glorificarei”.

Ainda uma outra palavra sobre o insight de Antônio Inácio da Silva que
poderá esclarecer nosso entendimento sobre o mesmo tema:

O insight é a surpreendente e inesperada descoberta de uma


verdade cuja estruturação se operou, quiçá, a longo prazo, nas
noturnas paragens do nosso subconsciente ou mesmo do
inconsciente. Coisas que sabíamos, em momentos e circunstâncias
fortuitos, enchendo-nos de pânico ou indizível alegria. O insight é
como um inesperado amanhecer na consciência, de algo que jazia
adormecido no crepúsculo do subconsciente ou mesmo nas dobras
tenebrosas do nosso inconsciente. Rompem-se as algemas! Eis a
inesperada verdade. (...) Insight – In, dentro; sight, visão – É visão de
dentro ou estalo, é o rápido penetrar duma clara, inequívoca,
inesperada e fortuita realidade.49

Heschel aceita a definição medieval de insight, que se definia como “o


olho do coração”, referindo-se à intuição. Maimônides não oferecia provas
especulativas a respeito da existência de Deus, mas afirmava que tal conhecimento
deveria passar por esta visão dita “mais íntima”.50

2.4 O pensamento situacional

Pode-se dizer que o pensamento de Heschel é insistente para o valor da


experiência, do momento vivido, do insight e da intuição, o que talvez pudesse levar-
nos a classificá-lo como anti-intelectualista de influência possivelmente bergsoniana,
mas na verificação de um texto ou outro é possível perceber que ele critica uma
teologia abstrata e desencarnada, possibilitando assim uma interpretação

49
SILVA, Antônio Inácio da. Manual de Iniciação Filosófica. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1971, p.
56-57.
50
Cf. HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 193.
27

equilibrada de seu pensamento. O que Heschel tenta enfatizar é a validade e


mesmo a necessidade de uma experiência real do mistério de Deus, de um contato
que vá além do discurso e que seja conduzido pela intuição. Esta intuição, que pode
estar ligada tanto ao próprio sujeito quanto a outros objetos provoca o conhecimento
situacional ou paraconceitual, ou ainda “conhecimento de simples presença”, bem
dentro de uma linha tomista do conhecimento, e este “por conaturalidade”, o qual se
dá através de outros meios, por mais que se suponha conceitos propriamente
ditos.51

Zamith defende que hoje em dia ninguém nega o papel da afetividade e


sua devida influência no conhecimento humano, diversos são os autores tomistas,
como Jacques Maritain e outros que apontam duas vias distintas de conhecimento
de Deus sob a luz da fé: a ciência teológica e a sabedoria.52

Maritain (1882-1973), ao abordar a contemplação cristã, por exemplo,


adverte para não nos enganarmos quanto ao intelectualismo de Santo Tomás. Se
bem que Santo Tomás proclame a soberania da inteligência sobre a vontade no
conhecimento especulativo. Tomás deixa claro e reafirma ser através da vontade
que o homem se torna bom ou mal e que, para tanto, o amor ocupa preeminência na
vida humana, embora não se deva amar aquilo que não se conhece. É preferível
amar a Deus que conhecê-lo, pois o amor atrai a nós a coisa tal como esta é, já o
conhecimento torna essa coisa presente segundo a disposição de nosso espírito:

Deriva daí o conhecimento mais elevado de Deus que o homem


possa conseguir na terra, o conhecimento “quase experimental” da
contemplação realiza-se na inteligência somente através da
caridade, que nos “conaturaliza” a Deus; assim sendo, a sabedoria
sobrenatural, mesmo permanecendo uma qualidade que aperfeiçoa a
própria inteligência, pertence à ordem afetiva ou “mística”.53

Maritain ainda faz algumas distinções sobre esta contemplação cristã


frente à contemplação dos filósofos em alguns aspectos: na tradição dos filósofos a
contemplação se dá por uma busca de perfeição daquele que contempla, na
contemplação cristã o que mais importa é o amor daquele que é contemplado, ela

51
ZAMITH [Introdução] In: HESCHEL, Deus em busca do Homem. São Paulo: Paulinas, 1975. p 8-9.
52
ZAMITH In: HESCHEL, Deus em busca do Homem, p. 9.
53
MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo Cristão. Ed. Paulus: São Paulo, 1999. p. 121-122.
28

não se detém na inteligência, mas passa pelo desejo através do amor; a


contemplação cristã não se contrapõe à ação, mas é expressa em obras, como fruto
da superabundância que produz nos filhos de Deus.54

Numa mesma linha podemos citar Blaise Pascal (1623-1662),


contemporâneo e conterrâneo de Descartes. Este último limitou o conhecimento da
verdade à razão, enquanto Pascal procurava uma síntese entre razão e sentimento,
era o homem do pathos e orientou sua ciência à vida concreta, apelando para o
conhecimento intuitivo (imediato); não foi sistemático e teórico, mas um testemunho.
A Pascal devemos a reflexão “O coração tem suas razões que a própria razão
desconhece; percebe-se isso em mil coisas” (Pensamentos, n. 277), formulando
assim a lógica do coração. É verdade que Pascal opõe razão e coração, mas por
coração entendia Pascal, segundo Zilles, o centro da pessoa humana e este não
deve ser confundido com sentimentalismo ou o que é irracional, mas como
dinamismo do espírito humano amante. Sendo assim, Pascal põe limites à razão e à
certeza puramente matemática ao dizer “Conhecemos a verdade, não só pela razão,
mas também pelo coração” (Pensamentos, n. 282).55

Segundo Leone, no tempo de Heschel, especificamente na Alemanha,


emergia uma investigação dita fenomenológica, da qual apareceram vários nomes,
em especial Edmund Husserl (1859-1938)56. Heschel via nessa reflexão uma
possível ligação entre tradição e o pensamento intelectual ocidentalizado,
possibilitando, assim, uma interface entre a fenomenologia e o judaísmo. Foi se
utilizando dessa fenomenologia que Heschel elaborou a tese de seu doutorado Die
Prophetie, publicada em 1936 e baseada no tema da consciência profética no Antigo
Testamento.57 Esse trabalho tinha o objetivo de sondar “o mundo interior do profeta”,
temática até então desconhecida e abordada juntamente com o tema da teologia do
pathos. A respeito Heschel escreve:

54
Cf. MARITAIN, Por um Humanismo Cristão, p. 122.
55
Cf. ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião, p. 33-35.
56
Segundo Angela Ales Bello, a investigação fenomenológica husserliana caracteriza grande parte da
cultura contemporânea. Como para Hegel, em sua “Fenomenologia do espírito”, mas com resultados
diferentes, a fenomenologia é a abordagem daquilo que emerge, o exame daquilo que se manifesta a
partir de verificação de características internas. Cf. Deus na Filosofia do século XX. PENZO, Giorgio e
GIBELLINI, Rosino (orgs). Edições Loyola, 3ª ed. São Paulo: 2002. p.65.
57
Cf. LEONE, Alexandre G. A imagem divina e o pó da terra, p. 30-31.
29

O ato profético tem uma estrutura sujeito-objeto: o eu autoconsciente


e ativo do profeta encontra a realidade subjetiva daquele que fornece
a inspiração. [...] Ser tomado, um sentir junto, uma simpatia pelo
pathos divino. A simpatia profética à inspiração, o correlato da
revelação divina. [...] A simpatia profética não se relaciona com a
pessoa, como acontece, ao contrário, com o amor de Deus, mas sim
com a emoção, com o pathos de Deus.58

Como se pode ver, os Profetas não tinham ideias prontas sobre Deus,
mas compreensões, tornavam-se testemunhas da palavra divina mais que seus
investigadores. Sendo assim, a percepção profética era mais ligada às posturas que
ideias sobre o Deus que está pessoalmente envolvido com a história do homem,
diferentemente dos deuses gregos que lhe eram indiferentes. Daí resulta que esse
pathos divino identifica-se com o ethos, implicando-se um ao outro. O pathos pode
ser entendido como ato relacional e Heschel vê nele a verdadeira base da relação
de Deus com o homem. Como consequência última percebe-se a implicação do
“conhece-te a ti mesmo”, apontado como um dos termos-chave do pensamento
greco-ocidental, e ainda mais, numa linha bíblica, “Conhece o Deus de teu pai” (1
Crônicas 28,9).59

Tudo isso provocará no homem a teologia da profundidade, isto é, o


conhecimento de si diante de Deus. A teologia da profundidade se distingue da
teologia em si, e Heschel qualifica sua filosofia como obra dessa teologia profunda.
Para isso faz a distinção:

A teologia fala para o povo, a teologia da profundidade para o


indivíduo. A teologia empenha-se na comunicação, na
universalidade; a teologia da profundidade na consciência intuitiva,
na unicidade. A teologia é como uma escultura, a teologia da
profundidade, como uma música. A teologia está nos livros, a
teologia da profundidade está nos corações. A primeira é doutrina, a
segunda, evento. As teologias nos dividem, a teologia da
profundidade nos une [...] A teologia da profundidade alerta-nos
contra a hipocrisia intelectual, contra a autocerteza e a estúpida
vaidade. Ela insiste na inadequação de nossa fé e na incongruência
entre dogma e mistério.60

58
Cf. BACCARINI, Emilio. In Deus na Filosofia do século XX. PENZO, Giorgio e GIBELLINI, Rosino
(orgs). Edições Loyola: 3ª ed. São Paulo, 2002, p. 437.
59
BACCARINI, Emilio. In: Deus na Filosofia do século XX, p.437-440.
60
HESCHEL apud BACCARINI, 2002, p. 439-440.
30

O pensamento conceitual é produto da razão, o pensamento situacional


parte de nossa experiência interior. Utilizamos o pensamento conceitual quando
buscamos compreender acerca do mundo e o situacional quando estamos dispostos
a compreender os problemas que dizem respeito à nossa existência. Quando
refletimos sobre nossa existência estamos tocando uma parte da situação em que
estamos envolvidos, ou seja, estamos nos referindo à história (situação) humana, e
é a partir dela que buscamos a compreensão de nossos problemas.

A atitude de um pensador conceitual, segundo Heschel, é a de


imparcialidade. Aqui ele se torna um observador e não toma partido da situação,
pois está diante de um objeto independente. Já a postura de um pensador
situacional deve ser a da preocupação, tornando-se sujeito do problema que está
envolvido e que tem necessidade de compreender. O princípio do pensamento
situacional é o da imparcialidade, mas também é estupefação, envolvimento. O
filósofo torna-se uma testemunha das ações dos outros, mesmo não sendo
responsável por ela. Esse pensamento situacional (ou criativo) é estimulado não por
problemas dos outros, mas por problemas pessoais, já que parte de experiência
interior e, a partir daí, o filósofo acha-se responsável pela transformação da
realidade e não mero espectador: “a alma só comunga consigo própria quando o
coração é incitado. Toda filosofia é uma apologia pro vita sua”.61

Heschel admite que nossa consciência (do que é certo ou errado) pode
falhar e que mesmo os insights são vagos e esporádicos. Então, o que fazer com
eles? Heschel responde a essa pergunta com a suposição de que existe algo no
homem que é indubitável: seu senso de responsabilidade por sua própria conduta.
Ao contrário da razão, a consciência leva-nos a sentirmos responsáveis por nossa
própria conduta e a preocupação dessa consciência não é conceber algo, mas está
na relação com as coisas, pois nos achamos aqui envolvidos.

A sensibilidade da presença de Deus é alcançada não por abstrações, ou


como diz Heschel, “em conceitos insulsos; em opiniões astutas, áridas, tímidas; em

61
HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 18-19.
31

amor que seja insuficiente, intermitente”,62 mas através de um coração aquebrantado


e por uma mente ultrapassa a própria sabedoria.

Para Heschel consciência implica necessariamente responsabilidade. Se


Deus se aproxima e torna-se realidade à consciência, então ele é sujeito, pois é Ele
quem se apresenta por primeiro, e o homem deve buscar respondê-lo. A sensação
de estar sendo observado por um ser extraterreno sempre foi um fato na existência
humana, e é exatamente aqui onde surge a religião, da pergunta do que fazer com
essa realidade misteriosa que nos envolve. Deparado com o insight, o caminho a ser
traçado agora deve ser o do retorno; para tal retorno Heschel aponta os profetas
como guias: “O que um escultor faz com um bloco de mármore, a Bíblia faz com
63
nossas melhores intuições. É como elevar o mistério à expressão.”

62
Cf. HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 206.
63
HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 212.
32

3 Heschel e a Modernidade

3.1 Razão e fé

Estabelecida a crise entre ciência e religião já na idade média com a


aurora da modernidade, o que para Heschel foi substituída em nossos dias pelo
antagonismo latente entre filosofia e religião, desenvolve-se aqui a reflexão
hescheliana sobre a possibilidade do retorno à religião numa sociedade
secularizada; para isso, como dizíamos no início, o trabalho inicial de Heschel foi a
busca pelo restabelecimento de problemas esquecidos.

Não se trata, como afirma nosso autor, de reconciliar a bíblia com a


filosofia, mas verificar o que a bíblia diz em si mesma, já que para Heschel a religião
continua sendo fonte independente de conhecimento (insights), continua sendo
também um desafio à filosofia e não apenas objeto do pensar filosófico. O fato da
filosofia se manter como perpétua rival da religião é perturbador, comenta, uma
revolta que criaria uma religião se possível. Mas a filosofia não pode esquecer que
ela nem sempre produz seus próprios temas, ela depende muitas vezes do senso
comum, da arte, da religião, da ciência e da vida social.64

Como já sabemos, a filosofia de Heschel se apoia na tradição judaica


para iluminar o pensamento moderno, traçando percurso um tanto diferente da
reflexão bergsoniana do conhecimento que mais enfatizava uma entonação mística
e, ao mesmo tempo, anti-intelectualista do filosofar.65 No entanto, Heschel procura
complementar sua reflexão insistindo no valor do momento vivido, do insight e da
experiência paraconceitual.

Falar em crise de fé hoje em dia tornou-se muito comum. A palavra crise


soa para muitos como ruína, mas Zilles nos faz lembrar do sentido original da
palavra que expressa “situação de decisão”, ou seja, uma crise pode gerar um kairós
ou renascimento, pode levar-nos à renovação ou ao aprofundamento. Assim sendo,
64
Cf. HESCHEL, Deus em busca do homem. São Paulo: Paulinas, 1975, p. 26.
65
Cf. BERGSON, Henri. As duas fontes da moral e da religião; Tradução de Nathanael C. Caixeiro.
Zahar: Rio de Janeiro, 1978. p. 69-203.
33

o Iluminismo despontou com a certeza quase ilimitada na razão e na liberdade, o


que hoje nos faz perceber certa imaturidade nessa ideologia. O neopositivismo e o
racionalismo parecem já não convencer tanto, embora nosso atual contexto seja
moldado pela racionalidade crítica e pela razão científica. A própria filosofia,
comenta Zilles, tende a tornar-se hoje filosofia da ciência, a Escola de Frankfurt e o
Marxismo não ficam longe da marcação por um criticismo exacerbado com relação à
crítica da sociedade.66

Como sabemos, nossa filosofia ocidental é marcada pelo cristianismo,


mais especificamente pelo catolicismo, evidente até o século XIV com a vinda do
Humanismo e do Renascimento, período em que o escolasticismo vai perdendo
força para o novo sistema racional em prol da transformação terrestre. A partir daqui
o sistema feudal cede lugar para as novas formas de investigação que tinham por
base a racionalidade e a experimentação científica, atingindo não apenas o império,
mas a religião vigente, no caso a Igreja Católica, até então responsável pela
organização social, política e ideológica da Idade Média. Zilles aponta três fatores
que indicaram a decadência da Igreja no campo da fé e mais uma observação
salutar:

O cisma entre Oriente-Ocidente (1054); a Reforma (século XVI) e a


condenação de Galileu. Desde então aprofundou-se o abismo entre a
Igreja e a cultura moderna. Quanto ao mau uso da bíblia, Descartes
escrevera de maneira magistral: “É usar a bíblia para um fim para o
qual Deus não a deu e, portanto, abusar dela quando dela se quer
extrair o conhecimento de verdades que só pertencem às ciências
humanas e não servem para nossa salvação” (carta de 1638).67

O tema Deus utilizado desde então no pensamento medieval, também


chamado teocentrismo é substituído desde a modernidade pelo tema homem
(antropocentrismo). Descartes retoma, então, o costume dos antigos filósofos
gregos; estes filósofos costumavam não assumir qualquer revelação divina e se
apoiavam apenas na luz da razão.68

Diante de tantas crises e revoluções na história moderna que


influenciaram no atual estado da religião, Heschel não se preocupa tanto com as

66
Cf. ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião. São Paulo: Paulus, 1991. p. 21-22.
67
ZILLES, Filosofia da Religião, p. 23.
68
Cf. ZILLES, Filosofia da Religião, p. 23.
34

expressões de religiosidade, mas antes com o conteúdo da fé, trazendo-nos sua


definição e apontando caminhos para um possível retorno à religião. Heschel não
admite a falta de fé, pois para ele, isso representaria insensibilidade. Da mesma
maneira não concebe uma fé desvinculada do discernimento, o que, para ele, mais
se identificaria com superstição.69 Assim Heschel define o conceito de fé:

A fé, necessidade da alma de elevar-se acima de sua própria


sabedoria, de estar, como uma planta, um pouco acima do solo, é
irreprimível, muitas vezes desvairada, caprichosa, cega e exposta ao
perigo.

Para Heschel, fé não é segurança, muitos enganaram-se a respeito de


Deus com falsas concepções. Sendo assim, quem pode garantir-nos que uma
religião não seja fraude? Heschel apela para a fé expressa na memória grupal,
recordando-nos do Shemá70, principal confissão da fé judaica que inclusive nos vem
expressa na segunda pessoa: “Ouve, ó Israel” (Dt 6,4). Na fé judaica, crer significa,
como dissemos antes, recordar, e é dessa memória que participamos. Para Heschel,
portanto, fé é um evento.71

É importante recordar que quando estamos defendendo hoje em dia a


crença, estamos nos referindo ao credo, isto é, às expressões da fé, e muitas vezes
esquecemos de analisar seu conteúdo, que para Heschel é fino demais para se
enquadrar nos padrões da lógica. É importante a observação de nosso autor:

A razão não é a medida de todas as coisas, não é o poder que tudo


controla na vida de um homem; não é o pai de todas as afirmações.
O grito de um homem ferido não é produto de um pensamento
discursivo. A ciência não pode ser estabelecida em termos de arte
nem a arte em termos de ciência. E por que a fé, para ser válida,
deveria depender da justificação da ciência? 72

Por fim, Heschel ilustra o movimento da razão e da fé nesse sentido: a


razão procura relacionar o desconhecido com o conhecido e a fé procura relacionar
o desconhecido com o divino; seu fruto não pode se resumir a concepções frias,
mas à adesão, à ação, ao cântico e aproximação a ele. É como se um historiador

69
Cf. HESCHEL, O homem não está só. Paulinas: São Paulo, 1974. p. 164.
70
O verbo shemá é um termo extraído do livro do Deuteronômio (capítulo 6, versículo 4) que significa
“ouve”, “escuta”: “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor” e representa, como se vê, a
confissão no Deus único, caracterizando, assim, o monoteísmo.
71
Cf. HESCHEL, O homem não está só, p. 165-166.
72
HESCHEL, O homem não está só, p. 176.
35

explicitasse a posição geográfica e política de Israel, enquanto o profeta


comunicasse a vontade de Deus para o povo.

Quando transformada em credo, a fé é traduzida em termos


convencionais de razão. Tais termos vêm e vão e o que é lúcido
hoje, pode ser uma caricatura amanhã. O grande conflito da razão
não é com a fé, mas com o credo.73

3.2 O papel da Sagrada Escritura e dos Profetas

Partindo de seu método epistemológico, que é o pensamento situacional,


Heschel procura refletir e esclarecer muitos dos eventos bíblicos que marcaram a
vida de seus antepassados e que por sua vez escapam por uma análise meramente
conceitual. Mostra que na Bíblia existem fatos que a filosofia não consegue atingir,
visto que o pensar filosófico está preocupado em descobrir a essência das coisas,
os princípios do ser e a partir de premissas universais, já a Bíblia está interessada
em revelar a face do Deus Criador e sua vontade que se concretiza numa tradição e
na intuição pessoal que sempre partiu de acontecimentos históricos concretos. Para
Heschel esses temas bíblicos ainda permanecem desafios para a filosofia.

Heschel faz uma verificação não satisfatória na filosofia ocidental, nota a


ausência da Bíblia e dos profetas, em especial no que diz respeito à construção da
metafísica ocidental. Não se refere aqui a citações ou referências, que até já foram
aceitas, mas à forma de pensar, ao espírito e à maneira de olhar a vida que são
próprios da Sagrada Escritura. A constatação de Heschel é que o pensamento grego
paira sobre a filosofia ocidental, já o pensamento hebraico é esquecido. Há, para
Heschel, portanto, duas aproximações que podem esclarecer tal fato no pensamento
filosófico:

A primeira aproximação manifesta que a Bíblia é um livro ingênuo,


poético ou mitológico. Belo como é, não deveria ser levado a sério,
pois no seu pensamento há primitivismo e imaturidade. Como
poderíamos compará-lo com Hegel ou Hobbes, John Loche ou
Schopenhauer? O pai da depreciação a respeito da relevância
intelectual da Bíblia é Spinoza, que pode ser responsabilizado por

73
HESCHEL, O homem não está só, p. 177.
36

muitos aspectos distorcidos da Bíblia numa filosofia e exegese


subsequente. A segunda aproximação manifesta que Moisés teve as
mesmas ideias que Platão e Aristóteles, que não existe sérias
divergências entre os ensinamentos dos profetas. A diferença, diz-se,
é meramente algo de expressão e estilo. Aristóteles, por exemplo,
usou termos inequívocos, enquanto os profetas empregaram
metáforas. O pai desta aproximação é Fílon. A teologia foi dominada
pela teoria de Fílon, enquanto a filosofia geral seguiu a atitude de
Spinoza.74

Heschel admite não se encontrar na bíblia um vocabulário filosófico, mas


também reconhece que um bom pesquisador não deve buscar o que já se tem.
Lamenta que as pesquisas acerca de uma filosofia da religião tenham sido feitas
apenas dentro de parâmetros do pensamento grego e insiste em dizer que uma
filosofia do judaísmo deve encontrar suas bases na Bíblia, visto que o judaísmo
nada mais é do que um confronto com ela.75

Se a Bíblia pode ser aceita como expressão da vontade de Deus, seus


porta-vozes foram os profetas; Heschel tenta nos mostrar se tal revelação é um fato
e que tipo de evidência podemos obter da experiência dos profetas bíblicos. Por um
lado, nosso autor apresenta as pesquisas arqueológicas feitas no Egito sobre os
palestinos antigos que ali residiram e o contato dos assírios com alguns profetas,
tais como Amós e Isaías, já que o homem moderno aceitaria tais pesquisas mais
importantes que o conteúdo da revelação. Por outro lado, apresenta uma importante
observação sobre o impacto dessa experiência profética:

Os grandes profetas tinham uma coisa em comum: a revelação lhes


veio de surpresa, como uma explosão repentina. Eles se
surpreendiam mais pelo fato de ouvirem do que por aquilo que
ouviam. Suas perceptividades surgiram pela própria revelação. É a
revelação que torna o homem capaz de receber uma revelação. Ele
se torna expert com a experiência.76

Sem dúvida, como afirmam os profetas, foi a palavra de Deus que os


inspirou a falar, e para Heschel tal declaração não pode ser ignorada, depreciada ou
criticada; trata-se de uma mensagem que perpassou mais de três mil anos a história
dos homens. O que aqui está em jogo, comenta, é nossa união com Deus, pois os

74
HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 41-42.
75
Cf. HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 41-42.
76
HESCHEL, Deus em busca do homem, p.278-279.
37

profetas representam o gênero humano e a questão sobre a Bíblia é questão sobre


o mundo.77

Muitos têm comparado a Bíblia com literatura, como se esse título fosse o
mais alto louvor, mas para Heschel existem muitas literaturas e apenas uma Bíblia,
ela deixa transparecer por si mesma sua singularidade, visto “que nenhuma
imaginação humana poderia conceber uma obra comparável a ela em profundidade,
imorredoura e frequentemente de beleza insuperável”.78 A Bíblia mudou a
concepção de homem, pois revelou sua independência diante da natureza, mostrou
também sua superioridade frente às condições e ainda fez-nos entender os simples
atos, mostrando que o homem não está sozinho, jogado ao acaso, e que sua missão
é ser um companheiro mais que um mestre, a partir de um caminho que lhe faz
homem e santo.79

3.3 A modernidade e a religião

Como já afirmamos desde o início desta pesquisa, nosso autor nasceu


e cresceu em ambiente hassídico, o que para tal, quase em nada influenciava a
modernidade, o que poderia garantir um ambiente místico e piedoso. Heschel rompe
com esse tradicionalismo religioso, mas sem deixar de ser influenciado e marcado
por essa maneira de pensar e conceber as coisas, mesmo sofrendo a desaprovação
de seus correligionários mais tradicionais.

Uma palavra que caracteriza bem as sociedades modernas é crise, isso


desde o início de nosso século tem sido tema destacado das críticas sociais e
filosóficas. Cada vez mais essas sociedades vão se globalizando, assim também
acontece com suas crises, problema que tem por raiz, como defende Leone ao
concordar com alguns autores, a reificação das pessoas. As pessoas vão se
relacionando com o mundo e com as outras pessoas não como se o outro fosse
sujeito, mas como simples coisas; há atitudes contrastantes em relação aos valores:

77
Cf. HESCHEL, Deus em busca do homem, p.299-302.
78
HESCHEL, Deus em busca do homem, p.300.
79
Cf. HESCHEL, Deus em busca do homem, p.301-302.
38

problemas ecológicos, crise econômica e cinismo vão ilustrando como vai


caminhando a humanidade no processo de modernização, o que deixa claro se
apresentar como herança surgida nos séculos XV – XVI na Europa.80

Esse processo de modernização resultou, como abordamos, na perda da


influência da religião no Estado, o que ficou conhecido como processo de laicização:

A laicização como critério da modernização deve ser entendida como


a perda de influência da religião na vida social. A religião neste
sentido é a consciência da experiência cósmica, que é substituída
progressivamente pelo fetichismo da mercadoria e do Estado na
sociedade do trabalho e do “espetáculo”. A laicização não envolve
apenas as relações entre o estado e as organizações religiosas, mas
também entre estas e o saber positivo. O processo de laicização
terminou por promover o “desencantamento” do mundo exterior e
interior.81

Na modernização, as próprias pessoas são vistas como parte integrante


ou mecanismo de produção e assalariamento. As sociedades modernas não apenas
trazem diferenças das comunidades tradicionais, mas representam uma ruptura,
perdendo-se as relações pessoais, ou seja, a intersubjetividade humana. Na
tentativa de resgatar essa intersubjetividade na Idade Moderna surgiram vários
autores, dos quais podemos citar Martin Buber, procurando, como Heschel,
restabelecer o papel da tradição, entendida como herança da memória coletiva, que
por sua vez pode ser transmitida de diversas formas e expressões, tais como o mito,
os ritos, a religiosidade, a literatura, a culinária, a música, as artes técnicas, os
costumes, enfim, em tudo aquilo que é entendido como cultura.82

Estudar como o pensamento judaico tem encarado a modernidade é


assumir as diferenças de valores entre suas visões de mundo e
também as diferenças de postura entre os vários pensadores que
representam o pensamento judaico. Uma contribuição, porém, é
certa: a experiência judaica ao longo desses milênios fez com que se
desenvolvesse uma sensibilidade muito forte em relação aos valores
humanos, ligando dignidade humana à justiça e à libertação.83

Segundo Leone, Heschel lança forte crítica à sociedade moderna, e seu


humanismo acusa a postura dessa mesma sociedade no que se refere à natureza

80
Cf. LEONE, Alexandre G. A imagem divina e o pó da terra: humanismo sagrado e crítica da
modernidade em A. J. Heschel. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: FAPESP, 2002, p.19-20.
81
LEONE, A imagem divina e o pó da terra, p. 21.
82
Cf. LEONE, A imagem divina e o pó da terra, p. 21.
83
LEONE, A imagem divina e o pó da terra, p. 22.
39

exterior e interior das pessoas, tendo por “pressuposto” o progresso das ciências e
da tecnologia. Heschel verifica que nossa sociedade contemporânea tende a
enxergar o mundo de forma desencantada, perdendo de vista o sublime, o mistério e
o maravilhoso, elementos essenciais que formulam os valores da dignidade humana.
Heschel apela para um retorno a esses temas e considera também a democracia,
pois vê nela um ideal de fraternidade que é almejado na tradição judaica.84

Como vimos, Heschel prefere não culpar a ciência ou a filosofia


antirreligiosa pelo declínio da religião na modernidade, mas procura reconhecer que
a religião tornou-se “irrelevante, insensível, opressiva e insípida”, especialmente
quando a fé é substituída pelo credo, quando ela deixa de ser fonte de vida e torna-
se mera herança tradicional. Mesmo assim, Heschel aposta na religião, apontando-a
ainda como resposta aos problemas fundamentais do homem, como fonte de
conhecimento e insights.85

84
Cf. LEONE, A imagem divina e o pó da terra, p. 26.
85
Cf. HESCHEL, Deus em busca do homem, p. 15.
40

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após três mil anos de iluminação na história dos homens, o judaísmo,


ainda repercute como um pensamento persistente e norteador da vida de um povo
e, com certeza, acolheu a muitos que buscam nessa doutrina um (re)encontro com o
sagrado a partir de uma ótica na fé no Deus de Abraão, Isac e Jacó, ou seja, no
Deus que age na história dos homens e que se mantém Vivo e insistente com
relação a estes. O pensamento de Heschel deixa transparecer um olhar de
esperança para o mundo contemporâneo desfigurado por uma história marcada pela
injustiça, pela indiferença e pela falta de humanização.

A princípio pode-nos soar estranho uma filosofia da religião do judaísmo,


ou mesmo uma filosofia da religião em si, dado a disparidade já levantada por
alguns entre religião, ciência e filosofia, mas, analisando as obras de Heschel,
podemos perceber o quanto nos é necessário uma reflexão madura, aberta e
questionadora da própria postura religiosa, pois, como vimos em Heschel, uma fé
ingênua pode culminar num fanatismo religioso, e uma fé de cunho racionalista pode
demonstrar falta de inteligência, visto que o racionalismo não possui a verdade
absoluta do conhecimento humano.

A religião moderna resiste a ataques de todos os lados, tanto de


intelectuais a pessoas mais simples desacreditadas, à efervescência do ateísmo, ao
agnosticismo e de tantas correntes que fazem essa mesma sociedade reagir nem
sempre ao conteúdo da fé, mas à postura do homem religioso e das religiões, muitas
vezes frias, legalistas e intimistas, levando-nos a fazer um exame de consciência,
encontrar caminhos sólidos de diálogo e mesmo de solidariedade com a nossa
cultura contemporânea.

A filosofia de Heschel sublinha a consciência religiosa a partir de uma


experiência mística e comprometida com as questões fundamentais do homem,
ressalta a dignidade do ser humano, elaborando uma antropologia teológica ou
sagrada, o que mais parece uma denúncia à atual tendência de conceber o ser
41

humano como ferramenta do sistema de produção da nossa sociedade consumista e


tecnológica, além de insistente retorna à metafísica ou meta-história.

Heschel nos faz voltar a atenção aos simples momentos vividos, a


simples gestos concretos que podem modificar o pensamento individualista
moderno, fazendo percurso até então não conhecido no que diz respeito ao mundo
interior dos profetas e do papel da Sagrada Escritura na elaboração de uma filosofia
da religião ou da religião judaica.

Homem inquieto e engajado, procurou estar a par de tudo o que atingia a


realidade daquelas sociedades onde esteve inserido e mais ainda a questões
universais que preservam a cultura de solidariedade, a promoção da paz, da
igualdade e dos direitos humanos, mostrando profunda fidelidade aos princípios do
judaísmo e com grande capacidade de diálogo e convencimento. Sua postura
filosófica e profética mostra-nos o quanto nossa filosofia deve ultrapassar as páginas
de nossos manuais de leitura e provocar verdadeiro senso de responsabilidade por
nossos atos, para com a vida e com o outro.

O pensamento situacional, criativo ou de “simples presença” deve estar


em uso quando buscamos ultrapassar os conceitos, quando nos sentimos afetados
por uma realidade que nos cobra resposta e presença. Para isso, devemos se
manter sensíveis e abertos ao diálogo e ao compromisso da responsabilidade,
permitindo que tal experiência interior se traduza em obras.
42

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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XX. PENZO, Giorgio e GIBELLINI, Rosino (orgs). Edições Loyola: 3ª ed. São Paulo,
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______. O Homem não está só. Paulinas: São Paulo, 1974.

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XAVIER, Antonio Thadeo de Oliveira. “Israel, eco de eternidade”. Kairós. Fortaleza,


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43

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