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O FENÔMENO RELIGIOSO

Sumário
O FENÔMENO RELIGIOSO .................................................................... 0

NOSSA HISTÓRIA .................................................................................. 2

O FENÔMENO RELIGIOSO .................................................................... 3

A Tradição da Fenomenologia da Religião .............................................. 4

Concepções de Fenomenologia da Religião ........................................... 6

As Escolas Fenomenológicas da Religião ............................................... 9

A Virada Fenomenológica...................................................................... 10

A Fenomenologia de Van der Leeuw ..................................................... 10

Fenomenologia e psicologia da religião no Brasil .................................. 12

Fenomenologia na obra de Mircea Eliade ............................................. 13

Fenomenologia da Religião no Panorama Atual .................................... 15

Freud e o sonho da razão ...................................................................... 25

Um outro Freud ...................................................................................... 30

A vertiginosa cena contemporânea ....................................................... 32

O monoteísmo e o gozo......................................................................... 36

A LINGUAGEM CIENTÍFICA E RELIGIOSA ......................................... 38

O QUE É RELIGIÃO .............................................................................. 40

Referências Bibliográficas ..................................................................... 46

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NOSSA HISTÓRIA

A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de


empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de
Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como
entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior.

A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de


conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a
participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua
formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais,
científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o
saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação.

A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma


confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base
profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições
modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica,
excelência no atendimento e valor do serviço oferecido.

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O FENÔMENO RELIGIOSO

Falar de religião é, fundamentalmente, falar de experiência religiosa, dado


que a religião só existe porque há sujeitos que a manifestam de uma forma
intencional.

Esta é a posição da Fenomenologia, cuja tradição, inaugurada pelos


estudos de Edmund Husserl, replica em parte o projeto de fundamentação
radical das ciências e da filosofia que encontramos em Descartes, e faz com que
o edifício fenomenológico venha a se erguer sobre múltiplas perspectivas: como
epistemologia (ponto de partida), método (caminho), filosofia (construção) e
ciência (intenção).

A intenção deste trabalho é apresentar as raízes que desembocam no


desenvolvimento de uma Fenomenologia da Religião, bem como suas premissas
e autores fundamentais.

Em seguida, pretende-se traçar breve panorama dos debates ora em


pauta, sob a égide do pensamento fenomenológico, no contexto dos estudos
sobre religião, religiosidade e espiritualidade, no Brasil.

Pesquisas recentes são apresentadas, como ilustração dos desafios e


perspectivas do campo. Por fim, vale destacar que fazer uma “fenomenologia”
da religião passa por um olhar amplo para o fenômeno religioso, incluindo a
análise do significado dos movimentos em religiões – trânsito religioso,
migrações, etc. – além da interpretação de signos e sinais particulares.

Conclui-se pela necessidade de se ampliar o debate e o desenvolvimento


de pesquisas no campo, bem como estabelecer uma melhor compreensão do
sentido de se fazer uma “fenomenologia”.

Falar de Religião é falar de “experiência religiosa”, reconstituindo o objeto


religioso em interação com um sujeito concreto. Neste contexto relacional, a
Fenomenologia se coloca em contínuo diálogo com as demais ciências.

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O objetivo aqui é traçar um panorama e um entendimento do que seja


uma Fenomenologia da Religião (FR) no campo da Psicologia da Religião,
buscando compreender seus espaços de desenvolvimento no Brasil.

Parte-se da ideia de Fenomenologia como a ciência dos fundamentos


(HUSSERL, [1910] 1965, [1913], 1985, [1929], 1992), para um olhar ao
fenômeno religioso; mantendo — por eleição — o sujeito por foco. Importa
destacar aqui que a Fenomenologia não identifica o sujeito fenomenológico —
como subjetividade transcendental e como intersubjetividade contextualizada —
com o “sujeito psicológico”, como também não o identifica com os demais
“sujeitos” da ciência.

Principiaremos por uma narrativa dos diversos modos de compreensão


de uma FR, para recompor o campo e dialogar com o cenário brasileiro ainda
incipiente.

As dificuldades do campo são inerentes a uma Fenomenologia, dado que


a análise fenomenológica demanda uma mudança de posição, uma mudança de
perspectiva.

As análises fenomenológicas sobre “Deus” — entre aspas, para


salvaguardar os diversos modos de articulação e os diversos modos de
relacionamento com o sujeito humano — se dão por várias vias, como a filosófica
(ou teorética), a religiosa ou a mística (e, no que nos diz respeito mais
diretamente, igualmente pela via psicológica), e aparecem em toda sua
complexidade (BELLO, 2016), convocando o estudioso ao enfrentamento da
questão, numa direção — quase que “necessária” — interdisciplinar, não
prescindindo dos olhares da história, da cultura, da antropologia, da sociologia,
dentre tantas outras.

A Tradição da Fenomenologia da Religião


A posição fenomenológica é de que a religião somente se dá na
manifestação, como experiência religiosa (vivência) frente ao mistério, ao
sagrado e ao inexplicável. Nesta premissa constitui-se a dialética do exercício

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fenomenológico do olhar para a religião: é da essência do fenômeno religioso se


mostrar e se mostrar a alguém, e é em relação a este “alguém” que aparece
como (relativamente) oculto, se revelando progressivamente e (relativamente)
transparente (VAN DER LEEUW, [1933] 1948).

O “fato religioso” é tomado como realidade existencial, como fato histórico


e também como objetividade passível de pesquisa empírica.

Rudolf Otto, contemporâneo de Husserl, é nome de destaque nesta


tradição, por sua análise hermenêutico-fenomenológica da experiência religiosa,
e sua descrição do Sagrado, como o mysterium tremendum et fascinans, e
estabelece um vínculo antropológico às ciências da religião.

É sua defesa do numinoso como essência universal que torna Otto um


fenomenólogo. Mas é com Gerardus Van der Leeuw que a FR se constitui como
um campo destacado de estudos, a partir da colocação da compreensão como
arché e télos de seu método.

O estudioso teria como tarefa primordial entrar em sintonia no plano


afetivo com seu objeto. [...] podemos considerar a religião como experiência
vivida compreensível [...]; ou a fazer valer como revelação não-compreensível.
A experiência vivida (na sua “reconstrução”) é um fenômeno.

A revelação não o é; mas a resposta que o homem dá à revelação, o que


ele diz do que é revelado, isto também é um fenômeno, permitindo concluir
indiretamente que há a revelação (per viam negationis)”.

O sentido religioso é o sentido do todo; é uma experiência vivida no limite,


uma revelação que permanece oculta. Neste caso, “como cultivar a
fenomenologia onde não há um fenômeno?”.

É exatamente esta antinomia – que diz respeito às religiões e à


compreensão – que torna possível uma “ciência” da experiência religiosa.

Mas como compreender algo que escapa ao intelecto, e mesmo escapa


à apreensão? Toda compreensão “até o fundo” cessa de ser uma, antes de haver
alcançado o fundo: ela se reconhece como sendo compreendida, no lugar do

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compreender. Em outros termos, toda compreensão, não importa qual objeto à


qual se dirige, é finalmente religiosa (VAN DER LEEUW, [1933] 1948, p.666).

O campo da FR se põe num processo incessante de elucidação da


experiência religiosa, cabendo-lhe a prerrogativa de acessar este sentido
vivencial, e redescobrir o significado em sua totalidade; pressupõe aquele télos
intencional, do qual falava Husserl, e a époche, que permite o acesso à intuição.
Nesta direção, a FR encontra o existir como fundamento, enquanto “experiência
originária da religiosidade” (HEIDEGGER, 2006).

Concepções de Fenomenologia da Religião


Tradicionalmente, portanto, a expressão FR remete a uma perspectiva de
“olhar”, a uma “fenomenologia religiosa”. É pela via da Erlebnis – da experiência
vivida, da vivência – que se dá o encontro da fenomenologia com a psicologia
da religião. Essa experiência provoca no homem a sensação de estar defronte
de uma experiência misteriosa, fascinante e temível (Otto), e apresenta uma
faceta racional e outra irracional, “irredutível às categorias humanas e
intraduzível na linguagem da analogia, correspondente à natureza misteriosa do
‘inteiramente outro’ que se manifesta na experiência religiosa” (PIAZZA, 1976, p.
11).

Uma FR é, pois, uma tentativa de se compreender o significado do “fato


religioso”, como experiência (fato humano), tomado em “suas manifestações e
expressões sensíveis, com a finalidade de apreender seu significado último” (p.
15).

Assim, constitui-se numa pesquisa histórica, numa interpretação


existencial e situa-se no campo da objetividade.

Numa perspectiva antropológica, é – nas palavras de Malinowski – um


fato universal, dado que não há povo, por mais primitivo que seja, sem religião.
E como tal, deve ser estudado enquanto experiência vivida; e como fato objetivo,
é passível de estudos empíricos e positivos, no sentido atribuído pelo próprio
Husserl. Nesta perspectiva, somente a fenomenologia pode dar o conhecimento

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das realidades existenciais, pois o fenômeno tem um aspecto “transcendente”


por estar alicerçado na compreensão de seu significado, que remete à
consciência humana, e que remete ao movimento desta consciência voltada
para o mundo.

A Ideia de uma Fenomenologia da Religião Heidegger nos dá excelentes


exemplos das possibilidades de uma FR.

Em curso sobre “Os Fundamentos Filosóficos da Mística Medieval” (1918-


1919), fornece uma elucidação fenomenológica da experiência mística. Já no
inverno de 1920-1921, Heidegger escreve uma “Introdução à Fenomenologia da
Religião”, onde afirma que é preciso estabelecer o objeto da religião, devendo-
se, primeiro, delimitar a experiência religiosa genuína e examinar o acesso
adequado a ela.

Heidegger elege como experiência religiosa autêntica a do cristianismo


primitivo, e parte para a análise dos escritos paulinos. No verão de 1921, escreve
a lição “Agostinho e o Neoplatonismo” — baseando-se no Livro X das
Confissões.

Esses textos apontam caminhos possíveis que uma FR pode trilhar,


mesmo que em disputa com o método husserliano, marcando diferenças com os
demais “fenomenólogos da religião”, como Reinach, Scheler, Stavenhagen, e
Van der Leeuw (USCATESCU, 2006).

Essas distinções conceituais, devem-se, em parte, à relevância que a


teologia ocupa “na proveniência e no porvir de seu [Heidegger] pensar”
(FERNANDES, 2015, p. 95), e envolve a questão do ser e da linguagem, levando
Heidegger a definir a Fenomenologia como: [...] a via de acesso e o modo de
comprovação para se determinar o que deve constituir tema da ontologia.

Ontologia só é possível como fenomenologia. [...] Em seu conteúdo, a


fenomenologia é a ciência do ser dos entes – é ontologia [...] Da própria
investigação resulta que o sentido metodológico da descrição fenomenológica é
interpretação.

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O logos da fenomenologia da presença possui o caráter de hermeneuein


(apud FERNANDES, 2015, p. 96).

A época na qual Heidegger discute essas questões já havia conhecido


importantes trabalhos na História das Religiões: em 1890, Codrington comunica
o conceito de “mana”; entre 1900-1920, Wundt produz sua Völkerpsychologie,
apontando o totemismo como a primeira forma de religião; Otto, em 1917, aponta
o sagrado como o principal objeto da religião.

Nesse solo fértil se desenvolve a questão fenomenológica, mas


Heidegger não é o primeiro a se ocupar do tema na Fenomenologia: Husserl,
nas Ideen, em 1913, aponta Deus como o princípio teleológico (BELLO, 2016);
igualmente Scheler, com sua Vom Ewigen im Menschen, de 1921, além de
Reinach, que escreve esboços de uma FR entre 1915 e 1917.

Qual é a fenomenologia da religião de Heidegger? Heidegger não mira a


religião na sua totalidade, nem a experiência de Deus, mas se centra na
“experiência originária da religiosidade”, e centra sua atenção sobre a vida
fáctica que têm Paulo e Agostinho.

Ao analisar a vida de Paulo — como experiência vital de um crente —,


Heidegger põe em relevo sua situação articulada no seu mundo próprio
(Selbstewelt), no seu mundo partilhado ou co-mundo (Mitwelt) e em seu mundo
circundante (Umwelt); ressalta a proclamação evangélica no que se proclama
(no seu sentido de conteúdo), no Gehaltssinn; num sentido referencial da
proclamação (Bezugssinn); no a quem se proclama e donde se proclama,
importando, sobretudo, o como da proclamação, que é o sentido executivo
(Vollzugssinn).

O sentido referencial da vida fáctica cristã, que não é senão a expectativa


ou a esperança da vinda do Cristo — é a (“parousía”) — e está determinada por
dois modos: o servir ( ) e o aguardar ( ).

Heidegger ainda aponta para a referência da vida fáctica cristã, como um


“peculiar estar diante de Deus”, como expectativa de vinda no futuro, no “final

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dos tempos”, o que designa a peculiar temporalidade da vida cristã como um


“ainda não”.

As Escolas Fenomenológicas da Religião


A expressão FR foi criada por Pierre Daniel Chantepie de la Saussaye
(1848-1920), a partir da primeira edição de seu Lehrbuch der
Religionsgeschichte (SAUSSAYE, [1887] 1940), introduzindo o momento
sistemático da disciplina.

A história das religiões — além de estudar a unidade da religião em sua


multiplicidade — deveria igualmente evidenciar os aspectos permanentes da
religião, o que poderia ser obtido por meio do método comparativo, permitindo
classificar e organizar grupos de manifestações religiosas, em suas diversas
facetas (objeto, natureza, tipos de mitos, etc.).

Nova denominação para as “religiões comparadas”, numa direção


semelhante à tomada pelos estudos de Lineu.

Chantepie de la Saussaye propõe nova palavra de ordem para um modo


de pesquisas sistemático das religiões.

Desse modo, a Comparative Religion de caráter evolucionista, como


ensinam os casos exemplares de Tylor ou de Frazer, propunha-se evidenciar os
tipos recorrentes de crenças e rituais religiosos, estabelecer sua ordem
evolutiva, de modo que permite que se respondesse à pergunta fundamental,
que dominava todas as pesquisas da época: qual é a origem da religião
(FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 28).

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A Virada Fenomenológica
Num primeiro momento, a FR é uma “análise descritiva e sistemática” dos
fenômenos religiosos. A virada se dá com Husserl, num esforço anti-metafísico,
realista, de “voltar às coisas-mesmas”, no esteio das reflexões de Dilthey sobre
a autonomia das ciências do espírito, quando este afirma a necessidade da
adequação do método para a apreensão do “mundo das produções culturais”.

A Erlebnis não pode ser definida, mas pode ser experimentada e descrita;
a virada se dá na construção não apenas de uma abordagem descritiva, mas
hermeneuticamente orientada (DILTHEY, [1894] 2002); e se apresenta, em sua
mais conhecida expressão, na obra de Van der Leeuw.

A Fenomenologia de Van der Leeuw


O nome de Gerardus Van der Leeuw (1890-1950) melhor se dá a
conhecer através de sua obra de 1933, Phanomenologie der Religion — como
um manifesto da fenomenologia compreensiva.

“A compreensão (Verstehen) é o arché e o telos do seu método


fenomenológico.

A primeira função do estudioso, de fato, é entrar em sintonia, no plano


afetivo, com o objeto (Einfühlung)” (FILORAMO, PRANDI, 1999, p. 32). Nesse
caminho, Van der Leeuw afirma: “o que as ciências da religião chamam ‘objeto’
da religião é para a religião mesma seu ‘sujeito’” (VAN DER LEEUW, [1933]
1948, p. 9).

A fenomenologia busca o fenômeno. O que é o fenômeno? É o que se


mostra. Isto comporta uma tripla afirmação:

1o Há qualquer coisa;

2o esta coisa se mostra;

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3o é um fenômeno pelo fato mesmo que se mostra. Ora, o fato de se


mostrar diz respeito tanto ao que se mostra, quanto àquele a quem isto se
mostra.

O fenômeno, por conseguinte, não é um simples objeto; ele não é nem


mesmo o objeto, a realidade verdadeira, cuja essência seria somente recoberta
pela aparência das coisas vistas. Isto ressalta uma certa metafísica.

Por “fenômeno” não se entende mais qualquer coisa de puramente


subjetivo, uma “vida” do sujeito, que estuda uma parte distinta da psicologia –
por mais que haja a possibilidade. Mas o fenômeno é, ao mesmo tempo, um
objeto que se reporta ao sujeito e um sujeito que se refere ao objeto. [...] Toda
sua essência consiste em se mostrar, se mostrar a “alguém”.

Tão logo esse “alguém” comece a falar do que se mostra, faz-se a


fenomenologia (VAN DER LEEUW, [1933] 1948, p. 654).

A Tradição Fenomenológica Alemã: A “Escola de Marburg” A FR de Van


der Leeuw aponta para a autonomia da religião, recorrendo às “correntes
culturais alemãs”, desde a fenomenologia de Husserl e Scheler, a hermenêutica
de Dilthey, a filosofia da vida de Simmel, a psicopatologia de Jaspers e a
psiquiatria existencial de Binswanger “que melhor se prestavam a evidenciar o
dado existencial da religião, a sua natureza de experiência consubstancial à
natureza mesma do homem.

Nessa perspectiva, o homem é naturaliter religioso” (FILORAMO,


PRANDI, 1999, p. 36). Após Van der Leeuw, surgiram críticas ao modelo da
fenomenologia compreensiva, particularmente entre os representantes da
Escola de Marburg — iniciada por Rudolf Otto – que oferecem um “modelo de
análise hermenêutica fenomenológica da experiência religiosa” (FILORAMO &
PRANDI, 1999, p. 37).

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Fenomenologia e psicologia da religião no Brasil


Rudolf Otto (1869-1937), teólogo protestante e grande conhecedor de
religiões comparadas, publica em 1917 um texto que viria a ser central no estudo
das religiões: Das Heilige (“O Sagrado”), um dos mais importantes tratados em
língua alemã do século XX, no qual cunha o termo numinoso, para designar o
caráter da experiência religiosa “para além” do racional, superior, e que inspira
terror e temor, além de fascínio e maravilha.

“O numinoso singulariza-se como qualquer coisa de ganz andere, radical


e totalmente diferente” (ELIADE, [1957], 1965, p. 16), algo de “Totalmente
Outro”, de radicalmente “alter” ao homem. Nesta obra, estuda a “experiência
religiosa”, sobretudo por seu lado irracional, “[...] pois tinha lido Lutero e
compreendera o que quer dizer, para um crente, o ‘Deus vivo’.

Não era o Deus dos filósofos, [...]; não era uma idéia, uma noção abstrata,
uma simples alegoria moral.

Era, pelo contrário, um poder terrível, manifestado na ‘cólera’ divina”


(ELIADE, [1978] 1983, p.15). Foram diversos seus alunos que se dispuseram a
pesquisar o método para compreender a essência do fenômeno religioso.

Um nome a destacar é o de Friedrich Heiler (1892-1967), teólogo e


historiador alemão, que foi professor em Marburg, e que publica um texto sobre
a essência da religião, em 1961 (Erscheinungsformen und Wesen der Religion),
dizendo que “os fenômenos são apenas investigados pelo conhecimento da
essência que está na sua base e que tem de ser focada.

Nunca se deve parar nas suas cascas internas, mas tem-se de penetrar
através delas para chegar ao seu núcleo, que é a experiência religiosa” (HEILER,
apud GRESCHAT, 2005, p. 139).

Como fundamento verdadeiramente fenomenológico da perspectiva de


Heiler, o que se destaca é que a Religião é, antes de tudo, Handlung ou ação, e
Erlebnis, experiência vivida.

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Outros autores da Escola de Marburg deixaram importantes contribuições


ao campo, como Gustav Mensching (1901-1978), autor de numerosas
monografias fenomenológicas, que aponta para a pesquisa fenomenológica em
dois níveis: uma função de comparação das religiões (com o intuito de evidenciar
suas afinidades tipológicas e estruturais), e uma função de compreensão de sua
essência, que é a experiência do encontro com o Sagrado.

A escola fenomenológica holandesa representa o estudo sistemático dos


fatos religiosos (desde suas origens). Termina por confundir-se, enquanto FR,
com a história das religiões.

No campo dos estudos de psicologia da religião, as universidades


holandesas representam parcela significativa na produção acadêmica
contemporânea (PAIVA, 2004).

Um dos mais importantes nomes desta escola é Carl Bleeker, para quem
a FR é uma ciência empírico-indutiva, sem objetivos filosóficos. “Para alcançar
esse objetivo final, ela persegue três objetivos: desenvolver a theoria dos
fenômenos, procurar o logos, interrogar-se sobre sua entelechia” (FILORAMO,
PRANDI, 1999, p. 46).

Bleeker ilustra as dificuldades e as contradições do método


fenomenológico que, não querendo se isolar no puramente descritivo, busca
interrogações de cunho existencial, experiencial e essencial.

Fenomenologia na obra de Mircea Eliade


Um derradeiro destaque ao qual não podemos nos furtar é a apresentação
de Mircea Eliade: historiador, “mitólogo”, filósofo e romancista, nasceu em
Bucareste, Romênia, em 1907, e faleceu em Chicago, em 1986.

Chegou a viver na Índia entre 1928 e 1932, quando preparou sua tese
sobre yoga. Foi adido cultural em Londres e Lisboa, passando a lecionar na
École des Hautes Études em Paris, a partir de 1945. De 1957 até sua morte,

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ocupou a cadeira de titular de História das Religiões em Chicago (ELIADE, [1957]


1965).

Além de erudito, era versado em diversas línguas, como o alemão, o


italiano, o hebreu, o persa e o sânscrito, Eliade pode ser considerado um dos
fundadores da moderna História das Religiões. A partir de seus estudos sobre
os mitos, elabora uma concepção de religiões comparadas, buscando as
relações de proximidade entre as culturas e os momentos históricos.

Tal qual Otto aponta que o centro da experiência religiosa do homem é a


ideia de sagrado, e um dos conceitos que se destaca de sua obra é o de
Hierofania, ou a manifestação do transcendente num objeto ou fenômeno ou,
simplesmente, o aparecimento ou manifestação reveladora do sagrado. Na
tradição grega, “hierofante” era aquele que dava a conhecer o sagrado, ou seja,
o encarregado de instruir os iniciantes nos mistérios, no oráculo e no culto. Era
especialmente o nome dado ao sacerdote que presidia a iniciação nos mistérios
de Elêusis.

O tema do “sagrado” é trabalhado em uma de suas mais importantes


obras: O Sagrado e o Profano, que define como uma “introdução geral ao estudo
fenomenológico e histórico dos fatos religiosos” (ELIADE, [1957] 1965, p. 9).

Outra importante obra é o seu Tratado de História das Religiões (de 1949),
na qual traça um estudo de morfologia religiosa. Compilador de tradições, talvez
sua obra mais conhecida seja História das Crenças e das Ideias Religiosas,
publicado já na década de 1970.

Sua FR está associada a três princípios metodológicos fundamentais


(MENDONÇA, 2012): a irredutibilidade do fenômeno religioso (que postula a
necessidade de se estudar esse fenômeno no seu próprio plano de significação);
a dialética do sagrado e do profano (que conduz o pesquisador a apreender a
intencionalidade do fenômeno religioso), e; a teoria do simbolismo religioso (que
é o instrumento que permite a compreensão do fenômeno religioso).

Sua “virada hermenêutica” guarda proximidade com a tradição


compreensiva da fenomenologia religiosa.

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O sagrado, em Eliade, é não apenas o objeto do conhecimento, mas


igualmente o sujeito e o meio do seu conhecimento. “Para o historiador das
religiões, toda manifestação do sagrado é importante; todo rito, mito, crença ou
figura divina reflete a experiência do sagrado, e por conseguinte, implica as
noções de ser de significação e de verdade” (ELIADE, [1978] 1983, p. 13).

Embora seja um caminho não exaustivo, há outros debates e correlações


possíveis entre Ciências da Religião e a FR, bastando, para tal, observarmos as
“pontes” com o pensamento de Paul Tillich (GOTO, 2011).

É importante reconhecermos que o que “marca” ou representa o “espírito”


da fenomenologia é a questão do sentido ou da significação.

Fenomenologia da Religião no Panorama Atual


Retomemos Van der Leeuw, no que “fazer fenomenologia, é falar do que
se mostra”: em relação ao “alguém” a quem ele se mostra, o fenômeno comporta
três características fenomenais superpostas:

1o ele é (relativamente) oculto;

2o ele se revela progressivamente;

3o ele é (relativamente) transparente.

Essas etapas superpostas não são iguais, mas correlativas àquelas da


vida:

1o experiência experimentada, vivida;

2o compreensão,

3o testemunho. Os dois últimos tópicos, cientificamente tratados,


constituem o trabalho da fenomenologia (VAN DER LEEUW, [1933] 1948, p.
654).

Ora, uma das dimensões da FR é “buscar a Deus e buscar saber o que é


Deus” (BELLO, 2016), numa reflexão intelectual. Embora partamos da premissa
que a fenomenologia é uma só, há, evidentemente, diferentes apropriações por

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parte das várias modalidades científicas, como Teologia, Sociologia, Psicologia,


dentre outras.

Assim, há que se notar perspectivas distintas sobre o mesmo escopo, e


reconhecer que o discurso filosófico, bem como seu objeto, é diferente da
apropriação da Teologia ou da Psicologia, por exemplo.

Nesta direção, o debate provocado pela análise das diferenças de


apropriações da FR no Brasil e Alemanha, como são percebidas e avaliadas
distintamente, é relevante (BRANDT, 2006).

Por meio de um olhar sobre os manuais de ciências da religião — que, na


Alemanha representam uma longa realidade, e no Brasil não são mais do que
“intenções” — Brandt (2006) mostra como que a FR foi “despachada” para o rol
das perspectivas históricas ultrapassadas, vista como mera pesquisa no
contexto da história das religiões (HR); mas aponta para a FR como “a origem
genuína das ciências da religião mais recentes; [...] como principium da ciência
da religião.

Mas pode significar também que o início da ciência da religião na FR está


ultrapassado pelos acessos posteriores” (BRANDT, 2006, p. 126).

Num primeiro aporte, a identificação em FR e HR aponta para


significativas limitações de apropriação; afinal, tanto a HR como a História
Comparada das Religiões serviram (e servem) como importantes recursos de
conhecimento, análise e interlocução entre as diferentes manifestações
religiosas, auxiliando sobremaneira no diálogo interdisciplinar.

Desta feita, uma leitura das manifestações religiosas se configura em


verdadeira e concreta possibilidade de superação de pressupostos que o acesso
ao conhecimento privilegia; auxilia no diálogo, na medida em que busca
encontrar tanto paralelos quanto dissonâncias que certificam a realidade do
acesso ao fenômeno religioso como manifestação humana e mundana.

Noutra direção, esta identificação a que nos reportamos aqui ainda aponta
para críticas de “aspectos” — muitos deles distintivos — relacionados a autores

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tradicionais da FR e não à totalidade do sentido de suas contribuições


(USARSKI, 2004; BRANDT, 2006).

Outra das críticas importantes repousa sobre a posição de relevância que


sistematicamente um conceito toma, quando se analisa particularmente o rol de
autores associados à FR.

Assim, “contra Söderblom, Otto e Van der Leeuw se objeta que eles
postulam uma categoria específica — a do sagrado ou a do poder — e as
respectivas experiências religiosas para descrever a essência da religião com
base nesse fundamento” (BRANDT, 2006, p. 127); o mesmo valendo para Eliade
quando entende que todas as religiões remetem a um ser em si.

Brandt (2006) aponta ainda para a interpretação da FR como uma “ciência


atemporal da religião”, o que equivaleria a desconectá-la dos múltiplos sentidos
mutantes da realidade, além de suas múltiplas conexões com o tempo, cultura,
etc.

Há, aqui, uma crítica ao “genérico” ou à “generalidade” (associada à noção


de “essência”?!), apontando que se ontologiza o transcendente — ou seja,
quando Otto fala do numinoso, quando Eliade fala da irrupção do sagrado no
profano, ou mesmo quando Jung estabelece um conjunto de símbolos
arquetípicos, eles estariam numa linha de ontologização que desconsideraria o
elemento narrativo e os contextos sociais das religiões.

A partir dessa linha, toma-se a proposição geral de um FR por


simplificação positiva, associando-a a repertórios estanques de análise que
descontextualizam a história (e sua história).

Não apenas a FR não é uma disciplina a-histórica (ou a-teórica ou a-


social, etc.), como é exatamente sobre esta dinamicidade de apresentações que
o seu objeto se constitui.

O fenômeno (religioso) não é o “aparecer” de um objeto (ou de um algo),


mas o “aparecendo”, o “acontecimento” que se dá no entrelaçamento, na
multiplicidade das apresentações de um ser (sujeito), que igualmente não pode
ser confundido com uma “entidade” autônoma ou isolada.

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1
8

Em boa parte dessas críticas encontramos eco da própria questão de


Merleau-Ponty, quando anuncia aos incautos que se apropriam da
Fenomenologia numa perspectiva meramente positivista (como
“fenomenologismo”), que não se pode confundir o objeto percebido com o próprio
ato perceptivo, bem como não se pode confundir o sujeito fenomênico com um
suposto “sujeito” psicológico.

Na direção contrária, propõem-se uma FR reflexiva em diálogo


multidimensional (com ciências afins). Ora, mas este sempre foi o caráter
primário da Fenomenologia: o diálogo, a múltipla consideração, os múltiplos
aportes. Fenomenologia é abertura, despojamento, desalojamento, disposição.

No contexto alemão, pois, a avaliação da FR se dá num espectro que


varia de uma “rejeição decidida até uma refundamentação cautelosa sob
determinadas condições” (BRANDT, 2006, p. 130), ao passo que no Brasil, o
cenário é totalmente outro, cenário que a coloca como “portadora de esperança
das ciências da religião”, visto seu discurso se apresentar disseminado de forma
ampla, sendo o termo utilizado, por vezes, sem nenhuma reflexão metodológica
especial.

Além disso, depreende-se que, pelo fato do discurso filosófico ter


significativa influência sobre as Ciências Humanas, passa-se a usar o termo
“fenomenologia” de forma decorativa, num uso irrefletido que pressupõe a
colocação da fenomenologia como “um termo de conhecimento geral” (p. 131).

Reconhecendo a realidade de um uso “irrefletido” do termo — que muitas


vezes banaliza a proposta fenomenológica — há que se ressaltar, por outro lado,
que nos parece um erro comum (particularmente no contexto da psicologia) a
identificação da Fenomenologia com uma prática ou modelo metodológico
(invariavelmente associado a um ou mais modelos de “método” de coleta e
análise de dados empíricos de caráter qualitativo). Tornar a fenomenologia uma
instrumentalidade é limitante e contraditória a sua própria crítica. Não há como
se fazer fenomenologia sem uma reflexão epistemológica diretamente
associada.

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1
9

Mesmo assim há constante identificação da Fenomenologia com uma


metodologia. Como ciência dos fundamentos, a Fenomenologia serviria de
estrutura para estabelecer a autonomia das ciências da religião. Mas, no cenário
brasileiro — e, devido à irreflexão de seu uso — ela é tomada positivamente
como um finalismo que beira a simplificação de todo um campo de estudos em
seu escopo, como o “coroamento” e a consumação de todas as ciências da
religião (BRANDT, 2006).

Observe-se que a positividade da tomada da FR no Brasil a coloca em


situação de grande fragilidade, por sua irreflexão, e de não poder se aprofundar
nas particularidades de sua contribuição, uma delas — fundamental — que seria
o estudo sistemático dos grandes textos e autores filosóficos, o que tornaria a
FR no Brasil num “centro vital” das ciências da religião (BRANDT, 2006), mesmo
que no Brasil não se tenha dado um tratamento detalhado e aprofundado à
disciplina (DREHER, 2003).

Coloca-se, assim, a FR na condição de um “elo de ligação” entre as


ciências, fragilizando suas contribuições e colocando-a na posição de uma
“alternativa” não autônoma da qual não pode comportar.

Desafios de uma Fenomenologia e de uma Psicologia da Religião no


Brasil Um dos desafios em comum entre FR e PR no Brasil e na Alemanha é o
fato de haver excessiva dependência, tanto de outras ciências, como de espaços
de pesquisa e interlocução; além da dependência das próprias religiões e igrejas
cristãs (BRANDT, 2006).

É o caso particular do Brasil, onde não encontramos grande destaque (ou


mesmo espaço) para estudos e pesquisas no contexto acadêmico. Basta, para
tal, observarmos que no âmbito da Psicologia brasileira não há nenhum
programa de graduação que, em seu cúrriculo, contemple uma disciplina sobre
o tema da Psicologia da Religião. Quando muito a encontramos no rol das
optativas das universidades públicas, mas que nem sempre conseguem vir à luz.
“No que diz respeito ao Brasil, o lugar mais seguro da ciência da religião parece
ser (ainda?) sob o teto da teologia cristã” (BRANDT, 2006, p. 141).

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0

Entretanto, o cenário da PR no Brasil é de grande produção e de


ampliação de debates, com perspectivas positivas, em particular graças ao
Grupo de Trabalho “Psicologia & Religião” da ANPEPP, constituído em 1998,
congregando pesquisadores de diversos programas de Pós-Graduação do país
e, que realiza bianualmente um Seminário em torno de suas pesquisas
(ESPERANDIO; MARQUES, 2015).

Mesmo assim, os desafios são múltiplos. Retomando Brandt (2006), dois


deles são particularmente importantes: a ausência de grandes compilações —
sejam manuais ou compêndios — que toquem em questões teóricas,
metodológicas e conceituais relativas às Ciências da Religião e à Psicologia da
Religião, e a igual ausência de tradução dos grandes clássicos.

A polêmica em torno da tradução do texto de Otto, O Sagrado, ilustra bem


essa questão. Mesmo assim, há que se destacar outros problemas.

No caso específico da PR, o clássico de William James, Variedades da


Experiência Religiosa, encontra-se esgotado há décadas; Edwin Starbuck é
praticamente desconhecido; bem como Leuba, Stanley Hall, Allport, Argyle,
Fowler e outros.

A própria contribuição de Wundt fica limitada ao formalismo sob o qual é


apresentado nos livros de história da psicologia. Desta forma, não é de se
espantar que o discurso “religioso” se confunda com o discurso científico ou
filosófico sobre a religião, a religiosidade e a espiritualidade.

E, com isto, se alienem as discussões no próprio seio da formação e da


profissão no Brasil, como podemos observar claramente a partir da polêmica
recente em torno da “laicidade” da profissão.

Esta questão é importante — não apenas por considerarmos incoerente


uma perspectiva “psicológica” que exclui o fato concreto da constituição das
subjetividades, como é o caso da religiosidade — mas para trazermos a ideia do
espírito da cooperação — da “hospitalidade” no sentido derridariano, do diálogo,
do respeito e consideração pela diversidade, pelo apelo ao concreto, sem
esquecer seu fundamento último, qual seja, o de um sujeito em intrínseca relação

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contextualizado, delimitado e aberto ao mundo. Quando se aliena o debate no


seio de uma profissão, aliena-se o próprio fundamento da liberdade de pensar
de seus sujeitos.

O silenciamento ou a invisibilidade da religiosidade num determinado


contexto, está a serviço de que ou de quem? Afinal, colocar a laicidade como
pauta definida, numa defesa intransigente, já induz o caminho do debate.

Bastaria apontar a posição de Habermas (2007), quando fala da dialética


da razão comunicativa e defende que a legitimação do espaço democrático e do
direito requer a participação de todos no debate público na tomada de decisões,
numa “solidariedade respeitosa”.

Um grande desafio da FR é reconhecer as próprias palavras de Husserl,


quando define sua Fenomenologia Pura como a ciência dos fundamentos ou
ciência fundamental (HUSSERL, [1913], 1985), como uma ciência dos
fenômenos (de todas as ciências), em todas as suas manifestações.

Portanto, poderíamos designar a Fenomenologia como a ciência da


inclusão; pautada sobre a Einstellung, como uma (nova) orientação, uma atitude,
um modo de ver aberto, distinto do modo naturalista.

Em outras palavras, num (novo) modo de se pensar o diferente. A questão


da radicalização da laicidade no contexto da PR brasileira escamoteia o
“fenômeno” religioso que brota em múltiplas manifestações, e aliena uma
realidade existencial profundamente arraigada do povo brasileiro.

Desta feita, não há estudo da subjetividade e de seus processos de


subjetivação que possa persistir sem considerar a dimensão essencialmente
religiosa do brasileiro. Por fim, convém assinalar os desafios empíricos e
metodológicos da FR no Brasil. E um desses é exatamente a reconstituição do
caráter do “empírico” no contexto da Fenomenologia, em seu sentido original —
experiência — que tanto pode implicar numa pesquisa experiencial quanto
experimental.

Encontramos poucos estudos em PR que se apropriam do olhar


fenomenológico.

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A expressão “FR” é pouco utilizada no contexto da Psicologia, bem como


no próprio contexto das disciplinas de saúde em geral. Numa busca em bases
de dados abertas — SCIELO e PePSIC — de publicações brasileiras, utilizando
múltiplas associações entre descritores (“fenomenologia”, “religião”,
“religiosidade”, “experiência religiosa”, “vivência religiosa”, “espiritualidade”), o
número de produções foi bem pouco expressivo, apenas 23 artigos, sendo que
a maioria das produções se apoia em debates teóricos ou conceituais.

A perspectiva de pesquisa fenomenológica exige a consideração de todas


as manifestações do sujeito, como apresentações de um sujeito em sua íntima
relação com o mundo.

Assim, não há conflito entre o empírico, o experiencial e o subjetivo. Na


prática, o foco das pesquisas com o vivido do fenômeno religioso, a partir de
seus diversos modos de apresentação podem ganhar contornos variados.

Pode-se ouvir tanto fiéis e crentes, numa direção (ou sujeitos comuns,
sem vínculo especial com religiosidades particulares), e profissionais, noutra
direção (como sacerdotes e psicólogos), com o intuito de compreender como
lidam com as dimensões do sagrado e do “profano”, do espiritual e do secular.
Isto significa acolher o fenômeno religioso em suas múltiplas manifestações, o
que abre nosso “objeto” de estudo em várias perspectivas.

Em recente pesquisa sobre a utilização do Coping Religioso/Espiritual por


profissionais atuantes no contexto da Rede de Atenção Psicossocial (CORRÊA,
HOLANDA, 2015), constatou-se sua alta utilização — tanto no âmbito pessoal,
como no do trabalho, a partir das falas dos colaboradores — e uma pontuação
baixa de fatores negativos do coping, apontando a esfera religiosa como
relevante.

A leitura desses dados, bem como de outros dados derivados de


pesquisas, nos faz refletir cada vez mais sobre a relevância do debate em torno
do reconhecimento da experiência religiosa como uma manifestação autêntica
do existente em seu contínuo diálogo com o mundo.

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Mesmo assim, o campo da Psicologia aliena cada vez mais essa


experiência, não a reconhecendo como manifestação autêntica — social,
individual ou antropológica — posicionando-se, assim, numa incoerência digna
de nota: afinal, aquela disciplina que deveria privilegiar um olhar ampliado e
isento para o sujeito humano é exatamente a que o retira de seu mundo e que o
isola em perspectivas ideológicas alheias a si mesmo.

Por fim, vale destacar que fazer uma Fenomenologia da religião passa por
um olhar amplo para o fenômeno religioso, incluindo a análise do significado dos
movimentos em religiões — trânsito religioso, migrações, etc. — além da
interpretação de signos e sinais particulares.

Parece-nos que o que falta, para que se desenvolvam mais pesquisas em


FR, seja exatamente uma melhor compreensão do sentido de se fazer uma
“fenomenologia”.

Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o


homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências;
impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a
forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está
consumada...

Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.


Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os
objetos de nossos sonhos e de nossos interesses.

A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de


templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o
Improvável.

Mesmo quando se afasta da religião, o homem


permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros
de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de
ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo.

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Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o


que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na
espera de exterminá-los se se recusam.

Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não


revelem o fundo bestial do entusiasmo.

Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino


virtual; que transforme sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis.
Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos
suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou
de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma.

As épocas de fervor se distinguem pelas façanhas sanguinárias.


Santa Tereza só podia ser contemporânea dos autos-de-fé e
Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os
gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase...
Patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de
uma fé – dessa necessidade de crer que infestou o espírito para
sempre.

O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma


verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com
os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram
apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os
massacres.

Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem


uma ortodoxia no plano religioso ou político, que os distinguem
entre o fiel e o cismático (E.M. Cioran, 1995, p. 11-12).

Pensar o tempo presente implica sempre o risco do equívoco. É Freud


(1927) quem nos adverte sobre o perigo de sermos iludidos pelo presente do
qual participamos quando tentamos emitir algum juízo sobre ele.

Apesar dessa advertência, ele assume o risco e se lança à investigação


e à crítica da cultura de seu tempo: a atitude freudiana recusa categoricamente

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a omissão. Aos psicanalistas transmite-se a lição de que é preciso enfrentar os


riscos e tomar posição frente a sua realidade social.

A interpretação das qualidades distintivas fundamentais de um dado


contexto histórico e social é, nesse sentido, fundamental para ampliar o alcance
do ato analítico e indispensável para assegurar a vitalidade da psicanálise.

Dentre os fenômenos que participam da complexa cena contemporânea,


o crescimento dos movimentos religiosos constitui um dos mais surpreendentes.
Surpreende, entre outras coisas, que tal crescimento se realize exatamente em
uma época tão marcada pelos artefatos tecnológicos e pela constante referência
ao discurso científico como garantia de verdade.

A novidade dessa ocorrência talvez esteja em um único ponto: a


ampliação dos monoteísmos ocidentais manifesta-se no exato momento em que
o saber científico começa a expor a humanidade a crises cada vez mais
profundas e permanentes, em lugar de solucionar em definitivo os problemas
constitutivos da condição humana.

Diante dos pontos acima expostos, o estudo aqui realizado concentrou-se


em torno de três questões fundamentais:

a) como a religião consegue resistir ao discurso científico fortalecido pela


tradição racionalista;

b) de que modo as permanentes crises que acometem a humanidade


participam da proliferação desenfreada dos movimentos religiosos
contemporâneos;

c) qual a relação entre a escalada das religiões na atualidade e


o espírito da contemporaneidade.

Freud e o sonho da razão


Para discutir o tema proposto, partiremos das considerações tecidas por
Freud em seu artigo intitulado O futuro de uma ilusão, datado do outono de 1927.

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Essa escolha se justifica pelo fato de que Sigmund Freud (1856-1939), além de
ser um dos pensadores mais importantes de todo o século XX, assim como
outros grandes pensadores de sua época, empenhou-se grandemente em
provar que a religião seria suplantada pelo saber científico. Herdeiro do espírito
das luzes, ele ousou afirmar que a religião declinaria inevitavelmente: triunfo do
saber científico sobre o misticismo religioso (Freud, 1927).

Em seu O futuro de uma ilusão, Freud (1927) apóia-se no contínuo


processo de desenvolvimento da civilização para decretar o ocaso das religiões.
Se desde os momentos mais primordiais de sua história o homem sentiu
necessidade de recorrer ao sagrado, principalmente para tentar remediar seu
desamparo frente à natureza e ao Destino, parece ser bastante concreta para
ele (Freud) a possibilidade do gradativo enfraquecimento desse laço em face da
solidificação dos saberes científicos. Assim, quanto mais adiantada em seu
desenvolvimento, menos a civilização necessitaria dos recursos proporcionados
pelas religiões: a ciência permite ao homem superar seu desamparo em relação
às forças da natureza e às incertezas do Destino.

Nessa proposição destaca-se uma preocupação tipicamente moderna,


pois é na modernidade que a idéia de superação contínua rumo a uma estrutura
última, mais eficiente e perfeita, torna-se uma meta essencial. Visando, acima
de tudo, o inesgotável processo de superação das estruturas menos completas
por outras cada vez mais plenas, a modernidade caracteriza-se por suas
constantes revoluções. Priorizando a ultrapassagem dos modelos considerados
falhos ou menos eficientes, é próprio do espírito moderno buscar o
desenvolvimento de padrões de máxima plenitude. Conforme nos diz Gianni
Vatimo:

a modernidade pode caracterizar-se, de fato, por ser dominada pela idéia


da história do pensamento como uma "iluminação" progressiva, que se
desenvolve com base na apropriação e na reapropriação cada vez mais plena
dos "fundamentos", que freqüentemente são pensados também como as
"origens", de modo que as revoluções teóricas e práticas da história ocidental se

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apresentam e se legitimam na maioria das vezes como "recuperações",


renascimentos, retornos (1996, p. VI).

Freud aposta na superação da ilusão religiosa como etapa natural do


desenvolvimento da humanidade. A expectativa freudiana de que o contínuo
processo de desenvolvimento humano finalmente despertaria a civilização para
a evidência do caráter puramente ilusório das religiões, levando-a a abandonar
seu vínculo ancestral com o sagrado para adotar a ciência como meio mais
eficiente para lidar com a natureza e com seu Destino sempre incerto, pode servir
de argumento para demonstrar o enraizamento da teoria freudiana no modo de
ser característico do pensamento moderno.

o próprio Freud quem nos diz textualmente: "o afastamento da religião


está fadado a ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento,
e nos encontramos exatamente nessa junção, no meio dessa fase de
desenvolvimento" (1927, p. 57). A opinião de Freud solidariza com a expectativa
de que o progresso do pensamento e, por conseguinte, os avanços da ciência
construiriam uma base sólida e suficientemente forte para assegurar o declínio
definitivo da religião como uma das etapas de transição mais importantes de
nossa civilização.

Para Freud (1927), está claro que, convocada para responder às questões
fundamentais da existência humana, a religião nunca fez mais do que envolvê-
las em uma aura de mistério. Além disso, do ponto de vista da organização
social, as doutrinas religiosas nunca foram capazes de fazer com que o homem
abandonasse definitivamente seus impulsos destrutivos em prol da plena
aceitação dos preceitos morais propostos por elas. Sendo assim, as religiões
parecem ter falhado duplamente: em primeiro lugar, por nunca haverem
proporcionado alguma ajuda efetiva na elucidação e no entendimento mais
completo do homem; em segundo lugar, por terem sido incapazes de estabelecer
um modo de organização social totalmente moral, como prova incontestável de
seu domínio sobre impulsos instintuais e as tendências destrutivas.

Freud (1927) pretende demonstrar que se há alguma coisa capaz de fazer


homens melhores, se existe algo eficiente para amenizar o desamparo do

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homem frente à natureza e a seu destino incerto, esse algo definitivamente não
é a religião, mas certamente a ciência.

Evidentemente, supõe Freud (1927), o homem estará mais seguro para


superar suas angústias e sua impotência se, abrindo mão do ineficiente
misticismo religioso, decidir buscar refúgio na luminosidade que irradia do saber
cientifico. De acordo com essa perspectiva, a ciência deveria aliviar o homem ao
lhe permitir superar, ainda que parcialmente, seu desamparo.

É necessário destacar que a hipótese construída por Freud (1927) vai


buscar no caráter experimental da ciência o argumento para afirmar que ela é
mais eficiente para aparelhar o homem (em relação à natureza e às
contingências de seu Destino) do que o faz a religião.

O poder, atribuído à ciência – de fornecer garantias para que o homem


consiga superar seu desamparo natural – é o que faz dela, de acordo com Freud,
uma substituta ideal.

Desse debate resulta ainda uma outra questão que nos permitiremos
deixar apenas apontada: negando qualquer dignidade à religião, e ao mesmo
tempo empenhando-se em legitimar sua substituição pela ciência, Freud dá uma
passo importante em direção à consumação da queda dos valores absolutos
enunciada pela filosofia nietzschiana, sua predecessora.

Entretanto, o passo seguinte dado por ele (Freud, 1927) pode levar o
leitor, desconhecedor do restante de sua obra, a cometer um grave erro: supor
que, para ele, trata-se apenas de substituir Deus pela ciência, mantendo
intocada a dependência primordial de uma verdade última.

Nesse sentido, a eleição da ciência, acompanhada do rebaixamento da


religião, ganha ares de ato redentor cujo objetivo primordial seria o resgate do
homem historicamente iludido pelos obscurantismos falaciosos das práticas
religiosas.

A aposta de Freud no triunfo da ciência, decorrente da luta entre a luz da


razão e as trevas do misticismo religioso, poderia – desde que tomada
isoladamente – servir como demonstração de que ele, fiel aos preceitos do

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pensamento moderno, recusou a queda da referência absoluta pela expectativa


de realização da superação de uma estrutura por outra ainda mais plena.

O argumento em favor de um suposto caráter reacionário interno ao


pensamento freudiano ganha ainda mais força se considerarmos que a
possibilidade de realização efetiva de um vazio irreversível, assim como a
ausência de uma referência fundamental, opõem-se ao projeto freudiano de
revelar, por meio da técnica psicanalítica, uma verdade última: garantia de certa
estabilidade e de alguma ordem ao mundo.

No fundo, isso quer dizer que Freud acreditava na existência de um saber


velado sobre o mundo e sobre o homem, que deveria ser decifrado por meio do
procedimento analítico/científico.

Lacan (2005) nos informa que a ciência, assim como a posição do


cientista, constituiu um tabu para Freud. Por esse motivo é possível supor a
implicação do seu desejo na realização desse ideal: elevar a psicanálise
ao status de ciência, e com isso garantir sua incorruptibilidade.

Freud também parece ter se deixado iludir por seu desejo ao decretar o
fim da religião. Apesar disso, oitenta anos depois da publicação do Futuro de
uma ilusão, estão cada vez mais na pauta do dia: a escalada contínua dos
fundamentalismos juntamente com a proliferação desenfreada de seitas e
doutrinas religiosas. Ao contrário do que previu Freud, o discurso encampado
pela ciência não promoveu a extinção dos laços entre a humanidade e o sagrado,
mas parece ter fornecido razões ainda mais fortes para garantir a permanência
das religiões.

Ambos os seguimentos passaram a coexistir, e por vezes, conforme


veremos mais adiante, essa coexistência pressupõe inclusive certa
complementaridade.

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Um outro Freud
Ao longo da obra freudiana encontraremos vários pontos que
fundamentam uma postura completamente diversa daquela anteriormente
enunciada em relação à ciência.

Desde muito cedo foi necessário que Freud rompesse com os preceitos
norteadores do programa científico de seu tempo.

As formulações de uma energética, impossível de ser explicada física ou


quimicamente, ou a atenção dispensada por ele aos sintomas histéricos (sem
nenhuma explicação orgânica) contrariam radicalmente os preceitos científicos
praticados em sua época (Freud, 1895).

Mais apropriado do que afirmar a crença de Freud no triunfo final da razão


seja observar que sua opção pela via científica deveu-se basicamente à
necessidade de legitimar sua prática. Servindo-se da ciência, Freud somente o
fez para poder ultrapassá-la. Disso resulta que a psicanálise não tenha sido
tragada por ela, mas tenha dela se distanciado gradualmente ao longo do tempo.

Em oposição ao otimismo característico do espírito das luzes estão as


constatações freudianas contidas em seu Além do princípio do prazer (1920) e
em Análise terminável e interminável (1937a).

Despedindo-se definitivamente do otimismo que celebrava a plenitude da


razão, Freud chega ao extremo de questionar até mesmo a validade da própria
psicanálise. As evidências de sua clínica, juntamente com suas reflexões
teóricas, demonstram que não há nada capaz redimir ou salvar o homem de sua
condição.

O que mais se pode esperar da razão após a constatação de que toda


pulsão é pulsão de morte (Freud, 1920)?

Como é possível manter-se otimista e crente na plenitude do saber


produzido por ela depois de descobrir que "os horrores de que somos feitos são
tanto mais perenes quanto são, para nós, irresistíveis" (Coli, 1996, p. 312)?

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A constatação do caráter meramente artificial, e por conseguinte ilusório,


da razão faz desmoronar os fundamentos do projeto iluminista. As virtudes da
razão esbarram na descoberta da prevalência dos impulsos destrutivos sobre os
impulsos vitais, morais e civilizatórios.

As ressonâncias dessa conclusão ecoam em seu Construções em


análise (1937b): demonstração de que a verdade última – resultante do completo
esclarecimento do inconsciente pela prática analítica – é, rigorosamente falando,
impossível.

Nesses termos, o fim de uma análise não passa de uma ficção necessária.
Após a descoberta da prevalência da pulsão de morte, a teoria freudiana afirma
a violência de uma realidade irreversivelmente irracional (Coli, 1996).

Sabemos que a descoberta da psicanálise, foi motivada pelo desejo de


lançar luz sobre a verdade dos fatos inconscientes que determinam as ações
humanas.

Por esse motivo, apesar de o inconsciente ser o construto teórico mais


importante da psicanálise, e por definição localizar-se fora do campo de
abrangência da razão/consciência, a técnica desenvolvida para atuar sobre ele
toma-o como um saber que deve ser revelado pelo trabalho analítico.

Todavia, para além da dimensão do saber inconsciente situa-se o


inominável da pulsão. Isso porque, por maior que seja a luminosidade da razão,
sua luz "nunca é triunfante, mas possui um caráter agônico, uma existência
dificultosamente obtida diante do escuro" (Coli, 1996, p. 310). Nas últimas
formulações freudianas não há mais qualquer claridade, nem luz de espécie
alguma: "El sueño de la razón produce monstros" (Coli, 1996, p. 310 – grifos do
autor).

Em decorrência do caráter precário e provisório da razão, a condição


humana, submetida ao tempo destruidor, à doença e às atrocidades levadas a
cabo pelas duas grandes guerras do século XX, se sobrepõe violentamente ao
ideal artificial da racionalidade.

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Os avanços da ciência, cujas propostas iniciais incluíam a ampliação


contínua do domínio humano sobre a natureza e a compreensão dos fenômenos
naturais/sociais, tornaram cada vez mais insustentável e frágil a continuidade da
própria existência.

A vertiginosa cena contemporânea


Na contemporaneidade, a razão dá mostras incontestáveis de seu
cansaço.

À beira de um colapso definitivo, o panorama construído na atualidade


nos informa que o ideal da racionalidade perdeu lugar para o caos: subversão
total da dimensão da ordem.

O tempo presente é um tempo permanentemente atormentado pela crise.


Nosso século, dominado pela velocidade vertiginosa das transformações
técnicas e tecnológicas nos confirma que o desamparo do homem não
desapareceu, mas se revelou ainda mais irremediável do que sequer ousamos
imaginar algum dia.

O avanço do campo de abrangência das técnicas científicas parece ser


diretamente proporcional à emergência do sentimento cada vez mais intenso de
angústia por demonstrar seguidamente que há sempre algo imprevisível que
insiste em escapar ao esforço racional de explicação e de previsão. Além da
presença freqüente do imponderável, existem as incontroláveis ameaças
biológicas, a nunca completamente superada ameaça de destruição nuclear, o
temor frente às incalculáveis conseqüências das intervenções humanas na
natureza, a barbárie das duas grandes guerras e das guerrilhas que dominam
nos grandes centros urbanos demonstram, de modo contundente, quão tênue é
o fio que sustenta a humanidade.

Valéry declara com perplexidade o mútuo pertencimento entre o horror e


as virtudes da razão operacionalizada nos saberes científicos: "sem dúvida, foi
preciso muita ciência para matar tantos homens, dissipar tantos bens, aniquilar
tantas cidades em tão pouco tempo" (apud Novaes, 1996, p. 9).

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Diante da cena contemporânea, o sentimento de angústia se torna


absolutamente inevitável.

Em lugar de amenizar seu estado de permanente incerteza fornecendo ao


homem um caminho seguro para trilhar, a ciência denuncia de modo fulminante
a impotência da civilização frente ao imprevisível que teima em envolvê-la e se
multiplicar a sua volta.

Na medida em que a ciência (convocada a fim de amenizar, ainda que


parcialmente, a angústia humana) expõe o caráter limítrofe de uma realidade
incontrolável, é possível ver no recrudescimento do sentimento religioso e no
fervoroso apelo à religião do qual somos testemunhas, uma tentativa
desesperada de estabilizar e organizar a loucura que domina o dia-a-dia da
atualidade. Nesse sentido, o retorno ao sagrado se realiza como esforço de
devolver à humanidade uma ordem, ainda que artificial.

Hoje, a freqüente emergência de movimentos religiosos, assim como o


empenho aplicado ao fortalecimento das instituições que sobrevivem da
veiculação do sagrado nos demonstram até que ponto o território dos
fundamentalismos sectários tem se difundido.

A zona limítrofe à qual a história da civilização nos trouxe causa tanta


perplexidade que a retomada do culto ao Eterno ilustra a tentativa de suportar o
choque de uma realidade irremediavelmente fragmentada.

A proliferação das manifestações religiosas na atualidade testemunha a


súplica desesperada para que os estilhaços dessa realidade sejam reunidos,
ainda que de modo bastante precário, a fim de restabelecer sua unidade
imaginária.

Por essa razão, Lacan (2005) dirá que a religião está destinada a triunfar
em nossa época: a religião triunfará sobre a ciência e também sobre a
psicanálise porque a existência de Deus comporta a ilusão das garantias.

A divina Providência desmente a contingência. A presença vigorosa da


religião na contemporaneidade pode ser vista, portanto, como um esforço a mais

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na tentativa de fazer existir uma unidade impossível, o que passa


necessariamente pela negação da realidade em seu estado de pura dispersão.

Por esse motivo, a religião fervilha e se prolifera de modo desenfreado,


costurando as peças soltas que compõem nossa realidade como recusa ao
caráter fragmentário de uma sociedade cada vez mais acossada pelo real de sua
condição.

Ao contrário do que supunha Freud em seu Futuro de uma ilusão (1927),


a religião triunfará inclusive sobre a psicanálise, que por sua vez terá de arranjar-
se para sobreviver a ela (Lacan, 2005).

O espírito das luzes silenciou o universo aterrorizando Pascal, e por


extensão, todo o restante da humanidade. Desde então, tem-se feito todo o
possível para amenizar o mal-estar que acomete a civilização e que resulta da
generalização desagregadora do silêncio na atualidade.

Esse movimento de reação parece ser uma das principais características


da religiosidade contemporânea. É na garantia de estabilidade fornecida pelo
Divino que a humanidade angustiada busca se refugiar.

Tal estabilidade, entretanto, não passa de uma reação: negação do


imprevisto e da contingência cujo produto é a ilusão de uma realidade estável e
organizada.

Em uma época sem identidade, o engajamento nos movimentos religiosos


produz uma identidade reacionária e disposta a todo tipo de combate para
garantir a ilusão de homogeneidade entre seus fiéis.

Se o silêncio que aterrorizava Pascal permanece propagando seus efeitos


na sociedade contemporânea, parece haver evidências suficientes para afirmar
que ele passou a ser experimentado de uma forma irreparável: o pânico.

Diante da presença maciça e desagregadora da pulsão, irrompe a


vertigem. Acometido pelo pânico, o homem contemporâneo entende que é
preciso construir estratégias que lhe proporcionem o alívio de seu mal-estar.

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Por esse motivo, a defesa contra o processo de dissolução – que ameaça


o sentimento de organicidade de modo cada vez mais irreversível – passa a
constituir um dos programas mais fundamentais e caros à contemporaneidade.
Isso faz de nossa época um terreno bastante propício para o fortalecimento das
atitudes reacionárias que negam a realidade em sua condição fragmentada em
busca do alívio proporcionado pela ilusão da estabilidade.

Para remediar suportar o choque de uma realidade que é pura


contingência, o homem se vê persuadido a aderir àqueles discursos cujo
principal intuito parece ser: restaurar ao mundo sua estabilidade pelo exorcismo
da dispersão, pela anulação da provisoriedade e da precariedade.

Desse modo, é na tentativa de reagir contra a insuportável perda de sua


organicidade que a humanidade confecciona para si ficções que a defendam do
real.

Supor a existência de uma ordem, instaurada e regida pelo Onipotente e


Onisciente Criador permite a construção de uma ilusão que parece ser
indispensável ao nosso tempo. Por este motivo, é possível que o avanço
desenfreado dos fundamentalismos religiosos seja mais uma dentre as
manifestações sintomáticas características de nossa época.

O apelo ao sagrado em nosso tempo parece estar norteado pela solidez


das inabaláveis verdades produzidas sob a forma das revelações: é a verdade
estável e absoluta produzida pela revelação religiosa que fundamenta a ilusão
de segurança no interior dessa dissolução generalizada. Somente um discurso
arraigado na verdade pode refugiar a humanidade desolada fornecendo-lhe a
salvaguarda de uma Providência que regula toda a ordem universal.

Nesse ponto parece residir o principal trunfo das práticas religiosas em


relação a suas opositoras: a condição de produzir uma consistência imaginária
que devolve o conjunto à realidade dissolvida. A unidade imaginária, entretanto,
não passa de uma reação cuja função primordial é negar a violência de uma
realidade incontrolável.

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O monoteísmo e o gozo
Até o presente momento argumentamos que os artifícios religiosos têm
servido de suporte à humanidade atormentada pela crise: recorrendo à ilusão do
Um ela se defende de sua condição fragmentária.

Esforçamo-nos ao longo desse estudo em demonstrar que essa é uma


das características mais fundamentais do fenômeno religioso contemporâneo.
Todavia, é necessário salientar ainda o fato de que na cena religiosa que vemos
construir-se na atualidade sobressaem-se os imperativos característicos da
sociedade de consumo.

Em harmonia com a dinâmica mercadológica realiza-se um tal processo


de dispersão de denominações, que em consideração a suas singularidades,
somos obrigados a falar não mais em monoteísmo, mas
em monoteísmos. Fabricam-se livremente variadas versões do sagrado, assim
como variados códigos morais.

Em tais códigos, um elemento é particularmente interessante: o


abrandamento gradativo das proibições. Menos do que interditar, nos
monoteísmos que vemos abundar atualmente há um crescente apelo ao gozo:
imperativo absoluto que norteia a relação dos indivíduos com o sagrado e com
seus pares sociais.

A obediência aos preceitos morais prescritos em cada um deles


permanece como orientação de conduta para os fiéis, mas mais importante do
que tais preceitos é a relação direta com o gozo próprio da sociedade de
consumo. Desfrutar dos bens materiais e ser bem sucedido financeiramente não
são apenas objetivos que podem ou não ser atingidos.

O gozo tornou-se um imperativo a partir do qual é possível, inclusive, por


meio de uma matemática simples, inferir o nível de comunhão com o sagrado:
quanto mais acesso aos artefatos de consumo, mais evidências o indivíduo e
seus pares possuem acerca de sua integridade espiritual.

Não se trata mais de impedir vigorosamente os excessos de satisfação


terrena em prol da plenitude celestial a ser desfrutada no porvir: todo indivíduo

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possui não apenas o direito, mas o dever de desfrutar plenamente das


satisfações terrenas, assim como das celestiais.

Apesar do nítido contraste entre as características dos monoteísmos


ocidentais acima apontadas e a origem do monoteísmo hebreu teorizada por
Freud (1939), é bem provável que resida justamente nesse contraponto a
possibilidade de entendermos um pouco mais sobre o fenômeno religioso
contemporâneo.

Em seu Moisés e o monoteísmo, Freud (1939) reafirma sua tese sobre o


assassinato do pai primitivo, pronunciada originalmente em seu Totem e
tabu (Freud, 1913), aplicando-a a Moisés: o assassinato de Moisés pelo povo
hebreu repetiria assim o assassinato do pai primitivo, chefe da horda primeva.

Segundo ele nos informa (Freud, 1939), é a interdição ao gozo


arbitrariamente imposta por Moisés a seu povo, sob a forma da proibição contra
a produção e a adoração de imagens de deuses, que funda o monoteísmo.

Aliada a esse fator, na gênese do monoteísmo encontra-se a injunção à


adoração de um deus que não pode ser visto, imaginado, ou sequer ter seu nome
pronunciado (Freud, 1939).

Apesar de contribuir diretamente para um significativo avanço da


intelectualidade, a principal conseqüência desse ato de exclusão do gozo,
energicamente imposto por Moisés aos hebreus, foi seu próprio assassinato:
Moisés teve de ser morto para que a lei do monoteísmo, a proibição do gozo
pleno, pudesse então vigorar como dissimulação da verdade histórica de sua
morte (Freud, 1939).

Acreditamos residir nesse ponto uma outra característica fundamental do


fenômeno religioso contemporâneo: sua relação direta com o gozo. Na
contemporaneidade, a proliferação do sagrado não se realiza apenas como
reação à perda de consistência do Outro.

Não se trata unicamente de um apelo ao Um como salvaguarda em


relação a uma realidade comprovadamente fragmentária.

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A proliferação desenfreada dos segmentos religiosos na


contemporaneidade, assim como sua incrível capacidade de atração e sedução
não são ocorrências meramente fortuitas, mas realizam-se exatamente
enquanto assistimos ao ocaso do Nome-do-Pai.

Se é a Lei-do-Pai que fixa a proibição do gozo limitando-o, então, na


medida em que essa instância simbólica privilegiada declina na atualidade,
revive-se a paixão pelo gozo pleno que ela interditava.

A atitude reacionária, o apelo ao Um, carrega consigo um imperativo de


gozo que os parasita. Aliadas, as duas vertentes paradoxalmente não se anulam,
mas amplificam ainda mais o poder desse fenômeno cujo impacto em nossa
sociedade apenas pressentimos.

A LINGUAGEM CIENTÍFICA E RELIGIOSA


A linguagem científica pretende descrever o mundo. A linguagem religiosa
exprime como o homem vive, em relação ao mundo.

Temos aqui a chave para interpretar a significação da linguagem religiosa.


A religião não é uma hipótese acerca da questão filosófica da existência de
deuses.

O ego não se propõe tal questão, no início de suas operações. O que


importa é a 'paixão infinita' (S. Kierkegaard), o 'ultimato concern' (P. Tillich) que
estão instalados no interior da consciência, e em torno dos quais a personalidade
se unifica (...) Separemos, portanto, de uma vez por todas, a questão da
existência de Deus — que é uma questão filosófica — da experiência religiosa.
A primeira é uma hipótese acerca do objeto. A outra é uma paixão subjetiva. Sem
paixão subjetiva não existe a religião. Poderá haver instituições que cristalizaram
liturgias e fórmulas doutrinais.

Nada garante, entretanto, que tais 'objetos' sejam, no momento da


análise, expressões de uma paixão infinita.

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É sempre possível — e provável — que nada mais sejam que fósseis sem
vida de uma experiência outrora rica, mas agora morta. Realidades sociais? Sim.
Religião? Duvidoso" Aliás, abordando o assunto da distinção entre fenômeno
religioso e ciências físicas, é ilustrativo recordar o pensamento de certos
cientistas que vêem a fenomenologia com certa desconfiança, já que, para eles,
só é real o que se pode comprovar e verificar empiricamente, e fenômeno é o
que aparece exteriormente.

Piazza vê nesta atitude um preconceito imposto por uma corrente


filosófica do século passado, que limitava todo conhecimento humano aos dados
empíricos colhidos pelos sentidos, mas que hoje está amplamente superada pela
experiência fenomenológica.

Esta abriu novas perspectivas para o conhecimento do mundo e da vida,


justificando a existência das chamadas "ciências humanas", nas quais o homem
não é apenas um espectador passivo, mas um fato preponderante, pois intervém
em seu desenvolvimento com a sua faculdade criadora, com as suas decisões
irrepetíveis, como a história, a sociologia e a própria religião.

Para Piazza, a fenomenologia está na base de todas as ciências, pois só


depois que o homem percebe o significado próprio de certos fatos e realidades
pode construir um corpo de doutrinas, que se chamará ciência natural, no caso
de dados inteiramente alheios à decisão humana, ou ciência humana, no caso
de depender, ao menos em parte, das decisões humanas.

"A fenomenologia, portanto, está na base de todas as ciências empíricas,


pois só quando o homem percebe a fenomenologia própria de certas realidades
é capaz de organizá-las em ciência."

Na verdade, prossegue Piazza, "não existe uma percepção puramente


sensorial, pois, sempre que os nossos sentidos captam um objeto, isto acontece
porque ele é portador de um significado próprio.

Quando os cientistas captam um determinado fenômeno e elaboram as


leis que o regem, essas não são introduções de novas leis na natureza". Os

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cientistas entendem o fenômeno porque ele é inteligível, ele se deixa entender,


não é absurdo nem caótico.

Portanto, "o fenômeno possui algo de transcendente, pois apela para a


compreensão de um significado que se funda ultimamente na consciência
humana: E o que se denomina intencionalidade do fenômeno. Mas, por outro
lado, ele se firma na realidade objetiva, pois esta 'intencionalidade' é postulada
pelo próprio objeto contemplado. Fenômeno é, pois, a realidade que captamos
nas coisas por meio da consciência.

Para a fenomenologia religiosa, a realidade é a religião". -


Fenomenologicamente, a religião se identifica com o culto prestado ao Sagrado,
quer este seja concebido como um Ser transcendente e Absoluto, que seja
concebido como um Deus antropomórfico ou com um Absoluto impessoal.

Aprofundando um pouco mais este conceito de fenomenologia religiosa


emitido por Piazza, Soares Gomes afirma que "a fenomenologia religiosa é uma
ciência que, através das formas religiosas, procura decifrar, descrevendo
segundo o método fenomenológico, a essência da religião.

Assim é analisado e comparado entre si tudo o que nas ciências é


apresentado como religioso. Deste estudo comparativo global surgiu o conceito
de Sagrado, uma categoria universal especificativa do religioso. Lugares,
templos, objetos, ritos, palavras serão considerados religiosos enquanto
sagrados".

O QUE É RELIGIÃO
Nosso objetivo é o estudo do fenômeno religioso aprofundando-o em vista
de melhor equacioná-lo com a vida humana. Não é preciso, pois, propor uma
definição da religião.

No entanto, como o fenômeno religioso está sempre integrando


determinadas religiões, procuremos, através de alguns eminentes autores que
estudam o assunto, estabelecer uma definição de religião.

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Lang, famoso por seus trabalhos antropológicos e pesquisas sobre o


fenômeno religioso, nos lega uma reflexão muito importante: "Todos aqueles que
se ocupam da religião, todos os que pretendem favorecer o desenvolvimento da
religião, todos os que a querem extirpar, oferecem uma definição da sua
essência".

Lang tem toda a razão, já que, na verdade, percorrendo o vastíssimo


mundo dos estudiosos da religião — quer os que a favorecem ou os que
procuram destruí-la —, todos procuram oferecer uma definição de religião.

A gama de definições da religião é quase infinita: filosóficas, sociais,


políticas, culturais, morais, artísticas, teológicas etc., conforme o ponto de vista
dos investigadores.

Para um Platão ou Aristóteles, ou para um Agostinho de Hipona ou Tomás


de Aquino, essa presença da religião deve-se à própria natureza do homem, ser
racional, que o impulsiona para um EMPIRICO: baseado apenas na experiência
e na observação onde o autor elenca uma série de definições da religião entre
os autores mais abalizados no assunto.

Nogare, tendo como ponto de apoio o pensamento clássico, nos explica


esse desejo a partir de nossa mente que, "com efeito, tem uma certa infinitude
intencional, porque sua capacidade de apreensão não conhece limites ou
barreiras no campo dos inteligíveis. Nada daquilo que existe ou possa existir é
inatingível por ela; nada que, proposto de forma conveniente, ela não possa
conhecer imediata ou mediatamente, direta ou indiretamente, própria ou
analogicamente".

Claro que a proporção dos objetos cognoscíveis varia de acordo com a


capacidade de nossa mente, mas, como prossegue Nogare, "se falamos de um
modo absoluto, nenhum objeto se encontra fora do seu alcance: "substância ou
acidente, corpo ou espírito, real ou possível, tudo.se abre à possibilidade de
conhecimento da inteligência.

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Ora, a mente humana tende a tomar efetiva esta infinitude intencional, no


sentido de conhecer sempre novos objetos, até, se fosse possível, compreender
a totalidade dos inteligíveis, isto é, a totalidade dos entes".

Este dinamismo da inteligência é, para o autor citado, "algo de imperfeição


do seu agir. Trata-se de um contínuo impulso e esforço que são destinados a
entrar na sua perfeita satisfação só no conhecimento do primeiro Princípio ou
Causa de todos os seres, que denominamos Deus".

Se assim sucede com a mente humana, o mesmo acontece "com a


vontade, tendência de caráter intelectivo e espiritual que emana diretamente da
inteligência. Tal fenômeno não se dá com o animal porque, sendo seu
conhecimento de caráter sensitivo, não pode perseguir senão bens particulares,
ou sensíveis: como um pedaço de carne, um osso, a erva, a água, etc..

O homem, levado pelos conceitos que a inteligência lhe apresentar pode


equilibrar-se acima do mundo material e sensível e ansiar por bens espirituais,
como a verdade, a bondade, a virtude etc.

Mas sucede também aqui que essa tendência superior da vontade não se
acalma e não se satisfaz completamente senão ao atingir o todo e perfeito Bem:
Deus".

Mondin define a religião como "um conjunto de conhecimentos, de ações


e de estruturas com que o homem exprime reconhecimento, dependência,
veneração em relação ao Sagrado".

Esta definição de Mondin comporta dois elementos: o primeiro diz respeito


ao sujeito, e o segundo, ao objeto. Quanto ao sujeito, ela indica a postura do
homem quando se exprime religiosamente, já que "nem todas as relações com
o Sagrado são atividade 'religiosa'.

Se, por exemplo, se toma por objeto de pesquisa o processo de


transformação e de desenvolvimento, as manifestações e as influências da
religião, não se pode prescindir do objeto da experiência religiosa, embora nos
movamos no plano da história e não no da religião".

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Para A. Lang, pode-se falar de um ato religioso, sobretudo de um ato


religioso fundamental, apenas "quando o homem assume diante do Sagrado e
do Divino uma postura subjetiva totalmente particular, isto é, quando é
emotivamente atingido e atraído pelo objeto e entra em contato pessoal com ele".
Esse é, para Mondin, "o lado psíquico ou interior da religião".

Para Mondin, o aspecto subjetivo do fenômeno religioso "é constituído


pelo reconhecimento da realidade do Sagrado, pelo sentimento de total
dependência a seu respeito e na atitude de veneração por ele". Com esse
discurso, Mondin indica aquilo que caracteriza o objeto, de forma exclusiva, isto
é, de Ser Sagrado.

Ora, o Sagrado é um conceito primário, fundamental, como os conceitos


de ser, de verdade, de bem e de belo e, portanto, não pode ser explicado
ulteriormente recorrendo a categorias estranhas à esfera religiosa.

Assim pensam M. Eliade, R. Otto, G. van der Leeuw. Otto, especialmente,


apresenta como características do Sagrado a luminosidade, o mistério, a
majestade e o fascínio. Mas, para Mondin, existem outras características.

A objetividade: "O Sagrado, enquanto permanece sagrado, e, portanto,


objeto da religião, jamais é considerado um achado da fantasia humana, uma
projeção e hipostatização dos desejos e dos ideais do homem, como, aliás, é a
teoria de Ludwig Feuerbach e de Sigmund Freud — claro, este último apoiando-
se no pensamento do dissidente hegeliano. O ato religioso está apontado para
uma realidade efetivamente existente.

A transcendência: (o Sagrado) também se não é colocado fora do mundo,


é sempre considerado algo que supera infinitamente o mundo, e tudo o que nele
existe, especialmente o homem.

A axiologia: o Sagrado representa o valor Supremo e a ele se subordinam


todos os outro valores - A personalidade: o homem religioso não trata com um
objeto, mas com um Tu, com uma pessoa. Como afirma Van der Leeuw, há algo
em face do homem. Eu o experimento um Tu. E eu o imagino para mim sob a
forma de um demônio ou de um Deus".

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É fundamental observar aqui, aqueles dois aspectos que B Mondín —


assim como todos os estudiosos do assunto — atribui a fenômeno religioso; um
aspecto subjetivo e um outro objetivo, ( aspecto subjetivo é o do sentimento de
total dependência do homem diante do Sagrado; o objetivo se constitui das
estruturas e ações isto é, ao conjunto de dogmas e mitos, cultos e ritos,
oferendas e preces, por meio dos quais o homem entra em contato com o
Sagrado e que exprimem atitude da dependência.

Como sabemos, por meio da fenomenologia religiosa, essa relação de


dependência pode ser positiva e benéfica ou negativa e prejudicial. Por essa
razão, todas as religiões possuem ritos e cultos para obter as boas graças do
Sagrado ou afastarem tudo aquilo que possa ser prejudicial.

Se, pois, uma religião, qualquer que seja, pode ser detinida como um
conjunto de reconhecimentos, açôes e estruturas com que o homem exprime
dependência e veneração em relação ao Sagrado, essas manifestações
exteriores, explica J. P. Barruel de Lagenest, "revelam atitudes interiores e por
ações e gestos cujo sentido os transcende.

Essas atitudes e gestos constituem o conjunto daquilo que se pode


chamar fenômenos religiosos".

Se o fenômeno, essencialmente, é algo que pode ser verificado de alguma


forma, ele não é mera aparência; é muito mais, porque revela alguma coisa que
o transcende.

Se a vida religiosa é o conjunto de atos e atitudes por meio dos quais os


membros desse grupo manifestam sua dependência em relação às forças
invisíveis, "a fenomenologia da vida religiosa é o estudo científico e sistemático
dessas relações de dependência, não mais consideradas isoladamente, mas seu
contexto vital.

Daqui que todo fenômeno religioso exprime, portanto, de uma forma ou


de outra, uma experiência religiosa (...) que se localiza no interior e nos limites
de dois mundos: o mundo profano e o mundo sagrado, vivenciados não como

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fechados um para o outro, mas em contínua interação — o mundo sagrado


impregna o profano na medida em que dele se utiliza para se revelar".

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