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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO

HEBERT COSTA DE ABREU

A IN(DISCIPLINA) NO CICLO DE ALFABETIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DA


ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL

NITERÓI
2015
HEBERT COSTA DE ABREU

Monografia apresentada à Universidade


Federal Fluminense, como requisito
parcial para obtenção do título de Pós-
Graduação Lato Sensu do Curso
Alfabetização das Crianças das Classes
Populares.

Orientadora: Profa. Dra. MARGARETH MARTINS DE ARAÚJO

NITERÓI
2015
HEBERT COSTA DE ABREU

A IIN(DISCIPLINA) NO CICLO DE ALFABETIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DA


ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL

Monografia apresentada à Universidade


Federal Fluminense, como requisito
parcial para obtenção do título de Pós-
Graduação Lato Sensu do Curso
Alfabetização das Crianças das Classes
Populares.

Aprovada em.............de............................de 2015.

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________________________________
Profª. Drª. MARGARETH MARTINS DE ARAÚJO – Orientadora
UFF

______________________________________________________________
Profª. Drª EDWIGES GUIOMAR DOS SANTOS ZACCUR – Parecerista
UFF

NITERÓI
2015
A todos que respeitam as crianças e, por isso, são educadores.
AGRADECIMENTOS

Eu
Agradeço!

Agradeço a Deus!

Agradeço a minha querida família!

Agradeço a todos os meus colegas de turma!

Agradeço a todos os professores, alguns agora amigos!

Agradeço a minha orientadora e inspiradora Margareth Martins!

Agradeço as minhas companheiras de orientação, incansáveis guerreiras!

Agradeço aos meus alunos que passam comigo brincando-aprendendo-ensinando!

Agradeço mui especialmente à Coordenadora Edwiges Zaccur, que tem o dom de professorar!
“A autoridade coerentemente democrática
está convicta de que a disciplina verdadeira
não existe na estagnação, no silêncio dos
silenciados, mas no alvoroço dos inquietos,
na dúvida que instiga, na esperança que
desperta.”
(Paulo Freire)
RESUMO

Esta monografia foi costurada a partir dos meus anseios como orientador
educacional de uma escola pública do município de Itaboraí. Proponho-me neste
trabalho a discutir as relações na escola, exclusivamente as que envolvem as formas de
lidar com um grupo específico de aluno, formado por aqueles que são classificados
como indisciplinados. Quase sempre, justificam o comportamento desajustado
relacionando-o à ineficiência dos pais na educação dessas crianças. Mas, e se mudarmos
o foco, direcionando-o para dentro da instituição de ensino? Será que a suposta rebeldia
de alguns estudantes não poderia ser um reflexo, até legítimo, da falta de diálogo e
respeito àqueles que querem e não abrem mão de participar da construção de seu
próprio espaço? Rediscutir as relações do e no cotidiano da escola no que diz respeito
ao caos, também chamado de indisciplinas nas salas e corredores, é o que busco neste
trabalho.

Também buscarei mostrar, mergulhando no meu cotidiano de trabalho, como


que a escola, de um modo geral, desenvolve práticas autoritárias, contrariando o que
consta, muitas vezes, no Projeto Político Pedagógico. Essa contradição acontece porque
o autoritarismo reproduzido é fruto de uma cultura dominante, que não considera as
crianças como seres essencialmente importantes e, por conseguinte, dignos de respeito.

Palavras-chave: disciplina escolar, alfabetização, orientação educacional.


ABSTRACT

This monograph was sewn from my longings as counselor at a public school


in the city of Itaboraí. I propose in this paper to discuss the relationships at school, only
those involving the ways of dealing with a specific group of students, formed by those
who are classified as undisciplined. Almost always, justify the maladjusted behavior as
related to the inefficiency of parents in the education of these children. But what if we
change the focus, directing it into the educational institution? Does the supposed
rebellion of some students could not be a reflection, even legitimate, the lack of
dialogue and respect to those who want and do not give up part of building your own
space? Revisit the relations and daily at school with regard to chaos, also called
indiscipline in the rooms and corridors, is what I seek in this work.
Seek also show, plunging in my daily work, such as the school, in general,
develops authoritarian practices, contrary to what appears often in the Pedagogical
Political Project. This contradiction is because authoritarianism played is the result of a
dominant culture that does not consider children as essentially important beings and
therefore worthy of respect.

Keywords: school discipline , literacy, educational guidance


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO……………………………………………………………………….10

CAPÍTULO 1 – A escola como agente disciplinador ………………………...21

1.1- A concepção de (in)disciplina ...............................22


1.2- Os mecanismos de controle aos alunos ..............26
1.3- A postura autoritária do diretor ............................29

CAPÍTULO 2 – A RELAÇÃO PROFESSOR E ALUNO NA


(DES)CONSTRUÇÃO DA (IN)DISCIPLINA .....................................................31

2.1- A autoridade do professor frente ao aluno .............32

2.2 – A liberdade da criança em sala de aula .................36

2.3 – A desmotivação dos alunos indisciplinados ........41

CAPÍTULO 3 – O COTIDIANO DA ORIENTAÇÃO FACE AOS PROBLEMAS


DE INDISCIPLINA.............................................................................................45

3.1 – A ineficiência do atendimento individual...............46

3.2 – A convocação dos responsáveis ...........................50

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................53

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................55
INTRODUÇÃO

Meu processo de formação como professor teve, obviamente, variadas


influências. A visão de mundo que tenho hoje, base para as relações que desenvolvo
com alunos e colegas de profissão, foi construída ao longo da minha vida, através de
experiências, marcantes ou não, no seio familiar, na rua, onde ficava brincando boa
parte do meu dia, na igreja, já na minha juventude, e, principalmente na escola e na
faculdade. Essa já longa caminhada com todas as suas peculiares curvas e algumas
poucas retas forjou minha personalidade, que nem sei se posso chamar de minha, pois
sua expressão depende, indubitavelmente, dos que me rodeiam também.

Assim como acontece com todo mundo, a escolarização imprimiu em mim,


devido as fortes experiências e longo período dentro da instituição, uma maneira de
enxergar a vida bem característica. Por isso, meu foco nessa ‘novela’ de formação será a
minha trajetória escolar. As opções que faço hoje são, certamente, resultado de o que e
como apreendi das, nas e pelas vivências nos diversos colégios por onde passei durante
um bom tempo da minha existência.
Não tenho muita lembrança da minha entrada na educação infantil, que
chamávamos naquela época Jardim de Infância. Na verdade não está muito claro para
mim se a minha experiência de escolarização inicial na foi na pré-escola ou na
Alfabetização mesmo. Lembro, contudo, que foi um momento bem legal,
principalmente pela professora da quem, apesar não me recordar mais o nome, ainda
vejo contornos do rosto quando penso. Era tão amável que não me lembro de um modo
sequer de disciplina que tenha lançado mão. A sala de aula era um pouco pequena, na
verdade era uma casa adaptada. Vagamente, consigo lembrar das brincadeiras com
marionetes, com massinhas de modelar, do recreio, da merenda – meu pai preparava pão
com banana todos os dias - , mas o que acho que nunca vou esquecer mesmo é de
quando meu irmão entrou na escola. Ele não se adaptou, chorava muito e, depois de
diversas tentativas, minha mãe resolveu tirá-lo naquele momento. Não sei se isso foi
positivo ou negativo para ele a longo prazo, mas significou que eu teria que encarar
meus primeiros passos sozinho.
Quando fui para primeira série as coisas mudaram radicalmente. Com muito
receio, assim como a maioria das crianças da minha classe social, fui transferido para
um colégio público, cujo nome era E. E. WILLIAN ANTUNES DE SOUZA, se eu não
estiver enganado. Senti na pele a mudança de um ambiente quase angelical para um

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ambiente com expressões de violência e hostilidade. Não esquecerei jamais de um
colega, se é que posso classificá-lo assim, que me ameaçava quase que diariamente e me
cercava na rua querendo me bater. Ia estudar com medo de encontrá-lo. Ainda lembro-
me do seu rosto, mesmo desejando esquecer definitivamente.

Um trauma, também, foi a experiência que tive com minha professora da


segunda série. Como não conseguia entender a lógica da conta de dividir, inventava os
números para colocar no lugar da resposta. Não tinha coragem de perguntar a víbora,
digo, a tia, como chamávamos obrigatoriamente. Além disso, tinha vergonha, imposta
psicologicamente e inconscientemente pelos meus colegas, através de um desempenho
acima do meu. Minha expectativa, já que não tinha esperança de aprender mesmo, era ir
preenchendo o lugar das respostas, tentando com isso enganar a docente até que
mudássemos de tarefa. Porém, um dia ela me pegou pelo pé e – é como se estivesse
vendo agora – na sua mesa, publicamente, me constrangeu de tal forma que não
consegui me conter e chorei, como um bebê com fome, mas com muita raiva também.
Estava exposto sem nenhuma defesa e ela não se mostrou preocupada com isso.
Apesar da humilhação que me impôs, a professora tentou mais uma vez, do seu
jeito, me ensinar, porém não teve jeito, pois travei completamente. Por mais que ela me
explicasse eu não aprendia e pensava ser realmente incapaz. Foi horrível, mas depois
daquele dia, não através da professora, que pensava que aprendizado não está
relacionado com expressões de amor, mas por meio de alguns colegas que se
sensibilizaram com o meu drama pessoal, finalmente consegui aprender a maldita conta.
O sentimento de superação, assim como a atitude dos meus colegas ficaram guardados
num lugar bem especial na minha memória, embora não lembre o nome de nenhum
deles.
As duas séries seguintes passei no C. E. ELIZA MARIA DUTRA, que se
localiza no bairro de Sacramento – SG – RJ. Aqui as coisas já começam a ficar mais
claras na minha cabeça. Por exemplo, consigo lembrar de vários colegas desse
momento. Fábio, que inclusive estudou também na UFF, e o Altivo eram os melhores
da turma, tanto no quesito nota, quanto no quesito comportamento. Mas nenhum deles
foi o meu melhor amigo. Lembro-me muito bem de um ‘irmão’, a quem chamávamos
simplesmente Léo. Conversávamos muito, ao ponto até de atrapalhar a aula, segundo a
professora, de quem falarei depois.

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Duas coisas me marcaram na minha relação com esse amigo, mais chegado que
um irmão. A primeira foi à alegria que tinha esse moleque. Sempre brincando, zoando,
sorrindo o tempo todo. Erámos parceiros de carteira e um ajudava o outro nas tarefas,
apesar de eu ajudar bem mais. A outra coisa, da qual não conseguiria esquecer nunca,
foi a sua prematura morte, algo que aconteceu de repente e sem muitas explicações.
Soubemos apenas que ele tinha passado mal, após comer um lanche contendo
mortadela, vindo a morrer a caminho do hospital.

Fora nesse período também que meu pai teve que ir, pela primeira e única vez,
me defender na escola. Sofri agressões verbais e físicas de um colega da turma, que
além de ser bem mais alto do que eu, só andava em grupo. Resisti bastante, até porque
era vergonhoso chamar o pai para resolver seus problemas, mas foi a opção que me
restou naquele momento. A ‘visita-socorro’ do meu pai, obviamente, não elevou meu
status na escola, mas serviu para que as agressões cessassem definitivamente.

Deixando a tristeza de lado, volto-me para a professora, que para nossa


satisfação fora a mesma na terceira e quarta séries. Era carinhosa, amiga de todos,
ensinava com alegria e, além de tudo era bonita, algo que, certamente, ajuda na
aprendizagem. Ela era realmente uma professora. Foi com ela meu primeiro passeio
escolar. Uma excursão para Petrópolis, quando, além da alegria de sair da escolar,
pudemos conhecer vários patrimônios da nossa História Brasileira. Um dia inesquecível
e de muitas aprendizagens, sobretudo, afetivas.

Experimentamos com ela também momentos de tristeza. Seu filho ficava


junto com a gente em sala de aula, o que ajuda a animar e bagunçar ainda mais o
ambiente. Porém, quando estávamos próximo do dia dos pais e nos mobilizávamos para
confecção de lembrancinhas ou quando lembrávamos por algum motivo da figura de um
pai, o clima ficava pesadíssimo. O esposo da professora e pai do menino havia sido
assassinado de forma brutal e isso estava muito vivo na memória deles. Foi uma
experiência muito dura para ela, que acabou de certa forma contribuindo para que
estreitássemos ainda mais nossa relação, repercutindo em nossa aprendizagem e
formação pessoal.

A E. E. FREDERICO AZEVEDO foi onde passei todo o meu antigo ginásio e


conclui meu Ensino Fundamental. Esse momento foi marcado por boas amizades,
apesar de me recordar de algumas brigas também. Em uma delas, inclusive, eu fiquei

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tão furioso que não respeitei nem a professora da biblioteca, invadindo a sala dela para
pegar o garoto que havia me provocado e corrido para lá a fim de se esconder. Bati nele
lá mesmo para estranhamento da docente, que disse que eu a estava decepcionando, pois
me conhecia como um aluno tranquilo e com bom comportamento. Depois, pedi
desculpas a ela em meio a uma bronca.

Curiosamente, não tive um melhor amigo nessa escola, mas sim uma melhor
amiga. Adriana tinha muitas qualidades, contudo a que ficava mais evidente, mesmo
para quem a acabasse de conhecer, era a meiguice. Parecia tão frágil que recebia de
todos um tratamento de irmão mais velho. Outros amigos merecem destaque, tais como:
Rubem, o mais engraçado; Marco, o mais pretensioso e o que fazia mais sucesso com as
gatinhas; Ramon, também famoso; Paulo César, mais conhecido por PC e um dos mais
tímidos e Rodrigo, o mais falante e o que namorou a menina mais linda da turma. Esse
não se encontra mais entre nós. Morreu num trágico acidente de carro. Era uma galera
boa, com a qual ainda tentei manter amizade, mas os nossos caminhos se distanciaram.

Por incrível que pareça, não consigo me lembrar do nome de nenhuma


professora ou professor, mas a avaliação utilizada por eles era, geralmente, com caráter
reprodutor (decoreba). Disso eu lembro e sei que não significa nenhuma novidade. Era
um colégio considerado bom, mas foi nele que eu fiquei pela primeira e única vez em
recuperação. Foi horrível porque tive que administrar a ameaça do meu pai, que se
repetisse de série levaria uma coça, com a pressão da professora que disse que não iria
aliviar na prova por vingança mesmo. Mas, foi importante para mim porque estudei
(decorei) tudo e passei na prova oral de maneira brilhante sem errar nada. Valeu pela
experiência de superação e não pelo conhecimento, pois não me lembro de
absolutamente nada do demonstrei saber no momento de avaliação.

O ponto alto desse período foi, indubitavelmente, as Olimpíadas da oitava


série. Minha turma era imbatível no voleibol e isso me enchia de orgulho, mesmo sem
nunca fazer parte do time titular. Apresentamo-nos com autoridade, sem dar chance para
o azar e, naturalmente, ganhamos a medalha de ‘ouro’, que guardo até hoje mesmo
enferrujadas. Além do prazer de fazer parte do time, foi legal porque essa competição
nos uniu ainda mais, fortalecendo nossa amizade que parecia eterna.

Apesar dos inúmeros momentos de alegria vividos, minha visão a respeito do


estudo começava a mudar radicalmente. Já não tinha ânimo pra ir para o colégio,

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“matava” aula quase todo dia e fazia as provas recorrendo sempre às “colas”. Era um
martírio ter que copiar do quadro, fazer as atividades no caderno, estudar para prova,
etc. Estava ‘chutando o balde’, só pensava em sair da escola para trabalhar e ganhar
meu dinheirinho. O que me prendia lá ainda era a exigência do meu pai para que
terminasse o ensino fundamental, o que consegui ‘aos trancos e barrancos’.

Depois de dois anos afastado da escola e percebendo que para obter um


emprego melhor do que o que eu tinha de servente de obra teria que concluir pelo
menos o ensino médio, resolvi voltar a estudar. Com a ajuda de um primo-irmão,
retornei para o mesmo colégio onde cursara a terceira e quarta séries. No início foi um
pouco difícil a readaptação à rotina escolar, mas em pouco tempo superei essa barreira
ao mesmo tempo em que me entrosava com alguns colegas, que se tornaram grandes
amigos e amigas. Nossa amizade, inclusive, ultrapassou os limites da instituição.
Apesar da alegria pelas experiências com os colegas, dois aspectos negativos se
tornaram marcantes nessa época. Primeiro, fora a falta de professores, algo que nos
prejudicou muito quando buscamos uma vaga na universidade. Não tínhamos aula de
física, matemática e química, embora haja notas no nosso histórico. Outro ponto muito
criticado por nós que estávamos interessados em aprender realmente está relacionado à
qualidade do trabalho docente. Havia uma displicência comum por parte dos professores
que garantia consequentemente que ninguém fosse reprovado. Hoje vejo que talvez
fosse uma opção política da parte deles para que todos nós trabalhadores tivéssemos um
diploma. Entretanto, quando optei por fazer um curso universitário, não me vi em
condições de concorrer.
Depois, por sempre gostar de ensinar e também pelo desejo de me formar,
ingressei no curso de pedagogia da universidade Estácio, cujo vestibular não significou
um empecilho, como previa. A dificuldade que encontrei foi para pagar o curso. Em
poucos meses, percebi que não teria como dar continuidade por questões financeiras e,
então, decidi fazer o vestibular para UFF. Motivado por um amigo, comecei a estudar
em casa, fazendo resumos e esquemas para decorar os conteúdos. Valeu a pena porque
garanti minha vaga naquela que tinha a fama de ter o melhor curso de pedagogia da
América Latina.
Desde então, minha formação tem sido muito abrangente e crítica. Tenho
aprendido a olhar o mundo com mais consciência. Com uma visão mais apurada e
marxista. Sendo mais cuidadoso ao defender a ciência ou qualquer opção política. Hoje,

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sei onde me encontro, de qual classe pertenço, contra o quê e quem preciso lutar.
Entendo perfeitamente que não dá mais pra ser neutro, mas que preciso ser partidário
sim, da classe trabalhadora e explorada, da qual faço parte.

Compreendo, também, que a escola vem cumprindo historicamente uma


função reprodutora dos valores e ideologias que buscam manter uma estabilidade na
sociedade, que interessa principalmente a classe dominante. Assim, tenho refletido,
diariamente e angustiadamente, sobre o meu papel nessa instituição, que pelas práticas
autoritárias recorrentes vem me afrontando o tempo todo, mas onde também encontro e
experimento muitas manifestação de carinho, que apontam para uma esperança de
reencantamento.

Essa caminhada pela graduação desvelou ainda, principalmente pelas leituras


de e relacionada a Paulo Freire, que ensinar não é uma atividade simples, como
transmitir algum conhecimento pronto, neutro e absoluto. Não é, portanto, apenas uma
questão metodológica, embora envolva rigor e persistência. Ensinar envolve muito mais
do que a consideração pelo aspecto cognitivo do aluno, mas um compromisso com a sua
formação integral. Elementos como o respeito pelo saberes dos educandos, a afetividade
na relação e a ética como pautadora de todo o processo ensino-aprendizagem são
indispensáveis na vida do professor que pretende ser mais um agente de transformação
do mundo.

Durante a minha escolarização e até hoje me inquieta a maneira autoritária


como muitos profissionais, se valendo da hierarquia e do consequente poder de punição,
desrespeita os estudantes, na expectativa de que se calem e se enquadrem numa
estrutura disciplinar, cuja elaboração, quase sempre, se deu fora do contexto local. Essa
espécie de cultura do ‘cala a boca porque não te chamei na conversa’ está presente,
infelizmente, impregnando toda a atmosfera, fazendo com que os alunos se sintam
constantemente confrontados. Alguns, então, reagem e entram no grupo dos que são
ameaçados, diariamente, de suspensão.

Por isso, me proponho neste trabalho a discutir as relações na escola,


exclusivamente as que envolvem as formas de lidar com um grupo específico de aluno,
formado por aqueles que são classificados como indisciplinados. Quase sempre,
justificam o comportamento desajustado relacionando-o à ineficiência dos pais na
educação dessas crianças. Mas, e se mudarmos o foco, direcionando-o para dentro da

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instituição de ensino? Será que a suposta rebeldia de alguns estudantes não poderia ser
um reflexo, até legítimo, da falta de diálogo e respeito àqueles que querem e não abrem
mão de participar da construção de seu próprio espaço? Não seriam alguns atos de
indisciplina uma reação aos constantes abusos e violações sofridas? Rediscutir as
relações do e no cotidiano da escola no que diz respeito ao caos, também chamado de
indisciplinas nas salas e corredores, parece-me urgente.

Não tenho como objetivo, obviamente, apresentar uma saída para todos os
problemas indisciplinares na escola. Seria até uma contradição ao que já disse a respeito
de minha formação como professor, uma vez que revelaria uma postura autoritária ao
ser transmissor uma receita. Na verdade, a situação da indisciplina na escola tem se
mostrado muito complexa para que se aponte uma resposta padronizada. Não pretendo,
portanto, criar mais um regimento escolar, que são cada vez menos eficazes nos seus
artigos que se propõe a solucionar os casos de indisciplina.

Minha expectativa, por outro lado, é, através de relatos de companheiros e de


situações do meu cotidiano, atravessados por teorias selecionadas que discutem as
questões envolvendo a indisciplina escolar, analisar esse tema, sugerindo alternativas
que priorizem a emancipação dos alunos.

Também buscarei mostrar, mergulhando no meu cotidiano de trabalho e nas


pesquisas, como que a escola, de um modo geral, desenvolve práticas autoritárias,
contrariando o que consta, muitas vezes, no Projeto Político Pedagógico. Essa
contradição acontece porque o autoritarismo reproduzido é fruto de uma cultura
dominante, que não considera as crianças como seres igualmente importantes e dignos
de respeito. O primeiro passo para transformar esse olhar que despreza a criança é
reconhecer que ele existe.

A relevância desse trabalho está em poder suscitar discussões que levem a


desnaturalizar as situações chamadas de indisciplina no cotidiano da escola. Superando
a máxima de que os problemas de desobediência são decorrentes de pais omissos, ao ler
essa monografia poderá se chegar a outras conclusões. Tal como a de que os exemplos
de rebeldia podem ser uma forma de protestar contra a estrutura disciplinar, que tem
como objetivo estabelecer a harmonia pelo silenciamento das crianças.

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Mais do que desnaturalizar, esse trabalho é importante, também, porque pode
contribuir para a implementação de projetos e planos de ação específicos de
enfrentamento das questões indisciplinares. Embora procure olhar a partir do meu ponto
de vista como orientador educacional, por se tratar exatamente do comportamento do
aluno e suas implicações, essa produção será útil a todos que se interessam pela
qualidade da escola.

Poderá ainda ser, inclusive, de grande valia para o professor da classe de


alfabetização que quer abrir mão da ameaça como elemento principal para manter a
organização de sua sala de aula. Isso porque o viés teórico que atravessa todo esse
trabalho defende uma proposta curricular baseada no respeito ao educando,
considerando-o como sujeito histórico e principal responsável pelo seu próprio
conhecimento. Ao optar por esse caminho, a disciplina será um processo construído
através do diálogo constante.

O pano de fundo deste trabalho será, principalmente, meu próprio


ambiente de trabalho, onde convivo diariamente com a inquietação ao presenciar
situações de autoritarismo. Uma escola que fica no bairro de Manilha, município de
Itaboraí, frequentada por mais de mil alunos diariamente. Exerço minha função,
atualmente, no segundo turno com o ciclo de alfabetização, mas tive a oportunidade de
atuar também na EJA no ano de 2013.

Depois de passar no concurso, comecei a trabalhar nessa escola como


orientador educacional, sendo minha primeira experiência nessa função. Encontrei um
contexto muito desafiador, com muitos casos de desrespeito entre os alunos e, também,
envolvendo profissionais da escola, como professores, inspetores, dirigente de turno e
gestores. A escola havia passado por uma ‘rebelião’, quando um grupo de alunos
insatisfeitos com a direção colocou fogo em lixeiras e quebrou diversos objetos que
faziam parte do patrimônio público. Quando cheguei era nítida a preocupação dos
professores com o rumo da escola, naquele momento já com uma nova direção.

Desde então, comecei a observar as situações de indisciplina, analisando,


inclusive, as atitudes dos profissionais envolvidos. A partir disso, algumas questões
surgiram a respeito das relações desenvolvidas na escola: o atendimento individualizado
é o caminho mais interessante para a resolução de conflitos? Chamar o responsável do
aluno tido como indisciplinado fará o aluno melhorar, ao ser ameaçado pela mãe ou pai,

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como quase sempre acontece? Suspender o aluno por três dias o levará a refletir sobre o
comportamento considerado indisciplinado, como defende alguns professores e
inspetores? Qual a responsabilidade da escola na produção do contexto para a
indisciplina? Qual o papel do professor na desconstrução da indisciplina? Essas são as
questões fundantes deste trabalho.

Gostaria que essa monografia fosse lida por todos os que trabalham em escola,
mas principalmente por professores. São eles, indubitavelmente, que podem, na relação
mais direta que tem com os alunos, desenvolver um novo projeto, baseado no diálogo e
na interação, superando a fórmula tradicional de hierarquia e reprodução.
Potencialmente, os docentes são os principais responsáveis por essa mudança de
paradigma na escola.

Para desenvolver essa discussão sobre a indisciplina na escola tomarei como


referência teórica diversos autores, mas, sobretudo, aqueles que considero
indispensáveis ao tema. Esses autores selecionados se debruçaram por mais tempo sobre
as questões diretamente ligadas aos tópicos deste trabalho, se falar da afinidade
ideológica que tenho com eles. Não seria possível este trabalho sem a contribuição
teórica deles.

Quando comecei a pensar sobre o problema da indisciplina na escola, o


primeiro livro que me veio à mente, lembrando, também, das diversas vezes que fora
citado durante a graduação, foi “Vigiar e Punir” (1975), do consagrado autor francês
Michel Foucault. Ele nasceu em Poitiers em 1926, tendo durante boa parte dos seus 58
anos de vida se dedicado à crítica aos sistemas físicos e ideológicos que aprisionavam as
pessoas, principalmente as da classe trabalhadora. Tinha como objetivo não só através
de seus escritos, mas participando diretamente de movimentos sociais, a libertação
político-ideológica do povo, ao mostrar as contradições dos mecanismos de controle
utilizados pelo Estado. Esse autor me ajuda a pensar o real objetivo de alguns modos
de disciplina na escola, destacando também sua ineficiência para promoção de uma
instituição definitivamente democrática.

Nessa mesma linha de crítica ao sistema dominante, mas se detendo mais


diretamente às questões da escola, Paulo Freire é obrigatório para qualquer pesquisa em
educação. Certamente, é o autor mais respeitado no Brasil pelos pedagogos, mas sua
produção influencia muitas outras áreas também. Sua teoria abarca muitas das nuances

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da vida, envolvendo temas de política, ética, psicologia, espiritualidade, etc. Ele defende
que o educando seja respeitado, devendo ser, portanto, o ponto de partida e chegada de
todo projeto pedagógico. Para ele, o aluno não é apenas absorvente de conhecimentos
do professor, mas sujeito de seu próprio processo de aprendizagem. O mestre, nesse,
sentido não detém todo saber e, consciente disso, deve construir, portanto, em parceria
com o discente a trajetória cognoscente. Esse autor tem sido muito importante na minha
formação como educador e, por sempre fazer referência a ele na escola, os professores
brincam comigo chamando-me de freireano durantes os momentos de planejamento.
Aqui na monografia, sua teoria é base quando discuto as relações de poder na escola.

Dentre muitos autores que cito na monografia, gostaria de destacar como base
para este trabalho, também, a experiente e consagrada Mírian Grinspun, nos escritos da
qual venho buscando referências práticas e teóricas para o trabalho como orientador
educacional. Ela tem diversos livros produzidos tendo como foco o trabalho do OE e do
supervisor. Embora não tenha uma visão tão crítica da estrutura da sociedade, como os
autores citados nos parágrafos anteriores, ela contribui para uma noção mais atualizada
e abrangente no que diz respeito ao trabalho deste profissional, cuja principal função
tem sido, de acordo com relatos nos momentos de encontro de formação, promovidos
pela secretaria de educação, resolver problemas de indisciplina na escola. No
desenvolvimento desta monografia, portanto, tomarei de sua teoria para analisar minha
própria prática ao discutir o cotidiano do meu trabalho.

No capítulo I, detenho-me, em primeiro lugar, sobre o conceito disciplina e


indisciplina, que são inseparáveis no processo de análise. Além disso, dou destaque,
fazendo ao mesmo tempo uma crítica, aos mecanismos de controle na escola. Finalizo,
abordando a figura daquele que ocupa o cargo de direção, que, na maioria das vezes,
prefere se assemelhar mais a um general do que a um gestor educacional.

Como não poderia deixar de trazer à discussão, no capítulo seguinte, analiso a


relação entre professor e aluno na (des)construção da (in)disciplina em sala de aula.
Nesse momento, de forma não muito abrangente, desenvolvo sobre o polêmico tema da
autoridade do professor. Utilizando-me, sobretudo, de uma pesquisa realizada num
colégio em Niterói, quando ainda estava no terceiro período de faculdade, o que revela
que esse tema me habita a muito tempo, trato da liberdade do aluno em sala de aula.

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Ainda nesse capítulo, aproximo-me do que tem sido apontado como o principal gerador
da indisciplina: a desmotivação dos estudantes.

Finalmente, no terceiro e último capítulo, discorro sobre o meu trabalho no


cotidiano da escola, envolvendo alguns aspectos que considero relevantes dentro do
tema da indisciplina. O primeiro deles diz respeito ao encaminhamento constante de
alunos a mim, como instrumento de punição ou para se livrar momentaneamente.
Depois, falo da convocação de responsáveis como recurso para superação de conflitos e,
por último, destaco a função da suspensão, sendo o elemento disciplinar mais temido
pelos alunos.

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CAPÍTULO I

A ESCOLA COMO AGENTE DISCIPLINADOR

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Penso que a escola, apesar de estar constantemente buscando soluções para o
problema da indisciplina, é também responsável pela existência de agressividade e
conflitos em seu meio. A postura autoritária, sobretudo daquele que está na direção,
porque é a referência para todos, a utilização de mecanismos de controle, que cerceiam
a expressão espontânea e tenta estabelecer um comportamento padrão e a concepção
equivocada de disciplina ou indisciplina existente concorrem também para surgimentos
de casos de revolta na escola. A indisciplina seria, nesse caso, uma reação à opressão.

Na escola analisada isso também acontece, pois observo que muitos casos de
indisciplina estão ligados à tentativa de repressão e enquadramento dos alunos. A
própria estrutura arquitetônica contribui para a manutenção de uma atmosfera fria e
hostil com corredores e grades semelhante a uma prisão. São submetidos também a uma
vigilância pelo sistema de câmeras, tendo que conviver com o constrangimento de estar
sendo filmado permanentemente. Somado a isso, a postura autoritária da diretora os faz
parecerem inimigos que precisam ser combatidos. É nesse contexto que brota
inimizades e violências.

A concepção de (in)disciplina

Para falar em indisciplina é preciso pensar o que entendemos como disciplina.


Na escola a disciplina é confundida, muitas vezes, com silêncio, o não sair da fila, o
ficar sentado um atrás do outro, o falar quando é solicitado, o copiar do quadro
exatamente como expresso, etc. São atitudes, que vem, verticalmente, de cima para
baixo, não dialogadas e que prejudicam o desenvolvimento da autonomia do aluno.
Quando este reage e questiona é classificado, portanto, como indisciplinado.

Aquele, por exemplo, que consegue fazer com que os alunos atendam,
passivamente, seu comando e cumpram as regras destacadas acima, é considerado um
bom professor, porque ‘tem domínio da turma’, mesmo que esse suposto domínio seja
alcançado através de ameaças e gritos, enquanto que aquele que desenvolve um trabalho
de diálogo, estabelecendo acordos por respeitar os alunos, mas com alguns desajustes de
comportamento é classificado como fraco.

A concepção de disciplina na escola ao que me parece não está bem resolvida.


Essa foi, sem dúvida, uma das maiores dificuldades quando comecei a dar aula em

22
escolas públicas. Tive que conviver como um malabarista essa tensão entre estabelecer
uma relação de parceria sem abrir mão da autoridade como docente. Quando cheguei,
por exemplo, à sala de aula, depois de passar num concurso do município de São
Gonçalo, me deparei com crianças se agredindo e gritando umas com as outras, não
sendo possível a comunicação por mais alto que se tentasse falar. Minha principal
função naquele momento era separar a brigas e tentar preservar a integridade física
delas. Muitas vezes, tive que tirar os brigões de sala e contar com a ajuda de inspetores,
que os deixava sentados em cadeiras que ficavam corredor. Não via outa alternativa,
naquele início, para tentar construir um ambiente em que se pudesse haver conversa e
amizade. Com o tempo os casos de violência diminuíram, mas a turma continuou
agitada e tive que conviver com os comentários de que eu não tinha domínio de turma.
Situação que se repetiu também quando trabalhei na rede pública de São João de Meriti.
Percebo, então, que não chegamos a uma compreensão do que seria
indisciplina na escola, principalmente dentro das quatro paredes da sala de aula. Gosto
da definição do Celso Antunes que conecta a disciplina à qualidade do ensino-
aprendizagem, sendo, por conseguinte, uma turma indisciplinada aquela que:

“não permita aos professores oportunidades plenas para o


desenvolvimento de seu processo de ajuda na construção do
conhecimento do aluno; não ofereça condições para que os professores
possam ‘acordar’ em seus alunos sua potencialidade como elemento de
autorrealização, preparação para o trabalho e exercício consciente de sua
cidadania; não permita um trabalho consciente de estímulo às habilidades
operatórias, ao desenvolvimento de uma aprendizagem significativa e
vivências geradoras da formação de atitudes socialmente aceitas em seus
alunos” (Antunes, 2012, pag. 228)

A busca pela disciplina, desta forma, sairia do foco pelo controle para
dominação e se relacionaria à garantia de possibilidade de trabalho. Ao defender uma
organização na turma, cujos comportamentos não estivessem permitindo a
aprendizagem, o professor demonstraria, principalmente, sua preocupação com a
qualidade de seu trabalho pedagógico e compromisso com o desenvolvimento de seu
aluno. Este noção eleva a disciplina a um patamar de respeito aos estudantes.

23
Assim, o aluno que se apresenta de maneira indisciplinada precisa de uma
intervenção que o conscientize de que sua relação com seu professor e com seus colegas
tem sido negativa porque prejudica o seu desenvolvimento e de toda turma. A
abordagem, então, é facilitada já que, em princípio, docente e discente tentam buscar
algo de interesse mútuo: a aprendizagem.

Infelizmente, no meu dia a dia de trabalho comprovo que a preocupação com a


aparência tem sido dominante. Quando visito as salas, os professores, quase sempre, se
sentem desconfortáveis quando os alunos estão de pé ou falando alto. Isso demonstra
que há um senso comum de que a melhor classe é aquela em que os alunos estão em
silêncio e sentados nos seus devidos lugares. A disposição das carteiras revela também
essa inquietação, pois são colocadas de forma a não incentivar a conversa entre os
estudantes. Algumas vezes, ao chegar numa turma em que a arrumação fugia à
tradicional, os professores logo justificavam, dizendo se tratar de uma atividade
diferenciada, revelando, com isso, que há um modelo de organização valorizado.
Retomando a questão da concepção de disciplina, tomo também como
referência teoria o autor Celso Vasconcellos, que escreveu um livro específico sobre o
tema. Para ele, “a disciplina escolar tem que ver com o esforço para a construção do
autogoverno dos sujeitos, no quadro de exploração das possibilidades, a fim de criar as
necessárias condições para o trabalho coletivo de aprendizagem.” (Vasconcellos, 2009,
p.93). Sua concepção se aproxima daquela citada anteriormente porque se relaciona
com a emancipação e aprendizagem dos alunos.
Segundo essa definição, portanto, a escola precisa desenvolver meios através
dos quais os alunos possam ser autônomos no seu processo de aprendizagem. Ao
desenvolver a disciplina, portanto, a escolar buscaria o envolvimento de todos e
abandonaria a postura autoritária de tentar cada vez mais diminuir o poder de atuação de
seus alunos, centrando todas as estratégias na equipe diretiva e nos professores.

Porém, quando propus que tivéssemos a participação de alunos nas nossas


reuniões, a diretora tentou me desqualificar e minha ideia foi completamente rechaçada.
Ainda precisamos trilhar um caminho, que ainda parece longo, em direção a uma escola
realmente democrática. Por isso, apresentei para o nosso tema anual a seguinte
expressão: ‘escola um lugar de luta pela democracia’. Tinha intenção de que, em
primeiro lugar, reconhecêssemos a escola como um lugar que não privilegia a

24
participação de todos, principalmente dos alunos, e, consequentemente, trabalhássemos
(lutássemos) em busca disso. Não é novidade dizer que a proposta foi rejeitada.
Quem trabalha mais profundamente esse tema que discuto, sendo indispensável
na abordagem porque contribui para entendermos os objetivos finais das disciplinas é o
francês Michel Foucault, que as concebe como os “métodos que permitem o controle
minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e
lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade" (Foucault, 1975, p. 133). Nessa
definição está explicito esse aspecto do domínio, como se busca o tempo todo na escola
ao submeter seus alunos a comandos e regras construídas sem a participação deles.

Além da questão do domínio, está claro, também, que as disciplinas têm, na


maioria das vezes não exposto, um objetivo, descrito por Foucault como ‘docilidade-
utilidade’. Ao insistir que os alunos permaneçam em filas, que fiquem quietos na sala,
que aceitem os comandos de voz e sinal imediatamente, etc. os profissionais da escola
estão tentando formar um modelo de sujeito que não questiona os valores e ideias
preestabelecidas, sendo apenas um reprodutor fiel. Desta forma, não há expectativa de
transformação social, tão difundida nos meios educacionais.

Esse conservadorismo, inerente aos atos disciplinares, faz parte de um projeto


maior da classe dominante, que visa “controlar a instituição escolar, uma vez que esta se
constitui num veículo dos mais eficientes para reproduzir a sociedade de classes, ao
segregar os alunos classificando-os de acordo com sua classe social de origem” (Milet,
in Garcia, 1990, p.39). Poucos são os que conseguem emergir desse sistema e alçar voos
mais altos, exemplos que não podem ser tomados como contradição, mas como exceção
que confirma a regra.

Quem também concorda com essa dimensão política da disciplina nas


instituições é Foucault ao dizer que “ela aumenta as forças do corpo (em termos
econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de
obediência)." (Foucault, 1975, p.134). Acredito que, geralmente, os profissionais da
escola não têm consciência dessa capacidade alienante intrínseca aos procedimentos de
controle, o que reforça a tese de que o nosso espaço/cotidiano de trabalho deve ser
colocado sobre à mesa para análise.

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Os mecanismos de controle

Depois de discutir sobre as concepções de disciplina, neste tópico, minha


atenção se volta para os mecanismos de controle na escola. Para exercer a função
disciplinalizadora, essa instituição se apossa de diversos instrumentos e meios já antigos
que se assemelham aos utilizados em prisões. As câmeras estrategicamente localizadas,
a arquitetura predial, que favorece a vigilância, o posicionamento dos inspetores, como
guardas militares e as grades, que impedem a circulação difusa, fazem com que nossa
escola se configure, lamentavelmente, num lugar muito parecido com aquele reservado
para criminosos.

Pela escola temos câmeras espalhadas, de tal forma que, com exceção das
salas, toda a área, envolvendo quadra, refeitório, pátio e corredores, está coberta pelo
sistema de vigilância. Os alunos são sempre advertidos de que estão sendo vigiados e
que não poderão escapar das gravações, que acontecem ininterruptamente. Já dizia
Foucault que “o aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar tudo ver
permanentemente” (Foucault, 1975, p.167).

As câmeras foram colocadas após um grupo de alunos se insurgir contra a


direção e colocar fogos em lixeiras e quebrar carteiras, discordando do modo como
estava sendo conduzida a gestão escolar. A justificativa para colocação dos
instrumentos era a intimidação dos ‘rebeldes’, ao alegar que as imagens seriam usadas
contra eles num processo judicial. Assim, essas vigias eletrônicas contribuem para a
função repressora da escola.

De sua sala, através das imagens captadas pelas câmeras, a diretora vigiava
alunos e profissionais da escola. Muitas vezes, utilizava as gravações para pressionar
aqueles que, na sua avaliação, apresentavam comportamento inadequado. Por causa
disso, muitas vezes, alertava, jocosamente, quando estávamos fazendo alguma crítica,
de que ela estava nos vendo e poderia fazer leitura labial. As câmeras eram suas fiéis
companheiras de gestão, um posto que não poderia ser alcançado por ninguém da
equipe diretiva.

Portanto, com esse recurso de ampliação do olhar, a diretora potencializava


ainda mais o poder que não se constrangia em demonstrar a todo instante,
principalmente sobre os alunos, os quais se configuravam como oponentes ao modelo

26
de gestão autoritário, que tentava implantar na escola. Na verdade, segundo Foucault, “o
exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar: um
aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder” (Foucault,
1975, p.165). Através das câmeras, ela estendia seu olhar/poder, tornando-o ainda mais
eficiente, algo impensável sem esses instrumentos, mesmo que cooptasse alguns para
serem ‘X9’, apesar de haver denúncia de que fazia isso também.

Outro aspecto que concorre para a função disciplinadora da escola é a própria


arquitetura predial, parecendo um presídio, principalmente a parte superior, onde se
concentra a maioria dos alunos. São dois corredores, um bem extenso, em que nas
laterais ficam dispostas as salas de aula, cujas portas são de ferro para resistir aos
chutes. Além disso, quase não entra iluminação externa, tendo que ficar com as
lâmpadas acesas o dia todo. Um espaço que, se tirado uma foto e a mostrasse para quem
não é da escola, poderia se chegar à conclusão de que se trata de uma casa de detenção,
apesar de que, infelizmente, muitas escolas apresentam também esse perfil
arquitetônico. Na verdade, ninguém pode se sentir motivado a estar ali, pois, parece que
foi realmente construído apenas para deter os ‘impulsos imorais’ de uma classe
estigmatizada.

Essa estrutura de construção permite que de um só ponto, um inspetor visualize


toda a extensão dos dois corredores, sendo possível, geralmente, aos gritos, alertar quem
tivesse andando por aquele espaço em horário inadequado. Esse modelo nos remete a
figura arquitetutal do panóptico, descrita por Foucault em sua obra “Vigiar e Punir”,
tendo como objetivo “induzir no detento um estado consciente e permanente de
visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder” (Foucault, 1975,
p.191). O inspetor, embora não seja o poder maior, é o seu representante, pois é aquele
que conduz à punição, enquanto que os alunos se transformam, ao serem submetidos a
essa estrutura, em alguém muito perigoso que precisa ser vigiado sempre.

Por se tratar de uma construção finalizada, cujas estruturas de base não podem
ser alteradas, ao não ser por completa demolição, não há muito do que se fazer para
mudar aquele cenário, que contribui ainda mais para o desânimo dos alunos em estudar.
Até porque a estrutura predial pode revelar muito o modelo de educação proposto numa
escola. Numa entrevista que deu ao site ‘Nova Escola’ o coordenador da ‘Escola da
Ponte’, José Pacheco, demonstrou essa preocupação com a arquitetura de sua

27
instituição, que se baseia em três grandes valores: a liberdade, a responsabilidade e a
solidariedade. Era preciso construir uma nova estrutura que tivesse coerência com a
esses valores.

Reproduzo aqui a fala do Pacheco, sobre o novo projeto arquitetônico de sua


escola, elaborado por arquitetos que estudaram na unidade e que, portanto,
compreendem a proposta pedagógica:

“inclui uma área que chamo de centro da descoberta, onde


compartilharemos o que sabemos. Há também pequenos nichos
hexagonais, destinados aos pequenos grupos e às tarefas individuais.
Estão previstas ainda amplas avenidas e alguns cursos d'água, onde se
possa mergulhar os pés para conversar, além de um lugar para
cochilar. As novas tecnologias da informação devem estar espalhadas
por todos os lados para ser democraticamente utilizadas pela
comunidade, o que já
conseguimos. (http://revistaescola.abril.com.br/formacao/jose-
pacheco-escola-ponte-479055.shtml).

Pelo que percebo, obviamente, nessa descrição de projeto, é que há um abismo


gigantesco entre a Escola da Ponte e a minha escola. Os governantes, incluído os de
Portugal, onde está localizada a unidade coordenada pelo José Pacheco, não estão
interessados na emancipação dos alunos, por isso, preferem manter toda a lógica de
construção de centros básicos de estudo, onde a arquitetura depõe a favor de seus
interesses, que é manter a classe trabalhadora subalterna e cada vez menos esclarecida
da injustiça social.

Por último, como elemento que coopera para o controle dos alunos na escola,
quero destacar as diversas grades que fecham a passagem que dá acesso aos corredores
da parte superior da escola. Essas grades estão estrategicamente dispostas de modo a
impedir que não haja circulação dos estudantes em horário inapropriado. Embora
possam cumprir uma função de organização, contribuem também para caracterização de
um espaço semelhante a um sistema prisional.

Muitas vezes, tive que pedir que um inspetor abrisse o esse portão de grades
para ter acesso aos alunos, como se eles fossem perigosos. Esses profissionais

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encarregados de controlar a movimentação dos discentes, alegam que não podem deixar
o portão aberto porque eles não respeitam e forçam a passagem, algo do qual têm razão,
pois já presenciei essa atitude algumas vezes. Nesse sentido, as grades são de fato para
reprimir delinquentes, fazendo com que a escola se transforme numa casa de detenção
de menores.

Essa descaracterização da escola é que precisa ser pensada. Não pode ser essa a
escola que queremos, tendo como foco a disciplina, baseada na imposição de regras e na
utilização de mecanismos de controle. A organização que defendo é aquela oriunda da
conscientização. Para isso, é preciso ouvir e não reprimir. Dialogar e não cercear com
grades. Permitir a aproximação sem medo e sem preconceitos, considerando os alunos
como parceiros nesse objetivo de humanizar nosso cotidiano. Como diz Paulo Freire,
‘escola é lugar de gente’. E gente tem que ser amada.

A postura autoritária do diretor

No município em que trabalho, e em muitos outros, o diretor é escolhido pelo


vereador como um afilhado político. Assim, em primeiro lugar, aquele ou aquela que
assume administrativamente uma escola firma um compromisso com um suposto
representante do povo. Já ouvi casos em que a gestora teve que ser cabo eleitoral de um
político influente, fazendo campanha até dentro da escola. As decisões do diretor, em
última análise, nunca poderão contrariar os interesses daquele que o colocou nessa
função. Por outro lado, o novo gestor chega sem qualquer legitimidade, sendo rejeitado
pelo grupo que vai liderar.

Por isso, está na pauta de lutas, a eleição para diretores em que possam
participar da escolha os alunos, professores e pais. Somente dessa forma superaremos a
contradição vigente na escola, que se diz democrática, mas que tem um gestor imposto
de fora para dentro. Segundo Paro (2015, pág. 116), um diretor eleito democraticamente
tenderá a se comprometer com os interesses daqueles que o elegeu e não exercerá um
papel de mero apadrinhado político.

A diretora que dirigiu a escola durante esse período que tomo para análise
assumiu no início do ano de 2014, indicada por um vereador influente na região. Ela
chegou com uma postura muito autoritária, destacando os erros e desqualificando sem

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pudor a gestão anterior. Em sua opinião, nada podia ser aproveitado do ano anterior e
falou, inclusive, que a unidade estava um caos, administrativamente e pedagogicamente.
Com essa postura, ameaçou inspetores e professores, dizendo, inclusive, que iria
devolver alguns à secretaria de educação.

Ela passava a maior parte do tempo sentada em frente a um laptop e


despachava de sua mesa, não dando margem para discussão. O contato com a equipe
diretiva, da qual eu fazia parte, era quase sempre de ordem para fazer alguma coisa. Era
avessa à reunião de equipe diretiva, uma exigência da secretaria de educação. Era
centralizadora e para ter controle de tudo, ela mesma elaborava e digitava todos os
ofícios da escola.

De sua mesa, dirigia a escola baseando-se nas imagens das câmeras, como um
operador de CFTV (Circuito Fechado de TV). Muitas vezes, chamava-me ou a
dirigente de turno para tomarmos alguma atitude diante de alguma situação registrada
pelo sistema de gravação. A atuação dos funcionários também era alvo de suas
observações. Devido a essa maneira de dirigir a escola de sua cadeira, muitos alunos
diziam não conhecer a diretora.

Gostava de ameaçar também os alunos nos raros momentos que tinha de


contato com eles. Lembro de uma vez que se dirigiu a um menino e disse que ele “seria
o próximo a rodar”, referindo-se ao fato de ter excluído (transferido) de uma só vez,
dois adolescentes da escola. Um deles, a enfrentou quando ela tentou humilhá-lo em
público.

Depois de quase um ano, essa diretora não resistiu a insatisfação da maioria e


acabou sendo tirada da escola. Ela tentou imprimir um tipo de gestão, que segundo
Paro, é o predominante na prática de nossas escolas, onde o que prevalece é uma
espécie de autoridade em que “supõe-se obediência às ordens, resultante de um poder
externo, cujas normas de procedimentos foram estabelecidas sem a participação ou
concordância dos que devem obedecer.” (2015, pág. 106). E que, por isso mesmo, não
pode resistir por muito tempo.

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CAPÍTULO II
A RELAÇÃO PROFESSOR E ALUNO
NA (DES)CONSTRUÇÃO DA (IN)DISCIPLINA

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Pelo que observei na minha análise de campo, a disciplina na escola se revela,
principalmente, na relação entre professor e aluno. A maioria dos conflitos acontece
dentro da sala de aula e muitos professores culpam as crianças, alegando que não vêm
educadas de casa. Uma justificativa recorrentemente utilizada, mas que, geralmente, não
favorece a transformação da realidade, pois afasta a possibilidade da autoanálise. Uma
vez, durante uma reunião de planejamento com as professoras do ciclo, iniciou-se uma
discussão porque uma delas alegou que um determinado aluno não deveria ter sido
reprovado pela outra colega, de cuja turma a criança era no ano anterior. A professora
‘atacada’ se defendeu dizendo que o aluno não tinha apoio dos pais e que não fazia as
tarefas de casa, além de apresentar um número elevado de faltas. São argumentos
comuns no cotidiano da escola, mascarando ou impedindo uma reflexão rigorosa da
relação professor e alunos.
Alguns docentes até conseguem lidar melhor com os casos de indisciplina,
quando os envolve como desafios do seu projeto de trabalho, enquanto que outros são
mais radicais e assumem uma postura autoritária, ignorando-os e pedindo
constantemente punição rigorosa para os envolvidos. São esses que entram em conflito
constantemente com os alunos, desenvolvendo uma relação muito hostil com eles.
Por outro lado, muitos alunos também reclamam do autoritarismo dos
professores e dizem que revidaram com ofensa quando foram desrespeitados. Uma
situação delicada para quem é orientador educacional, uma vez que temos que
administrar a tensão existente, ao mesmo tempo em que somos cobrados para sermos
enérgico com os alunos, considerados indisciplinados.
Neste capítulo, a discussão será em primeiro lugar sobre a questão da
autoridade do professor, algo ainda muito polêmico na escola. Em seguida,
rememorando um trabalho de campo que fiz durante a faculdade, discutirei sobre a
liberdade dos alunos em sala de aula, ouvindo alunos e professores a respeito. Por
último, dedico uma parte para tocar num problema que certamente concorre para o os
casos de indisciplina: a motivação dos alunos em estar numa sala de aula.

A autoridade do professor em relação ao aluno

Uma questão importante que envolve a indisciplina é, certamente, a da


autoridade do professor. De um modo geral, todos concordam que o professor precisa

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ter postura e saber agir com firmeza perante os alunos. Os próprios pais dos alunos
conferem ao professor essa autoridade, delegando-lhe, muitas vezes, funções e
autorizando procedimentos incompatíveis com o seu papel na escola. Lembro-me de um
pai me liberando para que eu colocasse seu filho ajoelhado no milho, quando este
fizesse bagunça. Isso revela a ignorância de alguns pais na compreensão do trabalho
professor.
Ao tomar posse dessa legitimação ao autoritarismo conferido pelos pais, alguns
professores manipulam seus alunos, recorrendo sempre à lembrança de que estão
autorizados a agir contra essas crianças. São comuns as cenas em que os alunos choram
quando os professores pedem que chamem seus pais para conversar, pois eles sabem
que a versão do mestre dificilmente é questionada. Por outro lado, quando os pais
assumem uma posição crítica em relação ao docente, o que é mais raro, passam a ser
duramente criticados na escola.
Esses professores agem baseados na posição hierárquica que possuem na
escola e, quando levam isso ao extremo, não dão margem para estabelecer com os
alunos uma relação de diálogo e afetividade.
Em uma situação muito tensa na escola, uma professora, reconhecida por ser
muito rígida com os alunos, diante de uma criança do primeiro ano, que se recusava a
retornar à sala de aula e se mostrava agressivo, reagiu aos gritos, tentando fazê-lo recuar
na base da intimidação. Ela o mandava calar a boca e o segurava, como se fosse agredi-
lo. Fiquei tão constrangido com tudo aquilo que ela própria, ao perceber meu
desconforto, veio depois me pedir desculpa. Disse para ela que gosto de ser coerente e
não fazer com o aluno o que não gostaria que fizesse comigo. Não vejo a criança numa
posição em que eu possa agredi-la de maneira legítima, como se valesse mais do que
ela.
Segundo Paro (2015, 108), a sociedade vem superando muitas dicotomizações
autoritárias, como a do negro diante do branco, a do heterossexual diante do
homossexual, a do homem diante da mulher, etc., mas existe uma dominante, da qual
não se tomou conhecimento pela mesma sociedade, que é a relação da criança diante do
adulto, de “quem sabe diante de “quem não sabe”. Na escola, essa relação carregada
preconceito fica evidente, sobretudo, em sala de aula entre professor e aluno.
Por isso, quando observo uma sala de aula, percebo claramente essa relação
desigual. A professora, quase sempre, está sentada em sua mesa, exigindo que o aluno
copie sem fazer muito barulho. Não há espaço, portanto, para que o educando se

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manifeste, já que ele ‘não sabe nada’ e “sua crítica não é permitida nem estimulada, ele
é avaliado positivamente se referendar o sentido único que o professor atribui ao
conhecimento e apresentar comportamentos que não contestem esse sentido, isto é,
comportamentos de dependência”. (Furlani, 2001).
Há como, entretanto, pensar em autoridade sem com isso anular a autonomia
do aluno. A complexidade que envolve essa opção faz com que muitos recuem no
propósito. Muitas vezes, recordo, me vi nesse dilema entre a liberdade para que o aluno
se expresse e desenvolva e a organização tão proclamada pela direção da escola. Era
preciso que eu me refizesse diariamente para que não me tornasse mais um projeto de
tirano. Uma preocupação suspeita, pois ao sermos “inclinados a superar a tradição
autoritária, tão presente entre nós, resvalamos para formas licenciosas de
comportamento e descobrimos autoritarismo onde só houve o exercício legítimo da
autoridade.” (Freire, 1996, p.64)
O autoritarismo de alguns professores também parece ser decorrente da
insatisfação de estar na escola. A impressão é de que não gostam das crianças e,
consequentemente, evitam aproximação, alegando diversos motivos. Uma frase bem
jocosa que é repetida em encontro de professores tem um fundo de verdade: ‘que a
escola é um ótimo lugar para trabalhar, mas o que estraga são os alunos’. Como tenho
por hábito visitar as salas diariamente, percebo pela expressão dos docentes aqueles que
se fecham para desenvolver um relacionamento com os alunos. Noto, inclusive, que não
gostam da maneira que trato as crianças, pois as cumprimentando e até brinco com
algumas. Lembro-me, nesse momento, do que disse Celso Antunes (2012, pág. 231),
que “o professor é como o cachorro de Pavlov, basta ouvir a campainha e já começa a
salivar”.
Uma professora veio reclamar, certa vez, de que alguns inspetores não tinham
autoridade com os alunos porque brincavam eles. Completou dizendo que tinham que
manter certa distância das crianças para serem respeitados. Essa docente, por sinal, não
esboça um sorriso em sala. Está sempre de ‘cara fechada’ e diz que é ‘para não dar
confiança’. Já tive a oportunidade de discordar dela e dizer que submissão baseada na
intimidação não contribui para a formação de um aluno autônomo e crítico, como prevê
o projeto político pedagógico da escola. Disse, também, que a cara feia e o grito pode
até funcionar com muitos, mas temos crianças na escola que jamais recuarão diante do
desrespeito. Elas reagem com o mesmo rigor com que são tratadas e, quando me
chamam para resolver esse tipo de conflito, fico numa ‘sinuca de bico’, pois reconheço

34
a legitimidade da reação desses estudantes. Um bom ambiente de uma sala só pode ser
construído com aproximação, com diálogo, com carinho. Segundo Vasconcellos, “para
a construção da disciplina escolar, professor e alunos, antes de mais nada, precisam
tecer uma rede, estabelecer vínculos entre si” (2009, p. 93). Portanto, quem sofre de
‘alunofobia’ não irá conseguir estabelecer a disciplina e, portanto, caso não queira se
reciclar, deve procurar outro lugar para trabalhar.
Lembro-me de uma professora, por exemplo, que perdeu sua vaga na escola
porque sua turma era considerada muito bagunceira, com muitos casos de indisciplina.
Realmente, por falta de experiência, ela deixava a desejar em alguns aspectos, como não
organizar a saída dos alunos da sala, o que fazia com que um grupo se dispersasse
alegando que ia ao banheiro e ficando no pátio durante um bom período de sua aula.
Era, também, condescendente demais ao ponto de alguns mexerem na sua bolsa,
pegando objetos sem permissão e jogarem bola dentro da sala, onde muito mal tinha
espaço para as carteiras. Mas, ela, apesar de precisar avançar nos aspectos mencionados,
procurava desenvolver com os alunos uma estratégia baseada na aproximação. Não me
recordo de vê-la sentada em sua mesa, diferentemente das demais professoras.
Construía com as crianças diversos trabalhos artísticos, tendo a participação até
daqueles mais criticados. O que pesou na avaliação de seu trabalho, pela coordenação e
direção, porém, foi a questão da indisciplina e, por isso, ela não faz parte do nosso
grupo.

Segundo Vasconcellos (2009, p.122), há uma contradição inerente à autoridade


pedagógica, pois esta carrega em si sua própria negação. Ao exercer a autoridade, que
tem como sentido fazer o outro crescer, o professor terá que estar consciente de que
necessitará ‘abrir mão’ do seu poder em nome da liberdade, permitindo que aluno
também brilhe nessa relação. Algo difícil, principalmente para quem está iniciando no
magistério.
Essa tensão, também, já fora assumida por Paulo Freire ao discutir sobre
liberdade e autoridade, quando diz que sempre procurou “viver em plenitude a relação
tensa, contraditória e não mecânica, entre autoridade e liberdade, no sentido de
assegurar o respeito entre ambas, cuja ruptura provoca a hipertrofia de uma ou de
outra.” (Freire, 1996, p.67). Mais do que tentar um equilíbrio autoridade e autoritarismo
é estar consciente e constantemente vigilante de nossas próprias ações porque somos
seres em construção e precisamos nos refazer juntos todo dia.

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A autoridade, finalmente, deve se fundamentar na competência e não na
discutível hierarquia institucional existente na escola. Essa capacidade está ligada não
só ao ensino-aprendizagem, mas também no relacionamento com os alunos. Até porque
uma coisa está ligada a outra. Para Freire (1996, p.56), “a incompetência profissional
desqualifica a autoridade do professor”. Nessa perspectiva, o docente que não se dedica,
buscando estar atualizado de acordo com a realidade de seus alunos, estará
automaticamente desqualificado. Precisará basear sua moral perante a turma numa
hierarquia ilegítima, pois não foi construída na relação com os educandos.

A liberdade da criança em sala de aula


Esse tema há muito tempo me inquieta e quando estava no terceiro período de
faculdade surgiu a oportunidade de pesquisar sobre ele. A professora Ângela Borba nos
deixou bem à vontade para que fizéssemos um trabalho bem autoral, baseado naquilo
que realmente mexesse conosco, relacionado à escola. Apenas nos deu algumas
orientações de como fazer a pesquisa e nos liberou para que construíssemos um trabalho
que fosse realmente nosso.

Numa sala de aula fala-se muito em disciplina, em manter a ordem, em ter um


bom comportamento. O professor orienta a todo instante sobre o que não é permitido
fazer. Há uma preocupação com as regras que se tem que cumprir – regras, às vezes,
supostamente “concordadas”. Destaca-se quais os comportamentos são estabelecidos
como corretos, sendo legitimados pela autoridade professor ou da direção da escola.
Enfim, há sempre normas explicitas ou não, instituídas verticalmente para a criança, e
que cabe a esta, apenas obedecer.

Por outro lado, a liberdade, ou seja, aquilo que a criança pode fazer, onde ela
pode ir e se expressar fica em segundo plano. Isso passa-nos a impressão de que o
conhecimento do “espaço livre” da criança não é importante. Ou, talvez, o receio do
professor em “perder o controle” da “sua” aula faz com que a questão da liberdade seja
por ele, absolutamente, ignorada. Então, o que se tem na verdade, são crianças que se
adequam e se acomodam a forma escolar e, assim, sua autonomia fica prejudicada. Os
mais introvertidos, nesse caso, se ajustam mais rápido, mas sua personalidade fica
sufocada.

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A pesquisa de campo foi realizada com turmas de alfabetização, no colégio
Estadual Pinto Lima, localizado no centro de Niterói. A primeira ida ao colégio
consistiu apenas em observar o espaço e me familiarizar com os professores e alunos. O
Prédio é dividido em dois andares, sendo que no térreo fica o pátio relativamente
pequeno, onde tem um único banco de aproximadamente seis lugares. Possui dois
banheiros, um feminino e um masculino, e um refeitório também pequeno.

No primeiro andar fica a secretaria, salas de aula e um corredor extenso com


banheiros e bebedouros. No segundo andar se assemelha com o primeiro, no qual ficam
as turmas de alfabetização, que observamos. Todas as salas de aula possuem duas
janelas com grades, no fundo da sala ficam um mural e um armário e carteiras e
cadeiras enfileiradas. A escola possui muitas grades, que impedem a circulação de
alunos por determinados lugares. Os corredores têm pouca luminosidade, deixando um
aspecto negativo no ambiente. Quase não se viam murais, mas, segundo os professores,
isso acontece porque os próprios alunos destroem.

O primeiro contato com a turma não foi uma tarefa muito difícil. A princípio os
alunos sentiram-se curiosos com a minha presença, mas logo ficaram bem à vontade
para executar suas tarefas e se movimentarem pela sala. A professora me recebeu com
simpatia e me deu liberdade para prosseguir com a observação. Apesar de não encontrar
nenhum impedimento para entrar em sala de aula, como acontecra com alguns colegas
do curso, que não puderam observar o trabalho dos professores, senti-me inseguro
quanto à abordagem do tema, pois encontrei um ambiente, na minha avaliação, com
poucas regras, diferentemente do que esperava.

Nessa turma, poucos alunos interagiam com a aula, a maioria passava o tempo
correndo e gritando pela sala. A docente parecia não se importar com aquela agitação,
embora, considerei que estivesse descaracterizando um espaço que se pretende ser de
aprendizado. Em princípio, avaliei como descompromisso da professora, mas, depois de
alguns dias, ela me disse que estava a pouco tempo com a turma e que, pela sua análise,
as crianças estavam testando a autoridade dela. Ela disse que os iria conquistar aos
poucos.

Ainda em processo de observação, parti para a segunda turma. Apesar do


grande tumulto que faziam em sala, em determinados momentos, os alunos pareciam
mais comprometidos com a aula. O processo de observação também foi diferente, pois,

37
em alguns momentos, tive que ajudar o professor, indo à secretaria, distribuir folhas
para os alunos, ajudar a organizar a sala para realização de atividades, etc. Apesar dele
não ter dito, suspeitei de que o docente tenha me visto como um estagiário, cuja função
seria apenas de ajudar nas tarefas e não como um pesquisador, como havia me
apresentado. Porém, essa ajuda ao professor foi interessante porque contribuiu para uma
melhor interação com ele mesmo e com os alunos. Algo que ajudou no processo de
entrevista.

Comecei as entrevistas na própria sala de aula. Inicialmente em particular com


alguma criança e, em seguida trabalhei com duplas. Nessas primeiras entrevistas não
consegui respostas objetivas, as crianças ficaram tímidas e conversa não fluiu como
esperava. Sem dúvida, essa foi a nossa maior dificuldade no trabalho de campo:
conseguir uma metodologia que fizesse com que as crianças ficassem à vontade para
falar. Resolvi, então, mudar de ambiente, indo para o pátio, e reunir um número maior
de crianças.

Dessa forma, levei o primeiro grupo para o pátio da escola, sentei em círculos
com eles e começamos a conversar. Ainda assim não flui como desejava. Algumas
crianças se mostraram muito agitadas, querendo contar novidades de suas vidas em casa
e sobre os colegas, o que me deixou frustrado. No momento, eu estava tão preso à
proposta da pesquisa e tomado pela necessidade de concluir o trabalho que não
conseguia interagir com os alunos. Eles disseram, contudo, que gostavam de brincar no
pátio e não se mostraram interessadas em assuntos de sala de aula, com poucas
exceções.

Conversei com crianças de idades entre seis e oito anos, que moram,
praticamente, na mesma comunidade, com situação socioeconômica bastante
semelhante. Estavam avançando no processo de alfabetização lentamente, alguns
demonstrando muita dificuldade de compreensão. A metodologia utilizada pelos
professores era a tradicional, partindo de letras para as sílabas até formar palavras.

O comportamento dos alunos em sala de aula era oscilante, com momentos de


muita agitação, alternando com uma calmaria, enquanto copiavam do quadro. Essa é
uma estratégia muito comum também na escola: manter a disciplina através do controle
dos corpos. Uma equação interessante para o professor, que pretende ‘evitar a fadiga’:
aluno + quadro cheio = paz. Embora pareça inofensivo, esse procedimento contribui

38
para formar um sujeito submisso à realidade, entendendo que seu papel é apenas de
reprodução e aceitação do que já está estabelecido como natural.

Outra característica interessante é que, de um modo geral, são muito amorosos


com os professores, embora tenha presenciado conflitos, quando foram advertidos por
eles.

Com os professores, consegui desenvolver, dentro do objetivo, a entrevista.


Entrevistei um professor que, mesmo considerando a liberdade da criança em sala de
aula algo fundamental, lamentou que por causa de um pequeno grupo indisciplinado
tem que ser rígido na sua relação com a turma. Para ele, a insubmissão desse pequeno
grupo é reflexo do meio onde vive, devido à falta de estrutura familiar. Nessa fala,
percebo certo preconceito disseminado na escola ao relacionar a mau comportamento à
classe popular, da qual pertence a criança.
O professor, nesse caso, também se coloca à parte, como se não fizesse parte
da mesma classe daquelas crianças. Segundo Paulo Freire, essa não identificação com a
classe popular, faz com que oprimido assuma o papel de opressor, impedindo o
processo de libertação de ambos. Ele diz que “o grande problema está em como poderão
os oprimidos, que ‘hospedam’ ao opressor em si, participar da elaboração, como seres
duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. (1987, p.17)

A escola, segundo o professor que colaborou com a pesquisa, não tem recurso,
fazendo referência à necessidade de um psicólogo para certos alunos, porque ‘o
professor não pode largar a sua aula para fazer o trabalho psicológico, já que tem um
conteúdo (português, matemática) para dar’. Sua fala revela outro problema muito
comum da educação escolar que é a separação radical entre o conteúdo a ser dado e o
aluno. Este é completamente ignorado no processo de seleção dos conteúdos, estando
excluído do planejamento. É comum vermos os professores compartilharem os
materiais, como se as crianças fossem as mesmas em todas as turmas.

Liberdade, para ele, é ‘dar ao aluno oportunidade de ele se relacionar, de falar


com o professor e dar sua opinião’. Mas, ressalta que essa liberdade tem que ser com
limite e que se ‘tem que trabalhar com certa autoridade’. A questão da tensão entre
liberdade e autoridade é salientada nessa abordagem pelo docente. Percebe-se que ele

39
tem noção de que precisa dar oportunidade para que o aluno se manifeste em sala, mas
reconhece a dificuldade de administrar essa liberdade.

A superação dessa tensão se faz num movimento de diálogo, em que a criança


é convidada a participação do processo de organização da turma. “A teoria dialógica da
ação nega o autoritarismo como nega a licenciosidade. E, ao fazê-lo, afirma a autoridade
e a liberdade.” (Freire, 1987, p. 103). Para que isso aconteça, em primeiro lugar, tem-se
que respeitar o aluno, pois ninguém dialoga com quem não se dê crédito.

Durante a entrevista, ele também reclama da gestão da unidade, dizendo que a


escola está ficando muito permissiva, quando deveria ser mais rígida, atuando para
advertir, suspender e até, em último caso, expulsar o aluno indisciplinado, pois ele
atrapalha os demais. ‘É melhor você perder um aluno do que perder vinte e cinco
alunos’, finaliza esse professor. Essa afirmação, embora, à primeira vista, pareça justa,
pois defende uma maioria em detrimento de um grupo pequeno, contribui para o
aumento do fracasso escolar. Aqueles que estão apresentando mais dificuldade são
afastados como se a escola não tivesse qualquer envolvimento no processo de desajuste
desses alunos.

Para Garcia (2006, p. 8), as próprias crianças são responsabilizadas pela não
aprendizagem e “a escola lava as mãos, e tudo continua como dantes, já que para mudar
seria necessário refletir coletivamente sobre as razões estruturais e conjunturais do
fracasso escolar, que, como por encanto, atinge os mesmos grupos”. Uma autocrítica
necessária, mas ainda distante da escola.

Entrevistei, em seguida, a professora, a qual já fiz referência quando falei que


ela estava a pouco tempo com as crianças. O momento da entrevista não foi tão
tranquilo, como fora com o professor. As crianças estavam vendo um filme e, durante a
entrevista, a professora teve que fazer várias pausas para repreendê-las.

Essa professora estava cursando uma faculdade e, certamente por isso,


demonstrou estar atualizada no discurso acadêmico-pedagógico. Lembrou que no seu
tempo de escola não havia liberdade nenhuma para aluno, sendo a professora a
autoridade máxima e única, mas hoje isso está mudando e a opinião da criança já
começa a ser ouvida, embora reconheça que ainda tem muito a melhorar. Admite,

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contudo, que às vezes, mesmo contrariadamente, precisa gritar com as crianças para
impor a ordem, mas “não quero que eles tenham medo de mim”, pois, acredita que
precisa ser amida das crianças. Finaliza, dizendo que trabalha muito a autoestima das
crianças distribuindo elogios e parabéns.

A desmotivação dos alunos indisciplinados

Como orientador educacional tenho o privilégio de conversar muito com os


alunos, principalmente com os mais rejeitados na escola. Nesses encontros, é comum
ouvi-los reclamar da sala de aula. Eles relatam a tortura que é frequentar as aulas e
reclamam que é chato ficar copiando do quadro e que são tratados com ignorância por
alguns professores. A desmotivação dos alunos é um problema que desagua muitas
vezes na indisciplina, apesar de dificilmente ser abordado, transferindo a culpa para a
criança e sua família.

Na nossa escola, vivemos uma situação já crônica e de difícil solução que é o


conflito entre inspetores e alguns alunos que se recusam a voltar para a sala de aula.
Eles saem da sala alegando que vão ao banheiro e não querem voltar de jeito nenhum.
Quase sempre me chamam para intervir e depois de uma boa conversa eles retornam.
Mas, esse ciclo parece não ter fim.

Essa questão da sala de aula fria e sem sentido está, geralmente, dentro da
discussão da qualidade do trabalho docente. Desde a minha época em que frequentava a
escola como aluno e até hoje, pelo que observo, a prática docente é quase sempre a
mesma: transcrição para o quadro de conteúdos extraídos de livros ou distribuição de
atividades em papeis para serem colados nos cadernos. Muitas tarefas sem qualquer
conexão com a vida do aluno. O desinteresse por parte dos alunos é uma consequência
natural.

O problema da falta de conexão entre as questões importantes para os alunos e


aquilo que é proposto em sala de aula decorre de uma concepção de educação que vê o
aluno como alguém vazio, que deve ser preenchido pelos conteúdos escolares. “Nela, o
educador aparece como seu indiscutível agente, cuja tarefa indeclinável é "encher” os
educandos dos conteúdos, que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em

41
que se engendram.” (Freire, 1987, p. 33). Nessa perspectiva, o silêncio e o ativismo
acrítico dos alunos são o que mais interessa.
Algumas crianças, até pela dinâmica da vida que têm fora da escola, não
concordam com esse modelo impositivo e, consequentemente, se tornam
indisciplinados. Por isso, que os alunos mais críticos e que não aceitam desrespeito são
aqueles dos quais os professores mais reclamam. Quando damos oportunidade para que
falem e se posicionem reconhecemos a coerência nos seus argumentos. Muitas vezes,
tive que recuar e até entrar num acordo ‘informal’ com eles, dizendo que se alguém
perguntar para que digam que foram punidos com advertência. Não poderia trair minha
consciência e ser injusto com eles em nome de uma cultura ditatorial do sistema.
O caminho para a motivação passa, em primeiro lugar, pelo respeito aos alunos
como humanos, criaturas especiais em si, intrinsicamente, não importando de onde vêm,
com quem parecem ou o cheiro que possuem. Aliás, segundo Vasconcellos, “uma das
coisas mais cruéis que o sistema nos ensina é detestar o cheiro do pobre.” (2009, p.163).
Em seguida ele concorda que, “objetivamente , e com frequência, a indisciplina dos
alunos é uma reação ao desrespeito, aos coeficientes de poder não adequadamente
equacionados pelo professor.” (2009, p.163). Nas reuniões, costumo dizer aos docentes
que o grito e a ofensa podem funcionar com a maioria, no sentido de manter a ordem,
mesmo que em detrimento da saúde integral da criança, mas há uma galerinha que vai
confrontar e não vai se curvar diante de cara feia. Elas costumam estar na minha relação
de indisciplinados.
Respeitar significa ouvir. Uma tarefa dificílima para alguns docentes. Apesar
de uma sala cheia diante de si, o que vejo, são professores isolados em sua mesa, num
aparente tédio, mexendo no celular, quando poderia buscar aproximação. Ouvi denúncia
de que uma professora estaria dormindo, inclusive. Buscar ouvir de perto, até para
encontrar pistas para ensino-aprendizagem. “É preciso que quem tem o que dizer saiba,
sem dúvida nenhuma, que, sem escutar o que quem escuta tem igualmente a dizer,
termina por esgotar a sua capacidade de dizer por muito ter dito sem nada ou quase nada
ter escutado.” (Freire, 1996, p. 73). Escutar pressupõe aproximação, abraço, respeito.
Sem essas coisas, restará o desânimo, porque aquele que não é ouvido não se sente
pertencido e, consequentemente, poderá vir a ser um indisciplinado.
Mesmo quando o aluno já tem esse estigma de ser problemático, o melhor
caminho ainda é a aproximação, a busca pela construção de vínculo. Vasconcellos
defende essa ideia, ao concluir que “o distanciamento cria fantasmas, preconceitos,

42
medo, além de tornar impossível a superação da indisciplina” (2009, p.161). Muitas
vezes, condenamos pelo histórico, sem dar margem para a transformação. Ao
encaminhar um aluno, certa vez, a dirigente já foi disparando ao dizer que o menino
viera de outra escola, onde ela havia trabalhado e que teríamos muitos problemas com
ele. Em conversa com ele, fiquei sabendo que se trata de uma criança que tem seis
irmãos e que mora com a mãe, sem saber o destino do pai. Ele fora expulso (tem que
dizer transferido) da outra escola, que fica próxima de sua casa por problemas
disciplinares. Ele disse, emocionado, que um de seus irmãos teria morrido. Percebi
claramente que se trata de um menino com muitos problemas e que precisa de apoio da
escola. Sem a alternativa do vínculo, teremos que conviver realmente com fantasmas.
Criar vínculo é envolver-se, considerando o potencial das crianças. Ignorar o
que as crianças têm a dizer é achar que suas vidas começaram no momento em que
adentraram a sala de aula e, também, desconsiderar as relações que têm fora do contexto
escolar. É obvio que elas podem acrescentar muito na condição das aulas, mas o que
vejo no dia a dia são alunos enfileirados reproduzindo o que foi preparado pelo
professor. Uma imagem estática, que contraria a vida refletida, por exemplo, na hora do
recreio. O grande desafio de todos nós seria encher de vida também a sala de aula. Os
casos de indisciplina automaticamente se reduziriam.
Essa vida que queremos na sala de aula está ligada, como já foi dito, ao
respeito ao aluno e, por tabela, ao que ele sabe. Numa ocasião em que faltou uma
professora, fui fazer uma atividade com as crianças do primeiro ano. Propus a produção
de um texto, o que foi logo rejeitado porque disseram que não sabia fazer. Então, disse
que fazer um texto era escrever algo do que a gente gosta. Foi muito interessante
descobrir como elas têm experiências para contar. Uma andava de skate, outra jogava
futebol, outra brincava de boneca, uma era fascinada por carrinhos ‘Hot Wheels’, enfim,
a aula fluiu e tínhamos ‘material’ para construir com os alunos um belo trabalho de
escrita com sentido. Segundo Freire, o professor tem “o dever de não só respeitar os
saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela, mas
também, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com
o ensino dos conteúdos” (1996, p. 16). Ou seja, buscar envolver os alunos no processo
de construção da aula, dialogando com eles a partir do que faz parte do contexto de vida
deles.

43
Um aluno de nossa escola, que chamarei de Kaka, é um bom exemplo para
mostrar a relação entre indisciplina e desmotivação. Ele estava numa turma de primeiro
ano, classe de alfabetização, apesar de já ter nove anos de idade. Mesmo já tendo
frequentado outras escolas por alguns anos, ele demonstra dificuldade para ler até
palavras consideradas simples. Sua professora repete todo dia, como um mantra, que ele
não tem mais jeito, relatando os casos de indisciplina do aluno.

Compreendendo as precariedades e dificuldades do trabalho docente, sempre


digo que quando ela não conseguir administrar as tensões provocadas por ele, para
deixa-lo sob minha responsabilidade ou da dirigente de turno, fora de sala de aula.
Como isso acontece muito, tenho buscado promover outras atividades em outro espaço,
que geralmente é a sala de recurso, com outra professora. Lá, ele faz atividades
diferenciadas, como jogos, e toca música, algo que lhe dá muito prazer. Essa solução
satisfaz a professora e agrada ao aluno, mas não resolve, efetivamente, o problema da
aprendizagem da leitura e da escrita.

Aliado a isso, a segregação que sofre na escola tem dificultado ainda mais o
processo de interação e aprendizagem. Por já ser bem maior do que seus colegas de
turma, não desfruta da mesma atenção por parte da professora e outros profissionais. O
que recebe dele é muito rigor e cobrança, além de me cobrarem medidas punitivas para
ele, principalmente a suspensão das aulas. O que querem na verdade é se livrar de um
problema, visto que a suspensão não contribui, geralmente, para a mudança de
comportamento.

A experiência desse aluno nos faz refletir muito sobre a relação entre o fracasso
escolar ou o fracasso da escola e a indisciplina, tão pulsante no cotidiano de todos nós
que estamos nessa instituição, ainda muito elitista. Desejamos um aluno que não é dessa
época, muito menos da classe popular, que ofereça, talvez, tudo aquilo que não lhe dão,
ou seja, respeito, educação e amor.

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CAPÍTULO III

O COTIDIANO DA ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL FACE


AOS PROBLEMAS DE INDISCIPLINA

45
O trabalho do orientador educacional na escola também deve ser analisado. Não
basta apenas apontar as falhas do sistema, da escola e dos professores. Enquanto OE,
precisei e preciso estar em constante reflexão sobre a minha prática. O cotidiano da
escola tem uma força que tenta nos levar a um ativismo frenético em que dispensa
discussão de ideias. A demanda é sempre grande e enlouquecedora. Não são poucos os
profissionais que tomam medicamentos para sobreviver nesse infinito de coisas, muitas
vezes sem sentido. Sem falar dos que estão em desvio de função também por problemas
médicos.

Neste capítulo, busco pensar a minha prática, fazendo uma análise crítica dos
meus erros devido à inexperiência. Mas, também, por ter uma sede imensa de ajudar os
alunos, de ser parceiro, de aliviar as tensões através das brincadeiras. Por isso é que me
joguei de cabeça no trabalho, não me arrependendo do ‘fim’, pois sempre foi de
possibilitar dignidade, mas de alguns ‘meios’, que se mostraram ineficazes. Minha
demanda será objeto nesse momento.

Começarei pelo que considero uma questão ainda a ser superada, que é o
atendimento individualizado. Discutirei isso porque ‘entrei de gaiato no navio’ e
somente com o tempo pude perceber a improdutividade dessa ação desarticulada e cheia
de preconceito. É uma luta que travo todo dia, de tentar convencer de que esse não é o
melhor caminho para a superação da indisciplina. Veem ainda o orientador educacional
como um psicólogo clínico.

Em seguida, detenho-me a uma alternativa, que tem sido objeto de ameaça


constante aos alunos: a convocação dos responsáveis. No início do meu trabalho na
escola, recorria sempre a essa opção. Tinha dia que havia fila para falar comigo, como
se eu fosse alguém com muito poder. Com o passar do tempo, revi essa prática porque
as algumas famílias estavam sendo convocadas muitas vezes, parecendo algo pessoal.

A ineficiência do atendimento individual

Já tendo uma noção das dificuldades pelas quais passam os professores de


escola pública, por já ter atuado nessa função, busquei, de imediato, uma aproximação a
eles, na tentativa de compreender a realidade por qual passam, tendo como foco
principal melhorar a relação entre discentes e docentes. Comecei indo de sala em sala

46
conversar com as professoras, que, de um modo geral, como já esperava até, fizeram
muitas críticas aos alunos, alegando que eram desrespeitosos, desinteressados,
agressivos, sem educação, etc. O que fiz, então, foi me colocar à disposição par, junto
com eles, buscarmos uma saída para o problema de relacionamento e indisciplina de
alguns estudantes.

Essa abertura que propus no sentido de contribuir para a melhoria do trabalho


das professoras virou-se contra mim de maneira inimaginável. Em pouco tempo choveu
alunos para serem atendidos, fazendo com que meu trabalho fosse reduzido a
intervenções pontuais, que se mostraram pouco produtivas. Com o tempo comprovei
que a questão do relacionamento na escola era bem mais complexa do que imaginava e
seria necessária outra estratégia de trabalho, pois me vi esgotado e até perdido com
aquela demanda pesada.

Era, quase sempre, o mesmo roteiro com os mesmos personagens. Os alunos


implicavam uns com os outros, consequentemente, se agrediam verbal e fisicamente e
as professoras mandavam que saíssem de sala, entregando-os aos inspetores e estes
levavam até a mim. Quando chegavam discutindo, eu os organizava de maneira que
pudéssemos conversar. Ouvia-os, enquanto que tentavam acusar uns aos outros. Além
de orientá-los, principalmente sobre respeito às diferenças, registrava a ocorrência numa
ficha individual e os advertia ameaçando com punições, que se resumiam em chamar os
responsáveis e suspendê-los das aulas. Estava construído um círculo vicioso que
colocava em xeque a credibilidade do meu trabalho, baseado na ameaça para dar
satisfação, principalmente aos professores.

Para Vasconcellos (2009, p.232), a “síndrome do encaminhamento” traz


consigo vários problemas, o principal deles é a transferência de responsabilidade,
quando o professor não resolve e espera que outro resolva. Sobre isso, já disse várias
vezes que não tenho poder mágico que possa mudar o aluno instantaneamente. Uma
expectativa falsa, que contribui ainda mais para prejudicar o relacionamento entre os
chamados de especialistas e o corpo docente.

Alguns alunos nem procuram mais os professores para resolver conflitos,


saindo de sala e indo diretamente até a mim. Isso exige que eu faça o trabalho inverso
que é o fortalecimento da imagem das professoras. Quando me procuram, pergunto
logo: ‘tem professora na sala?’ E sendo afirmativa a positiva resposta, peço que

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retornem e busquem solução com ela. Mas, eles insistem dizendo que ‘a professora não
faz nada’. Depois que percebem que não mudarei de ideia, voltam para a sala.
Considero esse aspecto fundamental na escola: a autoridade do professor.

Por atender quase sempre os mesmos alunos e, consequentemente, conversar


muito com eles, estabeleci uma relação muito próxima com eles. Uma relação respeitosa
e bonita, evidenciada pelo acesso que sempre tinha a mim, pelos abraços e
manifestações de carinho, como de apertar a bochecha dos pequeninos. Essas atitudes
não eram bem vista por aqueles que acham que isso significa demonstração de fraqueza.
Fui acusado por uma gestora, inclusive, de dar muita atenção e, portanto, não ter
autoridade com os indisciplinados. Uma triste constatação de que ela defende e
considera adequada a relação em que o aluno se submete silenciosamente, sem o direito
de questionar.

Ainda sobre a questão envolvendo encaminhamento e silenciamento, também


já fui criticado porque, quando a dirigente ou algum inspetor chega com um aluno e
relata um caso de indisciplina, gosto de ouvir o que a criança tem a dizer sobre a
situação. Qual a posição dela a respeito do evento. Muitas delas, nesse momento,
relatam abuso de autoridade dos profissionais da escola, como gritos com ofensas,
empurrões e puxões de braços. Essa opção que faço de dar voz aos indisciplinados não é
para tirar a autoridade daqueles que trouxeram o aluno para atendimento, como eles
supõem ao dizerem que não podemos acreditar no que dizem "porque são bagunceiros”.
Minha expectativa é de que os alunos entendam que são também participantes, como
repito constantemente, do processo de construção de uma escola menos caracterizada
pela agressividade e mais humana. Ao dar espaço para que falem, ratifico essa ideia.

Uma professora certa vez trouxe um aluno do segundo ano do ciclo de


alfabetização até a mim quase que arrastado, dizendo que era para ‘dar um jeito nele
porque não o aguento mais’. Acolhi a criança, que havia ficado muito constrangida, e
depois fui conversar com a docente para que não fizesse mais daquela maneira que
expõem o aluno à humilhação. Orientei, inclusive, para que chamasse caso quisesse
encaminhar algum estudante. Essa postura, repetida outras vezes até por outras
docentes, revela a despreocupação com a formação integral dos estudantes, porque ao
agir dessa forma prejudica a autoestima deles, embora defendessem que estava
priorizando a aprendizagem.

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Nas reuniões de planejamento, que acontecem todas as sextas, a questão da
indisciplina dos alunos sempre volta com muita força. As professoras, sobretudo as
mais antigas, reclamam alegando que alguma coisa mais drástica tem que ser feita. É
um momento de intensa discussão, quando tentam legitimar a prática de se retirar o
aluno de sala, encaminhando ao orientador educacional.

“Esses alunos não querem nada, só atrapalham a aula.” ─ reclama a professora


do 3o ano do ciclo de alfabetização.

“O que você sugere?” ─ indago, já suspeitando da resposta.

“Tem que tirá-los de sala”

“E coloca-los onde?”

“Na sua sala”

“Não tenho espaço nem para atender responsáveis”

“Então coloque numa outra sala” ─ ela respondeu mesmo sabendo que não há
sala disponível na escola..

“Para fazer o que?” ─ perguntei

“Para fazer cópias.”

“Você acha que os alunos ficarão numa sala fazendo cópias?”

“Então coloque para fazer atividades diferenciadas” ─ ela respondeu sem dizer
o que seriam essas atividades.

Então perguntei novamente: “você acha que eles irão querer voltar à sala de
aula?”

Emendei: “será que não corremos o risco de, se não todos, muitos alunos
apresentarem mau comportamento a fim de irem também para essa nova sala?” Até
porque alguns já haviam manifestado o desejo de permanecerem na minha sala.

A professora não respondeu mais. Embora, isso não queira dizer que a questão
do encaminhamento tenha sido superada.

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O trabalho do orientador educacional na escola ainda é comparado, por alguns
professores e inspetores, como o de um terapeuta, que tem a função, através de
atendimentos individuais, de mudar o comportamento indisciplinado dos alunos. Por
inexperiência e vontade de ajudar, acabei me submetendo a esse procedimento, o que
fez com que, diariamente, formasse fila em frente a minha sala. Era uma situação muito
desgastante e pouco produtiva no sentido de melhorar o relacionamento dos alunos.

O papel do orientador educacional não se resume a resolver problemas de


alunos supostamente desajustados. “Seu papel pedagógico assume as funções dos
próprios objetivos inseridos no projeto-político-pedagógico da Instituição.” (Grinspun,
2012, p.8). Isso quer dizer que o OE deve se comprometer com vários aspectos que
envolvem a função da escola, abandonando a simples busca pelo enquadramento dos
alunos às normas estabelecidas, na maioria das vezes de forma autoritária, sem qualquer
discussão com os atores envolvidos.

Essa função, também, deve envolver outros atores na escola. A superação dos
problemas não é de responsabilidade exclusiva de um profissional da escola. Para
Grinspun, “a orientação educacional pretende contribuir, satisfatoriamente, não mais
para atender ‘alunos problemas’, mas para discutir, junto com todos os problemas que
vivenciamos e as soluções possíveis de serem atingidas.” (Grinspun, 2011, p.174). É
uma compreensão que propõe o diálogo entre todos na escola, inclusive com os alunos.
Isso é o que buscamos como utopia.

A convocação dos responsáveis como elemento intimidador

Como já mencionei, para muitos professores, o problema da indisciplina


decorre da desestruturação familiar. Por isso, tive que, recorrentemente, convidar os
pais para irem à escola para conversarmos sobre problemas de comportamento de seus
filhos. Alguns foram repetidas vezes, algo que serviu para comprovar que a presença
dos responsáveis não era garantia de alunos enquadrados e comportados, como
defendiam determinados docentes. Até porque convivemos com situações bem
contrárias, de crianças cujos pais estão diariamente na escola, no entanto, seu filhos
apresentam problemas de relacionamento.

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O diálogo com os pais foi algo que sempre priorizei também nessa busca por
um ambiente escolar mais humano. Desde o início apostei nessa estratégia. Tinha dia
que passava boa parte do tempo da minha carga horária atendendo responsáveis.
Geralmente eram muito receptivos. Ouviam, lamentavam, desculpavam-se e assinavam
as ocorrências e o registro da conversa, ainda se disponibilizando para eventuais
convocações. Entendiam que precisava contar com eles e me colocava nessa posição de
parceiro da família, pois nossos objetivos eram correlatos.

Essa experiência, porém, me exigiu muito equilíbrio em alguns momentos,


porque alguns pais chegavam, após convocação, muito exaltados supondo que seu filho
ou filha tivesse sendo discriminado e culpabilizado. Tinha que ir com calma, tentando
mostrar que nossa conversa não teria um caráter punitivo, mas de estreitamento na
relação com a escola para ajudar o aluno. Alguns deles demonstraram muita hostilidade
para com os profissionais da escola, revelando que algo precisava ser superado. Tentava
passar credibilidade, colocando-me em risco também, pois estava chegando e não
conhecia as pessoas com eu teria que lidar no meu cotidiano.

Por causa dos sucessivos encaminhamentos, acabei ficando mais íntimo do


grupo de alunos mais indisciplinados e, consequentemente, com seus pais também
estreitei muito o relacionamento. Eles foram convocados diversas vezes, principalmente
nos primeiros meses de trabalho. Depois, resolvi mudar um pouco de estratégia
mandando recado através do caderno para que tomassem conhecimento das situações
em que seus filhos estavam envolvidos. Achei que estava havendo um desgaste na
relação com os pais o fato de os convocarem toda semana para resolver problemas de
indisciplina. Além disso, muitos não compareceram mais as convocações.

A utilização do recado por escrito também foi interessante porque alguns


responsáveis não poderiam estar na escola por motivos de trabalho e até de saúde. Isso
me exigia o cuidado de conferir a assinatura com aquela que constava na ficha de
matrícula, porque muitos alunos tentavam me enganar assinando no lugar de seus pais.
Quando descobria alguma fraude na assinatura, conversava com a criança e tentava falar
com sua família através do telefone.

A criança tenta ao máximo evitar que os pais soubessem de seus erros na


escola. Muitas vezes, tive que recuar nesse objetivo porque alguns alunos chegavam
com marcas em seu corpo, indicando que foram vítimas de violência doméstica. Um

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menino, por exemplo, chegou com um de seus olhos roxo e inchado, provocando uma
comoção entre todos nós. Tive que chamar seus responsáveis e sua mãe disse que fora
excesso do pai num objetivo de corrigir o menino. Disse também que não se tratava de
algo comum na família, que seu esposo, inclusive, estava muito arrependido. Mas, por
causa de casos assim que muitas crianças se desesperam quando colamos um
comunicado em seu caderno para convocar seus pais. Em respeito à criança, temos que
buscar alternativas e deixar a família de fora.

Além do problema da violência doméstica, chamar os pais constantemente à


escola pode contribuir para diversos equívocos, de acordo com Vasconcellos (2009,
p.212), pois:

“Tira a responsabilidade do aluno, pois sabe que seus é que vão


responder por seus atos; esvazia a competência institucional da escola,
uma vez que se mostra incapaz de lidar com os alunos concretos;
acaba sendo simples (re)transferência de responsabilidade; banaliza a
convocação, levando ao descrédito por parte dos pais.”

Foram a essas conclusões que cheguei quando insistia que os pais fossem a
escola constantemente. O desafio, agora, é tentar convencer os professores de que a
“síndrome do chamamento dos pais” (Vasconcellos, 2009, p.212) tem seus efeitos
colaterais para a escola também. Apesar de que, geralmente, o principal motivo para
convocação dos pais é a opressão ao aluno e, caso dê certo, os problemas decorrentes
são ignorados. Voltamos, então, a questão do oprimido que hospeda o opressor.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tenho consciência de que este trabalho sobre a indisciplina tem um potencial


que não foi explorado. É um tema instigante, atual e que merece ser mais aprofundado,
principalmente, na e pela escola. Por isso, não reputo essas considerações como,
realmente, finais, pois ainda há muito que se avançar nessa discussão. Faz parte da
qualidade do meu trabalho como orientador educacional a busca pela compreensão cada
mais clara sobre o tema.

A questão da indisciplina ou disciplina na escola tem sido muito recorrente no


meu trabalho, como se toda a minha prática se resumisse em deter os ‘rebelados’. Passa-
se muito mais tempo falando dos problemas decorrentes do não enquadramento dos
alunos do que da aprendizagem deles. Como se um problema não tivesse conexão com
o outro. Não tem sido fácil lidar com as pressões de caráter autoritário.

Meu alvo era conseguir subsídios para que pudesse contribuir ainda mais para a
desmistificação da indisciplina dentro da escola, sobretudo, no que diz respeito à vida
do aluno naquele espaço. Toda análise e leituras tinham como propósito melhorar a
minha prática e, a partir de mim, ajudar outros a refletirem sobre suas ações. Se elas são
emancipadoras ou opressoras no trato com os educandos.

Esse trabalho, portanto, me ajudou a entender que o processo disciplinador da


escola tem raízes no século XVIII, quando se começou a pensar em Instituições para
dominar e disciplinar os considerados perigosos para o bem-estar da sociedade. Os
mecanismos de controle utilizados nas unidades de ensino são os mesmo encontrados
em prisões e manicômios. Não é por acaso que, ainda hoje, vemos tantas escolas com
características de sistema prisional, como se os alunos fossem, a priore, delinquentes.

Não só em relação à estrutura física, mas até na postura do diretor percebemos


traços de autoritarismos. O distanciamento das crianças é o pior desses traços. Para elas,
o diretor é aquele que dar suspensão, sendo essa sua principal marca, na avaliação das
crianças. Muitas vezes, essa aparência é sustentada conscientemente e objetivamente,
pois faz parte da cultura escolar.

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Alguns professores, também, que gostam de ostentar o seu poder, tratando a
criança, muitas vezes, com desprezo tem evitado criar um vínculo. O distanciamento é o
elemento principal nessa relação fria estabelecida pelo docente. Para manter a sala ‘em
ordem’ recorre-se a estratégia famosa de não ir ao educando e não demonstrar afeto para
que as crianças respeitem pelo medo da punição. O que importa, nesse caso, não é a
autonomia, mas sim a submissão cega das crianças.

Assim, as crianças se tornam prisioneiras dentro da sala de aula, sendo qualquer


manifestação, que não seja copiar e fazer o dever, considerada com um ato de
indisciplina. Vivemos ainda o tempo em que o melhor professor é aquele cuja turma
está sempre em silêncio em completa aceitação dos comandos da autoridade. Dentro
dessa ‘prisão’, as crianças tentam ‘fugir’, buscando a brincadeira, saindo para ir ao
banheiro e demorando a retornar, bocejando provocativamente, deitando a cabeça na
mesa, etc. São manifestações de quem não foi envolvido na construção da aula. Esse é o
preço que o aluno paga ao ter suprimida sua capacidade de se expressar, de questionar,
enfim, de aprender.

O saldo da relação em que o professor não se permite dialogar com o aluno é ter
crianças desmotivadas. Algumas realmente até se enquadram e se tornam ‘bons alunos’,
enquanto que outras são classificadas como problemáticas. Essas entrarão na lista de
encaminhados ao psicólogo ou ao psicopedagogo, pois ‘não aprendem de jeito nenhum’.
Segundo Weiss, os “alunos de escolas públicas brasileiras provenientes das camadas de
mais baixa renda da população são frequentemente incluídos em ‘classes escolares
especiais’, considerados pertencentes ao grupo de possíveis ‘deficientes mentais’.”
(2012, p. 19). Depois de repetidas rotulações, esse grupo reage confrontando à ordem,
pois já estão sem razão de estar numa sala de aula.

Os indisciplinados, ou melhor, aqueles que foram ‘indisciplinalizados’ pela


escola têm como parte da rotina diária a frequência à sala da orientação educacional.
Procuro ouvi-los, entende-los, mas me sinto impotente dentro de uma estrutura
repelente de alunos da classe trabalhadora. Não é possível que esses alunos se sintam
confortáveis e amados porque teriam que nascer de novo para entrarem no perfil elitista
da instituição pública.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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orientadores educacionais. 9. Ed. São Paulo: Loyola, 2010.

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_____________. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do


oprimido. 14ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2007.

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FURLANI, Lúcia Maria Teixeira. Autoridade do professor: meta, mito ou nada disso?
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GRINSPUN, Mírian P. S. Zippin. A orientação educacional: conflitos de paradigmas e


alternativas para a escola. 5. Ed. São Paulo: Cortez, 2011.

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WEISS, Maria Lúcia Lemme. Psicopedagogia clínica: uma visão diagnóstica dos
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(http://revistaescola.abril.com.br/formacao/jose-pacheco-escola-ponte-479055.shtml
(Acessado em 20 de fevereiro de 2015 às 12:47).

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