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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE


CURSO DE PSICOLOGIA

LÍGIA OLIVEIRA NASCIMENTO

BATMAN NO DIVÃ:
A história de um super-herói moderno
à luz da psicanálise

SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE
CURSO DE PSICOLOGIA

LÍGIA OLIVEIRA NASCIMENTO

BATMAN NO DIVÃ:
A história de um super-herói moderno
à luz da psicanálise

Trabalho de conclusão de curso


como exigência parcial para
graduação no curso de Psicologia,
sob orientação do Prof. Hemir
Barição

SÃO PAULO
2013

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Agradecimentos:
Em um trabalho de conclusão de curso que se propõe a analisar um
personagem fictício, primeiramente sinto-me no dever de prestar agradecimentos ao
criador do meu objeto de estudo, Bob Kane (1915-1998). Seu personagem serviu de
fonte de inspiração para tantas pessoas, entre elas, Christopher Nolan, diretor de
cinema responsável pela mais recente trilogia de filmes sobre o Batman. Filmes estes
que foram a grande inspiração da autora, despertando um interesse e uma busca por
compreensão, antes mesmo da faculdade de psicologia entrar na minha vida. Devo
prestar agradecimentos a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
especificamente ao curso de Psicologia, por ter superado em tanto as expectativas da
vestibulanda de dezessete anos, que escolheu “Psico-Puc”. Esses cinco anos foram os
mais importantes da minha vida até agora, e tudo o que eu aprendi nessa universidade
e neste curso, no convívio com professores e colegas, dentro do ambiente puquiano,
tão tradicional e reconhecido, será sempre lembrado como de fundamental importância
para minha formação não apenas acadêmica, mas também existencial e subjetiva.

Alguns anos depois do lançamento dos dois primeiros filmes da trilogia Nolan
(em 2005 e em 2009), eu estava na aula de projeto de pesquisa em psicanálise
quando a professora Elisa Cintra me perguntou que tema me interessava. Era apenas
o terceiro ano da faculdade, e a idéia de produzir um trabalho da magnitude de uma
monografia de conclusão de curso me assustava consideravelmente. Uma pergunta
tão abrangente, uma decisão tão importante, da qual eu iria me ocupar pelos próximos
dois anos. Depois de ouvir tantas histórias de colegas mais velhos surtando
completamente por causa do tão temido T.C.C., eu sabia que teria que, literalmente,
escolher o tema pelo qual eu poderia me apaixonar. Eu nunca quis um fardo, uma
grande obrigação, algo que me deixaria exausta, confusa e em pânico. Muito pelo
contrário, eu queria sentir exatamente esse prazer que eu senti escrevendo o presente
trabalho. Neste sentido, as aulas da professora Elisa foram de grande inspiração: em
uma delas, sem grandes explicações ou razões, surgiu a idéia na minha cabeça:
super-heróis. No decorrer do semestre, a professora Elisa me apoiou, com conversas e
indicações de leituras, e fez o que era apenas uma idéia bastante abstrata na minha
imaginação, se transformar em algo mais concreto, entregue a ela no final de 2011.
Era apenas o começo de algo que ainda iria sofrer profundas modificações, mas sem
este apoio inicial, sem uma brilhante professora me falando que era plenamente
possível desenvolver um trabalho com as idéias que eu tinha, ele não teria sido levado
a diante. Deixo aqui meus mais sinceros agradecimentos a ela e a sua grande

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capacidade de causar insights em seus alunos, os incentivando a buscar aquilo que
lhes desperta interesse e afeto.

Agradecimentos especiais devem ser dirigidos ao meu orientador, professor


Hemir Barição. Começando com a sorte que eu tive dele ter escolhido meu trabalho
(mesmo quando eu, em um lapso de memória, esqueci de colocar seu nome como
sugestão de orientador, no momento que entreguei o projeto de pesquisa), passando
pelo fato de ser um professor que, além de profundo conhecedor de psicanálise, ainda
é um grande fã de Batman, acredito que não existiria alguém melhor, mais capacitado
e mais interessado no meu tema, do que o professor Hemir. Quantas idéias, quantas
associações que eu nem sequer havia pensado, e que depois se transformariam em
capítulos importantes do trabalho, surgiram naquilo que o professor chamava de
“viagens”? Orientador e orientanda contribuindo com idéias, associações, articulações
e bases teóricas. Ao ver que um grande psicanalista e professor concordava comigo,
eu fui percebendo que minhas hipóteses talvez tivessem mesmo algum sentido. O
professor Hemir me passou esta segurança, da qual eu tanto careço, para escrever
algo que fizesse sentido para mim, desde que, com certeza, eu soubesse argumentar.
Ao me dar esta liberdade criativa, falando que “o trabalho tem que ter a minha cara, e
não a dele”, eu pude realmente dar mais crédito para aquilo que estava, anteriormente,
no plano das minhas idéias.

Em contraste com isto, mas não menos importante, o professor Hemir também
me ensinou a importância de ter um foco, um objetivo no trabalho. Ao me mostrar que
seria impossível eu falar de tudo aquilo que eu estava planejando no começo, foi
possível fazer escolhas, delimitar campos de análise, e aprender a lidar com minha
própria frustração com o fato de que jamais seria possível analisar todos os aspectos
da história de Batman (muito menos os três filmes, como era a minha idéia original).
Afinal, não podemos ter tudo. Meu orientador executou tão bem, neste um ano de
orientação, conversas e “brisas”, tanto a função de me retirar do mundo infinito da
imaginação e me inserir na realidade (que neste caso, pode ser traduzida pela
expressão “prazo final de entrega”), quanto a função de me motivar, me fazer ter
vontade de continuar lendo e escrevendo, através da indicação de textos que viriam a
ser fundamentais, mais principalmente, através das trocas de idéias e hipóteses, que
se tornaram a parte mais importante do trabalho. É um orgulho ter seu nome em meu
trabalho, e ter tido a oportunidade de ser orientada por uma pessoa extremamente
profissional, criativa e inteligente.

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Agradeço, ainda, aos meus amados amigos, que tiveram a paciência de me
agüentar falar sobre esse trabalho por todos esses meses. A cada um para quem eu
mandei um trecho, cada um que discutiu algum tema comigo. A todos que acharam
“muito legal” quando souberam que eu estava fazendo um T.C.C. sobre o Batman.
Com certeza, incentivos assim foram relevantes para manter meu interesse e
disposição ao longo destes dois anos. Especialmente, agradeço à minha grande amiga
Ana Carolina Pina, por me compreender tanto emocionalmente quanto
intelectualmente; por discutir tantos aspectos teóricos (do trabalho dela e do meu)
comigo, pelo incentivo, pela paciência, pelas conversas sérias e pelas não tão sérias
assim. Por me fazer rir, por levar-me a sério, por acreditar em mim, e por estar sempre
tão presente e pronta para conversar, de Freud e a segunda tópica à que vestido usar
na formatura.

A minha psicoterapeuta e grande amiga Meiri Cunha, por me fazer perceber o


que está por trás da escolha do meu tema; o que, afinal, me liga ao meu personagem
eleito. Por me mostrar uma saída para meu medo, uma maneira de aceitá-lo como
parte de mim mesma e de lidar com ele, sem tentar eliminá-lo. Assim como Batman
faz.

Mas, acima de qualquer outra pessoa, agradeço aos meus pais, alicerces de
tudo o que eu já fui, de tudo o que sou hoje e de tudo que posso chegar a ser um dia.
Agradeço imensamente a confiança, a paciência, e a dedicação que eu sempre
demandei e que eles sempre me forneceram. Os valores e a ética que me foram por
vocês passados serão para sempre parte de mim, e parte de tudo o que eu ainda farei.
Agradeço por me aceitarem como sou, cada qualidade e cada defeito, cada fraqueza e
cada força. Agradeço por vocês terem sido, nesses vinte e dois anos, os melhores pais
que alguém poderia desejar. Por terem feito tudo o que lhes estava ao alcance, por
mim e por meu irmão (a quem eu, com certeza, também tenho muito a agradecer), por
terem batalhado tanto para prover as melhores condições educacionais para nós, sem
jamais descuidar de todo o apoio emocional e afetivo. Por me dar tanto orgulho de ser
filha de vocês, de ser parecida um pouco com cada um dos dois; mas acima de tudo,
agradeço tudo o que vocês me passaram, consciente ou inconscientemente. Ser parte
desta família é o maior orgulho que tenho; e tenham certeza, vocês são minha maior
força; o que me mostra, a cada dia, que eu jamais andarei sozinha.

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Resumo
A presente pesquisa tem como tema central a relação que pode ser
estabelecida entre as teorias psicanalíticas e as histórias de super-heróis mais atuais;
especificamente, a história de Batman. Dado a força como personagens como
Superman, Homem Aranha e Batman extrapolaram os limites dos quadrinhos para se
fazerem populares ao redor do mundo, através das telas de cinema, conquistando
admiradores de diferentes gerações e culturas, torna-se relevante a busca por
compreender tal fenômeno através de uma maneira distinta daquelas mais comumente
utilizadas neste campo (a simbologia e o mito do herói). Procuraremos compreender o
sucesso de tal história utilizando um ponto de vista diferente, através da psicanálise,
fazendo uso dos conceitos postulados por Freud e de trabalhos dentro desta linha
teórica que abordam o tema dos super-heróis. Este tipo de história, contemporânea e
muito conhecida, apenas recentemente despertou o interesse da comunidade
científica, apesar de representações de super-heróis povoarem o imaginário infantil e
fascinarem adultos de todas as idades. Por outro lado, os contos de fada (outra forma
de narrativa muito conhecida e que possui algumas semelhanças interessantes com as
histórias de super-heróis, as quais iremos apresentar) são alvos de constantes análises
e interpretações desde o início do século XIX. Dentro de tal contexto, o presente
trabalho visa ser uma contribuição teórica, em um campo de estudo apenas
recentemente explorado, onde ainda há espaço para se produzir muito mais. Neste
sentido, o primeiro filme da mais recente (e elogiada) trilogia cinematográfica sobre a
história de Batman (Batman Begins, 2005) irá exemplificar nossa análise, bem como
nos fornecer uma ilustração, que nos permitirá aprofundá-la.

Palavras-chave: psicanálise; super-heróis; quadrinhos; interpretação; Batman

6
Sumário

Apresentação..................................................................................................................9
Introdução......................................................................................................................10
Metodologia...................................................................................................................18
Capítulos:
1. Por que precisamos de heróis?.................................................................................19
2. Contos de heróis.......................................................................................................25
2.1. A justiça será feita.......................................................................................28
2.2. Coisas ruins acontecem..............................................................................31
2.3. Fadas versus heróis....................................................................................34
2.4. Fascínios contemporâneos.........................................................................37
2.5. Mocinhos e bandidos..................................................................................38
3. Quero ser super herói................................................................................................40
4. Somos todos órfãos...................................................................................................48
5. Os super-heróis dos quadrinhos...............................................................................61
5.1. O universo de Batman................................................................................62
6. Batman Begins (2005)...............................................................................................74
6.1. De príncipe à lenda.....................................................................................87
6.2. Por que ser o Batman? – Aprendendo a se levantar..................................90
6.2.1. Quero ser poderoso.....................................................................90
6.2.2. Transformando o medo em poder: “não há nada a temer além do
próprio medo”................................................................................................................92
6.2.3. Transformando violência em poder: da vingança à justiça..........95
6.2.4. Transformando desamparo em poder: luta por luto...................100
7. O cavaleiro das trevas ressurge (2012)..................................................................103
Considerações finais...................................................................................................107
Referências bibliográficas............................................................................................113

7
“A primeira vitória do herói é a que ele conquista sobre ele mesmo.”
Chevalier e Gheerbrant, 1990

8
Apresentação:
Escolher um tema é uma tarefa árdua, talvez a parte mais difícil do trabalho.
Deliberar um único assunto ao qual iremos nos dedicar por dois anos, parece ser
ainda mais complicado quando se está no quarto ano da faculdade. É a primeira de
muitas decisões que teremos que tomar nos últimos anos da graduação (que
fatalmente irá desembocar na pergunta pós-faculdade: “e agora, o que eu faço?”). De
fato, o primeiro passo costuma mesmo ser o mais difícil de ser dado. Neste sentido, o
presente projeto de pesquisa percorreu um caminho um pouco diferente daqueles que
os professores orientadores recomendam (que seria através da leitura, buscar um
tema que seja do interesse do aluno).

Talvez desde o segundo semestre do curso de psicologia, eu já percebi em


mim mesma um maior interesse pela psicanálise. Logo, a linha teórica do meu projeto
já estava definida desde antes da exigência acadêmica por uma definição aparecer.
Quanto ao tema, não estou certa de que consigo precisar exatamente como ele surgiu.
O interesse pela interpretação psicanalítica de elementos ficcionais já estava presente
em mim; posso dizer que a minha opção por estudar Batman, mais especificamente os
dois mais recentes filmes sobre sua história aconteceu de maneira quase espontânea:
ao assistir os dois filmes, aos quais aqui me proponho a analisar, me senti intrigada.
Imaginei que aspectos simbólicos e psicológicos tais narrativas poderiam conter.
Imaginei o quanto eu poderia aprender, me propondo a analisá-los. Citando Fernando
Pessoa:

“Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo a que se


propõe interpretar. A atitude cauta, irônica, a deslocada – todas
elas privam o intérprete da primeira condição para poder
interpretar” (apontamento de Fernando Pessoa utilizado como nota
preliminar, publicada pela primeira vez na edição da Obra Poética
do autor pela editora Aguilar, Rio de Janeiro, 1960)

Foi na disciplina eletiva de “pesquisa em psicanálise”, no sexto semestre da


faculdade de psicologia, que a minha simpatia pelo tema se tornou mais clara, e que
um esboço deste projeto surgiu. O caminho por mim escolhido para abordar o tema
aconteceu durante o atual semestre: primeiramente, tratarei da importância da ficção
na vida psíquica do sujeito, para em seguida abordar a temática das atuais narrativas
de super-heróis, para chegar, finalmente, ao meu objeto de análise/ interpretação mais

9
específica: a história do Batman, tomada através do recorte dos filme Batman Begins
(2005).

Introdução:
Dentre os muitos jogos de fantasia de uma criança, o de viver o papel de um
super-herói, dotado ou não de poderes especiais, tem sido muito presente nas últimas
gerações. A figura de um garotinho correndo pela casa com um lençol amarrado ao
pescoço como capa, um cabo de vassoura como espada, ou uma tampa de panela
como escudo, nos remete à nossa própria infância, e a infância de pessoas próximas a
nós. Não se restringindo apenas a uma atividade lúdica exclusiva dos meninos (uma
vez que, na evolução das histórias em quadrinhos, a figura feminina deixou de ser
apenas aquela que precisa ser protegida, para ser, muitas vezes, ela própria a heroína
da história), nós nos lembramos da época em que queríamos poder voar, ter força e
agilidade sobre humanas, salvar o mundo de super-vilões.

“Desde o início do século 20, quando foram criadas, as histórias


em quadrinhos de super-heróis fascinam crianças, jovens e adultos.
Dificilmente uma criança ao brincar não tenha se imaginado usando uma
capa e protegendo ‘os fracos e oprimidos’. É interessante notar que os
heróis que as crianças gostam hoje não diferem muito daqueles que seus
pais e avós também apreciavam. Personagens como Superman e
Batman foram criados há mais de 60 anos, e mesmo assim são
campeões de venda, conquistando novas gerações de leitores e
admiradores, possuindo franquias altamente rentáveis em brinquedos,
filmes e diversos produtos. É comum encontrar adultos lendo suas
histórias ou usando uma camiseta com a estampa de um desses
personagens.” (Costa, 2010, p. 2)

Foi esta identificação da criança com a figura do herói, e também a crescente


atualidade do tema, uma vez que, nos últimos anos, Hollywood tem contribuído
massivamente para a divulgação de tais histórias, com inúmeros longas-metragens
extraídos de páginas de quadrinhos, que nos leva a pensar sobre elas, mais
especificamente sobre o que há de comum entre elas.

Mesmo sem possuir conhecimento especializado acerca de cada narrativa,


certas características das histórias de super-heróis são conhecidas e partilhadas por
uma grande parte da população, sendo que a maioria não teve a acesso às histórias
em quadrinhos nas quais os longas-metragens se inspiram. Todos nós sabemos que
os heróis têm disfarces e identidades secretas, são corajosos, responsáveis e
altruístas, e que o objetivo da grande maioria dos vilões é dominar o mundo (ou o
universo). Destes pontos de partida, nos questionamos o que mais haveria de comum

10
entre as muitas histórias em quadrinhos que contém a temática destas figuras super-
poderosas, as chamadas HQs. E quais destes conteúdos recorrentes poderiam estar,
de alguma forma, relacionados com a teoria psicanalítica. Neste campo, existem mais
questionamentos do que respostas, e mais hipóteses do que certezas, até mesmo por
se tratar de um exercício interpretativo, onde buscamos tomar as histórias de super
heróis, através do exemplo do Batman como objeto de análise, usando, para tal, a
teoria Freudiana.

A importância das narrativas também entra em foco neste momento, uma vez
que a história em quadrinhos é, primeiramente, uma ficção. Conforme discutem Diana
e Mário Corso (2006), o ser humano precisa da ficção para construir seu próprio
mundo, uma vez que é nela em que poderão ser encontrados elementos para tecer
sua própria subjetividade. Além disso, a ficção é uma forma de representação, e tudo
aquilo que encontra tal forma de ser apreendido se torna mais passível de ser
equacionado. Ainda segundo os autores:

“(...) Quando temos um problema, pinçamos uma história que


venha nos falar dele, de preferência aquela que contenha uma certa
resolução. Relançamos na fantasia o que nos aflige, mas em sua
versão ficcional, o problema encontra alguma saída.” (Corso, 2006,
p. 164)

Desta forma, toda a ficção se torna importante como uma maneira do sujeito
buscar formas de representação para suas questões. Segundo os autores, tal
afirmação é válida para qualquer tipo de ficção, pois o sujeito, quando em contato com
esse mundo de fantasias, vai criando alternativas para lidar com os seus dramas. Por
tal motivo, são injustificadas as críticas de certos autores as “novas formas de cultura”,
como o cinema ou as próprias histórias em quadrinhos, que foram consideradas por
tais estudiosos como sendo maneiras “menores” de receber e transmitir informações,
enquanto que a chamada forma “correta, nobre e verdadeira” seria a leitura tradicional.
Como exemplo, podemos citar Bettelheim (2002), para quem o conto de fadas seria a
maneira mais adequada das crianças entrarem em contato com a ficção. Ainda sobre
este tema, Corso (2007, p. 303) afirma:

“Histórias não garantem a felicidade nem o sucesso na vida,


mas ajudam. Elas são como exemplos, metáforas que ilustram
diferentes modos de pensar e ver a realidade e, quanto mais variadas e
extraordinárias forem as situações que elas contam, mais se ampliará a
gama de abordagens possíveis para os problemas que nos afligem.”

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Outros autores defendem que as formas mais “modernas” de ficção, como os
quadrinhos e outras formas de ilustração (como o cinema), afastariam o jovem da
leitura e seriam possíveis responsáveis pelo empobrecimento das capacidades
cognitivas das gerações seguintes. Porém, não foi observado tal fenômeno, apenas
foram acrescentados alguns meios de expressão (e nem por isso os meios tradicionais
foram extintos; pelo contrário, muitos jovens se interessam em ler um livro após
assistir sua versão cinematográfica). Outra crítica enfrentada pelos quadrinhos diz
respeito às ilustrações: apreender a informação por meio de imagens seria um
“exercício preguiçoso”, quando na verdade:

“Não é correto contrapor a ilustração à escrita. Para ler


quadrinhos, além de saber ler a escrita, é preciso dominar um código
particular, expressão simbólica desta forma narrativa, que não é
mais rica ou mais pobre, e sim diferente. (...) Toda uma geração de
pensadores teve dificuldade com a cultura de massa norte
americana. As manifestações culturais modernas, como quadrinhos,
cinema e tevê, ficaram classificadas como entretenimento,
compreendido como algo menor, e, portanto menos formativo que a
cultura letrada tradicional.” (Corso, 2006, p. 167)

Logo, não é possível ignorar estas novas formas de narrativa, ou dispensar a


elas um tratamento inferior se comparado aos tradicionais contos de fadas, por
exemplo, uma vez que os interesses de uma pessoa são influenciados pelo meio no
qual ela está inserida (seus pares, amigos e colegas) e pela oferta dominante na
mídia. Seja tal cultura produzida para massas ou exclusiva para as elites, é através
dela que o sujeito encontra elementos para compor sua própria história, e indo além:
se o sujeito se interessa, investe energia e libido, em um determinado tipo de história
(que parece seguir alguns padrões) então este tipo de história e estes padrões “falam”
a ele, fornecem meios de representação de conflitos e de construção de subjetividade,
e não apenas mero entretenimento e/ou distração, desprovido de valor simbólico. Além
disso, o mundo imaginário das fantasias inconscientes sobrevive à aparente
transparência da era das comunicações com seu imperativo de tudo mostrar, tudo
dizer, tudo existir (Kehl, 2006). As estórias infantis incrementam fantasias e auxiliam
na elaboração de conflitos internos.

“Em princípios do século 20, surge uma nova categoria de herói –


o super-herói das estórias em quadrinho. Elas não fazem parte da
tradição oral e aparecem com forte apelo visual, tanto pelo texto como
pela representação em imagens Seu público inicial foram os garotos pré-
adolescentes. Nos quadrinhos, encontramos super-heróis como
Superman, Batman, Spiderman, entre outros. Personagens masculinas

12
que buscam, acima de tudo, vigiar os perigos da noite, combater o crime
e aplicar a justiça” (Colucci e Fonoff, 2008, p.5)

Costa (2010) afirma que, nas histórias em quadrinhos com temática de super-
heróis, encontram-se elementos de auxílio na formação psíquica de crianças e adultos,
tanto aliviando angústias (conscientes e inconscientes), como sendo uma fonte de
desenvolvimento moral. Além disso, segundo o autor, a importância de tais histórias é
evidenciada quando constatamos que o herói é a matéria-prima dos mitos, na qual
uma de suas funções é a de mostrar caminhos para o avanço da sociedade.

Conforme dito anteriormente, a questão da popularidade de tais contos e a


forma com que histórias que foram lançadas pela primeira vez na década de 1930,
(como é o caso do Super-Homem) continuarem fazendo sucesso e exercendo o
mesmo apelo (ou até maior) em crianças e adultos de gerações bastante diferentes,
nos soa como algo interessante e digno de um olhar mais atento. Costa (2010) afirma
que os super-heróis de histórias em quadrinhos possuem, nos dias atuais, grande
destaque em nossa cultura, trazendo dentro de si as mudanças pelas quais nossa
sociedade vem passando no decorrer do tempo, não apenas na forma como é
apresentado o conceito de herói, mas também nas próprias relações humanas.

A identificação da criança com a figura superpoderosa é evidente, através dos


jogos de faz de conta, das falas que manifestam o desejo de possuir os mesmos
poderes (e até os mesmos inimigos) dos heróis. Porém, gostaríamos de entender a
força, a dimensão e a importância de tal identificação, e do interesse das pessoas em
geral (e não só das crianças) pelas HQs e suas derivações.

Tornou-se um lugar-comum, dentro da comunidade acadêmica, pensar a


questão dos super-heróis através da mitologia, dos heróis gregos e romanos e da
simbologia envolvida em tais histórias. Sobre este tema, o livro O herói de mil faces, de
Campbell (2002) se destaca pela sua e descrição detalhada na abordagem da jornada
pela qual o herói passa, assim como Oliveira (2007) em seu trabalho “A jornada do
herói na trajetória do Batman”, que relaciona a realização do ciclo heroico, tal como
formulado por Campbell, com as características arquetípicas do personagem Batman.
Costa (2010) também propõe uma análise dos personagens das histórias em
quadrinhos de super-heróis através da questão do mito, para analisar as
representações sociais por elas transmitidas. O autor analisou o herói de HQ,
enfatizando suas origens, seu papel na sociedade e como a cultura influencia e é

13
influenciada por este. Lobianco, em sua dissertação de mestrado “O sublime gótico
Batman” (1998) também buscou compreender a história de Batman, através da
mitologia:

"O Batman sintetiza o mito dos heróis e dos ritos de passagem.


O morcego é um símbolo presente em culturas pré-colombianas, do
vampiro que renasce no sangue do outro. No caso, isso ocorre com a
morte dos seus pais e o seu desejo de vingança” (p. 7).

Não queremos, absolutamente, tirar o mérito e a relevância deste tipo de


análise. Contudo, queremos seguir uma via diferente. Compreendemos que os super-
heróis atuais guardam profundas semelhanças com os heróis dos mitos, porém iremos
focar nosso estudo nos heróis do nosso tempo, tão populares e admirados,
especialmente em um, Batman. A escolha por tal personagem não é arbitrária:
enquanto a grande maioria dos super-heróis atuais ou nasceram com seus super-
poderes ou acabaram por adquiri-los em algum momento da vida, sem ter nenhuma
intencionalidade envolvida, para então ajudar aos que precisam, “já que tem o
superpoder”, Batman reverte esta equação quando primeiro decide, conscientemente,
que quer lutar contra o mal e defender a população, para então ir, ativamente, em
busca de seus poderes. Além disso, ele não é um alienígena, uma mutação, um ser
completamente impossível. Batman é um dos poucos super-heróis sem poderes
especiais, o mais humano dos protagonistas de HQs. Ele é apenas um homem, que, a
princípio, não tem nenhuma característica especial, o que torna esta figura mais
possível de existir na vida real como nós a conhecemos, do que o estudante que foi
picado por uma aranha radioativa, que é o caso do Homem Aranha, ou do alienígena
de um planeta distante, como o Superman. Acreditamos que, já que Batman é
completamente responsável e tem todo o mérito da aquisição de seu poder, ele pode
ser uma figura que exerce uma identificação mais consistente, talvez passando uma
mensagem mais positiva, mais real e carregada de sentido aos seus fãs.

Contudo, Batman é um personagem complexo, que passou por diversas


transformações desde que foi publicado pela primeira vez, em 1939. Sua história foi
contata e recontada, através das histórias em quadrinhos, séries de televisão e filmes.
Cada versão apresenta um Batman diferente, com características mais ou menos
complexas. Segundo Lobianco (1998):

“Batman sempre foi um personagem multifacetado e que tem um


estilo e personalidade que foram se alterando com o passar do tempo,
com as mudanças de roteiristas, desenhistas e diretores de cinema. Ele

14
tem uma adequação editorial para cada tipo de mídia, em histórias que
não tem uma cronologia definida.” (p. 12)

Por conta deste fato, se tornou necessário delimitar qual seria a versão de
Batman a ser analisada. A escolha pela mais recente trilogia cinematográfica
[composta por Batman Begins (2005); O Cavaleiro das Trevas (2008) e O Cavaleiro
das Trevas Resurge (2012)] aconteceu de maneira quase intuitiva: além de serem os
filmes preferidos da autora, também o são de praticamente todo fã da série. Estes três
filmes revolucionaram a maneira de transpor histórias em quadrinhos para o cinema,
tornando o roteiro, o herói e os vilões muito reais, possíveis de existir em um mundo
próximo ao que nós vivemos; trazendo um começo, uma razão pela qual o
personagem foi criado. Neste sentido, por mais que a intenção primeiramente fosse
realizar uma análise dos três, acabou se fazendo necessário a eleição de apenas um
deles, como objeto privilegiado do nosso olhar. Para isto, foi escolhido o filme Batman
Begins, por retratar precisamente este começo, mostrando porque e como o herói foi
criado, assim como nos possibilitando entender como uma criança marcada pela
tragédia se transforma em uma figura super poderosa. Enquanto o segundo filme
fornece ao público um desenrolar de sua saga, o terceiro contribui com o final para tal
personagem. Os três filmes foram grandes sucessos de público e de crítica. Além
disso, os temas trazidos pelos roteiros extrapolam o personagem do herói: há vilões
interessantes e surpreendentes, como o Espantalho, que usa o medo das vítimas
como maneira de agredi-las, e o Coringa, um “agente do caos”, tentando tirar a ordem
e a previsibilidade de uma cidade inteira. Em outras palavras, estes três filmes
apresentam um recorte da história deste herói que permite compreendê-la em toda a
sua complexidade de sentidos, além de apresentar as origens de Batman, o trauma do
assassinato dos pais, os motivos que o levaram a escolher ter super-poderes e o duro
treinamento físico e mental ao qual se submeteu para se tornar um herói. A superação
de seus próprios limites, a responsabilidade por si mesmo e o auto-controle são temas
presentes nos três filmes (em especial, no primeiro), assim como na vida psíquica de
cada um de nós.

Dentro da nossa busca por autores que analisam diferentes tipos de narrativas
sob a luz da psicanálise, encontramos um grande número de trabalhos sobre contos de
fada, entre eles os de Bettelheim (2007) e Corso & Corso (2006). Este tipo de narrativa
tem sido discutido e interpretado através não apenas de teorias psicanalíticas, mas
também junguianas e sócio-históricas desde o século XIX. Conforme apontam Colucci
e Fonoff (2008): “Desde o início do século XIX, a comunidade científica direcionou sua

15
atenção aos contos de fadas, fábulas, cantigas de roda, provérbios, lendas, entre
outros materiais de tradição oral” (p. 1)

Ao entrarmos em contato com tais estudos, podemos perceber que muito


daquilo que os autores falam acerca dos contos de fada, também poderia ser válido
para as histórias de super-heróis, respeitando as devidas diferenças existentes entre
ambas. Contos de fada e histórias de super-heróis são formas populares e conhecidas
de narrativas, teoricamente destinadas ao público infantil; são carregadas de sentido e
possíveis de ser interpretadas. Há a presença da luta entre o bem e o mal
(abordaremos este tema através de Klein (1952)), a orfandade dos protagonistas,
temas importantes e obscuros (como morte, separação e medo), a supremacia do bem
e da virtude no final. E acima de tudo, são fontes de elementos para a construção da
subjetividade de quem as escuta, ou as assiste, ou as lê. As crianças querem ser
príncipes ou princesas, heróis ou heroínas. Nós queremos ser, e nos sentir, poderosos,
capazes, vitoriosos no final da nossa história. Nós nos identificamos com os
protagonistas, de modo que a força desta identificação com uma figura boa, virtuosa,
vencedora e poderosa, será importante por toda a nossa vida. Para discutir sobre estas
identificações, abordaremos os conceitos extraídos dos texto "Dissecção da
Personalidade Psíquica" (Freud, 1933), “O Ego e o Id” (Freud, 1923) e do “Vocabulário
de Psicanálise” (Lapanche, 1967), Sobre a questão do poder em si, tomaremos como
base Di Loreto (2007), que desenvolve, em seu livro “Posições Tardias”, uma nova
posição: a da potência. Tal conceito é de importância para nosso trabalho, uma vez
que o que diferencia o super-herói da população que ele defende é a presença de um
poder que apenas o herói possui. Di Loreto afirma que se no primeiro ano de vida do
ser humano, a questão fundamental é sentir-se amado, no segundo, o importante é
sentir-se poderoso. Além disso, este sentir-se poderoso implica em dar um destino
adequado ao medo. Desta forma, poderemos relacionar a questão do medo, tão
presente na história do Batman, com o poder que ele ativamente conquistou ao
transformar aquilo que era o seu maior medo, os morcegos, em seu símbolo, uma
marca de si mesmo, que trará medo aos seus inimigos.

Por mais que abordar histórias de super-heróis (sendo que a maioria dos
psicanalistas se dedica aos contos de fada) dentro da psicanálise (sendo que a maioria
do que se dedicam a estudar heróis o fazendo dentro da mitologia e simbologia), seja
ainda um campo pouco explorado, alguns autores começam a dar os primeiros passos
no sentido da análise a qual nós estamos nos debruçando. É o caso de Azeredo
(2009), que, tendo como referencial teórico a psicanálise, utilizou personagens das

16
histórias de super-heróis em oficinas terapêuticas, que tinham como premissa do fato
de que tais histórias são significativas para as crianças e podem ajudá-las na
elaboração de seus conflitos internos. Fonoff e Colucci (2008) partem da análise das
diferenças estruturais nas estórias infantis, contos de fadas e histórias de heróis, para
examinar como a presença dos mitos compartilhados ajuda a formar os mitos pessoais
de cada criança, dentro do universo das relações objetais pré-genitais, objetais genitais
e conflitos edípicos, abordando a questão da orfandade: princesas, nos contos de fada,
são órfãs de mãe e os super-heróis são órfãos do casal parental. As autoras também
ilustram suas considerações teóricas com o caso do Batman, e suas interpretações
nos auxiliarão a explicar alguns aspectos de sua história, principalmente aqueles
relacionados ao conflito edípico e a morte de seus pais, assim como a tomada de
Alfred, o mordomo, como uma espécie figura paterna substituta. Outra ideia
interessante das autoras é que os super-heróis, principalmente o Batman, também
poderiam ser representações da figura paterna. No caso, Batman é ao mesmo tempo,
uma figura ameaçadora e protetora, que transita entre a violência e a misericórdia.
Associando tal ideia à noção de que a religião poderia funcionar como instância
semelhante, sendo ao mesmo tempo fonte de proteção e conforto e fonte de
castrações e temor (Freud, 1930), podemos conferir maior credibilidade à hipótese de
que a figura superpoderosa poderia ocupar o papel de figura paterna, que protege ao
mesmo tempo em que ameaça, como faz a religião. Além disso, é muito comum
crianças representarem seus pais como super-heróis em desenhos, falas, sonhos e
brincadeiras.

Através da pesquisa teórica e do filme Batman Begins, no qual a análise será


focada, pretendemos responder algumas das perguntas sobre o tema: qual a
importância da ficção na vida psíquica do sujeito? Qual o valor que o herói possui na
sociedade contemporânea? Como os super-heróis podem ajudar o sujeito na formação
de sua subjetividade? Porque os super-heróis e suas aventuras fazem tanto sucesso
perante ao público? Porém, o principal questionamento seria: como a psicanálise pode
nos ajudar a compreender as histórias modernas de super-heróis (tendo como exemplo
o Batman)? Uma vez que o mundo Freudiano é o mundo do desejo, não das coisas e
nem do sujeito, mas da relação do sujeito com a falta, com a perda (Mesquita, 2008),
acreditamos que a psicanálise Freudiana pode nos fornecer as mais adequadas bases
teóricas sobre as quais desenvolveremos uma linha interpretativa, tendo em vista que,
para o objeto de análise escolhido, a questão de como lidar com a falta e com a perda
são de fundamental importância para a sua constituição, assim como também o são
para cada um de nós.

17
Metodologia:
O presente projeto se propõe a fazer uma pesquisa teórica, tendo como
referência a psicanálise Freudiana, partindo de uma contextualização histórica e da
comparação com outro tipo de narrativa há muito estudada pela psicanálise, os contos
de fada. Tomaremos como base os escritos de Freud, mais especificamente,
Psicologia dos grupos e análise do ego (1921), O Ego e o Id (1923), Mal estar na
civilização (1930) e Dissecção da Personalidade Psíquica (1933). Através de textos
teóricos sobre os conceitos de identificação, superego, narcisismo, complexo de Édipo
(dentre outros temas) e de pesquisas já existentes sobre narrativas de super-heróis,
buscaremos traçar paralelos que nos levem a uma linha de pensamento a fim de
responder alguns de nossos questionamentos acadêmicos e curiosidades pessoais a
respeito das figuras super poderosas e sua importância na formação de subjetividade
dos seres humanos. Utilizaremos como exemplo o filme Batman Begins, que nos
fornecerá uma ilustração de uma narrativa moderna de herói, onde nós
aprofundaremos nossa análise, e realizaremos um exercício interpretativo.

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1. Por que precisamos de heróis?
Da mesma forma que na clínica psicanalítica a repetição é um sinal do
inconsciente, a avalanche de produções cinematográficas envolvendo super-heróis
pode ser um sinal de que algo (inconsciente) ocorre. No filme Superman Returns
(2006), apesar do fiasco de bilheteria, a pergunta que é feita nos serve de suporte: "Por
que precisamos do Superman?", que, no nosso estudo, pode ser adaptada para "Por
que precisamos de Super-heróis?" Segundo Costa:

“Mesmo com o passar dos anos, com a mudança nos costumes e


na cultura, a admiração por heróis permanece intacta – pode-se mudar
poderes e uniformes, mas a fascinação por alguém que realiza feitos
acima da capacidade humana não se altera. Dessa forma surgem as
indagações: ‘por que os heróis fascinam tanto a sociedade?’ e ‘por que
as pessoas necessitam tanto de ter e criar heróis, em outras palavras,
qual é sua função social?’(2010, p. 2)

Em primeiro lugar, devemos ter em mente que os super-heróis são um produto


cultural que surge vinculado a um determinado contexto social, preenchendo certas
necessidades de tal contexto e trazendo questões relativas à ele. Em outras palavras,
os super-heróis surgiram numa época de demanda provocada pelos problemas sociais,
mas também se aproveitando das necessidades subjetivas permanentes existentes em
nossa sociedade. As mudanças históricas no atual contexto social afetam, de uma
forma ou de outra, o mundo dos super-heróis. Para Costa (2010), nos quadrinhos,
independentemente do seu gênero, podemos observar a narração de duas histórias
que ocorrem simultaneamente: uma é a que o escritor se propôs a contar, e a outra
está implícita nos desenhos e ações dos personagens. Esta segunda é o período
histórico em que foi feita a HQ.

Citando Campbell (1949), Costa (2010) afirma que desde a antiguidade, em


todas as culturas e povos, a arte de contar histórias foi exercitada, originando os mitos,
que sempre foram habitados pela figura do herói:

“Este pode ser encontrado nas lendas tribais, como o guerreiro


que liderou seu povo nas batalhas contra tribos inimigas, e desafiou os
maus espíritos; nos escritos sagrados, na figura de deuses, semideuses
e homens, que vieram ao mundo ensinar as verdades do universo; nos
contos de fadas, com histórias de crianças que, em um lance de
esperteza, ludibriam a bruxa e conseguem fugir de suas garras; nos
poemas épicos, nos quais navegantes desbravam os sete mares a
procura de novos mundos; no cinema, com seus galãs, ‘a prova de

19
balas’; nas revistas em quadrinhos, nos fazendo acreditar que um
homem pode voar.” (Costa, 2010, p. 3)

Apesar deste não ser o nosso foco, não podemos deixar de relacionar a
questão da origem dos super-heróis com o herói da mitologia, uma vez que esta nos
fornece a mais primordial figura heroica. Os mitos foram essenciais para o
desenvolvimento da sociedade, alimentando as artes, filosofias, religiões, ciências e
outros campos que englobam a existência do homem. Os mitos não são meras
invenções dos povos, mas se constituem como representações de nossa psique. É
esta origem – da própria subjetividade humana – que torna os símbolos dos mitos
universais e atemporais. Por mais diferentes que possam parecer as lendas de
sociedades distintas, todas possuem elementos comuns na narrativa, indicando que
todas são originárias da mesma “fonte” (Campbell, 1949). Com o desenvolvimento da
psicanálise, a universalidade dos símbolos ficou mais evidente, através da
interpretação dos sonhos e imagens geradas pelo inconsciente, possibilitando uma
melhor compreensão de seus significados, independente da cultura em que o indivíduo
está inserido (Bettelheim, 1995; Campbell, 1949). O mito possui uma representação
social parecida com a dos rituais realizados pelos povos antigos, que representavam a
passagem de um estágio para outro da vida, como o nascimento, morte, puberdade,
casamento, entre outros: “A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de
fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se a aquelas
outras fantasias humanas constantes que tendem levá-lo para trás” (Campbell, 1949,
p. 21)

Dessa forma, no rito, os participantes realizam as celebrações objetivando


preparar a mente do “iniciado” para a sua nova condição, deixando para trás qualquer
laço de sua vida antecessora. É interessante notar as semelhanças com a jornada
percorrida pelos heróis nos mitos: a separação de sua antiga posição social (criança,
solteiro, subordinado), pode ser comparada à partida de seu lar que um herói deve
fazer, para realizar as aventuras: a iniciação, que coloca o indivíduo a par de suas
novas obrigações, compara-se com os primeiros desafios enfrentados que irão moldar
o herói; e o retorno à sua sociedade, em sua nova condição, ao retorno do herói para
casa, trazendo os benefícios alcançados para o bem das pessoas em sua volta
(Campbell, 1949).

Para Costa (2010), as histórias em quadrinhos, ao longo dos anos, recriaram


este movimento de diversas formas, sempre caracterizado pelos pensamentos

20
vigentes do período histórico no qual foram escritas. Segundo Viana (2005), os
antecessores mais próximos dos super-heróis, por suas habilidades sobre-humanas,
talvez sejam os deuses do politeísmo antigo, principalmente os deuses gregos e
nórdicos (que, aliás, foram incorporados no mundo dos quadrinhos: Hércules e Zeus,
deuses gregos, e Thor, Loki e Odin, deuses nórdicos, foram introduzidos no mundo dos
super-heróis, através de histórias criadas pela Marvel). Poderíamos pensar também
nos heróis como precursores dos super-heróis, tanto os da ficção quanto os da
realidade. O individualismo da sociedade moderna abre espaço para a valorização do
herói real e também o herói fictício. No entanto, os heróis fornecem apenas alguns
elementos para a criação dos super-heróis, que seria necessário complementar com
outros aspectos, só possíveis com o desenvolvimento histórico. Os super-heróis tal
como os conhecemos atualmente, assim como suas características definidoras, são
produtos da sociedade moderna. Os deuses antigos são super poderosos, mas são
vistos como verdadeiros por seus produtores e reprodutores, até serem transportados
para o mundo da ficção, enquanto que os super-heróis são reconhecidos como
produtos fictícios tanto pelos seus produtores quanto leitores. Os heróis (tanto os
fictícios quantos os reais) são seres habilidosos, corajosos, excepcionais, mas sem
super poderes. A formação dos super-heróis só foi possível através da conjugação de
diversas determinações, entre as quais os avanços tecnológicos, o individualismo e a
necessidade de homens fortes em períodos de crise, uma vez que esses personagens
possuem poderes e habilidades incríveis, realizando proezas acima da capacidade
humana, e, mesmo com essa “superioridade”, protegem os mais fracos, em vez de
subjugá-los (Costa, 2010).

Para tentar entender esta questão, podemos voltar à época em que os super-
heróis das histórias em quadrinhos foram criados, para pensarmos sobre qual foi a sua
importância dentro deste contexto sócio-cultural: Quando, por exemplo, o Capitão
América apareceu pela primeira vez, o mundo contemplava a ascensão do nazismo.
Não era coincidência que seu maior inimigo, o Caveira Vermelha, fosse nazista. O
povo americano se sentiu profundamente ameaçado por esta, até então desconhecida,
ameaça, assim que Hilter ocupou a França. Sentindo-se solitário e abandonado, o
povo conclamava por um salvador, um herói. Foi então que em 1941, Joe Simon e
Jack Kirby criaram a figura de um super-herói que não apenas defendesse seu país,
mas que carregasse no próprio corpo a bandeira dos Estados Unidos. Outro fato
ilustrativo envolve a criação do Super-Homem. O homem de aço nasce 1938,
publicado na revista Atcion Comic número 1. Concomitantemente a isto, uma série de
fatores históricos estava se desenrolando: o primeiro deles foi a crise das bolsas de

21
valores em 1929, que jogou o país na recessão econômica. Nos anos posteriores, o
país ergueu-se e começou a ser considerado uma das grandes potências, mas é
assolado por uma 2ª grande guerra, e essa ameaça faz surgir a imagem de alguém
“super”, alguém que viera de um planeta destruído, da mesma forma com que os
Estados Unidos viu sua grande nação sofrer com a primeira guerra mundial e com a
crise de 1929. Portanto, mais uma vez, a sociedade norte-americana precisava de uma
esperança, de um ícone, algo que fosse mais rápido que um trem, que pudesse saltar
prédios, que os inimigos tremessem apenas por ouvir seu nome. Cria-se então o
Super-Homem, um homem indestrutível, como o seu povo desejava que fosse seu
próprio país. O Super-Homem é, também, um produto de sua época. Era a resposta
americana ao nazismo e sua ideologia da “raça superior”, e, ao mesmo tempo, um
apelo ao homem comum, para que ele seja forte e suporte todas as situações
desfavoráveis (a crise da época), bem como um grito de liberdade inconsciente.
Queremos dizer com isso que, do ponto de vista intencional, consciente, o Super-
Homem tinha uma função parecida com a chamada “auto-ajuda”, já que era o protótipo
do homem-forte, que suportava as misérias do mundo. Também era resposta fictícia
dos americanos ao nazismo: precisamos de soldados, heróis de carne e osso, e os
heróis fictícios são exemplos a serem seguidos, inspiradores, amados pelo público.
Mas existe também um lado não intencional, que revela o desejo inconsciente de
liberdade, de ultrapassar os limites de uma sociedade burocrática, mercantil, sem
aventuras, uma cotidianidade vazia e sem sentido. O Super-Homem, assim, pode ser
considerado expressão do dilema do indivíduo norte-americano de sua época, mas que
permanece existindo, em muitos aspectos, até os dias de hoje. Isto é observável, por
exemplo, em sua dupla identidade, a de homem comum, oprimido e preso nas malhas
burocráticas, e o Super-Homem, invencível e imbatível, que desafia as leis da natureza
e supera todos os limites humanos. A recepção do Super-Homem foi resultado das
tendências da época e das necessidades inconscientes dos indivíduos presos no
mundo burocrático, limitador. A respeito do Super Homem, Costa (2010) afirma:

“Este herói, que rapidamente tornou-se um grande sucesso


comercial, pode ser visto como a personificação da própria sociedade
norte-americana. Lutando pelos seus ideais, o “Homem de Aço” – como
também é conhecido – sempre foi apresentado como um ser invencível,
protetor dos mais fracos, com altos valores morais (tanto que apenas
prende os vilões, nunca os mata). Essa era a imagem que os Estados
Unidos queriam transmitir ao mundo. Como um país construído por
imigrantes, o Superman representava bem esta origem, pois era um ser
vindo de outro planeta, adotando esta nova terra como seu lar e se
incumbindo de ser seu principal protetor.” (p. 6)

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“Em períodos de crise, as HQ entravam em cena, com objetivo de
levantar a moral da população. Foi assim no período do crack da Bolsa
de Nova York, quando as pessoas estavam sem muitas esperanças no
futuro, com altos índices de miséria e desemprego.” (Costa, 2010, p. 6)

Outra relevante questão se deve ao fato das histórias de super-heróis obterem


mais sucesso junto ao público jovem. Tal questão nos remete ao problema do
inconsciente coletivo (Freud, 1921). O inconsciente coletivo é o locus de um conjunto
de necessidades-potencialidades reprimidas por um determinado grupo social. Isto nos
ajuda a compreender este fenômeno, uma vez que a juventude é um grupo social que
possui características próprias, derivadas de sua posição na sociedade. Os jovens são
aqueles indivíduos que estão em processo de ressocialização (ou “socialização
secundária”), isto é, estão sendo preparados para assumir uma profissão e, junto com
ela, as responsabilidades sociais. Este “estágio de preparação” é marcado pela
ambigüidade: a falta de autonomia por não possuir recursos financeiros (que os adultos
possuem) marca uma luta por esta autonomia, mas ao mesmo tempo, revela sua
recusa, pois o próprio processo de ressocialização, uma antecâmara da vida
profissional e social adulta, e do futuro que lhe espera (profissão e responsabilidades
sociais, tal como o casamento, funções civis, entre outras) é negado, e esta postura
contraditória é o signo de sua ambigüidade. Os jovens desejam autonomia financeira,
mas não querem “pagar” por ela, isto é, assumir as responsabilidades que são sua
condição de possibilidade. Mas isto não é um processo consciente, uma vez que, para
perceber tal processo, seria necessário uma ampla consciência do conjunto das
relações sociais da sociedade moderna. E como os jovens já estão submetidos ao
processo de ressocialização (escola, para uns, trabalho para outros), já são vítimas da
repressão social e por isso possuem um desejo inconsciente de liberdade, que
constitui parte do inconsciente coletivo da juventude. O desejo de liberdade é um ponto
fundamental aqui, e os super-heróis satisfazem imaginariamente este desejo, assim
possuindo uma força atrativa inconsciente, além daquela que se manifesta de forma
consciente. Mas como este não é um problema apenas do jovem, os super-heróis dos
quadrinhos também satisfazem imaginariamente os desejos de liberdade de outros
grupos sociais: o público apreciador e consumidor de tais histórias vem, cada vez mais,
sendo expresso por faixas etárias mais velhas, já que os jovens do passado ainda não
abandonaram seu desejo inconsciente de liberdade, e a ligação de outros tempos traz
um atrativo nostálgico, que é um ingrediente a mais para sua permanência e
perpetuação. No entanto, o público jovem continua sendo o aliado mais forte dos
super-heróis, pois é durante a juventude que a manifestação do desejo inconsciente de
liberdade é mais forte (Viana, 2005).

23
O surgimento e desenvolvimento das histórias modernas de super-heróis
também estão intimamente relacionados ao desenvolvimento da ciência e da
tecnologia: sem tal evolução, poderíamos pensar em seres semelhantes, mas não
super-heróis, que são produtos da sociedade moderna e só podem emergir com suas
características definidoras nesta sociedade, marcada pelo desenvolvimento científico-
tecnológico. Não seria de todo impossível a criação imaginária de super-heróis sem
utilizar o apelo à ciência, pois se poderia utilizar os poderes mágicos para lhes
caracterizar, mas não os poderes de origem tecnológica (como é o caso do Homem-
de-Ferro, e o objeto principal de nossa análise, Batman) e “cósmicos” (como no
Surfista Prateado). No entanto, embora o mundo dos super-heróis tenha incluído a
magia como fonte de poder em muitos casos, sem o desenvolvimento científico que
está na base da origem e desenvolvimento dos super-heróis, certamente eles não
existiriam. A imaginação criativa, que está na base da criação dos super-heróis, é
diretamente derivada do desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade e da
totalidade das relações sociais da sociedade capitalista.

No caso específico do Batman, escolhido como nosso objeto para uma análise
mais detalhada, podemos observar que, no ano em que o "Cavaleiro das Trevas"
aparece pela primeira vez na revista "Detective Comics Nº 27" (edição de maio de
1939), o mundo entrava na sua Segunda Grande Guerra, e os Estados Unidos ainda
viviam a incerteza da sua participação no conflito desencadeado no front europeu. Em
1941, os norte-americanos se aliam às forças que combatiam o nazismo e Batman
também se "alista", é convocado a defender os interesses norte-americanos (fato que
se repetirá posteriormente, com frequência, nos quadrinhos). Como afirma Lobianco
(1998): “As suas histórias tiveram um papel importante para elevar a moral das tropas.
As revistas eram jogadas de aviões nos campos de batalha. Em algumas, o próprio
personagem luta no front de guerra contra os alemães". (p. 15)

Nas décadas seguintes, Batman também combateu generais loucos do Sudeste


Asiático à América Latina, interferiu na Guerra Fria, teve espiões como algozes e
inimigos interplanetários, ao mesmo tempo, em que os Estados Unidos e a extinta
União Soviética disputavam a hegemonia espacial e eram abalados pela Crise dos
Mísseis, em Cuba, em 1962, cuja maior iminência era de uma Guerra Nuclear. Os
tempos sombrios na realidade mundial são retratados no estilo gótico de Gotham City e
a sua alta taxa de criminalidade de uma metrópole fictícia, inspirada numa Nova Iorque

24
dominada por quadrilhas de gangster (estética também presente na Gotham City
retratada nos três filmes de Christopher Nolan).

Sendo assim, os super-heróis podem ser considerados a representação de


nossas defesas, eles surgem (ou melhor, nós os criamos) quando nos sentimos aflitos.
São elementos simbólicos para suportar a finitude humana (ou dos nossos objetos de
amor). É um processo natural pelo qual todos têm que passar. Por isso, a partir de
2006, a efervescência de filmes de super-heróis representaria um novo clamor: a ilusão
de que alguém “super” poderá nos ajudar em momentos de desespero. Levando em
conta que todas estas produções cinematográficas são norte-americanas, torna-se
compreensível o motivo deste clamor, neste momento: desde os atentados do dia 11
de setembro de 2001, a frase do ex-presidente George Bush ecoa nos ouvidos do
povo: "Nós não estamos mais seguros...". Hoje, a crise financeira que perpassa as
grandes potências e deixa temerosos países em desenvolvimento (e também os
subdesenvolvidos), é a grande vilã.

Apresentamos aqui alguns dos motivos pelos quais nós precisamos de super-
heróis, especialmente no atual momento da nossa sociedade. Porém, não podemos
ser simplistas e deixar de considerar todos os outros importantes papéis que não
apenas os heróis, mas que suas narrativas, suas batalhas e até mesmo seus vilões,
desempenham em nossas vidas. Sabemos que a discussão é muito mais complexa do
que a mera compreensão do por quê dos heróis terem sido criados em um
determinado momento, pois se eles se mantiveram atuais por todos estes anos, ainda
sendo capazes de mobilizar tantos afetos, atenções, opiniões e identificações, com
certeza existem muito mais fatores que os tornam necessários e importantes; fatores
estes que serão discutidos a seguir.

2. Contos de heróis
Quando começamos a pesquisa por referências bibliográficas, buscamos
primeiramente artigos e pesquisas que correlacionassem o referencial teórico da
psicanálise com as histórias em quadrinhos e a temática dos super-heróis – pois esta
é, justamente, nossa proposta. Tivemos dificuldade considerável em encontrar estudos
que fizessem tal associação de conceitos; no entanto, é possível encontrar vasta
bibliografia acerca da relação da psicanálise com os contos de fada. Para Costa
(2010), independente do gênero, o sucesso de um herói de HQ (bem como de outras
mídias) deve-se à identificação que existirá entre este e seus leitores. Nesse ponto as

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histórias em quadrinhos compartilham características e funções semelhantes às dos
contos de fadas folclóricos.

Ou seja, os contos de fada são comumente referidos como poderosas fontes


de identificação e construção da identidade para os indivíduos e, especialmente, para
as crianças. Dentro deste âmbito conceitual, dois trabalhos nos chamaram atenção:
são eles “A psicanálise dos contos de fadas”, de Bruno Bettelheim (2002) e “Fadas no
divã”, de Diana e Mário Corso (2006). Estes dois livros centram-se numa mesma
temática principal, a abordagem psicanalítica de diferentes contos de fada.

No capítulo introdutório à sua obra, Bettelheim discorre sobre a importância de


conferir significado à própria existência, afirmando que isto só seria plenamente
possível na idade adulta. Porém, em seu trabalho clínico com o que ele denomina
“crianças gravemente perturbadas”, o autor busca restaurar o significado na vida
dessas crianças, através do impacto dos pais e outros que delas cuidam, assim como
da herança cultural que recebem. Nesta herança cultural situam-se a literatura e, mais
particularmente, os contos de fada.

O autor apresenta uma extensa argumentação dos motivos pelos quais ele
considera que seriam estas as histórias “ideais” para crianças, pois seriam “mais
universais”, apresentariam as vantagens do comportamento moral para a criança, com
base no que parece correto, de forma concreta, e não abstrata. Além disso, apenas os
contos de fada seriam capazes de comunicar, ao mesmo tempo, à consciência, pré-
consciente e inconsciente. Nós nos perguntamos, imediatamente, se seriam as
histórias em quadrinhos e filmes de super-heróis capazes de fazer a mesma coisa.
Costa (2010) também propõe uma aproximação das duas formas narrativas:

“Muito da estrutura dos contos de fadas foi incorporada pelas


histórias em quadrinhos. Ambas são protagonizadas por heróis, que
terão que superar adversidades para alcançar seus objetivos. Esses
obstáculos podem ser interpretados (consciente ou inconsciente) por
quem lê como representação de suas próprias angústias, conflitos, e
outras questões decorrentes de seu período de desenvolvimento. Dessa
forma a vitória do herói, no final da história, tem papel importante como
instrumento de apoio ao leitor, para que este supere suas próprias
ansiedades”. (p. 5)

Segundo Bettelheim (2002), os contos de fada:


“Falam das pressões internas graves das crianças, de um modo
que ela inconscientemente compreende e – sem menosprezar as lutas

26
interiores mais sérias que o crescimento pressupõe – oferecem exemplos
tanto de soluções temporárias quanto permanentes para dificuldades.
Esta é exatamente a mensagem que os contos de fada transmitem à
criança de forma múltipla: que uma luta contra dificuldades graves na
vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que se a
pessoa não se intimida, mas se defronta de modo firme com as
opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os
obstáculos, e ao fim, emergirá vitoriosa.”(p. 13)

Ou seja, o autor afirma que dificuldades graves na vida são inevitáveis, mas o
importante, para que se torne “vitorioso” é não se intimidar pelos obstáculos e procurar
transpô-los. Em nosso entendimento, as histórias com super-heróis afirmam o mesmo,
já que trazem um personagem principal – o herói – que luta contra vilões terríveis e,
muitas vezes, com aspectos de sua própria condição de herói: como, por exemplo, ter
de se esconder e preservar sua identidade secreta, através de máscaras de fantasias.
Também há a questão aceitar o super poder como sendo parte de si mesmo, para, a
partir daí, poder dar uma resolução a questão do o que fazer com este poder. Os
super-heróis escolhem, conscientemente, usarem seus poderes para ajudar outras
pessoas, as vezes em detrimento de si mesmos e de seus desejos mais pessoais, o
que demonstra uma atitude de grande valor moral, que, assim como os contos de fada,
apresentam para as crianças (mas não só para elas) que a atitude de enfrentamento
dos problemas e questões, assim como as atitudes altruístas, éticas e valorosas, são
necessárias para que se consiga a vitória, ou seja, para que se supere os obstáculos
inevitáveis da vida, os problemas e os dramas dos quais não poderíamos fugir.

Outra questão que se faz presente nas duas formas narrativas é aquela que diz
respeito à família dos protagonistas: heróis e princesas são, com raríssimas exceções,
órfãos. Este importante aspecto é abordado por Colucci e Fonoff (2008), que
exploraram as vicissitudes do complexo edípico, a partir da constatação da orfandade
em personagens tanto de histórias em quadrinhos, quanto de contos de fada. Este
importante aspecto será discutido mais profundamente no capítulo sobre a orfandade e
o desamparo.

“Ao contrário do que acontece em muitas estórias infantis


modernas, o mal é tão onipresente quanto a virtude. Em praticamente
todo conto de fadas o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas
figuras e de suas ações, já que bem e mal são onipresentes na vida e as
propensões para ambos estão presentes em todo o homem. É esta
dualidade que coloca o problema moral e requisita a luta para resolvê-lo.”
(Bettelheim, 2002, pág 15)

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A batalha do bem contra o mal não acontece apenas na sociedade, de forma
exterior ao indivíduo; esta luta, central tanto nos contos de fada como nas histórias de
super-heróis, trata também do bem e do mal – que poderíamos corresponder às
pulsões de vida e de morte – presentes em todo indivíduo. Os “obstáculos” são
inevitáveis ao longo de toda vida, e não se encontram somente nas pressões do
ambiente, mas no interior de cada um de nós.

“O mal não é isento de atrações (...) e com frequência se


encontra temporariamente vitorioso (...). Não é o fato do malfeitor ser
punido no final da história que torna nossa imersão nos contos de fada
uma experiência em educação moral, embora isto também se dê. Nos
contos de fada, como na vida, a punição ou o temor dela é apenas um
fator limitado de intimidação do crime. A convicção de que o crime não
compensa é um meio de intimidação muito mais efetivo, e é esta a razão
pela qual nas estórias de fadas a pessoa má sempre perde. Não é o fato
de a virtude vencer no final que promove a moralidade, mas de o herói
ser mais atraente para a criança, que se identifica com ele em todas as
suas lutas. Devido a esta identificação a criança imagina que sofre com o
herói suas provas e tribulações, e triunfa com ele quando a virtude sai
vitoriosa. A criança faz tais identificações por conta própria, e as lutas
interiores e exteriores do herói imprimem moralidade sobre ela.” (idem)

O que o autor afirma neste trecho se aplica também às histórias em quadrinhos.


Assim como ocorre em contos de fada e em nossa vida cotidiana, o mal tem sempre
seus encantos e apelos, podendo até mesmo atrair o herói no início, e se encontrar
temporariamente vitorioso. Um grande exemplo disso é o formidável Coringa: o vilão
das histórias de Batman é um personagem tão complexo e fascinante quanto o próprio
herói.

O pensamento de Colucci e Fonofoff (2008) resume de forma apropriada a


relação entre contos de fadas e histórias em quadrinhos, assim como a importância de
ambos para o indivíduo (pensamento este que é compartilhado pela autora):
“As crianças pequenas sofrem os conflitos de forma inconsciente,
enquanto as maiores ou pré-adolescentes, como os retratados nos
contos e estórias, já possuem alguma capacidade de lidar com eles
numa linguagem próxima à poética. Assim, o contato das crianças com a
narrativa das estórias (tanto nos contos de fada quanto nas estórias em
quadrinho) desperta o incremento da vida imaginativa, que vai se ligar
por identificação às vivências próprias.” (p. 2)

2.1. A justiça será feita


Um bom conto de fadas, como descreve Tolkien (2006) possui as seguintes
facetas: a fantasia, recuperação de algum desespero profundo, escape de algum
perigo terrível (do qual o herói poderá se desvencilhar), e consolo, acima de tudo.

28
Desta forma, acredita-se que para que estas histórias venham a trazer algo de
construtivo à psique infantil, convém que ela possua um final feliz. Sem estas
conclusões encorajadoras, a criança se sentirá sem esperança verdadeira que
desamarre os desesperos e desamparos que circundam a sua vida.

Tradicionalmente, o herói vai ser recompensado e o mal será vencido,


recebendo sua sorte merecida, satisfazendo a necessidade infantil de que a justiça
seja feita. É o que constatamos com as histórias do Batman, Homem Aranha e Super
Homem, por exemplo, que lutam incessantemente e salvam a qualquer custo as
criaturas inocentes que habitam suas cidades de origem, e têm por objetivo aniquilar a
figura malvada que coloca em risco o bem-estar da comunidade, ameaçando-a com
possibilidades de destruição e aniquilamento. Como questiona Bettelheim (2002):

“De que outra forma pode a criança esperar que lhe seja feita a
justiça, ela que se sente tantas vezes tratada injustamente? E, de que
outra forma ela pode convencer-se de que deve agir corretamente,
quando se sente tão dolorosamente tentada a ceder às instâncias não
sociais de seus desejos?” (p. 177)

Logo que a trama começa, o herói é lançado em graves perigos, causando


grandes mudanças na calmaria do seu cotidiano. Se formos pensar sobre as histórias
do Batman e do Homem Aranha, podemos observar tal fenômeno: enqanto o primeiro
é um milionário sem nenhuma ocupação específica, além de gastar seu dinheiro e
exibir-se pela cidade, o segundo é um adolescente tímido, com uma vida bastante
medíocre e “comum”. Isto nada mais é do que a representação do imaginário infantil,
que tomado pelas mudanças bruscas que acontecem no decorrer de sua vida, sente
medo de perder a segurança conquistada por criaturas amigáveis, lançando-se num
pesadelo de ameaças. Nas histórias, o personagem geralmente encontra duas saídas:
ou entra em desespero, esperando que alguma criatura mágica os tire desta situação e

ilumine seu caminho, dizendo o que fazer, ou então tenta fugir de tudo. É neste
momento que os super-heróis surgem para inscrever alguma confiança na fragilidade
emocional da criança, lançando-se sobre a figura temida, e não medindo esforços para
retirá-la de seu destino.

Quanto mais novos somos, maior a ansiedade emergente no momento da


separação. Temos medo de sermos abandonados e ficarmos sozinhos no mundo. Por
essas e outras razões é que precisamos nos sentir protegidos, acolhidos por alguém

29
que seja mais forte e que possa proporcionar essa segurança, nos mostrando que
sempre estará por perto nos momentos difíceis, em que tudo parece estar fadado a se
desfazer.

Quando o herói se une à mocinha, há uma síntese que simboliza a integração


dos aspectos díspares da personalidade, conquistando a harmonia das tendências até
então discordantes. Usando termos psicanalíticos, são o id, ego e superego. A
ansiedade da separação passa a ser transcendida, já que o mal fora eliminado e o
casal viveu “feliz para sempre”, elevando a unidade moral no plano mais alto.

Mas não existe apenas o lado passivo da criança, que se sente desolada e
precisa do apoio parental; esta também precisa resolver seu conflito edípico, que, no
caso dos meninos (para exemplificar), visa retirar o pai do caminho, pois este está se
interpondo entre o filho e a mãe, tomando parte de seu amor para ele, e estaria
colocando em cheque o amor incondicional fantasiado e almejado pela criança, que
quer ser objeto único de desejo de sua progenitora. Sendo assim, os contos de fadas
surgem como uma alternativa para que o sujeito consiga lidar com a sua agressividade
projetada num monstro, dragão, ou qualquer que seja a figura que represente o mal, e
que seria na verdade uma batalha entre ele e o herói, com o qual a criança na verdade
quer se identificar. Com isto, passa a se sentir poderoso e um ídolo, tirando o vilão
(pai) da história para chegar aos braços da donzela (mãe), necessitando deste tipo de
ferramenta para que consiga ter acesso ao seu mundo inconsciente.

Quando as histórias realistas se combinam com o mundo da imaginação, a


pessoa recebe informações que falam das duas faces de sua personalidade, tanto a
racional como a emocional. Estas fantasias – que seriam difíceis para uma criança
inventar de modo tão complexo como surgem nestas narrativas – que surgem com o
brincar, com a leitura de um livro ou assistindo a um filme, por exemplo, ajudam-na a
vencer a angústia edípica. A criança vai, então, não somente sobreviver aos pais, mas
também os supera; e quando conseguir viver esta constatação passará a se tornar
independente e segura, ficando apenas com o melhor dos dois mundos,
transformando-se paulatinamente num adulto bem resolvido.

A criança se pergunta: - “Quem sou eu? De onde vim? Como o


mundo passou a existir? Quem criou o homem e todos os animais?
Qual é o sentido da vida?” Na verdade, ela pondera sobre estas
questões não em abstrato, mas principalmente da forma como lhe
concernem. Não se preocupa se existe justiça para um homem

30
individual, mas se ela será tratada justamente. Pergunta-se sobre
quem ou o que a lança na adversidade, e o que pode impedir que isto
lhe aconteça. Há poderes benevolentes além de seus pais? Seus
pais são poderes benevolentes? Como ela própria poderia se formar,
e por quê? Há esperanças para ela, embora tenha errado? Por que
tudo isto lhe aconteceu? O que significará para seu futuro? Os contos
de fadas fornecem respostas a estas questões mobilizadoras, muitas
das quais a criança só toma consciência à medida em que segue as
estórias” (Bettelheim, 2002, p. 49)

2.2. Coisas ruins acontecem


Os contos de fada têm, como uma de suas grandes funções, tratar da morte e
do envelhecimento, dos limites da existência humana e do desejo da vida eterna;
temas que se fazem presentes também nas histórias de heróis. Sobre os temas
sombrios tratados pelos contos de fadas, Bettelheim afirma:

“A crença prevalente nos pais é de que a criança deve ser


distraída do que mais a perturba: suas ansiedades amorfas e
inomináveis, suas fantasias caóticas, raivosas ou mesmo violentas.
Muitos pais acreditam que só a realidade consciente ou imagens
agradáveis e otimistas deveriam ser apresentadas à criança, que ela
só deveria se expor ao lado agradável das coisas. Mas esta visão
unilateral nutre a mente apenas de modo unilateral, e a vida real não
é só agradável.” (Bettelheim, 2002, p. 9)

A sociedade tenta, segundo afirma o autor, “fingir” que o ser humano não é, e
nem possui, nada de imoral ou sombrio. Daí a crença de muitos pais de que não se
pode apresentar a criança nada que não seja bom, positivo e otimista. Não é, contudo,
possível, nem desejável apresentar à criança apenas os aspectos positivos de cada
situação. Pois ela terá de viver suas próprias angústias e sobreviver a elas; de tal
forma que, nestes momentos, precisará ter construído um repertório que lhe sirva de
guia para que encontre suas próprias soluções para as situações difíceis que
inevitavelmente encontrará pelo caminho.

Apesar da roupagem peculiar de que se servem os contos de fada e as


histórias de heróis, com seus lugares e épocas muito distintas, este registros mantêm
muito em comum. Contos de fadas são repletos de castelos, princesas e dragões;
trazem histórias que se passam num passado remoto, em lugares míticos e distantes.
Histórias de super-heróis, por outro lado, trazem sociedades modernas que se
assemelham à contemporaneidade ou já a ultrapassaram, retratando um presente
problemático ou mesmo um futuro ameaçador. Nestes dois mundos aparentemente tão
separados, sempre haverá um bem e um mal; pessoas (ou monstros) que buscam o

31
poder, o controle e a violência; e um herói que, mesmo que não possua super poderes
ou capacidades sobre-humanas, tem seu mundo interior povoado pela coragem e pelo
anseio de superar os obstáculos que lhe são oferecidos.

Bettelheim, (2002) exemplifica: “(...) muitas estórias de fadas começam com a


morte da mãe ou do pai; nestes contos a morte do progenitor cria os problemas mais
angustiantes, como isto (ou o medo disto) cria na vida real.” (p. 7). Podemos
estabelecer aqui mais um paralelo entre contos de fadas e histórias de heróis: estes
são, em sua maioria, órfãos. Batman, por exemplo, decide se tornar um super-herói e
combater o crime levado por um anseio de vingança pela morte de seus pais,
presenciada por ele, na infância. Quanto ao Homem Aranha, embora não haja muitas
referências sobre o paradeiro de seus pais, este herói mora com os tios. Porém, assim
como Batman, é deixado órfão: sua figura paterna, o tio, é também assassinada. O
mesmo pode ser observado em outras histórias de super-heróis como Hulk, Capitão
América, Wolverine (pertencente aos X-Men) e Super-Homem.

Não há dúvida que a predominância de super-heróis órfãos, assim como


acontece com os personagens principais das maiorias dos contos de fada, carrega
grande significado. Como já dito, uma das grandes funções de uma história de super-
heróis e de um conto de fadas é fornecer ao leitor ou espectador um exemplo de
superação de obstáculos; mostrar-lhe atos de heroísmo que serão superpostos à sua
própria vida cotidiana, para que, identificando-se com uma figura corajosa, perceba sua
própria capacidade de sobreviver às dificuldades que virão.

Um dos maiores medos da infância é a perda dos pais. Na vida adulta, este
medo permanece, mas acaba por se tornar mais amplo: o medo da solidão e do
desconhecido, de deixar o que é familiar e ser lançado a um mundo estranho. Assim,
as histórias em que devemos buscar ao mesmo tempo conforto, identificação, exemplo
e repertório, iniciam-se com a materialização de nosso maior temor, daquilo que se
configura como o maior obstáculo possível – a solidão, o ser deixado num mundo
pouco familiar, povoado por seres estranhos e perigos desconhecidos. Superando
nossos mais profundos temores os heróis dessas histórias construirão seu heroísmo;
mostrando que são capazes de, a partir do começo mais terrível, erguerem-se
vitoriosos sobre todas as possíveis desventuras.

Na mais tenra idade, um indivíduo é capaz de sentir que sua vida e seu mundo
não são compostos apenas por aspectos bons. Desde a relação com a mãe, já se tem

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em algum momento as necessidades frustradas, se tudo correr bem. Freud (1924)
afirma que, a partir da dissolução do Complexo de Édipo, o sujeito deve para sempre
conviver com uma falta constantemente inscrita em si, que nada e nem ninguém jamais
será capaz suprir completamente.

Klein (1952), ao descrever a entrada no que denomina de posição depressiva,


mostra como um indivíduo, ao longo de seu desenvolvimento psíquico, passa a ser
capaz de se relacionar com aspectos ambíguos e contrastantes do mundo. Pois,
segundo a autora, até aproximadamente os três meses de idade predomina o que
denomina posição esquizo-paranoide, onde as relações com os objetos são parciais e
não totais; devido à angústia abismal experiência da neste momento, são necessários
mecanismos de defesa como a cisão, que fazem com que os objetos sejam ora
totalmente bons, ora totalmente ruins.

Ninguém, contudo, é exclusivamente bom. Tudo e todos possuem aspectos


violentos e destrutivos que, infelizmente, coexistem lado a lado à amorosidade, à
generosidade. A partir dos três meses de idade, o sujeito passa a ser capaz de lidar
com esta ambivalência, podendo adentrar a posição depressiva. Um indivíduo adulto
deve ser, portanto, apto a identificar em si mesmo aspectos ditos “indesejáveis”,
características negativas e pulsões agressivas, assim como aspectos construtivos e
amorosos. Torna-se necessário, então, aceitar a natureza paradoxal de si mesmo e do
mundo ao seu redor.

Ao apresentar para o sujeito, seja ele criança ou adulto, uma narrativa onde
estão presentes aspectos bons e ruins da existência humana, seja num conto de fadas,
numa história de super-herói ou qualquer que seja o tipo de narrativa, o sujeito pode
encontrar uma correspondência para o que sente e observa em sua própria vida, pois
percebe que, para tudo o que se passa, há aspectos bons e ruins. É possível, desta
forma, que tenha condições de não apenas se identificar com o herói e suas virtudes,
mas também de dar um destino aos seus próprios aspectos negativos: ao ouvir uma
história, seus ódios e angústias são convenientemente direcionados ao vilão.

É possível considerar que, ao mesmo tempo em que o sujeito se identifica com


o herói e com seus aspectos desejáveis, talvez também exista uma espécie de
“identificação negativa” com o vilão, ou seja, o sujeito projeta seus aspectos negativos
no vilão e se identifica com ele temporariamente. A partir daí, pode ver-se atuando em
destruição. Não apenas se realizaria aqui uma catarse, mas talvez o principal seria a

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queda a que esta identificação está fadada: pois todo o argumento de uma história de
herói e vilão é que o primeiro sempre vence. Não porque é melhor ou mais forte, mas
por ser capaz de evocar recursos para superar suas dificuldades; porque tem coragem
de assumir suas falhas, suas faltas, e criar a partir delas armas e escudos para lidar
com o que vier.

Assim, o ódio dirigido ao “mal”, ao monstro ou ao vilão, por quem ouve estas
narrativas, pode ser pensado como uma negação dos próprios aspectos destrutivos,
mas também como uma forma de “odiar o próprio ódio”. A cisão do bem e do mal
organiza a experiência interna de violência e destrutividade, assim como faz um bebê
no início da formação de seu psiquismo. O fato de o vilão não conseguir, mesmo com
seu alto poder destrutivo, vencer a coragem e a capacidade criativa do herói mostra ao
indivíduo que a predominância de seus aspectos violentos, de seus anseios arcaicos
devoradores e incorporatórios não deve ser buscada – pois, conduzida ao limite, leva
ao fim do próprio indivíduo. Quem almeja destruir é que acaba destruído.

2.3. Fadas versus heróis


Apesar das muitas semelhanças, encontram-se diferenças significativas entre
histórias de fadas e de super-heróis, conforme aponta Costa (2010):

“Muitos temas, que não são trabalhados em outros tipos


de literatura infantil, são presenças constantes nos contos de
fadas e histórias em quadrinho, como a morte e a onipresença do
mal em nossas vidas (este, normalmente, aparece personificado
no vilão da história)”. (p. 5)

Um dessas diferenças é a questão da simplificação dos personagens nos


contos de fada: “O conto de fadas simplifica todas as situações. Suas figuras são
esboçadas claramente; e detalhes, a menos que muito importantes, são eliminados.
Todos os personagens são mais típicos do que únicos” (Bettelheim, 2002, p.7)
Nas primeiras histórias em quadrinhos, que datam das décadas de 30 e 40, é
possível observar fenômeno semelhante ao descrito pelo autor sobre os contos de
fadas: predominam os personagens típicos. O herói, a mocinha, o vilão. Conforme a
indústria dos quadrinhos foi se desenvolvendo e se aprimorando, contudo, houve uma
crescente sofisticação nas tramas. Elas passaram a ser cada vez mais elaboradas e
ricas em detalhes, abordando mais aspectos da vida de cada herói do que apenas a
sua condição de ser um super-herói. Eles se tornaram mais “humanos”, com mais
dramas e conflitos além do já tradicional “lutar contra o mal”. A origem de cada herói

34
ganha mais importância, bem como suas motivações, que podem ser as mais diversas
possíveis. Neste ponto, as histórias em quadrinhos modernas divergem dos contos de
fadas; seu enredo parece ter se enriquecido com o passar o tempo.

Nos contos de fadas, as personagens são planas, não possuem ambivalências;


daí a “simplificação das situações” que eles realizam. Há mocinhos e bandidos, heróis
e vilões. Seriam impensáveis, desta forma, personagens que “mudam de lado” no
decorrer da trama, assim como personagens “neutros”, que não têm um lado definido.
Bettelheim (2002) afirma que isto acontece para que a criança entenda prontamente a
diferença entre as duas polaridades: o bom e o mal, o bonito e o feio, o certo e o
errado e assim por diante.

Tal tarefa, segundo o autor, não poderia ser feita tão facilmente se as figuras
fossem construídas à semelhança dos sujeitos da vida real, com características
consideradas boas e ruins. As simplificações presentes nos contos da fada facilitariam
as identificações com as personagens boas. Já nas histórias contemporâneas de
super-heróis, existem personagens completamente ambivalentes. Duas-Caras, vilão
das histórias de Batman, carrega já em seu nome a ambivalência sobre a qual o
personagem é construído. O próprio Batman apresenta características que poderiam
ser chamadas de “negativas”, como sua agressividade e o desejo de vingança,
aspectos que parecem fazer parte do vilão, e nunca do herói. Porém, o que é
observado é que nenhum desses personagens deixa dúvidas ao público: Duas-Caras
é indiscutivelmente um vilão, enquanto que Batman é indiscutivelmente um herói. O
que faz, então, o herói um herói, enquanto o vilão é sempre vilão? Um herói é
considerado tal porque não sucumbe ao próprio medo.

Destruir e aniquilar são atitudes de um ser ainda submerso nos próprios


terrores, alguém que não foi capaz de utilizar suas frustrações para buscar algo que
possa suprir suas faltas. Entrega-se ao abismo e almeja carregar tudo consigo. Este
será sempre o vilão, pois consiste numa concretização do medo que todos devemos
eternamente combater – o temor de ceder aos nossos próprios impulsos destrutivos.
Daí a necessidade do herói, este salvador que nos inspira a coragem necessária para
que possamos nos erguer mais alto que nossos maiores medos.

Assim, apesar de conterem ambivalências características do mundo psíquico


adulto, as histórias de super-heróis trazem também à tona os conteúdos mais arcaicos
da mente primitiva, do início de nosso desenvolvimento psíquico. Os defensores dos

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contos de fada como a forma literária “ideal” para crianças diriam que as histórias em
quadrinhos foram elaboradas para um público mais velho, que teria condições de
apreender as ambivalências e ambiguidades sem prejudicar sua identificação com “as
personagens certas”. Porém, é preciso salientar que, apesar de muitos exaltarem o
caráter de adequação ao público infantil que possui um conto de fadas, nenhuma das
duas modalidades narrativas aqui abordadas foi originalmente criada com este
direcionamento, sendo construídas originalmente para o público adulto.

As raízes dos contos de fada estão na Idade Média, período em que mesmo o
conceito de infância era muito distinto dos dias atuais. As histórias de fada originais
sofreram drásticas modificações para que chegassem ao estado em que hoje se
encontram, adequadas ao universo infantil. As histórias em quadrinhos também foram
produzidas, primeiramente, para um publico mais velho; conforme foram ganhando
popularidade entre outras faixas etárias, os enredos foram sofrendo modificações.

Outro aspecto colocado pelo autor como característica peculiar aos contos de
fada é o fato de que eles teriam “valor inigualável” por oferecerem novas dimensões à
imaginação da criança. Segundo o autor:

“A criança necessita entender o que está se passando


dentro de seu eu inconsciente. Ela pode atingir essa
compreensão, e com isso a habilidade de lidar com as coisas, não
através da compreensão racional na natureza e conteúdo de seu
inconsciente, mas familiarizando-se com ele através de devaneios
prolongados (...), fantasiando sobre elementos adequados da
história em reposta a pressões inconscientes. Com isso, a criança
adequa o conteúdo inconsciente às fantasias conscientes, o que a
capacita a lidar com este conteúdo” (Bettelheim, 2002, p.8)

As histórias de super-heróis possuem papel semelhante, mas não só para as


crianças. Seria impossível afirmar que, depois de adulto, um indivíduo não tem mais
necessidade de fantasia e imaginação. Pelo contrário: a fantasia é uma parte
fundamental da vida humana, seja na infância ou na maturidade. Desta forma, tanto os
contos de fada como as histórias de super-heróis fornecem conteúdos e materiais para
que adultos e crianças possam elaborar conflitos e dramas, tanto conscientes quanto
inconscientes.

Bettelheim (2002) comenta sobre o desenvolvimento do personagem principal


dentro do conto de fadas, dizendo que apenas partindo para o mundo é que o herói
pode se encontrar. Os contos de fada são, neste sentido, orientados para o futuro,

36
guiando a criança a abandonar seus desejos e dependência infantil e conseguir uma
existência mais satisfatoriamente independente. É possível perceber algo bastante
semelhante nas histórias de super-heróis, em que a vida de “homem comum”,
mostrada muitas vezes como vazia de sentido e entediante, deve ser deixada para
trás, em segundo plano, pelo herói, para que este se imponha como tal, assumindo
todas as responsabilidades que isto implica. Podemos entender o período de
isolamento pelo qual passam os heróis, tanto os dos contos de fada como dos
quadrinhos, como uma metáfora do tornar-se adulto: é preciso passar por um período
de recolhimento, de afastamento de sua vida antiga, para poder formar uma nova
identidade, seja ela de super-herói ou de adulto, simplesmente. É preciso deixar a
infância e a vida anterior para trás, para assumir novas responsabilidades e encarar
novos desafios.

O mesmo autor ainda afirma que os contos de fada falam do desenvolvimento


“normal” humano, e o tornam significativo para a criança. As histórias em quadrinhos
trazem a mesma temática: em ambos os tipos de narrativa, há a presença de medos,
ansiedades de separação e dúvidas acerca das próprias capacidades de
enfrentamento desta nova realidade – ser um adulto e um super-herói. Porém, a
mensagem passada às crianças, adultos e a qualquer um que se interesse por estas
histórias, é a de que crescer é um processo árduo; haverá vilões pelo caminho, pois o
mal existe, mas o bem também se impõe. E, através de muito esforço e sacrifício, o
bem pode, sim, triunfar. Apesar, portanto, de existir um herói e um vilão dentro de nós,
melhor é buscar identificar-se com o herói, já que sua luta traz sempre a maior
recompensa.

2.4. Fascínios contemporâneos


“Pude observar, no trabalho clínico com crianças, e
mesmo espontaneamente no dia-a-dia, a presença, em seu
discurso e brincadeiras, de um grande interesse pelas histórias e
filmes de super-heróis. Frequentemente, elas desejam ser como
eles, brincam e imaginam o mundo desses heróis, na tentativa de
realizar as mesmas façanhas. Utilizam suas vestimentas
características, usam seus instrumentos e agem como se eles
fossem. A partir dessa observação, pude pensar que as histórias
de super-heróis poderiam se constituir, na mesma forma que os
contos de fadas, como uma tela, por meio da quais vivências e
aspectos importantes de suas vidas poderiam ser projetados,
servindo como um mediador terapêutico, já que dificuldades e
conflitos poderiam ser elaborados.” (Azeredo, 2009, p.12)

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Freud (1926) assinala que o conto (assim como o mito, a literatura e a arte)
oferece representações significativas do ser humano, sobretudo em seu funcionamento
psíquico mais arcaico. Bettelheim (2002) fala da função protetora que os contos de
fada exercem nas crianças, servindo para apaziguar seus maiores temores, ao mostrar
a elas como podem superá-los.

Os contos de fadas, carregados de representações psíquicas em uma


linguagem poética, transformam os desejos inconscientes, tornando-os aceitáveis à
consciência. Com a ajuda da fantasia, a criança constrói uma linguagem não verbal,
fazendo uma ponte entre seus mundos interno e externo, permitindo-a conhecer o seu
mundo interior e a compreender a realidade que a cerca. Essas experiências estão em
conexão com o processo de simbolização e, posteriormente, com o de sublimação,
necessário para a inserção do indivíduo em um mundo cultural e social.

Entre os interesses mais presentes nas falas e brincadeiras infantis, observam-


se as histórias e filmes de super-heróis. As crianças desejam ser como eles, brincam e
imaginam o mundo desses heróis, buscando realizar as mesmas façanhas. Vestem
seus uniformes e agem como se fossem eles. A partir dessa observação, pode-se
pensar que as histórias de super-heróis constituem-se em uma forma de contos de
fadas contemporâneos (Azevedo, 2009), exercendo grande influência no universo
infantil, assim como sua capacidade de auxiliar a criança no trabalho de suas
angústias, tanto como um conto de fadas, segundo afirma Bettelheim (2002),
ofereceria.

2.5. Mocinhos e bandidos


Para Melanie Klein, segundo afirma Cintra (2001), os primórdios de todo
indivíduo se constituem pela mais pura violência psíquica e pleno desamparo. A
capacidade de amar e de pensar, adiar satisfações e desejar o outro se diferenciando
dele é construída ao longo da vida; de forma que, no início, somos todos um turbilhão
disforme de exigências e necessidades, anseio e voracidade.

A violência desta ânsia de incorporação, que é na realidade uma forma muito


primitiva de amar, faz com que o mundo pareça perigoso e ameaçador: não há
distinção clara entre interno e externo, entre eu e outro. Desta forma, por meio de
mecanismos como a projeção, que denotam a confusão deste estado ainda indefinido
de eu e outro, surgem os medos de estar sendo perseguido ou atacado, os terrores
sem nome, angústias persecutórias das mais arcaicas. O eu devorador dá lugar ao

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monstro que quer devorá-lo; a voracidade e a ânsia de incorporar o outro transformam-
se no medo de ser aniquilado, sugado e destruído.

Faz-se necessária, assim, a construção de defesas contra a opressão destas


angústias, para que sejam apaziguadas em sua intensidade. A cisão, já anteriormente
citada, consiste num dos principais mecanismos de defesa de que dispomos, atuando
nos momentos em que nossas formas arcaicas de funcionamento psíquico imperam ou
são evocadas. Realiza uma separação radical das experiências e representações que
são sentidas como boas daquelas que são más, as prazerosas das desprazerosas. Ou
seja, o psiquismo arcaico promove uma organização e um discernimento das
experiências, atribuindo-as a objetos ou representações idealmente bons e maus.

Este retrato do início da vida de um ser humano, esboçado Klein (1991) como
um esquema que não se apresenta como singular e finito, mas que é revivido em
diversas formas e intensidades ao longo de toda a vida, encontra grande
correspondência no universo dos super-heróis. Também este mundo se inicia em
violência e desamparo. O personagem principal encontra-se em perigo, desprotegido e
fragilizado, sujeito aos desígnios de monstros ou seres maléficos que vicejam na
desordem, movidos pelo desejo de poder e destruição. Até que surge o herói, trazendo
ordem ao caos, perseguindo os perseguidores, destruindo quem destrói a ele mesmo e
ao mundo ao seu redor.

Aqui também há uma polarização essencial – os indivíduos são mocinhos ou


bandidos, são do bem ou do mal; bandidos destroem e desejam poder acima de tudo,
enquanto mocinhos protegem e buscam o bem-estar coletivo. Uma diferença
importante pode ser observada entre estes dois pólos: o vilão busca extinguir a ordem
e devastar o mundo em favor de si próprio, enquanto o herói é assim chamado por
altruisticamente colocar-se em perigo para destruir seu alvo, um inimigo que é não
somente seu, mas de toda a sociedade. O herói é, portanto, alguém capaz de se
relacionar com um objeto, perceber o outro como tal, distinguindo ameaçado de
ameaçador. Já o vilão relaciona-se fundamentalmente consigo e com sua vontade de
poder; os que se interpõem neste meio sofrem, como conseqüência, a aniquilação.

Ao adentrar no universo das histórias de super-heróis, surgem diante dos olhos


do leitor ou espectador movimentos que lhe são inconscientemente familiares, pois
fazem parte de seu próprio repertório e funcionamento internos. Como os contos de

39
fadas, estas histórias também trazem a quem as presencia uma solução e uma
redenção: a escolha pela identificação com o herói.

Diferentemente do vilão, que sucumbiu aos próprios impulsos, levando sua


desordem interna ao limite e projetando todos os seus anseios destrutivos e
incorporatórios a uma concretização, o herói é um ser que tem medos, mas consegue
dominá-los, organiza sua destrutividade e pode moldá-la, com objetivo e propósito que
sempre envolve também o seu entorno, aqueles a quem quer proteger, e não apenas a
si próprio. Direciona sua agressividade, seu desejo destrutivo a um objeto. Este, o
vilão, nada mais é que uma personificação do medo de imergir no caos desorganizado
da mente primitiva: devoradora, aniquiladora, destrutiva e sem limites.

Um medo como este deve ser sempre combatido, pois estará sempre presente
– já que, como nos ensina Klein (1991), nunca estaremos completamente livres de
nossos funcionamentos mais arcaicos. Assim se torna tão necessária a presença do
herói: alguém que sempre retorna na iminência do perigo, quando o mal ameaça
ressurgir, numa luta incansável e interminável.

“Os heróis são importantes para a sociedade. Em todos os


momentos de nosso desenvolvimento – cognitivo, moral, social,
afetivo etc. – necessitamos de heróis, com os quais podemos nos
identificar e nos mostrar possibilidades para avançarmos em
nossa vida.” (Costa, 2010, p.9)

Em outras palavras, sempre existirão heróis, pois o mal nunca se extingue;


tampouco deve perecer, contudo, a esperança de derrotá-lo. Pois, nos momentos de
maior angústia e desespero, basta olhar para o alto, para o lado, para dentro de si: lá
estará o herói.

3. Quero ser super herói:


Nas histórias em quadrinhos, a batalha entre o bem e o mal é também central,
assim como ocorre nos contos de fada. O final, a resolução do conflito, sempre se dá
através da derrota do mal e a vitória do bem, acima de todas as coisas. Observamos,
então, que, assim como os contos de fada, as histórias de super-heróis também
imprimem moralidade sobre aquele que as lê ou assiste, por meio da identificação do
indivíduo com o herói.

A questão da identificação foi, na realidade, o ponto de partida do presente


trabalho, cuja pergunta inicial era: Qual a importância de se identificar com uma figura

40
super poderosa? Histórias de super-heróis e contos de fada têm mais esta
característica em comum: o forte apelo que exercem, não apenas em crianças, mas
em pessoas de todas as idades, que dentre outros fatores deve-se a um marcante
sentimento de identificação com seus personagens principais

Sejam eles super poderosos ou não, ainda são fontes de processos de


identificação, alvos de admiração e encantamento. A questão fundamental não é,
portanto, a existência de um super poder: Batman, por exemplo, é um empresário
bilionário que empunha como seus poderes seu intelecto, dinheiro, tecnologia, um
físico muito bem preparado e uma enorme determinação para o combate ao crime.
Veste-se como um morcego, animal temido por ele quando criança. Utiliza, desta
forma, seu próprio medo como arma, realizando um domínio de seus temores que
serve, ao mesmo tempo, para protegê-lo contra seus inimigos e amedrontá-los.

Os personagens com os quais nos identificamos possuem características


virtuosas que devem superar as falhas. São “bons de coração”, possuem senso
apurado de justiça, amor ao próximo, senso de responsabilidade, entre uma série de
outras características desejáveis. Como Batman, são indivíduos que conseguem
superar seus próprios medos e, por isso, são capazes de proteger a sociedade,
levando segurança àqueles que permanecem desprotegidos e imersos em temor e
ameaça.

Da mesma forma como as princesas dos contos de fada devem ser mais
atraentes para as crianças que as também fascinantes feiticeiras malvadas, os super-
heróis devem ser mais atraentes que os super-vilões que pretendem dominar o mundo.
Através de um processo identificatório, são inscritas nas crianças as características
desejáveis do herói, assim como a moralidade presente nestes dois tipos de histórias.

O conceito de identificação é de suma importância para a obra de Freud (1921),


que afirma: “Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos, acha-se
ligado por vínculos de identificação em muitos sentidos e construiu seu ideal do ego
segundo os modelos mais variados.” (p.163)

Sendo os processos e vínculos identificatórios fatores estruturantes do sujeito,


uma vez que os efeitos das primeiras identificações, efetuadas na mais primitiva
infância, são gerais e duradouros (Freud, 1923), torna-se relevante a apresentação do

41
conceito de identificação dentro da obra Freudiana. Laplanche (1996) nos fornece a
seguinte definição para o termo:

“Processo psicológico pelo qual um indivíduo assimila um


aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma total ou
parcialmente, segundo o modelo desta pessoa. A personalidade
constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações (...). A
identificação, no sentido de identificar-se, abrange na linguagem toda
uma série de conceitos psicológicos, tais como imitação, empatia,
simpatia, contágio mental projeção, etc.” (p. 295)

Segundo o mesmo autor, na obra de Freud, o conceito de identificação assumiu


progressivamente um valor central: mais do que um mecanismo psicológico entre
outros dos quais trata a psicanálise, é uma operação pela qual o indivíduo humano se
constitui. O conceito de identificação tomou tal importância principalmente devido a
colocação do complexo de Édipo em primeiro plano, assim como seus efeitos
estruturais; mas também através da segunda tópica do aparelho psíquico e das
remodelações que ela produziu nos conceitos psicanalíticos, em que as instâncias
intrapsíquicas se diferenciam a partir do id são especificadas pelas identificações das
quais derivam.

Visando uma melhor conceituação, vamos primeiro tratar de como tal conceito
se insere dentro do pensamento de Freud, e suas implicações para a teoria como um
todo: se a primeira tópica Freudiana trata de mostrar que existe uma dimensão
inconsciente da vida psíquica do homem, que não está sujeita a nossa vontade, a
segunda tópica se ocupa de explicar como se forma a personalidade deste sujeito.
Basicamente, a segunda tópica vem inserir os três conceitos mais importantes do
pensamento Freudiano, que é a divisão do aparelho psíquico em três instâncias: id,
ego e superego (Freud, 1923).

Nas bases desta tópica estão duas questões: a primeira, de que tais instâncias
não têm bases orgânicas, mas sim são teorizadas em termos de aspectos da
personalidade. A segunda questão se refere ao o fato da personalidade se forma a
partir de um processo diferente da maturação orgânica, e é este processo que a
segunda tópica busca explicar. Para isto, Freud (1923) formula uma teoria de divisão
do psiquismo humano: o ego não seria, então, uma estrutura homogênea, ele se
encontra divido. Tal divisão é o superego, instância que observa, critica, julga e
representa nosso ideal de comportamento. Para explicar a origem desta instância,

42
Freud começa, então, a falar em identificação, que é o conceito que nos servirá de
base, nesta análise, para entender o fascínio das pessoas pelos super-heróis.

Em O Ego e o Id (1923), Freud primeiramente apresenta a ideia de que em


cada indivíduo existe uma organização coerente de processos mentais. A esta
instância, Freud nomeia como ego, no qual a consciência se acha ligada e que controla
as abordagens da descarga de excitações para o mundo externo. Sobre o ego e suas
funções, Freud escreve:

“Ele é a instância mental que supervisiona todos os seus


próprios processos constituintes e que vai dormir à noite, embora ainda
exerça a censura sobre os sonhos. Desse ego procedem também as
repressões, por meio das quais se procura excluir certas tendências da
mente, não simplesmente da consciência, mas também de outras
formas de capacidade e atividade.” (Freud, 1923, p. 31)

Sobre a relação existente entre o ego e o id, em um indivíduo, Freud teoriza:

“É fácil ver que o ego é aquela parte do id que foi modificada


pela influência direta do mundo externo, por intermédio do Pcpt.-Cs.;
em certo sentido, é uma extensão da diferenciação de superfície. Além
disso, o ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às
tendências deste, e esforça-se por substituir o princípio de prazer, que
reina irrestritamente no id, pelo princípio de realidade. Para o ego, a
percepção desempenha o papel que no id cabe à pulsão. O ego
representa o que pode ser chamado de razão e senso comum, em
contraste com o id, que contém as paixões” (Freud, 1923, p.32)

Ainda sobre a relação entre estas duas instâncias, Freud propõe uma metáfora,
que viria a se tornar bastante conhecida: o ego, em sua relação com o id, seria como
um cavaleiro que tem de manter controlada a força superior do cavalo (o id), com a
diferença de que o cavaleiro tenta fazê-lo com a sua própria força, enquanto que o ego
utiliza forças tomadas de empréstimo. Freud leva sua analogia um pouco além:
geralmente um cavaleiro, se não deseja ver-se separado do cavalo, é obrigado a
conduzi-lo por onde este quer ir; da mesma maneira, o ego tem o hábito de transformar
em ação a vontade do id, como se fosse sua própria, para tentar lidar com o conflito
entre o id e o ego, entre a vontade, as paixões e pulsões; e a razão, o senso comum.

Porém, o ego não é simplesmente a parte do id modificado pela influência do


sistema perceptivo, uma vez que ainda existe outra importante instância, o superego.
Para abordar esta questão, Freud retoma ao tema da melancolia, (tratado
anteriormente em seu artigo “Luto e Melancolia”, de 1917), afirmando que:

43
“Alcançamos sucesso em explicar o penoso distúrbio da
melancolia supondo [naqueles que dele sofrem] que um objeto que fora
perdido foi instalado novamente dentro do ego, isto é, que uma catexia
do objeto foi substituída por uma identificação. Nessa ocasião – na
época de luto e melancolia -, contudo, não apreciamos a significação
plena desse processo e não sabíamos quão comum e típico ele é.”
(Freud, 1923, p. 42)

Na continuidade de seus estudos, Freud postulou que este tipo de substituição


(uma catexia do objeto por uma identificação) tem grande importância na determinação
da forma tomada pelo ego, efetuando uma contribuição essencial no sentido da
construção do que é chamado de seu caráter. Sendo assim, por detrás da origem do
superego, está a primeira e mais importante identificação do indivíduo:

“Isso nos conduz de volta à origem do ideal do ego; por trás dele
jaz oculta a primeira e mais importante identificação de um indivíduo, a
sua identificação com o pai em sua própria pré-história pessoal. Isso
aparentemente não é, em primeira instância, a consequência ou
resultado de uma catexia do objeto; trata-se de uma identificação direta
e imediata, e se efetua mais primitivamente do que qualquer catexia do
objeto. Mas as escolhas objetais pertencentes ao primeiro período
sexual e relacionadas ao pai e à mãe parecem normalmente encontrar
seu desfecho numa identificação desse tipo, que assim reforçaria a
primária.” (Freud, 1923, p. 45)

Freud afirma que o superego de uma criança se forma através de sua


identificação não com o ego de seus pais (ou seja, não com a parte consciente), mas
sim com as expectativas inconscientes que os pais têm sobre ela. A identificação é,
portanto, um processo inconsciente, diferente da simples educação intencional e
consciente. Dentro desta teoria, o adulto funciona como um “transmissor de
expectativas” para a criança, que tentará se assemelhar com o que o adulto espera
dela, inconscientemente. Ou seja, para a psicanálise Freudiana, o superego tem
origem na identificação da criança com as expectativas inconscientes dos pais em
relação à ela, que estão presentes desde muito antes de seu nascimento, e se
manifestam a ela através do comportamento de seus progenitores. Tal identificação é a
primeira forma de vínculo que a criança estabelece, sendo assim de importância
fundamental, uma vez que todo o processo de formação do ego (identidade) se dá a
partir da identificação. O superego representa a possibilidade de se reconhecer no
desejo do outro (enquanto que o ego é o reconhecimento do próprio desejo),
“decidindo” o que pode e o que não pode fazer parte do sujeito. É necessário para que
a criança possa ingressar na sociedade, aprendendo suas regras e normas. A
identificação, segundo Freud (1921), é a mais remota expressão de um laço emocional

44
com outra pessoa, e desempenha um importante papel na história primitiva do
complexo de Édipo, que terá como fim um triângulo familiar que fornece à criança dois
elos, conectando-a separadamente com cada um dos pais, e a confronta com a ligação
entre eles que a exclui: “Um menino mostrará interesse especial pelo pai: gostaria de
crescer como ele, ser como ele e tomar o seu lugar em tudo. Podemos simplesmente
dizer que toma o pai como seu ideal” (Freud, 1921, p. 133)

Simultaneamente com esta identificação com o pai, ou um pouco depois, o


menino começa a desenvolver uma catexia de objeto em relação à mãe. A esta
altura, o indivíduo apresenta dois laços psicologicamente diferentes: uma catexia de
objeto sexual e direta com a mãe; e uma identificação com o pai, o tomando como
modelo. Estes dois mecanismos de laços emocionais coexistem lado a lado por
algum tempo, sem exercer influência ou interferência um sobre o outro (ou seja, a
princípio, na fase oral primitiva do indivíduo, a catexia de objeto e a identificação são
indistinguíveis uma da outra)

Freud aborda a distinção entre identificação com o pai e escolha deste como
objeto da catexia:
“No primeiro caso, o pai é o que gostaríamos de ser; no segundo,
o que gostaríamos de ter, ou seja, a distinção depende de o laço se
ligar ao sujeito ou ao objeto do ego. O primeiro tipo de laço, portanto, já
é possível antes que qualquer escolha sexual de objeto tenha sido
feita. (...) Podemos apenas ver que a identificação esforça-se por
moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que
foi tomado como modelo.” (Freud, 1921, p. 134)

Com o avanço do desenvolvimento da subjetividade, que caminha sempre no


sentido da unificação da vida mental, catexia e identificação se encontram, e o
complexo de Édipo normal origina-se de tal encontro: o menino percebe que o pai se
coloca em seu caminho em relação à mãe, se posicionando entre a mãe e a criança,
sendo um terceiro onde antes existia uma relação dual. Neste momento, a criança se
identifica com o desejo de substituir seu pai também em relação à mãe. Freud aborda
este tema, o associando com o caráter ambivalente da identificação:

“A identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode


tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo
do afastamento de alguém. Comporta-se como um derivado da
primeira fase da organização da libido, da fase oral, em que o objeto
que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão, sendo
dessa maneira aniquilado como tal.” (Freud, 1921, p. 133)

45
Em um breve resumo sobre o complexo de Édipo simples masculino, Freud
reforça o caráter ambivalente da identificação:

“Em idade muito precoce o menininho desenvolve uma catexia


objetal pela mãe, originalmente relacionada ao seio materno, e que é o
protótipo de uma escolha de objeto segundo o modelo analítico; o
menino trata o pai identificando-se com este. Durante certo tempo,
esses dois relacionamentos avançam lado a lado, até que os desejos
sexuais do menino em relação à mãe se tornam mais intensos e o pai é
percebido como um obstáculo a eles; disso se origina o complexo de
Édipo. Sua identificação com o pai assume então uma coloração hostil
e transforma-se num desejo de livrar-se dele, a fim de ocupar o seu
lugar junto à mãe. Daí por diante, a sua relação com o pai é
ambivalente; parece como se a ambivalência, inerente à identificação
desde o início, se houvesse tornado manifesta. Uma atitude
ambivalente para com o pai e uma relação objetal de tipo unicamente
afetuoso com a mãe constituem o conteúdo do complexo de Édipo
positivo simples num menino.” (Freud, 1923. p. 44)

Laplanche (1996) resume esta questão, afirmando que os efeitos do complexo


de Édipo, no que se refere à estruturação do indivíduo, são escritos em forma de
identificação: os investimentos nos pais são abandonados e substituídos por
identificações. Uma vez que Freud descreve a fórmula mais ou menos geral do
complexo de Édipo, ele mostra que estas identificações formam uma estrutura
bastante complexa, uma vez que tanto a figura materna quanto a figura paterna são,
ao mesmo tempo, objeto de amor e de rivalidade; é provável que esta presença de
uma ambivalência com relação ao objeto seja essencial a constituição de qualquer
identificação.

Conforme o complexo de Édipo vai sendo dissolvido, a catexia objetal que o


menino possui em relação à mãe deve ser abandonada. Na mais “saudável” das
possibilidades, aquela que a psicanálise está acostumada a encarar como a mais
normal, o lugar desta catexia de objeto será preenchido por uma intensificação da
identificação do menino com o pai, que permite que a relação afetuosa com a mãe seja
mantida de certa maneira. Sendo assim, o fim do complexo de Édipo consolidaria a
masculinidade no menino, e a feminilidade na menina:

“Dessa maneira, a dissolução do complexo de Édipo consolidaria


a masculinidade no caráter de um menino. De maneira precisamente
análoga, o desfecho da atitude edipiana numa menininha pode ser uma
intensificação de sua identificação com a mãe (ou a instalação de tal
identificação pela primeira vez) - resultado que fixará o caráter feminino
da criança.” (Freud, 1923, p. 47)

46
Estas identificações são diferentes daquela que Freud trata em Luto e
Melancolia (1917), trabalho no qual, assim como em Totem e Tabu (1912), a noção de
incorporação oral é salientada: nestes dois trabalhos, Freud mostra o papel na
identificação onde o indivíduo se identifica no modo oral com o objeto perdido, por um
mecanismo de regressão à relação de objeto característica da fase oral (incorporação)
Aqui, as identificações não introduzem no ego o objeto abandonado (apesar de que
este desfecho alternativo possa ocorrer em alguns casos). Portanto, parece que, em
ambos os sexos, a força relativa das disposições sexuais masculina e feminina é o que
determina se o desfecho da situação edipiana será uma identificação com o pai ou com
a mãe. Uma vez que o complexo de Édipo chega a sua dissolução, o que resta, em
seu lugar, é o superego, que não é simplesmente um resíduo das escolhas objetais
primitivas do id, mas também representa uma formação reativa energética contra estas
escolhas: A relação do superego com o ego não diz apenas “você deveria ser como o
seu pai”, mas também compreende a proibição “você não pode ser como o seu pai,
você não pode fazer tudo o que ele faz, certas coisas são prerrogativas dele”:

“Esse aspecto duplo do ideal do ego deriva do fato de que o ideal


do ego tem a missão de reprimir o complexo de Édipo; em verdade, é a
esse evento revolucionário que ele deve a sua existência. É claro que a
repressão do complexo de Édipo não era tarefa fácil. Os pais da
criança, e especialmente o pai, eram percebidos como obstáculo a uma
realização dos desejos edipianos, de maneira que o ego infantil
fortificou-se para a execução da repressão erguendo esse mesmo
obstáculo dentro de si próprio. Para realizar isso, tomou emprestado,
por assim dizer, força ao pai, e este empréstimo constituiu um ato
extraordinariamente momentoso.” (Freud, 1923, p. 49)

O ego precisou se fortalecer para realizar a repressão do complexo de Édipo


“tomando emprestada” a força do pai. Desta forma, o superego “retém o caráter do
pai”. Quanto mais poderoso o complexo de Édipo for, e mais rapidamente o mesmo
sucumbir á repressão, mais severa será a posterior dominação do superego sobre o
ego (tanto sob a forma de consciência, quanto de um possível sentimento inconsciente
de culpa), uma vez que o superego tem um poder de dominação, um caráter
compulsivo que se manifesta sob a forma de um imperativo categórico ao sujeito. Ao
tomar a origem do superego tal como Freud descreve, reconhecemos que ele é o
resultado de dois fatores: um de natureza biológica (a duração prolongada, no ser
humano, do desamparo e da dependência em sua infância) e outro de natureza
histórica, o complexo de Édipo, cujo a repressão Freud demonstra que está vinculada
a esta nova instância, uma vez que o superego emerge onde o complexo de Édipo
encontra o seu fim.

47
“A diferenciação do superego a partir do ego não é questão de
acaso; ela representa as características mais importantes do
desenvolvimento tanto do indivíduo quanto da espécie; em verdade,
dando expressão permanente à influência dos pais, ela perpetua a
existência dos fatores a que deve sua origem”. (Freud, 1923, p. 47-48)
.
“Nos meninos (...) o complexo não é simplesmente reprimido; é
literalmente feito em pedaços pelo choque da castração ameaçada.
Suas catexias libidinais são abandonadas, dessexualizadas, e, em
parte, sublimadas; seus objetos são incorporados ao ego, onde formam
o núcleo do superego e fornecem a essa nova estrutura suas
qualidades características. Em casos normais, ou melhor em casos
ideais, o complexo de Édipo não existe mais, nem mesmo no
inconsciente; o superego se tornou seu herdeiro. (Freud, 1925, p.285)

“E aqui temos essa natureza mais alta, neste ideal do ego ou


superego, o representante de nossas relações com nossas relações
com nossos pais. Quando éramos criancinhas, conhecemos essas
naturezas mais elevadas, as admiramos e as tememos, e,
posteriormente, as colocamos em nós mesmos.’” (Freud 1923, p. 225)

Conforme uma criança vai crescendo, o papel de pai passa a ser exercido por
seus professores e outras pessoas colocadas em posição de autoridade; suas
injunções e proibições permanecem poderosas no ideal do ego e continuam, sob a
forma de consciência, a exercer a censura moral. A tensão entre as exigências da
consciência e os desempenhos concretos do ego é experimentada pelo indivíduo como
sentimento de culpa.

“A relação do superego com as alterações posteriores do ego é


aproximadamente semelhante à da fase sexual primária da infância
com a vida sexual posterior, após a puberdade. Embora ele seja
acessível a todas as influências posteriores, preserva, não obstante,
através de toda a vida, o caráter que lhe foi dado por sua derivação do
complexo paterno - a saber, a capacidade de manter-se à parte do ego
e dominá-lo. Ele constitui uma lembrança da antiga fraqueza e
dependência do ego, e o ego maduro permanece sujeito à sua
dominação. Tal como a criança esteve um dia sob a compulsão de
obedecer aos pais, assim o ego se submete ao imperativo categórico
do seu superego.” (Freud, 1923, p. 61)

4. Somos todos órfãos:


A questão da identificação, que foi abordada no capítulo anterior, surge nos
indivíduos a partir da perda, como um dos recursos que os indivíduos têm a sua
disposição para lidar com a falta e o desamparo, prerrogativas do psiquismo humano.
A questão da orfandade encontra-se presente em praticamente todas as modernas
histórias de super-heróis e também nos contos de fadas, semelhança que é abordada

48
por Colucci e Fonoff (2008), que partem da análise das diferenças estruturais nas
estórias infantis e da percepção de que as princesas, nos contos de fada, são órfãs de
mãe e que os super-heróis são órfãos do casal parental, levando em conta que o
arranjo defensivo presente nos meninos os leva a fantasiar a morte de ambos os pais,
enquanto as meninas eliminam as rivais femininas, preservando a figura paternal, para
examinar se e como a presença dos mitos compartilhados ajuda a formar os mitos
pessoais de cada criança dentro do universo das relações objetais pré-genitais,
objetais genitais e conflitos edípicos. As autoras observam:
“Inicialmente, notamos que nas estórias infantis os super-heróis
foram criados em lares adotivos, sendo órfãos do casal parental; as
princesas, de seu lado, são órfãs de mãe. Registramos também a
condição de filho único desses personagens, que não podem se
perceber como fruto da união fecunda de pais sexualizados.” (p. 2)

Tanto as princesas dos contos de fada, quanto os super-heróis (incluindo


Batman, nosso objeto privilegiado de análise), ocupam este lugar do filho (a) único (a),
que imprime características do isolamento, da solidão e da individualidade, por não
terem semelhantes, iguais, outras pessoas frutos da mesma união da qual eles
mesmos são produtos. Contudo, o fato de não possuírem irmãos também pode
simbolizar que, tanto para o herói quanto para a princesa (que, na realidade, são
ambos protagonistas, cada qual de sua história), não há outra pessoa que os restrinja
em sua onipotência infantil, não há um concorrente semelhante. Além disso, as autoras
afirmam considerar a dificuldade dos pais em se mostrarem sexualizados impedindo a
elaboração edípica do filho. Acreditamos, porém, que o fato de serem órfãos pode ser
um complicador para o desenvolvimento, e consequentemente resolução, do
Complexo de Édipo (porém, não o impossibilita de maneira absoluta): não podendo
conceber-se como fruto de uma união sexualizada, de uma relação entre o pai e a mãe
a qual a criança não faz parte, os papéis atribuídos para as figuras materna e paterna,
assim como operações entre identificação e catexia, saem do convencional, e
precisam de outras saídas, que serão específicas para cada personagem, de acordo
com os substitutos (ou a ausência de substitutos) do casal parental que cada um
encontrará após a sua orfandade.

Dando prosseguimento à discussão do tema, as autoras levantam alguns


questionamentos interessantes: a diferença dos destinos masculino e feminino, uma
vez que, em tais histórias, os heróis são impedidos de exercer a sua sexualidade (o
que se mostra presente na impossibilidade em manter um relacionamento romântico,
dado o perigo que isto significaria para a o seu objeto de amor), e as meninas-

49
princesas se empenham na busca por um grande amor idealizado (tão típica nos
contos de fada), poderia estar relacionada com a orfandade materna feminina e com a
dupla orfandade masculina? As autoras levantam hipótese de que os meninos, para
expiar a culpa de haver produzido simbolicamente a morte dos pais, estariam
condenados a fazer eternas reparações maníacas; enquanto as meninas, ao preservar
o pai, puderam em parte reparar a culpa ao, aparentemente, encontrar um parceiro.
Como no presente trabalho o foco recai sobre os heróis (mais especificamente, sobre
um representante desta classe), podemos adiantar que a questão da reparação ainda
será discutida em maior profundidade, pois acreditamos ser um tema primordial para a
“invenção” do personagem Batman, uma vez que, para estas mesmas autoras, os pais
mortos (ou não existentes) suscitam fantasias de justiça e de reparação, elementos
que podemos encontrar como constituintes deste personagem.

Além disso, uma característica comum aos super-heróis é a de ter os pais


mortos em circunstâncias pouco claras ou fantasiosas, condição favorável para se
pensar que a morte dos pais poderia ser uma espécie de consequência das fantasias
destrutivas do filho, à eles dirigidas. Outra característica dos heróis é que a fantasia
envolvendo a morte dos pais é dirigida ao casal, e não às pessoas de pai e mãe, já que
eles morrem sempre juntos. A fim de evitar as sensações de abandono e exclusão,
sentimentos resultantes da percepção da união sexual dos pais, a presença de objetos
substitutos é instituída: um casal de tios, ou um casal adotante, com a característica de
serem idosos e bondosos, de tal forma que não chegam a incitar a emergência de
fantasias agressivas e sexuais. Isto ocorre nas histórias de Superman, do Homem
Aranha, e também de Batman, como discutiremos mais adiante.

A orfandade é um elemento constitutivo destes personagens, assim como o é


para todos nós, conforme trata Mesquita (2008), estabelecendo uma íntima relação
entre a orfandade e o desamparo. Para compreender melhor esta questão, Freud nos
presta grande auxílio, quando teoriza:

“(...) a mesma pessoa, à qual a criança deveu sua existência, o


pai (ou, mais corretamente, sem dúvida, a instância parental composta
do pai e da mãe) também protegeu e cuidou da criança em sua
debilidade e desamparo, exposta como estava a todos os perigos que
a esperavam no mundo externo, sob a proteção do pai, a criança
sentiu-se segura. Quando um ser humano se torna adulto, ele sabe, na
verdade, que possui uma força maior, mas sua compreensão interna
dos perigos da vida também se tornou maior, e com razão conclui que
fundamentalmente ainda permanece tão desamparado e desprotegido
como era na infância; ele sabe que, na sua confrontação com o mundo,
ainda é uma criança” (Freud, 1932, p. 198-9)

50
Podemos então perceber que, apesar do estado de desamparo ser uma
característica da nossa mais tenra infância (momento este em que a impressão
terrificante do desamparo desperta a necessidade de proteção, que foi proporcionada
pelo pai), é, ainda, uma condição inerente ao ser humano, enquanto sujeito, que nos
acompanhará por toda a vida. A autora considera o desamparo como um estado de
orfandade estrutural, que nos adultos, é manifestada por um estado infantilizado, que
remete àquele que espera, durante a infância, por um pai poderoso, um salvador. Em
outras palavras, o reconhecimento que este desamparo perdura através da vida tornou
necessário o apego a um pai mais poderoso.

Desde pequenos, somos obrigados a enfrentar a vida hostil, com seus


desprazeres e perigos, com os recursos que tivermos disponíveis. Neste sentido, para
Freud (1927), já seria um primeiro passo o reconhecimento, por parte do sujeito, de
que ele está entregue a sua própria sorte (ou seja, o reconhecimento da sua situação
desprivilegiada de desamparo e solidão), pois desta forma o sujeito poderia aprender a
fazer o emprego mais adequado possível dos recursos com os quais ele conta, mesmo
que não sejam suficientes. No primeiro capítulo de seu trabalho “O mal estar na
civilização” (1930), Freud trata da questão de desamparo fundamental do ser humano
e aponta para a construção do ego como resultado: o sentimento do nosso eu
provavelmente não pode ter sido o mesmo desde o princípio, mas sim ter passado por
uma evolução; evolução esta que não pode ser demonstrada, mas que pode ser
construída teoricamente:

“Normalmente, nada nos é mais seguro do que do sentimento


de nosso eu, do nosso próprio ego. O ego nos aparece como algo
autônomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais. Que
esta aparência é enganosa, que o ego na verdade se prolonga para
dentro, sem fronteira nítida, numa entidade psíquica inconsciente a que
denominados ‘id’, à qual ele serve como uma espécie de fachada – isto
aprendemos somente com a pesquisa psicanalítica, que ainda nos
deve informar muita coisa sobre a relação entre o eu e o id” (Freud,
1930, p. 16).

Desta forma, o bebê lactante ainda não separa seu ego de um mundo exterior,
como sendo fonte das sensações que lhe invadem. Ele aprende a fazer isso aos
poucos, em resposta a vários estímulos, sendo esta a forma com que o ego se
contrapõe inicialmente um “objeto”, como algo que se acha “fora”. Um grande incentivo
para que isto aconteça, para que o ego se desprenda da massa de sensações, para
que reconheça um “fora”, um mundo exterior, é dado pelas frequentes, variadas e

51
inevitáveis sensações de dor e desprazer, que o princípio do prazer busca eliminar e
evitar. Ou seja, um recém-nascido não distingue seu ego do mundo exterior, mas
aprende a fazer isso à medida que reage aos diversos estímulos do mundo. Neste
momento, aparece a tendência a isolar o ego de tudo o que pode se tornar fonte de
desprazer, a tendência a jogar para fora o desconforto e criar um ego que busca o
prazer, enquanto se defronta com um exterior estranho e ameaçador. Aos poucos, o
ego passa a diferenciar o que é interno (pertencente ao eu) do que é externo (emana
do mundo, aquilo que não é o ego), sendo este o primeiro passo para a instauração do
princípio de realidade, que deve dominar a evolução posterior.

“É desse modo, então, que o ego se desliga do mundo externo.


Ou, mais corretamente: no início o abarca tudo, depois separa se si um
mundo externo. Nosso atual sentimento de ego é, portanto, apenas o
vestígio atrofiado de um sentimento muito mais abrangente, que
correspondia a uma mais íntima ligação do eu com o mundo em torno”
(Freud, 1930, p. 19)

Voltando ao tema do desamparo infantil, no mesmo capítulo Freud utiliza-se


deste termo como uma das possíveis respostas para a questão do motivo que leva as
pessoas à precisarem da religião:

“Quanto às necessidades religiosas, parece-me irrefutável a sua


derivação do desamparo infantil e da nostalgia do pai despertada por
ele, tanto mais que este sentimento não se prolonga simplesmente
desde a época infantil, mas é duradouramente conservado pelo medo
ante o superior poder do destino. Eu não saberia indicar uma
necessidade vinda da infância que seja tão forte quanto a de proteção
paterna” (Freud, 1930, p. 25)

Ou seja, conforme aponta Mesquita (2008), Freud explica as necessidades


religiosas a partir do desamparo do bebê e do anseio pelo pai, o que leva o ser
humano a um constante mal estar, sustentado pela angústia ante a onipotência do
destino, ou seja, pelo medo do poder superior da chamada “vida hostil”. A maior
necessidade que há na infância é a de proteção do pai. Consideramos a orfandade
estrutural como algo associado ao reconhecimento, por parte do sujeito, da
incompletude na relação com o outro, da falta e da castração; o que implica que o
sujeito terá que contar com os seus próprios recursos. Neste sentido, todos somos
órfãos. Logo, o estado de orfandade, ou de desamparo, é fundamental para que o
sujeito possa romper com o estado de ilusão de completude, de onipotência infantil e
necessidade de proteção (o que, para muitas pessoas, pode jamais acontecer). O
desamparo é visto então como condição estrutural, diante da qual o sujeito tem que se

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organizar, uma vez que o predomínio do princípio de prazer só pode terminar; e a
instauração do princípio de realidade só pode acontecer, uma vez que a criança tenha
atingido um completo desligamento psíquico dos pais, o que atesta a importância de tal
desligamento, pois após a criança ter se servido da proteção paterna na situação de
desamparo estrutural, é preciso voltar a esta condição, mas dessa vez dotada de
recursos para poder se separar psiquicamente (Mesquita, 2008).

Porém, a separação vivida pelos personagens dos quais tratamos


anteriormente nos mostra a angústia como reação-sinal ante a perda de um objeto:
não seria o sinal de uma falta, mas algo que pode ser concebido como a falta de apoio,
que resulta da falta do objeto. Neste sentido, o desamparo seria a exigência de lidar
com a inexistência do outro que proporcionaria o amparo (a falta de ambos os pais, no
caso do super-herói).

O elo inicial do lactante com o seio materno como modelo de felicidade perdida
(Freud apud Mesquita, 2008), que se mantém como referência na escolha dos objetos
amorosos, é o que proporciona à criança motivos para amar as outras pessoas, que a
retiram de seu desamparo e satisfazem as suas necessidades. A angústia infantil aqui
é explicada pela falta da pessoa amada, quando a situação que se apresenta à criança
é a impossibilidade de satisfazer a sua libido. Ou seja, para a criança, a presença de
uma figura de amor faz a angústia desaparecer. Uma vez perdida a possibilidade de tal
presença, o sujeito encontra-se em um estado de desespero, solidão e luto profundos.

Não podemos deixar de considerar, ainda, a relação existente entre


desamparo/orfandade e os Complexos de Édipo e de castração, uma vez que o Édipo
é considerado o estruturador fundamental do constructo psicanalítico, que é o
inconsciente. Durante este processo, o pai se revela como aquele que tem o falo, que
é potente, que pode dar a mãe o que ela deseja, uma vez que é este pai que o possui.
E pelo mesmo motivo, a criança se identifica com ele, instituindo-o como seu ideal de
ego: a criança passa a querer ter o falo, da mesma maneira que seu pai o tem. De
maneira assustadoramente resumida, este seria o desfecho saudável do Complexo de
Édipo, onde o menino se servirá do pai como modelo de virilidade. A castração, neste
contexto, é a operação efetuada por este pai, que institui a falta, o corte na relação
dual antes existente entre a mãe e a criança, representando tudo o que se opõe à
completude, ao modelo de felicidade plena, que através da castração, para sempre
estará perdido. A orfandade estrutural está ligada ao conceito de castração, no sentido
de que não há completude, falta algo no outro, assim como falta algo no sujeito.

53
Freud utiliza-se do mito de Édipo para tecer articulações com a teoria que
confere aos desejos do incesto e do parricídio o fundamento da vida psíquica
(Mesquita, 2008). A formulação da psicanálise é que o desejo é o desejo incestuoso,
logo, a lei tem a função de impedimento, de proibição em relação à realização deste
desejo. A tragédia pessoal vivida por Édipo ganha, para Freud, a partir de verificações
clínicas, o estatuto de desejo inconsciente universal que rege a vida psíquica desde a
mais tenra infância. É o desejo que está em relevo quando falamos de Édipo. O
complexo de Édipo, enquanto evento psíquico, instala um jogo de identificações que
vai colocando a criança, através da alternância e ambivalência de amor e ódio com
relação aos pais, numa posição de sujeito, que a marcará nas suas escolhas sexuais.
A passagem pela cena edípica é singular, e em cada um inscreverá uma marca
subjetiva, também singular. Segundo Mesquita (2008):

“A condição de falta do objeto remete a uma incompletude do


sujeito que o atormenta ao mesmo tempo em que o funda. Relacionar-
se com esse tormento é o que propõe a psicanálise, e é dessa
concepção de sujeito como um ser incompleto que Freud nos fala
quando nos apresenta sua teoria do complexo de Édipo” (p. 49)

O pai é a figura eleita para encarnar essa função de castração, que é um dado
de estrutura; o pai é um representante, um agente da castração, responsável por
representar essa função de limitar o sujeito na sua ilusão de completude, vindo intervir
na relação dual entre mãe-criança. É neste sentido em que o Édipo limita o desejo, o
inscreve num circuito mais simbólico, onde nem tudo é possível, através da exclusão.
Sendo assim, a condição da orfandade, que é manifesta nos super-heróis, mas
também é existente, de alguma forma, em todos os sujeitos, funciona como uma
espécie de pré-condição para que o sujeito possa se desenvolver e evoluir. Para que
um dia seja possível ao sujeito superar sua condição de ser faltante, é preciso que ele
se reconheça, em primeiro lugar, como um ser faltante. O indivíduo necessita ser
inscrito nesta lógica da Lei, a qual a castração representa; lógica na qual ele é
separado da relação simbiótica que tinha com sua mãe, e mesmo transformando esta
relação em modelo para a busca dos futuros objetos de amor, o sujeito encontra-se, a
partir desta separação, sozinho. Somos órfãos na medida em que temos que lidar com
esta falta da completude, este desamparo, essa condição. No caso do super-herói, a
orfandade aparece como uma condição para que o herói busque encontrar seu lugar
no mundo, uma vez que faz com que se crie uma necessidade muito grande de
pertencimento.

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Birman (2009) aborda a questão da perda e do desamparo a partir de um olhar
bastante interessante: partindo da análise das guerras modernas, do presente século,
o autor propõe uma reflexão psicanalítica do que a guerra provoca naqueles que dela
participam: a perda. Dividindo os envolvidos em vencidos e vencedores, o autor
começa sua exposição afirmando que, diferentemente do que estamos habituados a
pensar, não são apenas os vencidos, os que foram derrotados, que sofrem. Existe
também a dor dos vencedores, que não saem ilesos, triunfantes, livres de qualquer
experiência de dor ou de perda. Existe, portanto, tanto a dor dos vencidos quanto a dos
vencedores. O autor afirma que os destinos da dor não serão os mesmos, mas ela
estará presente dos dois campos, sendo que cada lado deverá viver essa experiência
diferencial da dor de uma maneira particular.

Se formos tecer uma comparação entre o "vencido" do texto de Birman e o


órfão das histórias de herói (que, como já expomos antes, carrega profundas
semelhanças com cada um de nós, através da questão do desamparo), podemos
facilmente perceber que ambos estão ligados por este fator inerente e estruturante do
ser humano, que é justamente a perda, colocada por Birman como sendo a dor
fundamental do vencido. Tal qual como o órfão, o vencido, em uma guerra, encontra-se
em uma situação de tristeza, solidão e desamparo bastante consideráveis. O que
marca tanto o vencido quanto o órfão é exatamente o que ele perde: "experiência
trágica da dor, que fica no limite da impossibilidade para o sujeito, impondo impasses
cruciais para a realização efetiva do trabalho de luto" (Birman, 2009, p. 117)

Assim sendo, o autor afirma que o primeiro problema, diante desta situação
difícil, é a afirmação de que esse nível devastador da dor, para o sujeito, tem grandes
possibilidades de impedir que o mesmo possa compreender um efetivo trabalho de
luto. A marca inicial que se faz presente na dor da guerra é a perda, na qual o trabalho
de luto é "no limite quase impossível". Neste momento o autor utiliza-se do conceito de
Freud em Luto e Melancolia, que é um trabalho datado do ano de 1915, época da
primeira guerra mundial, considerada até aquele momento a mais sangrenta que o
ocidente já havia conhecido. Nesse trabalho, Freud aborda a diferença entre luto e
melancolia, tendo como plano de fundo e contexto a experiência devastadora de
violência e crueldade, que representou a experiência militar da primeira guerra
mundial. Freud propõe que, quando nós perdemos algo, em qualquer circunstância,
fase da vida ou contexto (e estamos, realmente, sempre perdendo coisas), "temos que
fazer um difícil e meticuloso trabalho psíquico de elaboração dessa perda para nos

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entendermos bem a respeito daquilo que estamos perdendo" (p. 117). Essa perda
pode ser de algo real ou ideal; Birman afirma que não importa muito, pois em ambos
esses registros, o mesmo trabalho de luto se impõe no horizonte subjetivo.

Por trabalho de luto, Freud (1915) entende um trabalho psíquico que não se
realiza pontualmente, mas em diferentes temporalidades e momentos, e que tem por
fundamento o fato de que:
"Precisamos tentar, de alguma maneira, realizar um acerto de
contas com o que perdemos. Esse acerto de contas passa por nossas
faltas com relação aos que morreram. Ou seja, nos indagamos sobre
as nossas culpas em relação aos que se foram” (Birman, 2009, p. 117)

Além disso, é preciso salientar que todo o trabalho de luto tem sempre como
sombra as nossas faltas e culpas em relação aos que se foram. Estas culpas não são
necessariamente reais, mas mesmo assim se impõem, imaginária e eticamente, no
horizonte psíquico do sujeito. Além de lidar com a falta do objeto, o sujeito ainda
precisa lidar com seus próprios sentimentos de culpa, de que seria possível, para este
sujeito, ter feito algo para impedir a perda, seja o órfão acreditando que a morte de
seus pais tem a ver com algo que ele fez ou deixou de fazer, seja o vencido
acreditando que poderia ter feito algo de diferente, que tornasse possível para ele para
ser o vencedor.

Freud (1915) descreve o trabalho de luto como algo que se passa em diferentes
níveis. O primeiro deles é a experiência psíquica por meio da qual o sujeito quer
colocar o morto no seu corpo, afirma que o morto é ele mesmo e faz parte dele (é o
que denominamos "incorporação"). Ou seja, nosso primeiro movimento psíquico é o de
tentar canibalizar o morto (o sujeito procura incorporar, colocar no seu corpo a figura
que perdeu, para tentar então se transformar no morto). Este seria o primeiro momento
de qualquer processo de luto: para não perder o objeto, o sujeito busca mantê-lo como
parte de si mesmo. Porém, essa pretendida manutenção do objeto não se realiza, pois
o sujeito não consegue acreditar que ele passou a ser o morto, e desloca a sua
manutenção para o plano da imagem. Neste momento, tenta-se reter algo do objeto,
para continuar sendo ele. Ou seja, o sujeito procura se marcar com pequenos traços e
imagens do objeto perdido, retirando o objeto do mundo e colocando dentro do seu
psiquismo. É o que Freud denomina "introjeção". Mas, segundo Birman (2009),
“também é um processo ineficiente, porque as imagens são muito frágeis e débeis, se
apagam com muita facilidade e acabam por desaparecer” (p. 118)

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Para Freud (1915), a forma mais eficaz de conclusão do trabalho de luto é
aquilo que se denomina identificação; o sujeito fica com um traço simbólico do objeto
no seu ego, esta é a maneira de carregar eternamente o traço do objeto. Esse traço
que constitui a identificação é marcado pela experiência singular do sujeito com aquilo
que ele perdeu (um determinado traço que marcou a relação do sujeito com o outro).
Ao nos identificarmos com o objeto, nós não o somos, e sabemos disso, mas temos
indicustivelmente algo dele. Birman ainda fala que o trabalho de luto se realiza neste
deslocamento, entre querer ser o objeto, para querer ter algo dele, como uma marca
simbólica. Desta forma, o sujeito pode efetivamente se desligar do objeto perdido.
Quando Freud fala do trabalho de luto, que passa necessariamente pelas operações
de incorporação, introjeção e identificação, podemos inferir que o ego nada mais seria
do que uma espécie de cemitério de objetos perdidos, um conjunto de marcas das
coisas que perdemos: “é como se o nosso ego fosse resultado de uma série de rituais
funerários, resíduos simbólicos das perdas que nos marcam ao longo da existência”
(Birman, 2009, p. 119)

Porém, o autor afirma que, diante a dor violenta provocada pela perda na
guerra, nem sempre é possível ao sujeito realizar tal trabalho de luto, isso porque ele
não consegue perder o objeto, e este é o problema crucial para o autor. Quando a
perda é realmente muito grande, o trabalho de luto torna-se algo efetivamente
impossível. Então, o movimento primordial da subjetividade aqui é colar-se ao objeto,
permanecendo na incorporação e na introjeção, cultuando o objeto eternamente,
“porque é como se (o sujeito) não pudesse existir sem aquele laço social e afetivo. O
sujeito empreende o culto ao morto, pelo qual este ao mesmo tempo não é jamais
enterrado” (Birman, 2009, p. 119). O autor destaca, assim, um ponto crucial que define
a condição de melancolia; quem não pode fazer o trabalho de luto cai em uma
condição melancólica, onde o sujeito se apega ao objeto como se ele fosse a única
coisa que restasse. Desta forma, dor e perda violentas da situação de guerra
caracterizam um luto impossível, onde a dor maior se materializa como melancolia. A
elaboração do trabalho de luto não se processa nessa situação limite, porque o sujeito
se vê diante de uma multiplicidade e diversidade de perdas, que tornam o trabalho
elaborativo quase impossível. Para elaborar este trabalho de luto, não podemos perder
tudo, mas apenas algumas coisas, para que, nos fundando no que nos resta,
realizarmos um trabalho que seja efetivamente reconstrutivo. Se o sujeito perde tudo,
ele não tem aonde se apoiar para elaborar o trabalho de luto, pois a crueldade da
perda se evidencia de maneira brutal.

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A questão da perda, quando não trabalhada através do luto, também se
manifesta ao sujeito a partir da perda de sua auto-estima: o vencido se apresenta,
diante de tudo o que perdeu, como se não fosse mais nada. E também há a perda da
capacidade de desejar, uma vez que o sujeito perde tudo aquilo que lhe dava razão
para viver. Ou seja, com a melancolização, decorrente da impossibilidade da
elaboração da perda, o sujeito não pode mais perder nada, pois já perdeu demais, e o
que também se apaga é a possibilidade de desejar ainda alguma outra coisa. Podemos
acrescentar nesta soma ainda a perda do sentimento de honra: o indivíduo se sente
desonrado porque não defendeu seus objetos de amor; o que está intimamente
relacionada com a culpabilização que o sujeito se impõe.

Sendo assim, no psiquismo do sujeito vencido (e através da nossa


aproximação, também do sujeito órfão, em algum nível bastante primitivo) encontra-se
presente a melancolia, perda da auto-estima, perda da honra, multiplicidade de
choques traumáticos e o terror da morte. Também há o sentimento de vergonha: “é a
vergonha que coloca o sujeito em uma condição de indignidade e que lhe interdita
desde agora a sua inscrição no gênero humano” (Birman, 2009, p. 120). O vencido
perdeu todas as suas marcas simbólicas, seus objetos, tudo aquilo por meio do que, de
alguma maneira, ele teria algum tipo de valor aos seus olhos e aos olhos do mundo:
perdeu a proteção. Da mesma maneira que o órfão encontra-se em um estado
desprotegido diante dos perigos do mundo, no momento em que o mundo se mostrou
extremamente ameaçador, o vencido sente-se de maneira bastante semelhante.
Porém, temos que apontar a diferença de que, no caso do órfão, apesar dele ter
perdido figuras extremamente valorosas e importantes, na maioria das vezes, ele não
perdeu absolutamente tudo. Ainda existe algo para o qual valha a pena viver, e este
"algo" está presente em todas as histórias de heróis.

A partir da compreensão da condição de órfão do super-herói, nos perguntamos


como se daria, neste caso, a constituição das chamadas instâncias ideais do sujeito:
Sem o pai, a quem o herói atribui o falo, ou seja, a potência? Com quem ele se
identifica? O super-herói tem que ser super potente, superando o seu o pai, que está
morto? Para discutir este importante desdobramento da orfandade, Colucci e Fonoff
(2008) apresentam a ideia que nos servirá de base: os pais, por estarem mortos, não
ameaçam a imagem idealizada da criança. Segundo Laplanche (1996), a idealização
seria o processo psíquico através do qual as qualidades e o valor do objeto são
levados à perfeição; ele é engrandecido e exaltado. A idealização, particularmente a

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dos pais, necessariamente faz parte da constituição, no sujeito, das instâncias ideais
de ideal de ego e ego ideal.

Aquilo que realiza o recalque, o seu agente, é objeto de estudo para a


psicanálise (não apenas aquilo que é recalcado) e tem uma história singular em cada
sujeito. É pensando neste agente do recalque que Freud introduz o ideal de ego: há
uma instância que tem a ver com valores que o sujeito foi internalizando ao longo de
sua infância, que vai definir, em cada sujeito, aquilo que vai ser objeto de recalque, e
que vai regular a auto-estima de cada um. A criança vem ocupar um lugar especial em
uma estrutura familiar, no qual se atribui certo valor, certa identidade. Acrescenta que o
narcisismo da criança, o investimento libidinal que ela faz nela mesma, em seu próprio
corpo, não é mais do que o resultado o narcisismo parental, uma vez que a criança é,
para os pais, uma re-atualização desse ego ideal presente neles mesmos. Ou seja, a
criança vem encarnar, na cena do real, algo da ordem do eu ideal dos pais. Entre mãe
e filho, existe uma espécie de perversão normal, entendendo que a criança passa a
ser, para a mãe, o centro de seu mundo desejante. A criança deveria realizar os
desejos não cumpridos dos pais. É assim que o narcisismo da criança é efeito do
entrecruzamento do discurso do desejo dos pais, onde eles tentam reparar uma falta
essencial. Esta ilusão narcísica, sobre aquilo que a criança representa para os seus
pais, é fundamental para que o narcisismo primário se constitua, uma vez q ele tem a
ver com aquilo que a criança significa narcisicamente para os pais. A partir desse
narcisismo primário, o ego da criança se constitui, ainda que não esteja desenvolvido,
à imagem de si mesma que lhe é dada de fora. Uma vez estabelecido este estado de
narcisismo primário, é preciso que existam perturbações que sobrevêm a ele. Uma vez
que a criança constitui-se como ideal materno, há uma completude do lado da mãe,
mas dessa forma, o desenvolvimento ficaria estagnado. Algo acontece para que o ego
deixe de se identificar com o ideal dos seus pais. Conforme afirma Hornsntein (1989):

“Com efeito da decepção edípica, o ideal já não coincide com o


ego. O pai produz uma ferida no narcisismo primário, que só permitirá
uma recomposição da auto-estima mediante o cumprimento das
exigências do ideal, abrindo assim uma dimensão temporal: só no futuro
o ego poderá coincidir com o ideal. O ego não é o ideal, mas pode
chegar a sê-lo. (...)A perda da identificação com o ego ideal é condição
determinante para que se invista narcisicamente no tempo futuro, e
marca a relação que um sujeito tem com a temporalidade” (p. 176)

Já o ego ideal funciona em um corte momentâneo, é a identificação do ego com


o valorizado, mas não há futuro, tempo, projeto. Neste caso, ou sou o que meu ideal
manda eu ser, ou não sou. Não existe a possibilidade da transformação do ego com o

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ideal, não há este projeto futuro, enquanto que o ideal de ego coloca justamente uma
promessa para o futuro: não sou hoje, mas um dia posso tentar chegar a sê-lo, o que
está relacionado com o processo identificatório, com as novas aquisições e com a
recomposição da auto-estima:“quanto mais me pareço a esse que quero ser, melhor
me sinto, mas nunca chego a sê-lo totalmente” (Hornsntein, 1989 p. 177)

Outros autores afirmam que a diferenciação entre ideal de ego e ego ideal está
em outros aspectos. Porém, vamos privilegiar a diferenciação proposta por Hornstein
porém sem perder de vista que outras poderiam ser feitas. Enquanto que o eu ideal
tem relação a uma paralisia, com um sujeito que fica fascinado como que é, ou com
suas conquistas, de modo que não há uma buscar por algo que torne possível essa
satisfação no futuro (de modo que ela já foi obtida e mantida no tempo presente), o
ideal do ego sempre marca um caminho a seguir, equivalente ao que, no campo do
desejo, seria a diferença entre o prazer que desejamos, e o que conseguimos obter. A
existência de um projeto de vida, que contém não aquilo que desejamos obter, mas
também o que desejamos ser, é de fundamental importância para nós, uma vez que tal
projeto nos impele à ação, mostra que caminho devemos seguir para que possamos
atingir algum grau de satisfação com nós mesmos, e com a vida.

Uma vez esboçada tal distinção entre as duas instâncias (o ego ideal e o ideal
de ego), precisamos esclarecer que o conceito do qual nos utilizaremos na presente
análise seria, então o ideal de ego, e não o ego ideal. Aqui, gostaríamos de abordar
justamente esta dimensão ideal, que inclui no sujeito um projeto futuro, do indivíduo
que ele buscará tornar-se.

Dada à importância discutida que as instâncias ideais têm para a constituição


psíquica do sujeito, assim como para toda a sua vida, e o papel fundamental que as
figuras parentais exercem neste complexo mecanismo de identificação, que será
diferente em casa sujeito, não temos como deixar de nos questionar acerca do que
acontece se o desamparo não é apenas simbólico, se as figuras parentais, que têm tão
estreita ligação com a constituição do sujeito, deixam de estar presentes, de maneira
abrupta, inesperada. Como é para este sujeito, que se vê desamparado, afastado de
maneira irremediável de suas figuras de amor e de proteção? O que acontece com
suas instâncias ideais? Com quem ele irá se identificar e que marcas esta perda
deixará, de uma maneira ou de outra, neste sujeito?

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Não podemos fornecer respostas, apenas formular hipóteses. E dentre as
possíveis linhas de raciocínio, uma chama a atenção: Colucci e Fonoff (2008) afirmam
que os pais, por estarem mortos, não ameaçam a imagem idealizada da criança.
Estando mortos, os pais estão protegidos da falha, são infalíveis aos olhos do filho,
passando a ocupar aquela posição de algo perfeito, inatingível, intocável. A hipótese
que apresentamos aqui é de que o ideal de ego do herói, assim como o seu superego,
seriam altamente elevados e desenvolvidos, justamente por terem se construído
através de processos identificatórios com estas instâncias parentais, que, após a
morte, se tornam protegidas, idealizadas, perfeitas e inatingíveis. Como nosso foco de
análise será a figura de um super-herói moderno, podemos dizer que é exatamente
isso que o super-herói se esforça para ser para a sociedade: uma figura poderosa e
infalível, uma proteção constante e um modelo moral. Caso o herói falhe em algum
desses projetos de vida, tal falha gera fortes sentimentos de culpa.

As idéias anteriormente apresentadas nos servirão de base para uma tentaria


de compreensão do nosso verdadeiro objeto no presente trabalho: o super-herói
moderno Batman; mais especificamente, os interessantes aspectos envolvidos em sua
origem, que serão abordados neste segundo momento. Porém, para podermos situar
onde o personagem está localizado, qual é o mundo dentro do qual ele está inserido,
devemos, primeiramente, nos familiarizar com a temática dos super-heróis modernos,
que se faz presente no nosso dia-a-dia, seja através da mídia, dos filmes, quadrinhos,
ou ainda, nos tão frequentes jogos lúdicos das crianças, que se baseiam nos mais
famosos e reconhecidos super-heróis.

5. Os super-heróis dos quadrinhos


Segundo Costa (2010), a utilização de pinturas desenhadas, com forma
sequenciada, com o objetivo de contar uma história, existiu desde o período pré-
histórico, mas a estrutura das histórias em quadrinhos como é conhecida hoje (com a
utilização de balões para os diálogos) teve seu início nos Estados Unidos, em 1894,
com a publicação de Yellow Kid no jornal New York World (Bibe-Luyten, 1985).
Inicialmente as HQ possuíam como tema o humor, dessa forma foram batizadas de
comics (cômico, em inglês). Mesmo com o surgimento de diferentes gêneros
(aventura, terror, erótico, por exemplo), o termo foi mantido para designar qualquer
história em quadrinho. O surgimento do gênero “aventura” ocorreu no período pré-
quebra da bolsa de Nova York, que foi uma época de grande crise financeira e
desesperança por parte da população mundial.

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É impossível falar acerca das histórias em quadrinhos com temática de super-
heróis sem falar sobre a DC Comics. Juntamente com a Marvel, sua rival histórica, são
as editoras de histórias em quadrinhos e mídia relacionada que detém a propriedade
intelectual de praticamente todos os super-heróis mais conhecidos, e são também as
duas empresas responsáveis pela sua criação e popularização. A DC Comics é
responsável pela criação e publicação das histórias sobre do Super-Homem, Batman,
Mulher-Maravilha, Lanterna Verde, Flash, Aquaman, entre outros. Já a Marvel é
responsável pela publicação de histórias como Homem-Aranha, Quarteto
Fantástico, Hulk, Capitão América, Demolidor, Thor, Homem de Ferro, Surfista
Prateado, dentre outros. Juntas, estas duas companhias revolucionaram o de
entretenimento de seu país de origem, os Estados Unidos, e a indústria de histórias
em quadrinhos. Com o objetivo de simplificar a compreensão sobre como se deu essa
gradativa evolução (tanto nos enredos quando nos gráficos das revistas), os fãs de
histórias em quadrinhos dividem o desenvolvimento em eras.

A primeira delas, chamada de “Era de ouro dos quadrinhos”, é o período na


história das HQs norte-americanas, geralmente situado entre 1938 (ano do surgimento
do Super-Homem) e meados dos anos 50. Nesse período foi inventado e definido o
gênero dos super-heróis, com a estreia de alguns dos personagens mais conhecidos
do gênero. A partir da reformulação de vários super-heróis da era dourada, foi iniciado
um novo período de sucesso, a era de prata. Por sua vez, esta fase foi marcada por
avanços artísticos e sucesso comercial dos quadrinhos, sendo compreendida entre os
anos 50 ao começo dos 70. Neste período, houve a gradual a transformação dos
heróis em seres mais humanos e complexos: o desenvolvimento do personagem e
seus conflitos pessoais tornaram-se quase tão importante quanto o mito, os super
poderes e as aventuras épicas dos super-heróis.

Durante a Era de Prata, houve a reconfiguração de muitos personagens


populares, como um Batman mais “obscuro” e várias mudanças em Superman.
Quanto ao seu término, não há uma data de consenso, predominando para fins de
discussão o ano 1985, pois a DC Comics iniciou nesse período uma retomada da
liderança do mercado americano que havia perdido durante a fase Marvel da Era de
Prata (também chamada de Era Marvel). No Brasil, as mudanças da primeira fase da
Era de Bronze americana (1969-1980) praticamente foram ignoradas, pois nesse
período o mercado de quadrinhos nacionais foi dominado pelos personagens infantis,
liderados pela Turma da Mônica e Zé Carioca.

62
5.1. O universo de Batman
Por ser um super-herói sem super poderes, e talvez por isso, com motivações
mais complexas (ao contrário do Homem aranha, por exemplo, Batman não tem um
super poder, para, partindo desta situação, usá-lo para lutar contra o mal), Batman se
destaca dentre seus quase semelhantes, os demais super-heróis modernos. Suas
origens, aspirações e motivações, as quais buscamos compreender, nos pareceram
dignas de aprofundamento. Para Rocha, em seu texto “A Melancolia de um Cavaleiro
das Trevas” (2012) Quantos outros ditos heróis encontramos por aí, donos desse
pragmatismo, desses tormentos, desse desespero tão comum a nós mesmos, homens
dos grandes centros urbanos?” (p. 4)

Na década de 30 a editora Detective Comics precisava de um herói que fosse


a antítese do Super-Homem, que fazia muito sucesso na época. Vem à luz então,
pelas mãos do norte-americano Bob Kane, inspirado pelas histórias de detetive, pelo
mascarado Zorro e por Sombra (ambos figuras populares da época, homens
financeiramente favorecidos que combatiam o crime por detrás do segredo de outra
identidade), Batman, um herói criado pela perda e pelo desejo de vingança. No mundo
fictício de super-heróis da editora DC Comics (conhecido como Universo DC), Batman
é um super-herói que luta contra o crime a corrupção que dominam a sombria cidade
de Gotham City, utilizando-se de inteligência, habilidades em artes marciais e uma
infinidade de dispositivos de alta tecnologia, além de um uniforme, uma máscara e um
símbolo: o morcego. Segundo Rocha (2012): “Vestido de negro e espreitando por
sobre os prédios da gótica e sombria Gotham City, temos aqui o primeiro super-herói
com características muito mais ligadas a morte que a vida.” (p. 2)

De baixo da máscara, está Bruce Wayne, um “playboy” irresponsável e


superficial que vive da fortuna herdada (conquistada quando os pais de Bruce
investiram em Gotham antes de a cidade tornar-se uma grande metrópole) e dos
lucros obtidos pelas Empresas Wayne, uma grande organização no ramo da
tecnologia de ponta (o que justifica todos os avançados dispositivos com os quais
Batman combate o crime). Contudo, Bruce Wayne também é conhecido por suas
contribuições para caridade, especialmente através da Fundação Wayne, dedicada a
ajudar vítimas de crimes e prevenir que pessoas tornem-se criminosas. Essa
personalidade de Bruce Wayne foi por ele forjada para evitar que alguém desconfiasse
de seu alter-ego, às vezes fingindo-se bobo e egoísta, para que ninguém o descubra.
Batman deixou claro que considera manter sua identidade secreta prioridade máxima,

63
chegando a ficar perto da morte várias vezes para evitar mostrar suas habilidades em
público como Bruce Wayne.

O bilionário criou o Batman para causar medo no submundo de Gotham e para


defender os inocentes. O uniforme e a maneira como age quando o veste têm o
objetivo de intimidar seus adversários. Enquanto Bruce Wayne é despreocupado e
irresponsável, Batman é frio, determinado e implacável. Além do uniforme e da
personalidade, Bruce Wayne também altera sua voz significativamente quando se
torna Batman, tanto para disfarçar como para intimidar. Fãs afirmam que Batman é a
personalidade real na mente de Bruce Wayne. Em alguns momentos isso fica
evidente, com na história em quadrinhos onde Alfred (seu fiel mordomo, com quem
compartilha o segredo de sua identidade secreta e por vezes lhe serve como “a voz da
razão”, uma figura paterna que está sempre pronto para aconselhá-lo, apesar de não
concordar com todas as suas atitudes) pediu para que ele tirasse a máscara para ficar
mais a vontade, Batman retrucou: "Às vezes eu fico mais confortável de máscara".

A personalidade de Bruce Wayne variou com o passar do tempo. Segundo


aponta Rocha (2012):
“No início as histórias eram bem ingênuas, típicas da época,
quando Batman se contentava em matar (sim, ele matava: seu código de
honra só surgiu mais tarde, devido a uma caça às bruxas ocorrida nos
EUA, engendrada contra os quadrinhos, considerados corruptores da
juventude norte-americana)” (p. 2)

Durante a década de 80, uma nova demanda de mercado, que foi gerada
principalmente por uma mudança da mentalidade dos leitores de quadrinhos, que
não se contentavam mais com aquelas histórias que até então vigoravam (com uma
temática mais alegre, leve e infantilizada), os editores e roteiristas da DC Comics
executam uma grande mudança na concepção do personagem, caracterizando uma
espécie de “renascença” em sua linguagem visual de origem, os quadrinhos, uma vez
que foi somente nos anos 80, considerada a fase de ouro do personagem, que
aconteceu uma profunda modificação na concepção de Batman. Os roteiristas
passaram a dar ênfase às características psicológicas sombrias e patológicas que
acometiam o herói (Rocha, 2012). Ou seja, só no final do século XX, Batman abraçou
um lado mais sombrio e realístico, enquanto escritores e roteiristas, tanto de
quadrinhos quanto de longas-metragens, começaram a adicionar camadas de dramas
pessoais e conflitos psicológicos, na subjetividade do herói. Começava a existir então,
este chamado “lado mais sombrio” de Batman, no qual poderiam ser explorados

64
aspectos de sua personalidade, e correlacioná-los com os traumas, tão marcantes para
sua constituição psíquica. Dito de outra forma, o funcionamento do sujeito passa ser
passível de observação; e para nós, porque não dizer, de análise.

Foi nesta época que surgiram três das maiores histórias em quadrinhos norte-
americanas, e segundo alguns especialistas, do mundo em todos os tempos: Batman:
O Cavaleiro das Trevas (1986), de Frank Miller, Batman: A Piada Mortal (1987), de
Alan Moore e Brian Bolland, e Batman: Asilo Arkham (1989) de Grant Morrison e Dave
Mckean. A década de 80 definitivamente marca o personagem com uma série de
histórias derradeiras, e que até hoje tem sido usadas como base para os novos
roteiristas acerca de como deve ser o personagem e seu universo: as histórias em
quadrinhos que inspiraram os três mais recentes (sendo que nossa análise mais
profunda será feita a respeito do filme primeiro filme desta série, Batman Begins),
foram concebidas neste contexto.

As histórias mais novas preferem mostrá-lo como um playboy preguiçoso,


sendo Batman, com uma personalidade forte e sombria, a personalidade dominante, a
"verdadeira" identidade do bilionário. Já as versões mais antigas apresentam um
Bruce Wayne mais maduro e responsável, sendo Bruce a personalidade dominante.
Wayne guarda seu segredo muito bem, e apenas poucas pessoas sabem que ele é o
Batman. Alguns vilões descobriram sua identidade ao longo dos anos, como Ra's Al
Ghul, o Charada, Bane e Silêncio.

Segundo os quadrinhos, o fato de testemunhar o assassinato de seus pais


quando criança teria levado o jovem Bruce Wayne a viajar pelo mundo tentando
compreender a mente criminosa. Treinou todo tipo de arte marcial e técnicas de
combate (o trauma de ver seus pais mortos com tiros de revólver lhe deu aversão a
armas de fogo, segundo nos explicam os quadrinhos). Podemos perceber aqui o
trauma como elemento central do que Bruce irá se tornar, pois acreditamos que,
provavelmente, ele não seria o Batman caso seus pais não tivessem sido
assassinados. Buscando a perfeição física e intelectual. Observamos a busca
compreender o mal e como ele “funciona”, o que poderia sugerir relacionamento
estreito com a pulsão de morte. Esta hipótese será discutida mais adiante ao tratarmos
do filme “Batman Begins”.

A morte de seus pais é um evento central na chamada “mitologia” na qual o


personagem está envolvido. Foi mostrada pela primeira vez na edição da Detective

65
Domics de novembro de 1939, e foi incorporada, sendo contada e recontada nas
versões subsequentes. Embora a história de Batman seja contada a partir deste evento
traumático, o assassinato de seus pais quando ainda era criança, este acontecimento
acaba por tornar-se a maior força do personagem. Podemos até pensar que, não fosse
o trauma, provavelmente “o homem-morcego”, o grande herói, não existiria, uma vez
tudo nos leva a crer que foi a partir deste trágico acontecimento que Bruce, ainda uma
criança, se sentiu tomado por um desejo de vingança, que acaba se transformando na
luta por justiça e na defesa dos inocentes, como será discutido posteriormente
.
Após obter conhecimentos sobre o “mal”, ser treinado psicológica e fisicamente
em variadas artes marciais, Bruce criou um personagem, baseado em um objeto que o
amedrontava quando criança: morcegos. Ele queria que os bandidos compartilhassem
do mesmo temor. E assim, passou a lutar contra o crime. Das HQs, retiramos a
seguinte passagem:
“Que aparência adotar? - Bruce se pergunta. "Os criminosos são
supersticiosos e facilmente amedrontáveis, e meu disfarce deve fazê-los
tremer de terror. Tenho que ser uma criatura da noite. Escura, terrível..."
Como por um milagre, um morcego perdido surge pela janela da
mansão: "Um morcego ! É um presságio !... Eu me tornarei um morcego !"
E assim nasceu a lenda.”

É interessante analisar este símbolo escolhido, o morcego. O animal que


assusta Bruce quando criança, que ele encontra ao cair no poço e acaba se tornando
um objeto fóbico, é um animal relacionado também às histórias vampirescas, com certa
tonalidade de melancolia, pois para o vampiro se alimentar, ele deve destruir o outro,
algo que, em um sujeito, geria muita culpa para si mesmo. Mas enquanto o morcego e
o vampiro, das histórias mais antigas, se alimentam do sangue, da vida do outro,
Batman é muito seletivo: ele só ataca o mal, os vilões. É como se, para existir, ele
precisasse do mal, pois se alimenta deste mal, tendo sua existência justificada por ele.
Ele escolhe assumir esta identidade, a do morcego, ligando seus medos infantis (medo
do cair, do desamparo, da falta de continência e de proteção) a um objeto que pode
causar medo à mais pessoas, uma vez que, na cultura popular, o morcego é visto
como uma ameaça, uma criatura da noite, da escuridão. Encontramos referências a
morcegos também nas figuras medievais representativas de demônios, que geralmente
tem chifres e asas deste mamífero. Em diferentes culturas, ele assume o símbolo do
mal, da morte, do lado negro, do demônio. Como sabemos, o mal é uma parte inerente
de todo o ser humano. E Batman se apodera deste símbolo assustador, o colocando

66
em seu rosto, em sua máscara, porém, tendo uma finalidade benéfica para a
sociedade: quendo causar todo este medo e terror, mas apenas para “quem merece”,
os vilões e bandidos, preservando a população em geral, que sofre pelas ações dos
“maus”.

Diferentemente de outros super-heróis, Batman não tem nenhum poder sobre-


humano, usando o intelecto, habilidades investigatórias, tecnologia, dinheiro e um
físico bem-preparado em sua guerra contra o crime. Talvez por esse motivo a
identificação com ele ocorra tão facilmente, por se tratar de um super-herói muito mais
“possível” de existir do que o Super Homem, que é um alienígena, ou do que o Homem
Aranha, que adquiriu seus poderes ao ser picado por uma aranha geneticamente
modificada. Em termos científicos, é mais provável que um homem muito rico tenha se
aperfeiçoado mental e fisicamente. Talvez isto justifique a preferência de muitas
pessoas pelo Batman: recentemente, uma eleição da revista norte-americana Comic
Heroes escolheu Batman como o melhor super-herói dos quadrinhos (os votos foram
feitos pelos leitores da publicação). Batman superou Homem-Aranha e Super Homem,
que ficaram nas posições seguintes, além de Mulher Maravilha e Tintim, que também
entraram na lista dos dez mais queridos pelos fãs dos quadrinhos. O editor da revista,
Jess Bickman, não ficou surpreso com a escolha, dizendo que o Homem-Morcego é "o
mais legal e mais interessante super-herói já criado. Ele não tem super poderes; ele
chega a isso com sua mente, sua inteligência e suas habilidades físicas. Ele é obscuro,
conflitante e trágico", enaltece Bickman. Rocha (2012) também fala desta preferência
do público pela figura do Batman:

“Ícone da cultura pop, Batman é um herói que perdura, que


atravessa as décadas e mantém ainda grande popularidade. (...) no caso
do Homem-Morcego especificamente, seja talvez por que no fim das
contas, ele é o mais humano de todos. E quando digo humano, não é
porque ele seja destituído de super-força ou de um corpo indestrutível. O
que o torna aparentado com qualquer um de nós é sua capacidade de
sentir e ser afligido por coisas que até então, nenhum herói antes
se preocupava. Vejamos o Super-Homem, por exemplo. Aquela perfeição
toda e tão maniqueísta, soa como algo distante, irreal e inatingível para
nós meros mortais” (p. 4)

A popularidade de Batman pode estar relacionada com o fato de seus poderes


não serem “externos”: não foram conseguidos como que por mágica, para que depois
o personagem tivesse que aceitá-los e escolher, conscientemente, fazer o bem para as
pessoas. Aqui, esta causalidade se inverte, uma vez que é o próprio personagem que
vai em busca de seu poder: através das viagens pelo mundo, dos duros treinamentos e

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de toda a técnica adquirida, Bruce Wayne se torna uma figura completamente diferente
tanto da criança indefesa que viu seus pais serem mortos, quanto do milionário
aparentemente arrogante e sem maiores preocupações: mais do que um ser humano
com recursos tecnológicos e conhecimentos em artes marciais, ele aprende a dar um
destino aos seus sentimentos destrutivos, como o medo e a raiva. A partir deste
momento, tais sentimentos e pulsões agressivas não ficarão mais contidos, nem se
voltarão contra o próprio ego; mas serão dirigidos contra o “mal” que devasta sua
cidade, fazendo cada vez mais vítimas inocentes, através dos complexos sistemas de
corrupção que a dominam, envolvendo máfia, polícia e políticos locais.

O personagem, um justiceiro mascarado, é absolutamente humano e, longe de


possuir poderes mágicos, está sujeito às agruras da mortalidade. Tanto é, que, após
cada batalha, tanto nas histórias em quadrinhos quanto nos filmes, vemos, logo em
seguida, o personagem com seus ferimentos e escoriações. Um herói que sente dor,
medo, angústia, ansiedade, certamente nos é muito mais familiar. O que define o
personagem Batman é a vontade de conquistar, de superar seus próprios limites.
(Cyrino, 2006). Talvez por isso ele seja tão popular: superar limites é uma condição
básica para o nosso desenvolvimento e nossa trajetória de via. Uma trajetória que
corresponde a um processo de autoconhecimento contínuo, em que o personagem vai
se descobrindo, enfrentando os seus medos, fortalecendo-se, rompendo com antigas
“amarras” e com qualquer determinação a priori que lhe impeça de “tornar-se”, tal qual
nós fazemos em nossas vidas. Desta forma, podemos compreender a popularidade de
Batman através não apenas da identificação que podemos ter com o personagem;
podemos nos identificar também com sua trajetória, ao tomá-la como uma metáfora do
nosso próprio desenvolvimento e de nossas próprias batalhas interiores. Rocha (2012)
o compara, ainda, com os deuses gregos:

“Batman seria como eles: ainda alguém superior, mas dotado de


qualidades e defeitos tão ‘mortais’, que lhe imbuiriam de imensos focos e
centelhas de humanidade, gerando em nós essa imediata identificação e
atração. Batman não é bonzinho, como um santo ou asceta, e nem faz
milagres como tal.” (p. 5)

Batman é um dos poucos heróis com um “parceiro”: Robin, criado em 1940


uma década depois do surgimento do personagem, ajudará Bruce Wayne/Batman
numa quantidade inacreditável se situações perigosas, salvando-o várias vezes da
morte. Com a vinda de Robin, Batman se humaniza consideravelmente. Rocha (2012)
afirma que a criação de Robin se tornou necessária justamente para atenuar as

68
características sombrias do personagem. Neste momento, ele ganha um interlocutor e
não é mais o vingador solitário do início. A presença de um “amigo” o torna mais
humano, pois agora ele pode dar voz aos seus sentimentos de justiça e vingança,
pode nomeá-los, esclarecê-los de uma maneira mais consciente e menos intuitiva,
pois é no diálogo, na conversa com o outro, que nós nos construímos e nos
reconhecemos como sujeitos.

Diante de Batman e Robin, surge um verdadeiro exército de vilões nas histórias


em quadrinhos, cada um mais “estranho” que o outro: o gozador Coringa, de sorriso
maléfico; o Pinguim com seu guarda-chuva assassino e suas oito imagens; a Mulher-
Gato e sua astúcia felina, que não a impedirá de se apaixonar por Batman; Duas
Faces, o semi-desfigurado. O universo do crime parece atingido pela demência, pois
todos esses adversários de Batman têm algum grau de loucura. Tal fato demonstra
como o contexto da época relacionava profundamente a delinquência com a
insanidade, com a falta de contato com a realidade, tornando possível a criação de
vilões com origens e motivações tão diversas e interessantes quanto as do próprio
herói. Porém, Bruce forjou Batman para combater criminosos: antes da criação de
“super-vilões”, ele escolheu tornar-se um super herói para ter meios de se erguer
contra os bandidos e a violência por eles causada. Neste aspecto, seus inimigos e
suas batalhas também estão próximos ao nosso mundo: Batman enfrenta criminosos,
bandidos, assassinos e ladrões. Em outras palavras, ele luta contra aquilo que nós
gostaríamos de ser capazes de lutar.

Batman é seguramente um herói que, longe de estar pronto, precisa estar em


contínuo diálogo com o seu tempo. Apesar de ter sido criado em 1939, continua a
mobilizar a atenção e o interesse da sociedade. O próprio reconhecimento de Batman
como um super-herói pós-moderno, com todas as suas dúvidas, inquietações,
transgressões, ambiguidades, potencialidades e limitações, nos leva a perceber que
este mito ainda permanece central na nossa cultura (Cyrino, 2006). Em outras
palavras, as pessoas continuam se identificando com ele: seu apelo continua atual, o
que mostra que a mensagem que este personagem nos passa é forte o bastante para
ser importante a nossa identificação com ela e com os aspectos que ela mobiliza em
nós, mesmo depois de passado tanto tempo desde sua invenção.

Quando gostamos de algo, é porque este objeto (ou algum aspecto dele) fala a
nossa subjetividade, faz sentido para nós de alguma forma. Nós gostamos de algo
porque nos identificamos com este algo, porque vemos neste algo (ou seja, neste

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outro) aspectos que nós gostamos em nós mesmos (Corso, 2006). Assim como
odiamos o outro quando vemos nele aspectos que nós odiamos em nós mesmos. Se o
público gosta tanto de Batman, é porque existe aí algo da identificação, e devemos
lembrar que identificação é sempre inconsciente. Porém, além de ser um super-herói
mais “humanamente possível’ de existir no mundo como nós o conhecemos, o fato
dele ter sido um sujeito ativo na obtenção de seu poder também é muito relevante.
Além da importância de se identificar com uma figura super-poderosa, que já foi
discutida anteriormente, a importância de se identificar com uma figura que se torna
poderosa por iniciativa e méritos próprios, depois de ocupar uma posição inteiramente
fragilizada e desamparada (a criança que perde os pais) é ainda maior, pois mostra ao
sujeito que as características desejáveis para ocupar uma posição de onipotência, tão
necessária em variados momentos da vida, podem ser obtidas a partir de uma decisão
consciente e de esforço do próprio sujeito. Ou seja, a mensagem que é passada é a de
que cada um pode ser um sujeito ativo, atuante, em seu próprio desenvolvimento e
amadurecimento, buscando no mundo, no tão temido desconhecido, as ferramentas
necessárias para superar a angústia e o medo, assim como dar um destino aos
sentimentos agressivos e destrutivos. Esta mensagem tem uma força muito grande,
pois fala a todos os sujeitos humanos, uma vez que a questão do que fazer com
nossos aspectos negativos, que destino dar a eles de modo que sejam o menos
prejudiciais possíveis, nos assola por toda a vida. Quando encontramos uma narrativa
que nos conta de uma possibilidade, uma saída inovadora para este conflito primordial,
ficamos diante de novas possíveis soluções para nossos problemas, tal qual a criança
passa a conseguir nomear e distinguir seus complexos sentimentos, ao ler um conto de
fadas, por exemplo, pois encontra elementos para tecer sua subjetividade, compor seu
mundo interno através de palavras que lhe sejam adequadas para nomear seus
objetos internos.

5.2. Dos quadrinhos para a televisão


Entre os anos 1930 e 1950, vários personagens de histórias em quadrinhos,
como por exemplo, Capitão América, Fantasma, Superman e o Capitão Marvel, foram
adaptados para seriados de ação que passaram nos cinemas. O primeiro seriado do
Batman surgiu em 1943, com o título de “Batman: O Homem Morcego”, estrelado por
Lewis Wilson (Batman) e Douglas Croft (Robin). Esta primeira série não era bem
produzida, além de ser caricata: o vilão central era um agente japonês que se infiltrou
nos Estados Unidos com o objetivo de criar um exército para dominar o país. Tal
enredo estava em sintonia com os acontecimentos da época, uma vez que os Estados

70
Unidos estavam em guerra contra o Japão. Este seriado teve quinze capítulos, foi
dirigido por Lambert Hillyer e foi produzido pela Columbia Pictures.

Em 1949, estreia “A Volta do Homem Morcego”, que, como seu antecessor,


também contou com quinze capítulos, e foi dirigido por Spencer Bennet. Das HQs, veio
para o elenco a repórter Vicki Vale (Jane Adams) e o comissário Gordon (Lyle Talbot).
O roteiro dos episódios continuou empobrecido, assim como no seriado anterior. Um
dos principais vilões era o Mago, com uma vestimenta similar à da Ku Klux Klan, e um
raio da morte que tinha o poder de uma bomba atômica. Isso reflete também o
panorama da época, já que em 1949 a União Soviética testou sua primeira bomba de
tecnologia nuclear.

Estes seriados, como tantos outros, acabaram sendo exibidos na televisão. Em


1966, estreou na rede americana de televisão ABC a primeira série sobre o
personagem especialmente produzida para a televisão: “Batman”, estrelada por Adam
West (Bruce Wayne/Batman) e Burt Ward (Dick Grayson/Robin). Foi uma série cômica
que obteve muito sucesso, mas também atraiu a ira de fãs. Foi aqui que os "Bat-
trecos" atingiram seu auge: Batmóvel, Bat-lancha, Bat-cóptero, Bat-cicleta, Batarangue
e o Bat-sinal. Entre o primeiro e segundo ano da série, foi produzido para o cinema o
filme “Batman, o Homem Morcego”, que, com um orçamento razoável, mostrou os
heróis enfrentando, de uma só vez, os vilões Pinguim, Coringa, Charada e Mulher
Gato. A série foi cancelada na terceira temporada, com 120 episódios exibidos.

Durante a produção de “Batman Returns” (longa metragem de 1992), surgiu a


ideia de criar uma nova série em desenho. A série “Batman: The Animated Series”
revolucionou as animações de aventura na TV, e estabeleceu um novo padrão de
qualidade e respeito aos personagens. Ela foi exibida entre 1992 e 1998 e deu origem
a outras produções baseadas em personagens da DC. A série mostrava uma Gotham
City típica dos anos 1930, tomada pelo crime até o surgimento de Batman, “o cavaleiro
mascarado”.

Na primeira temporada, Batman atou sozinho, mas já na segunda foi


introduzido Robin, que acaba se apaixonando por Barbara Gordon, a futura Batgirl.
Harvey Dent aparece no início como aliado de Batman e amigo de Wayne, mas depois
torna-se o vilão Duas-Caras. Foi criada para a série a vilã Arlequina, uma assistente
do Coringa, apaixonada pelo vilão e tão louca quanto ele. Anos depois esta
personagem foi introduzida nas HQs do morcego.

71
Em 1994, a série dá origem à animação de longa metragem “Batman: A
Máscara do Fantasma”, que retrata a origem de Batman e do vilão Coringa. Todos os
aspectos positivos existentes no homem-morcego foram colocados neste filme: um
romance que desaba, o morcego enfrentando mafiosos e o seu passado, o Coringa,
ótimas cenas de ação, revelações incríveis, o clima sombrio. Para muitos, esta
animação e o filme “Batman Begins” são as melhores adaptações das histórias em
quadrinhos de Batman para outras formas de mídia, já produzidas.

Em 2001, surgiu o desenho “Liga da Justiça”, onde Batman integra a equipe


juntamente com Super-Homem, Ajax, Lanterna Verde, Mulher Gavião, Mulher
Maravilha e Flash. No ano de 1999, o produtor Bruce Timm decide usar o conceito de
Frank Miller e leva o herói para o futuro. Surge o desenho “Batman do Futuro”, onde
Bruce Wayne está aposentado, e o jovem Terry Mcginnis, ao investigar a morte do pai,
que trabalhava nas empresas Wayne, torna-se o novo Batman. Durante a elaboração
do longa “Batman Begins” (2005), a Warner decidiu criar uma nova animação baseada
no morcego, surgindo “The Batman” (2004). Esta série segue os mesmos passos do
filme, mostrando os primeiros anos de Wayne no combate ao crime.

Como se pode ver, existem inúmeras produções televisivas e cinematográficas


sobre o personagem, cada uma com suas peculiaridades, e mostrando um super-herói
diferente, mais ou menos complexo. Também diferem a respeito dos vilões, aliados e
situações as quais o herói precisa enfrentar.

No que diz respeito exclusivamente aos longas-metragens, a história do


homem-morcego no cinema é igualmente longa, cheia de altos e baixos. Começando
por “Batman” (1966), baseado na série de televisão homônima, da qual herdou o
mesmo ar caricato e cômico. “Batman” (1989), dirigido por Tim Burton, foi um sucesso
financeiro e de crítica, arrecadando cerca de 400 milhões de dólares no total de
bilheteria. O filme foi premiado com o Oscar de melhor direção de arte e inspirou a
criação da série animada “Batman: The Animated Series”. Este filme retrata a origem
de Batman de maneira semelhante à HQs, porém menos detalhada, uma vez que o
filme não mostra como ocorreu o treinamento e a preparação de Bruce Wayne para se
tornar o homem morcego. “Batman, o Retorno” (1992) é a sequência do filme
anteriormente citado. Concorreu a dois Oscar, nas categorias de melhor maquiagem e
de melhores efeitos visuais. “Batman Eternamente” (1995) foi o primeiro da franquia
Batman a ser dirigido por Joel Schumacher (cujo nome ficou associado à péssima

72
qualidade das adaptações das HQs para o cinema) e foi produzido por Tim Burton.
Batman & Robin (1997) foi dirigido novamente por Schumacher, sendo a sequência
de “Batman Eternamente” (1995). É considerado pela critica especializada como o pior
longa da série do homem-morcego, sendo alvo de muitas críticas negativas e
recebendo onze indicações ao Framboesa de Ouro. (premiação que elege os piores
filmes) O público parece ter concordado com a opinião dos especialistas, uma vez que
a arrecadação nos Estados Unidos (107 milhões de dólares) ficou aquém do
orçamento usado para a produção da película (125 milhões).

Todos estes longas metragens apresentaram a história de uma maneira um


tanto quanto caricata, e não se aprofundaram nas origens dos personagens (tanto do
herói quanto dos muitos vilões), assim como se limitaram a mostrar as condições de
herói e de vilão como um processo acabado, por não abordar as transformações
vividas por estes personagens. Muitos dos fãs da história em quadrinhos encaravam
com desconfiança qualquer nova proposta de adaptação para o cinema, dado a má
fama que os “batfilmes” conquistaram ao longo dos anos. Porém, este cenário estava
prestes a mudar, no ano de 2005, com Batman Begins. Levando em conta o sucesso
alcançado por esta adaptação e por suas sequências (Batman - O Cavaleiro das
Trevas, de 2008 e O Cavaleiro das Trevas Ressurge, de 2012) e a forma como estes
três longas metragens abordam temas mais “sombrios” e “humanos”, como a
vingança, o medo, a construção de uma nova identidade, dentre tantos outros,
optamos por centrar nossa análise no primeiro filme desta trilogia, uma vez em que é
nele onde são mostrados aspectos relativos à construção do personagem, que nos
pareceram centrais. A escolha de um modelo de “Batman” se fez necessária dado a
infinidade de mudanças pelas quais o personagem passou, em cada nova edição da
história em quadrinhos, a cada nova série televisiva e novo filme produzido. Da mesma
forma, por se tratar de uma história realmente complexa, e com vários elementos que
mereceriam aprofundamento, se fez necessária a escolha de um recorte, mesmo
dentre a trilogia cinematográfica mais recente.

Existem muitas versões do mesmo personagem, principalmente nas histórias


em quadrinhos, apesar de todas elas manterem mais ou menos as mesmas
características principais. A escolha por este filme (além de carregar certa preferência
pessoal da autora) foi feita levando em conta o quão importante essa releitura da
história foi, tendo em vista a história do personagem, uma vez que é inaugurada uma
nova forma de adaptação de quadrinhos para as telas: mais madura, abordando temas
“pesados”, e trazendo as narrativas para mais perto do espectador; e porque não dizer,

73
facilitando a identificação do público com o personagem. Assim sendo, optou-se por
abordar de maneira mais extensa o primeiro filme da trilogia dirigida por Christopher
Nolan, Batman Begins, de 2005, que, além dos motivos já citados, nos dá a
oportunidade de acompanhar mais estreitamente a infância de Bruce, algo que não
havia sido mostrado nas telas até então. Como acreditamos que o último filme pode
nos fornecer mais um argumento em favor da hipótese que iremos desenvolver a
respeito da origem do personagem, “O cavaleiro das trevas ressurge”, de 2012, será
abordado no presente trabalho, em suas Considerações Finais.

6. Batman Begins (2005):


Após um período de oito anos longe dos cinemas, o personagem Batman
retorna decidido a contar sua história de forma definitiva, clássica e empolgante.
Críticos consideram que Batman Begins simplesmente apaga da memória qualquer
outra adaptação feita dos quadrinhos do herói para as telonas. Afirma-se que não só é
melhor que todos os filmes anteriores do Batman juntos, como também instaura um
novo patamar de qualidade para as adaptações de quadrinhos. Batman Begins
constitui uma narrativa de origem, a qual não se propõe oferecer uma seqüência, mas
um reinício para as aventuras do super-herói. (Gonçalves, 2012)
Em Batman Begins, tudo é impressionantemente real. Antes do lançamento do
filme, cartazes publicitários foram espalhados pelo mundo, mostrando os pontos
turísticos das respectivas cidades onde foram afixados tomados por uma revoada de
morcegos. A ideia dos anúncios segue de perto a proposta do diretor Christopher
Nolan: trazer o mito Batman para o mundo real, realçando assim o apelo primeiro que
o personagem exerce, o de um super-herói mais próximo dos seres humanos, por se
tratar de um humano, no final das contas: não há super poderes, super força,
velocidade, leituras de pensamento nem olhos que atiram lasers; há apenas a
inteligência e o treinamento, que são aqui, pela primeira vez, retratados no cinema.
Segundo Cyrino (2006):

“Enquanto os outros filmes do herói, facilmente classificados no


gênero aventura ou ação, giram em torno das batalhas travadas entre o
homem-morcego e seus adversários, Batman Begins conta a história do
herói a partir das suas origens, mostrando a sua evolução através do
tempo. É justamente a reconstituição histórica do personagem que
permite sua aproximação com o expectador, possibilitando explorar a
riqueza ao mesmo tempo subjetiva e simbólica de Batman” (p.1)

“É importante considerar que o que tornou possível a realização


do filme é o reconhecimento de que Batman não nasceu pronto. Ao
contrário, Batman se fez, se tornou um herói, entre ensaios e erros,

74
avanços e retrocessos. O filme, ao mostrar a evolução do personagem,
parece deixar um claro recado ao telespectador: 'você precisa cair para
aprender a se levantar'. Após cada batalha travada, o herói, em
construção, vai aprimorando os seus artefatos tecnológicos, mudando
as suas estratégias, melhorando a sua performance”. (Idem)

Sendo considerado pelos exigentes fãs das histórias em quadrinhos, e pelo


público em geral, como o filme definitivo do homem-morcego, Nolan conseguiu imprimir
ritmo ao longa metragem, e, ao mesmo tempo, não soar caricato, mesmo nas cenas
necessárias de perseguições ou lutas, provavelmente por ter procurado fazer um filme
que soasse real para o público. Não há lugar para a fantasia em Batman Begins, tudo é
mostrado através de uma fotografia sombria, que reforça o aspecto pesado e denso do
personagem. Outro trunfo de Batman Begins é que ele não fica restrito ao gueto dos
fãs de quadrinhos. O roteiro, assinado a quatro mãos por Nolan e David S. Goyer,
torna o filme acessível para aqueles que não estão familiarizados com a história deste
super-herói, sem desvirtuá-la ou tratá-la como caricata e/ou infantil. Assim, o
nascimento do ícone Batman se mostra ao público como uma experiência intensa e
necessária:

“Batman Begins, neste sentido, abre espaço para determinado


tipo de fruição pelos espectadores que não conhecem as
manifestações de Batman em outras mídias, adquirindo a condição de
uma obra fechada em si, dotada de sua própria legitimidade narrativa.
Aqueles que conhecem as demais narrativas, por outro lado,
apreciarão o filme como parte de uma obra maior, vasta e variada em
enfoques e estilos. Os que não foram previamente iniciados às
aventuras de Batman, todavia, serão capazes de ler a obra dentro de
sua especificidade.” (Gonçalves, 2012, Pág. 4)

O modo como Bruce vai incorporando elementos que o auxiliam na luta contra
os bandidos, culminando no Batman que todos conhecem, é minuciosamente
explicado. Essa estrutura faz de Batman Begins um filme semelhante ao primeiro
Homem-Aranha. Não há pressa para entregar à plateia o herói lutando contra a escória
de Gotham. Antes de conhecermos o Batman, somos obrigados a conhecer Bruce
Wayne. Assim como em Homem-Aranha conhecemos Peter Parker antes de conhecer
sua identidade heroica.

Entretanto, tudo o que era engraçado, inocente e colorido no filme do herói da


Marvel, em Batman Begins é soturno, tenso e pesado. Exatamente como o
personagem sempre pediu, mas nunca foi atendido na tela grande. Apesar da
ambientação dos dois primeiros filmes de Batman, dirigidos por Tim Burton, ser
bastante dark, as duas produções cometeram um erro que seria depois repetido pelos

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dois filmes seguintes, de Joel Schumacher (entre tantos outros): mostrar a história
como completamente distante da chamada “vida real”, com o próprio personagem
principal como um “homem morcego”, sobrevoando os telhados da cidade, com
acessórios estranhos e uniforme idem, cuja origem e motivações são desconhecidas e
impossíveis de ser apreendidas pelo público.

Gonçalves (2012) acrescenta:


“É possível detectar no Batman de Nolan permanências e
reiterações relativas a diversos tratamentos anteriores do homem
morcego: o traje, que lembra a estética básica dos filmes precedentes,
bem como a queda acidental de Bruce Wayne, o alter ego de Batman,
em uma caverna sob a mansão de sua família, e a trágica morte de
seus pais – Thomas e Martha – durante um assalto, fato narrado
inúmeras vezes nos quadrinhos, desde 1939.” (p. 3)

Batman Begins é interessante, ainda, porque nos mostra três faces do


personagem (ao contrários das duas, tão comuns neste tipo de história, a do herói e
sua identidade secreta) A primeira é o Bruce Wayne amargurado pela morte dos pais e
decepcionado com a tolerância dos moradores de Gotham com a criminalidade; a
segunda é o Bruce Wayne público, playboy mimado; e a terceira, é claro, é Batman,
criatura que vive nas sombras buscando justiça com as próprias mãos. Com este filme,
foi provado que a fórmula para tirar do ostracismo cinematográfico um dos maiores
mitos do século XX era transformá-lo em um ser humano, possível, com motivações e
objetivos plenamente justificados, que provavelmente exerce um forte apelo de
identificação sobre os seus fãs. Batman é um dos poucos super-heróis que buscou ele
próprio seu super poder: ele pesquisou a mente criminosa, realizou inúmeros
treinamentos, lutou para obtê-lo. Escolheu consegui-lo, tornar-se um herói, optou por
combater o crime. Logo, ele não encara esta tarefa como um fardo ou uma obrigação,
e sim como escolha, opção, uma decisão plenamente consciente, se tornando um
agente ativo sobre seu próprio destino.

Batman Begins explora a origem da lenda do Batman e o surgimento do


Cavaleiro das Trevas como uma força do bem em Gotham City. O filme conta a
história do surgimento de desta lenda, de um sujeito vítima de uma tragédia que
emergiu como um símbolo de justiça. A verossimilhança da história é o primeiro
grande trunfo do filme. Nada de viagens mirabolantes nem realismo fantástico, Bruce
Wayne é um ser humano, como tantos outros (talvez nem tantos, dado a privilegiada
condição financeira...). O pequeno Bruce é um garoto comum, porém assombrado
desde a infância pela imagem de morcegos (após cair em um poço cheio deles) e que
testemunhou o assassinato de seus pais, cometido por um assaltante. Aliás, Batman

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Begins é o primeiro filme a retratar o assassinato dos pais de Bruce Wayne como
realmente foi desenhado nos quadrinhos (e para os apaixonados fãs das HQs, cada
semelhança, seja ela crucial para a história ou um simples detalhe, só aumenta a
qualidade do filme). Segundo Gonçalves (2012):

“A elaboração de uma narrativa de origem para um personagem


com uma trajetória tão extensa quanto o Batman incorre num processo
de adaptação como reapresentação e/ou reorganização, o qual
acolherá fragmentos de diversas narrativas prévias (p. 3)

No seio da origem do personagem, não podemos afirmar que existe um grande


vilão, terrível e implacável: os vilões existentes no início da trajetória do Batman são as
mesmas pessoas que conhecemos pelos telejornais (fato este que exemplifica a
aproximação que o filme busca fazer com a chamada “vida real”; com o seu público).
Porém, é popular a opinião de que os vilões definem o herói (quanto maior a ameaça,
maior o herói, segundo o senso-comum) Porém, Batman se fez herói para vencer,
primeiramente, a si mesmo, ao seu medo, e para obter justiça pela morte de seus pais.
Essa constituição pode não parecer magnífica, espetacular e extraordinária (quantos
de nós, da mesma maneira que Batman, perdemos pessoas importantes e
significativas para nós?) porém tal fato é extraordinário, na medida que, ainda criança,
o jovem Bruce Wayne enfrentou uma ameaça indiscutivelmente monumental; o medo
da solidão, do desamparo, do abandono. Ainda podemos acrescentar aí a culpa
sentida pela morte dos pais. É contra tais ameaças, tais traumas, que surge o herói. É
precisamente este o maior vilão da história, aquilo que o constitui o herói, o faz: o
medo. É contra este medo que Batman se constrói, como uma alternativa para vencê-
lo, e, assim vencer a si mesmo.

Porém, em Batman Begins, também existem “vilões” personificados em objetos


reais. Carmine Falcone (Tom Wilkinson), um líder do tráfico e da bandidagem em
Gotham City, a cidade mais corrupta do mundo, é um deles. Enquanto isso, os
justiceiros da chamada “Liga das Sombras” formam o outro lado da trama. Esta
misteriosa organização afirma que, melhor do que tentar consertar as coisas, é destruir
e recomeçar tudo do zero. Esta motivação, consideravelmente mais complexa do que
o tradicional “querer dominar o mundo”, chama a atenção justamente porque, nesta
Liga das Sombras, o objetivo não é sombrio (afinal, se trata de querer “consertar”
algo), mas os meios os são.

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Durante o treinamento, o personagem de Batman começa a ser moldado. É aqui
que Bruce percebe que a arte da guerra não é apenas o momento do confronto, mas
sim o que o antecede e o que o finaliza. Grande parte da abordagem “pé no chão”
dada por Nolan ao personagem tem sua raiz nesta primeira parte da aventura. Tudo ali
é construído sem pressa. Bruce, vagando pelo mundo em busca de um rumo para sua
vida e uma maneira de superar seu trauma, chega a um templo comandado por uma
das personificações de Ra's al Ghul (Ken Watanabe). Lá, auxiliado pelo misterioso
Henri Ducard (Liam Neeson), Bruce aprende várias modalidades de luta e adquire os
conhecimentos necessários para se lançar em sua busca por justiça. Após seu exílio,
Bruce descobre que declarado morto (afinal, ficou desaparecido por sete anos), e volta
para Gotham com a ideia de combater a corrupção e o crime que se apossaram da
cidade. Deste ponto em diante, o diretor Christopher Nolan e o roteirista David S.
Goyer começam a preencher as lacunas da história do herói.

Já que a ideia era ser realista, justifica-se cada aspecto do morcego, ao mostrar
como surgiu a roupa do Batman, seu batmóvel, a batcaverna, e por ai em diante, o que
se configura em uma interessante contribuição a história do Batman, seja ela aquela
contada nas histórias em quadrinhos ou a que foi mostrada nos filmes anteriores.
Afinal, também é relevante, para a construção do personagem, a compreensão de
como todo aquele aparato tecnológico vai parar nas mãos de Bruce: justamente por ter
o sobrenome que tem, ele é dono de praticamente toda a cidade. Inclusive do setor de
“ciências aplicadas” das empresas Wayne, antes um departamento morto, repleto de
projetos e protótipos que jamais entraram em produção. Tudo é, então, justificado: o
traje foi concebido para ser do exército, mas era caro demais (“aparentemente a vida
de um soldado não vale 300 mil dólares”, como afirma o responsável pelo setor, Fox
(Morgan Freeman), o carro era usado na construção de pontes, e assim por diante. É
interessante notar queaquilo que torna Batman concretamente possível é obtido, por
Bruce, como uma espécie de herança paterna (uma vez que é seu sobrenome e a
empresa fundada por seu pai que possibilitam à Bruce a obtenção dos equipamentos
que lhe possibilitam lutar contra o crime com uma série de recursos a mais, como o
gancho com o qual Batman escala, e sua roupa especial, que o protege até de golpes
de faca). A respeito da roupa do super-heroi, Colucci e Fonoff (2008) afirmam:

“Fato comum a todos (os super heróis) é que possuem uma roupa
especial que os torna invencíveis e semideuses, uma vez que com ela
adquirirem poderes extra-humanos. Essa roupa, que funciona como uma
segunda pele e denuncia a onipotência, esconde a real condição do super-
herói: um ser aparentemente normal.” (p. 5)

78
A questão da utilização da tecnologia como maneira de transcender os limites
humanos pode ser exemplificada através da cena que mostra a primeira missão de
Bruce como um super-herói, ainda sem a roupa e a máscara características de
Batman: é totalmente atrapalhada; ele salta de um telhado sem nenhuma classe, caí e
se machuca. Inclusive, após esta que é chamada por Alfred (Michel Caine) de sua
“primeira exibição”, são mostrados os ferimentos em Bruce, nos lembrando que se
trata de um ser humano, alguém de carne e osso, que se machuca (assim como nós
mesmos), e não uma figura engrandecida, imune aos ferimentos causados por lutas e
quedas. A partir deste acontecimento, o personagem vai em busca de mais
equipamentos, para evitar quedas bruscas como esta. Aqui, o personagem está se
aperfeiçoando, descobrindo seus limites físicos e indo além deles, através da
tecnologia.

A respeito do mordomo Alfred, podemos considerar que, para amenizar as


sensações de abandono e exclusão, sentimentos resultantes da percepção da união
sexual dos pais, a presença de objetos substitutos é instituída. Colucci e Fonoff (2008)
falam de um casal de tios, ou um casal adotante, com a característica de serem idosos
e bondosos, que são personagens presentes nas histórias de super heróis. Dos heróis,
apenas Batman não aparece em lares adotivos, mas preserva sua casa sob os
cuidados do fiel mordomo Alfred. As autoras afirmam que, ao optar por ficar só, em
vez de encontrar pais adotivos, Bruce foi incapaz de restaurar a imagem da figura
materna, já que o mordomo substituiu a figura paterna, sem representar nenhum tipo
de ameaça à sexualidade do pequeno herói. Bruce não teve, assim, que se haver com
a rivalidade entre pai e filho, nem que se sentir excluído da dupla pai/mãe. Seu conflito
maior se dará fora de casa, e não no seio familiar. Neste sentido, Alfred representaria
uma espécie de figura paterna que não precisa ser superada, pois não apresenta
nenhuma concorrência no que se refere à posse da mãe e ao falo. Além disso, Alfred
também se mostra como um guardião da memória dos pais de Bruce, o que fica claro
no seguinte diálogo, onde também é explicitado o afeto que Alfred teve pelo pai de
Bruce, bem como seu senso de responsabilidade e de devem em cuidar do menino
órfão:
Bruce: “Isso aqui é um mausoléu, por mim derrubaria tijolo por tijolo.”
Alfred: “Essa casa abrigou seis gerações da sua família”
Bruce: “Por que você se importa tanto? Não é a sua família.”

79
Alfred: “Eu me importo porque um bom homem me tornou responsável por aquilo
que ele tinha de mais precioso no mundo.”

Há vários outros exemplos, no decorrer do filme, da importância de Alfred para


Bruce e também para a construção do super herói Batman. Sempre estando ao seu
lado, afirmando que se preocupa com seu futuro, ajudando também em questões
práticas (como por exemplo, é de Alfred a ideia de encomendar grandes quantidades
de equipamentos, para não levantar suspeitas). O mordomo também exerce um pouco
de sua função paterna quando dá broncas em Bruce: por exemplo, na cena em que
ele assiste à perseguição de carros pela televisão, na qual Batman esteve envolvido
instantes atrás, e indaga ao patrão:
Alfred: “O que é aquilo? É um milagre ninguém ter morrido!”
Bruce: “Não dava tempo de seguir as regras de transito.”
Alfred: “Está se perdendo para este monstro dentro de você.”
Bruce: “Estou usando este monstro para ajudar outras pessoas, assim como
meu pai fez.”
Alfred: “Para ele, ajudar os outros não tinha a ver com provar nada a ninguém,
nem para ele mesmo.”
Bruce: “É a Rachel, Alfred. Ela estava morrendo (...)”
Alfred: “Ambos nos preocupamos com ela, mas o que você faz tem que ir além
disso. Não pode ser pessoal, ou você seria só um justiceiro.”

Neste diálogo, além da preocupação com a integridade de Bruce, Alfred


também demonstra preocupar-se com os rumos que a criação de Batman (que ele se
refere nesta cena como “o mostro dentro de Bruce”) pode tomar. Dando uma lição de
moral, afirmando que Bruce não deve ser o Batman para provar nada à ninguém, nem
à si mesmo, Alfred reitera a importância de “não ser pessoal”, ou seja, de Batman
manter como seu motivo de existência a justiça e o bem comum, e não a ajuda a uma
pessoa em particular, mesmo que esta pessoa seja significativa para Bruce. Neste
momento, Alfred surge para lembrá-lo do “lado ruim” de ser um herói: considerar, em
primeiro lugar, o bem estar social, em detrimento de seus interesses pessoais.

Outra cena que deixa claro o lugar de Alfred enquanto uma figura paterna
substituta para Bruce acontece já na parte final do filme, quando a Liga das Sombras
provoca um incêndio na mansão, e Alfred salva Bruce da morte, o ajudando a sair do
local. Indo em direção à caverna, Bruce lamenta-se: “O que foi q eu fiz, Alfred? Tudo o
que minha família, que meu pai construiu...”. Alfred surge como uma figura de consolo

80
e proteção: “O legado dos Wayne vai além de tijolos e argamassa”. Bruce continua se
lamentando, consciente de seu fracasso como super herói neste momento “Eu queria
salvar Gotham... Eu fracassei”. Alfred lembra da frase dita pelo pai de Bruce, tão
importante para a construção do personagem (conforme abordaremos com maior
profundidade mais adiante): “por que caímos, senhor? Para aprendermos a nos
levantar”. Esta frase, justamente por evocar este olhar paterno, o verdadeiro “legado
dos Wayne, consegue trazer à Bruce a esperança necessária para continuar lutando
contra a Liga das Sombras, no momento em que tudo parece estar perdido. Como
forma de obter a última palavra de consolo necessária, antes de voltar à luta, Bruce
questiona o mordomo: “Não desistiu de mim ainda?”, e ele responde “Nunca”.

Uma das grandes inquietações vividas pelo herói refere-se à permanência de um


“amor de infância“, representado pela personagem Rachel Dawes (Katie Holmes),
promotora de justiça, que combate o crime de maneira “legal”. Apesar de se nutrirem
de ideais semelhantes, o romance entre os dois não é possível de ser concretizado,
uma vez que ser um justiceiro mascarado compromete o que se pode denominar de
uma “vida normal”. Em várias aparições do personagem, ora como o milionário Bruce
Wayne, ora como o “Homem-morcego”, e para afastar qualquer dúvida sobre as suas
atitudes, o herói está sempre a afirmar para a sua amada de que “ele não é o que ele
é, mas o que ele faz”. (Cyrino, 2006). Ou seja, há a presença de um objeto de amor do
personagem, o que não ocorreu nas adaptações anteriores. Este objeto de amor se
assemelha à Batman/Bruce, na medida em que compartilha seu senso de justiça
(Crane afirma que é impossível suborná-la).

Um dos imperativos de ser o Batman é negar para si a possibilidade de um


relacionamento romântico duradouro. Porém, ele tem a capacidade de se apaixonar,
como fica claro em Batman Begins, através do seu relacionamento com Rachel. Essa
capacidade pode ser seu ponto fraco: ele tem os melhores aparatos tecnológicos, mas
seu coração encontra-se desprotegido, sujeito a envolvimentos amorosos e escolhas
objetais. Mas quando Bruce se apaixona, a pessoa amada corre sério risco de se
machucar, justamente por ele ser também Batman. Afinal, o perigo estaria sempre
próximo a pessoa com a qual ele se vincularia. Fica claro, ainda, que Rachel não é
apaixonada por Batman, e sim por Bruce Wayne (mais especificamente, o Bruce de
antes do treinamento, antes de tornar-se Batman, e não o seu disfarce). Ela afirma: “O
homem que eu amei, sumiu e nunca mais voltou. Mas talvez ele ainda esteja em algum
lugar. Talvez um dia, quando Gotham não precisar mais do Batman, eu o veja de novo”.

81
Esta fala marca toda a impossibilidade do romance se concretizar; pelo menos enquanto
Bruce estiver nesta luta por justiça, o relacionamento romântico não será possível.

Outro aspecto que aproxima Batman Begins das HQs é o personagem Jim
Gordon, vivido pelo ator Gary Oldman, aqui ainda um mero detetive que um dia se
tornará comissário. O Gordon de Oldman é fiel àquele retratado em “Batman - Ano Um”,
festejada mini-série lançada na década de 80, escrita por Frank Miller. Esta série em
história em quadrinho, aliás, é fonte de inspiração para muitos dos aspectos do filme,
sejam eles soluções visuais para determinadas cenas (como a queda no poço do
pequeno Bruce), personagens (como Gordon) e até o roteiro. A relação entre os
detetives (o sem máscara e o mascarado) é claramente inspirada nesta obra. Gordon é
um dos poucos policiais que não se deixaram ser comprados, ou subornados, e sabe
como isso é raro na cidade: diante de seus colegas policiais que aceitaram subornos,
Gordon reclama: “em uma cidade tão corrupta, para quem eu iria contar?”

É para conversar com Gordon que Batman faz sua primeira aparição, porém sem
o traje e a máscara. Nesta cena, Batman o elogia: “você é um bom tira. Um dos poucos”,
e o questiona do porquê os policiais não prendem Falcone, que traz carregamentos de
drogas toda semana, e Gordon responde que o mafioso subornou as pessoas certas.
Em contra partida, Gordon o questiona se apenas um único homem está presente nesta
espécie de resistência contra o crime, que Batman lhe apresenta. Ele responde que
“agora somos dois”, já deixando claro que Gordon é um de seus únicos aliados, por ser,
assim como ele, incorruptível.

O filme começa com Bruce preso em Cingapura, após ser pego roubando no
país,l ao lado de uma quadrilha. Após sair da prisão, Bruce Wayne segue para
aprender a domar seus medos na já citada Liga das Sombras. Isso é mostrado através
de Bruce Wayne (Christian Bale) já adulto, em busca de treinamento mental e físico
para lutar contra a criminalidade. É interessante notar o quanto a conduta posterior de
Batman reflete o que foi aprendido em seu treinamento, como o estar atento ao seu
redor, e o aprendizado sobre utilizar-se de artimanhas, não necessariamente como
armas, mas também para confundir o oponente. Também lhe é ensinada a importância
de “ser invisível” aos olhos do adversário. O tempo narrativo aqui utilizado outro segue
a infância de Wayne, marcada por traumas que ele carregaria pelo resto da vida.

Em seu “Vocabulário de Psicanálise” (1996), Laplanche define o trauma da


seguinte maneira:

82
“Acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua
intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a
ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos
duradouros que provoca na organização psíquica.” (p. 522)

No que se refere à libido e ao seu constante fluxo no funcionamento psíquico do


ser humano, o trauma caracteriza-se por um fluxo de excitações que é excessivo em
relação à tolerância do sujeito e também à sua capacidade de dominá-las e de elaborá-
las psiquicamente. Ou seja, chamamos assim uma vivência que, em um curto espaço
de tempo, traz tal aumento de excitação para a vida psíquica, que a elaboração pelos
meios normais e habituais fracassa, tendo como consequência perturbações
duradouras no funcionamento do indivíduo. No momento traumático, o que ocorre com
o sujeito não é apenas uma simples perturbação, mas sim algo que ameaça
radicalmente a sua integridade, justamente por escapar daquilo com o qual o sujeito e
seu aparelho psíquico são capazes de lidar, de elaborar. O sujeito se vê sem recursos
diante de tal evento, em uma situação desesperada e desamparada. Contudo, diante
de tais situações trauma, podemos passar por momentos em que nos questionamos a
respeito de nossas crenças e outros aspectos de nós mesmos que, até antes deste
evento traumático, eram tido como certos. Nesse sentido, o trauma pode ser uma
força poderosa e até mesmo positiva, quando bem elaborado, no sentido que pode
levar ao amadurecimento do sujeito e a possibilidade de encontrarmos novas saídas, o
que acreditamos ser o caso do personagem em questão, conforme abordaremos mais
adiante.

Os traumas, aqui, são elementos estruturantes do personagem, pois mudam


sua trajetória de tal maneira que seria difícil imaginar que Bruce se tornaria Batman
caso não os tivesse sofrido. O primeiro grande trauma acontece quando o garoto cai
num poço na propriedade dos Wayne. Ali, o pequeno Bruce tem o primeiro contato
com a criatura em que se tornaria. Morcegos, assustados com sua presença, voam
para cima dele. O menino Bruce se assusta mais ainda, e depois deste fato
desenvolve uma quirópterofobia, que durante a vida inteira lhe acomete de insônia e
terríveis pesadelos com esses mamíferos. Podemos dizer que, quando Bruce cai neste
poço, que viria a se tornar a batcaverna, é como se ele, ao cair, “mudasse de nível”,
indo para o lugar sombrio, obscuro, subterrâneo e desconhecido. Ou seja, ao cair, é
como se Bruce tivesse seu primeiro contato com seu inconsciente, pois é no
inconsciente que nós encontramos recursos para lidar com os conflitos e problemas de
nossas vidas. Logo, é na Batcaverna que, anos mais tarde, Bruce retornará como
Batman, e encontrará recursos, tanto físicos (os aparatos tecnológicos) quanto

83
psicológicos para lidar com o mal. Ou seja, enquanto criança, o contato com este
subterrâneo foi violento e Bruce se assustou, mas quando adulto, ao escolher retornar
ao lugar onde havia caído anos antes, Bruce encontra os recursos dos quais ele
precisava; transforma este subterrâneo em um lugar de força, de potência; mas
também de proteção (afinal, é o seu esconderijo secreto).

A respeito desta queda, deste trauma, Gonçalves (2012) afirma:


“Por sua vez, o filme, em sua leitura do evento, explora a
escuridão e os espaços comprimidos, produzindo uma sensação de
“afogamento” e uma atmosfera de medo (...). Não há ruído nenhum, até o
momento em que os morcegos irrompem da escuridão para atacar
Bruce. (...) Temos uma visão aproximada do garoto no momento do
ataque (...). No filme predomina o desespero momentâneo do menino,
quebrado apenas quando ele é resgatado pelo pai. (p. 5)

A respeito deste resgate efetuado pelo pai, do qual o autor fala, devemos ter
em mente que se trata de um resgate realizado por uma figura viril, potente, protetora
e masculina (ou seja, fálica), que afirma ao filho que os morcegos o atacaram, pois
estavam com medo dele. Isto causa estranhamento em Bruce, e o pai diz que todas as
criaturas têm medo. Bruce indaga: “até as assustadoras?”. E seu pai responde que
especialmente elas (o que é interessante quando pensamos que o que este garotinho
se torna, quando adulto, é justamente uma figura assustadora; mas, antes de o ser, foi
uma criança justamente tomada pelo medo).Seu pai também o tranquiliza, afirmando
que “vai ficar tudo bem” e levando o garoto a refletir: “Por que nós caímos? Para
aprendermos a nos levantar”. Esta frase, dita pelo seu pai, dá a tônica da história e do
personagem que Bruce, que naquele momento ainda é uma criança, no conforto
daquilo que lhe é familiar e sob a proteção paterna, irá se tornar depois de adulto.

Neste momento, é interessante notar a importância do poço em que Bruce cai


quando criança: anos mais tarde, já adulto e tendo passado por todo o treinamento,
Bruce se dirige a este local. Munido de uma lanterna, dessa vez consegue ir mais
longe, explorar o ambiente e ver que se não se trata de um simples poço, um buraco;
é uma caverna, um ambiente imenso. Ele encara os morcegos, não se desespera e
busca se acalmar, até ver que eles não representam uma ameaça: os morcegos voam
pra cima de Bruce e ele se abaixa, mas vai se levantando aos poucos (nos
relembrando o porquê da existência do Batman, aprendendo a se levantar). Então,
Bruce se levanta, ficando de pé e respirando fundo, até não estar mais assustado.
Desta forma, ele não mais fica paralisado como ocorreu em sua infância, onde o jovem

84
Bruce não saiu do lugar, até que seu pai o viesse resgatar; o personagem agora tem
condições psíquicas, primeiramente para encarar os morcegos, e em segundo lugar,
para explorar este espaço desconhecido, escuro e subterrâneo, que pode ser
entendido como uma metáfora de seu próprio inconsciente, como dissermos
anteriormente. Sobre esta idéia, é interessante citar a justificativa que Bruce dá a Fox
para poder pegar o traje emprestado do setor de Ciências Aplicadas da empresa
Wayne: dizendo que vai fazer espeleologia (exploração de cavernas). Se entendermos
a caverna como seu próprio inconsciente, podemos compreender a ação de Batman,
utilizando-se desta roupa, como sendo uma exploração do ambiente subterrâneo,
precisamente como este lugar seguro e de potência.

Quando criança, o local onde Bruce caiu era um simples poço. Ao voltar lá
adulto, e com seu ego suficientemente fortalecido, é um ambiente muito maior, uma
caverna; existe essa mudança de nome empregado para designar o mesmo lugar;
porém, a mudança não ocorreu no lugar, mas sim em Bruce: agora, ele tem recursos
psíquicos para explorar este ambiente e fazer dele um local de força, como dissemos
anteriormente. A importância deste espaço pode ser ilustrada através de um diálogo
que acontece entre Bruce e Alfred, no final do filme, em que Bruce, após ter a mansão
Wayne consumida por um grande incêndio (causado pela liga das sombras), afirma
que vai reconstruí-la “exatamente como era, tijolo por tijolo”. Alfred sugere que a
mansão não seja reconstruída exatamente como era, pois esta seria uma boa
oportunidade para “reforçar os alicerces da ala sudoeste”, que é precisamente onde
fica localizada a batcaverna.

Colucci e Fonoff (2008) formulam, para a questão da Batcaverna, uma outra


hipótese, bastante interessante:
“No subterrâneo de sua mansão, Batman constrói um arsenal
tecnológico de computadores, rádios e satélites, por não possuir
superpoderes como os demais super-heróis. Nomeia esse espaço de
Batcaverna e sua convivência com os primeiros moradores da caverna –
os morcegos – é pacífica. Podemos pensar que as referências diretas
aos morcegos e à caverna são alusões ao colo parental perdido, e não
apenas ao útero materno. A Batcaverna nos remete ao derramamento de
sangue dos pais, como um útero vampiro.” (p. 6)

O referido “derramamento de sangue dos pais” diz respeito à chamada segunda


terrível experiência vivida por Bruce em sua infância: após o episódio com morcegos, o
jovem Bruce pensa constantemente nestas criaturas. Certo dia, quando ele está
assistindo a uma peça de teatro com seus pais, algo na cena assistida no palco o faz
pensar em morcegos e visualizá-los, causando grande inquietação, mal-estar e

85
ansiedade. Nervoso, quase que como tendo um ataque de pânico, Bruce pergunta para
seu pai se eles podem sair do local. O pai concorda, levando a esposa e o filho para o
lado de fora. É neste momento em que um assaltante se aproxima, e após uma
tentativa de roubo, se assusta e atira no casal, tendo Bruce por testemunha. Este
acontecimento é descrito por Gonçalves (2012) como “Um beco escuro, duas balas e o
nascimento de um super-herói”, tal qual sua importância para a construção do
personagem. Importância esta que será discutida a seguir.

Sobre o “beco escuro”, o autor faz o seguinte comentário:


“É um dos vários recantos de escuridão e sujeira que reforçam o
discurso do filme: esta é uma cidade com altos índices de criminalidade.
Tal representação coaduna com o discurso do filme como um todo,
fortemente voltado à verossimilhança e à construção narrativa de um
universo fílmico realista. Neste universo realista, temos um vislumbre dos
problemas sociais de Gotham e de seu impacto na origem do herói.”
(idem, p. 9)

É possível pensar que o que aconteceu neste lugar tenha se configurado como
um grande trauma para a criança, desencadeando fortes sentimentos e necessidades
de reparação, além da culpa, uma vez que a família sai do teatro porque Bruce não
está se sentindo bem, e é do lado de fora onde o crime ocorre. Devemos lembrar que o
mal-estar de Bruce, que leva a família toda a sair do teatro e ir para o local onde o
casal seria morto, é causado pelo medo que a criança tem. Medo este que teve origem
quando Bruce cai no poço, mas que é reativado quando ele associa a cena assistida
no teatro com a cena aterrorizante e paralisante que ele viveu quando caiu. Não
causaria estranhamento pensar que, para seu aparelho psíquico, o registro que esta
situação possa ter deixado é de que foi seu medo que causou sua necessidade de sair,
e foi por ter saído do teatro que seus pais foram mortos, logo, foi seu medo que causou
a morte de seu pai e sua mãe. Neste momento, Bruce se confronta com uma das
maiores tragédias pelas quais uma criança pode se ver diante; bem cedo, o
personagem aprende que a segurança e a proteção são temporárias, fragilmente
efêmeras. Há então a culpa, o sentir-se responsável pela morte dos pais, uma vez que
foi o seu medo que fez com que saíssem da peça.

É este acontecimento marcante que acreditamos ter dado origem ao sentimento


de vingança presente em Batman (que, como todos sabemos, apesar de ser um
personagem que se destaca pelo seu auto-controle, também é extremamente agressivo,
apresentando esta interessante ambivalência). Frente a esta perda, ele pode tentar
reparar o dano. Mas como se trata de um evento muito marcante, que é a morte de duas

86
pessoas queridas, duas figuras de amor e proteção, as quais o casal parental
representa, não há como reparar isto completamente: nada que Bruce ou Batman façam
poderá trazer seus pais de volta. Sendo assim, esta reparação buscada por Batman não
termina, pois sua meta é inatingível. Podemos notar o desejo de vingança como sendo
uma resposta à impossibilidade da reparação; e, consequentemente, Bruce nunca se
recuperou deste trauma, seu trabalho de luto não é finalizado, o que poderia vir a se
configurar um quadro de melancolia, onde sua libido só encontra alívio (mesmo que
efêmero) na vingança contra o tipo criminoso, o “objeto” gerador da perda. Rocha (2012)
afirma que aquilo Bruce Wayne/Batman deseja, mais do que qualquer outra coisa, se
trata de uma impossibilidade, o que gerará nele a obsessão e melancolia. Para este
autor: “Apesar de seus discursos e esforços contrários, em seu íntimo Batman admite a
destrutividade inerente a cada ser, desenvolvendo dentro de si mesmo essa espécie de
pulsão de morte.” (p.2)

Esta seria uma forma de interpretação, que afirma que o personagem é


incapaz de elaborar esta perda tão grande, que é a perda dos pais, e por isso
sucumbe à melancolia, à patologia e à obsessiva busca por vingança. O autor afirma
que a tônica desta busca é a agressão, a violência; Batman busca o perigo, busca se
ferir, vai em busca dos inimigos, mesmo sendo apenas um humano, o que, para este
autor, seria uma manifestação da pulsão de morte do personagem, que buscaria a
autodestruição. Porém, a nossa ideia é seguir uma linha interpretativa bastante
diferente desta, que será abordada mais adiante.

6.1. De príncipe à lenda:


Podemos dizer que esses dois eventos traumáticos criam em Bruce o
sentimento que é a tônica de Batman Begins, o medo: o medo provocado pela queda
no poço e o medo causado pela solidão depois da morte dos pais. Após uma infância
marcada por dois grandes traumas, sendo que um deles pode ser descrito como
sendo uma das situações mais desesperadoras que uma criança pode enfrentar,
Bruce Wayne cresce e se transforma em um adulto recluso, distante, amargurado e
ressentido. Sem sombra de dúvidas, os quarenta minutos iniciais do filme, que
mostram a transformação da personalidade de Bruce, antes um adulto assustado com
seu próprio passado, em um Bruce consciente, maduro, com objetivos e motivações
definidas, são os mais relevantes para a nossa análise. Além de voltar à infância do
personagem, este primeiro momento do filme também nos apresenta um Bruce Wayne
já adulto, antes de sua viagem e do seu treinamento. Este Bruce Wayne adulto,
anterior á criação de Batman, pode ser visto na cena onde, na mansão Wayne, ele se

87
recusa a ficar no quarto de seu pai. Quando o mordomo Alfred afirma que esta casa é
dele, Bruce responde, de uma maneira um tanto quanto agressiva, que é a casa é do
seu pai, a classificando como um “mausoléu”. Esta cena mostra o quanto Bruce ainda
estava ligado à ideia infantil de desamparo, vendo a casa, que abrigou seis gerações
de sua família, com um desdém raivoso, como um símbolo de sua perda, símbolo este
carregado de ressentimento e dor.

Acreditamos que, neste momento de sua vida, ocorrem dois importantes fatos,
que transformam a trajetória do personagem. O primeiro deles se refere ao julgamento
do homem responsável pelo assassinato de seus pais, Chill (Richard Brake) que
possui informações a respeito do grande mafioso Falcone (Tom Wilkinson) e aceitou
depor em troca da liberdade condicional. Bruce fica inconformado com a soltura do
assassino; afirma que a justiça comum não é suficiente. No dia da audiência, Bruce
possui uma arma, e caminha em direção a Chill, provavelmente prestes a atirar nele.
Porém, ele é baleado, por ordem de Falcone, antes que Bruce pudesse ter a chance
de fazer o mesmo. Bruce afirma que precisa ficar e assistir a “isso”, à morte do
assassino dos pais (onde podemos inferir que houve, neste momento, certa satisfação
de seu desejo de vingança, mesmo que não completa, uma vez que Bruce não foi o
autor do disparo). É revelado que o juiz do caso foi subornado por Falcone para deixar
Chill exposto e Bruce, conversando com Rachel (sua amiga de infância e interesse
amoroso), diz que deveria agradecer a ele, que seus pais merecem justiça:
Rachel: “Isto não é justiça, e sim vingança.”
Bruce: “As vezes, é a mesma coisa,”
Rachel: “Nunca são a mesma coisa! Justiça tem a ver com harmonia.
Vingança, uma pessoa faz para que ela se sinta melhor, é por isso que o sistema é
imparcial.”
Bruce: “Seu sistema está falido.”

Rachel o leva pela cidade e mostra como Gotham está destruída: pobreza por
todo o lugar, ruas cheias de crimes e drogas, “criando novos assassinos como Chill
todos os dias. Falcone pode não ter matado seus pais, mas está destruindo tudo
aquilo pelo qual eles lutaram. Que chance Gotham teria se as pessoas boas não
fizerem nada?” ela questiona Bruce, mostrando para ele que existe mais do que sua
vingança pessoal, contra um único indivíduo que cometeu o crime contra seus pais. A
cidade está tomada pelo caos e pela desilusão, e agradecer um mafioso e corrupto por
ter sido o autor de sua vingança não é a atitude correta, uma vez que há muito mais
contra o que se lutar, a começar pela própria corrupção, a quem Bruce cogita

88
“agradecer”. Existe, então, algo muito maior, e que deve ser verdadeiramente
combatido, do que o simples assassinato do responsável pela morte de seus pais. Tal
vingança pessoal não traria seus pais de volta, serviria apenas como uma simples
vingança, mas não seria capaz de reparar absolutamente nada, uma vez que ainda
causaria a vergonha e a desaprovação de seu pai morto.

Bruce confessa sua decepção pela morte de Chill, afirmando: “todos esses
anos eu quis matá-lo e agora eu não posso”, ou seja, sua vingança pessoal foi
impedida, foi tirada dele. Rachel lhe dá um tapa, afirmando que seu pai sentiria
vergonha dele. Podemos supor o quanto este olhar paterno é importante para ele, pois
seu comportamento muda bastante depois deste comentário de Rachel, que evoca,
precisamente, seu superego, a herança paterna, a ideia de não estar correspondendo
aos ideais de si mesmo, que foram introjetados no sujeito ao final do complexo de
Édipo. Acreditamos que esta compreensão seja essencial para fato de Bruce criar
Batman para fazer justiça, servindo à sociedade de maneira mais geral, e não
simplesmente se vingar dos que mataram seus pais, mas proteger as pessoas
inocentes contra atos criminosos, buscando restaurar a justiça, que não foi possível
em sua história pessoal, para o resto do mundo.

Bruce se desfaz da arma, como se finalmente entendesse que a morte e a


vingança pessoal não poderiam mesmo ser a solução para sua dor, e procura Falcone,
afirmando que não veio agradecer, e sim “mostrar que nem todo mundo tem medo”
dele. O mafioso afirma que só quem o conhece, o teme, pois ele possui poder que não
se pode comprar: é o poder do medo. Em seguida, é como se Falcone abrisse a
percepção de Bruce para além de sua realidade, de seu sofrimento infantil, o fazendo
enxergar além de seu próprio sofrimento, ao dizer: “Você acha que, porque seus pais
foram assassinados, você sabe do lado feio da vida, mas não sabe. Você nunca
experimentou o desespero; você é Bruce Wayne, o príncipe de Gotham. Não venha
aqui com sua raiva, tentando provar algo a si próprio. Esse é um mundo que você
nunca entenderá, e sempre se teme o que não se entende”

Com estas palavras, é como se o criminoso mostrasse a Bruce que ele jamais
vai compreender este chamado “lado feio” da vida sendo Bruce Wayne; nunca vai
superar seu medo, raiva e culpa, enquanto se mantiver no mesmo lugar que esteve
até agora, na mesma posição de príncipe de Gotham, mas também de criança
desamparada, assustada e sozinha. Ele teme o mal, a violência (não apenas no
mundo dito “exterior”, mas, principalmente, seu próprio mal, seus sentimentos de raiva

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e de culpa) porque não os entende. A partir desta cena, que poderia muito bem ser um
choque de realidade, no sentido de que Bruce finalmente pode compreender que
existe mais no mundo do que seu próprio sofrimento, é que ele sai em busca desta
compreensão que ele nunca teve, do entendimento do mal, do conhecimento da mente
criminosa, uma vez que sempre irá temer este “submundo”, se não for capaz de
entendê-lo.

Articulando estes dois momentos, vemos que o personagem obteve duas


compreensões internas cruciais para a posterior criação de Batman: existe algo a ser
combatido, que é muito maior do que a figura de um único assassino; e só é possível
deixar de temer o mal e a violência, se for possível o conhecimento e a compreensão
de ambos. Por tanto, podemos dizer que estas duas conversas trouxeram a motivação
necessária para que Bruce saísse da posição de “príncipe de Gotham” e se exilasse
em lugares distantes, onde ninguém o conhecesse, onde ele fosse capaz de adquirir
tal compreensão.

Após se misturar com criminosos, e viver várias experiências-limite (chegando a


afirmar que, durante este período, confundiu noções entre certo e errado, mas que
nunca se tornou um criminoso, um bandido), Bruce acaba preso em Cingapura. Se
envolvendo em brigas com outros presos, vai parar na solitária, onde recebe a visita do
misterioso Henri Ducard (Liam Neeson, que depois descobriremos ser apenas um dos
disfarces de Ra’s Al Ghul) que sabe seu nome e suas intenções: “está tão louco pra
combater criminosos, que se deixa prender para bater neles?”, questiona, e ainda
afirma que “o mundo é pequeno demais para que alguém como você consiga
desaparecer, por mais que queira se afundar”. Ele acredita que pode dar um caminho a
Bruce, que pergunta por que Henri acha que ele precisa de um caminho. Henri
responde que alguém como Bruce Wayne só pode estar naquele lugar por escolha
própria; ele reconhece que Bruce tinha intenções, mas fala que, entre estas intenções,
Bruce se perdeu totalmente.

A Liga Das Sombras é, então, citada pela primeira vez: Henri a apresenta para
Bruce como sendo condizente aos propósitos dele; ambos odeiam o mal e querem
servir a justiça. A organização é descrita não como um grupo de justiceiros, já que,
para Henri, o justiceiro é um homem que age visando beneficiar a si próprio: “ele pode
ser preso ou destruído, pode ser detido, mas uma vez que você se torna mais do que
um simples homem, se você se dedica a um ideal, você se torna uma coisa
inteiramente diferente. Uma lenda”. Desta forma, ele atrai a intenção de Bruce, que é

90
solto da cadeia no dia seguinte, e parte em direção às montanhas, onde terá início seu
treinamento e, consequentemente, a construção dos aspectos fundamentais e
constituintes de Batman.

6.2. Por que ser o Batman? – Aprendendo a se levantar

6.2.1. Quero ser poderoso:


Para abortar da temática do poder e da potência, tomaremos por empréstimo
uma ideia desenvolvida por Di Loreto, em seu livro “Posições Tardias” (2007), onde o
autor busca compreender um caso clínico por meio de uma reflexão sobre a vontade de
poder e sobre importância de sentir-se poderoso. Se, no primeiro ano de vida, tudo o
que a criança buscava estava relacionado à parte afetiva (para manter o amor materno e
evitar, a todo custo, perdê-lo de alguma forma), a partir do segundo ano de vida, o foco
deixa de ser o afeto, para se tornar a potência. Para conquistar objetiva e ativamente a
realidade, não é suficiente sentir-se bom; é necessário sentir-se subjetivamente
poderoso. Sentir-se poderoso pode ser definido como “a sensação psicológica e
subjetiva de ter recursos, de ‘poder’, incorporada a identidade” (p.47). Para o sujeito
possuir a sensação de ser poderoso, é preciso que ele, no momento, seja possuidor de
uma identidade potente, que é a configuração da mente adequada à conquista ativa da
realidade.

O autor afirma que, na literatura psicanalítica, fala-se muito acerca de impotência


e onipotência. São dois conceitos empregados como sendo, cada um, uma qualidade
autônoma da mente humana, enquanto que a qualidade da mente só pode ser a
potência: a onipotência não pode ser entendida como se referindo a uma realidade, pois
a mente se atribui recursos e capacidades ilusórias, que desejaria ter, mas que não
possui, o que consiste em um engano. Onipotência e impotência se referem a estados
ocasionais, para servir as necessidades igualmente ocasionais da mente. Temos que
conceber o seu estado permanente, a potência, uma vez que impotência e onipotência
são variações deste estado. A mente seria, então, como um sistema de conjuntos
funcionais agonistas e antagonistas, que podem funcionar articulados e
interdependentes, mas também podem funcionar isolados, desvinculados e independes,
como se o outro não existisse. Quando forças antagonistas funcionam isoladamente,
elas estão dissociadas. Impotência e onipotência são, pois, dissociações da potência.

Di Loreto (2007) afirma que a potência é uma qualidade que tem raia própria na
mente, não se confunde com outras qualidades, sendo um constituinte, componente

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nato da mente (assim como as emoções, inteligência e instintos) e mantendo relações
com os demais componentes, particularmente com a afetividade (o componente que
mais influencia e é influenciada pela potência). Para o autor, a potência faz parte da
identidade, da sensação subjetiva de si mesmo, gerando necessidades e desejos
próprios. O “ativador do germe” inicial da potencia é afetivo: sentir-se amado,
importante e necessário, determina a sensação subjetiva de ser poderoso: “A
necessidade que o homem tem de sentir-se poderoso pode ser um descolamento de
necessidades afetivas (sentir-se poderoso para sentir-se amado/temido)”. (p. 57)

Após esta breve exposição sobre a temática do poder, estamos mais aptos a
nos lançar em uma tentativa de compreensão acerca de como o personagem deixa de
ocupar o lugar de criança amedrontada, indefesa, órfã e desamparada, para se tornar
um justiceiro poderoso e implacável, fonte de inspiração e esperança para toda uma
cidade, antes, assim como Bruce, tomada pelo medo.

6.2.2. Transformando o medo em poder: “não há nada a temer além do


próprio medo”
Assim que chega à Liga das Sombras, o objetivo de Bruce já está claro: ele
afirma que procura “uma maneira de fazer justiça, de usar o medo contra as pessoas
que causam medo”. Henri afirma que para manipular o medo dos outros, Bruce deve
primeiro controlar o seu: “Você está com medo, mas não de mim. Nos fale, senhor
Wayne, do que você tem medo?”. Bruce pensa na cena dele, quando criança, caindo
no poço com os morcegos. O tempo narrativo da sua infância continua, mostrando seu
pai dizendo que “caímos para aprender a nos levantar”. É este o processo que está
tendo início nesta cena, o aprender a levantar-se. Para isso ele teria que aprender a
dominar seus medos, teria que ser ainda mais assustador que os próprios criminosos
que combateria, e isso só seria possível se ele realmente tomasse o objeto de sua
fobia para si, caso se apoderasse dele, possuísse este símbolo. O que era a coisa
mais assustadora do mundo, o seria também para seus inimigos, ao mesmo tempo em
que serviria como uma espécie de catarse, uma liberação, do seu próprio medo.

A questão do medo está, definitivamente, na origem do personagem Batman, a


começar pelo próprio nome escolhido por Bruce Wayne para personificar seu alter-ego.
Bruce tem medo de morcegos desde que caiu em uma caverna, repleta deles, quando
era criança. O filme retrata a importância que este episódio tem na vida de Bruce,
através dos pesadelos que ele tem, adulto, com o acontecimento da infância. Quando
decide se tornar um super-herói, Bruce transforma este medo em potência, ao escolher

92
o símbolo do morcego para estar no cerne de seu personagem. Ele quer que seus
inimigos, os criminosos, corruptos e malfeitores de Gotham City, compartilhem daquele
que foi, por tantos anos, seu maior medo: os morcegos. Ele escolhe se tornar aquilo
que ele mais teme, para que os seus inimigos passem a temê-lo. Desta forma, Bruce
se livra do seu maior medo, pois passa a representá-lo, aterrorizando aos criminosos
com o mesmo símbolo que o aterrorizou por muitos anos. O que fica explícito ao
levarmos em consideração o seguinte diálogo, extraído do filme Batman Begins:
Bruce: “As pessoas precisam de exemplos dramáticos para sair da apatia, e eu
não posso fazer isso como Bruce Wayne. Como homem, sou de carne e osso. Eu
posso ser ignorado ou destruído. Mas como um símbolo... posso ser incorruptível,
posso ser eterno”
Alfred: “Que símbolo?”
Bruce: “Algo elementar, aterrorizante”

Mais tarde, quando Bruce já está de volta à Gotham City e começa a construir e
obter os aspectos físicos do personagem (como o traje e os equipamentos), enquanto
Bruce fábrica a insígnia do morcego em metal, Alfred questiona:
Alfred: “Por que morcegos, patrão Wayne?”
Bruce: “Eles me assustam. Chegou a hora de meus inimigos compartilharem de
meu medo”

Nestes dois momentos, fica explícita a já comentada operação a qual Bruce


submete seu medo, na tentativa de controlá-lo: elege um símbolo que representa tudo
que lhe é aterrorizante e sombrio, que pode ser considerado um símbolo do seu
desamparo, da sua queda, da sua perda, e o possui, o toma para si, o domina de tal
maneira que se transforma nele. Desta forma, o personagem escolhe assumir o
símbolo do morcego, escolhe tornar-se o morcego, a criatura que simboliza seu maior
medo. É a partir deste movimento que se dá a conquista do seu medo (no sentido não
de eliminá-lo, mas transformá-lo em algo que possa lhe trazer uma vantagem, uma
força).

Di Loreto (2007) afirma que há uma oposição entre medo e onipotência, pois o
medo bloquearia o desenvolvimento da mesma. E completa:
“Sentir-se poderoso implica dar destino adequado ao medo. No
primeiro ano de vida, a grande questão enfrentada pela mente era o
destino a dar aos sentimentos de ódio. No segundo, é que destino ser
dado ao medo. E o destino que tiverem os sentimentos de medo, será o
fator estruturante da mente”. (p. 62)

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É justamente esta oposição que Batman resolve, ao extrair de seu maior medo
o poder necessário para intimidar os inimigos. Ele não apenas se livra do medo dos
morcegos como o transforma em uma vantagem contra os adversários: Batman possui
o poder de lhes causar medo. Podemos dizer que, ao fazer isso, Batman convida-nos
a fazer a mesma coisa: transformar nossos medos em potência, nos livrarmos daquilo
que nós mais tememos para podermos nos desenvolver de forma plena, e, desta
forma, nos sentirmos poderosos. Devemos salientar, ainda, de que não se trata de
eliminar o medo existente em cada um de nós. Não vamos jamais conseguir extingui-
lo, ignorá-lo, fazer com que ele deixe de existir. A chamada “superação”, da qual
Batman nos fala, se apresenta não no sentido de ficar sem medo, mas sim, de
encontrar uma saída para ele, para que possamos aprender a viver e a conviver com
nossos próprios medos (o que é, precisamente, o que Bruce busca). Assim como o
personagem mostra, não é possível eliminar o medo, e nem é este seu objetivo, por se
tratar de algo impossível. Inclusive, durante a fase final do treinamento de Bruce na
Liga das Sombras, lhe é dito “embrace your worst fear”, que acabou sendo traduzido
para o português como “domine seu maior medo”, porém acreditamos que, aqui, a
palavra “embrace” significa muito mais do que “dominar”: é exatamente abraçar,
embarcar, aceitá-lo e tomá-lo para si. Isto vai além de uma superação no sentido de
eliminar, de não mais existir medo.

Tal fato pode ser exemplificado ao tomarmos a cena do filme onde o vilão
Espantalho utiliza-se, em Batman, de sua máscara e de sua substância química, que,
ao ser apresentada a uma pessoa, a faz alucinar justamente com aquilo que ela mais
teme. Batman visualiza, então, novamente os morcegos (e a cena dele, ainda criança,
no poço junto com estes mamíferos), demonstrando que o medo ainda existe. Porém,
este objeto não mais o paralisa, o incapacita, muito pelo contrário: fornece sua maior
força e vantagem no combate ao mal. Justamente por ele ter sido capaz de encontrar
um destino adequado a este medo, efetuando uma espécie de redirecionamento
(aprendendo uma forma para que não paralisasse ou se desesperasse diante do
objeto), ao invés de ingressar em uma busca pela eliminação total e completa de tudo
o que o morcego já significou em sua vida (coisa que, podemos afirmar com certo grau
de certeza, não o levaria muito longe).

Neste momento, devemos lembrar que, logo após ser baleado, a última coisa
que o seu pai diz para Bruce é exatamente “não tenha medo”. A última frase dirigida
por seu pai foi justamente este imperativo (o que, convenhamos, se faz um tanto

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quanto difícil de cumprir, no caso de uma criança órfã, no momento em que seus pais
são mortos na sua frente). Em seu treinamento, ele aprende justamente a cumprir tal
imperativo: para conquistar o medo, ele se tornar o medo (e assim que Bruce escuta
seu “treinador”, Henri, dizer esta frase, ele começa a ter vislumbres dos morcegos no
poço e do assassinato dos pais, os dois momentos-chave). Bruce entende que deve
se aproveitar do medo alheio (e desde a primeira cena de Bruce com a roupa do
Batman, com seu personagem já mais ou menos acabado, ele provoca essa sensação
de medo: se esconde, ataca quando ninguém o vê, deixa esse clima de hesitação e
suspense, com os bandidos se perguntando o que vai acontecer depois, sem
conseguir se antever ou se preparar para isso. A expressão de medo é visível no
semblante dos seus inimigos. Até Falcone, o grande e temido mafioso, está tremendo
enquanto tenta colocar balas na sua arma, na cena em que Batman intercepta o
descarregamento de drogas no porto). E, conforme lhe diz Henri, “primeiramente, o
homem teme aquilo que ele não consegue ver”. Podemos dizer que, com Bruce,
também ocorre desta maneira: além dos morcegos, ele teme aquilo que não consegue
enxergar, o que está em seu interior, de maneira inconsciente, ou seja, os sentimentos
de culpa e raiva, que ele não consegue nomear. O verdadeiro desafio não é aquele
representado pelos seus oponentes. Como Henri afirma, a mente de um criminoso não
é “tão complicada”, e se fosse este o objeto que precisa ser compreendido, Bruce não
se envolveria nessa busca por entender o mal. O mal que busca ser entendido é
aquele que está dentro dele mesmo. Como Henri/Ra’s Al Ghul afirma: “O que você
realmente teme está dentro de você. Você teme o seu poder, a sua raiva, o impulso de
fazer coisas fantásticas ou terríveis”. Ou seja, a verdadeira ameaça é aquela não que
se apresenta diante de Bruce, mas que está dentro dele, em sua história de vida e
personalidade. Seus medos e traumas, assim como a raiva e a culpa pelos mesmos.

Seu treinador o instrui a “se tornar mais do que um homem na mente de seu
adversário”: Batman deve ser uma ideia, deve ser este símbolo temido; deve
compreender o poder que o medo tem de controlar seus adversários, e aceitar que
esse poder pode pertencer a ele. Ou seja, ao invés de sempre ser controlado pelo
medo, agora Bruce pode reverter a situação: ele pode ser o medo que controla, que
exerce este poder sobre os adversários, tomando o controle da situação, ao invés de
ter a vida controlada pelo seu próprio medo.

6.2.3. Transformando violência em poder: da vingança à justiça


Se Bruce aprende a lidar com seus próprios medos e traumas, se ele torna-se
esta figura temida que é o Batman, para assustar e se fazer poderoso diante daqueles

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que causam medo nas pessoas, o que o diferencia dos vilões, ou seja, daqueles contra
os quais ele luta? Batman age por fora da lei, assim como o fazem seus inimigos. De
certa forma, podemos dizer que os bandidos de Gotham City conseguiram corromper a
autoridade representada pela lei, pelo Estado, através de subornos e ameaças. Neste
sentido, talvez s polícia esteja mais do lado dos bandidos do que da justiça a qual
Batman representa. A este aspecto, ainda precisamos adicionar o fato de que,
enquanto a justiça está corrompida e entregue ao mundo do crime, atuando ao seu
lado por medo ou por interesse, Batman representa a esta mesma polícia uma
ameaça, no sentido que cumpre o papel que deveria ser dela, o de lutar contra os
criminosos. Porém, a imagem que a imprensa de Gotham passa é a de que Batman é
um vilão, alguém que precisa ser detido. Isto fica claro na cena do filme, onde o
sargento declara: “inaceitável (...) o tirem das ruas e da primeira página (do jornal). É
um idiota fantasiado”. Gordon tenta defender Batman: “Mas ele nos entregou um dos
maiores criminosos da cidade”, e o sargento retruca “ninguém faz justiça com as
próprias mãos nessa cidade”. Mas, naturalmente, em uma cidade que já perdeu toda e
qualquer esperança de obtenção de alguma justiça, “justiça com as próprias mãos”
talvez não seja uma ideia assim tão condenável. Quando a autoridade, o Estado, falha,
é incapaz, insuficiente, tão facilmente corruptível, surge um único homem (ou “criatura”,
como sugerem os boatos pela cidade após a primeira “aparição” de Batman), que, se
assemelhando com os vilões, afirma que vai mostrar ao povo que Gotham não
pertence aos criminosos e corruptos. E para atingir tal objetivo, Bruce aprende a lançar
mão de outra fraqueza sua, que foi transformada em recurso: suas próprias raiva e
agressividade.

Realmente, Batman é um personagem bastante violento. De acordo com


Rocha (2012):
“Ele está eternamente face-a-face com a sujeira das ruas, o pior
lado da humanidade, aquele buraco escuro que ele mesmo conheceu
quando ainda era uma simples criança. Ele não prende assaltantes em
teias, ou os leva voando para a penitenciária mais próxima. Ele os
esmurra até os limites da tolerância física, ele quer ver o sangue voando,
e escutar o som de ossos sendo partidos. Porque é isso que os
criminosos, em sua visão merecem: sentir na pele o que eles oferecem
aos inocentes.” (p. 5)

Esta agressividade, presente em todo o ser humano desde a mais tenra


infância, não é levada a cabo pelo personagem. Apesar de possuir um desejo genuíno
de assassinar o responsável pela morte de seus pais, Bruce não o faz: no tribunal,
onde o assassino será julgado, Bruce tem a sua primeira chance em anos de executar

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a vingança (uma vez que o bandido esteve preso este tempo todo). Bruce carrega uma
arma, e tem que se decidir entre usá-la ou não. Ele hesita por um instante,
caminhando em direção ao assassino; mas o bandido é baleado por outra pessoa,
antes que Bruce atirasse. Este momento de hesitação, que acabou impedindo Bruce
de cometer o assassinato, pode ser considerado como um dos momentos importantes
para a definição do personagem. Apesar de não poder mais se vingar, o que deixa
Bruce bastante frustrado, como já falamos anteriormente, ele faz questão de continuar
no mesmo ambiente, enquanto tentam socorrer o bandido, assistindo sua morte. Neste
momento, Bruce afirma que precisa, sim, ver esta cena. Mesmo não podendo contar
com a satisfação de sua pulsão mais agressiva, a de matar, Bruce encontra algum
consolo em assistir o responsável por tanto sofrimento em sua vida, morrendo. Ou
seja, ele descola a satisfação que sentiria, ao cometer o assassinato, para conseguir
algum conforto apenas com o fato de que, de uma forma ou de outra, o assassino
recebeu sua punição.

A necessidade de vingança contra o assassino de seus pais acaba sofrendo


uma alteração de alvo: ao invés de matar a única pessoa responsável pelo crime que
mudou sua vida, Bruce/Batman desloca e amplifica o alvo de sua vingança: quando
busca combater todos os bandidos, os vilões, “as pessoas más”, podemos dizer que
Batman deixa de lado sua vingança pessoal (que lhe foi impedida, quando o assassino
é morto por outra pessoa), para se lançar em uma luta por justiça, de uma maneira
muito mais abrangente. Batman transforma sua sede de vingança pessoal, com
origem na infância, no medo, desamparo e solidão vivenciados por uma criança órfã,
em um senso de justiça, um sentimento de dever, representando os valores morais
elevados, em uma sociedade tão carente deles. Podemos pensar que Bruce/Batman
executa uma espécie de sublimação da sua necessidade de vingança, ao transformá-
la em algo dito “superior”, valorizado socialmente, indo além do sentido egoísta,
pessoal, e buscando beneficiar a sociedade onde vive, as pessoas inocentes; não
apenas oferecendo proteção ou vingança contra os bandidos que também
prejudicaram tais pessoas, mas passando a sensação de que ainda há esperança,
dando a esta sociedade descreditada, que é a de Gotham City, um ícone, um símbolo,
um ideal para se espelhar. A esta operação efetuada pelo personagem, ou seja, a
transformação de uma necessidade de vingança primitiva e hostil em uma luta de
justiça, que denota um sendo de moralidade, de dever, mais elevado e socialmente
bem visto, podemos articular o conceito de sublimação.

Laplanche dá para “sublimação” a seguinte definição:

97
“Processo postulado por Freud para explicar atividades humanas
sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que
encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud
descreveu como atividades de sublimação principalmente a atividade
artística e a investigação intelectual. Diz-se que a pulsão é sublimada na
medida em que é derivada para um novo alvo não-sexual ou e que visa
objetos socialmente valorizados” (p. 638, 1986)

Este autor também afirma que o termo evoca, ao mesmo tempo o “sublime”,
que sugere a grandeza e a elevação nos estudos da arte; e ao termo da química que é
utilizado para designar o processo que faz passar um corpo diretamente do estado
sólido para o gasoso. Ao longo de sua obra, Freud recorre a este conceito para
explicar econômica e dinamicamente certos tipos de atividades alimentadas por um
desejo que não visa (de forma manifesta), um alvo sexual; geralmente atividades as
quais a sociedade e a cultura conferem grande valor. Ou seja, além dos sonhos, atos
falhos e sintomas, o inconsciente do sujeito pode manifestar-se através deste “recurso”
de enorme importância para a vida cultural e social, ou seja, para a existência coletiva,
que é a sublimação (Chauí, 2000).

Sendo assim, podemos dizer que Bruce, ao decidir ativamente desenvolver


aspectos de sua personalidade que o permitiram transformar-se em Batman, obtém os
meios dos quais precisa para transformar sua sede de vingança, tão agressivamente
individual, em uma busca por justiça, o que contribui para a sociedade, mudando o alvo
de suas pulsões agressivas e destrutivas (pulsão de morte) para “quem realmente
merece”, indo além da satisfação de sua própria libido. É nesse sentido que se torna
possível formular uma aproximação com o conceito Freudiano de sublimação, uma vez
que podemos dizer que este conceito se refere a esta modificação de alvo e mudança
de objeto, nas quais entra em consideração a qualificação social. Uma vez que, em
psicanálise, define-se como sublimação um processo postulado pra dar conta de
atividades humanas que não têm aparente relação com a sexualidade, mas que
encontrariam sua força no campo da pulsão sexual, precisamos levar em conta o
sentido que o “sexual” tem dentro da teoria Freudiana: é a libido, aquilo que nos move,
nos direciona para ação. A libido de Bruce, que antes era direcionada para sua sede
de vingança pessoal, é transferida para um novo objeto, a luta por justiça, que
transcende seu trauma infantil, assim como sinaliza uma saída para ele. Sua libido, sua
energia psíquica foi derivada para um novo fim, e agora aponta para atividades
valorizadas pelo ideal do ego, uma vez que Bruce/Batman apresenta esse restrito
código de conduta, que pode ser entendido como uma manifestação de seu superego,
bastante exigente, que lhe cobra empenho na luta contra o mal, mas também exige

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que certas regras sejam cumpridas, como a de não matar ninguém, por mais que
Batman tenha essa vontade. Este aspecto também pode ser relacionado ao conceito
de sublimação, no qual também está presente a idéia de que algo fica inibido, não
realizado. Aqui, o que fica inibida é justamente a possibilidade de cometer
assassinatos e levar a cabo sua vingança pessoal. Sua “vingança” não é “olho por
olho”, Batman não mata o bandido, e também não o impõe o sofrimento que um
criminoso um dia lhe causou; ou seja, ele não faz com que o bandido sinta a dor que
ele mesmo sentiu quando criança, não mata seu objeto de amor. Batman procura se
contentar em apenas prender os criminosos, entregando-os às autoridades. Como
afirma Rocha (2012): “Contra a mediocridade e violência engendrada pelo homem, ele
não pode fazer nada a não ser trazer um pouco de alívio para os indefesos, e assim
trazer um pouco de alívio para si mesmo também.” (p. 5)

Porém, devemos ter em vista que não estamos diante de um caso onde o
conceito de “sublimação” possa ser inteiramente empregado: uma vez que a
sublimação é um mecanismo do inconsciente para poder encontrar uma via para se
manifestar, não podemos saber o quão consciente (ou inconsciente) é o processo ao
qual Bruce/Batman submete sua agressividade. Seu código de conduta é bastante
consciente; Bruce o verbaliza várias vezes, afirmando que não irá matar, e que é
justamente essa a diferença entre ele e aqueles contra os quais ele luta. Isto acontece
no final de seu treinamento na Liga das Sombras, onde fica declarado que Bruce
dominou seu medo e está pronto para se tornar um membro da Liga, mas antes deve
mostrar seu comprometimento com a justiça, matando um criminoso. Ele se recusa,
alegando que não é um executor. Dizem-lhe que seus inimigos não vão compartilhar
da compaixão que ele tem; “É por isso q ela é tão importante” como argumenta Bruce:
é ela que o separa de quem ele deve combater.

Em seu tempo de aprendizado, de exílio (o que pode ser também encarado


como uma metáfora do necessário distanciamento, que todos nós precisamos efetuar,
daquilo que nos é conhecido e familiar, para podermos nos lançar ao mundo em busca
do novo e desconhecido), Batman aprendeu mais do que artes marciais e como
entender a mente criminosa. Ele aprendeu também a ter autocontrole, o que na
opinião da autora, pode ser considerado também um super poder, sem o qual não
seria possível aquilo que associamos ao conceito de sublimação, ou seja, a
transformação de seu desejo de vingança em uma luta por justiça. Batman tem,
internalizado, esse código rígido que rege suas ações e que também é útil para
aumentar seu autocontrole, redirecionando suas pulsões agressivas que poderiam o

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levar à violência e à vingança. O personagem apresenta esta admirável habilidade de
se controlar, ter disciplina, de dar um destino mais adequado para seus impulsos
destrutivos. Em muitas situações da nossa vida, nosso sucesso depende de que
consigamos controlar nossas vontades, nossas pulsões mais devastadoras, nosso id.
Bruce Wayne desenvolveu esse autocontrole de maneira especialmente bem-
sucedida, ao ponto de podermos considerar que o poder do autocontrole é um de seus
“super-poderes” (ainda que seja algo humano).

Sabemos que não se trata de um personagem unilateral, que apresenta plenos


aspetos positivos. Batman não é um herói “bonzinho”. Ele é violento, vingativo e usa-
se de métodos pouco ortodoxos para capturar e punir os malfeitores. Ele não acredita
no perdão e em outras virtudes moralmente desejáveis em nossa sociedade, e muitas
vezes, podemos ver o quanto ele precisa se controlar para não matar seus inimigos.
Batman aprendeu a controlar suas pulsões mais agressivas, aprendeu a encontrar
outro caminho para elas, mesmo que este caminho signifique realizá-las apenas
parcialmente. A justiça ainda é feita, os bandidos são sim capturados, o que mostra ao
povo da cidade que nem toda a espécie de autoridade é conivente com o crime e a
corrupção. Ou seja, ainda há motivos para se ter esperança.

Batman combate o crime, pois consegue diferenciar o certo do errado, o


permitido do moralmente condenável; ele vive por esse código de maneira muito mais
rígida do que aquela que todo mundo o vive. Podemos dizer que as exigências
superegóicas do personagem, literalmente, não o deixam em paz: leis são abertas a
interpretações, mas a do Batman não. Ela deve ser implacável, assim como seu
julgamento e sua ação. Não há espaço para falhas, porém elas acontecem: Batman
cai, se machuca, comete erros e perde pessoas, o que, assim como os medos e
traumas de Bruce quando criança, o torna muito mais humano do que qualquer outro
super herói.

6.2.4. Transformando desamparo em poder: luta por luto


Voltando um pouco na história do personagem, encontramos o assassinato dos
seus pais como um dos fatos estruturantes de Batman. Podemos, também, interpretar
esta questão sob outro aspecto, que se refere ao tema da reparação. Como dissemos
anteriormente, não causaria estranhamento se pensássemos que a situação
enfrentada no teatro (o pânico causado por uma cena da peça, que fez Bruce pensar
em morcegos), que culminou na emergência de se retirar do local, e, posteriormente, à

100
ida da família em direção ao local onde os pais seriam mortos, possa ter gerado um
grande sentimento de culpa na criança, uma vez que é Bruce quem fica muito
angustiado no teatro, e faz os pais saírem de lá com ele, levando-os para este lugar
onde ambos seriam assassinados. Naquela situação, além de todo o desamparo (no
sentido de que o garoto que, até então tinha tudo – afetiva e materialmente -, se vê
sozinho no mundo), ainda temos que adicionar o sentimento de culpa no leque de
emoções sentidas por Bruce quando seus pais morreram (culpa essa que chega a ser
verbalizada para Alfred; Bruce afirma que foi sua culpa eles terem saído do teatro: “se
eu não tivesse me assustado...”, diz o garoto). Anos mais tarde, durante seu
treinamento na Liga Das Sombras, Henri pergunta para Bruce:
Henri: “Você ainda se sente culpado pela morte de seus pais?”
Bruce: “Minha raiva é maior do que minha culpa.”
Henri: “Você aprendeu a enterrar a sua culpa e a sua raiva (...)

Aqui, podemos pensar que a raiva a qual Bruce se refere não seja apenas raiva
do assassino, do destino, da vida (que tirou seus pais dele), mas também uma raiva de
si mesmo, por não ter sido capaz de agir em impedimento ao assassinato, por não ter
feito nada para proteger seus pais. Apesar de Bruce desvalorizar seu sentimento de
culpa, ele se faz presente, mesmo depois de todos esses anos. Diante de tal culpa,
podemos pensar em uma tentativa, por parte de Bruce (aí, já como um adulto) de
efetuar uma reparação, uma tentativa de “consertar o estrago”.

Diante disso, seguindo tal linha de raciocínio, poderíamos pensar Bruce Wayne
como sendo homem em sofrimento procurando o propósito de sua vida: sua vida toda
seria uma tentativa de recuperar o sentido, reparar este dano que, muito
provavelmente, uma determinada instância de seu aparelho psíquico (o inconsciente),
acredita que ele tenha cometido. Podemos crer, ainda, que uma forma de reparar isso
é deixando esses pais orgulhosos dele, como filho, nem que seja postumamente.

Pensando assim, para Bruce, a vivência extremamente traumática da morte de


seus pais pode ter sido encarada por ele como uma espécie de derrota, diante da
crueldade da vida e daquilo que escapa ao seu controle. Bruce foi derrotado com a
morte dos pais, caindo numa situação de solidão, medo e desamparo, frente à perda
dos seus objetos de amor e de proteção, a perda do que lhe era familiar. Diante de
uma perda muito grande e intensa, o sujeito frequentemente se encontra em uma
grande dificuldade em elaborar o trabalho de luto. Contudo, uma maneira de tentar
efetuar esta difícil e dolorosa elaboração seria honrando aqueles que morreram, o que

101
seria a chamada a dor de ser um sobrevivente (Birman, 2009). Para este autor, o único
jeito de o derrotado elaborar o luto é reparando a dívida com os seus iguais que não
sobreviveram: resistindo ao inimigo, não desistindo frente à ele. Sendo assim,
podemos pensar que a batalha travada entre Batman e os criminosos de Gotham City
seria uma forma de tentar elaborar sua perda, pagando simbolicamente aos pais a
dívida restante, uma vez que Bruce, em sua onipotência infantil, não pôde proteger os
pais, nem salvá-los da morte.

Bruce, então, constrói essa nova pessoa, temida, intimidadora e poderosa,


para elaborar e reparar sua falha com os pais, uma vez que ele se culpou, desde o
primeiro momento, por estas duas mortes. Ele constrói essa nova personalidade com
elementos do Bruce antigo, da criança que viu seus pais morrerem: o medo do
morcego, que se tornou o que ele é, seu símbolo, e o dinheiro dos pais, que dá
condições materiais para ele superar os limites humanos do seu corpo e atingir um
status de “super”.

O que queremos demonstrar é precisamente o fato de que acreditamos ser o


trauma o elemento que leva Bruce Wayne a ser o Batman, que o que o põe nessa luta
por luto, reparação, honra e elaboração. Ele luta para trabalhar com a perda, para
elaborá-la, ao invés de cair em um estado limitante e incapacitador, de melancolia
profunda, onde o sujeito abraça sua derrota literalmente de corpo e alma, não
conseguindo encontrar saídas para amenizar o sofrimento. Logo, sua tentativa de
elaboração seria honrar os seus pais mortos através da luta e da resistência. Por isso
ele não se melancoliza; mas ele tenta a elaboração, não entrando na situação
depressiva, de desistência; exatamente pelo contrário, ele investe no mundo ao redor
e não desiste de suas batalhas, de capturar os inimigos e de fazer justiça com as
próprias mãos.

Por isso discordamos de Rocha (2012), autor que afirma, em seu trabalho “A
melancolia de um cavaleiro das trevas”, que Batman é “um personagem que
transborda melancolia” (p.3) e tem como motivação principal um obsessivo desejo por
vingança: não se trata apenas disso, não é apenas tal desejo que move Batman;
acreditamos que ater-se a tal interpretação seria superficial e insuficiente, uma vez que
a história de vida de Bruce/Batman é extremamente complexa (tal qual a de um ser
humano real). Suas escolhas são mais profundas o que aquilo que sugere o autor
citado, podendo ter diferentes causas, cada uma em sua complexidade e importância.
Podemos até mesmo cogitar que, talvez, esta ênfase ao lado dito “negativo”,

102
patológico e melancólico que Rocha dá ao personagem se deva ao fato de que o autor
analisa o Batman das revistas em quadrinhos, onde não há o final, a separação entre
Batman e Bruce, onde o primeiro deixa de existir, como acontece no último filme da
trilogia (O cavaleiro das trevas ressurge, 2012), que será abordado a seguir, como a
finalização da história e também da nossa análise da mesma

7. O cavaleiro das trevas ressurge (2012)


Tomamos como central a análise do filme Batman Begins, justamente por
optarmos por voltar um olhar mais atento para a temática da origem do personagem.
Buscamos responder à questão sobre porque Bruce lança a mão deste novo
personagem, que é o Batman, e de que forma ele consegue superar seus traumas,
medos e angústias infantis, saindo da posição de uma criança órfã e amedrontada, para
se tornar um super herói, referência para toda a população de Gotham City, assim como
para todos os seus fãs ao redor do mundo. Chegando a conclusão de que Bruce cria tal
personagem com o propósito de conseguir lidar com suas perdas e traumas,
acreditamos que não podemos deixar de incluir uma breve análise do último filme da
trilogia, “O cavaleiro das trevas ressurge”, de 2012. Neste filme, é fornecido um desfecho
para a história do herói, ele deixa de existir como um homem, mas perdura como um
símbolo de justiça e esperança. Se Batman é criado com o propósito de fazer com que
Bruce possa elaborar suas perdas, ele deixa de existir no momento em que esta
elaboração é concluída? É justamente esta a hipótese que gostaríamos de apresentar
neste capítulo, também como uma forma de conclusão da história do super herói.

Primeiramente, gostaríamos de chamar a atenção para uma cena em específico,


a cena onde Bruce precisa sair da prisão: se, desde o primeiro filme da série, o
personagem sempre esteve envolto com as questões de cair de lugares altos (a queda
no poço da infância, a descida à caverna depois de adulto, as inúmeras quedas,
mergulhos e saltos que aconteceram nas cenas de luta contra seus inimigos), que nós
pudemos associar com a mudança de nível, da consciência, do conhecido, para o
inconsciente inexplorado, desconhecido e misterioso, neste filme há uma espécie de
inversão da cena do cair, tão presente em Batman Begins: a cena em que ele precisa
escalar as paredes, para poder sair da prisão onde foi colocado pelo vilão Bane, e assim
poder combatê-lo e tentar salvar Gotham. A prisão é como se fosse outra caverna da
onde Bruce precisa ressurgir; outro lugar subterrâneo, do inconsciente.

103
Agora, não se trata mais de buscar recursos subjetivos no inconsciente, mas sim
de conseguir voltar à tona, à consciência, e assim utilizar-se, na realidade, dos recursos
obtidos. Tal ascensão, que pode ser também comparada a um renascimento, à saída do
útero materno, só é sem sucedida sem a corda (que impede que a pessoa morra em
caso de queda durante a escalada). Esta questão da corda pode, inclusive, ser
interpretada como uma metáfora para o cordão umbilical, já que estamos falando de um
renascimento. Sem utilizar-se da corda, Bruce sabe que não pode falhar: não existe a
possibilidade de ele cair e continuar na prisão; ou ele consegue escalar, consegue
ascender ao mesmo nível onde a batalha com o vilão deve ocorrer, para assim ter
alguma chance de salvar a cidade, ou ele cai neste abismo, é destruído e aniquilado.
Após ter passado pelos seus traumas de infância, seu medo, a sua orfandade, seu duro
treinamento e, posteriormente, todas as lutas como Batman, Bruce já está familiarizado
com seu inconsciente, já conseguiu os recursos necessários para controlar seu próprio
medo, utilizando-se dele para se lançar na mais importante batalha em defesa de
Gotham, que, neste momento do filme, está sendo mantida refém de Bane e de seus
homens por semanas. Sendo assim, após algumas tentativas frustradas utilizando-se da
corda, Bruce consegue sair do local, ao tentar a escalada sem nenhuma forma de
proteção. Se na sua primeira queda, no poço, no primeiro filme, ele é retirado de lá por
seu pai, neste momento é ele mesmo que se retira, que consegue escapar, não estando
mais sujeito à figura paterna e a sua proteção, mas sendo ele mesmo capaz de realizar
sua própria subida, seu próprio resgate.

Dito isto, podemos voltar ao tema da finalização do personagem, que,


invariavelmente, passaria pela questões da independência e da superação dos traumas
infantis, as quais nos referimos nos parágrafos anteriores. A trilogia se encerra com a
morte de Batman, mas não de Bruce; o personagem de Christian Bale acaba como
Bruce, não mais sendo o Batman, uma vez que o super herói morre literalmente (mas a
estátua erguida em Gotham city em sua homenagem mostra que o mito vai perdurar),
mas o homem continua. O herói não seria mais necessário nem para a cidade, e nem
para Bruce?

Segundo o entendimento desta autora, quando Bruce abre mão de Batman,


deixa de sê-lo, tal fato só pode significar que, de alguma forma, a elaboração de suas
perdas e de seus traumas foi feita. Ou seja, seu trabalho de luto foi, finalmente,
concluído, e a possibilidade da melancolia foi totalmente afastada, de uma vez por
todas. Ao deliberadamente decidir “aposentar” Batman, Bruce se liberta de seu passado
assustador, de desamparo, orfandade e medo, pois finalmente o aceita como parte de si

104
mesmo, de Bruce, e não apenas de seu alter-ego Batman. Podemos pensar que Bruce
criou Batman como sendo uma outra personalidade para si mesmo, na qual ele poderia
aceitar a sua perda como parte, enquanto não seria possível aceitá-la como parte de
Bruce. Neste sentido, fica evidente que a cidade ainda precisaria de Batman, mas Bruce
não precisa mais dele: Batman foi criado para a elaboração de um trabalho de luto, e,
três filmes, uma série de lutas e inimigos depois, tal trabalho fora finalmente concluído, o
super-herói cumpriu seu propósito. Além disso, Gotham City não o perdeu totalmente,
pelo contrário: ainda o possui como um símbolo, um ideal de justiça a quem se espelhar.
E este ideal de justiça, esta esperança, não pode ser apostado, nem morto: estará
sempre presente de maneira simbólica. Apesar de a cidade considerá-lo um mártir, ele
não morre no sentido simbólico (existe uma morte, um enterro e vários rituais simbólicos,
todo um reconhecimento póstumo), por acreditar que as pessoas precisam desta figura
quase que mitológica, desta lenda, para protegê-las e servi-las como um ideal de justiça,
um exemplo a ser seguido. E finalmente, neste último filme, há até mesmo a antes
impensável aliança com a polícia, que tanto o perseguiu e o condenou em Batman
Begins, mostrando uma espécie de redenção com o Estado (uma vez que a população
já o admirava antes) e com as autoridades oficiais, que só se aliaram ao Batman, ou o
aceitaram como aliado, no momento em que uma terceira “força” apareceu e tomou o
controle (o vilão Bane, interpretado por Tom Hardy).

Neste momento, como já apontamos, está afastada a possibilidade do


personagem cair em uma melancolia, uma vez que tal fenômeno psíquico se
caracteriza por um luto impossível, a partir de uma separação, uma perda, onde o
sujeito carrega o objeto perdido para dentro de si, mesmo antes desta finalização,
talvez não seja adequado afirmar que Batman seja uma figura melancólica: apesar de
ainda não haver a completa superação das perdas (a começar pela morte dos pais),
Batman/Bruce buscam caminhos de realizar isto, buscam esta elaboração, mesmo
que, até aqui, o luto seja uma constante revisão desta perda, manifesta por culpa,
violência, necessidade de autocontrole, agressividade, impossibilidade da felicidade
através de um relacionamento amoroso, dentre outros fatores. Neste sentido, Alfred
afirma que gostaria de vê-lo livre desta culpa pela morte dos pais e de Rachel (que
morre no final do segundo filme). Tenta aconselhá-lo no sentido da superação, e age
trabalhando por sua recuperação, quase que como um analista. E o final da trilogia é
exatamente esta saída, a finalização do trabalho de luto de Bruce, que fica explícita na
cena onde ele, não mais sendo o Batman, toma café, ao sol, acompanhado (o que nos
sugere a possibilidade da concretude de um relacionamento amoroso), longe das
sombras, tal qual Alfred havia desejado para ser o futuro de Bruce.

105
Contudo, não podemos deixar de frisar que, uma vez que concluímos que a
temática do primeiro filme é o medo, a terceiro filme é, indiscutivelmente, a perda: esta
parte final da história do super herói começa com Bruce às voltas com as questões
relativas à perda de Rachel, sua companheira de infância e interesse romântico na vida
adulta, e ao trabalho de luto que tal perda lhe impõe; e podemos dizer que a finalização
do filme também nos apresenta a mesma temática da perda e do luto, nos mostrando a
cidade inteira em luto pela inferida morte de Batman. A perda é uma experiência
constitutiva no ser humano, na estruturação do sujeito sendo fundante do psiquismo.
Se não lidamos bem com a perda (não que alguém de fato lide “bem” com isso, mas se
conseguimos passar por ela sem nos destruirmos, entrando em psicopatologias mais
sérias), não conseguimos elaborá-la, e disso surgem os quadros melancólicos (Freud,
1917). Neste terceiro filme, podemos considerar que a “morte” de Batman se configura
em uma situação de perda também para Bruce, pois é este sujeito que não mais será o
Batman, não mais irá proteger a cidade e lutar contra a violência. A impressão que este
desfecho nos passa é a de que ele manifestaria uma elaboração da culpa e do trabalho
de luto pela morte dos pais, precisamente no sentido de uma finalização. A perda
mostra para o sujeito que ele não é onipotente, não é dono do mundo, não controla
tudo; ou seja, a perda impõe um limite ao sujeito. Ao deixar de ser o Batman, causando
sua “morte simbólica” para salvar toda a cidade, estaria Bruce finalmente aceitando a
sua perda e, consequentemente, seus próprios limites?

Abordamos em profundidade a questão do porque Bruce Wayne se torna o


Batman, ao tomarmos como objeto de análise o percurso do personagem mostrado no
filme Batman Begins. Neste momento, ao considerarmos também o desfecho da
história, o porquê Bruce Wayne deixa de ser Batman, podemos aumentar nossa
compreensão acerca do personagem e do que ele nos mostra. Articulando o desfecho
da história do super-herói com o seu início, podemos dar maior credibilidade à nossa
hipótese de que Bruce Wayne decide tornar-se Batman, para que ele seja capaz de
lidar com a perda. E é justamente apresentando meios de lidar com tal condição
fundamental do ser humano que a história se mostra aos nossos olhos. A trajetória
deste super herói nos traz a sua luta recuperar uma honra perdida, fruto de uma
condição de desamparo.. No final deste último filme, ele não acaba com o crime de
maneira total e definitiva, até porque sempre vão existir a criminalidade e a corrupção,
mesmo que sob controle. Fica claro que Bruce cria o Batman para lidar suas questões,
ou seja, ele o cria para si mesmo, como um recurso para elaboração da sua perda e de
seu medo, uma vez que quando ele finalmente os elabora, há essa finalização, mesmo

106
a cidade ainda precisando de alguém que combata criminosos. Mas Bruce não precisa
mais ser o Batman, porque ele venceu a sua própria batalha.

107
Considerações finais:
Começamos nossa exposição tratando sobre o valor que a narrativa e a ficção
têm para a construção do psiquismo humano, fornecendo meios para podermos tecer
nossa própria subjetividade, nos ajudando na busca pela solução de problemas da
nossa vida, e nos apresentando figuras significativas, com as quais podemos nos
identificar. Mais do que meros passatempos, as histórias fictícias que nos orbitam são
carregadas de importância e valores simbólicos, justamente por estarem falando
diretamente à nossa subjetividade, captando nosso interesse por meio do afeto que
sentimos por determinados personagens e histórias. Como o objeto de nossa análise
faz parte de um grupo específico de histórias (os super-heróis nascidos nas revistas
em quadrinhos), fizemos uma breve contextualização histórica do surgimento de tais
histórias, e os possíveis motivos que possam ter levado à criação de personagens e
histórias com características tão específicas, em determinado local e época, e não em
outros.

Como discutimos anteriormente, dentre os tipos mais difundidos de narrativas,


podemos encontrar os contos de fada, que têm sido objeto de interesse e estudo da
comunidade acadêmica desde o século XIX. Ao articularmos os estudos frutos de tal
interesse com as histórias de super-heróis, pudermos encontrar interessantes
semelhanças, mas também, como esperado, significativas diferenças. Pudemos
concluir que, assim como os contos de fada, as histórias de super-heróis apresentam
elementos importantes, como a questão da orfandade, da identificação com uma figura
potente, a dualidade bem versus mal, entre outros que se mostram relevantes de
serem abordados através da teoria psicanalítica. Sendo assim, elegemos dois destes
temas, a importância da identificação (considerando situações onde fica explícita a
identificação do sujeito espectador com o super herói, como por exemplo, nas
brincadeiras infantis envolvendo fantasias, máscaras e capas) e a questão da
orfandade (levando em conta tal condição como onipresente tanto nas histórias de
super heróis quanto nos já citados contos de fada). Pudemos articular os dois
conceitos, mostrando como a orfandade, mesmo que não se apresentando diante do
sujeito como algo concreto, se faz presente na realidade psíquica, ao considerarmos a
condição desamparada inerente a todo o ser humano; ou seja, a condição órfã dos
heróis nos aproxima deles, pois nos identificamos com a perda, o medo e a solidão por
eles sentidos.

108
Após nos aprofundarmos nestes dois temas, que se fazem presentes não
apenas na história de Batman, mas na de todos os heróis, cada qual à sua maneira,
seguimos adiante apresentando o foco central de nossa análise. Primeiramente,
falamos brevemente sobre histórias em quadrinhos e seus heróis protagonistas, para,
em seguida, podermos entrar, finalmente, na questão do Batman, nosso objeto de
análise, através de uma exposição dos aspectos mais gerais do personagem, bem
como de aspectos sobre sua criação e popularização. Foram citadas as formas de
adaptação que a história do herói, nascida nos quadrinhos, sofreu, para a televisão e
para o cinema. Dentre tais adaptações, elegemos o filme Batman Begins, que aborda
aspectos relativos à origem e à construção do personagem, e que popularizou a
narrativa deste herói, tornando-a interessante e compreensível mesmo para quem não
está habituado à leitura dos quadrinhos.

Tal filme nos permitiu observar e aprofundar diversos aspectos do personagem.


Levando em conta que, apesar de uma análise não se propor a ser uma síntese, ou
seja, mesmo que tenhamos tido certa liberdade em tomar diversos aspectos relevantes
da história para nos aprofundarmos, algumas escolhas e algumas renúncias
precisaram ser feitas; não pudemos analisar todos os aspectos, questões, cenas,
diálogos, que a autora julgava relevante. Sendo assim, foram eleitos determinados
temas, a saber: a questão dos traumas (a queda de Bruce no poço e a morte dos seus
pais), a vingança por ele buscada no começo do filme, a dor, o desamparo e a culpa
que o personagem sentiu, mesmo depois de adulto, pela morte dos pais; para, sem
seguida, poder se lançar em uma tentativa de reparação, de elaborar tais dolorosas
questões.

Neste cenário, demos especial atenção à temática do medo, por acreditarmos


que uma das chaves para entender o personagem reside nesta espécie de “emoção
universal”; assim como a maneira encontrada pelo personagem para superar tal medo,
e usá-lo em seu favor. Abordamos tanto a questão da sua “queda”, da sua dor e de seu
desamparo, como a conseqüente busca do personagem para elaborar tais questões.
Podemos dizer que, neste aspecto, o que nos era levante, mais do que a dor, o medo e
os traumas de Bruce, era precisamente o “aprender a levantar-se”, abordado
exaustivamente. Falamos sobre como Bruce Wayne transforma três aspetos dolorosos,
suas três maiores “fraquezas” (o medo, a agressividade e a culpa pela perda dos pais)
em aspectos positivos, em poder. Para discutir tal temática, tomamos a ideia da
“posição potente”, proposta por Di Loreto (2007). Assim, nos afastamos da leitura feita
por Rocha (2012), que coloca Batman em um lugar de melancolia e eterna busca pela

109
auto destrutividade. Para corroborar a hipótese apresentada, de que Bruce Wayne cria
Batman justamente para elaborar sua perda e seu medo, tratamos brevemente do
último filme da trilogia, “O Cavaleiro das Trevas Ressurge” (2012), onde, acreditamos,
tal elaboração é finalmente obtida, pois Bruce deixa de ser Batman; apesar da cidade
ainda precisar da atuação do herói, agora ela vai se contentar com Batman como um
símbolo, uma herança, um ideal, uma vez que Batman já cumpriu o papel para qual
Bruce o construiu, já permitiu que seu medo fosse controlado; e suas perdas,
elaboradas.

Após percorrermos este extenso percurso, algumas últimas considerações


podem ser feitas. Ao voltarmos a um dos primeiros temas abordados, encontramos a
questão da identificação com os personagens das histórias. Após tratarmos das
questões relativas ao Batman, podemos concluir que os heróis não são totalmente
bons e infalíveis, eles têm culpa, defeitos, falhas. Mesmo não tendo sido tratados neste
trabalho, sabemos que, por outro lado, os vilões são exclusivamente maus; já o herói,
apresenta a questão da dualidade bem versus mau. Ao contrário dos contos de fada,
onde o mal é sempre exterior ao protagonista, nas histórias de heróis, mais
precisamente, na história do Batman, o “mau” não está só na criminalidade, na
corrupção ou nos vilões; está também dentro de Bruce/Batman, sob a forma de
pulsões agressivas e vingativas medos e culpas. Batman busca integrar este conflito
permanente que ele possui entre o bem e o mal; entre quem é, e quem ele quer ser (o
que podemos até compreender como sendo um conflito do ego com o seu ideal de
ego). Ele possui esta questão sombria, parecendo-se com o mal que combate, agindo
como se fosse um vilão, operando de maneiras que estão além do que é autorizado
pela lei. Apesar disso ainda é um homem virtuoso, ainda é um herói. Assim, o
personagem representa em si a busca pela conciliação destes dois lados que nós
temos, das duas pulsões que operam em nosso aparelho psíquico desde que
nascemos: a de vida e a de morte; bem e o mal que coexistem na vida humana desde
sempre.

Pensando assim, podemos dizer que, dentre os motivos pelos quais nos
identificamos com o herói, está do fato de que nós temos esses dois lados, somos
bons e maus; por isso, tendemos a nos enxergar mais no herói do que no vilão,
identificando o poder dele com o nosso (ou com o que nós gostaríamos de possuir);
seus aspectos negativos, como sua agressividade, por exemplo, com as nossas
próprias pulsões agressivas e destrutivas; e, finalmente, as derrotas e sacrifícios do

110
super herói, com, respectivamente, as que sofremos ou vamos sofrer e os que temos
que fazer inevitavelmente em nossas vidas.

Neste sentido, entende-se muito do forte apelo que os super-heróis (e aqui


falamos de todos, não apenas de Batman) exercem em pessoas de todas as idades:
ao se identificarem com uma figura poderosa (seja este poder inato ou adquirido,
apresentando-se de maneiras fantásticas e fora da realidade ou de modo
“humanamente possível”, como nosso personagem eleito), o sujeito tem condições
psíquicas parar sentir-se poderoso, como o super herói, e desta forma, estar mais
capacitado a encontrar soluções para conflitos e problemas em sua vida. No caso do
Batman, onde ter super poderes é resultado primeiramente de uma escolha, e depois
de uma árdua busca, a identificação parece ser até mais forte: ao identificar-se com
uma figura humana que se torna poderosa a partir de seus próprios esforços, o sujeito
assume para si mesmo que ele também pode fazer algo semelhante, ou seja, buscar
meios e condições para sentir-se poderoso e encarar os próprios medos.

Ao contrário dos super-heróis que primeiramente adquirem o super poder, ou


simplesmente nascem com ele (como os mutantes da série X-Men e o Super-Homem),
para então, já que têm esse poder optar por lutar contra o mal e ajudar a população,
Batman primeiro possui o desejo consciente e explícito de fazer justiça e combater o
crime, e com este motivo, saí em busca de treinamentos e vivências que lhe
proporcionam este “poder”. Neste sentido, as motivações de Batman se assemelham
com as motivações dos seus fãs, seres humanos normais: não tendo nascido com super
poderes, vão em busca deles, e assim os obtém de alguma forma. Ou seja, nenhum ser
humano nasceu com plenas condições de lidar com todos os seus problemas e
dificuldades, mas o que realmente se faz relevante é se lançar na busca pela obtenção
de tais condições; é ir atrás delas, de uma forma ou de outra. Neste sentido, a
identificação com o personagem Batman, assim como o afeto que os fãs nutrem por ele,
diz muita coisa sobre os espectadores. Se a identificação com uma figura que nasceu
super poderosa já pode ser considerada importante, aquela que ocorre com uma figura
que obteve estes poderes por força de vontade e mérito próprios, ao nosso ver, pode ser
ainda mais benéfica. Além disso, Batman prefere agir sozinho; não pode contar com
reforços, depende única e exclusivamente de si mesmo, no momento em que se
encontra frente a frente com o inimigo, o que remete a nossa própria condição humana:
é sabido que não sobreviveríamos se não fosse através do amor do outro, e nos
constituímos nesta relação. Na psicanálise, é a partir da relação com o outro, do desejo
e das fantasias em jogo nesta relação, que o ser humano se constitui enquanto sujeito

111
(Mesquita, 2008); porém a difícil tarefa de nos lançar ao mundo, de encarar nossas
angústias, de controlar nossos desejos e encontrar meios de lidar com as perdas, as
quais constituem todo o ser humano (Freud, 1923), nós temos que realizar sozinhos,
contando com nossos próprios recursos. Diante dos perigos daquilo que Freud chama
de “vida hostil”, as ficções com as quais temos contato nos fornecem material para
tecermos a nossa própria subjetividade; e as figuras com as quais nos identificamos
podem nos oferecer um pouco de conforto, ao nos mostrarem exemplos de como
podemos lidar com nossos dramas, uma vez que, em Batman, nos deparamos com a
complexidade e a contradição; podemos achar o heroísmo, o medo e a escuridão, assim
como em nós mesmos.

Uma questão que permanecerá em aberto, acerca do personagem, se refere


precisamente à temática do medo. Não podemos esquecer que, para a psicanálise
Freudiana, a questão do medo é abordada sobre uma ótica que leva em conta mais do
que aquilo que está manifesto e aparente. As fobias são descritas como tendo uma
relação íntima com os conceitos de projeção e deslocamento, onde o objeto fóbico
condensa uma série de outros elementos e questões. Sendo assim, o que se
manifesta, em casos de fobia (como a fobia de Bruce), seria, na verdade, o medo de
alguma outra coisa, que é deslocado para um determinado objeto (aqui, os morcegos),
uma vez que, dessa forma, é possível evitar este objeto em específico, fugir dele e de
situações onde é possível encontrá-lo. O que nos leva aos questionamentos acerca do
que estaria sendo projetado por Bruce na figura do morcego. Do que ele tem
realmente medo? De cair? Dos conteúdos do inconsciente? Sobre isso, só podemos
nos questionar, sem termos a pretensão de chegar a conclusões, uma vez que
Batman foi submetido, neste trabalho, a uma interpretação, e não a um trabalho
analítico propriamente dito. Sendo assim, jamais seria possível responder a todos os
nossos questionamentos acerca do personagem, uma vez que as quesões
transferenciais e contra-transferenciais encontram-se ausentes.

Em alguns trabalhos sobre o Batman pesquisados, encontramos a questão


polêmica: Batman seria um super herói, ou apenas um herói, que já não possui super
poderes? O que nos remete à questão: será mesmo que os chamados “super poderes”
precisam, para serem classificados como “super”, ser da ordem do impossível, além da
realidade tal qual nós conhecemos? Precisariam, realmente, os super poderes e os
super heróis, desafiarem às leis da física, para serem “super”? Ou bastaria, para receber
tal classificação, ser algo fora do usual, importante e magnífico, sem precisar,
necessariamente, ser da ordem do incompreensível, daquilo que é mágico? Tal

112
discussão, como a grande maioria das discussões em psicanálise, não nos levará a
nenhuma certeza ou resposta absoluta. Diferentes leituras podem, e devem, ser feitas.
Porém, se formos considerar que um poder obtido dentro danossa realidade, tal qual a
conhecemos, pode também ser considerado um super poder, Batman seria, sim, um
super herói. Seu super poder não seria o “poder do dinheiro” e dos aparatos
tecnológicos que este dinheiro lhe permite ter acesso (e que, com certeza, contribuem
para o sucesso do personagem na sua luta contra o crime). Seu super poder poderia
ser, na verdade, a forma por ele encontrada para lidar com a sua perda; a maneira como
Bruce transcende o seu desamparo e o supera, transformando cada fragilidade, cada
trauma, em fontes de poder, em recursos para lidar com as próprias questões.

Neste sentido, Batman se apresenta ao seu espectador como um homem que


viveu uma tragédia, e fez escolhas para superá-la. Ele usou esta tragédia para
melhorar a si mesmo e, assim poder lutar para melhorar o mundo ao redor de si. Ele é
um ser humano, que nos mostra a grandeza e a superação de que os humanos são
capazes, nos mostrando que é possível buscar a justiça em um mundo injusto; que é
possível lutar pelo o que se acredita, mesmo nas situações mais desfavoráveis
possíveis. Além das batalhas eletrizantes e do ótimo entretenimento, Batman oferece
algo maior a cada um de nós: uma noção sobre a origem de nossos próprios medos,
assim como um caminho pelo qual podemos superá-los. Caminho através do qual se
torna possível transformar um trauma em um aprendizado, um medo em uma força; um
ser humano, em um super-herói.

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