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BATMAN NO DIVÃ:
A história de um super-herói moderno
à luz da psicanálise
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE
CURSO DE PSICOLOGIA
BATMAN NO DIVÃ:
A história de um super-herói moderno
à luz da psicanálise
SÃO PAULO
2013
2
Agradecimentos:
Em um trabalho de conclusão de curso que se propõe a analisar um
personagem fictício, primeiramente sinto-me no dever de prestar agradecimentos ao
criador do meu objeto de estudo, Bob Kane (1915-1998). Seu personagem serviu de
fonte de inspiração para tantas pessoas, entre elas, Christopher Nolan, diretor de
cinema responsável pela mais recente trilogia de filmes sobre o Batman. Filmes estes
que foram a grande inspiração da autora, despertando um interesse e uma busca por
compreensão, antes mesmo da faculdade de psicologia entrar na minha vida. Devo
prestar agradecimentos a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
especificamente ao curso de Psicologia, por ter superado em tanto as expectativas da
vestibulanda de dezessete anos, que escolheu “Psico-Puc”. Esses cinco anos foram os
mais importantes da minha vida até agora, e tudo o que eu aprendi nessa universidade
e neste curso, no convívio com professores e colegas, dentro do ambiente puquiano,
tão tradicional e reconhecido, será sempre lembrado como de fundamental importância
para minha formação não apenas acadêmica, mas também existencial e subjetiva.
Alguns anos depois do lançamento dos dois primeiros filmes da trilogia Nolan
(em 2005 e em 2009), eu estava na aula de projeto de pesquisa em psicanálise
quando a professora Elisa Cintra me perguntou que tema me interessava. Era apenas
o terceiro ano da faculdade, e a idéia de produzir um trabalho da magnitude de uma
monografia de conclusão de curso me assustava consideravelmente. Uma pergunta
tão abrangente, uma decisão tão importante, da qual eu iria me ocupar pelos próximos
dois anos. Depois de ouvir tantas histórias de colegas mais velhos surtando
completamente por causa do tão temido T.C.C., eu sabia que teria que, literalmente,
escolher o tema pelo qual eu poderia me apaixonar. Eu nunca quis um fardo, uma
grande obrigação, algo que me deixaria exausta, confusa e em pânico. Muito pelo
contrário, eu queria sentir exatamente esse prazer que eu senti escrevendo o presente
trabalho. Neste sentido, as aulas da professora Elisa foram de grande inspiração: em
uma delas, sem grandes explicações ou razões, surgiu a idéia na minha cabeça:
super-heróis. No decorrer do semestre, a professora Elisa me apoiou, com conversas e
indicações de leituras, e fez o que era apenas uma idéia bastante abstrata na minha
imaginação, se transformar em algo mais concreto, entregue a ela no final de 2011.
Era apenas o começo de algo que ainda iria sofrer profundas modificações, mas sem
este apoio inicial, sem uma brilhante professora me falando que era plenamente
possível desenvolver um trabalho com as idéias que eu tinha, ele não teria sido levado
a diante. Deixo aqui meus mais sinceros agradecimentos a ela e a sua grande
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capacidade de causar insights em seus alunos, os incentivando a buscar aquilo que
lhes desperta interesse e afeto.
Em contraste com isto, mas não menos importante, o professor Hemir também
me ensinou a importância de ter um foco, um objetivo no trabalho. Ao me mostrar que
seria impossível eu falar de tudo aquilo que eu estava planejando no começo, foi
possível fazer escolhas, delimitar campos de análise, e aprender a lidar com minha
própria frustração com o fato de que jamais seria possível analisar todos os aspectos
da história de Batman (muito menos os três filmes, como era a minha idéia original).
Afinal, não podemos ter tudo. Meu orientador executou tão bem, neste um ano de
orientação, conversas e “brisas”, tanto a função de me retirar do mundo infinito da
imaginação e me inserir na realidade (que neste caso, pode ser traduzida pela
expressão “prazo final de entrega”), quanto a função de me motivar, me fazer ter
vontade de continuar lendo e escrevendo, através da indicação de textos que viriam a
ser fundamentais, mais principalmente, através das trocas de idéias e hipóteses, que
se tornaram a parte mais importante do trabalho. É um orgulho ter seu nome em meu
trabalho, e ter tido a oportunidade de ser orientada por uma pessoa extremamente
profissional, criativa e inteligente.
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Agradeço, ainda, aos meus amados amigos, que tiveram a paciência de me
agüentar falar sobre esse trabalho por todos esses meses. A cada um para quem eu
mandei um trecho, cada um que discutiu algum tema comigo. A todos que acharam
“muito legal” quando souberam que eu estava fazendo um T.C.C. sobre o Batman.
Com certeza, incentivos assim foram relevantes para manter meu interesse e
disposição ao longo destes dois anos. Especialmente, agradeço à minha grande amiga
Ana Carolina Pina, por me compreender tanto emocionalmente quanto
intelectualmente; por discutir tantos aspectos teóricos (do trabalho dela e do meu)
comigo, pelo incentivo, pela paciência, pelas conversas sérias e pelas não tão sérias
assim. Por me fazer rir, por levar-me a sério, por acreditar em mim, e por estar sempre
tão presente e pronta para conversar, de Freud e a segunda tópica à que vestido usar
na formatura.
Mas, acima de qualquer outra pessoa, agradeço aos meus pais, alicerces de
tudo o que eu já fui, de tudo o que sou hoje e de tudo que posso chegar a ser um dia.
Agradeço imensamente a confiança, a paciência, e a dedicação que eu sempre
demandei e que eles sempre me forneceram. Os valores e a ética que me foram por
vocês passados serão para sempre parte de mim, e parte de tudo o que eu ainda farei.
Agradeço por me aceitarem como sou, cada qualidade e cada defeito, cada fraqueza e
cada força. Agradeço por vocês terem sido, nesses vinte e dois anos, os melhores pais
que alguém poderia desejar. Por terem feito tudo o que lhes estava ao alcance, por
mim e por meu irmão (a quem eu, com certeza, também tenho muito a agradecer), por
terem batalhado tanto para prover as melhores condições educacionais para nós, sem
jamais descuidar de todo o apoio emocional e afetivo. Por me dar tanto orgulho de ser
filha de vocês, de ser parecida um pouco com cada um dos dois; mas acima de tudo,
agradeço tudo o que vocês me passaram, consciente ou inconscientemente. Ser parte
desta família é o maior orgulho que tenho; e tenham certeza, vocês são minha maior
força; o que me mostra, a cada dia, que eu jamais andarei sozinha.
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Resumo
A presente pesquisa tem como tema central a relação que pode ser
estabelecida entre as teorias psicanalíticas e as histórias de super-heróis mais atuais;
especificamente, a história de Batman. Dado a força como personagens como
Superman, Homem Aranha e Batman extrapolaram os limites dos quadrinhos para se
fazerem populares ao redor do mundo, através das telas de cinema, conquistando
admiradores de diferentes gerações e culturas, torna-se relevante a busca por
compreender tal fenômeno através de uma maneira distinta daquelas mais comumente
utilizadas neste campo (a simbologia e o mito do herói). Procuraremos compreender o
sucesso de tal história utilizando um ponto de vista diferente, através da psicanálise,
fazendo uso dos conceitos postulados por Freud e de trabalhos dentro desta linha
teórica que abordam o tema dos super-heróis. Este tipo de história, contemporânea e
muito conhecida, apenas recentemente despertou o interesse da comunidade
científica, apesar de representações de super-heróis povoarem o imaginário infantil e
fascinarem adultos de todas as idades. Por outro lado, os contos de fada (outra forma
de narrativa muito conhecida e que possui algumas semelhanças interessantes com as
histórias de super-heróis, as quais iremos apresentar) são alvos de constantes análises
e interpretações desde o início do século XIX. Dentro de tal contexto, o presente
trabalho visa ser uma contribuição teórica, em um campo de estudo apenas
recentemente explorado, onde ainda há espaço para se produzir muito mais. Neste
sentido, o primeiro filme da mais recente (e elogiada) trilogia cinematográfica sobre a
história de Batman (Batman Begins, 2005) irá exemplificar nossa análise, bem como
nos fornecer uma ilustração, que nos permitirá aprofundá-la.
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Sumário
Apresentação..................................................................................................................9
Introdução......................................................................................................................10
Metodologia...................................................................................................................18
Capítulos:
1. Por que precisamos de heróis?.................................................................................19
2. Contos de heróis.......................................................................................................25
2.1. A justiça será feita.......................................................................................28
2.2. Coisas ruins acontecem..............................................................................31
2.3. Fadas versus heróis....................................................................................34
2.4. Fascínios contemporâneos.........................................................................37
2.5. Mocinhos e bandidos..................................................................................38
3. Quero ser super herói................................................................................................40
4. Somos todos órfãos...................................................................................................48
5. Os super-heróis dos quadrinhos...............................................................................61
5.1. O universo de Batman................................................................................62
6. Batman Begins (2005)...............................................................................................74
6.1. De príncipe à lenda.....................................................................................87
6.2. Por que ser o Batman? – Aprendendo a se levantar..................................90
6.2.1. Quero ser poderoso.....................................................................90
6.2.2. Transformando o medo em poder: “não há nada a temer além do
próprio medo”................................................................................................................92
6.2.3. Transformando violência em poder: da vingança à justiça..........95
6.2.4. Transformando desamparo em poder: luta por luto...................100
7. O cavaleiro das trevas ressurge (2012)..................................................................103
Considerações finais...................................................................................................107
Referências bibliográficas............................................................................................113
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“A primeira vitória do herói é a que ele conquista sobre ele mesmo.”
Chevalier e Gheerbrant, 1990
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Apresentação:
Escolher um tema é uma tarefa árdua, talvez a parte mais difícil do trabalho.
Deliberar um único assunto ao qual iremos nos dedicar por dois anos, parece ser
ainda mais complicado quando se está no quarto ano da faculdade. É a primeira de
muitas decisões que teremos que tomar nos últimos anos da graduação (que
fatalmente irá desembocar na pergunta pós-faculdade: “e agora, o que eu faço?”). De
fato, o primeiro passo costuma mesmo ser o mais difícil de ser dado. Neste sentido, o
presente projeto de pesquisa percorreu um caminho um pouco diferente daqueles que
os professores orientadores recomendam (que seria através da leitura, buscar um
tema que seja do interesse do aluno).
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específica: a história do Batman, tomada através do recorte dos filme Batman Begins
(2005).
Introdução:
Dentre os muitos jogos de fantasia de uma criança, o de viver o papel de um
super-herói, dotado ou não de poderes especiais, tem sido muito presente nas últimas
gerações. A figura de um garotinho correndo pela casa com um lençol amarrado ao
pescoço como capa, um cabo de vassoura como espada, ou uma tampa de panela
como escudo, nos remete à nossa própria infância, e a infância de pessoas próximas a
nós. Não se restringindo apenas a uma atividade lúdica exclusiva dos meninos (uma
vez que, na evolução das histórias em quadrinhos, a figura feminina deixou de ser
apenas aquela que precisa ser protegida, para ser, muitas vezes, ela própria a heroína
da história), nós nos lembramos da época em que queríamos poder voar, ter força e
agilidade sobre humanas, salvar o mundo de super-vilões.
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entre as muitas histórias em quadrinhos que contém a temática destas figuras super-
poderosas, as chamadas HQs. E quais destes conteúdos recorrentes poderiam estar,
de alguma forma, relacionados com a teoria psicanalítica. Neste campo, existem mais
questionamentos do que respostas, e mais hipóteses do que certezas, até mesmo por
se tratar de um exercício interpretativo, onde buscamos tomar as histórias de super
heróis, através do exemplo do Batman como objeto de análise, usando, para tal, a
teoria Freudiana.
A importância das narrativas também entra em foco neste momento, uma vez
que a história em quadrinhos é, primeiramente, uma ficção. Conforme discutem Diana
e Mário Corso (2006), o ser humano precisa da ficção para construir seu próprio
mundo, uma vez que é nela em que poderão ser encontrados elementos para tecer
sua própria subjetividade. Além disso, a ficção é uma forma de representação, e tudo
aquilo que encontra tal forma de ser apreendido se torna mais passível de ser
equacionado. Ainda segundo os autores:
Desta forma, toda a ficção se torna importante como uma maneira do sujeito
buscar formas de representação para suas questões. Segundo os autores, tal
afirmação é válida para qualquer tipo de ficção, pois o sujeito, quando em contato com
esse mundo de fantasias, vai criando alternativas para lidar com os seus dramas. Por
tal motivo, são injustificadas as críticas de certos autores as “novas formas de cultura”,
como o cinema ou as próprias histórias em quadrinhos, que foram consideradas por
tais estudiosos como sendo maneiras “menores” de receber e transmitir informações,
enquanto que a chamada forma “correta, nobre e verdadeira” seria a leitura tradicional.
Como exemplo, podemos citar Bettelheim (2002), para quem o conto de fadas seria a
maneira mais adequada das crianças entrarem em contato com a ficção. Ainda sobre
este tema, Corso (2007, p. 303) afirma:
11
Outros autores defendem que as formas mais “modernas” de ficção, como os
quadrinhos e outras formas de ilustração (como o cinema), afastariam o jovem da
leitura e seriam possíveis responsáveis pelo empobrecimento das capacidades
cognitivas das gerações seguintes. Porém, não foi observado tal fenômeno, apenas
foram acrescentados alguns meios de expressão (e nem por isso os meios tradicionais
foram extintos; pelo contrário, muitos jovens se interessam em ler um livro após
assistir sua versão cinematográfica). Outra crítica enfrentada pelos quadrinhos diz
respeito às ilustrações: apreender a informação por meio de imagens seria um
“exercício preguiçoso”, quando na verdade:
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que buscam, acima de tudo, vigiar os perigos da noite, combater o crime
e aplicar a justiça” (Colucci e Fonoff, 2008, p.5)
Costa (2010) afirma que, nas histórias em quadrinhos com temática de super-
heróis, encontram-se elementos de auxílio na formação psíquica de crianças e adultos,
tanto aliviando angústias (conscientes e inconscientes), como sendo uma fonte de
desenvolvimento moral. Além disso, segundo o autor, a importância de tais histórias é
evidenciada quando constatamos que o herói é a matéria-prima dos mitos, na qual
uma de suas funções é a de mostrar caminhos para o avanço da sociedade.
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influenciada por este. Lobianco, em sua dissertação de mestrado “O sublime gótico
Batman” (1998) também buscou compreender a história de Batman, através da
mitologia:
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tem uma adequação editorial para cada tipo de mídia, em histórias que
não tem uma cronologia definida.” (p. 12)
Por conta deste fato, se tornou necessário delimitar qual seria a versão de
Batman a ser analisada. A escolha pela mais recente trilogia cinematográfica
[composta por Batman Begins (2005); O Cavaleiro das Trevas (2008) e O Cavaleiro
das Trevas Resurge (2012)] aconteceu de maneira quase intuitiva: além de serem os
filmes preferidos da autora, também o são de praticamente todo fã da série. Estes três
filmes revolucionaram a maneira de transpor histórias em quadrinhos para o cinema,
tornando o roteiro, o herói e os vilões muito reais, possíveis de existir em um mundo
próximo ao que nós vivemos; trazendo um começo, uma razão pela qual o
personagem foi criado. Neste sentido, por mais que a intenção primeiramente fosse
realizar uma análise dos três, acabou se fazendo necessário a eleição de apenas um
deles, como objeto privilegiado do nosso olhar. Para isto, foi escolhido o filme Batman
Begins, por retratar precisamente este começo, mostrando porque e como o herói foi
criado, assim como nos possibilitando entender como uma criança marcada pela
tragédia se transforma em uma figura super poderosa. Enquanto o segundo filme
fornece ao público um desenrolar de sua saga, o terceiro contribui com o final para tal
personagem. Os três filmes foram grandes sucessos de público e de crítica. Além
disso, os temas trazidos pelos roteiros extrapolam o personagem do herói: há vilões
interessantes e surpreendentes, como o Espantalho, que usa o medo das vítimas
como maneira de agredi-las, e o Coringa, um “agente do caos”, tentando tirar a ordem
e a previsibilidade de uma cidade inteira. Em outras palavras, estes três filmes
apresentam um recorte da história deste herói que permite compreendê-la em toda a
sua complexidade de sentidos, além de apresentar as origens de Batman, o trauma do
assassinato dos pais, os motivos que o levaram a escolher ter super-poderes e o duro
treinamento físico e mental ao qual se submeteu para se tornar um herói. A superação
de seus próprios limites, a responsabilidade por si mesmo e o auto-controle são temas
presentes nos três filmes (em especial, no primeiro), assim como na vida psíquica de
cada um de nós.
Dentro da nossa busca por autores que analisam diferentes tipos de narrativas
sob a luz da psicanálise, encontramos um grande número de trabalhos sobre contos de
fada, entre eles os de Bettelheim (2007) e Corso & Corso (2006). Este tipo de narrativa
tem sido discutido e interpretado através não apenas de teorias psicanalíticas, mas
também junguianas e sócio-históricas desde o século XIX. Conforme apontam Colucci
e Fonoff (2008): “Desde o início do século XIX, a comunidade científica direcionou sua
15
atenção aos contos de fadas, fábulas, cantigas de roda, provérbios, lendas, entre
outros materiais de tradição oral” (p. 1)
Por mais que abordar histórias de super-heróis (sendo que a maioria dos
psicanalistas se dedica aos contos de fada) dentro da psicanálise (sendo que a maioria
do que se dedicam a estudar heróis o fazendo dentro da mitologia e simbologia), seja
ainda um campo pouco explorado, alguns autores começam a dar os primeiros passos
no sentido da análise a qual nós estamos nos debruçando. É o caso de Azeredo
(2009), que, tendo como referencial teórico a psicanálise, utilizou personagens das
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histórias de super-heróis em oficinas terapêuticas, que tinham como premissa do fato
de que tais histórias são significativas para as crianças e podem ajudá-las na
elaboração de seus conflitos internos. Fonoff e Colucci (2008) partem da análise das
diferenças estruturais nas estórias infantis, contos de fadas e histórias de heróis, para
examinar como a presença dos mitos compartilhados ajuda a formar os mitos pessoais
de cada criança, dentro do universo das relações objetais pré-genitais, objetais genitais
e conflitos edípicos, abordando a questão da orfandade: princesas, nos contos de fada,
são órfãs de mãe e os super-heróis são órfãos do casal parental. As autoras também
ilustram suas considerações teóricas com o caso do Batman, e suas interpretações
nos auxiliarão a explicar alguns aspectos de sua história, principalmente aqueles
relacionados ao conflito edípico e a morte de seus pais, assim como a tomada de
Alfred, o mordomo, como uma espécie figura paterna substituta. Outra ideia
interessante das autoras é que os super-heróis, principalmente o Batman, também
poderiam ser representações da figura paterna. No caso, Batman é ao mesmo tempo,
uma figura ameaçadora e protetora, que transita entre a violência e a misericórdia.
Associando tal ideia à noção de que a religião poderia funcionar como instância
semelhante, sendo ao mesmo tempo fonte de proteção e conforto e fonte de
castrações e temor (Freud, 1930), podemos conferir maior credibilidade à hipótese de
que a figura superpoderosa poderia ocupar o papel de figura paterna, que protege ao
mesmo tempo em que ameaça, como faz a religião. Além disso, é muito comum
crianças representarem seus pais como super-heróis em desenhos, falas, sonhos e
brincadeiras.
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Metodologia:
O presente projeto se propõe a fazer uma pesquisa teórica, tendo como
referência a psicanálise Freudiana, partindo de uma contextualização histórica e da
comparação com outro tipo de narrativa há muito estudada pela psicanálise, os contos
de fada. Tomaremos como base os escritos de Freud, mais especificamente,
Psicologia dos grupos e análise do ego (1921), O Ego e o Id (1923), Mal estar na
civilização (1930) e Dissecção da Personalidade Psíquica (1933). Através de textos
teóricos sobre os conceitos de identificação, superego, narcisismo, complexo de Édipo
(dentre outros temas) e de pesquisas já existentes sobre narrativas de super-heróis,
buscaremos traçar paralelos que nos levem a uma linha de pensamento a fim de
responder alguns de nossos questionamentos acadêmicos e curiosidades pessoais a
respeito das figuras super poderosas e sua importância na formação de subjetividade
dos seres humanos. Utilizaremos como exemplo o filme Batman Begins, que nos
fornecerá uma ilustração de uma narrativa moderna de herói, onde nós
aprofundaremos nossa análise, e realizaremos um exercício interpretativo.
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1. Por que precisamos de heróis?
Da mesma forma que na clínica psicanalítica a repetição é um sinal do
inconsciente, a avalanche de produções cinematográficas envolvendo super-heróis
pode ser um sinal de que algo (inconsciente) ocorre. No filme Superman Returns
(2006), apesar do fiasco de bilheteria, a pergunta que é feita nos serve de suporte: "Por
que precisamos do Superman?", que, no nosso estudo, pode ser adaptada para "Por
que precisamos de Super-heróis?" Segundo Costa:
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balas’; nas revistas em quadrinhos, nos fazendo acreditar que um
homem pode voar.” (Costa, 2010, p. 3)
Apesar deste não ser o nosso foco, não podemos deixar de relacionar a
questão da origem dos super-heróis com o herói da mitologia, uma vez que esta nos
fornece a mais primordial figura heroica. Os mitos foram essenciais para o
desenvolvimento da sociedade, alimentando as artes, filosofias, religiões, ciências e
outros campos que englobam a existência do homem. Os mitos não são meras
invenções dos povos, mas se constituem como representações de nossa psique. É
esta origem – da própria subjetividade humana – que torna os símbolos dos mitos
universais e atemporais. Por mais diferentes que possam parecer as lendas de
sociedades distintas, todas possuem elementos comuns na narrativa, indicando que
todas são originárias da mesma “fonte” (Campbell, 1949). Com o desenvolvimento da
psicanálise, a universalidade dos símbolos ficou mais evidente, através da
interpretação dos sonhos e imagens geradas pelo inconsciente, possibilitando uma
melhor compreensão de seus significados, independente da cultura em que o indivíduo
está inserido (Bettelheim, 1995; Campbell, 1949). O mito possui uma representação
social parecida com a dos rituais realizados pelos povos antigos, que representavam a
passagem de um estágio para outro da vida, como o nascimento, morte, puberdade,
casamento, entre outros: “A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de
fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se a aquelas
outras fantasias humanas constantes que tendem levá-lo para trás” (Campbell, 1949,
p. 21)
20
vigentes do período histórico no qual foram escritas. Segundo Viana (2005), os
antecessores mais próximos dos super-heróis, por suas habilidades sobre-humanas,
talvez sejam os deuses do politeísmo antigo, principalmente os deuses gregos e
nórdicos (que, aliás, foram incorporados no mundo dos quadrinhos: Hércules e Zeus,
deuses gregos, e Thor, Loki e Odin, deuses nórdicos, foram introduzidos no mundo dos
super-heróis, através de histórias criadas pela Marvel). Poderíamos pensar também
nos heróis como precursores dos super-heróis, tanto os da ficção quanto os da
realidade. O individualismo da sociedade moderna abre espaço para a valorização do
herói real e também o herói fictício. No entanto, os heróis fornecem apenas alguns
elementos para a criação dos super-heróis, que seria necessário complementar com
outros aspectos, só possíveis com o desenvolvimento histórico. Os super-heróis tal
como os conhecemos atualmente, assim como suas características definidoras, são
produtos da sociedade moderna. Os deuses antigos são super poderosos, mas são
vistos como verdadeiros por seus produtores e reprodutores, até serem transportados
para o mundo da ficção, enquanto que os super-heróis são reconhecidos como
produtos fictícios tanto pelos seus produtores quanto leitores. Os heróis (tanto os
fictícios quantos os reais) são seres habilidosos, corajosos, excepcionais, mas sem
super poderes. A formação dos super-heróis só foi possível através da conjugação de
diversas determinações, entre as quais os avanços tecnológicos, o individualismo e a
necessidade de homens fortes em períodos de crise, uma vez que esses personagens
possuem poderes e habilidades incríveis, realizando proezas acima da capacidade
humana, e, mesmo com essa “superioridade”, protegem os mais fracos, em vez de
subjugá-los (Costa, 2010).
Para tentar entender esta questão, podemos voltar à época em que os super-
heróis das histórias em quadrinhos foram criados, para pensarmos sobre qual foi a sua
importância dentro deste contexto sócio-cultural: Quando, por exemplo, o Capitão
América apareceu pela primeira vez, o mundo contemplava a ascensão do nazismo.
Não era coincidência que seu maior inimigo, o Caveira Vermelha, fosse nazista. O
povo americano se sentiu profundamente ameaçado por esta, até então desconhecida,
ameaça, assim que Hilter ocupou a França. Sentindo-se solitário e abandonado, o
povo conclamava por um salvador, um herói. Foi então que em 1941, Joe Simon e
Jack Kirby criaram a figura de um super-herói que não apenas defendesse seu país,
mas que carregasse no próprio corpo a bandeira dos Estados Unidos. Outro fato
ilustrativo envolve a criação do Super-Homem. O homem de aço nasce 1938,
publicado na revista Atcion Comic número 1. Concomitantemente a isto, uma série de
fatores históricos estava se desenrolando: o primeiro deles foi a crise das bolsas de
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valores em 1929, que jogou o país na recessão econômica. Nos anos posteriores, o
país ergueu-se e começou a ser considerado uma das grandes potências, mas é
assolado por uma 2ª grande guerra, e essa ameaça faz surgir a imagem de alguém
“super”, alguém que viera de um planeta destruído, da mesma forma com que os
Estados Unidos viu sua grande nação sofrer com a primeira guerra mundial e com a
crise de 1929. Portanto, mais uma vez, a sociedade norte-americana precisava de uma
esperança, de um ícone, algo que fosse mais rápido que um trem, que pudesse saltar
prédios, que os inimigos tremessem apenas por ouvir seu nome. Cria-se então o
Super-Homem, um homem indestrutível, como o seu povo desejava que fosse seu
próprio país. O Super-Homem é, também, um produto de sua época. Era a resposta
americana ao nazismo e sua ideologia da “raça superior”, e, ao mesmo tempo, um
apelo ao homem comum, para que ele seja forte e suporte todas as situações
desfavoráveis (a crise da época), bem como um grito de liberdade inconsciente.
Queremos dizer com isso que, do ponto de vista intencional, consciente, o Super-
Homem tinha uma função parecida com a chamada “auto-ajuda”, já que era o protótipo
do homem-forte, que suportava as misérias do mundo. Também era resposta fictícia
dos americanos ao nazismo: precisamos de soldados, heróis de carne e osso, e os
heróis fictícios são exemplos a serem seguidos, inspiradores, amados pelo público.
Mas existe também um lado não intencional, que revela o desejo inconsciente de
liberdade, de ultrapassar os limites de uma sociedade burocrática, mercantil, sem
aventuras, uma cotidianidade vazia e sem sentido. O Super-Homem, assim, pode ser
considerado expressão do dilema do indivíduo norte-americano de sua época, mas que
permanece existindo, em muitos aspectos, até os dias de hoje. Isto é observável, por
exemplo, em sua dupla identidade, a de homem comum, oprimido e preso nas malhas
burocráticas, e o Super-Homem, invencível e imbatível, que desafia as leis da natureza
e supera todos os limites humanos. A recepção do Super-Homem foi resultado das
tendências da época e das necessidades inconscientes dos indivíduos presos no
mundo burocrático, limitador. A respeito do Super Homem, Costa (2010) afirma:
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“Em períodos de crise, as HQ entravam em cena, com objetivo de
levantar a moral da população. Foi assim no período do crack da Bolsa
de Nova York, quando as pessoas estavam sem muitas esperanças no
futuro, com altos índices de miséria e desemprego.” (Costa, 2010, p. 6)
23
O surgimento e desenvolvimento das histórias modernas de super-heróis
também estão intimamente relacionados ao desenvolvimento da ciência e da
tecnologia: sem tal evolução, poderíamos pensar em seres semelhantes, mas não
super-heróis, que são produtos da sociedade moderna e só podem emergir com suas
características definidoras nesta sociedade, marcada pelo desenvolvimento científico-
tecnológico. Não seria de todo impossível a criação imaginária de super-heróis sem
utilizar o apelo à ciência, pois se poderia utilizar os poderes mágicos para lhes
caracterizar, mas não os poderes de origem tecnológica (como é o caso do Homem-
de-Ferro, e o objeto principal de nossa análise, Batman) e “cósmicos” (como no
Surfista Prateado). No entanto, embora o mundo dos super-heróis tenha incluído a
magia como fonte de poder em muitos casos, sem o desenvolvimento científico que
está na base da origem e desenvolvimento dos super-heróis, certamente eles não
existiriam. A imaginação criativa, que está na base da criação dos super-heróis, é
diretamente derivada do desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade e da
totalidade das relações sociais da sociedade capitalista.
No caso específico do Batman, escolhido como nosso objeto para uma análise
mais detalhada, podemos observar que, no ano em que o "Cavaleiro das Trevas"
aparece pela primeira vez na revista "Detective Comics Nº 27" (edição de maio de
1939), o mundo entrava na sua Segunda Grande Guerra, e os Estados Unidos ainda
viviam a incerteza da sua participação no conflito desencadeado no front europeu. Em
1941, os norte-americanos se aliam às forças que combatiam o nazismo e Batman
também se "alista", é convocado a defender os interesses norte-americanos (fato que
se repetirá posteriormente, com frequência, nos quadrinhos). Como afirma Lobianco
(1998): “As suas histórias tiveram um papel importante para elevar a moral das tropas.
As revistas eram jogadas de aviões nos campos de batalha. Em algumas, o próprio
personagem luta no front de guerra contra os alemães". (p. 15)
24
dominada por quadrilhas de gangster (estética também presente na Gotham City
retratada nos três filmes de Christopher Nolan).
Apresentamos aqui alguns dos motivos pelos quais nós precisamos de super-
heróis, especialmente no atual momento da nossa sociedade. Porém, não podemos
ser simplistas e deixar de considerar todos os outros importantes papéis que não
apenas os heróis, mas que suas narrativas, suas batalhas e até mesmo seus vilões,
desempenham em nossas vidas. Sabemos que a discussão é muito mais complexa do
que a mera compreensão do por quê dos heróis terem sido criados em um
determinado momento, pois se eles se mantiveram atuais por todos estes anos, ainda
sendo capazes de mobilizar tantos afetos, atenções, opiniões e identificações, com
certeza existem muito mais fatores que os tornam necessários e importantes; fatores
estes que serão discutidos a seguir.
2. Contos de heróis
Quando começamos a pesquisa por referências bibliográficas, buscamos
primeiramente artigos e pesquisas que correlacionassem o referencial teórico da
psicanálise com as histórias em quadrinhos e a temática dos super-heróis – pois esta
é, justamente, nossa proposta. Tivemos dificuldade considerável em encontrar estudos
que fizessem tal associação de conceitos; no entanto, é possível encontrar vasta
bibliografia acerca da relação da psicanálise com os contos de fada. Para Costa
(2010), independente do gênero, o sucesso de um herói de HQ (bem como de outras
mídias) deve-se à identificação que existirá entre este e seus leitores. Nesse ponto as
25
histórias em quadrinhos compartilham características e funções semelhantes às dos
contos de fadas folclóricos.
O autor apresenta uma extensa argumentação dos motivos pelos quais ele
considera que seriam estas as histórias “ideais” para crianças, pois seriam “mais
universais”, apresentariam as vantagens do comportamento moral para a criança, com
base no que parece correto, de forma concreta, e não abstrata. Além disso, apenas os
contos de fada seriam capazes de comunicar, ao mesmo tempo, à consciência, pré-
consciente e inconsciente. Nós nos perguntamos, imediatamente, se seriam as
histórias em quadrinhos e filmes de super-heróis capazes de fazer a mesma coisa.
Costa (2010) também propõe uma aproximação das duas formas narrativas:
26
interiores mais sérias que o crescimento pressupõe – oferecem exemplos
tanto de soluções temporárias quanto permanentes para dificuldades.
Esta é exatamente a mensagem que os contos de fada transmitem à
criança de forma múltipla: que uma luta contra dificuldades graves na
vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que se a
pessoa não se intimida, mas se defronta de modo firme com as
opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os
obstáculos, e ao fim, emergirá vitoriosa.”(p. 13)
Ou seja, o autor afirma que dificuldades graves na vida são inevitáveis, mas o
importante, para que se torne “vitorioso” é não se intimidar pelos obstáculos e procurar
transpô-los. Em nosso entendimento, as histórias com super-heróis afirmam o mesmo,
já que trazem um personagem principal – o herói – que luta contra vilões terríveis e,
muitas vezes, com aspectos de sua própria condição de herói: como, por exemplo, ter
de se esconder e preservar sua identidade secreta, através de máscaras de fantasias.
Também há a questão aceitar o super poder como sendo parte de si mesmo, para, a
partir daí, poder dar uma resolução a questão do o que fazer com este poder. Os
super-heróis escolhem, conscientemente, usarem seus poderes para ajudar outras
pessoas, as vezes em detrimento de si mesmos e de seus desejos mais pessoais, o
que demonstra uma atitude de grande valor moral, que, assim como os contos de fada,
apresentam para as crianças (mas não só para elas) que a atitude de enfrentamento
dos problemas e questões, assim como as atitudes altruístas, éticas e valorosas, são
necessárias para que se consiga a vitória, ou seja, para que se supere os obstáculos
inevitáveis da vida, os problemas e os dramas dos quais não poderíamos fugir.
Outra questão que se faz presente nas duas formas narrativas é aquela que diz
respeito à família dos protagonistas: heróis e princesas são, com raríssimas exceções,
órfãos. Este importante aspecto é abordado por Colucci e Fonoff (2008), que
exploraram as vicissitudes do complexo edípico, a partir da constatação da orfandade
em personagens tanto de histórias em quadrinhos, quanto de contos de fada. Este
importante aspecto será discutido mais profundamente no capítulo sobre a orfandade e
o desamparo.
27
A batalha do bem contra o mal não acontece apenas na sociedade, de forma
exterior ao indivíduo; esta luta, central tanto nos contos de fada como nas histórias de
super-heróis, trata também do bem e do mal – que poderíamos corresponder às
pulsões de vida e de morte – presentes em todo indivíduo. Os “obstáculos” são
inevitáveis ao longo de toda vida, e não se encontram somente nas pressões do
ambiente, mas no interior de cada um de nós.
28
Desta forma, acredita-se que para que estas histórias venham a trazer algo de
construtivo à psique infantil, convém que ela possua um final feliz. Sem estas
conclusões encorajadoras, a criança se sentirá sem esperança verdadeira que
desamarre os desesperos e desamparos que circundam a sua vida.
“De que outra forma pode a criança esperar que lhe seja feita a
justiça, ela que se sente tantas vezes tratada injustamente? E, de que
outra forma ela pode convencer-se de que deve agir corretamente,
quando se sente tão dolorosamente tentada a ceder às instâncias não
sociais de seus desejos?” (p. 177)
ilumine seu caminho, dizendo o que fazer, ou então tenta fugir de tudo. É neste
momento que os super-heróis surgem para inscrever alguma confiança na fragilidade
emocional da criança, lançando-se sobre a figura temida, e não medindo esforços para
retirá-la de seu destino.
29
que seja mais forte e que possa proporcionar essa segurança, nos mostrando que
sempre estará por perto nos momentos difíceis, em que tudo parece estar fadado a se
desfazer.
Mas não existe apenas o lado passivo da criança, que se sente desolada e
precisa do apoio parental; esta também precisa resolver seu conflito edípico, que, no
caso dos meninos (para exemplificar), visa retirar o pai do caminho, pois este está se
interpondo entre o filho e a mãe, tomando parte de seu amor para ele, e estaria
colocando em cheque o amor incondicional fantasiado e almejado pela criança, que
quer ser objeto único de desejo de sua progenitora. Sendo assim, os contos de fadas
surgem como uma alternativa para que o sujeito consiga lidar com a sua agressividade
projetada num monstro, dragão, ou qualquer que seja a figura que represente o mal, e
que seria na verdade uma batalha entre ele e o herói, com o qual a criança na verdade
quer se identificar. Com isto, passa a se sentir poderoso e um ídolo, tirando o vilão
(pai) da história para chegar aos braços da donzela (mãe), necessitando deste tipo de
ferramenta para que consiga ter acesso ao seu mundo inconsciente.
30
individual, mas se ela será tratada justamente. Pergunta-se sobre
quem ou o que a lança na adversidade, e o que pode impedir que isto
lhe aconteça. Há poderes benevolentes além de seus pais? Seus
pais são poderes benevolentes? Como ela própria poderia se formar,
e por quê? Há esperanças para ela, embora tenha errado? Por que
tudo isto lhe aconteceu? O que significará para seu futuro? Os contos
de fadas fornecem respostas a estas questões mobilizadoras, muitas
das quais a criança só toma consciência à medida em que segue as
estórias” (Bettelheim, 2002, p. 49)
A sociedade tenta, segundo afirma o autor, “fingir” que o ser humano não é, e
nem possui, nada de imoral ou sombrio. Daí a crença de muitos pais de que não se
pode apresentar a criança nada que não seja bom, positivo e otimista. Não é, contudo,
possível, nem desejável apresentar à criança apenas os aspectos positivos de cada
situação. Pois ela terá de viver suas próprias angústias e sobreviver a elas; de tal
forma que, nestes momentos, precisará ter construído um repertório que lhe sirva de
guia para que encontre suas próprias soluções para as situações difíceis que
inevitavelmente encontrará pelo caminho.
31
poder, o controle e a violência; e um herói que, mesmo que não possua super poderes
ou capacidades sobre-humanas, tem seu mundo interior povoado pela coragem e pelo
anseio de superar os obstáculos que lhe são oferecidos.
Um dos maiores medos da infância é a perda dos pais. Na vida adulta, este
medo permanece, mas acaba por se tornar mais amplo: o medo da solidão e do
desconhecido, de deixar o que é familiar e ser lançado a um mundo estranho. Assim,
as histórias em que devemos buscar ao mesmo tempo conforto, identificação, exemplo
e repertório, iniciam-se com a materialização de nosso maior temor, daquilo que se
configura como o maior obstáculo possível – a solidão, o ser deixado num mundo
pouco familiar, povoado por seres estranhos e perigos desconhecidos. Superando
nossos mais profundos temores os heróis dessas histórias construirão seu heroísmo;
mostrando que são capazes de, a partir do começo mais terrível, erguerem-se
vitoriosos sobre todas as possíveis desventuras.
Na mais tenra idade, um indivíduo é capaz de sentir que sua vida e seu mundo
não são compostos apenas por aspectos bons. Desde a relação com a mãe, já se tem
32
em algum momento as necessidades frustradas, se tudo correr bem. Freud (1924)
afirma que, a partir da dissolução do Complexo de Édipo, o sujeito deve para sempre
conviver com uma falta constantemente inscrita em si, que nada e nem ninguém jamais
será capaz suprir completamente.
Ao apresentar para o sujeito, seja ele criança ou adulto, uma narrativa onde
estão presentes aspectos bons e ruins da existência humana, seja num conto de fadas,
numa história de super-herói ou qualquer que seja o tipo de narrativa, o sujeito pode
encontrar uma correspondência para o que sente e observa em sua própria vida, pois
percebe que, para tudo o que se passa, há aspectos bons e ruins. É possível, desta
forma, que tenha condições de não apenas se identificar com o herói e suas virtudes,
mas também de dar um destino aos seus próprios aspectos negativos: ao ouvir uma
história, seus ódios e angústias são convenientemente direcionados ao vilão.
33
queda a que esta identificação está fadada: pois todo o argumento de uma história de
herói e vilão é que o primeiro sempre vence. Não porque é melhor ou mais forte, mas
por ser capaz de evocar recursos para superar suas dificuldades; porque tem coragem
de assumir suas falhas, suas faltas, e criar a partir delas armas e escudos para lidar
com o que vier.
Assim, o ódio dirigido ao “mal”, ao monstro ou ao vilão, por quem ouve estas
narrativas, pode ser pensado como uma negação dos próprios aspectos destrutivos,
mas também como uma forma de “odiar o próprio ódio”. A cisão do bem e do mal
organiza a experiência interna de violência e destrutividade, assim como faz um bebê
no início da formação de seu psiquismo. O fato de o vilão não conseguir, mesmo com
seu alto poder destrutivo, vencer a coragem e a capacidade criativa do herói mostra ao
indivíduo que a predominância de seus aspectos violentos, de seus anseios arcaicos
devoradores e incorporatórios não deve ser buscada – pois, conduzida ao limite, leva
ao fim do próprio indivíduo. Quem almeja destruir é que acaba destruído.
34
ganha mais importância, bem como suas motivações, que podem ser as mais diversas
possíveis. Neste ponto, as histórias em quadrinhos modernas divergem dos contos de
fadas; seu enredo parece ter se enriquecido com o passar o tempo.
Tal tarefa, segundo o autor, não poderia ser feita tão facilmente se as figuras
fossem construídas à semelhança dos sujeitos da vida real, com características
consideradas boas e ruins. As simplificações presentes nos contos da fada facilitariam
as identificações com as personagens boas. Já nas histórias contemporâneas de
super-heróis, existem personagens completamente ambivalentes. Duas-Caras, vilão
das histórias de Batman, carrega já em seu nome a ambivalência sobre a qual o
personagem é construído. O próprio Batman apresenta características que poderiam
ser chamadas de “negativas”, como sua agressividade e o desejo de vingança,
aspectos que parecem fazer parte do vilão, e nunca do herói. Porém, o que é
observado é que nenhum desses personagens deixa dúvidas ao público: Duas-Caras
é indiscutivelmente um vilão, enquanto que Batman é indiscutivelmente um herói. O
que faz, então, o herói um herói, enquanto o vilão é sempre vilão? Um herói é
considerado tal porque não sucumbe ao próprio medo.
35
contos de fada como a forma literária “ideal” para crianças diriam que as histórias em
quadrinhos foram elaboradas para um público mais velho, que teria condições de
apreender as ambivalências e ambiguidades sem prejudicar sua identificação com “as
personagens certas”. Porém, é preciso salientar que, apesar de muitos exaltarem o
caráter de adequação ao público infantil que possui um conto de fadas, nenhuma das
duas modalidades narrativas aqui abordadas foi originalmente criada com este
direcionamento, sendo construídas originalmente para o público adulto.
As raízes dos contos de fada estão na Idade Média, período em que mesmo o
conceito de infância era muito distinto dos dias atuais. As histórias de fada originais
sofreram drásticas modificações para que chegassem ao estado em que hoje se
encontram, adequadas ao universo infantil. As histórias em quadrinhos também foram
produzidas, primeiramente, para um publico mais velho; conforme foram ganhando
popularidade entre outras faixas etárias, os enredos foram sofrendo modificações.
Outro aspecto colocado pelo autor como característica peculiar aos contos de
fada é o fato de que eles teriam “valor inigualável” por oferecerem novas dimensões à
imaginação da criança. Segundo o autor:
36
guiando a criança a abandonar seus desejos e dependência infantil e conseguir uma
existência mais satisfatoriamente independente. É possível perceber algo bastante
semelhante nas histórias de super-heróis, em que a vida de “homem comum”,
mostrada muitas vezes como vazia de sentido e entediante, deve ser deixada para
trás, em segundo plano, pelo herói, para que este se imponha como tal, assumindo
todas as responsabilidades que isto implica. Podemos entender o período de
isolamento pelo qual passam os heróis, tanto os dos contos de fada como dos
quadrinhos, como uma metáfora do tornar-se adulto: é preciso passar por um período
de recolhimento, de afastamento de sua vida antiga, para poder formar uma nova
identidade, seja ela de super-herói ou de adulto, simplesmente. É preciso deixar a
infância e a vida anterior para trás, para assumir novas responsabilidades e encarar
novos desafios.
37
Freud (1926) assinala que o conto (assim como o mito, a literatura e a arte)
oferece representações significativas do ser humano, sobretudo em seu funcionamento
psíquico mais arcaico. Bettelheim (2002) fala da função protetora que os contos de
fada exercem nas crianças, servindo para apaziguar seus maiores temores, ao mostrar
a elas como podem superá-los.
38
monstro que quer devorá-lo; a voracidade e a ânsia de incorporar o outro transformam-
se no medo de ser aniquilado, sugado e destruído.
Este retrato do início da vida de um ser humano, esboçado Klein (1991) como
um esquema que não se apresenta como singular e finito, mas que é revivido em
diversas formas e intensidades ao longo de toda a vida, encontra grande
correspondência no universo dos super-heróis. Também este mundo se inicia em
violência e desamparo. O personagem principal encontra-se em perigo, desprotegido e
fragilizado, sujeito aos desígnios de monstros ou seres maléficos que vicejam na
desordem, movidos pelo desejo de poder e destruição. Até que surge o herói, trazendo
ordem ao caos, perseguindo os perseguidores, destruindo quem destrói a ele mesmo e
ao mundo ao seu redor.
39
fadas, estas histórias também trazem a quem as presencia uma solução e uma
redenção: a escolha pela identificação com o herói.
Um medo como este deve ser sempre combatido, pois estará sempre presente
– já que, como nos ensina Klein (1991), nunca estaremos completamente livres de
nossos funcionamentos mais arcaicos. Assim se torna tão necessária a presença do
herói: alguém que sempre retorna na iminência do perigo, quando o mal ameaça
ressurgir, numa luta incansável e interminável.
40
super poderosa? Histórias de super-heróis e contos de fada têm mais esta
característica em comum: o forte apelo que exercem, não apenas em crianças, mas
em pessoas de todas as idades, que dentre outros fatores deve-se a um marcante
sentimento de identificação com seus personagens principais
Da mesma forma como as princesas dos contos de fada devem ser mais
atraentes para as crianças que as também fascinantes feiticeiras malvadas, os super-
heróis devem ser mais atraentes que os super-vilões que pretendem dominar o mundo.
Através de um processo identificatório, são inscritas nas crianças as características
desejáveis do herói, assim como a moralidade presente nestes dois tipos de histórias.
41
conceito de identificação dentro da obra Freudiana. Laplanche (1996) nos fornece a
seguinte definição para o termo:
Visando uma melhor conceituação, vamos primeiro tratar de como tal conceito
se insere dentro do pensamento de Freud, e suas implicações para a teoria como um
todo: se a primeira tópica Freudiana trata de mostrar que existe uma dimensão
inconsciente da vida psíquica do homem, que não está sujeita a nossa vontade, a
segunda tópica se ocupa de explicar como se forma a personalidade deste sujeito.
Basicamente, a segunda tópica vem inserir os três conceitos mais importantes do
pensamento Freudiano, que é a divisão do aparelho psíquico em três instâncias: id,
ego e superego (Freud, 1923).
Nas bases desta tópica estão duas questões: a primeira, de que tais instâncias
não têm bases orgânicas, mas sim são teorizadas em termos de aspectos da
personalidade. A segunda questão se refere ao o fato da personalidade se forma a
partir de um processo diferente da maturação orgânica, e é este processo que a
segunda tópica busca explicar. Para isto, Freud (1923) formula uma teoria de divisão
do psiquismo humano: o ego não seria, então, uma estrutura homogênea, ele se
encontra divido. Tal divisão é o superego, instância que observa, critica, julga e
representa nosso ideal de comportamento. Para explicar a origem desta instância,
42
Freud começa, então, a falar em identificação, que é o conceito que nos servirá de
base, nesta análise, para entender o fascínio das pessoas pelos super-heróis.
Ainda sobre a relação entre estas duas instâncias, Freud propõe uma metáfora,
que viria a se tornar bastante conhecida: o ego, em sua relação com o id, seria como
um cavaleiro que tem de manter controlada a força superior do cavalo (o id), com a
diferença de que o cavaleiro tenta fazê-lo com a sua própria força, enquanto que o ego
utiliza forças tomadas de empréstimo. Freud leva sua analogia um pouco além:
geralmente um cavaleiro, se não deseja ver-se separado do cavalo, é obrigado a
conduzi-lo por onde este quer ir; da mesma maneira, o ego tem o hábito de transformar
em ação a vontade do id, como se fosse sua própria, para tentar lidar com o conflito
entre o id e o ego, entre a vontade, as paixões e pulsões; e a razão, o senso comum.
43
“Alcançamos sucesso em explicar o penoso distúrbio da
melancolia supondo [naqueles que dele sofrem] que um objeto que fora
perdido foi instalado novamente dentro do ego, isto é, que uma catexia
do objeto foi substituída por uma identificação. Nessa ocasião – na
época de luto e melancolia -, contudo, não apreciamos a significação
plena desse processo e não sabíamos quão comum e típico ele é.”
(Freud, 1923, p. 42)
“Isso nos conduz de volta à origem do ideal do ego; por trás dele
jaz oculta a primeira e mais importante identificação de um indivíduo, a
sua identificação com o pai em sua própria pré-história pessoal. Isso
aparentemente não é, em primeira instância, a consequência ou
resultado de uma catexia do objeto; trata-se de uma identificação direta
e imediata, e se efetua mais primitivamente do que qualquer catexia do
objeto. Mas as escolhas objetais pertencentes ao primeiro período
sexual e relacionadas ao pai e à mãe parecem normalmente encontrar
seu desfecho numa identificação desse tipo, que assim reforçaria a
primária.” (Freud, 1923, p. 45)
44
com outra pessoa, e desempenha um importante papel na história primitiva do
complexo de Édipo, que terá como fim um triângulo familiar que fornece à criança dois
elos, conectando-a separadamente com cada um dos pais, e a confronta com a ligação
entre eles que a exclui: “Um menino mostrará interesse especial pelo pai: gostaria de
crescer como ele, ser como ele e tomar o seu lugar em tudo. Podemos simplesmente
dizer que toma o pai como seu ideal” (Freud, 1921, p. 133)
Freud aborda a distinção entre identificação com o pai e escolha deste como
objeto da catexia:
“No primeiro caso, o pai é o que gostaríamos de ser; no segundo,
o que gostaríamos de ter, ou seja, a distinção depende de o laço se
ligar ao sujeito ou ao objeto do ego. O primeiro tipo de laço, portanto, já
é possível antes que qualquer escolha sexual de objeto tenha sido
feita. (...) Podemos apenas ver que a identificação esforça-se por
moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que
foi tomado como modelo.” (Freud, 1921, p. 134)
45
Em um breve resumo sobre o complexo de Édipo simples masculino, Freud
reforça o caráter ambivalente da identificação:
46
Estas identificações são diferentes daquela que Freud trata em Luto e
Melancolia (1917), trabalho no qual, assim como em Totem e Tabu (1912), a noção de
incorporação oral é salientada: nestes dois trabalhos, Freud mostra o papel na
identificação onde o indivíduo se identifica no modo oral com o objeto perdido, por um
mecanismo de regressão à relação de objeto característica da fase oral (incorporação)
Aqui, as identificações não introduzem no ego o objeto abandonado (apesar de que
este desfecho alternativo possa ocorrer em alguns casos). Portanto, parece que, em
ambos os sexos, a força relativa das disposições sexuais masculina e feminina é o que
determina se o desfecho da situação edipiana será uma identificação com o pai ou com
a mãe. Uma vez que o complexo de Édipo chega a sua dissolução, o que resta, em
seu lugar, é o superego, que não é simplesmente um resíduo das escolhas objetais
primitivas do id, mas também representa uma formação reativa energética contra estas
escolhas: A relação do superego com o ego não diz apenas “você deveria ser como o
seu pai”, mas também compreende a proibição “você não pode ser como o seu pai,
você não pode fazer tudo o que ele faz, certas coisas são prerrogativas dele”:
47
“A diferenciação do superego a partir do ego não é questão de
acaso; ela representa as características mais importantes do
desenvolvimento tanto do indivíduo quanto da espécie; em verdade,
dando expressão permanente à influência dos pais, ela perpetua a
existência dos fatores a que deve sua origem”. (Freud, 1923, p. 47-48)
.
“Nos meninos (...) o complexo não é simplesmente reprimido; é
literalmente feito em pedaços pelo choque da castração ameaçada.
Suas catexias libidinais são abandonadas, dessexualizadas, e, em
parte, sublimadas; seus objetos são incorporados ao ego, onde formam
o núcleo do superego e fornecem a essa nova estrutura suas
qualidades características. Em casos normais, ou melhor em casos
ideais, o complexo de Édipo não existe mais, nem mesmo no
inconsciente; o superego se tornou seu herdeiro. (Freud, 1925, p.285)
Conforme uma criança vai crescendo, o papel de pai passa a ser exercido por
seus professores e outras pessoas colocadas em posição de autoridade; suas
injunções e proibições permanecem poderosas no ideal do ego e continuam, sob a
forma de consciência, a exercer a censura moral. A tensão entre as exigências da
consciência e os desempenhos concretos do ego é experimentada pelo indivíduo como
sentimento de culpa.
48
por Colucci e Fonoff (2008), que partem da análise das diferenças estruturais nas
estórias infantis e da percepção de que as princesas, nos contos de fada, são órfãs de
mãe e que os super-heróis são órfãos do casal parental, levando em conta que o
arranjo defensivo presente nos meninos os leva a fantasiar a morte de ambos os pais,
enquanto as meninas eliminam as rivais femininas, preservando a figura paternal, para
examinar se e como a presença dos mitos compartilhados ajuda a formar os mitos
pessoais de cada criança dentro do universo das relações objetais pré-genitais,
objetais genitais e conflitos edípicos. As autoras observam:
“Inicialmente, notamos que nas estórias infantis os super-heróis
foram criados em lares adotivos, sendo órfãos do casal parental; as
princesas, de seu lado, são órfãs de mãe. Registramos também a
condição de filho único desses personagens, que não podem se
perceber como fruto da união fecunda de pais sexualizados.” (p. 2)
49
princesas se empenham na busca por um grande amor idealizado (tão típica nos
contos de fada), poderia estar relacionada com a orfandade materna feminina e com a
dupla orfandade masculina? As autoras levantam hipótese de que os meninos, para
expiar a culpa de haver produzido simbolicamente a morte dos pais, estariam
condenados a fazer eternas reparações maníacas; enquanto as meninas, ao preservar
o pai, puderam em parte reparar a culpa ao, aparentemente, encontrar um parceiro.
Como no presente trabalho o foco recai sobre os heróis (mais especificamente, sobre
um representante desta classe), podemos adiantar que a questão da reparação ainda
será discutida em maior profundidade, pois acreditamos ser um tema primordial para a
“invenção” do personagem Batman, uma vez que, para estas mesmas autoras, os pais
mortos (ou não existentes) suscitam fantasias de justiça e de reparação, elementos
que podemos encontrar como constituintes deste personagem.
50
Podemos então perceber que, apesar do estado de desamparo ser uma
característica da nossa mais tenra infância (momento este em que a impressão
terrificante do desamparo desperta a necessidade de proteção, que foi proporcionada
pelo pai), é, ainda, uma condição inerente ao ser humano, enquanto sujeito, que nos
acompanhará por toda a vida. A autora considera o desamparo como um estado de
orfandade estrutural, que nos adultos, é manifestada por um estado infantilizado, que
remete àquele que espera, durante a infância, por um pai poderoso, um salvador. Em
outras palavras, o reconhecimento que este desamparo perdura através da vida tornou
necessário o apego a um pai mais poderoso.
Desta forma, o bebê lactante ainda não separa seu ego de um mundo exterior,
como sendo fonte das sensações que lhe invadem. Ele aprende a fazer isso aos
poucos, em resposta a vários estímulos, sendo esta a forma com que o ego se
contrapõe inicialmente um “objeto”, como algo que se acha “fora”. Um grande incentivo
para que isto aconteça, para que o ego se desprenda da massa de sensações, para
que reconheça um “fora”, um mundo exterior, é dado pelas frequentes, variadas e
51
inevitáveis sensações de dor e desprazer, que o princípio do prazer busca eliminar e
evitar. Ou seja, um recém-nascido não distingue seu ego do mundo exterior, mas
aprende a fazer isso à medida que reage aos diversos estímulos do mundo. Neste
momento, aparece a tendência a isolar o ego de tudo o que pode se tornar fonte de
desprazer, a tendência a jogar para fora o desconforto e criar um ego que busca o
prazer, enquanto se defronta com um exterior estranho e ameaçador. Aos poucos, o
ego passa a diferenciar o que é interno (pertencente ao eu) do que é externo (emana
do mundo, aquilo que não é o ego), sendo este o primeiro passo para a instauração do
princípio de realidade, que deve dominar a evolução posterior.
52
organizar, uma vez que o predomínio do princípio de prazer só pode terminar; e a
instauração do princípio de realidade só pode acontecer, uma vez que a criança tenha
atingido um completo desligamento psíquico dos pais, o que atesta a importância de tal
desligamento, pois após a criança ter se servido da proteção paterna na situação de
desamparo estrutural, é preciso voltar a esta condição, mas dessa vez dotada de
recursos para poder se separar psiquicamente (Mesquita, 2008).
O elo inicial do lactante com o seio materno como modelo de felicidade perdida
(Freud apud Mesquita, 2008), que se mantém como referência na escolha dos objetos
amorosos, é o que proporciona à criança motivos para amar as outras pessoas, que a
retiram de seu desamparo e satisfazem as suas necessidades. A angústia infantil aqui
é explicada pela falta da pessoa amada, quando a situação que se apresenta à criança
é a impossibilidade de satisfazer a sua libido. Ou seja, para a criança, a presença de
uma figura de amor faz a angústia desaparecer. Uma vez perdida a possibilidade de tal
presença, o sujeito encontra-se em um estado de desespero, solidão e luto profundos.
53
Freud utiliza-se do mito de Édipo para tecer articulações com a teoria que
confere aos desejos do incesto e do parricídio o fundamento da vida psíquica
(Mesquita, 2008). A formulação da psicanálise é que o desejo é o desejo incestuoso,
logo, a lei tem a função de impedimento, de proibição em relação à realização deste
desejo. A tragédia pessoal vivida por Édipo ganha, para Freud, a partir de verificações
clínicas, o estatuto de desejo inconsciente universal que rege a vida psíquica desde a
mais tenra infância. É o desejo que está em relevo quando falamos de Édipo. O
complexo de Édipo, enquanto evento psíquico, instala um jogo de identificações que
vai colocando a criança, através da alternância e ambivalência de amor e ódio com
relação aos pais, numa posição de sujeito, que a marcará nas suas escolhas sexuais.
A passagem pela cena edípica é singular, e em cada um inscreverá uma marca
subjetiva, também singular. Segundo Mesquita (2008):
O pai é a figura eleita para encarnar essa função de castração, que é um dado
de estrutura; o pai é um representante, um agente da castração, responsável por
representar essa função de limitar o sujeito na sua ilusão de completude, vindo intervir
na relação dual entre mãe-criança. É neste sentido em que o Édipo limita o desejo, o
inscreve num circuito mais simbólico, onde nem tudo é possível, através da exclusão.
Sendo assim, a condição da orfandade, que é manifesta nos super-heróis, mas
também é existente, de alguma forma, em todos os sujeitos, funciona como uma
espécie de pré-condição para que o sujeito possa se desenvolver e evoluir. Para que
um dia seja possível ao sujeito superar sua condição de ser faltante, é preciso que ele
se reconheça, em primeiro lugar, como um ser faltante. O indivíduo necessita ser
inscrito nesta lógica da Lei, a qual a castração representa; lógica na qual ele é
separado da relação simbiótica que tinha com sua mãe, e mesmo transformando esta
relação em modelo para a busca dos futuros objetos de amor, o sujeito encontra-se, a
partir desta separação, sozinho. Somos órfãos na medida em que temos que lidar com
esta falta da completude, este desamparo, essa condição. No caso do super-herói, a
orfandade aparece como uma condição para que o herói busque encontrar seu lugar
no mundo, uma vez que faz com que se crie uma necessidade muito grande de
pertencimento.
54
Birman (2009) aborda a questão da perda e do desamparo a partir de um olhar
bastante interessante: partindo da análise das guerras modernas, do presente século,
o autor propõe uma reflexão psicanalítica do que a guerra provoca naqueles que dela
participam: a perda. Dividindo os envolvidos em vencidos e vencedores, o autor
começa sua exposição afirmando que, diferentemente do que estamos habituados a
pensar, não são apenas os vencidos, os que foram derrotados, que sofrem. Existe
também a dor dos vencedores, que não saem ilesos, triunfantes, livres de qualquer
experiência de dor ou de perda. Existe, portanto, tanto a dor dos vencidos quanto a dos
vencedores. O autor afirma que os destinos da dor não serão os mesmos, mas ela
estará presente dos dois campos, sendo que cada lado deverá viver essa experiência
diferencial da dor de uma maneira particular.
Assim sendo, o autor afirma que o primeiro problema, diante desta situação
difícil, é a afirmação de que esse nível devastador da dor, para o sujeito, tem grandes
possibilidades de impedir que o mesmo possa compreender um efetivo trabalho de
luto. A marca inicial que se faz presente na dor da guerra é a perda, na qual o trabalho
de luto é "no limite quase impossível". Neste momento o autor utiliza-se do conceito de
Freud em Luto e Melancolia, que é um trabalho datado do ano de 1915, época da
primeira guerra mundial, considerada até aquele momento a mais sangrenta que o
ocidente já havia conhecido. Nesse trabalho, Freud aborda a diferença entre luto e
melancolia, tendo como plano de fundo e contexto a experiência devastadora de
violência e crueldade, que representou a experiência militar da primeira guerra
mundial. Freud propõe que, quando nós perdemos algo, em qualquer circunstância,
fase da vida ou contexto (e estamos, realmente, sempre perdendo coisas), "temos que
fazer um difícil e meticuloso trabalho psíquico de elaboração dessa perda para nos
55
entendermos bem a respeito daquilo que estamos perdendo" (p. 117). Essa perda
pode ser de algo real ou ideal; Birman afirma que não importa muito, pois em ambos
esses registros, o mesmo trabalho de luto se impõe no horizonte subjetivo.
Por trabalho de luto, Freud (1915) entende um trabalho psíquico que não se
realiza pontualmente, mas em diferentes temporalidades e momentos, e que tem por
fundamento o fato de que:
"Precisamos tentar, de alguma maneira, realizar um acerto de
contas com o que perdemos. Esse acerto de contas passa por nossas
faltas com relação aos que morreram. Ou seja, nos indagamos sobre
as nossas culpas em relação aos que se foram” (Birman, 2009, p. 117)
Além disso, é preciso salientar que todo o trabalho de luto tem sempre como
sombra as nossas faltas e culpas em relação aos que se foram. Estas culpas não são
necessariamente reais, mas mesmo assim se impõem, imaginária e eticamente, no
horizonte psíquico do sujeito. Além de lidar com a falta do objeto, o sujeito ainda
precisa lidar com seus próprios sentimentos de culpa, de que seria possível, para este
sujeito, ter feito algo para impedir a perda, seja o órfão acreditando que a morte de
seus pais tem a ver com algo que ele fez ou deixou de fazer, seja o vencido
acreditando que poderia ter feito algo de diferente, que tornasse possível para ele para
ser o vencedor.
Freud (1915) descreve o trabalho de luto como algo que se passa em diferentes
níveis. O primeiro deles é a experiência psíquica por meio da qual o sujeito quer
colocar o morto no seu corpo, afirma que o morto é ele mesmo e faz parte dele (é o
que denominamos "incorporação"). Ou seja, nosso primeiro movimento psíquico é o de
tentar canibalizar o morto (o sujeito procura incorporar, colocar no seu corpo a figura
que perdeu, para tentar então se transformar no morto). Este seria o primeiro momento
de qualquer processo de luto: para não perder o objeto, o sujeito busca mantê-lo como
parte de si mesmo. Porém, essa pretendida manutenção do objeto não se realiza, pois
o sujeito não consegue acreditar que ele passou a ser o morto, e desloca a sua
manutenção para o plano da imagem. Neste momento, tenta-se reter algo do objeto,
para continuar sendo ele. Ou seja, o sujeito procura se marcar com pequenos traços e
imagens do objeto perdido, retirando o objeto do mundo e colocando dentro do seu
psiquismo. É o que Freud denomina "introjeção". Mas, segundo Birman (2009),
“também é um processo ineficiente, porque as imagens são muito frágeis e débeis, se
apagam com muita facilidade e acabam por desaparecer” (p. 118)
56
Para Freud (1915), a forma mais eficaz de conclusão do trabalho de luto é
aquilo que se denomina identificação; o sujeito fica com um traço simbólico do objeto
no seu ego, esta é a maneira de carregar eternamente o traço do objeto. Esse traço
que constitui a identificação é marcado pela experiência singular do sujeito com aquilo
que ele perdeu (um determinado traço que marcou a relação do sujeito com o outro).
Ao nos identificarmos com o objeto, nós não o somos, e sabemos disso, mas temos
indicustivelmente algo dele. Birman ainda fala que o trabalho de luto se realiza neste
deslocamento, entre querer ser o objeto, para querer ter algo dele, como uma marca
simbólica. Desta forma, o sujeito pode efetivamente se desligar do objeto perdido.
Quando Freud fala do trabalho de luto, que passa necessariamente pelas operações
de incorporação, introjeção e identificação, podemos inferir que o ego nada mais seria
do que uma espécie de cemitério de objetos perdidos, um conjunto de marcas das
coisas que perdemos: “é como se o nosso ego fosse resultado de uma série de rituais
funerários, resíduos simbólicos das perdas que nos marcam ao longo da existência”
(Birman, 2009, p. 119)
Porém, o autor afirma que, diante a dor violenta provocada pela perda na
guerra, nem sempre é possível ao sujeito realizar tal trabalho de luto, isso porque ele
não consegue perder o objeto, e este é o problema crucial para o autor. Quando a
perda é realmente muito grande, o trabalho de luto torna-se algo efetivamente
impossível. Então, o movimento primordial da subjetividade aqui é colar-se ao objeto,
permanecendo na incorporação e na introjeção, cultuando o objeto eternamente,
“porque é como se (o sujeito) não pudesse existir sem aquele laço social e afetivo. O
sujeito empreende o culto ao morto, pelo qual este ao mesmo tempo não é jamais
enterrado” (Birman, 2009, p. 119). O autor destaca, assim, um ponto crucial que define
a condição de melancolia; quem não pode fazer o trabalho de luto cai em uma
condição melancólica, onde o sujeito se apega ao objeto como se ele fosse a única
coisa que restasse. Desta forma, dor e perda violentas da situação de guerra
caracterizam um luto impossível, onde a dor maior se materializa como melancolia. A
elaboração do trabalho de luto não se processa nessa situação limite, porque o sujeito
se vê diante de uma multiplicidade e diversidade de perdas, que tornam o trabalho
elaborativo quase impossível. Para elaborar este trabalho de luto, não podemos perder
tudo, mas apenas algumas coisas, para que, nos fundando no que nos resta,
realizarmos um trabalho que seja efetivamente reconstrutivo. Se o sujeito perde tudo,
ele não tem aonde se apoiar para elaborar o trabalho de luto, pois a crueldade da
perda se evidencia de maneira brutal.
57
A questão da perda, quando não trabalhada através do luto, também se
manifesta ao sujeito a partir da perda de sua auto-estima: o vencido se apresenta,
diante de tudo o que perdeu, como se não fosse mais nada. E também há a perda da
capacidade de desejar, uma vez que o sujeito perde tudo aquilo que lhe dava razão
para viver. Ou seja, com a melancolização, decorrente da impossibilidade da
elaboração da perda, o sujeito não pode mais perder nada, pois já perdeu demais, e o
que também se apaga é a possibilidade de desejar ainda alguma outra coisa. Podemos
acrescentar nesta soma ainda a perda do sentimento de honra: o indivíduo se sente
desonrado porque não defendeu seus objetos de amor; o que está intimamente
relacionada com a culpabilização que o sujeito se impõe.
58
dos pais, necessariamente faz parte da constituição, no sujeito, das instâncias ideais
de ideal de ego e ego ideal.
59
ideal, não há este projeto futuro, enquanto que o ideal de ego coloca justamente uma
promessa para o futuro: não sou hoje, mas um dia posso tentar chegar a sê-lo, o que
está relacionado com o processo identificatório, com as novas aquisições e com a
recomposição da auto-estima:“quanto mais me pareço a esse que quero ser, melhor
me sinto, mas nunca chego a sê-lo totalmente” (Hornsntein, 1989 p. 177)
Outros autores afirmam que a diferenciação entre ideal de ego e ego ideal está
em outros aspectos. Porém, vamos privilegiar a diferenciação proposta por Hornstein
porém sem perder de vista que outras poderiam ser feitas. Enquanto que o eu ideal
tem relação a uma paralisia, com um sujeito que fica fascinado como que é, ou com
suas conquistas, de modo que não há uma buscar por algo que torne possível essa
satisfação no futuro (de modo que ela já foi obtida e mantida no tempo presente), o
ideal do ego sempre marca um caminho a seguir, equivalente ao que, no campo do
desejo, seria a diferença entre o prazer que desejamos, e o que conseguimos obter. A
existência de um projeto de vida, que contém não aquilo que desejamos obter, mas
também o que desejamos ser, é de fundamental importância para nós, uma vez que tal
projeto nos impele à ação, mostra que caminho devemos seguir para que possamos
atingir algum grau de satisfação com nós mesmos, e com a vida.
Uma vez esboçada tal distinção entre as duas instâncias (o ego ideal e o ideal
de ego), precisamos esclarecer que o conceito do qual nos utilizaremos na presente
análise seria, então o ideal de ego, e não o ego ideal. Aqui, gostaríamos de abordar
justamente esta dimensão ideal, que inclui no sujeito um projeto futuro, do indivíduo
que ele buscará tornar-se.
60
Não podemos fornecer respostas, apenas formular hipóteses. E dentre as
possíveis linhas de raciocínio, uma chama a atenção: Colucci e Fonoff (2008) afirmam
que os pais, por estarem mortos, não ameaçam a imagem idealizada da criança.
Estando mortos, os pais estão protegidos da falha, são infalíveis aos olhos do filho,
passando a ocupar aquela posição de algo perfeito, inatingível, intocável. A hipótese
que apresentamos aqui é de que o ideal de ego do herói, assim como o seu superego,
seriam altamente elevados e desenvolvidos, justamente por terem se construído
através de processos identificatórios com estas instâncias parentais, que, após a
morte, se tornam protegidas, idealizadas, perfeitas e inatingíveis. Como nosso foco de
análise será a figura de um super-herói moderno, podemos dizer que é exatamente
isso que o super-herói se esforça para ser para a sociedade: uma figura poderosa e
infalível, uma proteção constante e um modelo moral. Caso o herói falhe em algum
desses projetos de vida, tal falha gera fortes sentimentos de culpa.
61
É impossível falar acerca das histórias em quadrinhos com temática de super-
heróis sem falar sobre a DC Comics. Juntamente com a Marvel, sua rival histórica, são
as editoras de histórias em quadrinhos e mídia relacionada que detém a propriedade
intelectual de praticamente todos os super-heróis mais conhecidos, e são também as
duas empresas responsáveis pela sua criação e popularização. A DC Comics é
responsável pela criação e publicação das histórias sobre do Super-Homem, Batman,
Mulher-Maravilha, Lanterna Verde, Flash, Aquaman, entre outros. Já a Marvel é
responsável pela publicação de histórias como Homem-Aranha, Quarteto
Fantástico, Hulk, Capitão América, Demolidor, Thor, Homem de Ferro, Surfista
Prateado, dentre outros. Juntas, estas duas companhias revolucionaram o de
entretenimento de seu país de origem, os Estados Unidos, e a indústria de histórias
em quadrinhos. Com o objetivo de simplificar a compreensão sobre como se deu essa
gradativa evolução (tanto nos enredos quando nos gráficos das revistas), os fãs de
histórias em quadrinhos dividem o desenvolvimento em eras.
62
5.1. O universo de Batman
Por ser um super-herói sem super poderes, e talvez por isso, com motivações
mais complexas (ao contrário do Homem aranha, por exemplo, Batman não tem um
super poder, para, partindo desta situação, usá-lo para lutar contra o mal), Batman se
destaca dentre seus quase semelhantes, os demais super-heróis modernos. Suas
origens, aspirações e motivações, as quais buscamos compreender, nos pareceram
dignas de aprofundamento. Para Rocha, em seu texto “A Melancolia de um Cavaleiro
das Trevas” (2012) Quantos outros ditos heróis encontramos por aí, donos desse
pragmatismo, desses tormentos, desse desespero tão comum a nós mesmos, homens
dos grandes centros urbanos?” (p. 4)
63
chegando a ficar perto da morte várias vezes para evitar mostrar suas habilidades em
público como Bruce Wayne.
Durante a década de 80, uma nova demanda de mercado, que foi gerada
principalmente por uma mudança da mentalidade dos leitores de quadrinhos, que
não se contentavam mais com aquelas histórias que até então vigoravam (com uma
temática mais alegre, leve e infantilizada), os editores e roteiristas da DC Comics
executam uma grande mudança na concepção do personagem, caracterizando uma
espécie de “renascença” em sua linguagem visual de origem, os quadrinhos, uma vez
que foi somente nos anos 80, considerada a fase de ouro do personagem, que
aconteceu uma profunda modificação na concepção de Batman. Os roteiristas
passaram a dar ênfase às características psicológicas sombrias e patológicas que
acometiam o herói (Rocha, 2012). Ou seja, só no final do século XX, Batman abraçou
um lado mais sombrio e realístico, enquanto escritores e roteiristas, tanto de
quadrinhos quanto de longas-metragens, começaram a adicionar camadas de dramas
pessoais e conflitos psicológicos, na subjetividade do herói. Começava a existir então,
este chamado “lado mais sombrio” de Batman, no qual poderiam ser explorados
64
aspectos de sua personalidade, e correlacioná-los com os traumas, tão marcantes para
sua constituição psíquica. Dito de outra forma, o funcionamento do sujeito passa ser
passível de observação; e para nós, porque não dizer, de análise.
Foi nesta época que surgiram três das maiores histórias em quadrinhos norte-
americanas, e segundo alguns especialistas, do mundo em todos os tempos: Batman:
O Cavaleiro das Trevas (1986), de Frank Miller, Batman: A Piada Mortal (1987), de
Alan Moore e Brian Bolland, e Batman: Asilo Arkham (1989) de Grant Morrison e Dave
Mckean. A década de 80 definitivamente marca o personagem com uma série de
histórias derradeiras, e que até hoje tem sido usadas como base para os novos
roteiristas acerca de como deve ser o personagem e seu universo: as histórias em
quadrinhos que inspiraram os três mais recentes (sendo que nossa análise mais
profunda será feita a respeito do filme primeiro filme desta série, Batman Begins),
foram concebidas neste contexto.
65
Domics de novembro de 1939, e foi incorporada, sendo contada e recontada nas
versões subsequentes. Embora a história de Batman seja contada a partir deste evento
traumático, o assassinato de seus pais quando ainda era criança, este acontecimento
acaba por tornar-se a maior força do personagem. Podemos até pensar que, não fosse
o trauma, provavelmente “o homem-morcego”, o grande herói, não existiria, uma vez
tudo nos leva a crer que foi a partir deste trágico acontecimento que Bruce, ainda uma
criança, se sentiu tomado por um desejo de vingança, que acaba se transformando na
luta por justiça e na defesa dos inocentes, como será discutido posteriormente
.
Após obter conhecimentos sobre o “mal”, ser treinado psicológica e fisicamente
em variadas artes marciais, Bruce criou um personagem, baseado em um objeto que o
amedrontava quando criança: morcegos. Ele queria que os bandidos compartilhassem
do mesmo temor. E assim, passou a lutar contra o crime. Das HQs, retiramos a
seguinte passagem:
“Que aparência adotar? - Bruce se pergunta. "Os criminosos são
supersticiosos e facilmente amedrontáveis, e meu disfarce deve fazê-los
tremer de terror. Tenho que ser uma criatura da noite. Escura, terrível..."
Como por um milagre, um morcego perdido surge pela janela da
mansão: "Um morcego ! É um presságio !... Eu me tornarei um morcego !"
E assim nasceu a lenda.”
66
em seu rosto, em sua máscara, porém, tendo uma finalidade benéfica para a
sociedade: quendo causar todo este medo e terror, mas apenas para “quem merece”,
os vilões e bandidos, preservando a população em geral, que sofre pelas ações dos
“maus”.
67
de toda a técnica adquirida, Bruce Wayne se torna uma figura completamente diferente
tanto da criança indefesa que viu seus pais serem mortos, quanto do milionário
aparentemente arrogante e sem maiores preocupações: mais do que um ser humano
com recursos tecnológicos e conhecimentos em artes marciais, ele aprende a dar um
destino aos seus sentimentos destrutivos, como o medo e a raiva. A partir deste
momento, tais sentimentos e pulsões agressivas não ficarão mais contidos, nem se
voltarão contra o próprio ego; mas serão dirigidos contra o “mal” que devasta sua
cidade, fazendo cada vez mais vítimas inocentes, através dos complexos sistemas de
corrupção que a dominam, envolvendo máfia, polícia e políticos locais.
68
características sombrias do personagem. Neste momento, ele ganha um interlocutor e
não é mais o vingador solitário do início. A presença de um “amigo” o torna mais
humano, pois agora ele pode dar voz aos seus sentimentos de justiça e vingança,
pode nomeá-los, esclarecê-los de uma maneira mais consciente e menos intuitiva,
pois é no diálogo, na conversa com o outro, que nós nos construímos e nos
reconhecemos como sujeitos.
Quando gostamos de algo, é porque este objeto (ou algum aspecto dele) fala a
nossa subjetividade, faz sentido para nós de alguma forma. Nós gostamos de algo
porque nos identificamos com este algo, porque vemos neste algo (ou seja, neste
69
outro) aspectos que nós gostamos em nós mesmos (Corso, 2006). Assim como
odiamos o outro quando vemos nele aspectos que nós odiamos em nós mesmos. Se o
público gosta tanto de Batman, é porque existe aí algo da identificação, e devemos
lembrar que identificação é sempre inconsciente. Porém, além de ser um super-herói
mais “humanamente possível’ de existir no mundo como nós o conhecemos, o fato
dele ter sido um sujeito ativo na obtenção de seu poder também é muito relevante.
Além da importância de se identificar com uma figura super-poderosa, que já foi
discutida anteriormente, a importância de se identificar com uma figura que se torna
poderosa por iniciativa e méritos próprios, depois de ocupar uma posição inteiramente
fragilizada e desamparada (a criança que perde os pais) é ainda maior, pois mostra ao
sujeito que as características desejáveis para ocupar uma posição de onipotência, tão
necessária em variados momentos da vida, podem ser obtidas a partir de uma decisão
consciente e de esforço do próprio sujeito. Ou seja, a mensagem que é passada é a de
que cada um pode ser um sujeito ativo, atuante, em seu próprio desenvolvimento e
amadurecimento, buscando no mundo, no tão temido desconhecido, as ferramentas
necessárias para superar a angústia e o medo, assim como dar um destino aos
sentimentos agressivos e destrutivos. Esta mensagem tem uma força muito grande,
pois fala a todos os sujeitos humanos, uma vez que a questão do que fazer com
nossos aspectos negativos, que destino dar a eles de modo que sejam o menos
prejudiciais possíveis, nos assola por toda a vida. Quando encontramos uma narrativa
que nos conta de uma possibilidade, uma saída inovadora para este conflito primordial,
ficamos diante de novas possíveis soluções para nossos problemas, tal qual a criança
passa a conseguir nomear e distinguir seus complexos sentimentos, ao ler um conto de
fadas, por exemplo, pois encontra elementos para tecer sua subjetividade, compor seu
mundo interno através de palavras que lhe sejam adequadas para nomear seus
objetos internos.
70
Unidos estavam em guerra contra o Japão. Este seriado teve quinze capítulos, foi
dirigido por Lambert Hillyer e foi produzido pela Columbia Pictures.
71
Em 1994, a série dá origem à animação de longa metragem “Batman: A
Máscara do Fantasma”, que retrata a origem de Batman e do vilão Coringa. Todos os
aspectos positivos existentes no homem-morcego foram colocados neste filme: um
romance que desaba, o morcego enfrentando mafiosos e o seu passado, o Coringa,
ótimas cenas de ação, revelações incríveis, o clima sombrio. Para muitos, esta
animação e o filme “Batman Begins” são as melhores adaptações das histórias em
quadrinhos de Batman para outras formas de mídia, já produzidas.
72
qualidade das adaptações das HQs para o cinema) e foi produzido por Tim Burton.
Batman & Robin (1997) foi dirigido novamente por Schumacher, sendo a sequência
de “Batman Eternamente” (1995). É considerado pela critica especializada como o pior
longa da série do homem-morcego, sendo alvo de muitas críticas negativas e
recebendo onze indicações ao Framboesa de Ouro. (premiação que elege os piores
filmes) O público parece ter concordado com a opinião dos especialistas, uma vez que
a arrecadação nos Estados Unidos (107 milhões de dólares) ficou aquém do
orçamento usado para a produção da película (125 milhões).
73
facilitando a identificação do público com o personagem. Assim sendo, optou-se por
abordar de maneira mais extensa o primeiro filme da trilogia dirigida por Christopher
Nolan, Batman Begins, de 2005, que, além dos motivos já citados, nos dá a
oportunidade de acompanhar mais estreitamente a infância de Bruce, algo que não
havia sido mostrado nas telas até então. Como acreditamos que o último filme pode
nos fornecer mais um argumento em favor da hipótese que iremos desenvolver a
respeito da origem do personagem, “O cavaleiro das trevas ressurge”, de 2012, será
abordado no presente trabalho, em suas Considerações Finais.
74
avanços e retrocessos. O filme, ao mostrar a evolução do personagem,
parece deixar um claro recado ao telespectador: 'você precisa cair para
aprender a se levantar'. Após cada batalha travada, o herói, em
construção, vai aprimorando os seus artefatos tecnológicos, mudando
as suas estratégias, melhorando a sua performance”. (Idem)
O modo como Bruce vai incorporando elementos que o auxiliam na luta contra
os bandidos, culminando no Batman que todos conhecem, é minuciosamente
explicado. Essa estrutura faz de Batman Begins um filme semelhante ao primeiro
Homem-Aranha. Não há pressa para entregar à plateia o herói lutando contra a escória
de Gotham. Antes de conhecermos o Batman, somos obrigados a conhecer Bruce
Wayne. Assim como em Homem-Aranha conhecemos Peter Parker antes de conhecer
sua identidade heroica.
75
dois filmes seguintes, de Joel Schumacher (entre tantos outros): mostrar a história
como completamente distante da chamada “vida real”, com o próprio personagem
principal como um “homem morcego”, sobrevoando os telhados da cidade, com
acessórios estranhos e uniforme idem, cuja origem e motivações são desconhecidas e
impossíveis de ser apreendidas pelo público.
76
Begins é o primeiro filme a retratar o assassinato dos pais de Bruce Wayne como
realmente foi desenhado nos quadrinhos (e para os apaixonados fãs das HQs, cada
semelhança, seja ela crucial para a história ou um simples detalhe, só aumenta a
qualidade do filme). Segundo Gonçalves (2012):
77
Durante o treinamento, o personagem de Batman começa a ser moldado. É aqui
que Bruce percebe que a arte da guerra não é apenas o momento do confronto, mas
sim o que o antecede e o que o finaliza. Grande parte da abordagem “pé no chão”
dada por Nolan ao personagem tem sua raiz nesta primeira parte da aventura. Tudo ali
é construído sem pressa. Bruce, vagando pelo mundo em busca de um rumo para sua
vida e uma maneira de superar seu trauma, chega a um templo comandado por uma
das personificações de Ra's al Ghul (Ken Watanabe). Lá, auxiliado pelo misterioso
Henri Ducard (Liam Neeson), Bruce aprende várias modalidades de luta e adquire os
conhecimentos necessários para se lançar em sua busca por justiça. Após seu exílio,
Bruce descobre que declarado morto (afinal, ficou desaparecido por sete anos), e volta
para Gotham com a ideia de combater a corrupção e o crime que se apossaram da
cidade. Deste ponto em diante, o diretor Christopher Nolan e o roteirista David S.
Goyer começam a preencher as lacunas da história do herói.
Já que a ideia era ser realista, justifica-se cada aspecto do morcego, ao mostrar
como surgiu a roupa do Batman, seu batmóvel, a batcaverna, e por ai em diante, o que
se configura em uma interessante contribuição a história do Batman, seja ela aquela
contada nas histórias em quadrinhos ou a que foi mostrada nos filmes anteriores.
Afinal, também é relevante, para a construção do personagem, a compreensão de
como todo aquele aparato tecnológico vai parar nas mãos de Bruce: justamente por ter
o sobrenome que tem, ele é dono de praticamente toda a cidade. Inclusive do setor de
“ciências aplicadas” das empresas Wayne, antes um departamento morto, repleto de
projetos e protótipos que jamais entraram em produção. Tudo é, então, justificado: o
traje foi concebido para ser do exército, mas era caro demais (“aparentemente a vida
de um soldado não vale 300 mil dólares”, como afirma o responsável pelo setor, Fox
(Morgan Freeman), o carro era usado na construção de pontes, e assim por diante. É
interessante notar queaquilo que torna Batman concretamente possível é obtido, por
Bruce, como uma espécie de herança paterna (uma vez que é seu sobrenome e a
empresa fundada por seu pai que possibilitam à Bruce a obtenção dos equipamentos
que lhe possibilitam lutar contra o crime com uma série de recursos a mais, como o
gancho com o qual Batman escala, e sua roupa especial, que o protege até de golpes
de faca). A respeito da roupa do super-heroi, Colucci e Fonoff (2008) afirmam:
“Fato comum a todos (os super heróis) é que possuem uma roupa
especial que os torna invencíveis e semideuses, uma vez que com ela
adquirirem poderes extra-humanos. Essa roupa, que funciona como uma
segunda pele e denuncia a onipotência, esconde a real condição do super-
herói: um ser aparentemente normal.” (p. 5)
78
A questão da utilização da tecnologia como maneira de transcender os limites
humanos pode ser exemplificada através da cena que mostra a primeira missão de
Bruce como um super-herói, ainda sem a roupa e a máscara características de
Batman: é totalmente atrapalhada; ele salta de um telhado sem nenhuma classe, caí e
se machuca. Inclusive, após esta que é chamada por Alfred (Michel Caine) de sua
“primeira exibição”, são mostrados os ferimentos em Bruce, nos lembrando que se
trata de um ser humano, alguém de carne e osso, que se machuca (assim como nós
mesmos), e não uma figura engrandecida, imune aos ferimentos causados por lutas e
quedas. A partir deste acontecimento, o personagem vai em busca de mais
equipamentos, para evitar quedas bruscas como esta. Aqui, o personagem está se
aperfeiçoando, descobrindo seus limites físicos e indo além deles, através da
tecnologia.
79
Alfred: “Eu me importo porque um bom homem me tornou responsável por aquilo
que ele tinha de mais precioso no mundo.”
Outra cena que deixa claro o lugar de Alfred enquanto uma figura paterna
substituta para Bruce acontece já na parte final do filme, quando a Liga das Sombras
provoca um incêndio na mansão, e Alfred salva Bruce da morte, o ajudando a sair do
local. Indo em direção à caverna, Bruce lamenta-se: “O que foi q eu fiz, Alfred? Tudo o
que minha família, que meu pai construiu...”. Alfred surge como uma figura de consolo
80
e proteção: “O legado dos Wayne vai além de tijolos e argamassa”. Bruce continua se
lamentando, consciente de seu fracasso como super herói neste momento “Eu queria
salvar Gotham... Eu fracassei”. Alfred lembra da frase dita pelo pai de Bruce, tão
importante para a construção do personagem (conforme abordaremos com maior
profundidade mais adiante): “por que caímos, senhor? Para aprendermos a nos
levantar”. Esta frase, justamente por evocar este olhar paterno, o verdadeiro “legado
dos Wayne, consegue trazer à Bruce a esperança necessária para continuar lutando
contra a Liga das Sombras, no momento em que tudo parece estar perdido. Como
forma de obter a última palavra de consolo necessária, antes de voltar à luta, Bruce
questiona o mordomo: “Não desistiu de mim ainda?”, e ele responde “Nunca”.
81
Esta fala marca toda a impossibilidade do romance se concretizar; pelo menos enquanto
Bruce estiver nesta luta por justiça, o relacionamento romântico não será possível.
Outro aspecto que aproxima Batman Begins das HQs é o personagem Jim
Gordon, vivido pelo ator Gary Oldman, aqui ainda um mero detetive que um dia se
tornará comissário. O Gordon de Oldman é fiel àquele retratado em “Batman - Ano Um”,
festejada mini-série lançada na década de 80, escrita por Frank Miller. Esta série em
história em quadrinho, aliás, é fonte de inspiração para muitos dos aspectos do filme,
sejam eles soluções visuais para determinadas cenas (como a queda no poço do
pequeno Bruce), personagens (como Gordon) e até o roteiro. A relação entre os
detetives (o sem máscara e o mascarado) é claramente inspirada nesta obra. Gordon é
um dos poucos policiais que não se deixaram ser comprados, ou subornados, e sabe
como isso é raro na cidade: diante de seus colegas policiais que aceitaram subornos,
Gordon reclama: “em uma cidade tão corrupta, para quem eu iria contar?”
É para conversar com Gordon que Batman faz sua primeira aparição, porém sem
o traje e a máscara. Nesta cena, Batman o elogia: “você é um bom tira. Um dos poucos”,
e o questiona do porquê os policiais não prendem Falcone, que traz carregamentos de
drogas toda semana, e Gordon responde que o mafioso subornou as pessoas certas.
Em contra partida, Gordon o questiona se apenas um único homem está presente nesta
espécie de resistência contra o crime, que Batman lhe apresenta. Ele responde que
“agora somos dois”, já deixando claro que Gordon é um de seus únicos aliados, por ser,
assim como ele, incorruptível.
O filme começa com Bruce preso em Cingapura, após ser pego roubando no
país,l ao lado de uma quadrilha. Após sair da prisão, Bruce Wayne segue para
aprender a domar seus medos na já citada Liga das Sombras. Isso é mostrado através
de Bruce Wayne (Christian Bale) já adulto, em busca de treinamento mental e físico
para lutar contra a criminalidade. É interessante notar o quanto a conduta posterior de
Batman reflete o que foi aprendido em seu treinamento, como o estar atento ao seu
redor, e o aprendizado sobre utilizar-se de artimanhas, não necessariamente como
armas, mas também para confundir o oponente. Também lhe é ensinada a importância
de “ser invisível” aos olhos do adversário. O tempo narrativo aqui utilizado outro segue
a infância de Wayne, marcada por traumas que ele carregaria pelo resto da vida.
82
“Acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua
intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a
ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos
duradouros que provoca na organização psíquica.” (p. 522)
83
psicológicos para lidar com o mal. Ou seja, enquanto criança, o contato com este
subterrâneo foi violento e Bruce se assustou, mas quando adulto, ao escolher retornar
ao lugar onde havia caído anos antes, Bruce encontra os recursos dos quais ele
precisava; transforma este subterrâneo em um lugar de força, de potência; mas
também de proteção (afinal, é o seu esconderijo secreto).
A respeito deste resgate efetuado pelo pai, do qual o autor fala, devemos ter
em mente que se trata de um resgate realizado por uma figura viril, potente, protetora
e masculina (ou seja, fálica), que afirma ao filho que os morcegos o atacaram, pois
estavam com medo dele. Isto causa estranhamento em Bruce, e o pai diz que todas as
criaturas têm medo. Bruce indaga: “até as assustadoras?”. E seu pai responde que
especialmente elas (o que é interessante quando pensamos que o que este garotinho
se torna, quando adulto, é justamente uma figura assustadora; mas, antes de o ser, foi
uma criança justamente tomada pelo medo).Seu pai também o tranquiliza, afirmando
que “vai ficar tudo bem” e levando o garoto a refletir: “Por que nós caímos? Para
aprendermos a nos levantar”. Esta frase, dita pelo seu pai, dá a tônica da história e do
personagem que Bruce, que naquele momento ainda é uma criança, no conforto
daquilo que lhe é familiar e sob a proteção paterna, irá se tornar depois de adulto.
84
Bruce não saiu do lugar, até que seu pai o viesse resgatar; o personagem agora tem
condições psíquicas, primeiramente para encarar os morcegos, e em segundo lugar,
para explorar este espaço desconhecido, escuro e subterrâneo, que pode ser
entendido como uma metáfora de seu próprio inconsciente, como dissermos
anteriormente. Sobre esta idéia, é interessante citar a justificativa que Bruce dá a Fox
para poder pegar o traje emprestado do setor de Ciências Aplicadas da empresa
Wayne: dizendo que vai fazer espeleologia (exploração de cavernas). Se entendermos
a caverna como seu próprio inconsciente, podemos compreender a ação de Batman,
utilizando-se desta roupa, como sendo uma exploração do ambiente subterrâneo,
precisamente como este lugar seguro e de potência.
Quando criança, o local onde Bruce caiu era um simples poço. Ao voltar lá
adulto, e com seu ego suficientemente fortalecido, é um ambiente muito maior, uma
caverna; existe essa mudança de nome empregado para designar o mesmo lugar;
porém, a mudança não ocorreu no lugar, mas sim em Bruce: agora, ele tem recursos
psíquicos para explorar este ambiente e fazer dele um local de força, como dissemos
anteriormente. A importância deste espaço pode ser ilustrada através de um diálogo
que acontece entre Bruce e Alfred, no final do filme, em que Bruce, após ter a mansão
Wayne consumida por um grande incêndio (causado pela liga das sombras), afirma
que vai reconstruí-la “exatamente como era, tijolo por tijolo”. Alfred sugere que a
mansão não seja reconstruída exatamente como era, pois esta seria uma boa
oportunidade para “reforçar os alicerces da ala sudoeste”, que é precisamente onde
fica localizada a batcaverna.
85
ansiedade. Nervoso, quase que como tendo um ataque de pânico, Bruce pergunta para
seu pai se eles podem sair do local. O pai concorda, levando a esposa e o filho para o
lado de fora. É neste momento em que um assaltante se aproxima, e após uma
tentativa de roubo, se assusta e atira no casal, tendo Bruce por testemunha. Este
acontecimento é descrito por Gonçalves (2012) como “Um beco escuro, duas balas e o
nascimento de um super-herói”, tal qual sua importância para a construção do
personagem. Importância esta que será discutida a seguir.
É possível pensar que o que aconteceu neste lugar tenha se configurado como
um grande trauma para a criança, desencadeando fortes sentimentos e necessidades
de reparação, além da culpa, uma vez que a família sai do teatro porque Bruce não
está se sentindo bem, e é do lado de fora onde o crime ocorre. Devemos lembrar que o
mal-estar de Bruce, que leva a família toda a sair do teatro e ir para o local onde o
casal seria morto, é causado pelo medo que a criança tem. Medo este que teve origem
quando Bruce cai no poço, mas que é reativado quando ele associa a cena assistida
no teatro com a cena aterrorizante e paralisante que ele viveu quando caiu. Não
causaria estranhamento pensar que, para seu aparelho psíquico, o registro que esta
situação possa ter deixado é de que foi seu medo que causou sua necessidade de sair,
e foi por ter saído do teatro que seus pais foram mortos, logo, foi seu medo que causou
a morte de seu pai e sua mãe. Neste momento, Bruce se confronta com uma das
maiores tragédias pelas quais uma criança pode se ver diante; bem cedo, o
personagem aprende que a segurança e a proteção são temporárias, fragilmente
efêmeras. Há então a culpa, o sentir-se responsável pela morte dos pais, uma vez que
foi o seu medo que fez com que saíssem da peça.
86
pessoas queridas, duas figuras de amor e proteção, as quais o casal parental
representa, não há como reparar isto completamente: nada que Bruce ou Batman façam
poderá trazer seus pais de volta. Sendo assim, esta reparação buscada por Batman não
termina, pois sua meta é inatingível. Podemos notar o desejo de vingança como sendo
uma resposta à impossibilidade da reparação; e, consequentemente, Bruce nunca se
recuperou deste trauma, seu trabalho de luto não é finalizado, o que poderia vir a se
configurar um quadro de melancolia, onde sua libido só encontra alívio (mesmo que
efêmero) na vingança contra o tipo criminoso, o “objeto” gerador da perda. Rocha (2012)
afirma que aquilo Bruce Wayne/Batman deseja, mais do que qualquer outra coisa, se
trata de uma impossibilidade, o que gerará nele a obsessão e melancolia. Para este
autor: “Apesar de seus discursos e esforços contrários, em seu íntimo Batman admite a
destrutividade inerente a cada ser, desenvolvendo dentro de si mesmo essa espécie de
pulsão de morte.” (p.2)
87
recusa a ficar no quarto de seu pai. Quando o mordomo Alfred afirma que esta casa é
dele, Bruce responde, de uma maneira um tanto quanto agressiva, que é a casa é do
seu pai, a classificando como um “mausoléu”. Esta cena mostra o quanto Bruce ainda
estava ligado à ideia infantil de desamparo, vendo a casa, que abrigou seis gerações
de sua família, com um desdém raivoso, como um símbolo de sua perda, símbolo este
carregado de ressentimento e dor.
Acreditamos que, neste momento de sua vida, ocorrem dois importantes fatos,
que transformam a trajetória do personagem. O primeiro deles se refere ao julgamento
do homem responsável pelo assassinato de seus pais, Chill (Richard Brake) que
possui informações a respeito do grande mafioso Falcone (Tom Wilkinson) e aceitou
depor em troca da liberdade condicional. Bruce fica inconformado com a soltura do
assassino; afirma que a justiça comum não é suficiente. No dia da audiência, Bruce
possui uma arma, e caminha em direção a Chill, provavelmente prestes a atirar nele.
Porém, ele é baleado, por ordem de Falcone, antes que Bruce pudesse ter a chance
de fazer o mesmo. Bruce afirma que precisa ficar e assistir a “isso”, à morte do
assassino dos pais (onde podemos inferir que houve, neste momento, certa satisfação
de seu desejo de vingança, mesmo que não completa, uma vez que Bruce não foi o
autor do disparo). É revelado que o juiz do caso foi subornado por Falcone para deixar
Chill exposto e Bruce, conversando com Rachel (sua amiga de infância e interesse
amoroso), diz que deveria agradecer a ele, que seus pais merecem justiça:
Rachel: “Isto não é justiça, e sim vingança.”
Bruce: “As vezes, é a mesma coisa,”
Rachel: “Nunca são a mesma coisa! Justiça tem a ver com harmonia.
Vingança, uma pessoa faz para que ela se sinta melhor, é por isso que o sistema é
imparcial.”
Bruce: “Seu sistema está falido.”
Rachel o leva pela cidade e mostra como Gotham está destruída: pobreza por
todo o lugar, ruas cheias de crimes e drogas, “criando novos assassinos como Chill
todos os dias. Falcone pode não ter matado seus pais, mas está destruindo tudo
aquilo pelo qual eles lutaram. Que chance Gotham teria se as pessoas boas não
fizerem nada?” ela questiona Bruce, mostrando para ele que existe mais do que sua
vingança pessoal, contra um único indivíduo que cometeu o crime contra seus pais. A
cidade está tomada pelo caos e pela desilusão, e agradecer um mafioso e corrupto por
ter sido o autor de sua vingança não é a atitude correta, uma vez que há muito mais
contra o que se lutar, a começar pela própria corrupção, a quem Bruce cogita
88
“agradecer”. Existe, então, algo muito maior, e que deve ser verdadeiramente
combatido, do que o simples assassinato do responsável pela morte de seus pais. Tal
vingança pessoal não traria seus pais de volta, serviria apenas como uma simples
vingança, mas não seria capaz de reparar absolutamente nada, uma vez que ainda
causaria a vergonha e a desaprovação de seu pai morto.
Bruce confessa sua decepção pela morte de Chill, afirmando: “todos esses
anos eu quis matá-lo e agora eu não posso”, ou seja, sua vingança pessoal foi
impedida, foi tirada dele. Rachel lhe dá um tapa, afirmando que seu pai sentiria
vergonha dele. Podemos supor o quanto este olhar paterno é importante para ele, pois
seu comportamento muda bastante depois deste comentário de Rachel, que evoca,
precisamente, seu superego, a herança paterna, a ideia de não estar correspondendo
aos ideais de si mesmo, que foram introjetados no sujeito ao final do complexo de
Édipo. Acreditamos que esta compreensão seja essencial para fato de Bruce criar
Batman para fazer justiça, servindo à sociedade de maneira mais geral, e não
simplesmente se vingar dos que mataram seus pais, mas proteger as pessoas
inocentes contra atos criminosos, buscando restaurar a justiça, que não foi possível
em sua história pessoal, para o resto do mundo.
Com estas palavras, é como se o criminoso mostrasse a Bruce que ele jamais
vai compreender este chamado “lado feio” da vida sendo Bruce Wayne; nunca vai
superar seu medo, raiva e culpa, enquanto se mantiver no mesmo lugar que esteve
até agora, na mesma posição de príncipe de Gotham, mas também de criança
desamparada, assustada e sozinha. Ele teme o mal, a violência (não apenas no
mundo dito “exterior”, mas, principalmente, seu próprio mal, seus sentimentos de raiva
89
e de culpa) porque não os entende. A partir desta cena, que poderia muito bem ser um
choque de realidade, no sentido de que Bruce finalmente pode compreender que
existe mais no mundo do que seu próprio sofrimento, é que ele sai em busca desta
compreensão que ele nunca teve, do entendimento do mal, do conhecimento da mente
criminosa, uma vez que sempre irá temer este “submundo”, se não for capaz de
entendê-lo.
A Liga Das Sombras é, então, citada pela primeira vez: Henri a apresenta para
Bruce como sendo condizente aos propósitos dele; ambos odeiam o mal e querem
servir a justiça. A organização é descrita não como um grupo de justiceiros, já que,
para Henri, o justiceiro é um homem que age visando beneficiar a si próprio: “ele pode
ser preso ou destruído, pode ser detido, mas uma vez que você se torna mais do que
um simples homem, se você se dedica a um ideal, você se torna uma coisa
inteiramente diferente. Uma lenda”. Desta forma, ele atrai a intenção de Bruce, que é
90
solto da cadeia no dia seguinte, e parte em direção às montanhas, onde terá início seu
treinamento e, consequentemente, a construção dos aspectos fundamentais e
constituintes de Batman.
Di Loreto (2007) afirma que a potência é uma qualidade que tem raia própria na
mente, não se confunde com outras qualidades, sendo um constituinte, componente
91
nato da mente (assim como as emoções, inteligência e instintos) e mantendo relações
com os demais componentes, particularmente com a afetividade (o componente que
mais influencia e é influenciada pela potência). Para o autor, a potência faz parte da
identidade, da sensação subjetiva de si mesmo, gerando necessidades e desejos
próprios. O “ativador do germe” inicial da potencia é afetivo: sentir-se amado,
importante e necessário, determina a sensação subjetiva de ser poderoso: “A
necessidade que o homem tem de sentir-se poderoso pode ser um descolamento de
necessidades afetivas (sentir-se poderoso para sentir-se amado/temido)”. (p. 57)
Após esta breve exposição sobre a temática do poder, estamos mais aptos a
nos lançar em uma tentativa de compreensão acerca de como o personagem deixa de
ocupar o lugar de criança amedrontada, indefesa, órfã e desamparada, para se tornar
um justiceiro poderoso e implacável, fonte de inspiração e esperança para toda uma
cidade, antes, assim como Bruce, tomada pelo medo.
92
o símbolo do morcego para estar no cerne de seu personagem. Ele quer que seus
inimigos, os criminosos, corruptos e malfeitores de Gotham City, compartilhem daquele
que foi, por tantos anos, seu maior medo: os morcegos. Ele escolhe se tornar aquilo
que ele mais teme, para que os seus inimigos passem a temê-lo. Desta forma, Bruce
se livra do seu maior medo, pois passa a representá-lo, aterrorizando aos criminosos
com o mesmo símbolo que o aterrorizou por muitos anos. O que fica explícito ao
levarmos em consideração o seguinte diálogo, extraído do filme Batman Begins:
Bruce: “As pessoas precisam de exemplos dramáticos para sair da apatia, e eu
não posso fazer isso como Bruce Wayne. Como homem, sou de carne e osso. Eu
posso ser ignorado ou destruído. Mas como um símbolo... posso ser incorruptível,
posso ser eterno”
Alfred: “Que símbolo?”
Bruce: “Algo elementar, aterrorizante”
Mais tarde, quando Bruce já está de volta à Gotham City e começa a construir e
obter os aspectos físicos do personagem (como o traje e os equipamentos), enquanto
Bruce fábrica a insígnia do morcego em metal, Alfred questiona:
Alfred: “Por que morcegos, patrão Wayne?”
Bruce: “Eles me assustam. Chegou a hora de meus inimigos compartilharem de
meu medo”
Di Loreto (2007) afirma que há uma oposição entre medo e onipotência, pois o
medo bloquearia o desenvolvimento da mesma. E completa:
“Sentir-se poderoso implica dar destino adequado ao medo. No
primeiro ano de vida, a grande questão enfrentada pela mente era o
destino a dar aos sentimentos de ódio. No segundo, é que destino ser
dado ao medo. E o destino que tiverem os sentimentos de medo, será o
fator estruturante da mente”. (p. 62)
93
É justamente esta oposição que Batman resolve, ao extrair de seu maior medo
o poder necessário para intimidar os inimigos. Ele não apenas se livra do medo dos
morcegos como o transforma em uma vantagem contra os adversários: Batman possui
o poder de lhes causar medo. Podemos dizer que, ao fazer isso, Batman convida-nos
a fazer a mesma coisa: transformar nossos medos em potência, nos livrarmos daquilo
que nós mais tememos para podermos nos desenvolver de forma plena, e, desta
forma, nos sentirmos poderosos. Devemos salientar, ainda, de que não se trata de
eliminar o medo existente em cada um de nós. Não vamos jamais conseguir extingui-
lo, ignorá-lo, fazer com que ele deixe de existir. A chamada “superação”, da qual
Batman nos fala, se apresenta não no sentido de ficar sem medo, mas sim, de
encontrar uma saída para ele, para que possamos aprender a viver e a conviver com
nossos próprios medos (o que é, precisamente, o que Bruce busca). Assim como o
personagem mostra, não é possível eliminar o medo, e nem é este seu objetivo, por se
tratar de algo impossível. Inclusive, durante a fase final do treinamento de Bruce na
Liga das Sombras, lhe é dito “embrace your worst fear”, que acabou sendo traduzido
para o português como “domine seu maior medo”, porém acreditamos que, aqui, a
palavra “embrace” significa muito mais do que “dominar”: é exatamente abraçar,
embarcar, aceitá-lo e tomá-lo para si. Isto vai além de uma superação no sentido de
eliminar, de não mais existir medo.
Tal fato pode ser exemplificado ao tomarmos a cena do filme onde o vilão
Espantalho utiliza-se, em Batman, de sua máscara e de sua substância química, que,
ao ser apresentada a uma pessoa, a faz alucinar justamente com aquilo que ela mais
teme. Batman visualiza, então, novamente os morcegos (e a cena dele, ainda criança,
no poço junto com estes mamíferos), demonstrando que o medo ainda existe. Porém,
este objeto não mais o paralisa, o incapacita, muito pelo contrário: fornece sua maior
força e vantagem no combate ao mal. Justamente por ele ter sido capaz de encontrar
um destino adequado a este medo, efetuando uma espécie de redirecionamento
(aprendendo uma forma para que não paralisasse ou se desesperasse diante do
objeto), ao invés de ingressar em uma busca pela eliminação total e completa de tudo
o que o morcego já significou em sua vida (coisa que, podemos afirmar com certo grau
de certeza, não o levaria muito longe).
Neste momento, devemos lembrar que, logo após ser baleado, a última coisa
que o seu pai diz para Bruce é exatamente “não tenha medo”. A última frase dirigida
por seu pai foi justamente este imperativo (o que, convenhamos, se faz um tanto
94
quanto difícil de cumprir, no caso de uma criança órfã, no momento em que seus pais
são mortos na sua frente). Em seu treinamento, ele aprende justamente a cumprir tal
imperativo: para conquistar o medo, ele se tornar o medo (e assim que Bruce escuta
seu “treinador”, Henri, dizer esta frase, ele começa a ter vislumbres dos morcegos no
poço e do assassinato dos pais, os dois momentos-chave). Bruce entende que deve
se aproveitar do medo alheio (e desde a primeira cena de Bruce com a roupa do
Batman, com seu personagem já mais ou menos acabado, ele provoca essa sensação
de medo: se esconde, ataca quando ninguém o vê, deixa esse clima de hesitação e
suspense, com os bandidos se perguntando o que vai acontecer depois, sem
conseguir se antever ou se preparar para isso. A expressão de medo é visível no
semblante dos seus inimigos. Até Falcone, o grande e temido mafioso, está tremendo
enquanto tenta colocar balas na sua arma, na cena em que Batman intercepta o
descarregamento de drogas no porto). E, conforme lhe diz Henri, “primeiramente, o
homem teme aquilo que ele não consegue ver”. Podemos dizer que, com Bruce,
também ocorre desta maneira: além dos morcegos, ele teme aquilo que não consegue
enxergar, o que está em seu interior, de maneira inconsciente, ou seja, os sentimentos
de culpa e raiva, que ele não consegue nomear. O verdadeiro desafio não é aquele
representado pelos seus oponentes. Como Henri afirma, a mente de um criminoso não
é “tão complicada”, e se fosse este o objeto que precisa ser compreendido, Bruce não
se envolveria nessa busca por entender o mal. O mal que busca ser entendido é
aquele que está dentro dele mesmo. Como Henri/Ra’s Al Ghul afirma: “O que você
realmente teme está dentro de você. Você teme o seu poder, a sua raiva, o impulso de
fazer coisas fantásticas ou terríveis”. Ou seja, a verdadeira ameaça é aquela não que
se apresenta diante de Bruce, mas que está dentro dele, em sua história de vida e
personalidade. Seus medos e traumas, assim como a raiva e a culpa pelos mesmos.
Seu treinador o instrui a “se tornar mais do que um homem na mente de seu
adversário”: Batman deve ser uma ideia, deve ser este símbolo temido; deve
compreender o poder que o medo tem de controlar seus adversários, e aceitar que
esse poder pode pertencer a ele. Ou seja, ao invés de sempre ser controlado pelo
medo, agora Bruce pode reverter a situação: ele pode ser o medo que controla, que
exerce este poder sobre os adversários, tomando o controle da situação, ao invés de
ter a vida controlada pelo seu próprio medo.
95
que causam medo nas pessoas, o que o diferencia dos vilões, ou seja, daqueles contra
os quais ele luta? Batman age por fora da lei, assim como o fazem seus inimigos. De
certa forma, podemos dizer que os bandidos de Gotham City conseguiram corromper a
autoridade representada pela lei, pelo Estado, através de subornos e ameaças. Neste
sentido, talvez s polícia esteja mais do lado dos bandidos do que da justiça a qual
Batman representa. A este aspecto, ainda precisamos adicionar o fato de que,
enquanto a justiça está corrompida e entregue ao mundo do crime, atuando ao seu
lado por medo ou por interesse, Batman representa a esta mesma polícia uma
ameaça, no sentido que cumpre o papel que deveria ser dela, o de lutar contra os
criminosos. Porém, a imagem que a imprensa de Gotham passa é a de que Batman é
um vilão, alguém que precisa ser detido. Isto fica claro na cena do filme, onde o
sargento declara: “inaceitável (...) o tirem das ruas e da primeira página (do jornal). É
um idiota fantasiado”. Gordon tenta defender Batman: “Mas ele nos entregou um dos
maiores criminosos da cidade”, e o sargento retruca “ninguém faz justiça com as
próprias mãos nessa cidade”. Mas, naturalmente, em uma cidade que já perdeu toda e
qualquer esperança de obtenção de alguma justiça, “justiça com as próprias mãos”
talvez não seja uma ideia assim tão condenável. Quando a autoridade, o Estado, falha,
é incapaz, insuficiente, tão facilmente corruptível, surge um único homem (ou “criatura”,
como sugerem os boatos pela cidade após a primeira “aparição” de Batman), que, se
assemelhando com os vilões, afirma que vai mostrar ao povo que Gotham não
pertence aos criminosos e corruptos. E para atingir tal objetivo, Bruce aprende a lançar
mão de outra fraqueza sua, que foi transformada em recurso: suas próprias raiva e
agressividade.
96
a vingança (uma vez que o bandido esteve preso este tempo todo). Bruce carrega uma
arma, e tem que se decidir entre usá-la ou não. Ele hesita por um instante,
caminhando em direção ao assassino; mas o bandido é baleado por outra pessoa,
antes que Bruce atirasse. Este momento de hesitação, que acabou impedindo Bruce
de cometer o assassinato, pode ser considerado como um dos momentos importantes
para a definição do personagem. Apesar de não poder mais se vingar, o que deixa
Bruce bastante frustrado, como já falamos anteriormente, ele faz questão de continuar
no mesmo ambiente, enquanto tentam socorrer o bandido, assistindo sua morte. Neste
momento, Bruce afirma que precisa, sim, ver esta cena. Mesmo não podendo contar
com a satisfação de sua pulsão mais agressiva, a de matar, Bruce encontra algum
consolo em assistir o responsável por tanto sofrimento em sua vida, morrendo. Ou
seja, ele descola a satisfação que sentiria, ao cometer o assassinato, para conseguir
algum conforto apenas com o fato de que, de uma forma ou de outra, o assassino
recebeu sua punição.
97
“Processo postulado por Freud para explicar atividades humanas
sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que
encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud
descreveu como atividades de sublimação principalmente a atividade
artística e a investigação intelectual. Diz-se que a pulsão é sublimada na
medida em que é derivada para um novo alvo não-sexual ou e que visa
objetos socialmente valorizados” (p. 638, 1986)
Este autor também afirma que o termo evoca, ao mesmo tempo o “sublime”,
que sugere a grandeza e a elevação nos estudos da arte; e ao termo da química que é
utilizado para designar o processo que faz passar um corpo diretamente do estado
sólido para o gasoso. Ao longo de sua obra, Freud recorre a este conceito para
explicar econômica e dinamicamente certos tipos de atividades alimentadas por um
desejo que não visa (de forma manifesta), um alvo sexual; geralmente atividades as
quais a sociedade e a cultura conferem grande valor. Ou seja, além dos sonhos, atos
falhos e sintomas, o inconsciente do sujeito pode manifestar-se através deste “recurso”
de enorme importância para a vida cultural e social, ou seja, para a existência coletiva,
que é a sublimação (Chauí, 2000).
98
que certas regras sejam cumpridas, como a de não matar ninguém, por mais que
Batman tenha essa vontade. Este aspecto também pode ser relacionado ao conceito
de sublimação, no qual também está presente a idéia de que algo fica inibido, não
realizado. Aqui, o que fica inibida é justamente a possibilidade de cometer
assassinatos e levar a cabo sua vingança pessoal. Sua “vingança” não é “olho por
olho”, Batman não mata o bandido, e também não o impõe o sofrimento que um
criminoso um dia lhe causou; ou seja, ele não faz com que o bandido sinta a dor que
ele mesmo sentiu quando criança, não mata seu objeto de amor. Batman procura se
contentar em apenas prender os criminosos, entregando-os às autoridades. Como
afirma Rocha (2012): “Contra a mediocridade e violência engendrada pelo homem, ele
não pode fazer nada a não ser trazer um pouco de alívio para os indefesos, e assim
trazer um pouco de alívio para si mesmo também.” (p. 5)
Porém, devemos ter em vista que não estamos diante de um caso onde o
conceito de “sublimação” possa ser inteiramente empregado: uma vez que a
sublimação é um mecanismo do inconsciente para poder encontrar uma via para se
manifestar, não podemos saber o quão consciente (ou inconsciente) é o processo ao
qual Bruce/Batman submete sua agressividade. Seu código de conduta é bastante
consciente; Bruce o verbaliza várias vezes, afirmando que não irá matar, e que é
justamente essa a diferença entre ele e aqueles contra os quais ele luta. Isto acontece
no final de seu treinamento na Liga das Sombras, onde fica declarado que Bruce
dominou seu medo e está pronto para se tornar um membro da Liga, mas antes deve
mostrar seu comprometimento com a justiça, matando um criminoso. Ele se recusa,
alegando que não é um executor. Dizem-lhe que seus inimigos não vão compartilhar
da compaixão que ele tem; “É por isso q ela é tão importante” como argumenta Bruce:
é ela que o separa de quem ele deve combater.
99
levar à violência e à vingança. O personagem apresenta esta admirável habilidade de
se controlar, ter disciplina, de dar um destino mais adequado para seus impulsos
destrutivos. Em muitas situações da nossa vida, nosso sucesso depende de que
consigamos controlar nossas vontades, nossas pulsões mais devastadoras, nosso id.
Bruce Wayne desenvolveu esse autocontrole de maneira especialmente bem-
sucedida, ao ponto de podermos considerar que o poder do autocontrole é um de seus
“super-poderes” (ainda que seja algo humano).
100
ida da família em direção ao local onde os pais seriam mortos, possa ter gerado um
grande sentimento de culpa na criança, uma vez que é Bruce quem fica muito
angustiado no teatro, e faz os pais saírem de lá com ele, levando-os para este lugar
onde ambos seriam assassinados. Naquela situação, além de todo o desamparo (no
sentido de que o garoto que, até então tinha tudo – afetiva e materialmente -, se vê
sozinho no mundo), ainda temos que adicionar o sentimento de culpa no leque de
emoções sentidas por Bruce quando seus pais morreram (culpa essa que chega a ser
verbalizada para Alfred; Bruce afirma que foi sua culpa eles terem saído do teatro: “se
eu não tivesse me assustado...”, diz o garoto). Anos mais tarde, durante seu
treinamento na Liga Das Sombras, Henri pergunta para Bruce:
Henri: “Você ainda se sente culpado pela morte de seus pais?”
Bruce: “Minha raiva é maior do que minha culpa.”
Henri: “Você aprendeu a enterrar a sua culpa e a sua raiva (...)
Aqui, podemos pensar que a raiva a qual Bruce se refere não seja apenas raiva
do assassino, do destino, da vida (que tirou seus pais dele), mas também uma raiva de
si mesmo, por não ter sido capaz de agir em impedimento ao assassinato, por não ter
feito nada para proteger seus pais. Apesar de Bruce desvalorizar seu sentimento de
culpa, ele se faz presente, mesmo depois de todos esses anos. Diante de tal culpa,
podemos pensar em uma tentativa, por parte de Bruce (aí, já como um adulto) de
efetuar uma reparação, uma tentativa de “consertar o estrago”.
Diante disso, seguindo tal linha de raciocínio, poderíamos pensar Bruce Wayne
como sendo homem em sofrimento procurando o propósito de sua vida: sua vida toda
seria uma tentativa de recuperar o sentido, reparar este dano que, muito
provavelmente, uma determinada instância de seu aparelho psíquico (o inconsciente),
acredita que ele tenha cometido. Podemos crer, ainda, que uma forma de reparar isso
é deixando esses pais orgulhosos dele, como filho, nem que seja postumamente.
101
seria a chamada a dor de ser um sobrevivente (Birman, 2009). Para este autor, o único
jeito de o derrotado elaborar o luto é reparando a dívida com os seus iguais que não
sobreviveram: resistindo ao inimigo, não desistindo frente à ele. Sendo assim,
podemos pensar que a batalha travada entre Batman e os criminosos de Gotham City
seria uma forma de tentar elaborar sua perda, pagando simbolicamente aos pais a
dívida restante, uma vez que Bruce, em sua onipotência infantil, não pôde proteger os
pais, nem salvá-los da morte.
Por isso discordamos de Rocha (2012), autor que afirma, em seu trabalho “A
melancolia de um cavaleiro das trevas”, que Batman é “um personagem que
transborda melancolia” (p.3) e tem como motivação principal um obsessivo desejo por
vingança: não se trata apenas disso, não é apenas tal desejo que move Batman;
acreditamos que ater-se a tal interpretação seria superficial e insuficiente, uma vez que
a história de vida de Bruce/Batman é extremamente complexa (tal qual a de um ser
humano real). Suas escolhas são mais profundas o que aquilo que sugere o autor
citado, podendo ter diferentes causas, cada uma em sua complexidade e importância.
Podemos até mesmo cogitar que, talvez, esta ênfase ao lado dito “negativo”,
102
patológico e melancólico que Rocha dá ao personagem se deva ao fato de que o autor
analisa o Batman das revistas em quadrinhos, onde não há o final, a separação entre
Batman e Bruce, onde o primeiro deixa de existir, como acontece no último filme da
trilogia (O cavaleiro das trevas ressurge, 2012), que será abordado a seguir, como a
finalização da história e também da nossa análise da mesma
103
Agora, não se trata mais de buscar recursos subjetivos no inconsciente, mas sim
de conseguir voltar à tona, à consciência, e assim utilizar-se, na realidade, dos recursos
obtidos. Tal ascensão, que pode ser também comparada a um renascimento, à saída do
útero materno, só é sem sucedida sem a corda (que impede que a pessoa morra em
caso de queda durante a escalada). Esta questão da corda pode, inclusive, ser
interpretada como uma metáfora para o cordão umbilical, já que estamos falando de um
renascimento. Sem utilizar-se da corda, Bruce sabe que não pode falhar: não existe a
possibilidade de ele cair e continuar na prisão; ou ele consegue escalar, consegue
ascender ao mesmo nível onde a batalha com o vilão deve ocorrer, para assim ter
alguma chance de salvar a cidade, ou ele cai neste abismo, é destruído e aniquilado.
Após ter passado pelos seus traumas de infância, seu medo, a sua orfandade, seu duro
treinamento e, posteriormente, todas as lutas como Batman, Bruce já está familiarizado
com seu inconsciente, já conseguiu os recursos necessários para controlar seu próprio
medo, utilizando-se dele para se lançar na mais importante batalha em defesa de
Gotham, que, neste momento do filme, está sendo mantida refém de Bane e de seus
homens por semanas. Sendo assim, após algumas tentativas frustradas utilizando-se da
corda, Bruce consegue sair do local, ao tentar a escalada sem nenhuma forma de
proteção. Se na sua primeira queda, no poço, no primeiro filme, ele é retirado de lá por
seu pai, neste momento é ele mesmo que se retira, que consegue escapar, não estando
mais sujeito à figura paterna e a sua proteção, mas sendo ele mesmo capaz de realizar
sua própria subida, seu próprio resgate.
104
mesmo, de Bruce, e não apenas de seu alter-ego Batman. Podemos pensar que Bruce
criou Batman como sendo uma outra personalidade para si mesmo, na qual ele poderia
aceitar a sua perda como parte, enquanto não seria possível aceitá-la como parte de
Bruce. Neste sentido, fica evidente que a cidade ainda precisaria de Batman, mas Bruce
não precisa mais dele: Batman foi criado para a elaboração de um trabalho de luto, e,
três filmes, uma série de lutas e inimigos depois, tal trabalho fora finalmente concluído, o
super-herói cumpriu seu propósito. Além disso, Gotham City não o perdeu totalmente,
pelo contrário: ainda o possui como um símbolo, um ideal de justiça a quem se espelhar.
E este ideal de justiça, esta esperança, não pode ser apostado, nem morto: estará
sempre presente de maneira simbólica. Apesar de a cidade considerá-lo um mártir, ele
não morre no sentido simbólico (existe uma morte, um enterro e vários rituais simbólicos,
todo um reconhecimento póstumo), por acreditar que as pessoas precisam desta figura
quase que mitológica, desta lenda, para protegê-las e servi-las como um ideal de justiça,
um exemplo a ser seguido. E finalmente, neste último filme, há até mesmo a antes
impensável aliança com a polícia, que tanto o perseguiu e o condenou em Batman
Begins, mostrando uma espécie de redenção com o Estado (uma vez que a população
já o admirava antes) e com as autoridades oficiais, que só se aliaram ao Batman, ou o
aceitaram como aliado, no momento em que uma terceira “força” apareceu e tomou o
controle (o vilão Bane, interpretado por Tom Hardy).
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Contudo, não podemos deixar de frisar que, uma vez que concluímos que a
temática do primeiro filme é o medo, a terceiro filme é, indiscutivelmente, a perda: esta
parte final da história do super herói começa com Bruce às voltas com as questões
relativas à perda de Rachel, sua companheira de infância e interesse romântico na vida
adulta, e ao trabalho de luto que tal perda lhe impõe; e podemos dizer que a finalização
do filme também nos apresenta a mesma temática da perda e do luto, nos mostrando a
cidade inteira em luto pela inferida morte de Batman. A perda é uma experiência
constitutiva no ser humano, na estruturação do sujeito sendo fundante do psiquismo.
Se não lidamos bem com a perda (não que alguém de fato lide “bem” com isso, mas se
conseguimos passar por ela sem nos destruirmos, entrando em psicopatologias mais
sérias), não conseguimos elaborá-la, e disso surgem os quadros melancólicos (Freud,
1917). Neste terceiro filme, podemos considerar que a “morte” de Batman se configura
em uma situação de perda também para Bruce, pois é este sujeito que não mais será o
Batman, não mais irá proteger a cidade e lutar contra a violência. A impressão que este
desfecho nos passa é a de que ele manifestaria uma elaboração da culpa e do trabalho
de luto pela morte dos pais, precisamente no sentido de uma finalização. A perda
mostra para o sujeito que ele não é onipotente, não é dono do mundo, não controla
tudo; ou seja, a perda impõe um limite ao sujeito. Ao deixar de ser o Batman, causando
sua “morte simbólica” para salvar toda a cidade, estaria Bruce finalmente aceitando a
sua perda e, consequentemente, seus próprios limites?
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a cidade ainda precisando de alguém que combata criminosos. Mas Bruce não precisa
mais ser o Batman, porque ele venceu a sua própria batalha.
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Considerações finais:
Começamos nossa exposição tratando sobre o valor que a narrativa e a ficção
têm para a construção do psiquismo humano, fornecendo meios para podermos tecer
nossa própria subjetividade, nos ajudando na busca pela solução de problemas da
nossa vida, e nos apresentando figuras significativas, com as quais podemos nos
identificar. Mais do que meros passatempos, as histórias fictícias que nos orbitam são
carregadas de importância e valores simbólicos, justamente por estarem falando
diretamente à nossa subjetividade, captando nosso interesse por meio do afeto que
sentimos por determinados personagens e histórias. Como o objeto de nossa análise
faz parte de um grupo específico de histórias (os super-heróis nascidos nas revistas
em quadrinhos), fizemos uma breve contextualização histórica do surgimento de tais
histórias, e os possíveis motivos que possam ter levado à criação de personagens e
histórias com características tão específicas, em determinado local e época, e não em
outros.
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Após nos aprofundarmos nestes dois temas, que se fazem presentes não
apenas na história de Batman, mas na de todos os heróis, cada qual à sua maneira,
seguimos adiante apresentando o foco central de nossa análise. Primeiramente,
falamos brevemente sobre histórias em quadrinhos e seus heróis protagonistas, para,
em seguida, podermos entrar, finalmente, na questão do Batman, nosso objeto de
análise, através de uma exposição dos aspectos mais gerais do personagem, bem
como de aspectos sobre sua criação e popularização. Foram citadas as formas de
adaptação que a história do herói, nascida nos quadrinhos, sofreu, para a televisão e
para o cinema. Dentre tais adaptações, elegemos o filme Batman Begins, que aborda
aspectos relativos à origem e à construção do personagem, e que popularizou a
narrativa deste herói, tornando-a interessante e compreensível mesmo para quem não
está habituado à leitura dos quadrinhos.
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auto destrutividade. Para corroborar a hipótese apresentada, de que Bruce Wayne cria
Batman justamente para elaborar sua perda e seu medo, tratamos brevemente do
último filme da trilogia, “O Cavaleiro das Trevas Ressurge” (2012), onde, acreditamos,
tal elaboração é finalmente obtida, pois Bruce deixa de ser Batman; apesar da cidade
ainda precisar da atuação do herói, agora ela vai se contentar com Batman como um
símbolo, uma herança, um ideal, uma vez que Batman já cumpriu o papel para qual
Bruce o construiu, já permitiu que seu medo fosse controlado; e suas perdas,
elaboradas.
Pensando assim, podemos dizer que, dentre os motivos pelos quais nos
identificamos com o herói, está do fato de que nós temos esses dois lados, somos
bons e maus; por isso, tendemos a nos enxergar mais no herói do que no vilão,
identificando o poder dele com o nosso (ou com o que nós gostaríamos de possuir);
seus aspectos negativos, como sua agressividade, por exemplo, com as nossas
próprias pulsões agressivas e destrutivas; e, finalmente, as derrotas e sacrifícios do
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super herói, com, respectivamente, as que sofremos ou vamos sofrer e os que temos
que fazer inevitavelmente em nossas vidas.
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(Mesquita, 2008); porém a difícil tarefa de nos lançar ao mundo, de encarar nossas
angústias, de controlar nossos desejos e encontrar meios de lidar com as perdas, as
quais constituem todo o ser humano (Freud, 1923), nós temos que realizar sozinhos,
contando com nossos próprios recursos. Diante dos perigos daquilo que Freud chama
de “vida hostil”, as ficções com as quais temos contato nos fornecem material para
tecermos a nossa própria subjetividade; e as figuras com as quais nos identificamos
podem nos oferecer um pouco de conforto, ao nos mostrarem exemplos de como
podemos lidar com nossos dramas, uma vez que, em Batman, nos deparamos com a
complexidade e a contradição; podemos achar o heroísmo, o medo e a escuridão, assim
como em nós mesmos.
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discussão, como a grande maioria das discussões em psicanálise, não nos levará a
nenhuma certeza ou resposta absoluta. Diferentes leituras podem, e devem, ser feitas.
Porém, se formos considerar que um poder obtido dentro danossa realidade, tal qual a
conhecemos, pode também ser considerado um super poder, Batman seria, sim, um
super herói. Seu super poder não seria o “poder do dinheiro” e dos aparatos
tecnológicos que este dinheiro lhe permite ter acesso (e que, com certeza, contribuem
para o sucesso do personagem na sua luta contra o crime). Seu super poder poderia
ser, na verdade, a forma por ele encontrada para lidar com a sua perda; a maneira como
Bruce transcende o seu desamparo e o supera, transformando cada fragilidade, cada
trauma, em fontes de poder, em recursos para lidar com as próprias questões.
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