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05/05/23, 02:18 Dinâmicas internacionais do século XXI

Dinâmicas internacionais do século XXI


Prof. Alexandre Santos de Moraes.

Antônio Bylaardt.

Descrição

As dinâmicas internacionais do século XXI na ordem de preocupações e a velocidade do cenário internacional e as novas disputas transnacionais.

Propósito

Compreender que a globalização reforçou o quadro de disputas por relações comerciais bilaterais e multilaterais, crises migratórias, movimentos
contestatórios e guerras de informação.

Objetivos

Módulo 1

Primavera Árabe
Reconhecer a dinâmica da Primavera Árabe.

Módulo 2

Crises migratórias
Comparar as crises migratórias mundiais no século XXI.

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Módulo 3

Guerras comerciais
Localizar o papel das guerras comerciais no século XXI a partir da análise do papel da China.

Módulo 4

Guerras de informação
Exemplificar características e movimentos das guerras de informação do século XXI.

Introdução
Se o século XX foi marcado pelo entusiasmo em relação ao poder da ciência e tecnologia (da qual a própria globalização é tributária), o
século XXI surge em um embalo de reflexão do homem sobre si. Esse debate, se já era intenso, foi marcado com a pandemia global
surgida em 2020 e parece incentivar enorme ceticismo em relação a tudo isso.

Os riscos de colapsos ambientais, simbolizados pelas mudanças climáticas de caráter antropogênico, não são variáveis externas a essa
equação. Se, no século XX, convivemos com o medo de que a humanidade poderia desaparecer em função de guerras nucleares, no
século XXI é o planeta Terra que está sob o fantasma da desaparição. O pessimismo é justificado, afinal, a mesma ciência que nos levou
ao espaço foi incapaz de conter a disseminação de um simples vírus, a forma de vida mais rudimentar que conhecemos.

Com vistas a compreender esse brevíssimo século XXI do ponto de vista cronológico, mas também as tensões, os conflitos, as formas de
intervenção e as crises e soluções que se anunciam nesse milênio que acaba de nascer, vamos introduzir uma reflexão sobre os novos
eventos contemporâneos.

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O homem e o tempo: o lugar do pensador
Vamos pensar em uma equação em que as variáveis são: homem, tempo e espaço.

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1 - Primavera Árabe
Ao final deste módulo, você será capaz de reconhecer a dinâmica da Primavera Árabe.

Contextualização
No Oriente Médio, o século XXI foi inaugurado de forma contraditória. Se, por um lado, o mundo assistiu às invasões estadunidenses ao Iraque e
Afeganistão com preocupação, por outro lado o resto da região vivia um ambiente de relativa estabilidade e equilíbrio.

No Líbano, uma sangrenta guerra civil e religiosa deu lugar a uma democracia parlamentar plural, mesmo que instável; repúblicas autoritárias de
inspiração secular conviviam com monarquias teocráticas extremamente repressoras sem grandes atritos.

Em pouco menos de uma década, uma forte recessão econômica internacional, o fortalecimento do conservadorismo religioso, as disputas entre
potências globais por influência na região e o renascimento de forte disposição revolucionária entre a população jovem jogaria o Oriente Médio em
uma tempestade a que ainda estamos assistindo desabar: a chamada Primavera Árabe.

Primavera Árabe sendo noticiada em um jornal.

Curiosidade
A nomenclatura dada a esse processo histórico contraditório e multifacetado é curiosa por si só: evoca as Revoluções de 1848, em que
nacionalistas, liberais e socialistas tomaram as velhas monarquias europeias de assalto durante a primavera daquele ano. A “Primavera das
Nações” conseguiu, momentaneamente, derrubar regimes aristocráticos na França, na Itália e na Romênia, ainda que tais regimes tenham se
restabelecido pouco tempo depois. Derrotados politicamente, os revoltosos de 1848 aprenderam a partir de seus erros e plantaram sementes que
viriam a germinar na virada para o século XX.

O movimento, que se espalhou a partir da Tunísia em dezembro de 2010, levou manifestantes a tomar as ruas de cidades do norte da África e do
Oriente Médio em busca de melhorias no custo de vida e de mudanças nas instituições políticas. A diversidade de pautas, de condições
sociopolíticas locais e de respostas governamentais a esses movimentos levou a um amplo leque de resultados.

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O estopim na Tunísia tinha rosto e nome: Mohamed Bouazizi (foto), um jovem de 26 anos que trabalhava na cidade
interiorana de Sidi Bouzid como ambulante.

Órfão de pai, foi criado pelo tio que, por problemas recorrentes de saúde, não conseguia sustentar a família de forma adequada. Trabalhando
informalmente desde os 10 anos, Bouazizi acabou abandonando a escola antes de terminar o ensino médio. Sem conseguir arranjar um emprego
fixo, o jovem passou a vender frutas e vegetais diversos em uma carroça pelas ruas da cidade.

No dia 17 de dezembro de 2010, Bouazizi foi abordado pela polícia local, sendo agredido e tendo seus pertences confiscados. Ele então dirigiu-se ao
escritório do governador de Sidi Bouzid, que se recusou a atendê-lo. Como resposta, Bouazizi comprou gasolina em um posto automotivo próximo
ao local e, na presença de seu tio, parou o trânsito, encharcou-se de combustível e imolou-se. Em pouco tempo, todo o país conheceu seu rosto e
nome.

Manifestação antigoverno durante a Primavera Árabe na Tunísia.

A história e o desespero de Bouazizi produziram enorme comoção na juventude tunisiana, que convivia com problemas sociais oriundos do
desemprego, da incerteza em relação ao futuro e da desesperança na capacidade das autoridades políticas de lidarem com as questões urgentes
do país.

Mesmo que tenha sido o próprio Bouazizi a riscar o fósforo, sua morte foi recebida por diversos grupos como o assassinato de um jovem
trabalhador ambulante por um governo negligente e autoritário. O Oriente Médio e o norte da África veriam a revolta florescer naquela primavera.

De forma similar, o otimismo inicial da Primavera Árabe – por sua pluralidade de pautas e agentes, por sua espontaneidade, por sua organização
(quase) anônima por meio das redes sociais, pelo seu próprio tamanho – gradativamente deu lugar à decepção com o pouco progresso a curto
prazo e o horror do conflito e da repressão. No entanto, ao contrário da Primavera das Nações de 1848, ainda estamos demasiadamente próximos
ao processo histórico da Primavera Árabe para dimensionar seu impacto e influência, mas como veremos adiante, a importância de tais atos não
devem ser subdimensionada, inclusive em eventuais influências futuras.

Questões de causalidade e organização


O primeiro aspecto que devemos analisar da Primavera Árabe é sua própria concepção como um movimento único.

Quando nos referimos à Primavera Árabe, no singular, temos sempre de lembrar que estamos nos referindo a um processo histórico singular, e não
a um movimento político singular. A Primavera é assim chamada pois protestos e confrontos armados ocorreram em praticamente todos os países
do Oriente Médio e norte da África (comumente chamado de “mundo árabe”, apesar de se tratar de regiões de grande diversidade étnico-cultural) de

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forma simultânea, tendo um plano de fundo comum de frustrações políticas e recessão econômica, e não por ser uma aliança de organizações
militantes de pautas comuns.

Protesto em Beirute, Líbano (2015).

Atenção!

É necessário reforçar esse ponto, pois, infelizmente, é um hábito recorrente, tanto no âmbito acadêmico como nos veículos midiáticos brasileiros (e
latino-americanos, norte-americanos e europeus), o tratamento da região do Oriente Médio como uma entidade política e cultural unificada, uma
massa amorfa de pessoas estranhas de pele marrom dotadas de uma língua única, uma identidade única e um fanatismo religioso supostamente
incomparável.

O próprio uso dos termos “mundo árabe” e “Primavera Árabe” já carrega um sentido generalizante que ignora a imensa diversidade étnica, linguística
e cultural que existe do Marrocos ao Iraque, da Síria ao Sudão. Por falta de melhores termos e por conveniência, seguiremos utilizando o
qualificativo em questão.

Apesar das redes sociais – instrumento fundamental para a organização de protestos e greves da Primavera – garantirem certo nível de anonimato
e facilitarem em grande medida a comunicação e solidariedade internacionais entre populações tão diversas como argelinos e barenitas, os
diferentes protestos que compuseram a Primavera Árabe foram organizados diferentemente em cada local e contaram com a participação de
agentes políticos diversos.

De forma similar, demandas, métodos, resultados das manifestações pacíficas e revoltas armadas foram bastante diferentes. Muitos discursos
tentam atribuir a deflagração da Primavera Árabe a atores únicos como George Soros, a CIA ou alguma espécie de conspiração comunista global;
todas essas hipóteses, contudo, não passaram de ilações próprias de disputas políticas pela semântica do movimento.

Protesto em Alexandria, Egito (2013).

Em alguns territórios, como no Egito e na Síria, a oposição aos governos vigentes durante os primeiros momentos da
Primavera Árabe consolidou-se em algumas organizações específicas e forjou lideranças individuais; mas, de forma
geral, a Primavera foi um período de levantes marcadamente espontâneos e descentralizados.

Outra questão importante que aparece nos debates sobre o surgimento dos movimentos que compuseram a Primavera Árabe é a da preponderância
de causas externas ou internas no processo. Essa é outra falsa polêmica que deve ser deixada de lado. Vivemos em um mundo cujo sistema
internacional de Estados está integrado há mais de um século, e cujas relações econômicas e comerciais em nível global estão integradas há pelo
menos três séculos.

A Primavera, como todo processo político neste mundo globalizado, está inserida em um contexto mundial de disputas por influência entre os
Estados Unidos da América e a República Popular da China e da grande recessão, iniciada em 2008, mas tem estopins internos aos países diversos.

Nenhum desses fatores explica o desenrolar da Primavera Árabe isoladamente. Uma análise consistente do assunto deve se comprometer a um
movimento constante, dialético, entre arenas externa e interna, assim como entre as escalas regionais, nacionais e global.

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Faíscas na Tunísia, fogueira no Egito


A onda de protestos que inaugurou a Primavera Árabe veio do norte da África, e não do Oriente Médio em si. A República da Tunísia sempre foi
considerada uma ponte entre o “mundo árabe” e a “civilização ocidental”, nas palavras do primeiro presidente e líder do movimento independentista
do país, Habib Bourguiba. Após três décadas de presidência, Bourguiba, já senil, foi afastado do comando do país por seu primeiro-ministro Zine el-
Abidine Ben Ali em 1987.

O recém-empossado presidente Ben Ali recebeu efusivas congratulações dos governos da ex-metrópole França, da Itália, dos Estados Unidos e de
outros países do eixo norte-atlântico, em grande parte por suas promessas de abertura política, aprofundamento das relações com o Ocidente e
perceptíveis inclinações a uma política econômica mais liberal que a de seu antecessor.

abib Bourguiba
Mesmo que Bourguiba centralizasse o poder político em sua figura e em seu partido, o governo do novo país focou-se em pesados investimentos
públicos, promoveu a igualdade entre os gêneros, buscou uma política internacional de neutralidade e combateu firmemente o fundamentalismo
religioso com o objetivo de secularizar o cenário político tunisiano. Seu partido era chamado Novo Partido Liberal Constitucional.

Ben Ali, então presidente da República da Tunísia, cumprimentando o secretário de Estado dos Estados Unidos, Colin Powell.

O longevo governo de Ben Ali levou a cabo uma extensa campanha de privatizações e concessões econômicas a empresas estrangeiras,
principalmente europeias, que trouxeram estrondosos resultados positivos a curto prazo: o produto interno bruto (PIB) tunisiano cresceu
rapidamente, triplicando entre 1986 e 2006 e rendeu à Tunísia o apelido de “leão africano”.

A aplicação de medidas neoliberais, no entanto, aumentou muito o abismo entre as classes sociais, com a taxa de desemprego atingindo 18% às
vésperas dos protestos em 2010. O empobrecimento das regiões rurais no noroeste e sul do país também levou a um inchaço das bidonvilles – o
equivalente tunisiano às favelas brasileiras.

A União Geral Tunisiana do Trabalho, a maior central sindical do país, passou a ser mais incisiva, organizando pelo menos três grandes greves no
triênio anterior à Revolução de Jasmim (nome dado à derrubada de Ben Ali pela mídia internacional), todas sofrendo brutal repressão do Estado
tunisiano.

Nas cidades mais ricas do país, a classe média tunisiana também se frustrava com Ben Ali, que prometeu abertura da imprensa e da política
partidária, mas entregou um controle cada vez maior sobre a mídia do país e buscou construir um culto de personalidade para si próprio.

O crescente descontentamento popular com as políticas econômicas e com o autoritarismo de Ben Ali foi pouco documentado nos veículos
midiáticos de massa na Tunísia e também receberam pouca atenção no cenário internacional, com a notável exceção da divulgação de documentos

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vazados pelo WikiLeaks em novembro de 2010 por jornais como o Le Monde.

Para os governos francês e estadunidense, manter um aliado como Ben Ali ao lado da Argélia de Abdelaziz Bouteflika e da Líbia de Muammar
Gaddafi era um ponto positivo, e a reação inicial aos protestos que se massificaram foi o silêncio; apenas a chanceler francesa Michèle Alliot-Marie
manteve o apoio a Ben Ali, sendo criticada em público por seus colegas de governo.

Protesto francês em solidariedade a Mohamed Bouazizi (2011).

A frustração com a falta de cobertura da situação do país levou a juventude revoltada ao Facebook e a outras redes sociais para compartilhar vídeos
dos protestos e organizar novas ações. As manifestações cresceram para além das bases sindicais socialistas já estabelecidas, levando setores
sociais diversos às ruas, como islamistas conservadores e a classe média liberal urbana.

Em dezembro do mesmo ano, os protestos tornaram-se violentos, com a autoimolação do jovem ambulante Mohamed Bouazizi, desesperado por
perder suas mercadorias para a polícia. A repressão crescente aos protestos pelo governo apenas aumentou as chamas de uma juventude
desempregada em um país com crescente custo de vida. Sem uma liderança de oposição para prender, Ben Ali atribuía os protestos às “gangues
mascaradas” e prometia gerar 300 mil empregos, sem dizer como.

Em janeiro de 2011, a situação tornou-se insustentável, e os governos francês e estadunidense já falavam em uma transição pacífica de governo. No
meio do mês, Ben Ali fugiu para a Arábia Saudita, único país que lhe ofereceu refúgio, com a condição de que abandonasse a vida pública.

Saiba mais
Um contexto econômico e político similar existia no Egito de Hosni Mubarak, um presidente autoritário demais para o gosto dos liberais, secularista
demais para os islamistas, e privatista demais para a esquerda.

Sua posição moderada com Israel e com os Estados Unidos provocava oposição tanto entre fundamentalistas religiosos quanto entre a esquerda
nasserista. As consequências de longo prazo do desmonte de estatais egípcias e da redução dos subsídios ao preço de alimentos e combustíveis
condenavam uma parte significativa da juventude do país ao desemprego e à pobreza.

No entanto, ao contrário do caso tunisiano, a classe média egípcia permaneceu pouco sensibilizada com a repressão às greves e aos protestos, e a
Revolução de 2011 no Egito foi movimentada majoritariamente por jovens da classe trabalhadora.

Outra diferença importante entre o caso egípcio e a Revolução de Jasmim foi a grande influência de organizações
islamistas entre a juventude do Egito e sua forte presença nas manifestações.

A Irmandade Muçulmana, organização fundada no Egito em 1928, foi particularmente vocal em sua oposição ao governo de Mubarak. O discurso da
oposição ao presidente foi dominado por certa moralidade religiosa, mesmo que a esquerda nasserista continuasse uma força política considerável.

Cartaz indicando o papel fundamental desempenhado pelo Facebook na eclosão dos movimentos durante protesto egípcio em 2011.

Em janeiro de 2011, a oposição egípcia rapidamente aprendeu e aplicou uma lição valiosa obtida da Tunísia: o papel das redes sociais na
articulação de ações contra o regime. O uso do Facebook, novamente, foi central. Articulando-se por fora dos tradicionais partidos de oposição e
sem necessitar de cobertura dos telejornais mais assistidos, a juventude egípcia acampou na estratégica Praça Tahrir, no coração do Cairo (sede do
governo egípcio), até o governo cair.

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A prisão de militantes conhecidos da Irmandade, de líderes sindicais preestabelecidos ou até mesmo de novas figuras como Wael Ghonim, ex-
programador da Google, não quebrou o espírito do movimento, que não tinha um único rosto ou dono. Mubarak caiu na metade do tempo de Ben Ali.

A rápida massificação dos protestos levou à ampla constatação do fim eminente, e líderes de quase todas as nações condenaram o governo de
Mubarak e pediram reformas pacíficas imediatas; apenas Gaddafi, o presidente israelense Shimon Peres, o presidente palestino Mahmoud Abbas, o
monarca saudita Abdullah e o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi defenderam a continuidade de Mubarak, enquanto o aiatolá (líder religioso)
iraniano Ali Khamenei chamou Mubarak de “ditador traidor”. Isolado diplomaticamente e perdendo o apoio de suas próprias forças armadas, a
Arábia Saudita recebeu o segundo presidente árabe refugiado em fevereiro.

Enquanto a oposição tunisiana desenhava uma rota comum para uma democracia parlamentar liberal, a oposição egípcia pós-queda de Mubarak
tratou imediatamente de fragmentar-se. As disputas sobre o rumo do país estavam assentes em divisões profundas entre fundamentalistas
religiosos e a esquerda nacionalista nasserista.

As forças armadas egípcias, de forte tradição secular (porém conservadora), manteve uma presença tutelar durante todo o processo, o que agravou
ainda mais as tensões no país. Uma constituição provisória e o agendamento de eleições multipartidárias aumentaram a confiança em uma futura
estabilidade política, mas a surpreendente vitória eleitoral do islamista Mohamed Morsi e seu Partido da Liberdade e Justiça, ligado à Irmandade
Muçulmana, levou novamente a juventude revoltosa à Praça Tahrir.

Em pouco mais de um ano de mandato, Morsi tentou impedir qualquer interferência de secularistas na elaboração e aprovação da Constituição de
2012, criticada por seu caráter religioso, e tentou, por decreto, acumular funções judiciárias à cadeira presidencial.

Pela brutal repressão aos manifestantes em Tahrir, a oposição ao seu governo foi engrossada pela direita secularista, pelas forças armadas e até
por figuras religiosas tradicionais do Egito, como o imã Ahmed el-Tayeb, da mesquita de Al-Azhar, e o papa Teodoro II, da Igreja Copta de Alexandria.

Atenção!
Em julho de 2013, quase dois anos após os primeiros protestos da Primavera Árabe, um golpe militar, seguido de uma eleição e um referendo
constitucional esvaziados de amplo debate político, levava o general Abdel Fattah el-Sisi, antigo apoiador de Mubarak, à presidência.

Tão próximos, tão distantes: Argélia e Líbia


Diferentemente dos governos de Ben Ali e Mubarak, a Argélia de Bouteflika e a Líbia de Gaddafi tinham na China e na Rússia seus principais aliados
políticos no cenário internacional – apesar de o coronel líbio anunciar, desde 2008, uma abertura política radical no país.

A Rússia e a China já eram também importantes parceiros comerciais desses países norte-africanos, e largamente escaparam da grande recessão,
mas a alta internacional dos preços de alimentos – em particular, farinhas, açúcar e óleo – atingiu esses países em cheio, pois a importação desses
produtos tinha (e ainda tem) um peso maior na Argélia e Líbia do que na Tunísia e no Egito.

O súbito aumento no custo de vida foi um importante catalisador para a transformação da apatia política em ação direta. A resposta comum dos
dois governos ao cenário de inflação (instituição de reformas tributárias regressivas) somou-se à falta de diálogo político para transformar essas

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nações em barris de pólvora.

Uma guerra civil sangrenta se arrastou pelos anos 1990, terminando com a eleição de Bouteflika. Apesar das promessas de democracia, Bouteflika
seguiu com um rígido controle sobre a imprensa e a atividade parlamentar, além de emendar a constituição argelina em diversas ocasiões para
permitir sua continuidade na cadeira presidencial. A resposta violenta do governo aos protestos por pão, moradia e emprego atiçou a juventude
previamente apática, que acabava de presenciar o levante tunisiano.

Saiba mais
Na Argélia, o controle governamental sobre as redes sociais era maior. A alternativa encontrada foi o uso de aplicativos de mensagens instantâneas
para a organização de protestos por fora dos partidos de oposição já existentes, vigiados de perto pelo governo. Os manifestantes argelinos
imitavam os tunisianos em suas palavras de ordem e até mesmo no emprego da autoimolação como forma de protesto.

Manifestações em Oran, Argélia. Fonte: Fotografia de Issam Bekhti, 22 de fevereiro de 2019.

Ao final de fevereiro, duas semanas após a queda de Mubarak, Bouteflika anunciava:

O fim do estado de sítio na Argélia (instituído em 1992)

Eleições legislativas com regulamentos menos rígidos para o ano seguinte

Grandes reformas constitucionais

Essas grandes concessões à oposição acalmaram a Primavera no país, que em poucos meses esvaziaria as ruas.

Apenas a última promessa não foi cumprida por Bouteflika, o que levou ao ressurgimento de protestos no chamado Movimento Hirak de 2019 – que,
por fim, derrubou Bouteflika e a antiga constituição.

Ao contrário dos casos tunisiano e egípcio, chefes de Estado e organizações internacionais prontificaram-se a apoiar os protestos em poucos dias
após sua deflagração. A instalação de um governo mais resistente aos investimentos russos e chineses era de grande interesse para os Estados
Unidos e a União Europeia.

As concessões realizadas pelo presidente argelino, com apoio público de Beijing e do Kremlin, foram certamente influenciadas pela possibilidade de
ruptura institucional que assomava no horizonte. Mesmo que as transformações políticas rumo a uma democracia liberal não tenham sido tão
radicais quanto na Tunísia, a Argélia conseguiu passar pela Primavera com relativa estabilidade social.

Nada poderia ser mais diferente, porém, do que o desenrolar do processo histórico na vizinha Líbia. Anteriormente propagandista de uma filosofia
política que mesclava islamismo, socialismo, nacionalismo árabe e ideias terceiro-mundistas, o ex-presidente, ex-premiê e comandante militar

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Muammar Gaddafi (foto) adentrou o século XXI prometendo aprofundar laços com o Ocidente, realizar eleições multipartidárias e combater o
nacionalismo secularista árabe de seus vizinhos em nome de um recém-descoberto sentimento pan-africanista.

Temeroso de perder o poder da mesma forma que o tomou da antiga monarquia da Líbia – por meio de um golpe militar –, Gaddafi havia enxugado
as forças armadas líbias para menos de 50 mil homens, mantendo o controle do país com algumas brigadas compostas por homens leais,
recrutados de clãs árabes e berberes aliados. Aliás, a Líbia sob Gaddafi nunca superou o sectarismo entre os antigos clãs rivais; o coronel mantinha
o tênue equilíbrio político do país por meio da distribuição cuidadosa de cargos entre eles.

A queda do preço do barril de petróleo e o encarecimento dos alimentos serviram apenas para expor as feridas malcuradas do país. Pode-se
argumentar que o fator econômico foi secundário para a deflagração da Primavera Árabe na Líbia. Os motivos listados a seguir fizeram com que
protestos pacíficos em Benghazi no início de fevereiro escalassem para uma tomada da cidade por manifestantes no final do mês:

1. A animosidade entre 2. A repressão de críticas, 3. A hostilidade entre 4. A influência contagiante


vários clãs e o governo apesar das promessas de árabes e berberes dos protestos na Tunísia e
abertura no Egito
As tradições locais se A violência do governo e a
reorganizam como foma de Valendo-se dos velhos recuperação das identidades Surge um ingrediente inédito:
combater os governos que acordos internacionais e históricas geram ampliação o exemplo. Se tudo o que
consideravam “não achando que conseguiriam da quantidade de disputas. parecia solução estava no
representativos”. rapidamente abafar os passado ou no presente
levantes, os governos apelam (dominado por potências), os
para violência. levantes nos demais países
ocasionaram uma nova
resistência.

Protestantes egípcios em suporte à Líbia, em 2011.

No vácuo de poder, milícias islamistas adquiriram enorme influência na cidade. No mês seguinte, uma variedade de grupos armados apareceu no
país, alegando lealdade a diferentes tribos e movimentos religiosos. Com forte apoio logístico e aéreo da Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN) e oposição chinesa e russa, os rebeldes tomaram a capital Trípoli em agosto. O Conselho Nacional de Transição – órgão criado para unificar
a oposição a Gaddafi – foi reconhecido internacionalmente no mês seguinte como o governo líbio legítimo.

A guerra paralisou por completo a indústria petrolífera do país, jogando-o na miséria. O Conselho não conseguiu controlar a atividade das diversas
milícias, muitas delas recebendo financiamento dos governos egípcio, catari, turco e emirático. A Líbia terminou 2011 como uma “colcha de
retalhos”, com diferentes regiões sendo governadas pelo Conselho, por grupos armados nacionalistas, organizações jihadistas, milícias berberes e
até mesmo por brigadas gaddafistas sobreviventes.

A violência sectária tornou-se rotina e a anomia social permitiu a emergência da segregação espacial por gênero em cidades como Benghazi e de
um mercado aberto de imigrantes negros escravizados em outras cidades dominadas por jihadistas. A incapacidade de se criar um Estado e um
exército unificados no país resultou em uma nova guerra civil em 2014 que se estendeu até outubro de 2020. Um governo unificado foi anunciado
em março de 2021; contudo, no momento da escrita deste texto, as diversas facções militares e paramilitares existentes na Líbia permanecem
separadas.

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Combatentes pelo Conselho Nacional após a tomada da região de Bani Walid, importante centro gaddaffista (2011).

A extensão do envolvimento internacional na Primavera e o consequente conflito na Líbia seriam um prenúncio da situação na Síria. Praticamente
toda a Liga Árabe, com as notáveis exceções de Argélia e Síria, apoiou a intervenção militar da OTAN contra Gaddafi. A condenação ao governo do
coronel foi tão forte que até a neutra Suíça proveu armas aos combatentes antigaddafistas.

Rússia e China limitaram-se ao apoio diplomático, com apenas o pequeno Belarus enviando tropas e armas para auxiliar o “líder fraternal” da Líbia. O
exército líbio era pequeno demais para resistir a uma campanha militar apoiada pela OTAN; os russos e chineses apenas esperaram a confirmação
da tomada de Trípoli para reconhecer o Conselho como governo legítimo no país, em vez de reconhecê-lo pouco tempo após sua formação.

Gaddafi era islamista demais para receber apoio dos militares egípcios, mas não tanto para ganhar simpatia entre as monarquias do golfo Pérsico e
as milícias jihadistas que se fortaleciam no país. Seu discurso de abertura para os países ocidentais alienou russos e chineses; seu abandono do
nacionalismo árabe e seu histórico de financiamento de movimentos militantes na África Subsaariana e no Oriente Médio lhe custaram qualquer
apoio internacional de peso em escala local, continental ou global.

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Prelúdio do Inverno
Nosso especialista, Rodrigo Rainha, faz uma metáfora, relacionando os eventos da Primavera Árabe às outras estações do ano:

A Síria

Bashar al-Assad (foto), filho do ex-presidente Hafez el-Assad, assumiu a presidência da Síria em 2000 em meio a expectativas de que realizasse
grandes reformas democráticas. Ele instituiu restrições ao uso da internet no país, desfez regulações em certos setores da economia, anistiou
presos políticos e evacuou as tropas sírias do vizinho Líbano, em 2005.

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No entanto, sua moderação relativa na política interna do país foi acompanhada de uma política externa contrária à do egípcio Mubarak e do
tunisiano Ben Ali: reafirmou o papel da Síria como baluarte árabe e secularista contra Israel e a monarquia saudita, ampliou parcerias comerciais e
militares com a Rússia e aprofundou relações diplomáticas e militares com o Irã e seus aliados – especialmente o Hezbollah no Líbano.

Essa aproximação com a teocracia xiita de Teerã provocou tensões internas na Síria, já que o discurso secularista de Assad era acompanhado da
distribuição de cargos políticos e militares entre alauitas (corrente do Islã xiita praticada pela família Assad e prevalente na região costeira do país).
Um fator agravante era o fato de muitos dos presos políticos anistiados serem conservadores religiosos e islamistas sunitas que, uma vez soltos,
entraram em contato com militantes sunitas do vizinho Iraque, que se mantinham em conflito com o governo iraquiano e as tropas estadunidenses
estacionadas ali.

A baixa no preço do petróleo na virada para a década de 2010 gerou um crescimento no desemprego e afetou fortemente o setor da construção civil
no país. Uma seca prolongada desde 2006 forçou muitas famílias a abandonarem o campo e buscarem oportunidades nas cidades, gerando o
maior deficit habitacional em décadas. A seca também levou a Síria a depender mais ainda de importações de alimentos em um período de alta
generalizada dos preços.

As tensões sectárias e a piora das condições de vida levaram a juventude síria para as ruas de Damasco.

Quando protestos na cidade predominantemente sunita de Daraa, no sul do país, utilizaram slogans típicos da Primavera (“O povo quer derrubar o
regime”), o governo respondeu com repressão brutal e acusações de extremismo religioso. Buscando evitar que o governo desmoronasse como na
Líbia, Assad ordenou a ocupação militar de Daraa, resultando em dezenas, senão centenas de mortes.

Jovem protestando contra Assad e Putin (na imagem, o cartaz diz “Assad é um terrorista, Putin é um terrorista”), em 2019.

Com imagens dos confrontos entre tropas governamentais e manifestantes circulando pelo país e pelo mundo, uma parte significativa de oficiais
militares, majoritariamente sunitas, desertou do exército sírio em julho do mesmo ano, anunciando a formação do Exército Livre Sírio e de sua
contraparte governamental, o Conselho Nacional Sírio.

A Rússia também queria evitar uma nova Líbia, e foi mais incisiva em seu apoio a Assad do que com Gaddafi. Manter um governo aliado na Síria era
importante não apenas pela localização estratégica (acesso fácil ao Mediterrâneo, Israel, Turquia e Iraque) e pelos poços de petróleo existentes no
interior do país, mas pela presença na Síria de importantes oleodutos e gasodutos que escoam a produção petroquímica de outros países como Irã
e Iraque.

A partir da fundação do Exército Livre, Estados Unidos, Reino Unido e França reconheceram o Conselho como governo legítimo da Síria e passaram
a prover a oposição síria com armas, munições e treinamento. Simultaneamente, tentaram aprovar resoluções na Organização das Nações Unidas
(ONU) para retirar o reconhecimento internacional e autorizar sanções contra o governo de Assad, mas todas essas tentativas receberam o veto da
Rússia no Conselho de Segurança da ONU.

Além de aumentar as vendas de armas para o governo sírio, a Rússia também enviou mais tropas para o país, com o pretexto inicial de auxiliar no
treinamento de oficiais e na logística das forças armadas sírias.

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Saiba mais
O Irã também se envolveu diretamente, primeiramente a partir de bombardeios e posteriormente com batalhões do Exército de Guardiões da
Revolução Islâmica – uma força militar iraniana à parte do exército convencional daquele país.

Com pouco reconhecimento internacional, o Conselho Nacional e o Exército Livre encontraram dificuldades em consolidar seu papel de liderança na
oposição a Assad, que fragmentou-se. A fuga de muitos jihadistas iraquianos para a Síria – incluindo membros da organização Estado Islâmico do
Iraque – e a existência de financiamento mais estável advindo da Turquia, da Arábia Saudita e do Catar possibilitaram a ascensão de grupos
armados sunitas, como a Frente al-Nusra – fundada a partir de células da al-Qaeda no país – e Jund al-Aqsa.

A desorganização do Exército Livre também permitiu que algumas brigadas vendessem armas adquiridas dos estadunidenses para esses grupos.
Muitos também desertaram para essas organizações. A violência sectária cresceu a tal ponto que, em 2013, a organização antixiita e anticurda
Estado Islâmico do Iraque (agora denominado Estado Islâmico do Iraque e do Levante) tomou controle do vale do Eufrates, promovendo massacres
de curdos e árabes que não adotassem a sua versão extremista do Islã salafista.

Ao tomar o controle de grandes poços de petróleo do país, o Daesh (abreviação do nome árabe do Estado Islâmico) garantiu uma fonte de
financiamento, contrabandeando petróleo para comerciantes locais sírios, jordanianos e iraquianos. Diversos governos (Síria, Turquia, Israel, Arábia
Saudita e Irã) acusaram uns aos outros de comprar petróleo produzido pelo Daesh ao longo do conflito.

Muitos comentaristas políticos e historiadores referem-se a um “Inverno Árabe” após a Primavera. As esperanças de construção de democracias
pluripartidárias estáveis resultaram em pouca ou nenhuma mudança institucional (como nas monarquias do Golfo), novos governos autoritários e
militarizados (como no Egito), disseminação do extremismo salafista, guerras civis sangrentas (como na Síria e na Líbia) e uma enorme onda
migratória para a Europa.

Comentário

De todos os estudos de caso que exploramos, a Síria se destaca como símbolo: dez anos depois, a guerra segue sem tréguas, ao contrário da Líbia.
Apenas a Tunísia, ponto inicial da Primavera, fez florescer os objetivos da revolta; na Argélia, na Líbia e na Síria, segue a incerteza.

Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

A Primavera Árabe pode ser caracterizada por:

I. Uma reação ao domínio estadunidense na região após a invasão de Afeganistão e Iraque.

II. Conjunto de oposições aos governos vigentes, marco do processo, ainda que localmente os processos sejam diversos.

III. A Primavera Árabe é um movimento externo aos países árabes, sendo uma influência do Ocidente na região via redes sociais.

IV. A Primavera Árabe tem fatores internos e externos, podendo ser um fenômeno que dialoga com a dinâmica do mundo globalizado.

Estão corretas as afirmativas:

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A I e II

B I e III

C I e IV

D II e III

E II e IV

Parabéns! A alternativa E está correta.

Repleta de falsas polêmicas, a Primavera Árabe é uma dinâmica de esgotamento de velhas forças que permitiram o aparecimento de lideranças
locais, ao mesmo tempo a sua dinâmica, forma e comunicação dialogam com o mundo, sem falsa dicotomia ou polêmica sobre sua origem.

Questão 2

Ao reconhecer o processo de eclosão dos movimentos da Primavera árabe na Tunísia, devemos considerar que:

A o envelhecimento do líder carismático e a ausência de um governo foram os principais motivos da revolta.

B apoiado pela França e pelos Estados Unidos, o levante tunisiano foi entendido como uma conciliação com o Ocidente.

a movimentação política tunisiana foi atípica, por isso entendida como estopim, não dialoga com as demais movimentações da
C
Primavera Árabe.

as redes sociais foram uma marca de mobilização na Tunísia e acabaram se tornando forma recorrente em todas as
D
movimentações da Primavera Árabe.

as mídias foram usadas para que lideranças carismáticas discursassem contra os poderes liberais e os processos privatistas
E
vividos na Tunísia.

Parabéns! A alternativa D está correta.

Temos um conjunto de apontamentos que dialogam com a realidade tunisiana, mas não caracterizados de forma correta. A ausência de um
líder carismático – apesar de uma liderança simbólica – impacta, mas não define o processo. Já é de 1987 que as potências apoiam os
movimentos. Depois, quando se veem vitoriosos, passaram a ser vistos com desconfiança. O caso da Tunísia é parte e não um processo
atípico, apesar de ser um dos primeiros movimentos. Tem como característica a forma sem lideranças fixas, e com forte mobilização das redes
sociais é emblemática.

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2 - Crises migratórias
Ao final deste módulo, você será capaz de comparar as crises migratórias mundiais no século XXI.

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Quando os imigrantes eram eles
Neste vídeo, nosso especialista Rodrigo Rainha fala sobre o tratamento histórico aos fluxos migratórios e a questão das tragédias humanitárias que
os envolvem:

Introdução
Quando discorremos sobre confrontos militares, há certa tendência à abstração. Focamos em causas gerais do conflito, negociações entre as
instituições envolvidas e números de mortos e feridos; é fácil esquecer os rostos por trás dos números e as vidas perdidas ou alteradas para sempre
fora do campo de batalha.

Na maioria esmagadora das guerras, apenas uma parte pequena da população de dado país é mobilizada em forças militares ou paramilitares, e a
população civil local se vê entre tiroteios e bombardeios. Grande parte não vê escolha senão fugir para preservar suas vidas e famílias.

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Sírio em meio aos escombros resultante de um ataque aéreo, em 2020.

É evidente que os seres humanos, ao longo da história, circularam de forma mais ou menos livre, apesar de obstáculos naturais e tentativas
humanas de controlar o movimento de pessoas com fronteiras e alfândegas. Durante períodos de conflito, o desespero e a vontade de viver buscam
vencer qualquer obstáculo, e as iniciativas para impedir esse movimento parecem cada vez mais fúteis e desumanas.

Observemos o caso de Alan Shenu, mais conhecido na mídia internacional como Alan Kurdi.

O menino curdo, nascido em Kobani, na Síria, em 2012, estava com seu pai Abdullah, sua mãe Rehana e seu irmão Ghalib na cidade turca de
Bodrum, em setembro de 2015. A família fugiu para a Turquia em junho do mesmo ano, escapando do avanço das tropas do grupo fundamentalista
Daesh, conhecido também pelos massacres e estupros da população curda no Iraque e na Síria.

Comentário
Seguindo os passos de uma das tias de Alan, a família tentava chegar ao Canadá, mas as autoridades canadenses rejeitaram o pedido de asilo dos
Shenu, e o governo turco também negou seus vistos de saída. Em desespero, Abdullah usou a maior parte de seu dinheiro (quase 6 mil dólares) para
comprar quatro passagens ilegais para a ilha grega de Cós, a quatro quilômetros da costa.

Na madrugada do dia 2 de setembro, a família embarcou com mais doze pessoas em um bote inflável que virou no mar em poucos minutos. Os
coletes salva-vidas distribuídos pelos atravessadores eram falsos e não funcionaram. Rehana, Ghalib e Alan morreram afogados, e seus corpos,
junto aos de outras vítimas, apareceram nas praias de Bodrum na manhã seguinte.

A imagem do corpo do pequeno Alan, na beira do mar e com o rosto voltado para a areia, chocou o mundo.

Essa era a consequência final do sectarismo, da guerra e, principalmente, da rejeição.

Abdullah Ghaleb Kurdi com o livro "O menino na praia" sobre seu filho, Alan Kurdi, cujo cadáver foi encontrado nas ondas de uma praia turca.

No Natal daquele ano, Abdullah leu uma mensagem no Canal 4 britânico:

É muito difícil quando uma pessoa fecha uma porta no rosto de outra. (...) Neste momento do ano, peço a
todos que pensem na dor dos pais, mães e crianças que buscam paz e segurança. Pedimos apenas um pouco
da simpatia de vocês.

Casos como o da família Shenu ilustram a incapacidade das burocracias estatais de países europeus e norte-americanos em lidar com o fluxo
intensificado de imigrantes e refugiados para essas regiões a partir de 2014, como resultado de guerras civis e crescimento generalizado do crime
no Oriente Médio, na África Subsaariana e na América Central.

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Esse caso é emblemático também para indicar o crescimento de forte oposição à imigração de africanos, asiáticos e latino-americanos por parte de
movimentos conservadores na Europa e nos Estados Unidos, associados ao ressurgimento de movimentos de extrema direita, como o grupo Pegida
(Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente) na Alemanha e o partido Britain First (“Bretanha Primeiro”), no Reino Unido.

O caso europeu
Desde seu início, a guerra civil na Síria provocou o desalojamento de mais da metade da sua população pré-guerra, quase 22 milhões de habitantes.

Povo sírio em campo de refugiados em Mafraq, na Jordânia.

A maioria – cerca de 6 milhões – é de refugiados internos, que fugiram das regiões norte e leste do país para a costa mediterrânea, região menos
afetada pelo conflito. Cerca de 5,5 milhões, em 2016, haviam cruzado as fronteiras do país, a maioria para países do próprio Oriente Médio como
Turquia, Líbano, Jordânia e Egito.

No entanto, muitos continuaram suas jornadas rumo a países europeus por razões diversas. A ascensão de Recep Erdogan aos cargos de primeiro-
ministro e, posteriormente, presidente da Turquia provocou tensões no país, com a adoção de uma agenda política religiosa e conservadora, a
escalada no conflito armado no sudeste do país com organizações curdas e a decisão do governo de intervir na própria guerra civil.

Grupo de refugiados na fronteira entre a Croácia e a Sérvia a caminho da União Europeia.

Uma tentativa frustrada de golpe militar na Síria contra Erdogan (foto) em 2016 também provocou pânico na população asilada, que passou a dirigir-
se para a Europa (principalmente para a Grécia) temendo uma guerra civil no país.

No ano seguinte, Erdogan construiu uma aliança com o Partido do Movimento Nacionalista, de extrema direita, e realizou uma reforma
constitucional que aumentou os poderes da presidência, enfraquecendo ainda mais a democracia e o Estado laico na Turquia.

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No módulo anterior, observamos a situação instável do Egito durante e após a Primavera Árabe. O governo autoritário de Abdel Fattah el-Sisi
inaugurou uma nova era de supressão da liberdade de imprensa no Egito e estreitou as relações do país com o governo al-Assad na Síria, o que
levantou boatos de deportações. Uma insurgência islamista de ex-apoiadores do presidente deposto Mohamed Morsi na península do Sinai também
ameaçava se espalhar pelo norte do país, o que levou muitos refugiados a buscar a Europa.

Os países da União Europeia, recuperando-se da grande recessão, atraíram os refugiados sírios (assim como os iraquianos e afegãos, também
escapando de guerras civis) pela retomada econômica, possibilidades de emprego, relativa estabilidade institucional e ausência de conflitos
armados. A degradação ambiental e os conflitos armados na África Subsaariana, especialmente na África Ocidental, também levou muitos africanos
(nigerianos, gambianos, senegaleses, malianos etc.) a buscar oportunidades em uma Europa economicamente reconstruída.

Duas rotas são muito utilizadas pelos imigrantes:

ecessão
Conhecida como Crise da Grécia, arrastou diversos países para o endividamento público na zona do Euro, impactados ainda pela crise dos bancos
estadunidenses em 2008.

Rota do Mediterrâneo Oriental

A rota mais utilizada pelos imigrantes médio-orientais foi a do Mediterrâneo Oriental: passando pela Turquia, os viajantes cruzam as fronteiras
terrestres daquele país com a Grécia e Bulgária, ou atravessam o mar Egeu em botes e barcos rumo às ilhas gregas (como a família Shenu).

Rota do Mediterrâneo Central

A segunda rota migratória mais popular foi a do Mediterrâneo Central, em que contrabandistas lotam de imigrantes barcos e botes na Líbia para
atravessar o mar Mediterrâneo rumo à Itália ou à pequena Malta. Os imigrantes sírios, afegãos e iraquianos atravessavam o Egito para chegar à
Líbia, e os nigerianos, gambianos e senegaleses cruzavam o Saara.

Reflexão
Na União Europeia, alguns permanecem nesses países ou buscam ser realocados via programas de redistribuição migratória para países
considerados mais receptivos ou com melhores oportunidades econômicas, como Alemanha, Itália, França, Reino Unido e Suécia. A maioria, no
entanto, continua a jornada pela rota dos Bálcãs Ocidentais, atravessando a Macedônia e a Sérvia, rumo à Hungria, Alemanha e outros países já
citados.

Muito perigosa, essa rota resultou em tantos naufrágios e afogamentos que organizações não governamentais (ONGs) como a Save the Children
Fund e a Médicos Sem Fronteiras passaram a operar navios de resgate com regularidade na região. A abertura dessa rota foi possibilitada pela
guerra civil na Líbia, com o colapso das estruturas governamentais no país norte-africano e, consequentemente, do controle sobre as fronteiras
terrestres e marítimas.

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ontrole sobre as fronteiras terrestres e marítimas


Devido ao caos institucional no país, muitos atravessadores operavam abertamente e sem qualquer sanção, e os imigrantes, particularmente os
africanos negros, corriam risco de cair nas mãos de traficantes de pessoas; até a compra e venda aberta de imigrantes escravizados foi reportada em
cidades líbias durante esse período.

Em outubro de 2013, o governo italiano iniciou a primeira resposta governamental de amplo alcance ao fluxo migratório no Mediterrâneo Central, a
Operação Mare Nostrum. Navios, helicópteros e aviões de reconhecimento passaram a patrulhar as águas da região buscando barcos com
imigrantes, resgatando os embarcados para iniciar seu processo de solicitação de asilo.

À medida que o número de imigrantes crescia, o governo italiano requisitou ajuda financeira aos países-membros da União Europeia para manter a
operação. Com seus pedidos de ajuda ignorados e sofrendo pressão crescente da direita conservadora anti-imigração, o primeiro-ministro italiano
Matteo Renzi suspendeu a operação em outubro de 2014, um ano após seu início.

Imigrantes resgatados no Mar Mediterrâneo pela operação Mare Nostrum.

Após quase um mês de inatividade, a União Europeia, por meio de sua agência de fronteiras e guarda costeira, a Frontex, iniciou a Operação Triton,
com financiamento da União e participação de dezesseis países-membros.

A Operação Triton, no entanto, foi um fracasso em seu início. Com pouca verba – 2,9 milhões de euros por mês, ou seja, bem menos do que os 9
milhões de euros mensais destinados à Operação Mare Nostrum –, e poucos navios, aviões e funcionários disponíveis, a operação falhou em lidar
com a intensificação do fluxo migratório proveniente da Líbia em 2015, com pelo menos quatro naufrágios e mais de mil mortos e desaparecidos
apenas no mês de abril.

Após fortes críticas, membros da Comissão Europeia sugeriram dobrar o financiamento da operação, mas isso ainda seria insuficiente. Apenas ao
fim do mês foi aprovado um financiamento similar à operação italiana anterior. Após anos de funcionamento e uma redução nas chegadas de
imigrantes, a Operação Triton foi substituída em 2018 pela Operação Themis, de menor porte.

Os governos da Europa Ocidental, após a Operação Mare Nostrum, tentaram mobilizar os demais membros da União Europeia para a construção de
políticas conjuntas para a crise migratória. O governo alemão, liderado pela chanceler Angela Merkel (foto), foi particularmente vocal.

O fechamento das fronteiras europeias não impediria o movimento de migrantes, apenas exacerbaria uma crise humanitária; para não sobrecarregar
os países fronteiriços que recebiam maiores números de imigrantes (Itália, Grécia e Hungria), foi proposta a distribuição desses imigrantes entre os
membros da União Europeia, com financiamento da União e da própria Alemanha.

Contudo, enquanto países como Alemanha, França, Espanha e Suíça se dispuseram a receber dezenas de milhares de imigrantes redistribuídos,
governos da Europa Central como República Tcheca, Hungria e Eslováquia posicionaram-se contrários ao que viam como uma ingerência da União
em políticas nacionais, prevenindo a formação de um consenso e provocando um voto majoritário no Conselho Europeu.

Derrotados, os países contrários não foram forçados a receber cotas de imigrantes, mas sofreram sanções econômicas.

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Exemplo
Por seu voto contrário, o governo húngaro não seria contemplado com o sistema de redistribuição e permaneceria com os imigrantes em seu
território.

O governo conservador e xenófobo do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán passou então a restringir a entrada e o registro de imigrantes
provenientes da Sérvia e da Croácia, construindo cercas e grades ao longo das fronteiras húngaras com esses países, e chegou ao ponto de
transportar imigrantes por ônibus para a fronteira com a Áustria, onde eram instruídos a atravessar a pé.

O caso húngaro não foi um incidente isolado. Casos de violência e criminalidade envolvendo imigrantes muçulmanos e o fantasma da recém-
superada grande recessão foram amplificados e utilizados por políticos e organizações xenófobas da direita e extrema direita para avivar as chamas
do preconceito racial e da intolerância religiosa na população europeia, provocando o surgimento e crescimento (inclusive eleitoral) de partidos e
grupos ultraconservadores anti-imigração.

Tudo muda quando saímos da teoria e conhecemos as histórias. Agora, vamos conhecer alguns desses partidos e grupos ultraconservadores anti-
imigração que surgiram ou cresceram:

Na Hungria

Orbán levou seu partido, o Fidesz (Aliança Cívica Húngara), a alcançar dois terços das cadeiras do Parlamento húngaro nas eleições de
2014 e 2018. O país também viu também o crescimento da extrema direita com o partido Jobbik, que havia liderado protestos antissemitas
contra a realização do Congresso Nacional Judaico em Budapeste no passado, além de diversas ações homofóbicas e islamofóbicas.

Primeiro-ministro, Viktor Orbán

Na França

Sob a liderança de Marine Le Pen, o partido Frente Nacional (agora renomeado Reagrupamento Nacional) voltou à Assembleia Nacional em
2012 e chegou ao segundo turno das eleições presidenciais de 2017, recebendo mais de 33% dos votos válidos.

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Marine Le Pen

Na Itália

A Liga Norte italiana, sob a liderança de Matteo Salvini desde 2013, transformou-se de uma aliança de movimentos regionalistas do norte
da Itália em uma terceira força partidária do país, com uma plataforma de extrema direita radicalmente contrária à imigração.

Matteo Salvini

Na Alemanha

A extrema direita voltou ao Bundestag pela primeira vez desde a década de 1950 nas eleições de 2017, quando o partido anti-imigração
Alternativa para a Alemanha – fundado em 2013 – alcançou a marca de 94 cadeiras.

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Ativistas que manifestaram apoio ao AfD (Alternativa para a Alemanha).

Em nível continental

Os setores mais conservadores e extremistas da direita parlamentar da União Europeia se reorganizaram no grupo Europa de Nações e
Liberdades, com a oposição à imigração, particularmente de muçulmanos, como elemento central do programa político; o grupo renomeou-
se Identidade e Democracia e mantém 75 assentos no Parlamento Europeu.

Membros do grupo Europa de Nações e Liberdades reunidos.

Apesar de não ser associado única e exclusivamente ao crescimento da extrema direita britânica, o processo político da retirada do Reino Unido da
União Europeia – o Brexit – esteve intrinsecamente ligado à crise migratória.

Um dos partidos mais ativos na campanha pelo Brexit (e na campanha pela organização do referendo que aprovou o Brexit), o Partido da
Independência do Reino Unido tomou a oposição à imigração – especialmente ao sistema de redistribuição de cotas de imigrantes entre membros
da União Europeia – como um dos argumentos centrais para a saída do bloco.

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O então líder do partido, Nigel Farage, afirmou em 2015 para o Canal 4 britânico que havia uma “quinta-coluna” de muçulmanos fundamentalistas no
Reino Unido.

eino Unido
Às vésperas do referendo, em junho de 2016, uma pesquisa de opinião do instituto IPSOS Mori mostrou que 48% dos eleitores britânicos afirmavam que
a imigração era o problema social mais importante do país; outra pesquisa apontou que 33% dos votantes a favor do Brexit citaram maior controle
sobre a imigração como justificativa para o voto.

Em contradição com o discurso eurocético, o Reino Unido teve um dos menores gastos relativos com a recepção de refugiados da Europa,
chegando a um máximo de 0,04% do produto interno bruto (PIB) britânico no ano fiscal de 2015-2016, o auge da crise migratória.

Conflitos na América Central e o caso dos EUA


Outra grande crise migratória do século XXI ocorreu no outro lado do oceano Atlântico, na América do Norte, quase simultaneamente à crise
migratória na Europa, mas por razões diferentes e com consequências outras.

Em 2014, apesar da tendência geral de queda no número de imigrantes apreendidos por patrulhas estadunidenses na fronteira entre os EUA e o
México, o número de imigrantes não mexicanos quase dobrou em relação ao ano anterior. A maioria desses imigrantes eram crianças e jovens com
menos de 18 anos oriundos do “Triângulo Norte” da América Central: Guatemala, Honduras e El Salvador.

Imigrantes da Guatemala se entregam a um agente da Patrulha de Fronteira após cruzar o muro da fronteira entre os Estados Unidos e o México.

Devido à H.R. 7311 – uma lei de 2008 que buscava combater o tráfico de crianças –, a deportação de menores desacompanhados oriundos de
países não fronteiriços com os Estados Unidos era muito restrita.

Rumores disseminados por atravessadores de que essa lei garantiria vistos permanentes no futuro para os jovens (e posteriormente para os pais)
levou muitas famílias, temendo pela vida de seus filhos em meio a um crescimento da violência criminal nesses países, a enviar seus filhos
separadamente para a fronteira durante o processo migratório.

Outros rumores espalhados pelos contrabandistas incluíam a emissão de vistos automáticos para menores com parentes já residentes nos EUA e
para mulheres com crianças. A quantidade enorme de crianças e jovens centro-americanos que chegaram à fronteira em 2014 sobrecarregou
centros de recepção, registro e hospedagem, além dos tribunais próprios de casos de imigração.

É evidente que ninguém em sã consciência submeteria a si próprio e sua família a perigos tão grandes nessas jornadas sem a percepção de que
havia perigos maiores em seus países de origem.

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Saiba mais
Apesar de uma leve tendência de queda, as taxas anuais de homicídios nos países do Triângulo Norte permaneceram entre as maiores do mundo.
Em 2014, a atividade de gangues e organizações narcotraficantes na Guatemala, em Honduras e em El Salvador aumentou consideravelmente,
levando a um aumento no número de extorsões, sequestros, estupros, roubos e ameaças.

O aumento da violência em El Salvador durante 2014 está associado diretamente ao fim de uma trégua entre os grupos Mara Salvatrucha e La
Dieciocho (La 18).

meaças
Organizações criminosas formadas nos Estados Unidos por imigrantes salvadorenhos e guatemaltecos, fugidos das guerras civis em seus países,
tiveram muitos de seus membros deportados nos anos 1990, e essas gangues tornaram-se máfias internacionais.

Assim como no caso europeu, a recuperação econômica dos Estados Unidos após a grande recessão também reforçou entre eventuais imigrantes o
mito do Sonho Americano, uma visão idealizada daquele país como uma terra de abundância, liberdade e oportunidade, com garantia de emprego,
prosperidade e estabilidade sociopolítica.

A resposta imediata do governo Barack Obama (foto) foi requisitar uma alteração do orçamento em execução para
possibilitar a abertura de novos centros de recepção e processamento ao longo da fronteira do Texas, aluguel de
instalações para hospedagem, realocação de imigrantes para centros em outros estados fronteiriços (como a
Califórnia e o Arizona) e contratação de mais profissionais para o atendimento aos imigrantes, incluindo advogados
para representá-los perante os tribunais.

O anúncio do Programa de Menores da América Central em novembro de 2014 foi recebido com entusiasmo por apoiadores do governo e com forte
resistência dos Republicanos conservadores, que radicalizaram a oposição ao governo Obama por meio da instrumentalização do discurso anti-
imigração.

Debates públicos foram instaurados para determinar se esses jovens eram mesmo refugiados, escapando da violência em seus países, ou
imigrantes econômicos oportunistas, que tomariam vagas de empregos de estadunidenses quando alcançassem a idade suficiente e que utilizariam
seu status de menores protegidos para facilitar a entrada de seus familiares adultos no país.

A questão da imigração era novamente colocada no centro do debate político e partidário nos EUA, com eleitores Democratas reafirmando a longa
história da imigração nos Estados Unidos enquanto eleitores Republicanos transformavam-na em causa primária do desemprego e da criminalidade
no país.

A radicalização do Partido Republicano na década de 2010 é decorrente de vários fatores, entre eles a absorção pelo partido de movimentos e
pautas de extrema direita durante o período.

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Movimento Tea Party.

Notadamente, o movimento Tea Party, fundado com o objetivo de reduzir impostos e gastos governamentais e transformado em organização anti-
imigração, contou com o apoio de políticos republicanos importantes como o senador texano Ted Cruz e o governador de Indiana Mike Pence.

ea Party
A “Festa do chá” é uma referência à independência estadunidense e a revolta contra os ingleses, que marcam a luta pelo país “original”.

Um ponto de virada foi o anúncio da campanha presidencial do empresário e apresentador de televisão Donald Trump pelo Partido Republicano em
junho de 2015. Em meio à crise migratória e discussões acerca da expansão do Programa de Menores da América Central, Trump apresentou o
controle da imigração como tema central de sua campanha, prometendo construir um muro na fronteira entre os Estados Unidos e o México, a ser
pago pelo próprio país vizinho.

Manchete na primeira página do Barron´’s sobre a candidatura de Donald Trump para as eleições primárias republicanas.

Inicialmente considerada mera ferramenta publicitária, a campanha de Trump pela candidatura Republicana cresceu consideravelmente durante
2015, movida pela apresentação do empresário como um homem simples, de fala brusca e pouco complicada, além de suas fortes convicções
nacionalistas, militaristas e religiosas.

O fantasma de grande recessão, a islamofobia presente desde os ataques de 11 de setembro de 2001 (ataque terrorista às torres gêmeas em Nova
York e ao Pentágono) e a oposição às medidas de imigração do governo Obama somaram-se ao marketing político promovido pela empresa
Cambridge Analytica para catapultá-lo à liderança das pesquisas e garantir sua confirmação como candidato Republicano nas disputadíssimas
eleições de 2016.

slamofobia
Termo criado para demarcar o terror e o preconceito contra os seguidores da religião islâmica.

ambridge Analytica
A empresa, originalmente voltada para a ciência da informação, passou a adotar a garimpagem de dados e informações, estudar tendências e montar
estratégias de marketing político, sendo considerada uma das grandes condutoras da vitória de Donald Trump.

Conservadores do movimento de extrema direita, Proud Boys.

À medida que seus discursos atraíam fortes críticas de dentro e fora do partido e seus comícios encontravam manifestantes progressistas pelas
cidades estadunidenses, novos grupos políticos de extrema direita, como o Patriot Prayer (Oração Patriota) e os Proud Boys (Meninos Orgulhosos)

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foram fundados, agindo como intimidadores de críticos e radicalizando cada vez mais a base apoiadora de Trump.

Após uma campanha marcada por controvérsias e disseminação de informações falsas, Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos em
novembro de 2016 com menos votos do que sua adversária democrata Hillary Clinton, mas com uma maioria no Colégio Eleitoral.

Além de extinguir o Programa de Menores, o governo Trump promulgou diversos decretos que:

aumentaram os requisitos para a obtenção de vistos temporários e permanentes;

diminuíram as cotas anuais de aprovações de pedidos de asilo;

dificultaram a obtenção da cidadania estadunidense;

facilitaram a deportação de imigrantes.

Trump tentou também banir cidadãos de diversos países de maioria muçulmana de entrar no país, mesmo com vistos turísticos, e cortar verbas
federais para “cidades-santuário”, municípios que oferecem proteção a imigrantes indocumentados.

Saiba mais
O ápice da política migratória do governo Trump foi a política de separação forçada de crianças imigrantes e suas famílias durante a primeira
metade do ano de 2018, com adultos sendo aprisionados e jovens sendo mantidos em centros de recepção na fronteira. Milhares de crianças, a
maioria centro-americanas, sofreram com a iniciativa; as condições das instalações eram deploráveis e o governo recebeu milhares de denúncias de
maus-tratos e assédio sexual por parte de agentes do Serviço de Imigração dos EUA.

Mesmo após o fim oficial da política de separação de famílias imigrantes, em junho de 2018, centenas de crianças não encontrariam seus
responsáveis, e denúncias de novas separações continuaram ocorrendo até o ano seguinte. A presença vocal da nova direita trumpista no cenário
político dos EUA é prova viva da continuidade de ideais ultraconservadores e xenófobos após 2014.

A eleição do democrata Joe Biden para a presidência do país em 2020 não pôs fim ao debate sobre imigração nos Estados Unidos. A situação dos
imigrantes na fronteira com o México e a islamofobia permanecem problemas sérios na política estadunidense, atraindo atenção internacional.
Apenas saberemos se essas ideias serão referendadas ou gradualmente rejeitadas pela maioria da população estadunidense no desenrolar do
governo Biden durante os próximos anos.

Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

A questão migratória e a maneira como é vista são uma questão política. Seja no processo de crise de onde parte a onda, seja no processo de
recepção de onde vem a onda, esse posicionamento é sempre marcante. Assinale a seguir a afirmação que esclarece melhor essa situação:

O movimento político é burocrático, pois é necessário para a incorporação de imigrantes documentação e suporte, que são
A
caros aos países que os recebem.

O processo político é marcado por uma tendência territorialista × mão de obra, de onde parte não se quer perder mão de obra,
B
aquele que recebe vê a oportunidade de mão de obra mais barata.

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A tendência política de um país, mais próxima a ideais liberais ou a ideais mais nacionalistas, acaba sendo marcante na maneira
como o migrante sai e como ele é recebido.

A política interna dos países em que os grupos estão saindo, se em conflito ou em crise econômica, é o ponto central da
D
equação da migração.

A atratividade econômica e a busca de países com políticas de aceitação de imigrantes para mão de obra, como os países
E
bálticos, são fundamentais para entender os afluxos.

Parabéns! A alternativa C está correta.

As ideologias políticas acabam marcando ações políticas que geram o processo de saída e entrada de migrantes. Não estamos reduzindo o
valor da economia; esse é um fator recorrente na comparação entre as crises migratórias. Regiões mais ricas atraem grande número de
migrantes. No entanto, o debate é sobre a ação de saída e entrada dos públicos, grupos de tendências liberais ou progressistas tendem a
propor políticas de acolhimento, e não tende a gerar impedimento da saída de grupos. Quando os ideais são de governos de força, ditatoriais,
conservadores e de extrema direita são ferrenhos opositores a tais movimentações.

Questão 2

A comparação do caso europeu e do estadunidense pode ser evidenciada em qual das afirmativas a seguir?

A A islamofobia é o elemento mais marcante de ambos os movimentos.

B As tendências políticas de países europeus e dos Estado Unidos não influenciam na crise migratória.

As tensões econômicas, especialmente marcadas por grupos que entendem que a chegada de migrantes gerará a
C
desestabilização das regiões, é uma característica recorrente.

O trumpismo se aproxima das tendências políticas de Itália, Hungria e Grécia na recepção de imigrantes, transformando-os em
D
cidadãos de segunda classe.

As fronteiras muradas e fortificadas, junto com os campos “de concentração”, foram uma tendência mundial e chocaram o
E
mundo.

Parabéns! A alternativa C está correta.

As dinâmicas das crises migratórias encontram semelhanças e diferenças nos dois casos. Se a variação está no processo eventual e específico
que intensificou o movimento para Europa, a crise estadunidense é fruto da política do governo Trump, mudando a postura para um movimento
histórico. Em ambos dos casos, há a ascensão de grupos políticos que defendem o fechamento das fronteiras como forma de defesa
econômica, social e cultural.

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3 - Guerras comerciais
Ao final deste módulo, você será capaz de localizar o papel das guerras comerciais no século XXI a partir da análise do papel da
China.

video_library
Temos um novo protagonista: China
No vídeo a seguir, nosso especialista, Rodrigo Rainha abordará o crescimento econômico e mercadológico da China:

China e a Organização Mundial do Comércio


A Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995 com o Acordo de Marraquexe, visa à regulamentação das práticas comerciais dos
países-membros, além de fornecer subsídios para a negociação, dirimir conflitos e garantir estrutura de diálogo às partes interessadas. Trata-se, em
certo sentido, de uma espécie de “tribunal” de caráter diplomático-jurídico que se consolidou no marco dos esforços para estimular o regime
multilateral de comércio no pós-Segunda Guerra.

Organização Mundial do Comércio, OMC, em Genebra, Suíça

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Ao longo dos anos, a OMC formulou uma série de medidas que visavam a sanar conflitos que, a seu turno, eram tomados como referência para criar
jurisprudência e garantir alguma previsibilidade no comércio internacional. Destarte, a quantidade de contendas submetidas à apreciação da OMC
no curso do tempo, mais do que indicar seu lugar estratégico para dirimir disputas, mostra o quão conflituosas podem ser as relações multilaterais
que, como se deduz sem muito esforço, partem de lugares assimétricos de negociação e expõem as relações de poder que orientam os diálogos
entre os países-membros.

Em 1993, o governo recrudesceu o processo de abertura comercial por meio de cortes tarifários e da redução na proporção de importações sujeitas
a cotas, sinalizando maior receptividade ao ingresso de produtos estrangeiros no mercado nacional e, por um princípio de reciprocidade,
expressando o desejo de ampliar o mercado consumidor global para os produtos chineses.

overno
Após as reformas de Xiaoping no fim da década de 1980, a China começou a garantir as condições para o ingresso na OMC.

As negociações foram longas e marcadas por diversas tensões, mas o crescimento comercial da China era fato consolidado: as exportações
começaram a circular com maior intensidade, sobretudo favorecidas por acordos bilaterais. Em certo sentido, a maioria já considerava que a
acessão chinesa à OMC era um fato incontornável e que sua ausência acabava por enfraquecer a própria organização.

cordos bilaterais
De um lado, alguns países-membros consideravam o acesso da China oportuno, sobretudo pelo potencial dos investimentos que poderiam ser
realizados no país asiático, pelo desejo de situá-lo nos marcos regulatórios do comércio internacional e para garantir a abertura de um mercado
consumidor de mais de um 1 bilhão de pessoas às empresas estrangeiras. De outro lado, emergia a preocupação com o poderio chinês, que
certamente impactaria a geopolítica global e ameaçaria a hegemonia dos países ocidentais desenvolvidos, que se viram diante do risco de perda de
mercados para esse player que então despontava com enorme competitividade.

Em 2001, como adiantamos, o processo que se arrastou por mais de quinze anos encontrou algum termo em reunião
realizada no Qatar, a conhecida Rodada de Doha. O protocolo de acesso chinês, aprovado nesse encontro, realizado
em novembro, foi ratificado pelo Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo da China em dezembro do
mesmo ano, formalizando o ingresso na OMC. Todo esse processo se deu a partir de cláusulas e acordos bastante
rígidos que visavam a garantir segurança jurídica e proteção aos países-membros.

Nota-se, inclusive, que tais dispositivos que condicionaram a acessão chinesa foram em muitos pontos mais rígidos do que aqueles aplicados a
outros países (PRAZERES, 2005, p. 38). Parte das exigências que recaíram de modo particular sobre a China visavam a coibir o ingresso de produtos
chineses nos mercados nacionais, evitando fragilizar as indústrias domésticas que poderiam enfrentar dificuldades em concorrer com produtos
similares a preços bem mais baixos.

Contudo, e a despeito das preocupações, houve “uma aceleração na taxa de crescimento econômico da China após 2001, com o boom nas
exportações e com fluxos contínuos de investimento estrangeiro direto” (JENKINS, 2019, p. 15). Os sucessivos e grandes superavit permitiram que a
economia chinesa acumulasse reservas cambiais ao mesmo tempo que o setor privado se tornou mais lucrativo e produtivo, fenômeno igualmente
observado nas empresas estatais. O século XXI começou com a hegemonia estadunidense no comércio global terrivelmente ameaçada.

Ao longo das últimas décadas, muitos discursos que tentavam justificar o crescimento chinês foram levantados. Um deles, bastante presente em
alguns setores sociais norte-americanos, sugeria que esse processo tinha se dado à custa da desatenção e letargia dos EUA.

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Essa narrativa é recuperada, por exemplo, por Niall Ferguson, historiador escocês e pesquisador de Harvard, que em encontro realizado no Canadá
em junho de 2011 considerou que:

O principal motivo para a vantagem da China no século XXI reside, em última instância, no declínio do mundo ocidental (...). O século XXI

será da China pelo declínio de uma América obesa, dependente de dinheiro emprestado e por demais sexualizada, sem falar da deficiência

da Europa.

(FERGUSON et al., 2012, p. 19)

Os autores citam, cumpre destacar, as crises financeiras de 2008 e o desajuste fiscal das contas estadunidenses, mas, para além desses fatos
materiais e das supostas implicações morais, sobrepesa a noção de que o gigante asiático se ergueu não por suas capacidades políticas, mas pela
falta de zelo dos estadunidenses em relação a seu lugar na economia global.

Poderíamos recordar também que, por muito tempo, investiu-se na narrativa de que o crescimento chinês se deu à custa da hiperexploração de sua
mão de obra, produzindo assim artigos manufaturados em condições de trabalho hostis e impraticáveis, ressoando uma narrativa anticomunista
que contrastava a alegada liberdade do trabalhador ocidental com a submissão e tirania a que estavam expostos os trabalhadores asiáticos.

Os números, contudo, desafiam esse discurso. Entre as reformas de Xiaoping e o ano de 2012, a renda da população chinesa saiu de um patamar
baixo para uma média alta segundo as diretrizes de análise propostas pelo Banco Mundial. A população que vive abaixo da linha de pobreza saiu de
88% em 1981 para 6,5% em 2012, o que significa, em números totais, que mais de 500 milhões de chineses sentiram os efeitos práticos do
crescimento econômico.

Não menos importante, esse cenário também é tributário das altas taxas de investimento público praticadas pelo país, que atingiram 40% do
produto interno bruto (PIB) na década de 2000.

Comentário
Ainda que diversos países asiáticos, incluindo a China, tenham abrigado empresas offshore que buscavam reduzir os custos com mão de obra e
encargos trabalhistas, esse cenário não apenas passou por mudanças significativas, mas se viu diante de uma curiosa inversão: enquanto a Europa

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e os Estados Unidos conviviam com o aumento da informalidade, os trabalhadores e trabalhadoras chinesas viram sua renda média aumentar pari
passu aos direitos e garantias fundamentais.

Nenhum fenômeno social, sobretudo com essa complexidade, pode ser compreendido a partir de explicações monocausais; no outro extremo, os
analistas também precisam reconhecer as dificuldades de identificar todas as variáveis envolvidas nesse processo.

No entanto, um aspecto que merece destaque e que se desdobra com enorme importância é o investimento para a
expansão das empresas chinesas para o exterior.

Sobretudo a partir do Banco de Desenvolvimento da China e do Exim Bank, houve um aporte expressivo de recursos que permitiam que companhias
chinesas se movimentassem para além das fronteiras nacionais, principalmente no continente africano, mas também na América Latina e no
Caribe.

China trabalha para fortalecer o eixo sul do comércio mundial.

As relações diplomáticas, políticas e comerciais entre a China e essas regiões são bem mais antigas, como se deduz, mas ganharam novas
roupagens no início deste século. O governo e o empresariado chineses identificaram o potencial de crescimento econômico desses territórios e
reconheceram que poderiam desempenhar papel ativo nesse processo.

Ao longo dos anos, a China foi se consolidando como o mais importante parceiro comercial de boa parte dos países latinos e africanos, além de
negociar cláusulas de cooperação internacional que visavam não apenas a assegurar mercados consumidores para os produtos chineses, mas
também a garantir obras de infraestrutura e transferência de tecnologia para essas regiões, tendo, como principal contrapartida, a garantia de
acesso às matérias-primas necessárias para abastecer suas indústrias com preço e quantidade adequadas para a enorme demanda.

Comentário

Essas iniciativas consolidam uma dinâmica comercial que se concentra no eixo sul-sul e que produziu enorme impacto na economia, o que por
razões óbvias acendeu o alerta do norte global, sobretudo Estados Unidos e Europa, que viviam e vivem períodos bem menos prósperos do que a
China.

Cumpre ainda recordar, com Hurrell (2006) e McGrew (2011), que, apesar de todas as mudanças no mundo pós-Segunda Guerra, as principais
instituições de governança global tendem a refletir uma ordem mundial concentrada nas expectativas de valores e representações ocidentais, o que
promove uma disjunção entre a distribuição real do poder econômico e sua efetiva presença nesses espaços regulatórios.

Recorde-se, igualmente, que a China precisou se adequar às diretrizes da OMC para garantir sua entrada, o que não significa que, uma vez
assegurada a acessão, essas mesmas diretrizes não se tornaram objeto de disputa e preocupação.

De um lado, há uma potência asiática que caminha a passos largos em direção à hegemonia no marco do comércio internacional a partir dos
esforços de cooperação sul-sul.

close

Do outro, potências do norte global, com taxas de crescimento bem inferiores a seu concorrente asiático, buscam manter a posição de
destaque e assegurar os privilégios econômicos adquiridos nas últimas décadas.

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Guerras comerciais entre EUA e China


As relações comerciais são, por excelência, competitivas e conflitivas. A OMC é, como vimos, uma instituição de governança global que busca
normatizar algumas práticas segundo princípios que intentam disciplinar as relações multilaterais.

No entanto, ainda que os fundamentos liberais possam ser eventualmente acolhidos sem maiores interditos pelos países-membros, é certo que
nem todos abraçam essas e outras diretrizes sem contestação, sobretudo porque esses valores, como vimos, são tributários de relações de poder
que enfatizam uma visão fortemente ocidentalizada.

Soma-se a isso o fato de que, por força das mesmas relações de poder, o aceite às regras do jogo não se confunde com a efetiva assunção de seus
méritos:

Em cenários competitivos, mesmo os defensores da lógica liberalizante podem ser contrariados se os resultados não
corresponderem às expectativas previstas pelas próprias regras que se esforçaram para definir.

As relações comerciais entre Estados Unidos e China não se tornaram conflituosas a partir de 2001. Em 1974, por exemplo, os estadunidenses
aprovaram a emenda Jackson-Vanik, uma lei comercial que impunha uma série de restrições, suscetíveis a revisões anuais, ao antigo bloco
soviético e demais países que não praticavam uma economia de mercado segundo as expectativas dos Estados Unidos, como a China.

China e EUA: relações comerciais marcadas por conlitos.

A própria acessão chinesa à OMC foi duramente criticada (e combatida) pelos estadunidenses ao longo dos anos, pelo menos até o governo Bill
Clinton, quando a recusa se tornou impraticável e as expectativas que se abriam com o amplo mercado consumidor chinês aos produtos
estadunidenses e europeus pareciam mais atraentes do que a desconfiança tradicional. Para a China, a acessão foi decisiva. O comércio de
mercadorias passou de US$ 516 bilhões em 2001 para US$ 4,1 trilhões em 2017.

A contrapartida esperada, contudo, frustrou os principais representantes do norte global: ainda que as tarifas aduaneiras chinesas tenham passado
por uma queda evidente, saindo de uma média de 32,2% em 1992 para 4,8% entre 2003 e 2017, os ganhos financeiros dos países da União Europeia
e dos Estados Unidos ficaram aquém do esperado.

Clientes fazem fila fora do banco Northern Rock para retirar suas economias em função da crise do subprime

Além disso, em 24 de julho de 2007, o índice Dow Jones sofreu forte queda e teve início a chamada crise do subprime, que afetou duramente a
economia estadunidense, ainda que seus efeitos tenham sido globais.

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O alerta dos economistas já tinha sido dado havia algum tempo. Em abril de 2007, a New Century Financial Corporation, o segundo maior credor de
hipotecas do tipo subprime dos Estados Unidos, decretou falência. A expectativa era que a oferta de crédito estimulasse a produção industrial e o
setor de serviços, aquecendo a economia.

A realidade, porém, mostrou-se bem mais hostil: o endividamento não apenas afetou o mercado de crédito, mas sobretudo o consumo no mercado
interno. Os mercados mundiais acompanharam o impacto sofrido pela economia a estadunidense: no Brasil, por exemplo, o índice B3 (Bovespa)
registrou queda de 3,86% naquele mesmo dia 24 de julho, a maior em cinco meses.

alência
Esse tipo de empréstimo, feito com taxas de juros mais vantajosas, era destinado àqueles que não tinham como oferecer garantias suficientes para a
quitação da dívida; em contrapartida, o tomador oferecia seu imóvel caso não fosse capaz de honrar o pagamento das parcelas. Ainda que
individualmente esse tipo de operação fosse arriscada, do ponto de vista do credor era extremamente rentável, sobretudo em cenários de valorização
do mercado imobiliário. A inadimplência, contudo, mostrou-se severa e o próprio valor dos imóveis foi depreciado. Com isso, os estadunidenses deviam
mais do que seu imóvel valia, o que desencadeou um efeito cascata que levou à falência não apenas os que contraíram dívidas, mas também os
bancos que ofereciam esse tipo de negócio e as seguradoras.

Apesar de inúmeras intervenções do Federal Reserve (FED), o Banco Central dos Estados Unidos, a crise se agravou
ao longo de 2008.

Vamos entender a ordem dos fatos:

Em Wall Street parecia tudo normal, mas dentro dos escritórios essa normalidade era de uma enorme tensão. Em março daquele ano, o quinto maior
banco de investimentos estadunidense, o Bear Stearns, estava muito próximo da falência. Contrariando as disposições liberais, o FED ofereceu uma
linha de crédito de US$ 30 bilhões ao JP Morgan Chase para a aquisição do Bear Stearns.

Distrito financeiro de Wall Street

Em julho, duas instituições privadas que administravam mais de US$ 5 trilhões em ativos receberam aporte do Estado de aproximadamente 200
bilhões de dólares. Como a resposta não foi a aguardada, as duas empresas foram, na prática, estatizadas. São elas:

Fannie Mae, com sede em Washington DC.

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Freddie Mac, com sede em McLean, Virgínia.

Também em setembro, o quarto maior banco de investimentos, o Lehman Brothers, anunciou prejuízos bilionários e entrou com pedido de falência.
As medidas intervencionistas, que contrariavam frontalmente o ideário liberal, persistiram.

O Tesouro americano se apressou em socorrer o mercado financeiro e destinou US$ 700 bilhões para a compra de
ativos imobiliários dos bancos visando à recuperação do mercado de crédito.

Apesar dos efeitos positivos dessas intervenções a médio prazo, que interessavam ao mercado, o efeito ao longo desses anos foi de cerca de 8
milhões de estadunidenses perderem seus empregos e suas casas.

Dez anos após a crise, consolidava-se o cenário de desvantagem da economia estadunidense em relação à chinesa. Em 2017, o deficit na balança
comercial de bens foi na ordem de US$ 861 bilhões, e o deficit bilateral com a China representou algo próximo a 42% do total, atingindo a marca de
US$ 363 bilhões. Mais do que isso, nenhum diagnóstico minimamente sério era capaz de prever a contenção do avanço chinês e a correspondente
perda de protagonismo norte-americano no cenário global.

A eleição de Donald Trump em 2016 não pode ser dissociada dessa crise.

Lema patiotista “America First, noticiado no grande jornal internacional de jornalismo, Financial Times.

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O lema que o político conservador empunhou durante seu governo, “America First”, designa uma visão tradicional a respeito da política externa
estadunidense, marcada pelo patriotismo, nacionalismo econômico, unilateralismo e pela rejeição de propostas internacionalistas.

Saiba mais

Esse slogan foi associado a outro, “Make America Great Again”, igualmente sugestivo diante de tal cenário.

O principal alvo da política de Trump, que de alguma forma inaugurou a recente guerra comercial com a China, foram as regras tarifárias.

As tarifas e impostos são mecanismos fundamentais para os países regularem o comércio exterior. Tarifas mais baixas tendem a estimular o
ingresso de produtos estrangeiros, que podem chegar ao consumidor final com preços bem atrativos.

Para que tais produtos não concorram diretamente com os equivalentes das indústrias domésticas, aumentam-se os impostos de importação. Vale
reforçar que esse foi, historicamente, o principal ponto crítico que postergou o acesso da China à OMC.

É bem verdade que muitos alertavam também para os riscos de dumping, prática que ocorre quando uma empresa reduz artificialmente os preços
de seus produtos para afetar a concorrência. No entanto, o ponto nevrálgico de todo o debate que mencionamos anteriormente foram as regras
tarifárias chinesas.

Os bilhões que o Estado investiu para conter a crise do subprime, vale insistir, ajudaram a superar questões como:

Os graves desequilíbrios macroeconômicos

A perda de competitividade

O desemprego

No entanto, e a despeito da recuperação, a posição dos Estados Unidos seguiu desvantajosa em relação à China, e Trump não se furtou de revisar
as políticas liberais que o país defendia historicamente para o comércio multilateral.

As primeiras medidas unilaterais foram precedidas por um período de profundo tensionamento político.

rump
Trump foi eleito no bojo de uma crise política e econômica, razão pela qual seu governo não parecia disposto a recusar o enfrentamento que garantiu
sua eleição, ainda que isso representasse a ruptura prática com os preceitos neoliberais que tanto alardeou e que garantiram, em última instância, o
próprio desenvolvimento econômico dos EUA pós-1945.

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O procurador-geral dos EUA, Matthew Whitaker, acusou a companhia Huawei de cometer fraudes.

Recorde-se, por exemplo, as especulações francamente alardeadas de que o governo chinês se utilizava de telefones para espionagem. O
Departamento de Justiça acusou a companhia Huawei Device Co Ltd de cometer fraudes eletrônicas que, na prática, não foram comprovadas.

Não menos importante, Trump associou à China a responsabilidade pelo supracitado deficit de US$ 800 bilhões. Expressou sua indignação contra
as alegadas “práticas desleais” dos chineses, acusando-os igualmente de:

Guerra cambial (desvalorizar a moeda para favorecer as exportações);

Dumping;

Reduzir salários para diminuir os gastos com mão de obra;

Oferecer juros subsidiados para desenvolvimento do parque industrial;

Incentivos gerais para exportações, empreender restrições aduaneiras e muitos outros fatores.

Tudo isso precedeu a assinatura de um regulamento, no dia 8 de março de 2018. O documento impunha um adicional de 25% ad valorem do
imposto sobre as importações de aço e de 10% sobre alumínio a todos os países. Nesse caso particular, o argumento era de ordem estratégica e de
segurança nacional, já que os preços desses produtos impactariam diretamente na indústria militar. Essa decisão repercutiu globalmente.

Exemplo

As siderúrgicas brasileiras acumularam perdas de US$ 1,91 bilhão em valor de mercado após a queda de suas ações na bolsa de valores.

Um mês depois, em abril, Trump apresentou uma lista de produtos oriundos da China que seriam sobretaxados em valores que, somados, atingiam
a marca dos US$ 50 bilhões. A China prontamente reagiu à decisão e notificou a OMC, também sobretaxando produtos dos Estados Unidos, com
destaque para a tarifa de 25% sobre a soja exportada por seu concorrente.

Segundo Joshua Brustein:

Ainda que tais medidas tenham colaborado para a diminuição do deficit estadunidense, a China garantiu
superavit expressivos graças aos investimentos em tecnologia e inovação científica, o que ampliou a
exportação de produtos com alto valor agregado e garantiu maior competitividade nos circuitos globais de
bens, serviços e capitais.

(BRUSTEIN, 2019, p. 38-42)

Em dezembro de 2019, os dois gigantes do comércio internacional anunciaram um acordo que arrefeceria essas tensões comerciais antes que
entrassem em vigor novos acordos tarifários de significativa repercussão na economia global. Novos acordos bilaterais foram firmados,
compromissos de diminuição de impostos aduaneiros foram definidos. As tensões permanecem, mas há sinalizações de ambas as partes de seguir
trabalhando em conjunto para reduzir os entraves e conflitos.

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Os Mercados irregulares: as drogas e contrabando no mercado mundial
Neste vídeo, Rodrigo Rainha fará uma contextualização histórica do tráfico internacional de drogas:

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Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

O caso chinês é emblemático pois representa na guerra comercial no século XXI:

I. Mudança do eixo norte-sul, abrindo possibilidades sul-sul.

II. O desenvolvimento chinês é fruto do comunismo estrutural, e disputa mercado artificialmente, por isso está fora da OMC.

III. A China e os Estados Unidos são dois players econômicos fundamentais no século XXI, mas negociam entre eles e disputam mercados.

Estão corretas:

A Somente I

B Somente II

C II e III

D I e II

E I e III

Parabéns! A alternativa E está correta.

A China é um dos principais players do comércio mundial. Os Estados Unidos já ocupavam esse espaço. Com isso se tornaram adversários
mais efetivos em mercados consolidados e passaram a notar o crescimento dos comércios dos BRICS, que não necessariamente sofrem
influência estadunidense.

Questão 2

A China tornou-se no século XXI um importante centro de produção de tecnologia mundial. Um dos principais feitos chineses foi:

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A adequar-se às regras comerciais e de trabalho da OMC.

B a parceria com o BRICS como forma de enfrentamento do domínio unilateral dos Estados Unidos.

C o crescimento, graças a comércios irregulares, mas que tem seus valores “esquentados” pelo governo.

D demonstrar a competitividade do comunismo no século XXI.

E recuperar as empresas estadunidenses com empréstimos na crise do subprime.

Parabéns! A alternativa A está correta.

A China, acusada durante anos de ser desleal nas negociações comerciais, teve como seu maior feito se submeter às regras internacionais,
investir em tecnologia de ponta e se manter competitiva no comércio mundial.

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4 - Guerras de informação
Ao final deste módulo, você será capaz de exemplificar características e movimentos das guerras de informação do século XXI.

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A Guerra de informações: narrar para ilustrar
No vídeo a seguir, o professor Rodrigo Rainha nos leva a refletir sobre o “dilema das redes”:

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Big data e os Sistemas de Informação


Vamos a uma breve contextualização:

A gigante das buscas

A Google é uma marca com valor de mercado estimado em mais de US$ 100 bilhões. Trata-se, portanto, de uma das empresas de tecnologia mais
poderosas do mundo. Parte expressiva desse poder não tem lastro com qualquer bem material: são as informações que garantem o lugar de
destaque da empresa no cenário global.

AdWords

Ainda que haja centenas de softwares e serviços, sua principal fonte de lucro é o AdWords, um sistema fortemente segmentado que orienta a
exibição dos anúncios em função da preferência dos usuários. Esse tipo de método se torna possível porque essas empresas, das quais a Google
é importante representante, possuem um vasto acervo de informação de quem é cadastrado. Cada pessoa que utiliza serviços da Google tem um
identificador que serve de ponto de ancoragem para a coleta de dados pessoais.

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Filter bubble

As pesquisas realizadas no sistema da empresa passam por um processo conhecido como “bolha de filtragem” (filter bubble), que devolve
resultados com base nas informações prévias que tem armazenadas de cada usuário. Os resultados das pesquisas não dependem, portanto,
unicamente da palavra utilizada na busca, mas da articulação dessa palavra com o histórico do usuário. Mais do que isso, essa nova pesquisa
segue alimentando a base de dados.

Algoritmos!

Assim, com enorme fidelidade a nossas preferências individuais, a Google não oferece resultados segundo a disponibilidade de temas, mas de
acordo com o que os algoritmos julgam que consideramos desejável acessar. Esse sistema complexo é conhecido como big data (“megadados”).

A partir de 2015, começamos a produzir mais de 2,5 quintilhões de bytes diariamente. As grandes corporações de tecnologia não tardaram a
reconhecer a necessidade de processar, tratar e utilizar essas informações.

Por um lado, conhecer as preferências do consumidor permite ampliar a eficiência da publicidade; por outro lado, notou-se também que essa lógica
de filtragem não desempenha apenas um papel passivo, podendo também orientar, por meio da exposição mais frequente, nossos desejos de
consumo.

Assim, um gigantesco estoque de dados, que guarda informações muito variadas, é processado com enorme
velocidade e exerce mais influência sobre nossas decisões do que somos capazes de supor.

O entusiasmo em relação aos recursos ligados ao big data precisa ser fortemente considerado. Em livro dedicado ao tema publicado em 2013, os
autores Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukief não ocultaram o júbilo com a capacidade que a Google dispunha de mapear e prever, por meio
dos mecanismos de busca, a disseminação do vírus H1N1 que, em 2009, era anunciada como uma pandemia potencialmente devastadora. Através
de modelos matemáticos, os analistas da empresa conseguiram resultados muito mais fiéis à realidade do que os órgãos sanitários dos Estados
Unidos.

Segundo os autores, os engenheiros da empresa, após processarem milhões de informações, identificaram 45 termos de busca que se
correlacionaram com os números oficiais, motivo pelo qual poderiam ver como a gripe havia se espalhado (ou estava se espalhando) em tempo
real. Concluíram os autores:

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Assim, quando a próxima pandemia surgir, o mundo terá um instrumento melhor à disposição para prever e,
assim, evitar a disseminação da doença.

(MAYER-SCHONBERGER; CUKIEF, 2013, p. 2)

Uma década após essa iniciativa, o mundo realmente se deparou com uma nova epidemia, mas o resultado não foi animador: no momento em que
escrevemos, mais de 3,3 milhões de pessoas morreram por força da pandemia do novo coronavírus.

Não há como questionar a capacidade preditiva e o potencial dessas informações, mas nada seria mais inocente do que ignorar o uso político
desses números. Então, podemos levantar os pontos mais sensíveis das guerras de informação:

Em primeiro lugar, porque a Google é uma empresa, não um órgão de governança global;

Em segundo lugar, porque essas informações são de caráter privado, e não público;

Em terceiro lugar, porque aceitamos docilmente os contratos de privacidade.

Comentário
Precisamos questionar a forma com que outorgamos enormes poderes às empresas e confiamos cegamente em suas capacidades de gerir os
dados. Assim, estamos ignorando os usos políticos que tanto as corporações como os governos a ela associados poderiam fazer.

Iniciativas de Julian Assange


O tema do big data tem se consolidado como importante campo de preocupação e análise, mas, dada sua relativa novidade do ponto de vista
histórico, os analistas ainda estão dando os primeiros passos na direção de compreender as múltiplas faces desse fenômeno tão complexo e
decisivo para a vida em sociedade nesse começo do século XXI.

Entre a promessa otimista acerca do potencial da internet, anunciada por volta de 1996, e as características das redes no presente da vida social,
houve mudanças rápidas e profundas, visíveis precisamente pelos usos políticos e empresariais dos dados que oferecemos gratuitamente e que
sustentam esse modelo de negócios.

Contra a lógica simples, mecânica e esquemática de que as informações que fornecemos permitem que a publicidade seja ajustada a nossos
desejos prévios, percebeu-se que os processamentos de dados não são passivos: ao contrário do que se supõe, e convém insistir, os algoritmos não
apenas identificam nossas vontades preexistentes, mas trabalham para forjar novos desejos que redundam na aquisição de produtos e serviços que
não estariam em nosso horizonte de expectativas não fosse por sua intervenção direta.

É com base nessas premissas, ou seja, de que “o big data é, acima de tudo, o componente fundamental de uma nova lógica de acumulação”, que
Shoshana Zuboff (2018, p. 18) defende o uso do conceito de capitalismo de vigilância:

Essa nova forma de capitalismo de informação procura prever e modificar o comportamento humano como
meio de produzir receitas e controle de mercado. O capitalismo de vigilância se formou gradualmente durante a
última década, incorporando novas políticas e relações sociais que ainda não haviam sido bem delineadas ou
teorizadas. Mesmo que o big data possa ser configurado para outros usos, estes não apagam suas origens em
um projeto de extração fundado na indiferença formal em relação às populações que conformam tanto sua
fonte de dados quanto seus alvos finais.

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(ZUBOFF, 2018, p. 18, grifo no original)

As crises políticas associadas a esse fenômeno, contudo, passam longe do debate acerca de como essas informações influenciam nossas práticas
de consumo, bem como se esse uso seria legítimo. A primeira década do século XXI apresentou ao mundo uma situação bem mais grave e
controversa, com enormes consequências diplomáticas.

À discussão sobre os limites éticos e regulatórios do uso do big data pelas empresas privadas somam-se os problemas que envolvem as
associações entre essas corporações e governos. Além de comprometer fortemente o direito à privacidade, o acesso a um grande volume de dados
processados representa uma vantagem econômica, política e militar para alguns países, sobretudo os Estados Unidos. É precisamente por força
desse ponto sensível que as denúncias de Julian Assange ganharam tanta notoriedade.

Desde abril de 2019 sob a custódia da Polícia Metropolitana de Londres, o jornalista e programador australiano Julian Paul Assange (foto) ganhou
notoriedade com a fundação do site WikiLeaks.

Como se pode ler no próprio website, o WikiLeaks é uma organização de mídia multinacional especializada na publicação de amplos conjuntos de
dados oficiais censurados ou restritos envolvendo guerra, espionagem e corrupção.

Curiosidade
Os números são impressionantes: desde sua fundação, em 2006, até os dias atuais, o WikiLeaks já publicou mais de 10 milhões de documentos e
análises a eles associadas. Possui relações contratuais com mais de cem meios de comunicação ao redor do mundo, além de ter vencido inúmeros
prêmios jornalísticos e sido indicado, em mais de uma ocasião, ao Prêmio Nobel da Paz. Até o momento, o WikiLeaks foi citado em mais de 28 mil
ocasiões, tanto em artigos acadêmicos como em processos judiciais.

Diversas questões extremamente sensíveis foram trazidas a público a partir de documentos secretos divulgados por Assange. Por meio do
WikiLeaks, diversas situações foram confirmadas, dentre elas:

Denúncias sobre execuções extrajudiciais no Quênia

Despejos de lixo tóxico em países africanos

Informações sobre as guerras dos EUA contra o Iraque e Afeganistão

Tratamentos desumanos dados a prisioneiros em Guantánamo

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Protestante levanta um cartaz em apoio a Lassange (“Liberdade de expressão, liberdade a Assange”).

A divulgação de documentos secretos da embaixada dos Estados Unidos, por exemplo, mostrou de forma inequívoca enormes esquemas de
corrupção do governo tunisiano, fato publicado em diversos jornais e que desencadeou os movimentos contestatórios naquele país, como
discutimos anteriormente.

Em linhas gerais, o mérito fundamental de Assange foi desenvolver uma plataforma segura para que os whistleblowers – membros das
organizações que desejavam denunciar as ações secretas – pudessem fazê-lo de forma segura e anônima. Não obstante, o ponto sensível do
debate que Assange propõe envolver essa articulação entre política e tecnologia, e parte dos fundamentos do que defende se tornou público por
meio do livro “Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet”.

Os programas de vigilância dos Estados Unidos se tornaram objeto privilegiado das ações desses grupos. O principal alvo foi, sem dúvida, a Agência
de Segurança Nacional (National Security Agency – NSA). A própria existência desse órgão foi mantida em segredo pelo governo estadunidense
durante longos anos.

Sob as ordens do ex-presidente George Bush, e com base na justificativa de que era preciso ampliar a rede de proteção após os atentados de 11 de
setembro de 2001, a NSA passou por uma mudança de escopo que incluiu não apenas a imersão radical no universo da tecnologia como também
pela alteração de espionagens direcionadas a indivíduos lidos como potencialmente perigosos para a vigilância massificada a partir de
instrumentos como o próprio big data. E, sobre isso:

[...] a fronteira entre o setor público e o privado deixou de ser tão clara. Se olharmos a expansão do setor de
terceirizados para as Forças Armadas do Ocidente ao longo dos últimos dez anos, a NSA, que foi a maior
agência de espionagem do mundo, tinha em seus livros contábeis dez terceirizados principais com os quais
trabalhava. Dois anos atrás, esse número tinha subido para mil. Então a fronteira entre o setor público e o
privado de fato está cada vez mais nebulosa.

(ASSANGE, 2013, p. 60)

Essa relação entre o governo estadunidense e as empresas de tecnologia foi várias vezes confirmada ao longo dos últimos anos e, ainda que
Assange também participe desse esforço de denúncia, outro nome ganhou proeminência: Edward Snowden. Em março de 2013, após ter se reunido
em Hong Kong com o jornalista Glenn Greenwald e a cineasta Laura Poitras, o então funcionário da NSA apresentou documentos contundentes que
confirmavam a existência de um sistema de vigilância global mantido pelo governo dos Estados Unidos. Snowden revelou, por meio de jornais de
grande circulação, a existência de um programa chamado Prism, que dava à NSA acesso privilegiado aos servidores de empresas como Google,
Skype, Facebook, Apple, Microsoft, entre outras.

Comentário
Os resultados esperados por esse tipo de ação são difíceis de prever, e vão desde interferências diretas no comércio multilateral a questões
militares. Tanto Snowden como Assange vivem acossados por processos judiciais e ordens de prisão desde que começaram o trabalho de desvelar
essa relação, quase sempre amistosa, entre gigantes da tecnologia e os governos do mundo inteiro, sobretudo dos Estados Unidos.

Escândalo da Cambridge Analytica


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É bem provável que os episódios envolvendo Assange e Snowden tenham representado os capítulos mais incisivos dessas guerras de informação
que emergiram no século XXI. Esses dois sujeitos, associados a inúmeras controvérsias e divergências, personificaram uma pauta que até então era
discutida em círculos restritos, com pouquíssima visibilidade.

Os desenvolvimentos ulteriores da mineração de dados dos usuários das grandes empresas de tecnologia, que no início tinham como fio principal a
construção de engrenagens publicitárias direcionadas, mostrou-se um problema decisivo, como vimos, no marco dos debates acerca da soberania
dos países.

Um caso emblemático veio à lume quando a WikiLeaks revelou documentos que comprovaram que alguns nomes do governo brasileiro, incluindo a
própria Dilma Rousseff (foto), foram espionados pela NSA por meio de grampos telefônicos.

Na ocasião, mais precisamente em setembro de 2013, a então presidenta fez um discurso incisivo criticando essas ações na Assembleia Geral da
ONU. Além dessas questões, outro acontecimento, ainda mais recente, adicionou um capítulo a esse debate.

Muitos analistas não tardaram a perceber o potencial eleitoral que a análise de grande volume de dados poderia ter. O engajamento político nas
redes é capaz de definir, com base na captação de um universo representativo de dados, as tendências que determinados grupos ou indivíduos
assumem em relação às eleições que se avizinham. Mais do que isso, a falta de engajamento, ou a forma oscilante com que se comportam alguns
perfis, permite identificar com enorme precisão os eleitores indecisos, que se tornam objeto preferencial para a circulação de discursos que buscam
convencê-los a optar por determinado candidato.

Assim, empresas de marketing político investiram enormes quantias para se apropriarem de dados privados e
direcionarem sua publicidade. A empresa britânica Cambridge Analytica rapidamente se destacou nesse segmento
específico.

Ainda que se tenha acompanhado diversas campanhas ou ações eleitorais ao redor do mundo, duas em particular tiveram enorme repercussão. A
primeira foi do conhecido Brexit, um movimento político que defendia a saída do Reino Unido da União Europeia. A primeira iniciativa nessa direção
ocorreu em 1975, mas um referendo votou pela permanência. O debate foi retomado e um novo referendo, ocorrido em junho de 2016, reverteu o
resultado anterior, aprovando a saída. A crise que se instalou foi bastante expressiva e o então primeiro-ministro britânico, David Cameron,
renunciou logo após a divulgação do resultado.

A vitória foi fortalecida por pressões de grupos de extrema direita, críticos das políticas migratórias e com forte apelo nacionalista. A cena política
ficou extremamente conturbada, sobretudo após o assassinato da parlamentar Jo Cox, uma das vozes que mais criticaram a iniciativa.
Testemunhas relataram que o assassino, que desferiu dois tiros contra a líder trabalhista teria gritado “Britain First!” (“Grã-Bretanha primeiro"), um
slogan conservador que também nomeia um partido de extrema direita.

Slogan semelhante (“America First!”) foi fortemente evocado na segunda campanha eleitoral mais expressiva “vencida” pela Cambridge Analytica.
Não se trata, certamente, de uma inovação do século XXI. Esse lema, como vimos, é historicamente identificado nos Estados Unidos como símbolo
de uma perspectiva nacionalista e igualmente crítico às políticas migratórias.

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Em conjunto com outro slogan, “Make America great again” (“Torne a América grande novamente”), a retomada do “America First” definiu a linha
ideológica e publicitária do então candidato Donald Trump.

O grande mote da empresa era a ideia de que “conhecendo melhor o eleitorado, alcançamos maior influência enquanto reduzimos os custos gerais”.
Na página inicial de seu website, lê-se que a estratégia se ancora na melhor segmentação do público:

“O big data revolucionou a forma com que as organizações identificam e localizam seus melhores clientes em
potencial”.

O grande mote da empresa era a ideia de que “conhecendo melhor o eleitorado, alcançamos maior influência enquanto reduzimos os custos gerais”.
Na página inicial de seu website, lê-se que a estratégia se ancora na melhor segmentação do público: “O big data revolucionou a forma com que as
organizações identificam e localizam seus melhores clientes em potencial”.

Do ponto de vista formal, conhecer o público-alvo é um princípio inescapável da publicidade; tampouco parece existir qualquer interdito para que a
avaliação desse mesmo público ocorra em espaços virtuais. Assim, no limite do que se pratica comumente nesse setor, nada desabonaria as ações
da empresa. Contudo, o método que foi gradualmente se revelando através de denúncias e apurações desnudou práticas que colocam em xeque a
própria rotina eleitoral em países democráticos.

Parte expressiva das campanhas coordenadas pela Cambridge Analytica ocorreu a partir do Facebook, destinando à empresa aportes financeiros na
casa dos milhões de dólares. Mais tarde, relevou-se que o Facebook teria garantido acesso ilegal aos dados de 50 milhões de seus usuários. A
reação da rede social foi considerada tardia, e o banimento da Cambridge Analytica, bem como a proibição para que mantivesse anúncios ou
publicasse na rede não impediram que a empresa de Mark Zuckerberg perdesse US$ 50 bilhões de seu valor de mercado em apenas dois dias.

Não menos importante, o uso para fins eleitorais de uma estratégia já consolidada para a publicidade de produtos e serviços desencadeou uma
série de críticas relacionadas ao direito à privacidade dos dados, à concorrência desleal, à mercantilização da política e às relações de poder que as
redes sociais produzem com base em informações que os usuários sequer suspeitam que elas dispõem. O que foi tratado inicialmente como um
caso de sucesso na história do marketing político se transformou em um longo debate sobre os riscos que as gigantes da tecnologia oferecem para
o futuro da democracia.

A partir das denúncias em relação à campanha de Trump e do Brexit, novas questões surgiram. Um repórter do Channel 4 News se infiltrou como
funcionário de uma família rica do Sri Lanka e, em encontros realizados com Alexander Nix, CEO da Cambridge Analytica, ouviu que a consultoria
utilizava outros meios antiéticos para atingir seus objetivos, como a oferta de propinas e prostitutas para chantagear políticos adversários. A
empresa suspendeu Nix por mais esse escândalo, mas não conseguiu evitar que essa variável engrossasse os demais processos movidos contra
eles.

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A crise no Facebook também permaneceu viva por longo tempo. O pedido de desculpas feito por Mark Zuckerberg não foi suficiente para sanar os
problemas. Ainda que tenha prometido ampliar as auditorias internas, governos e investidores consideraram as explicações insuficientes e os
valores de mercado da empresa permaneceram em queda.

Comentário
Em meio a todo esse debate, outro tema ligado à guerra de informação ganhou preeminência não apenas nos Estados Unidos, mas em todos os
lugares do mundo que importaram o método da vitória trumpista: a veiculação deliberada de notícias falsas, as chamadas fake news.

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Refletindo sobre as novas dinâmicas da informação
As fake news têm servido de estratégia para uma movimentação política maior do que podemos imaginar. No vídeo a seguir, encaixaremos esse
tipo de estratégia em um contexto maior:

Fake news e a Pós-verdade


Ainda que, do ponto de vista histórico, as fake news não sejam uma novidade trazida pelo século XXI, seus usos e impactos não encontram
equivalente no passado, e isso se dá por força das condições de produção desses discursos e de sua intensa circulação pelo meio digital, sobretudo
as redes sociais. Como foi observado oportunamente:

[...] as notícias falsas podem ser consideradas não somente pela forma ou conteúdo da mensagem, mas
também em termos de infraestruturas mediadoras, plataformas e culturas participativas que facilitam a
circulação. Nesse sentido, o significado das notícias falsas não pode ser compreendido em sua totalidade fora
da sua circulação on-line.

(BOUNEGRU et al., 2017, p. 8)

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A influência do suporte, como bem salientaram os autores, não pode ser descartada. Diversas pesquisas mostram que a maioria dos links
compartilhados nas redes sociais não é clicada nem mesmo por quem compartilha, e mesmo aqueles que abrem a página da notícia não costumam
lê-la na íntegra, não passando das primeiras linhas ou parágrafos.

A busca por responsividade também é uma variável importante: a maioria dos usuários tem a expectativa de que os compartilhamentos que fazem
gerem engajamento de seu público (razão pela qual notícias com teor sensacionalista ou fatos absurdos são disseminados sem qualquer esforço
prévio de checagem).

Tweet de Trump que insinuava fraude nas eleições presidenciais de 2020 – o próprio Twitter passou a inserir um aviso de que o conteúdo postado pelo presidente poderia conter informações
incorretas sobre a eleição.

Também poderíamos relembrar, entre outros fatores, da própria atmosfera de descrédito em relação ao tratamento jornalístico da informação.
Diversas lideranças de extrema direita, como o próprio ex-presidente Donald Trump, alimentam permanentemente seus apoiadores com a ideia de
que os meios tradicionais disseminam notícias falsas (ainda que verídicas) por serem simpáticos a seus opositores políticos, fato que estimulou a
proliferação de uma série de desconfianças que acabaram por diluir as fronteiras entre a imprensa profissional e meios alternativos que foram
criados deliberadamente para produzir e disseminar fake news.

A título de exemplo, convém recordar a mais famosa fake news que circulou na campanha presidencial norte-americana de 2016, o episódio que
ficou conhecido como Pizzagate:

Início do boato

Em março de 2016, e-mails particulares de John Podesta, principal responsável pela campanha de Hillary Clinton, foram divulgados pelo
WikiLeaks. As mensagens não continham nada que pudesse levantar suspeitas.

Mulher protesta contra a campainha de Hillary com placas anti-pedofilia em frente à Casa Branca.

Associações

No entanto, fóruns da internet com usuários anônimos passaram a explorar a repetição das palavras “pizza” e “cheese” (queijo) nas mensagens.
Eles alegaram que o termo “cheese pizza” era uma espécie de código para “child pornography” (pornografia infantil), amparados sobretudo na

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coincidência que criaram entre as iniciais “c” e “p”. A história continuou sendo alimentada e novas palavras foram associadas à pedofilia: segundo
esses usuários, por exemplo, a palavra “sauce” (molho) fazia referência, naqueles e-mails, a orgias.

Fachada da pizzaria Comet Ping Pong.

Localização

A narrativa começou a ficar ainda mais intrincada: esses abusos sexuais aconteceriam em um suposto porão da pizzaria Comet Ping Pong,
localizada em Washington. O irmão do coordenador da campanha de Hillary, Tony Podesta, frequentava esse estabelecimento. O dono da pizzaria,
James Alefantis, foi apresentado a John Podesta e os dois chegaram a organizar um jantar de arrecadação de fundos para a campanha de Hillary.
Não tardou para que outras questões fossem associadas à pizzaria, como suposto envolvimento dos donos com cultos satânicos.

Conclusão

A então candidata passou a ser acusada de associação com uma rede de pedofilia e a repercussão foi tão enfática que até mesmo investigações
policiais foram realizadas. Como era de se supor, nenhum indício que sustentasse essas alegações foi identificado. O FBI, ainda que acionado,
recusou-se a investigar um fato visivelmente falso, criado no meio da disputa política. Ainda que a campanha de Hillary Clinton também tenha
adotado esse expediente, as fake news continuaram a circular, e de forma mais intensa, em favor de Donald Trump, conforme diversas análises
sugerem (SILVERMAN, 2016).

Muitos consideram que a eficácia dessa tática de Trump não pode ser apartada do conhecimento dos dados dos usuários fornecidos ilegalmente
pelo Facebook: conhecer minuciosamente o perfil dos eleitores permitiu produzir notícias falsas que exploravam questões sensíveis para o
eleitorado. Um dos nomes mais expressivos nesse contexto foi de Steve Bannon, diretor executivo da campanha de Trump que também era
responsável pelo site Breitbart News, um veículo de mídia de extrema direita.

Após a vitória de Trump, Bannon se tornou uma espécie de liderança global de políticos da extrema direita, tendo criado até mesmo uma
organização que contava com o apoio de diversos políticos europeus e latino-americanos. Em 2018, pouco antes das eleições brasileiras, Bannon se
reuniu com Eduardo Bolsonaro. O filho do atual presidente da República afirmou que o estrategista havia se mostrado disposto a auxiliar na
campanha do pai de modo informal, sobretudo para pensar atividades de inteligência, análise de dados e projetos para a internet. Como se sabe, o
presidente brasileiro foi um dos mais leais apoiadores de Trump durante seu governo.

Curiosidade

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Em agosto de 2020, Bannon foi preso por acusações de fraudes financeiras e, após pagar fiança, passou a responder pelo processo em liberdade.
Por toda essa guerra de informação, o Oxford Dictionaries elegeu a palavra “pós-verdade” (post-truth) como a palavra do ano de 2016 em língua
inglesa. O combate às fake news tem se consolidado como um dos maiores esforços globais de defesa das democracias nesse início do século
XXI.

Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

O caso Assange tem relação com a guerra de informação uma vez que:

A ele rouba dados dos governos e vende a terroristas.

B ele disponibiliza dados do governo estadunidense para países comunistas.

C ele hackeia dados e abre as informações dos líderes mundiais.

D como ex-funcionário de empresa de tecnologia, ele denuncia espionagens comerciais e dados de ações irregulares.

E ele dá um golpe na maior empresa de tecnologia do mundo e divulga dados sigilosos.

Parabéns! A alternativa D está correta.

A partir da dinâmica de big data, ele recupera dados que passaram por suas funções, demonstrando o jogo sujo das disputas cibernéticas.

Questão 2

Notícias falsas, ou fake news, devem ser entendidas como:

A um fenômeno humano que a internet potencializou.

B um processo liderado por empresas de big data.

C uma estratégia política de grupos de extrema direita.

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uma organização que visa a desestabilizar governos.


D

E um fenômeno mundial que tem tido desdobramentos sociais, culturais e políticos.

Parabéns! A alternativa E está correta.

As fake news são um fenômeno histórico, mas não com o atual formato. Se as antigas estruturas de boatos fizeram vítimas na história, as fake
news contemporâneas criaram a fragmentação absoluta da verdade, da análise e da reflexão. Sendo compreendidas, passam a ser utilizadas
como meio de poder político.

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Considerações finais
Como juntar tantos caminhos? Simples, basta olhar para o tempo e refletir sobre ele. Em História, é importante distinguir os conceitos de cronologia
e periodização:

A cronologia representa a divisão seriada do tempo, feita quase sempre a partir de fenômenos astronômicos. Os calendários são parte dos
esforços para mensurar e acomodar o transcurso dos acontecimentos. Assim, pode-se afirmar que o século XXI teve início no dia 1º de janeiro
de 2001 e terminará em 31 de dezembro de 2100.

A periodização, por sua vez, depende da cronologia, mas não se confunde com ela. Periodizar implica organizar o tempo social observando a
força de determinados acontecimentos, bem como suas continuidades e descontinuidades, rupturas e permanências.

Assim, as relações de poder (e a forma com que a historiografia as acolheu) definem períodos que muitas vezes se mostram arredios à cronologia.
Um bom exemplo é a forma com que alguns nomes acabaram por designar séculos em nossa tradição: o século V a.C., por exemplo, é conhecido
como Século de Péricles pelas realizações do estadista ateniense homônimo, ainda que ele não tenha vivido nem perto de 100 anos; da mesma
forma, fala-se em Século de Luís XIV para se referir aos anos de 1660 a 1715 na França.

Longos períodos históricos também são definidos por periodizações tradicionais. A História Moderna, por exemplo, costuma ser entendida como o
período entre a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 29 de maio de 1453, e a Revolução Francesa, no marco de 14 de julho de 1789. Essas
datas não representam necessariamente mudanças abruptas na vida em sociedade, mas convenções historiográficas que permitem definir a
centralidade de determinados eventos e o lugar que ocupam na forma com que interpretamos mudanças históricas.

Por esse motivo, há também espaço para enormes divergências. Para muitos historiadores, a História Moderna não tem início com a tomada de
Constantinopla, mas com as grandes navegações, seja assumindo a conquista de Ceuta (1415) como símbolo desse processo, seja valorizando o
início da dominação colonial do Novo Mundo, com a chegada das naus de Colombo em 1492.

Apesar de tudo isso, não há interdito para que os historiadores tomem determinado século como medida de análise. Em sua obra mais conhecida, o
historiador inglês Eric Hobsbawm (1994) agrupou diversos fenômenos históricos sob a alcunha de Breve século XX, um recurso bastante
interessante para pensar o ritmo acelerado de mudanças no cenário global que começaram, segundo seu critério, com a eclosão da Primeira Guerra
Mundial em 1914 e que encontraram algum termo em 1991, com o fim da União Soviética.

Naturalmente, do ponto de vista cronológico, o século XX começou em 1º de janeiro de 1901 e terminou em 31 de dezembro de 2000; do ponto de
vista histórico, muitos fenômenos importantes do século XX ocorreram antes de 1914 e depois de 1991. Contudo, a centralidade dos conflitos
mundiais, as posteriores tensões da Guerra Fria e a dissolução oficial da URSS, ocorrida no governo de Mikhail Gorbachev, concentram o núcleo de
preocupações tomadas como critério de periodização.

Não significa dizer também que as questões do século XX tiveram fim nessa data – o embargo econômico à Cuba persiste, as conquistas
tecnológicas foram ampliadas, a memória dos conflitos permanece em nosso horizonte de preocupação, bem como situações aparentemente
extemporâneas, como um anticomunismo redivivo nos últimos anos.

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Tendo tudo isso em mente, cabem ainda diversas questões. Quando começa o século XXI? Já é possível reconhecer algum ponto de partida? Do
ponto de vista cronológico, como vimos, não resta dúvida, mas e do ponto de vista da periodização histórica? Em ensaio recente, a antropóloga Lilia
Moritz Schwarcz considera que a pandemia do novo coronavírus representa esse ponto de virada. Considerando os notáveis avanços científicos do
século passado, com destaque para a corrida espacial e novas formas de comunicação, o novo século parece se conformar como a quebra de uma
promessa:

A grande marca do século XX foi a tecnologia e a ideia de que ela nos emanciparia e liberaria. Discordo da
afirmação de que não estávamos globalizados no século XIX, mas foi apenas no século XX que a tecnologia
ganhou escala mundial e acelerou o nosso tempo. Graças a ela, acreditávamos estar nos livrando das amarras
geográficas, corpóreas, temporais. Não estávamos! Ao deixar mais evidente o nosso lado humano e vulnerável,
a pandemia da covid-19 marca o final do século XX.

(SCHWARCZ, 2020, p. 7)

A resposta da antropóloga pode passar por uma série de revisões, especialmente porque carecemos de futuro. Difícil saber como os historiadores
de amanhã irão interpretar este século que acabou de começar, mas algumas tarefas urgentes se impõem. A disseminação do novo coronavírus não
se deve apenas às formas simples de contágio, mas também ao intenso fluxo de mercadorias, pessoas e informações em um mundo fortemente
globalizado. Sabe o que isso significa? Que ainda temos muito século XXI pelo caminho.

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Podcast
Revisitaremos os principais pontos do conteúdo com nosso anfitrião, Rodrigo Rainha:

Referências
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05/05/23, 02:18 Dinâmicas internacionais do século XXI

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Os cineastas Karim Amer e Jehane Noujaim produziram o documentário The square (2013), nomeado ao Oscar de Melhor Documentário em 2014,
sobre a Primavera Árabe no Egito. Seguindo manifestantes de perto durante a revolta, o filme mostra o papel central da Praça Tahrir na articulação
dos protestos.

Outro documentário interessante e emocionante é Por Sama (2019), produzido pela jornalista síria Waad al-Kateab e também nomeado ao Oscar de
Melhor Documentário em 2020. O filme acompanha a vida de al-Kateab na cidade sitiada de Aleppo com seu marido, um dos últimos médicos na
cidade sitiada, e sua pequena filha Sama.

Os documentários Privacidade hackeada (Netflix, 2019) e O dilema das redes (Netflix, 2020) são excelentes referências para debater a questão das
guerras de informação do século XX.

Diversos sites têm se dedicado à apuração de fake news. No Brasil, o primeiro a entrar no ar foi a Agência Lupa, ligada ao jornal Folha de S.Paulo.

https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/01486/index.html# 52/52

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