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“Comunidade de Comunidades:

uma nova Paróquia”. Carta aberta à


52ª Assembleia Geral da CNBB
24 Abril 2014
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"A Boa Notícia do Reino de Deus, que a Igreja - cumprindo sua missão - anuncia ao
mundo, é dirigida a todos e a todas, mas a partir dos pobres (a partir da “manjedora”). È o
caminho de Jesus de Nazaré!. Por isso, parafraseando João XXIII e Francisco, posso dizer:
'Como gostaria de uma Igreja Pobre, para os Pobres, com os Pobres e dos Pobres!'", escreve
Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral
(Assunção - SP), em Carta aberta dirigida à 52ª Assembleia Geral da CNBB, 23-04-
2014.

Eis a carta.

Pela presente Carta aberta, dirijo-me fraternalmente aos participantes da 52ª Assembleia
Geral da CNBB (bispos, assessores/as e outros/as) e a todos/as os interessados/as.

Em 2013, a 51ª Assembleia Geral da CNBB publicou o Documento de Estudo 104:


“Comunidade de Comunidades: uma Nova Paróquia”. O texto, a partir da Palavra de
Deus, dos Documentos da Igreja - sobretudo da América Latina e do Brasil - e da experiência
eclesial nas bases (Comunidades, Paróquias e Dioceses) apresenta reflexões teológico-
pastorais valiosas, mas que precisam ser aprofundadas e melhor esclarecidas. O texto, com a
intenção - talvez - de agradar a todos/as, é bastante repetitivo, confuso, ambíguo,
contraditório e pouco objetivo.

As CEBs são mencionadas nos números 160-161 e, de passagem, no número 238, mas sem
nenhuma relevância. Tem-se a impressão que o Documento só cita as CEBs, porque
existem pessoas que ainda teimam em falar nelas. Se não fossem citadas, na estrutura geral do
Documento, não fariam nenhuma falta.

Na 52ª Assembleia, que acontecerá de 30 de abril a 9 de maio do corrente ano, o


Documento de Estudo 104 - com a contribuição das sugestões vindas das bases
(Comunidades, Paróquias e Dioceses) - será reelaborado e tornar-se-á (a não ser que a
Assembleia julgue necessário mais tempo - como seria conveniente - para o estudo do
assunto) um Documento oficial da CNBB.

Por amor à Igreja, permito-me fazer um pedido à próxima Assembleia Geral da CNBB:
que, na reelaboração do Documento - além de torná-lo mais claro, mais conciso e mais
objetivo - seja retomada a visão teológico-pastoral das CEBs dos Documentos de
Medellín, assumindo o método “ver, julgar, agir” (analisar, interpretar, libertar), que "nos
permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade; a assunção de
critérios que provêm da fé e da razão para seu discernimento e valorização com sentido
crítico; e, em consequência, a projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo"
(Documento de Aparecida - DA, 19).

Essa visão teológico-pastoral das CEBs - no Documento sobre uma Nova Paróquia -
deveria ser central, deveria ser seu eixo estruturante, sua espinha dorsal.

Não podemos esquecer - como nos lembra Clodovis Boff - “a originalidade histórica de
Medellín”. “O fruto maior da Assembléia da Conferência Episcopal Latino-
Americana (CELAM), em 1968, foi ter dado à luz a Igreja latino-americana como latino-
americana. Os Documentos de Medellín representam o ‘ato de fundação’ da Igreja da
América Latina (compreendendo também o Caribe) a partir e em função de seus povos e de
suas culturas”. “Esses textos constituem a ‘Carta magna’ da Igreja do Continente”.

Diz, ainda, Clodovis Boff: “o que nos interessa aqui não é o ‘Medellín histórico’: o que se
passou de fato na Assembléia do CELAM de 1968; mas sim o ‘Medellín querigmático’: o que
ele representa em termos históricos. Ora, relendo hoje os Documentos de Medellín fica-se
impressionado com o vigor e a audácia de sua expressão, ou, para dizer numa palavra, com
seu ‘pathos profético’, típico dos textos originários e fundantes de uma tradição. Aquilo é
linguagem de verdadeiros ‘Pais da Igreja’, Pais da Igreja latino-americana como tal, como
intuiu com penetração o Pe. José Comblin, benemérito teólogo do Continente”.

De fato - continua Clodovis Boff - “até Medellín, a Igreja no Continente era a reprodução do
modelo da Igreja européia, em seu modo de organização, em sua problemática teológica e em
suas propostas pastorais. Era uma ‘Igreja-reflexo’ não uma "Igreja-fonte", como se exprimiu o
Pe. Henrique de Lima Vaz, intelectual a quem muito deve a Igreja brasileira. Portanto, a
Igreja latino-americana, mais que ser Igreja da América Latina, era mais propriamente a
Igreja européia na América Latina. Era, de fato, uma Igreja em estado de minoridade,
tutelada, privada de sua legítima autonomia institucional” (era a extensão da Igreja européia
na América Latina: uma Igreja “colonial”, uma Igreja “romanizada”, uma Igreja
“extremamente centralizada no clero”).

Contudo - conclui Clodovis - “falta muito ainda para as "Igrejas locais" terem e gozarem
efetivamente dessa justa autonomia”.

Os Documentos de Medellín são, pois, a encarnação do Concílio Vaticano II na América


Latina e no Caribe. Segundo os Documentos de Medellín, as CEBs (que, então, eram
chamadas “Comunidade Cristãs de Base”, ou, simplesmente, Comunidades de Base) não são -
como se quer fazer acreditar hoje - um Movimento entre muitos outros, uma expressão de
vivência comunitária entre muitas outras, mas a base da Igreja, o eixo da organizaão eclesial.

A CEB (Comunidade de Fé, Esperança e Caridade) “é o primeiro e fundamental núcleo


eclesial, que deve, em seu próprio nível, responsabilizar-se pela riqueza e expansão da fé,
como também do culto, que é sua expressão. Ela é, pois, célula inicial da estrutura eclesial e
foco de evangelização e, atualmente, fator primordial da promoção humana e do
desenvolvimento”. A CEB é uma “Comunidade local ou ambiental, que corresponde à
realidade de um grupo homogêneo e que tenha uma dimensão tal que permita o trato pessoal
fraterno entre seus membros” (Documentos de Medellín, XV, 10).

A partir das CEBs, Medellín redefine a Paróquia, que passa a ser “um conjunto pastoral
unificador das Comunidades de Base” (Ib. 13). É verdade que, em sentido amplo, a Paróquia
pode ser chamada de Comunidade, mas a verdadeira vivência comunitária acontece nas
CEBs. É nelas e delas que irrompe o anúncio da Boa Notícia do Reino de Deus no mundo
de hoje e a denúncia profética de tudo aquilo que é contrário ao Reino. É nelas e delas que
irrompe o compromisso com as Pastorais sociais e ambientais. É outra Eclesiologia!

Nessa Eclesiologia todos e todas são iguais, todos e todas - na diversidade dos ministérios
(serviços) - são irmãos e irmãs e ninguém é mais importante do que o outro ou a outra.

Vejam o que disse recentemente o nosso irmão, o papa Francisco: “eu faria esta pergunta:
quem é mais importante na Igreja? O Papa ou aquela velha senhora que todos os dias reza o
Rosário pela Igreja? Que o diga Deus, eu não posso dizê-lo. Mas a importância é de cada um
nesta harmonia, pois a Igreja é a harmonia da diversidade. O Corpo de Cristo é esta harmonia
da diversidade, e quem faz a harmonia é o Espírito Santo: Ele é o mais importante de todos.
(...) É importante: buscar a unidade e não seguir a lógica de que o peixe grande engole o peixe
pequeno” (Discurso aos membros da Associação “Corallo”, que reune as emissoras
televisivas católicas italianas, 22/03/14).

Gostaria muito que na reelaboração do Documento acima citado, a CEB aparecesse como
“célula inicial da estrutura eclesial”. É o que os Documentos de Medellín pedem à Igreja
da América Latina e do Caribe. Se esse ensinamento dos Documentos de Medellín (que,
como vimos, são Documentos fundantes da Igreja latino-americana e caribenha como tal) são
esquecidos ou deixados propositalmente de lado, qualquer outro Documento perde sua
autoridadade moral.

A Eclesiologia do Concílio Vaticano II e dos Documentos de Medellín é a


Eclesiologia do Povo de Deus, que é uma Eclesiologia toda ministerial (servidora) e não uma
Eclesiologia clerical.

O papa Francisco, em diversas ocasiões, fez críticas ao clericalismo como um dos males da
Igreja. Cito só a última - feita em tom coloquial - que é muito contundente e nos faz refletir
seriamente sobre o assunto.

“O clericalismo é um dos males, é um dos males da Igreja. Mas é um mal ‘cúmplice’, porque
aos sacerdotes agrada a tentação de clericalizar os leigos, mas tantos leigos, de joelhos, pedem
para ser clericalizados, pois é mais cômodo, é mais cômodo!. E isto é um pecado num duplo
sentido! Devemos vencer esta tentação. O leigo deve ser leigo, batizado, tem a força que vem
do seu Batismo. Servidor, mas com a sua vocação laical, e isto não se vende, não se negocia,
não se é cúmplice com o outro...Não! Eu sou assim! Porque está na identidade!, alí. Tantas
vezes escutei isto, na minha terra: ‘Eu na minha paróquia, sabe? Tenho um leigo bravíssimo,
este homem sabe organizar... Eminência, porque não o tornamos diácono?’. É a proposta do
padre, imediata: clericalizar. Este leigo façamo-o... E por que? Por que é mais importante o
diácono, o padre, do que o leigo? Não! É este o erro! É um bom leigo? Que continue assim e
cresça assim. Porque está na sua identidade de pertença cristã, alí. Para mim, o clericalismo
impede o crescimento do leigo.

Mas tenham presente aquilo que eu disse: é uma tentação cúmplice a duas mãos. Pois não
existiria o clericalismo se não existissem leigos que querem ser clericalizados. Está claro isto?”
(Ib.).

As CEBs - na enorme diversidade de suas expressões, que é uma riqueza - são a base da Igreja
e a base da Igreja são os pobres. Por isso, nos Intreclesiais das CEBs e outros Encontros, fala-
se que as CEBs são “um jeito novo e antigo de ser Igreja”, “um jeito de toda a Igreja ser”, “um
jeito normal de ser Igreja”. Por serem uma Igreja inserida, encarnada, pode-se dizer que as
CEBs - com seus diferentes dons, carismas e ministérios - são “o jeito evangélico de ser
Igreja”, são “o jeito de ser Igreja que Jesus quer”.

A Boa Notícia do Reino de Deus, que a Igreja - cumprindo sua missão - anuncia ao
mundo, é dirigida a todos e a todas, mas a partir dos pobres (a partir da “manjedora”). È o
caminho de Jesus de Nazaré!. Por isso, parafraseando João XXIII e Francisco, posso dizer:
“Como gostaria de uma Igreja Pobre, para os Pobres, com os Pobres e dos Pobres!”.

Peço as luzes do Espírito Santo para a 52ª Assembleia Geral da CNBB.

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