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UMA IGREJA MARTIRIAL:

SOLIDÁRIA, EVANGELIZADORA, PASCAL

Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM

Introdução: uma singular fisionomia eclesial

O arco de tempo que cobre a realização das cinco Conferências do CELAM,


desde o Rio de Janeiro (1955) até Aparecida (2007), pode parecer exíguo para uma
análise mais profunda. Contudo, julgamos que seja tempo suficiente para uma primeira
avaliação no intuito de discernir traços característicos da singular fisionomia da Igreja
latino-americana e caribenha. Do ponto de vista eclesial, esse período é fortemente
marcado pela celebração do Concilio Vaticano II (1962-1965) que constituiu, na
verdade, um divisor de águas na história da Igreja. Do ponto de vista sociopolítico e
cultural, essas décadas se caracterizaram por um clima de efervescência no continente.
Jamais se poderiam discernir os traços dessa peculiar fisionomia da igreja continental
sem se levar em conta esse cenário sócio-político cultural e eclesial.
Reconhecemos que o processo de forja desta fisionomia singular não se deu de
forma linear e sem sobressaltos de modo a justificar uma continuidade ininterrupta entre
as cinco Conferências Gerais do Episcopado. O que ocorreu, na verdade, foi um
processo simultâneo de continuidade e ruptura. Em nossa exposição, evitamos pontuar
as rupturas para, propositalmente, melhor evidenciar aquela espécie de continuidade
subterrânea que, entre avanços e retrocessos, foi compondo a fisionomia da Igreja na
América Latina e no Caribe.
No imediato pós-Vaticano II, Karl Rahner referia-se a esse grande evento
eclesial como sendo o primeiro concílio, para todos os efeitos, universal. De fato, pela
primeira vez, um concílio pôde contar com representantes das igrejas locais dos “novos
continentes”. Todavia, Rahner talvez quisesse chamar nossa atenção para o fenômeno
que, na trajetória histórica da igreja latino-americana e caribenha, se tornaria sempre
mais realidade palpável: a afirmação de uma fisionomia singular no concerto da igreja
universal. Convém, a tal propósito, lembrar que a instalação da CNBB, em 1952, e do
CELAM, quando da realização da primeira Conferência Geral do episcopado
continental na cidade do Rio de Janeiro, em 1955, se deram antes ainda da Celebração
do Vaticano II (1962-1965). Durante o Concílio, os bispos latino-americanos realizaram
diversos encontros não propriamente oficiais. Além do estreitamento de laços no intuito
de uma maior coesão colegial, tais encontros propiciavam a articulação entre as
discussões conciliares e a específica realidade sociopolítica, cultural e eclesial da
América Latina.
Embora se falasse muito, no imediato pós-Concílio, da urgente necessidade
de se aplicar o Vaticano II à realidade da Igreja latino-americana, o que ocorreu, de fato,
foi uma autêntica “recepção criativa” do Concílio. Pois, na verdade, em vez de mera
aplicação das diretivas conciliares universais a uma realidade eclesial específica, o que
se viu foi o despertar de um processo de “aprender a aprender” com o Vaticano II.
Nesse sentido, Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida, as quatro conferências
episcopais continentais celebradas após o Vaticano II, empenharam-se
fundamentalmente em recriar o espírito do Concílio, encarnado no diálogo com o
mundo e na revisitação das fontes da fé. Em outras palavras, partindo de uma atenção
especial aos sinais dos tempos, buscava-se recriar a mensagem cristã, tornando-a
contemporânea, mediante um processo de refontalização.
E, nesse sentido, as Conferências gerais do episcopado foram acolhendo e
legitimando sempre mais traços de uma fisionomia singular da Igreja latino-americana e
caribenha. Pois, de fato, a universalidade ou catolicidade da Igreja só se efetiva na
medida em que suas igrejas continentais ou locais vão se reconhecendo e se afirmando
em sua singularidade. E a relação das igrejas continentais ou locais para com a igreja
universal não obedece às regras da franquia, onde as filiais copiam o modelo uniforme
da matriz, mas, ao contrário, se dá como experiência de fidelidade criativa, expressa no
processo de “aprender a aprender”.

Preâmbulo: “irrupção do pobre” como “sinal dos tempos”

Duas relações caracterizam grosso modo o processo de “recepção criativa” do


Vaticano II pela Igreja latino-americana e caribenha: com o próprio Vaticano II e com o
mundo dos pobres. As melhores interpelações do Vaticano II encontraram terreno fértil
em nossas paragens. Em âmbito eclesial, o fim dos anos 50 e o início dos anos 60 do
século passado constituíram um período de transformação radical que já começara antes
do Concílio Vaticano II (1962-1965). De modo particular a Ação Católica, através de
suas associações setoriais especializadas como JUC (universitários), JOC (operários),
JAC (lavradores), JEC (estudantes), assumia o compromisso, pioneiro para a época, de
promover a consciência acerca das condições de vida das populações empobrecidas. O
Concílio Vaticano II, encerrado em dezembro de 1965, veio selar o engajamento desses
movimentos, oferecendo-lhes a melhor justificação teórica e, ao mesmo tempo, o
máximo apoio eclesial. O pós-Concílio constituiu para todo o continente latino-
americano um período propício para o clima de renovação já em curso.
Tem-se insistido, todavia, que a inserção dos cristãos no processo de libertação
dos pobres constitui o “fato mais relevante” da Igreja latino-americana (cf.
GUTIÉRREZ, 1982, p. 215), por ser expressão da acolhida por parte de comunidades
eclesiais dos apelos oriundos da “irrução dos pobres” no cenário sociopolítico, cultural e
eclesial do continente. Esta irrupção se deu mediante nova consciência histórica.
Formulou-se, naquela ocasião, a “Teoria da dependência” que considerava os países
ocidentais parte integrante de um único processo de desenvolvimento injusto e desigual,
porque associado a uma relação de dependência estrutural das nações economicamente
dominantes. A América Latina, portanto, se tornava sempre mais dependente no seio do
capitalismo internacional, em uma subalternidade que não lhe permitia, ademais,
desvencilhar-se dessa situação de pobreza, fruto de um subdesenvolvimento gerado e
sustentado pelas nações industrializadas. Em face disso, parecia óbvia a necessidade de
se inaugurar um processo de ruptura e de libertação.
Outra expressão desta irrupção dos pobres foi o movimento cultural de
alfabetização que se criou em torno do pedagogo brasileiro Paulo Freire. Ele concebia
as linhas metodológicas basilares para uma “educação libertadora” em termos de uma
problematização da própria realidade e, portanto, de uma leitura e interpretação crítica
da mesma. Deste modo, a educação entendida como prática de liberdade era proposta
como um autêntico processo de formação da consciência crítica, também chamado de
“conscientização”.
A segunda assembléia do CELAM, celebrada em Medellín, foi convocada
justamente com o intuito de aplicar as grandes intuições teológico-pastorais do Concílio
Vaticano II à realidade sócio-eclesial do continente latino-americano. Todavia, a tal
propósito, G. Gutiérrez fala de uma inversão de perspectiva verificada durante a
Assembléia episcopal de Medellín, cujo tema era “A Igreja na atual transformação da
América Latina à luz do Concílio”, enquanto o resultado foi “A Igreja do Vaticano II à
luz da realidade latino-americana” (GUTIÉRREZ, 1982, p. 256). Na tentativa de
compreender esta inversão de perspectiva, fruto de verdadeira ruptura epistemológica,
talvez fosse oportuno salientar que nesse mesmo período amadurecia a proposta de uma
“Teologia da Libertação” (cf. GUTIÉRREZ, 1971) em alternativa à “Teologia do
desenvolvimento” tão em voga naqueles idos e, inclusive, acolhida pelo próprio Paulo
VI na Populorum progressio (1967).
Na interpretação de “sinais dos tempos”, segundo a Constituição Pastoral
Gaudium et Spes, distinguem-se dois sentidos que se revelam recíprocos e
complementares: um pastoral e outro teologal (cf. SOBRINO, 1989, p. 249-269). No
primeiro sentido, “sinais dos tempos” correspondem aos acontecimentos da história,
vale dizer, as expectativas, a índole, as aspirações muitas vezes dramáticas (cf. GS 4) e
que, por conseguinte, têm um alcance pastoral, na medida em que constituem um
conjunto de desafios pastorais à missão da Igreja.
Já em seu sentido “teologal”, “sinais dos tempos” referem-se aos sinais da
presença e interpelação divinas. Afirma o texto conciliar: “Movido pela fé, conduzido
pelo Espírito do Senhor que enche o orbe da terra, o Povo de Deus esforça-se por
discernir nos acontecimentos, nas exigências e nas aspirações de nossos tempos, em que
participa com os outros homens, quais sejam os sinais verdadeiros da presença ou dos
desígnios de Deus” (GS 11). Neste caso, a história não deve ser interpretada apenas do
ponto de vista pastoral, mas primariamente na sua dimensão sacramental, vale dizer,
enquanto capaz de revelar Deus tornando-o visível através de uma presença deveras
interpeladora.
Acolhida como autêntico “sinal dos tempos” no duplo sentido acima
explicitado, a irrupção dos pobres fez com que a Igreja se aproximasse cada vez mais do
mundo dos empobrecidos para aprender com eles a interpretar e a viver de maneira mais
coerente o evangelho, testemunhando a intrínseca dimensão sócio-libertadora da fé. Este
processo provocou o movimento de inserção no “mundo dos pobres” como experiência
de conversão.
Nesse sentido, o texto da Conferência Geral dos bispos em Medellín é a
melhor expressão da maturidade da igreja latino-americana. Pois ela não apenas
enfrenta com honestidade e coragem os desafios que lhe são postos pela situação
econômica, sociopolítica, cultural e eclesial do continente. Na esteira das melhores
intuições do Vaticano II, ela os acolhe como autênticos sinais dos tempos e, portanto,
expressão da presença interpeladora do Deus de Jesus Cristo convocando-a à
experiência de solidariedade evangélica. Desse modo, a igreja latino-americana deixa de
ser igreja-reflexo para se tornar, para todos os efeitos, igreja-fonte.

1. Uma Igreja solidária: aproximação, inserção, inclusão

O voltar-se ao pobre e a seu mundo como expressão de autêntica experiência


espiritual, que se dá na contemplação do rosto do Cristo sofredor nas feições
concretíssimas dos pobres, propiciou à Igreja continental uma solidariedade efetiva para
com os mesmos. Inserir-se no mundo do pobre implica, em primeiro lugar, dar-se conta
da complexidade do fenômeno da pobreza. Isso comporta, num segundo momento,
indagar acerca das causas estruturais que a desmascaram como empobrecimento injusto.
Somente a partir desses dois primeiros passos, a opção pelo pobre pode se constituir em
luta contra toda forma de opressão no intuito de sua integral libertação.

1.1 Empobrecimento: estrutural, produzido, injusto

O episcopado latino-americano e caribenho, reunido em suas várias assembleias,


jamais deixou de exprimir sua indignação ética face à situação de pobreza na qual vive
mais da metade da população do continente. São contundentes, a tal propósito, as
palavras de Medellín: “O Episcopado Latino-americano não pode ficar indiferente ante
as tremendas injustiças sociais existentes na América Latina, que mantêm a maioria de
nossos povos numa dolorosa pobreza, que em muitos casos chega a ser de miséria
humana. Um surdo clamor nasce de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma
libertação que não lhes chega de nenhuma parte” (14, 1-2). E, após pouco mais de dez
anos, os bispos reunidos em Puebla, referindo-se justamente a esse texto de Medellín,
afirmam: “O clamor pode ter parecido surdo naquela ocasião. Agora é claro, crescente,
impetuoso e, nalguns casos, ameaçador” (n. 89).
Pobreza e miséria são descritas como um fenômeno complexo envolvendo fome,
enfermidades crônicas, analfabetismo, etc. Em Puebla, por exemplo, chega-se a
individuá-la “como o mais devastador e humilhante flagelo” que acomete nossos povos
(n.18). Essa pobreza, segundo Puebla, é crescente. Haveria uma relação diretamente
proporcional entre riqueza e pobreza. Enquanto uns poucos enriquecem, a maioria é
sempre mais empobrecida. Por este motivo, alarga-se sempre mais a brecha entre pobres
e ricos. Trata-se, portanto, de um crescimento contraditório.
A essa descrição do fenômeno da pobreza, segue-se uma análise mais profunda
que indaga acerca das causas estruturais que tornam possível tamanha brecha entre ricos
e pobres. No dizer de Puebla: “essa pobreza não é uma etapa transitória, e sim produto
de situações e estruturas econômicas, sociais e políticas que dão origem a esse estado de
pobreza...” produzem... “ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais
pobres” (n. 30). E os bispos não hesitam em se referir a esse sistema estrutural,
chamando-o por diversos nomes: “capitalismo liberal”. “liberalismo capitalista”,
“neocolonialismo”, “imperialismo internacional do dinheiro”, “novas formas de
dominação supranacional” e “economia de mercado”.
Do ponto de vista ético, falam de “injustiça”, “estruturas geradoras de injustiça”,
“mecanismos impregnados de materialismo”. E chegam a condenar formalmente o
sistema social que gera miséria coletiva chamando-o de: “idolatria da riqueza
individual” (nn. 542, 494), “materialismo” (nn. 55, 1065), “humanismo fechado” (n.
546) e finalmente “ateísmo prático” (n. 546).
À luz da fé, esses mesmos fenômenos são interpretados como verdadeiras
“situações de pecado”. Fala-se, em Puebla, de “situação de pecado social” (n. 28; cf.
ainda nn. 1032, 1225) que, por sua vez, se encontra consubstanciada em “estruturas de
pecado” (n. 452), é “causada pelo pecado” que tem “dimensões sociais gigantescas” (n.
73). Estaríamos diante de “um mistério de pecado” (n. 70). Em palavras pungentes: “A
realidade latino-americana nos faz experimentar amargamente até os limites extremos a
força do pecado” (n. 186).
O episcopado salienta, ademais, a grande contradição que essa situação
representa para a consciência cristã pelo fato de tamanha injustiça se dar em um
continente que se confessa cristão. Puebla, por exemplo, fala de “escândalo” (n.28), de
“incoerência” (n. 437) ou simplesmente de “contradição” (nn. 28.1257). O escândalo se
configuraria justamente na ineficácia histórica da fé cristã que, no decurso de cinco
séculos, conviveu com graves discrepâncias entre: “cultura cristã” e “condição de
pobreza” (cf. n. 437); “ordem social injusta e exigências do Evangelho” (n.1257). A
consciência desta ineficácia da fé cristã transforma-se, na visão deles, em um grande
desafio pastoral: tornar a fé socialmente operante e transformadora (cf. nn. 90, 864).
Em conclusão, os bispos admitem a urgente necessidade de, atendendo à
“clamorosa exigência de nossos povos” (n.12), comprometer-se em tornar o Evangelho
uma “força de fermento transformador” (n. 142). E o meio para a realização desse
compromisso é a “opção preferencial pelos pobres” (n. 1154) como resposta à exigência
posta pela “realidade escandalosa” do continente.

1.2 “Feições concretíssimas”: presença e interpelação do próprio Cristo

Ao longo dos anos, por meio de uma inserção crescente entre os pobres, porção
significativa da igreja continental foi tomando sempre mais consciência da
complexidade daquilo que poderíamos chamar de “mundo dos pobres”. E a explicitação
dessa consciência foi se dando mediante um duplo processo, simultâneo e recíproco:
desdobramento e ampliação da concepção de pobre e reconhecimento do rosto do
próprio Cristo nas feições concretíssimas dos empobrecidos.
No primeiro caso, foi-se compreendendo sempre mais o pobre mediante uma
abertura às alteridades como tais e às minorias subjugadas e marginalizadas: culturais,
raciais, de gênero, religiosas, etc. Assim, em Puebla, as feições nomeadas eram
praticamente todas de pessoas economicamente empobrecidas: crianças, jovens,
indígenas, afro-americanos, camponeses, operários, subempregados, desempregados,
marginalizados e anciãos (cf nn. 31-39). Santo Domingo fala de “rostos desfigurados
pela fome”, “desiludidos”, “humilhados”, “angustiados”, “sofridos”, “cansados”,
“envelhecidos” (n. 178). Aparecida concebe o pobre como o conjunto dos “novos
excluídos” (cf. n. 402): deslocados e refugiados, vítimas do tráfico humano, da
prostituição e do tráfico sexual, entre tantos outros. No segundo caso, aprofundou-se em
igual medida a experiência mística de reconhecer o rosto sofredor de Cristo nas
concretíssimas feições dos vários pobres, vítimas dos vários mecanismos de exploração
e de morte em ato no continente latino-americano e caribenho.
A confirmar o que estamos dizendo é a imagem do rosto dos pobres em sua
relação íntima com o rosto de Cristo que, a partir de Puebla, tem marcado presença
constante nos textos das assembleias continentais do episcopado. Nesse sentido seria
interessante verificar esse processo em curso comparando os vários parágrafos das três
conferências a esse respeito: Puebla (cf. nn. 31-39), Santo Domingo (cf. nn. 178-179) e
Aparecida (cf. n. 402).
Essas “feições concretíssimas”, esses “rostos desfigurados” ou ainda esses
“novos excluídos” nos questionam e nos interpelam, no dizer de Puebla; desafiam-nos a
uma profunda conversão pessoal e eclesial, segundo Santo Domingo; e, finalmente, na
linguagem de Aparecida, devem ser acolhidos e acompanhados em suas respectivas
esferas pela Igreja, sobretudo através de sua Pastoral Social.

1.3 Opção pelos pobres: contra a pobreza e pela libertação integral


Assumida de forma contundente em Medellín, a opção pelos pobres foi sendo,
no decorrer das outras assembleias, confirmada e, consequentemente, aprofundada e
sempre mais explicitada. Já em Puebla, por exemplo, a opção pelos pobres foi acrescida
de dois adjetivos que a qualificaram duplamente: “preferencial” (nn. 1134, 1165) e
“solidária” (nn.1134, 974). Com isso se quis dizer que ela não é exclusiva e nem
paternalista. Nesse particular, os bispos se revelam realistas quanto às consequências e
aos efeitos dessa contundente opção. Não escondem o fato de que tenha provocado
“tensões e conflitos” até mesmo no interior da própria Igreja (n. 1139) e que, inclusive,
tenha sido selada com o sangue de vários mártires (nn. 92, 1138, 265-266, espec. 668).
E assumem a firme decisão de prosseguir nessa linha (cf. nn. 1157, 1158), não se
deixando intimidar por resistências e críticas, mas dispostos inclusive a uma ousada
autocrítica ao confessarem não estar ainda “identificados suficientemente com os
pobres” (n. 1140).
O texto final da IV Assembléia do Episcopado em Santo Domingo, no ano de
1992, acrescentou à evangélica opção pelos pobres, solenemente assumida nas
assembleias de Medellín e Puebla, dois outros adjetivos qualificantes: “firme e
irrevogável” (n. 178).
A compreensão da opção pelos pobres como perspectiva que atravessa a
totalidade das estruturas e prioridades pastorais foi confirmada ao ser reassumida pelo
episcopado no documento de Aparecida, em 2007: “Comprometemo-nos a trabalhar
para que a nossa Igreja Latino-americana e Caribenha continue sendo, com maior
afinco, companheira de caminho de nossos irmãos mais pobres, inclusive até o martírio.
Hoje queremos ratificar e potencializar a opção preferencial pelos pobres feita nas
Conferências anteriores. Que seja preferencial implica que deva atravessar todas as
nossas estruturas e prioridades pastorais. A Igreja latino-americana é chamada a ser
sacramento de amor, solidariedade e justiça entre nossos povos” (n. 396).
Uma ulterior explicitação confirma a importância da opção pelos pobres na visão
do episcopado latino-americano e caribenho. Trata-se da exigência dirigida a todos os
membros da Igreja, cada qual no exercício de seu específico ministério e segundo suas
próprias condições: assumir tanto a opção pelos pobres quanto o compromisso pela
libertação dos mesmos. Ninguém, portanto, deve-se considerar desincumbido dessa
missão que é dirigida a todos, sem exceção: bispos (n. 707), padres (nn. 696, 711),
religiosos (n. 734 e também 97, 754, 769), candidatos ao presbiterado (n. 886), jovens
em especial (n. 1188) e leigos em geral (n. 792). Nesse sentido, salientamos o solene
compromisso reassumido pelo episcopado continental, no texto de Puebla em seu
número 1134: “Afirmamos a necessidade de conversão de toda a Igreja para uma opção
preferencial pelos pobres, no intuito de sua integral libertação”.
Por fim, trazemos o testemunho de dois textos da Conferência de Aparecida. O
primeiro deles, na esteira das Conferências anteriores, declara a singular importância da
opção pelos pobres na caminhada da Igreja latino-americana e caribenha: “A opção
preferencial pelos pobres é uma das peculiaridades que marca a fisionomia da Igreja
latino-americana e caribenha” (n. 391). O segundo texto, de maneira convincente,
sintetiza muito bem o que dissemos anteriormente: “Só a proximidade que nos faz
amigos nos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus
legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve
conduzir-nos à amizade com os pobres. Dia a dia os pobres se fazem sujeitos da
evangelização e da promoção humana integral... À luz do Evangelho reconhecemos sua
imensa dignidade e seu valor sagrado aos olhos, pobre com eles e excluído como eles. A
partir dessa experiência cristã, compartilharemos com eles a defesa de seus direitos” (n.
398).
2 Uma Igreja evangelizadora: os pobres são evangelizados e evangelizam

Vimos acima que a presença e ação evangelizadoras da Igreja da América Latina


e do Caribe se deram, sobremaneira, na solidariedade para com os empobrecidos e no
efetivo compromisso com a superação de toda forma de empobrecimento injusto.
Compromisso e solidariedade eclesiais que alcançaram o ápice do testemunho na
experiência do martírio. Esse é, portanto, um dos traços da singular fisionomia da Igreja
latino-americana e caribenha: a experiência de que, no processo mesmo de serem
evangelizados, os pobres evangelizam. O episcopado continental reconhece tal fato ao
afirmar em Puebla que os pobres são os primeiros destinatários do Evangelho (cf. n.
1140) e emissários desse mesmo Evangelho, uma vez que testemunham um “potencial
evangelizador” próprio (cf. n. 1147). Em Santo Domingo, reitera-se este
reconhecimento mediante as seguintes palavras: “Com o ‘potencial evangelizador dos
pobres’ (P 1147), a Igreja pobre quer impulsionar a evangelização de nossas
comunidades” (n. 178).

2.1 Evangelizar a partir e na perspectiva dos pobres

A partir de Puebla, sobretudo, vai ficando cada vez mais claro que a opção pelos
pobres se constitui em perspectiva a partir da qual evangelizar a todos, sem exclusão. E
isso implica no fato de que, segundo Puebla, a imprescindível condição para que a
Igreja possa “evangelizar os ricos” (n. 1156) e “evangelizar o poder” (n. 144, 515) é
colocar-se em comunhão com os pobres, assumindo a “denúncia profética” (n. 1138).
Um exemplo claro dessa opção solidária pelos pobres como perspectiva que
atravessa todas as instituições e prioridades pastorais pode ser visto na decisão de fundo
tomada pelo episcopado por ocasião da Conferência de Santo Domingo (1992). Não
obstante o clima de censura e a intenção de substituir leituras estruturais da realidade
latino-americana pela abordagem cultural, o episcopado continental colheu a ocasião
das celebrações em torno dos 500 anos de evangelização do continente para prestar mais
atenção aos desafios e questões provenientes das culturas marginalizadas presentes e
atuantes na formação das culturas latino-americanas e caribenhas: a cultura dos povos
indígenas autóctones, a cultura afro-americana e a cultura da mulher, vítima da opressão
machista. Nesse sentido, a proposta de inculturar o Evangelho nas diversas culturas
presentes no continente surgiu como alternativa à proposta inicial da IV Conferência de
criar uma cultura cristã para fazer frente à cultura moderna secular.

2.2 Religiosidade popular: assumir, discernir, integrar

O reconhecimento do valor e da importância da religiosidade popular é fruto da


inserção solidária da Igreja continental no “mundo dos pobres” com suas expressões
culturais e religiosas. Interessante notar que, no texto da Declaração da Conferência
geral do Rio de Janeiro, os elementos que constituem a religiosidade popular eram
vistos com suspeita de “superstição e espiritismo” e considerados como expressão da
“ignorância das coisas divinas” e “descuido da vida cristã” (cf. LIBANIO, 2007, p. 13-
15). Talvez o que ocorresse na época fosse uma situação de “ignorância recíproca”,
pois, se, por um lado, as expressões de fé populares eram interpretadas pelos bispos
como “ignorância das coisas divinas”, por outro, esse mesmo juízo traía a ignorância
dos próprios bispos no que tange às expressões da religiosidade popular e no seu
reconhecimento como expressões genuínas de fé. Com o passar dos anos e, sobretudo, a
partir de Medellín, percebe-se um processo de maior compreensão e, portanto, de
ressignificação destes valores e costumes próprios da cultura e da religiosidade
populares.
Nomeada de diferentes maneiras – algumas vezes como “catolicismo popular”,
outras como “religião do povo”, ou ainda como “religião dos pobres e simples” – a
religiosidade popular é acolhida e reconhecida como valor pelos bispos em suas
Conferências episcopais. No documento de Puebla, os bispos procuram discernir no
seio da religiosidade popular uma espécie de núcleo ou substrato radical que seria
católico (nn. 7, 331, 1099, 1100) e que, portanto, se constituiria num verdadeiro
potencial de auto-evangelização (cf. n. 450) e de autolibertação (cf. n. 452, 935, 937,
962). Em Santo Domingo, diz-se dela que seria “uma expressão privilegiada da
inculturação da fé”, uma vez que “Não se trata só de expressões religiosas mas também
de valores, critérios, condutas e atitudes que nascem do dogma católico e constituem a
sabedoria de nosso povo, formando-lhe a matriz cultural” (n. 36). Aparecida, citando
textualmente o papa Bento XVI em seu discurso de abertura da V Conferencia do
Episcopado latino-americano e caribenho, assim se expressa: “O Santo Padre destacou a
‘rica e profunda religiosidade popular, na qual aparece a alma dos povos latino-
americanos’, e a apresentou como ‘o precioso tesouro da Igreja Católica na América
Latina’” (n. 258). Detectam-se, todavia, expressões deformadas e alienantes da
religiosidade popular, como, por exemplo, o messianismo e o fatalismo (n. 453, 456,
305).
Ainda no documento de Puebla, propõe o episcopado continental que, após um
acurado e criterioso discernimento, a religiosidade popular seja assumida, tanto em sua
riqueza quanto em suas deficiências, e até mesmo integrada na liturgia da Igreja (nn.
469, 457, 506). Trata-se de um efetivo compromisso assumido pelo episcopado
continental, na esteira de um princípio de nossa mais genuína tradição segundo o qual:
“o que não é assumido não é redimido” (n. 469, 400). Em Santo Domingo, os bispos
reafirmam o propósito de compreender cada vez melhor a religiosidade popular e de
acompanhá-la com atitudes pastorais (n. 36) Na conclusão do texto da Conferência de
Aparecida, eles reafirmam o empenho em “cuidar do tesouro da religiosidade popular
de nossos povos, para que nela resplandeça cada vez mais a ‘pérola preciosa’ que é
Jesus Cristo, e seja sempre novamente evangelizada na fé da Igreja e por sua vida
sacramental” (n. 549).

2.3 Comunidades eclesiais de base: compromisso, participação, comunhão

A Conferência de Medellín reconhece as incipientes CEBs como “célula inicial


de estruturação eclesial e foco de evangelização” (n. 15). No período pós-Medellín, elas
se multiplicaram, atingindo crescente maturidade. Por essa razão, a Conferência de
Puebla reconhece a relevância e o significado profundo das CEBs. Ali, as CEBs são
reconhecidas como a “alegria e a esperança da Igreja”, por terem se convertido em
“centros de evangelização e em motores de libertação” (n. 96). Ressalta-se, ainda, a
“vitalidade das CEBs”, verdadeira “fonte de onde brotam os ministérios confiados aos
leigos: animação de comunidades, catequese, missão” (n. 97). E, por fim, entre os
“sinais de esperança e alegria” (n. 1309), as CEBs são citadas como o primeiro entre
nove “sinais” da “vitalidade evangelizadora no continente”.
Das CEBs, o documento de Puebla destaca a dimensão interpessoal e
relacional testemunhada em seu interior por seus participantes (cf. nn. 239, 620, 629,
640, 641). Ademais, sublinham-se suas relações para com a sociedade direcionadas,
sobretudo, para a transformação social (cf. nn. 622, 629, 640, 642, 643).
Reconhece-se a importância das CEBs no aprofundamento das relações entre
os vários níveis eclesiais, a saber: CEBs, paróquia e igreja particular. Nesse contexto
elas constituem uma maneira alternativa do exercício das relações no interior da Igreja.
O convívio frequente e a participação ativa nas CEBs tornam possível a posta em
prática da eclesiologia de comunhão, proposta pelo Vaticano II. Bispos e presbíteros
ressignificam suas vocações específicas de pastores atentos aos clamores da porção do
povo de Deus que lhes é confiada. Teólogos redescobrem seu carisma próprio de
animarem as comunidades em vistas de uma fé cada vez mais lúcida e eficaz. Os
distintos ministérios laicos brotam aqui e acolá como expressão dos vários carismas
suscitados pelo Espírito para o bem de toda a comunidade. Diálogo e
corresponsabilidade são experimentados como caminho para a comunhão e a
participação, notas características da eclesiologia latino-americana e caribenha. A este
propósito, chegou-se inclusive a caracterizar as CEBs como “uma nova maneira de toda
a Igreja ser”.
A Conferência de Santo Domingo acolhe como “sinal dos tempos” o fato de
“um grande número de leigos comprometidos com a Igreja que exercem diversos
ministérios, serviços e funções nas comunidades eclesiais de base” e também o
crescimento da “consciência de sua responsabilidade no mundo e na missão”,
concluindo com a contundente afirmação: “Os pobres evangelizam os pobres” (n. 95).
E, por último, a Conferência de Aparecida que, olhando para o passado
recente, afirma: “... as Comunidades Eclesiais de Base têm sido escolas que têm ajudado
a formar cristãos comprometidos com sua fé, discípulos e missionários do Senhor, como
o testemunha a entrega generosa, até derramar o sangue, de muitos de seus membros.
Elas abraçam a experiência das primeiras comunidades, como estão descritas nos Atos
dos Apóstolos (At 2, 42-47)” (n. 178).

3 Uma Igreja pascal: entregar a vida para gerar mais vida

Na esteira da mais genuína tradição cristã, o martírio constitui,


simultaneamente, vértice do testemunho de fé e máxima floração de solidariedade,
fidelidade e generosidade humanas. Nesse sentido, embora paradoxal, o martírio se
apresenta como fecunda semeadura a produzir frutos preciosos e perenes. Por essa
razão, a experiência do martírio se nos afigura como uma grande interpelação:
compadecer-se dos pobres e inserir-se em sua realidade sofrida para, assumindo essa
realidade “crucificada”, deixar-se conduzir à experiência de ressurreição.

3.1 “Crer na vida” e “dar a vida”: esclarecimento mútuo

Seria possível distinguir no interior da Igreja latino-americana um testemunho


“objetivo”, crer na vida, de outro “subjetivo”, dar a vida. E ambos os testemunhos se
dariam de modo recíproco e complementar. A peculiar relação entre a objetividade e a
subjetividade do testemunho eclesial explicita-se em dois níveis: histórico e teológico.
Do ponto de vista histórico, a experiência do martírio foi algo que sobreveio a setores da
Igreja não de forma arbitrária nem por acaso. A perseguição e o martírio se configuram
como uma reação a uma determinada posição assumida por estes mesmos setores da
Igreja latino-americana. Não é toda a Igreja, enquanto instituição religiosa, que é
perseguida. E a perseguição não se dá em virtude de uma contestação formal de
verdades doutrinais ou morais.
Em nível teológico, percebe-se uma relação de reciprocidade complementar
entre a missão primordial da Igreja de defender a vida e a experiência do martírio como
entrega da própria vida. Conceber a missão à luz do martírio e acolher o martírio como
cumprimento da missão faz com que ambos, missão e martírio, sejam potencializados
cada qual em sua específica dimensão. Enquanto vértice da missão, o martírio salienta a
singularidade e a relevância desta incumbência assumida com empenho e
responsabilidade. E, enquanto capaz de suportar a prova de fogo do martírio, a missão
assumida com tamanha gravidade faz com que a Igreja recupere a credibilidade no
anúncio e no testemunho do evangelho de Jesus Cristo. Relacionar dialeticamente
missão na defesa da vida e martírio, como expressão cabal da entrega da própria vida,
ademais, recupera não apenas a credibilidade da missão eclesial, mas a singular
concreção do testemunho cristão, segundo as escrituras do Segundo Testamento.
A reflexão acerca da perseguição e do martírio como reação à missão da Igreja
continental na defesa da vida de suas imensas maiorias empobrecidas foi se impondo
aos poucos, em virtude de uma sensibilidade cada vez maior para com os fatos
acontecidos no continente latino-americano. As conclusões de Medellín, de modo
contundente, ressaltam a importância da pobreza solidária como testemunho qualificado
em um contexto de miséria e de morte injustas e estruturais. O documento de Puebla,
neste sentido, ao se referir às causas da perseguição, afirma ser ela uma resposta ao
“clamor pela justiça” (n. 87) que se traduz na “denúncia profética da Igreja e seus
compromissos com o pobre” (nn. 1138; 92). E continua afirmando que “enfrentar a
perseguição e a morte” (n. 668) constitui o vértice do testemunho de santidade que se
manifesta, entre outras coisas, no sacrifício e na abnegação, no enfrentamento da
solidão, no isolamento e na incompreensão (n. 668).
Ao sustentar, portanto, que perseguição e martírio representam um modo cabal
de testemunho cristão, o documento de Puebla conclama-nos a uma reflexão teológica
que seja distinta da tradicional e que esteja à altura da “novidade histórica” em ato no
contexto latino-americano e caribenho. Talvez fosse aqui o caso de introduzir um
alargamento semântico da definição usual de martírio, reconduzindo-a à experiência
primordial e, por isso, originária do martírio cristão: o amor maior capaz de dar a vida
em favor dos outros e das outras, encarnado por Jesus de maneira ímpar no curso de sua
inteira vida, culminada no desfecho trágico de sua morte na cruz.
Essa relação de mútuo esclarecimento entre “crer na vida” e “dar a vida” se
revela de uma peculiar fecundidade. Em primeiro lugar, salienta-se que o Deus em
quem acreditamos é o Deus da vida, cuja vontade primeira e mais fundamental é o
cuidado e a tutela da vida de suas criaturas, mormente daquelas cuja vida se encontra
em situações de descaso e de ameaça.
Ademais, alcançar tal nível de solidariedade e de fidelidade, como o de entregar
a própria vida, é expressão de fidelidade à causa do Deus da vida e da solidariedade às
vítimas da injustiça e da morte. Não se ergue apenas a bandeira da defesa da vida, a
partir de seus direitos fundamentais e inalienáveis; mas se dispõe a pagar o preço deste
empenho e desta luta, sacrificando o que de mais nobre se tem, a vida. Neste sentido, a
entrega da própria vida é o coroamento, o vértice de toda luta no empenho pela
afirmação e pela defesa da vida. Esta é, indubitavelmente, a expressão mais plena do
amor maior, segundo o quarto evangelho.
3.2 “Povos crucificados” e “mártires jesuânicos”: autêntica retroalimentação

A experiência do martírio na América Latina e no Caribe se dá na mútua


reciprocidade entre “povos crucificados” e “mártires jesuânicos” (cf. SOBRINO, 2000,
p. 45-51). Por um lado, são os “mártires jesuânicos” aqueles que mais se assemelham a
Jesus em sua vida e em sua morte. Como Jesus, eles enfrentam a perseguição e a morte
como reação aos valores testemunhados e às decisões tomadas precedentemente. Em
comunhão com Jesus, eles acolhem a morte como expressão de fidelidade a seu projeto
de instauração do Reino de Deus na história e, sobretudo, como expressão do amor
solidário para além de toda e qualquer expectativa. Seguindo os passos de Jesus, eles
assumem a morte como o preço a pagar pela fidelidade à própria missão e como
expressão máxima da solidariedade que logram alcançar para com tantos irmãos e irmãs
de caminhada. Nesse sentido, eles se assemelham a Cristo de uma maneira única: se
tornam solidários a ele em sua vida e em seu destino de morte de cruz. Livre e
generosamente optam por prosseguir o mesmo caminho de Jesus como condição única
para estreitar os laços de comunhão com Ele.
Por outro lado, na medida em que tomam sobre si, ingênua e inocentemente, o
mal e a perversidade do mundo, os “povos crucificados” são os que mais se assemelham
a Cristo em seu sofrimento inocente e redentor. Eles sequer tiveram a oportunidade de
optar, são vítimas indefesas diante da crueldade do mundo. Carregam sobre si o peso do
pecado do mundo. E, neste sentido, são os que, segundo o apóstolo Paulo, “completam
na própria carne o que falta à paixão de Cristo”. Por sua própria condição, segundo os
cânticos do servo sofredor de Isaías, eles assumem uma missão eminentemente
redentora, porque reconciliadora, face ao mal e ao sofrimento do mundo. Por esta razão,
são talvez os que mais se unem a Cristo em sua missão redentora.
São os “povos crucificados”, portanto, que dão sentido aos “mártires
jesuânicos”, pois esses últimos se fazem mártires incorporando-se generosamente à
morte dos primeiros. Posto que “os mártires jesuânicos” se tornam tais para salvar os
“povos crucificados”, em definitivo, são esses últimos que lhes propiciam salvação.

3.3 “Libertação” e “martírio”: implicação recíproca

A reflexão teológica que se originou nesse preciso contexto eclesial latino-


americano e caribenho buscou desentranhar as consequências deste “amor maior”
testemunhado por Jesus, concebido na sua estreita relação entre “crer na vida” e “dar a
vida”, para a concreta maneira de se refletir teologicamente. Nesse sentido, verificou-se
no interior da TdL latino-americana um desdobramento paradigmático: do cativeiro-
libertação, seu paradigma inicial, ao da libertação-martírio. Esse processo seria
caracterizado não como uma substituição de um tema por outro, nem como uma mera
justaposição entre ambos, mas como uma necessária complementação e uma mútua
explicitação de ambos os temas, considerados centrais na reflexão teológica latino-
americana.
No que diz respeito mais especificamente aos conteúdos centrais da teologia
cristã, cumpre ressaltar que, ao se iluminarem reciprocamente, libertação e martírio
propiciam: 1) a redescoberta da centralidade do “Reino de Deus” e da “cruz de Jesus”
nos textos do Segundo Testamento e, consequentemente, em toda reflexão que se queira
cristã; 2) a recuperação da libertação e do martírio como experiências imprescindíveis e
centrais para as reflexões próprias dos distintos tratados teológicos, especialmente
Cristologia e Deus cristão; 3) a valorização da libertação e do martírio no âmbito da
teologia fundamental, no sentido de que a libertação confere relevância à fé e o martírio
lhe restitui credibilidade; 4) a recuperação das incidências entre libertação e martírio
para uma teologia cristã que seja, para todos os efeitos, intrinsecamente espiritual (cf.
SOBRINO, 1993, p. 102-123). Esta seria uma das contribuições decisivas da TdL
latino-americana à reflexão teológica universal.

Conclusão: uma Igreja verdadeiramente martirial

Martírio, etimologicamente, significa testemunho e, desde os primeiros séculos


do Cristianismo, foi empregado para se referir ao testemunho por excelência: a entrega
generosa e solidária da própria vida como vértice do testemunho de fé. Posto que o
processo de forja da singular fisionomia da Igreja latino-americana e caribenha se deu
em meio a situações de confissão e testemunho de fé cristã, concluiríamos afirmando ser
ela uma igreja verdadeiramente martirial. E isso, sobretudo, pelo fato de:

1) Discernir na feição dos empobrecidos o rosto sofredor e interpelador de


Cristo, fazendo dessa autêntica experiência espiritual fonte e alimento de sua
presença evangelizadora no continente;

2) Inserir-se no “mundo dos empobrecidos” e solidarizar-se com eles na luta


contra a pobreza iníqua e em favor da integral libertação, indagando,
ousadamente, acerca das raízes últimas desse empobrecimento estrutural;

3) Deixar-se evangelizar pelos empobrecidos, pondo-se entre eles e assumindo


a perspectiva deles, para melhor evangelizar a todos;

4) Desentranhar a dimensão sócio-libertadora da fé mediante releitura das


Escrituras sagradas e reinterpretação da multissecular tradição eclesial;

5) “Reinventar-se” como Igreja de Jesus Cristo na América Latina e no Caribe,


exercitando-se na solidariedade, no compromisso, na participação e na
comunhão, forjando, assim, uma fisionomia eclesial própria no concerto da
Igreja universal;

6) Testemunhar uma fé lúcida, eficaz e madura que atinge seu vértice no


martírio, concretamente experimentado em nosso continente na
reciprocidade constitutiva entre “povos crucificados” e “mártires
jesuânicos”;

7) Produzir uma teologia sensível às questões postas pelo empobrecimento


injusto, capaz de alimentar uma fé lúcida e comprometida e de sugerir
práticas eficazes no cumprimento da missão eclesial, revelando-se, ao fim e
ao cabo, uma teologia espiritual e mistagógica por conduzir pessoas e
comunidades à participação no mistério pascal de Cristo pela via do
seguimento de Jesus.
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