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Marçal Aquino
Não era gordo. Estava sempre inchado — de cachaça e das bordoadas da vida. Daí
o apelido: Boi.
Enquanto se aquecia num sol ralo, espiava a construção de madeira
criteriosamente encravada no alto, sob o viaduto. Era o barraco do Eraldo. Tão bem
feito que podia ser chamado de casa.
Boi tossiu, estava ficando gripado. Para piorar, a noite fora gelada, com direito a
garoa e vento. O inverno, impaciente, já mostrava as garras. E era só comecinho de
maio. Boi escarrou.
Ele se virava com papelões, sob a marquise de um banco, ficando exposto a tudo e
a todos. E, às seis da manhã, precisava cair fora, inclusive aos sábados: o pessoal da
faxina nunca se atrasava. Entre eles havia um grandalhão que já chegava jogando água
para lavar a frente do prédio. Parecia sentir prazer em fazer isso, o puto. Boi achava que,
daquele jeito, não aguentaria outro inverno. A verdade é que estava ficando velho.
Nesse momento, a porta do barraco foi aberta e Eraldo esgueirou-se para fora.
Esticou os braços, as pernas, espreguiçou-se. Boi notou que ele vestia um pijama.
Eraldo voltou para dentro por uns segundos e reapareceu, segurando uma caneca.
Boi ergueu-se, colocou o enorme saco de estopa nas costa e começou a subir a
encosta do viaduto. Café.
Eraldo observou-o com curiosidade. Boi teve dificuldades para chegar ao barraco.
Eraldo sorriu.
“Tem um pouco de café para mim?”, boi ofegava.
“Me dá sua caneca.”
Boi colocou o saco no chão e retirou de seu interior uma caneca de alumínio,
muito amassada. Quando Eraldo entrou no barraco, Boi notou o fogareiro no chão. E
viu também uma lâmina de madeira fazendo as vezes de parede interna, um cobertor
improvisado como cortina. Eraldo tinha dividido o barraco em cômodos.
Ele devolveu a caneca a Boi e os dois beberam em silêncio, observando o tráfego
lento que passava sob o viaduto. Boi estava pensando que aquele era, de longe, o
melhor barraco das redondezas. Olhou para o lado oposto do vão do viaduto: um
amontoado precário de tábuas e folhas de zinco abrigava mais de dez pessoas. Homens
e mulheres. Boi sabia disso porque já tentara conseguir uma vaga ali. E fora
escorraçado.
“Quero te fazer uma proposta”, Boi disse.
Eraldo tomou um último gole e depois jogou à frente de ambos o que restara de
café na caneca.
“Pode falar.”
“Eu tava pensando: você bem que podia me deixar morar aqui.”
“E o que eu ganho com isso?”
Boi se voltou para o barraco. Disse que poderia tomar conta quando Eraldo
estivesse fora. Ele balançou a cabeça. Indicou a corrente e o cadeado presos à porta.
“Não preciso de vigia.”
Boi reparou no pôster com uma loira nua colado na parede interna.
“Eu posso pagar.”
“Pagar?”
Em vez de responder, Boi remexeu outra vez o conteúdo do saco e mostrou o que
escolhera. Um revólver. Que ele encontrara, algumas semanas antes, num matagal.
Eraldo examinou a arma, dando as costas para o fluxo de carros.
“Tem bala?”
“Duas”, Boi informou. E tossiu.
Eraldo abriu o tambor do revólver, girou, o avaliou contra a luz. E, antes de
devolver a arma a Boi, lançou um olhar de carinho para o barraco.
“Não dá, Boi. Tô bem sozinho. E a minha casa não é pensão.”
Boi guardou o revólver. Agradeceu pelo café e desceu a encosta. Aos
escorregões. Ao chegar à rua, voltou-se para observar mais uma vez a construção de
madeira. Além de tudo, era bem localizada, ele pensou, lembrando-se dos restaurantes
que havia nas imediações, onde todos conseguiam comida.
No final da tarde, Eraldo teve seu cochilo interrompido por batidas vigorosas na
porta do barraco. Abriu o cadeado, puxou a corrente e deu de cara com Boi.
Acompanhado por dois sujeitos que não conhecia. Ambos armados com porretes.
“Você vai embora daqui na boa ou na porrada?”, Boi perguntou.
Eraldo avaliou o tamanho do porrete que os homens seguravam e coçou a cabeça.
E aparentava calma ao dirigir-se aos dois:
“Como é que ele tá pagando vocês?”
Um deles, um mulato forte, adiantou-se e olhou para Boi:
“Ele ficou de dar um revólver para gente.”
Eraldo sorriu:
“Eu tenho uma proposta melhor.”
Eraldo agachou-se e entrou no barraco. Bem nesse momento, Boi teve um acesso
de tosse e demorou para entender o que acontecia. Eraldo voltou segurando uma caixa
de sapatos, na qual guardava seus objetos de valor. E seu dinheiro.
“Olha aqui, eu cubro a oferta dele.”
Boi viu o maço de notas mudar de mãos — e se lembrou que a região também era
muito boa para esmolar. Eraldo o olhava, sério.
“O dinheiro é de vocês. Agora quero que vocês levem o Boi pra bem longe daqui
e batam nele sem dó. Estou pagando pela surra. Que é pra ele aprender.”
Eraldo se manteve à porta do barraco, observando o trio descer para a rua. Boi ia
entre os dois, o saco nas costas. Parecia conformado. Teve uma hora em que olhou para
trás. Então Eraldo entrou.
Os homens escoltaram Boi por um longo trecho. Ele chegou a considerar a
possibilidade de sair correndo, cruzar a avenida e buscar socorro num posto de gasolina,
do outro lado. Desistiu porque sabia que não teria fôlego para escapar — os dois o
escoltavam rindo, mas estavam atentos — e também porque, na certa, acabaria
atropelado. O tráfego era intenso àquela hora.
Quando passaram em frente a um tapume, um deles o deteve, segurando-o pelo
braço, enquanto o outro removia uma das tábuas, abrindo passagem. Empurrado para
dentro, Boi deparou-se com um terreno baldio, onde o mato crescia misturado ao
entulho de uma casa demolida. Estava começando a escurecer.
Boi depositou o saco no chão e se virou para os dois. Eles se entreolharam, como
se estivessem decidindo quem ia começar.
“Não me machuquem, pelo amor de Deus”, Boi disse, e sua voz soou irregular,
modulada pelo medo. “Podem ficar com o revólver.”
O mulato riu: “Ah, qualé, Boi? A gente vai ficar com ele de qualquer jeito. E com
tudo que você guarda dentro desse saco. Tem alguma coisa que preste aí?”
Os dois estavam achando aquilo muito divertido. E se entreolharam mais uma vez.
O que foi um erro.
Num movimento rápido, Boi pegou o revólver e, segurando-o com as duas mãos,
apontou na direção da dupla. Porém nenhum deles pareceu intimidado.
“Ih, olha só isso. O Boi ficou valente”, disse o mulato.
“Larga de besteira, Boi”, o outro disse.
Boi tremia. Nunca tinha apontado uma arma para ninguém. Nunca tinha atirado na
vida. Quando falou, sua voz parecia mais firme — estava só um pouco fanhosa por
causa da gripe.
In: Aquino, Marçal. Famílias terrivelmente felizes. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.