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Boi

Marçal Aquino

[Homenagem a João Antônio [1937-1996], poeta dos escombros do mundo.]

Não era gordo. Estava sempre inchado — de cachaça e das bordoadas da vida. Daí
o apelido: Boi.
Enquanto se aquecia num sol ralo, espiava a construção de madeira
criteriosamente encravada no alto, sob o viaduto. Era o barraco do Eraldo. Tão bem
feito que podia ser chamado de casa.
Boi tossiu, estava ficando gripado. Para piorar, a noite fora gelada, com direito a
garoa e vento. O inverno, impaciente, já mostrava as garras. E era só comecinho de
maio. Boi escarrou.
Ele se virava com papelões, sob a marquise de um banco, ficando exposto a tudo e
a todos. E, às seis da manhã, precisava cair fora, inclusive aos sábados: o pessoal da
faxina nunca se atrasava. Entre eles havia um grandalhão que já chegava jogando água
para lavar a frente do prédio. Parecia sentir prazer em fazer isso, o puto. Boi achava que,
daquele jeito, não aguentaria outro inverno. A verdade é que estava ficando velho.
Nesse momento, a porta do barraco foi aberta e Eraldo esgueirou-se para fora.
Esticou os braços, as pernas, espreguiçou-se. Boi notou que ele vestia um pijama.
Eraldo voltou para dentro por uns segundos e reapareceu, segurando uma caneca.
Boi ergueu-se, colocou o enorme saco de estopa nas costa e começou a subir a
encosta do viaduto. Café.
Eraldo observou-o com curiosidade. Boi teve dificuldades para chegar ao barraco.
Eraldo sorriu.
“Tem um pouco de café para mim?”, boi ofegava.
“Me dá sua caneca.”
Boi colocou o saco no chão e retirou de seu interior uma caneca de alumínio,
muito amassada. Quando Eraldo entrou no barraco, Boi notou o fogareiro no chão. E
viu também uma lâmina de madeira fazendo as vezes de parede interna, um cobertor
improvisado como cortina. Eraldo tinha dividido o barraco em cômodos.
Ele devolveu a caneca a Boi e os dois beberam em silêncio, observando o tráfego
lento que passava sob o viaduto. Boi estava pensando que aquele era, de longe, o
melhor barraco das redondezas. Olhou para o lado oposto do vão do viaduto: um
amontoado precário de tábuas e folhas de zinco abrigava mais de dez pessoas. Homens
e mulheres. Boi sabia disso porque já tentara conseguir uma vaga ali. E fora
escorraçado.
“Quero te fazer uma proposta”, Boi disse.
Eraldo tomou um último gole e depois jogou à frente de ambos o que restara de
café na caneca.
“Pode falar.”
“Eu tava pensando: você bem que podia me deixar morar aqui.”
“E o que eu ganho com isso?”
Boi se voltou para o barraco. Disse que poderia tomar conta quando Eraldo
estivesse fora. Ele balançou a cabeça. Indicou a corrente e o cadeado presos à porta.
“Não preciso de vigia.”
Boi reparou no pôster com uma loira nua colado na parede interna.
“Eu posso pagar.”
“Pagar?”
Em vez de responder, Boi remexeu outra vez o conteúdo do saco e mostrou o que
escolhera. Um revólver. Que ele encontrara, algumas semanas antes, num matagal.
Eraldo examinou a arma, dando as costas para o fluxo de carros.
“Tem bala?”
“Duas”, Boi informou. E tossiu.
Eraldo abriu o tambor do revólver, girou, o avaliou contra a luz. E, antes de
devolver a arma a Boi, lançou um olhar de carinho para o barraco.
“Não dá, Boi. Tô bem sozinho. E a minha casa não é pensão.”
Boi guardou o revólver. Agradeceu pelo café e desceu a encosta. Aos
escorregões. Ao chegar à rua, voltou-se para observar mais uma vez a construção de
madeira. Além de tudo, era bem localizada, ele pensou, lembrando-se dos restaurantes
que havia nas imediações, onde todos conseguiam comida.
No final da tarde, Eraldo teve seu cochilo interrompido por batidas vigorosas na
porta do barraco. Abriu o cadeado, puxou a corrente e deu de cara com Boi.
Acompanhado por dois sujeitos que não conhecia. Ambos armados com porretes.
“Você vai embora daqui na boa ou na porrada?”, Boi perguntou.
Eraldo avaliou o tamanho do porrete que os homens seguravam e coçou a cabeça.
E aparentava calma ao dirigir-se aos dois:
“Como é que ele tá pagando vocês?”
Um deles, um mulato forte, adiantou-se e olhou para Boi:
“Ele ficou de dar um revólver para gente.”
Eraldo sorriu:
“Eu tenho uma proposta melhor.”
Eraldo agachou-se e entrou no barraco. Bem nesse momento, Boi teve um acesso
de tosse e demorou para entender o que acontecia. Eraldo voltou segurando uma caixa
de sapatos, na qual guardava seus objetos de valor. E seu dinheiro.
“Olha aqui, eu cubro a oferta dele.”
Boi viu o maço de notas mudar de mãos — e se lembrou que a região também era
muito boa para esmolar. Eraldo o olhava, sério.
“O dinheiro é de vocês. Agora quero que vocês levem o Boi pra bem longe daqui
e batam nele sem dó. Estou pagando pela surra. Que é pra ele aprender.”
Eraldo se manteve à porta do barraco, observando o trio descer para a rua. Boi ia
entre os dois, o saco nas costas. Parecia conformado. Teve uma hora em que olhou para
trás. Então Eraldo entrou.
Os homens escoltaram Boi por um longo trecho. Ele chegou a considerar a
possibilidade de sair correndo, cruzar a avenida e buscar socorro num posto de gasolina,
do outro lado. Desistiu porque sabia que não teria fôlego para escapar — os dois o
escoltavam rindo, mas estavam atentos — e também porque, na certa, acabaria
atropelado. O tráfego era intenso àquela hora.
Quando passaram em frente a um tapume, um deles o deteve, segurando-o pelo
braço, enquanto o outro removia uma das tábuas, abrindo passagem. Empurrado para
dentro, Boi deparou-se com um terreno baldio, onde o mato crescia misturado ao
entulho de uma casa demolida. Estava começando a escurecer.
Boi depositou o saco no chão e se virou para os dois. Eles se entreolharam, como
se estivessem decidindo quem ia começar.
“Não me machuquem, pelo amor de Deus”, Boi disse, e sua voz soou irregular,
modulada pelo medo. “Podem ficar com o revólver.”
O mulato riu: “Ah, qualé, Boi? A gente vai ficar com ele de qualquer jeito. E com
tudo que você guarda dentro desse saco. Tem alguma coisa que preste aí?”
Os dois estavam achando aquilo muito divertido. E se entreolharam mais uma vez.
O que foi um erro.
Num movimento rápido, Boi pegou o revólver e, segurando-o com as duas mãos,
apontou na direção da dupla. Porém nenhum deles pareceu intimidado.
“Ih, olha só isso. O Boi ficou valente”, disse o mulato.
“Larga de besteira, Boi”, o outro disse.
Boi tremia. Nunca tinha apontado uma arma para ninguém. Nunca tinha atirado na
vida. Quando falou, sua voz parecia mais firme — estava só um pouco fanhosa por
causa da gripe.

“Se precisar, vou atirar.”


O mulato deu um passo à frente.
“Você não tem coragem, Boi. E eu aposto que esse revólver não tem bala.”
O outro homem ergueu o porrete e se moveu lateralmente. A tática era atrair a
atenção de Boi, para que o mulato pudesse atacar. Boi recuou e quase perdeu o
equilíbrio ao pisar numa pedra. Os dois homens aproveitaram para avançar ao mesmo
tempo.
Boi puxou o gatilho. Esperava uma explosão, mas tudo que a arma produziu foi
um clique seco. Os homens tinham parado de rir. O mulato partiu para cima dele.
“Vou te mostrar o que acontece com quem aponta um revólver pra mim.”
Boi apertou outra vez o gatilho. Novo clique seco. Sua terceira tentativa resultou
num ruído estranho, bem diferente do que ele imaginava que seria o som de um disparo.
Ele só percebeu que havia atirado porque o mulato caiu para trás, largando o porrete e
colocando as duas mãos na coxa.
“Filho da puta”, o mulato gritou.
O outro homem jogou seu porrete para o alto e correu para a passagem no tapume.
Boi tremia de forma incontrolável, mas continuava apontando o revólver para o mulato.
“E agora? Você ainda acha que não tenho coragem?”
Boi aproximou-se um pouco mais. Estava rindo. De nervoso.
“Me dá o dinheiro do Eraldo.”
Movendo-se com dificuldade, o mulato tirou o dinheiro do bolso da camisa e
jogou as notas no capim à sua frente. Boi abaixou-se e recolheu o dinheiro. Só quando
levantou percebeu que havia urinado na calça.
“Eu vou te matar”, o mulato disse, o rosto contorcido pela dor.
Boi recuperou seu saco de estopa e deu uma última olhada no homem sentado no
chão. Disse:
“Se você vier atrás de mim, eu te encho de chumbo”.
Depois se afastou em direção ao tapume.
Boi saiu à rua. Nuvens escuras antecipavam a noite e caía uma chuva fria, que o
deixou encharcado na metade da terceira quadra que percorreu. Seu nariz escorria. Um
carro passou sobre uma poça, espirrando água nas pernas de Boi. Foi nesse momento
que ele decidiu: ia matar Eraldo.
Ele chegou ao viaduto e galgou a encosta com muita dificuldade. Várias vezes
escorregou no barro e andou de quatro em diversos trechos, o que não o impedia de
deslizar. Em nenhum momento, porém, sua mão direita soltou o revólver.
A porta do barraco estava fechada, Eraldo dormia.
O barulho dos carros que cruzavam o viaduto era contínuo. Boi calculou que teria
insônia nas primeiras noites que passasse ali. Depois acabaria se acostumando. Era
assim que acontecia com tudo na vida.
Ele bateu na porta. Esperou um pouco. Bateu de novo. E Eraldo só abriu porque a
última pessoa no mundo que pensava ver era justamente aquele homem corpulento, que
lhe apontava um revólver.
“Fora”, Boi disse.
Atordoado pelo sono, ou pela surpresa, ou pelas duas coisas, Eraldo obedeceu.
Segurava uma lanterna.
“O que é isso, Boi? Você tá louco?”
Boi girou o corpo, olhou pela porta. “Vou ficar com a casa”, disse.
Eraldo estava descalço, sentia frio nos pés.
“Espera aí, Boi, vamos conversar.”
“Me passa a lanterna.”
Eraldo se perguntava o que teria acontecido com os dois homens que haviam
levado Boi dali. Considerou a hipótese de que ele os tivesse matado. Nesse caso, o
revólver não teria mais balas.
“O que você vai fazer? Atirar em mim?”
Um carro buzinou sobre o viaduto, um segundo antes de ouvir-se o ruído seco de
uma freada. Alguém berrou um palavrão. Boi gritou:
“Me dá logo essa merda”.
Eraldo estendeu o braço com a lanterna. Quando Boi curvou-se para alcançá-la,
Eraldo girou o braço e golpeou. Mas, num movimento ágil, a despeito de seu tamanho,
Boi esquivou.
Eraldo é que perdeu o equilíbrio com o golpe em falso. E, depois de escorregar,
rolou pela encosta. Até parar de repente. Com a cabeça numa pedra.
Boi desceu até ele e tentou despertá-lo com tapas na cara. Até que se cansou e
aceitou o fato: Eraldo estava morto. Boi olhou para os lados, controlando os nervos.
Se entrasse em desespero, sabia que estragaria tudo. Precisava pensar, decidir o
que iria fazer.
Depois de se deitar no cômodo que funcionava como quarto no barraco, Boi não
demorou mais do que alguns minutos para adormecer. Estava debilitado pela gripe.
E exausto pelo esforço que havia feito ao arrastar o corpo de Eraldo para dentro.
O barulho incessante do tráfego sobre o viaduto não chegou a incomodá-lo. Nem
a presença de Eraldo, estirado no outro cômodo, ao lado do fogareiro. Boi sentia-se
muito satisfeito por estar ali. Mais que satisfeito, realizado. E deixou para pensar no dia
seguinte o que faria com o cadáver.
Nessa noite, Boi sonhou com a mãe. Ou com uma mulher que, no sonho, dizia ser
sua mãe. Boi não chegou a conhecê-la. Não sabia como era seu rosto. A mulher tinha
cabelos loiros e era muito bonita.
Boi ficou sem saber como terminava o sonho. Foi acordado pelas batidas na porta
do barraco. Já era dia claro. Ouviu vozes, espiou por uma fresta: homens de uniformes.
“Polícia?”, gemeu.
As batidas se repetiram. Uma voz ordenou que saísse. Ele obedeceu. Estava
habituado a obedecer ordens. De qualquer um.
Saiu do barraco, protegendo os olhos da claridade com o antebraço. E, mesmo
sabendo que era inútil, puxou a porta atrás de si, ocultando o corpo de Eraldo. Fora,
notou que os homens usavam capacete. Amarelo. A mesma cor do macacão que
vestiam.
“Você vai ter que se mandar daqui”, disse um. “Vamos fazer obras no viaduto.”
Boi percebeu que outros homens, também de macacão, iniciavam a instalação de
um andaime na encosta.
Obras de reforço na estrutura”, o sujeito explicou. “Vai ficar interditado por uns
três meses.”
“E a minha casa?”, Boi conseguiu balbuciar.
Os homens riram.
“Vai tudo para o chão daqui a pouco”, disse aquele que parecia comandar o grupo.
“Você tem cinco minutos para tirar suas coisas daí.”
Boi olhou para o barraco. O mais bem instalado das redondezas. Sem dizer nada,
voltou para o seu interior.
O trânsito no local já tinha sido bloqueado às seis da manhã daquele dia, o viaduto
estava silencioso. Por isso os homens de macacão ouviram o tiro.
Quando entraram no barraco, demoraram para entender o que viram. E por alguns
instantes pensaram que o cadáver ao lado do fogareiro era do homem que conversara
com eles. Só depois é que encontraram Boi caído no outro cômodo.
Boi havia se enganado num ponto: Eraldo não estava morto. Os homens
perceberam isso ao removê-lo para fora do barraco. E então foi levado para o hospital,
onde os médicos constataram que sobreviveria. Mas ficaria preso a uma cadeira de
rodas pelo resto da vida.
De certa maneira, Boi também sobreviveu.
Eraldo vive hoje num asilo. Divide um quarto com mais três velhos e dorme numa
cama com lençóis sempre cheirosos — são trocados toda segunda-feira.
Ele não consegue falar, sequela da pancada na cabeça. Só baba e repete uma única
palavra. O tempo inteiro.
No começo, seus companheiros de asilo riam. Depois acharam que ele estava
tentando informar seu apelido. Então passaram a chamá-lo de Boi. [2000]

In: Aquino, Marçal. Famílias terrivelmente felizes. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

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