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EngenhosB.

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os engenhos
necessários

é uma edição &etc


produzida por Edições Culturais do Subterrâneo, Lda.
Rua da Emenda, 30, sub. 3 – 1200‑170 Lisboa;
os engenhos necessá rios tel. 21 347 19 55
de Miguel Cardoso
Capa:
© do Autor Pedro Serpa

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Miguel Cardoso

2013
h

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Prefácio

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Um dia mais tarde
prometo
troco isto por poemas

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(três a doze linhas
as últimas duas tipo
toma e embrulha
ou toma lá que já almoçaste
a chamada anagnórise)

e haverá um estudioso que dirá

«Não está nada mal visto


Deixou só o nervo
É um talhante ao contrário»

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Mas está-se mesmo a ver
que recebo um telefonema
de um amigo que me diz:

«Epá! Cortaste-lhe o fogo»

Ao que eu responderei:

«Diz que não dá»

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Mas um gajo tenta

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Agora não
Não vês que estamos a meio de uma coisa

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ainda não se
respira como
devia ser

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e assim a seu tempo

canta e ri e não negues nada


dizia o walt
enamorado de tantas aspirações

e assim ao que parece

nem falha nem vácuo


nem abrigo nem toca

nem ponto
em reino de rápidas vírgulas

ou nem isso

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ó tapeçaria ó
tecer do que é tecido

canta o segador contente


lá onde sega o segador

e passam-se outras coisas

procurava eu a via vácua de deixar a vida

e nisto
vi pela primeira vez
um rasgão na renda do júbilo

vi que não há tempo que não esteja vivo

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e eu que procurava
uma colheita perdida

um ponto morto
em mar de ímans

que queria ser o tal


aspirador que não aspira

e não há tempo
em que não esteja vivo

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e por picotados
de luz e no meio de detritos
espalham-se as coisas

aspiram longamente a nossa vida

para dentro do dia

este dia

vestido que não me serve

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Assim pelo menos reza a história
da nossa indústria têxtil

que tanto nos entristece os alvéolos

então
no tempo sempre vivo
eu queria extinguir-me um bom bocado

eu queria e depois

era uma vez


e depois
logo se via

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assim reza a história

ponto

e aqui chegados a custo a tristonha história do têxtil cruza-se


como as histórias geralmente se cruzam com outras: a dos sons,
a dos electrodomésticos, a da travessia de fronteiras a desoras,
a da travessia das horas, a dos descampados, a dos outros sítios,
a da luminosidade, a dos cosmos, a das zonas erógenas,
a do desperdício, a da oxidação,

a minha:

estas melodias são trazidas aqui


por aspirarmos às migrações sucessivas;
não somos sedentárias, nem caminhantes
mas eu aspiro a atravessar as trevas

diz a maria gabriela llansol

diz aspiro a atravessar as trevas diz


a vizinha dona de casa que aspira

a atravessar as trevas

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Não digo as mulheres aspiram
a casa para dentro dos pulmões

porque o que são as mulheres não sei

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o que é uma vizinha não sei

mas o que são as trevas sei bem


e há nelas contudo janelas
onde há vizinhas

Há a minha vizinha

nem sedentária nem caminhante vai


assobiando nas divisões onde se acorda
fingindo não reparar nos progressos da ferrugem

É ler os clássicos: Aspiração


e três pontos

sem nó e lá arrancam
as odes modernas a luz
que ora é luz ora se empana
ora abranda ora estoira

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e entretanto vamos

por outro lado

em vias de desenvolvimento de melodias


para reprodução da força de trabalho
em lados-B ao vivo e mais dançantes

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Os humanos são dizem os livros criaturas
encimadas por cabeças ladeadas por ombros
atravessadas por tubos em voltas imesuráveis
em redor de bolsas de vácuo elas próprias
sem medida e são
criaturas que aspiram
como acrobatas que não sabem ainda
dos seus próprios músculos
as curvas do arame
a folhagem do ar

Vão dando aquela volta de pulsos na corda


para se amarrarem aos engenhos do vento

A mão é um laboratório
de elétricos que vão
para a graça e vêm

O aspirante pretende e o pretendente aspira


e disso parece reza alguma poesia:

ou dir-se-á a isso
reza alguma poesia

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Diz-se que aspira a música

Diz-se que vê o que virá ou não virá


a ser só que nitidamente pouco

nitidamente pouco nitidamente


e demasiado aos poucos

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Como não aspirar a um ponto do espírito

perguntavas tu

olha é
e isto decorre quase
como silogismo
para quem tenha estado atento
é dar um jeito no pulso

e dar por perdidas as meticulosas mãos

A partir daí o truque é o mais velho de todos

o olhar fixo de western spaghetti


e a gestão ruinosa do grão da voz

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Bem sabes como Orfeu torceu o pescoço

Acontece o futuro vir atrás dos ombros


puxado por fios e moinhos de plástico

e disso precisamente trata a música

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Mas hoje tratas tu disso, que eu vou estender a roupa

Eis um verso que aspira a prosa

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Dito isto

a poesia aspira
a arte aspira
a juventude aspira
o homem aspira
e a mulher aspira

e as coisas aspiram-se

As ventosas e as seringas
aspiram gases fluidos estranhos corpos

Aspiram-se abundantemente as mão da amada


com bombas de vácuo em forma de linhas na página
e válvula misturadora para prevenir o escaldão

Aspira-se, ao que parece, ao infinito


e a viver nos trópicos

Aspirar abre muitas portas

Os miúdos têm aspirações lindas, olha

É uma barulheira

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Olha não aspires agora
que eu quero ver
por uma vez o telejornal

onde só para chatear


ouço um político dizer
que não aspira a ser amado

Lá vou eu buscar a aspirina

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Desliga isso e mete uma música qualquer

Que a música é portadora

Não sabendo o que transporta


não sabemos o que nos move

A música importa
-exporta
e fode-nos os arames farpados
que colocamos à noite
nas fronteiras desertas da pele

Aí algures engendra-se a espécie


entre o pó e a música
que assa o interior das coxas
Fá-las cruas
Aí se faz o tráfico de vozes agudas

Já convocar não é matéria de contrabando


É preciso a voz mais grave

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Não sei mas sei que qualquer coisa se avizinha

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Olha:
, uma malha na meia,

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e com que fim,
aqui, meio
partidos

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e nisto mete-se o progresso
o progresso vai isto vai o progresso vai

(esta parte é para cantarolar:


o progresso também sai à noite
e mete música para se distrair)

isto vai

tecendo por vias


de envolvimento as vidas
mete-se pelas casas
vai-se metendo pelos pulmões
vai-se metendo pelas bocas
vai-se metendo pelas coxas distraídas
vai-se metendo pelas vizinhas

fora das horas de expediente

Mete-se comigo estou eu já junto à saída


e já com falta de ar vou
às arrecuas
admirando o tecto onde gira o ar em jaula
e a fingir citar karl marx
a propósito da indústria têxtil

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de como o vapor entrou pelos teares adentro
e os teares foram pela Inglaterra afora

de como navegou pelo rio Lualaba abaixo


mandando notícias de gente nua

para lá das cataratas


pobres almas

de como era uma vez


um dado quantum de fio
e depois era tecido
mais tarde seria tecido
vendido ao metro em hora de ponta

e de como o fio do vapor entrou pela casa


e passou pela fábrica e por aí fora
até aos nervos

e civilizou-nos

aos que vivíamos turbulentos junto ao rio


de que agitávamos as águas

civilizou-nos até ao osso

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Tomemos por exemplo
dois côvados de tecido de linho
e este meu casaco
e reparemos que há coisas que sobem
e coisas que descem ao longo de milénios

Isto é geometria não descritiva

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Também os poemas são sempre sobre coisas que sobem e descem

isto é

coisas que sobem


coisas que descem

A poesia é arte de amonas

O ofício de custar a respirar

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O ar nas suas vaporosas aventuras

e eu nisto

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e eu estudo
astros
desmoronados

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eu de manhã todo partido e parto

erguendo a mão para saber do tempo

estão graus lá fora


está ameno aos solavancos

A inclinação certa para desastres

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mas por mais
que parta
o verso
assim
na paisagem
quebrada
na linha
densa como
fazias
não chego
à pedra
aos depósitos
ao fósforo
ao musgo
no fundo
aos materiais
do início
ou à lucidez
ao fim
de alguma coisa
chego isso sim
de novo
ao árduo

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embaraço
do meio
da minha vida

a estas metamorfoses
que não têm assim tanto que se diga

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olha
a vértebra que vai
a vértebra que vem
assim se cumpre mais um início de dia

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mas dizia eu
com o hálito mais longo
e uma cabeleira em chamas
mas postiça
e a meu lado adivinhos e deuses de voos
rasos
e barba rala

está a inclinação certa para desastres

que vêm de meteoros

que aterram de lado


nas nossas máquinas de lavar
entreabertas

Não meter o garfo


Não virar as costas
Ir buscar o euforímetro

Falar manso a sua língua bárbara


tendo o cuidado de esconder os caninos

É enquanto caem
que devemos estender

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a roupa deixar ao vento os olhos
a estilhaçar aos poucos
deixar sacos com pregos
presos com três ou quatro molas,
nunca jogando pelo seguro
Ao contrário da sabedoria popular
olhos pregos roupa
secam muito bem à chuva
de meteoros em sítios despovoados

De resto são astros inúteis, bem entendido

Procura uma toca


A meteorologia é ainda assim perigosa
nos vales onde nos instalámos

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enquanto isso o poeta
devidamente menor
perfeitamente pobre
relativamente farto

mas que não chega a maldito


(ponto de caramelo)

ganha ferrugem
e só tem fotos desfocadas

com chapéu de cowboy tombado


a dançar encostado à coluna no canto da sala
de braços a dar a dar e com a ponta solta em bruto
como um lenço inútil em torno do pescoço gasto

Este é o seu quintal


estende a roupa nas cordas
de uma música à outra

É mal empregado
Expirou É um respirador

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Vai pelos meandros
Não lê entranhas
Espera pela aspiração

Espera uma linha de crédito


até ao fim do verso
uma linha de vida até chegar à curva
onde guina para a berma
para receber do seguro

Espera também claro a noite impraticável


(alheias são todas elas, luiza)

e respira

para atravessar as trevas


para adiar o pagamento das letras em sentido

É livre às vezes
É um respirador

Respira não tão completamente


Respira como os outros: mal

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É livre às vezes

precisamente

entre inspirar e expirar

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com um
ligeiro clic
de chaufagem
aberta

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Que fique claro: o poeta
é uma maneira de dizer: toda a gente

e como toda a gente meteu-te


no negócio dos óleos aditivos
para melhor performance dos motores líricos
e da crença em coisas vivas-rotativas

Ou então mete-te por equívocos


no ofício dos fios
onde já andava metido

Abre oficinas de fabrico de massa


para calafetar e de éter
por causa dos ventos e crateras
na via do poema
que é dizem a via
de outra vida verdadeira

Não é

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O que queria
o que queria mesmo
era meter agulhas na boca
riscar o disco rígido do riso
e com calma
rebentar escalas de richter
no meio das planícies

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Dizem: o progresso
não se mede assim a quente!
Mede-se aos mil anos, com pinças
ou no fim do mês ou no fim do dia
quando se fecha a caixa

Mas as contas não batem certas


O progresso mede-se afinal em ferrugem

É outra vez o problema das casas


o problema de as ter pela frente e pelas costas
a ganhar pó e crer
(credo!) no crédito
ter o credo na boca a puxar pela aspiração
que puxa a vida até ao fim de um verso

(Agora respira
O truque é fazê-lo só de vez em quando)

Isto é, o problema da habituação


da boca a isto e da mão e da retina a isto
quando o ar está assim aos bocados

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Mas luminífero

O ar é uma fera de luz


e o éter propaga os arrepios das coisas
vivas-elásticas

Viva

Enche a boca e puxa a língua


de um lado a outro
de um lado ao outro das câmaras
que construiu para reparar nos progressos da ferrugem

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tal como Paul Klee recordava
como a avó esmagava
as maçãs lembrando
a cadência do hálito
ou Thoreau percorrendo os campos
da Nova Inglaterra e anotando os fenómenos
na ordem em que pela
primeira vez são observados,
escrevendo por exemplo os dias
exactos da floração
como lâminas em sequência magnética

Poderia tentar algo assim


com os castanhos em flor da ferrugem
mas perderia a conta ouviria vozes
e mastigaria por certo demais
as maçãs lembradas
até chegar a ponto de papa

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Estamos confiantes

A densidade do ar
a incerteza do solo
não dá para saltos altos
qualitativos

nem se avizinham vizinhas rotativas


a gingar ao som de discos
levando a vida para fora
do eixo do hábito da rotação

Estamos confiantes no aparato da queda

Vai havendo força de trabalho em roda


mesmo que a música não dê para dançar

Vai-se tendo dentes


mais ajustados a esta altitude
a este bairro
a ter supermercados por perto
onde há os mais variados líquidos para gargarejar

Parece que molas às cores não faltam

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Vai-se respirando melhor em estados de emergência
entretendo o escasso na boca com som de escarro

e entre tudo e apesar de tudo


há o éter
o éter e etcetera
o éter etecetera

diz a vizinha a atravessar as trevas

O horror guarda-se em vácuo


e depois congela-se
(mas tem que ser logo)

O horror mete-se a frio

diz a vizinha a atravessar as trevas

com cometas a passar ao fundo


entre as malhas da roupa estendida
e no rodapé rubro dos telejornais

Os poetas tentam escrever poemas


à pressa no meio da afasia
sobre a chuva
e entornam o café

e entretanto o pó mexe-se de um lado para o outro das salas

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Fazem-se progressos

Distribuíram-se vizinhas
pelas várias vizinhanças
em série

acelerou-se como disse


a produção de molas
para que não falte
como em tempo de guerra

É tempo de guerra

Haverá racionamento
mas não nos óculos escuros

À barbárie seguem-se os estendais

Os lençóis e os pedaços de anjos secarão de resto ao sol

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o dia começa
pela sombra

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Virá o dia em que emperrará
a assídua manivela das horas

Entretanto o ar engendra
o tempo e lenta a ferrugem

e a verdadeira vida
range e engasga-se

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Olho por longo tempo

Confirma-se: os atalhos estão impraticáveis

(aceno a cézanne e cesariny


salut jean-arthur como está aí o tempo
em terra nullius)

O dia a puxar por perras correntes de ar

Lá arranca sem mistério


o primeiro minuto matinal

hora entreaberta

e eu perro das mãos


à boca e ao relento

Estamos muito à frente em termos de vento

Não há vento que nos não venha

Não chegaremos a Ítaca


mas chegaremos despenteados

a qualquer lado

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E lá arranca sem mistério o segundo minuto matinal

Nem me acode o ranger habitual


de pescoço em baço acorde
nem uma rima imperfeita
para me acostumar ao fosco

O ar está em lantejoulas, o que não ajuda


Era suposto ondular

Porra
Para alguma coisa me fiz míope:

dizem que ajuda a atravessar as trevas

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Devia ouvir-se o clic
repetido a dar corda ao relógio
impreciso dos pulmões

Terei de saber o que fiz ao pão


de ontem se há leite
ou um substituto adequado,
se há futuro nisto
de empurrar para um lado
da boca a saliva hora a hora
e pôr a língua bem de fora

Convém lembrar-me do que se diz das fraquezas


do humano da sua graça do jeito
que tem para estar sentado

Relembrar o espectro de malefícios


da luz para escolher por uma vez
o lado menos doloroso
da cozinha reencenar pois a eucaristia
indo de roda a espremer o sumo ao ar
que posso

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Que o primeiro passo é que custa

O ruído do cuspo está esquisito


dando sinais de avaria

Isto de respirar porra

Não se arranja para aí um frasco de éter que funcione?

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e a palidez das
manhãs em que
se parte

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Então

é isso: de pouca vida em pouca vida


uns frascos uns relógios que brilham
e uns tubérculos secos

É isso: de pouca vida em pouca vida


uns frascos uns relógios que já não brilham
e uns tubérculos secos

e farto de saber sacudir flores estou eu

Não sei é para que servem estes botões que piscam

Sei outras coisas porque li eliot


e uns franceses que ele lia
Sei que o tempo vai estar frouxo
com possibilidade de trevas

Sei marcar o compasso porque comprei um agrafador

O que estiver mais à mão da nua tarde

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Vi funcionários a fazê-lo e enlouquecem

como os restantes nos intervalos das horas


para expediente basta
um gramofone ao fundo
espalhar uns papéis de embrulho
como cacos de outra vida com mais fome

Não há como

os clássicos modernos
esses armazéns de espécies
botânicas apropriadas ao turismo de ecos
e guinchos com secura de pontas
de cigarros e pobres fins de mundos e nisto
vem claro sem surpresa o verão
de novo abaixo É dos nervos
que ficaram invernais e pouco
adianta ir para sul ir tomar o café lá fora
atiçar Oh Oh Oh

o açúcar os mortos outras especiarias granuladas


ou despirmo-nos muito milimetricamente
debaixo dos círculos de gritos das gaivotas

Está é preciso dizê-lo devidamente inverno


para coisas destas

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E livrar-mo-nos das pálpebras
junto ao rio escuro e dizer Está na hora
sai-me mas é da frente e entretanto pinga
qualquer coisa repetidamente deve ser do tempo

e dizer sou tirésias sai da frente


vou para ali deitar-me no divã pôr um disco
com som de chuva
enquanto espero pelos anúncios

Não se chega de repente ao futuro


e raramente vem ao fim de semana

Vá Anunciem anúncios
Desejos tenho eu

Será uma especiaria o açúcar


pois olha como se espalha pelo chão

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Vêem-se as riscas dos pijamas
por dentro da pele onde chovem
os dias muito muito miudinhos

Conta-me a história conta-me


nas gotas nas gotas ou entre as gotas

Conta-me como acaba


aquele anúncio a baudelaires
cheios de acessórios inúteis

Povoar o interior
Povoar o interior

Como é que se diz


Como é que se diz

Isso é na teoria

Para chocalhar as flores


como deve ser é melhor
começar pelas raízes

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Estão desalmados os meus interiores
como convém

Para isto não há engenhocas que me valham


Valha-me ao menos isso

Inverno, Verão

Espreito as meninas a segurar perfumes


os meninos de jaqueta ao relento em jipes

Inverno, Verão

Já não sei ver

Parece-me que estes motores


me extraíram o forro ao corpo

E cá vou eu por vias de extinção

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E assim sendo migrar para onde?

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e diz que se
gasta, diz

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É que dizem que somos mortais
É tarde

voltaste a pôr os grampos nas ligaduras

e foste ao longo passado de dia em dia


(Pensavas atravessar o inferno em correria?)

Vai de costas à frente


côncavas à vista
Vai fazendo o qualquer ruído possível
de poço vazio em fraco
dia de vento

Acelera nas curvas que dá auroras


e boas cores à bochecha

Aproveita as descidas para contrabando de rimbauds

É que assim ouvem-te a vir de muito longe:

Je suis faible! (senha para sair)

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Je m’évade! (senha para entrar)

Podes pedir já de ida e volta


pois regressarás ao menos em instantâneo
à felicidade até
que se acabem as pilhas à flauta

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Depois virá a manhã seguinte
a fosforescência do costume
e o desmaio dos costumes
será mais apropriado e triste
no que terás muito boa companhia

à saída das matinées


onde há ensaios súbitos de coros com licença para planar

e há meses que treinamos a sério o inútil


assobio longilíneo
que vem depois dos dias

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e no tempo
repetido
acharei uma
saída

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Depois vieram as manhãs bárbaras

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as terríveis

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manhãs que se seguem

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As manhãs líricas

As tecnologias imperfeitas para descer


ao solo desmontar as cercas e ranger
nos campos rir
nos contra-campos
entre multidões bruscas sem música
de fundo de dança em câmara escura
num domingo de dois mil e tal algo
ventoso e levantar nas horas
sucessivas com as peúgas do costume
os tornozelos remendados à pressa
e que remédio o ridículo de andar
por aí de língua a sacudir-se
como campainha em surdina

Diria pelo menos


que sobrevivemos

Este zumbido
É isso
É de passar de um dia a outro
e entrar de esguelha na manhã
lírica a manhã lírica

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Isto é, a manhã possível

a manhã rasa
a manhã da mesma merda

mais a queda de bruços


e o vento bruto
a arrancar coisas
pela raiz do verso

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e os Ventos, como
as águas, tudo
alagam

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dizia eu que sobrevivemos

outros partiram dispersaram alargaram


o perímetro de busca de vidas toscas
largaram ossos de partes inúteis da nuca
pedaços de papel de prata propósitos enérgicos
borda fora deixando para trás deuses
a ronronar nas traseiras de pisos térreos na periferia

e aí entretanto juntou-se às dezenas gente vagamente


gente que montou baloiços ao lado de baloiços baloiçou
ao longo do dia
para ir deixando crescer os dentes longe
da eficácia dos caninos no pão duro

Metia-se a química a fundo na mudança da saliva


Havia a chatice da erosão dos lados da língua

Havia ervas amargas e varejámos


altas árvores nuas porque eram odoríferas

Os que se lembram ainda do caminho de volta


voltam aos poucos para o meio da ferocidade
deitando fogo aos meses de seguida

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Indo e vindo no baloiço de dentes
amassam o estrume de vento com a face de frente

Com as mãos aperfeiçoam os murmúrios


da voz em poças de água de chuva

Regressam a estranhos apetites


A fome faz cócegas como entranhas de fora

Nós sobrevivemos à conta de quintais com estátuas


a colocar tabuletas de VENDE-SE sobre os olhos
dos deuses a imitar santa teresa com náuseas
ao pequeno almoço a fazer versões provisórias
de orçamentos para a canalização do primeiro amor

A renda não era cara e entretinham-nos


as pedras as suas sombras a fadiga a sua insensatez
os escaravelhos que nos lembram uma infância
a apanhar com a garganta o frio como deve ser

Soprámos sem saber bem porquê nas feridas

O que já dá um filme daqueles em que chove


e fuma-se muito e nunca mais amanhece

Talvez seja de duvidar que tenham língua


os que voltam ou dentes para o resto
da vida Vê-se nos olhos vê-se nas gengivas

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pela forma como trincam formidavelmente
a água que em novembro cai
e se deposita em pedaços
nas ervas que crescem entre os dedos

Não temos os engenhos necessários


para assobiar e para mais não amanhece

o que dava um filme daqueles em que não se morre

Dá jeito afinal a erosão da língua para nos rirmos


do borbulhar da boca a par das preces matinais

Os restantes juntam-se aos poucos


nos lavatórios de longas casas de banho
urrando porque o enredo não avança

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O resto da vida é a subir

Que isto sirva de enredo

Deixou de ter graça andar devagar


ou ter terríveis madrugadas duvidosas

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Faz de conta que chegámos à manhã seguinte

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os en g enhos necess á rios
foi composto e paginado por Pedro Serpa
cabendo a montagem, impressão e acabamentos
à Editorial Minerva;
Rua da Alegria, 30 — 1250-007 Lisboa

Janeiro de 2014

depósio legal n.º 370389/14


isbn 978 -989 - 8150 -_ _ _ _ _ _

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