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Curriculo sem fronteiras= ABNT= A1

PESQUISA EM TEMPOS PANDÊMICOS: aprimoramentos metodológicos na


educação alimentar e nutricional (crítica).

RESUMO
Objetivo: mostrar as estratégias metodológicas e alguns resultados do trabalho de educação alimentar
e nutricional crítica realizado em ambiente virtual com mulheres adultas maduras e idosas.
Metodologia: trabalho de educação alimentar e nutricional online, com sete mulheres com encontros
mensais síncronos ao longo de seis meses. O trabalho utilizou preceitos da nutrição clínica para
trabalhar a terapia nutricional utilizando o diálogo, proposição de metas e aconselhamento nutricional
e a problematização de assuntos da alimentação, exames laborais e rótulos dos alimentos. Utilizou-se
a construção de desenhos para a explicação da fisiopatologia das doenças e em alguns casos o envio
de imagens da internet. As mulheres foram convidadas a fazerem seus próprios planos alimentares,
que foram problematizados. Resultados: O trabalho educativo crítico em ambiente virtual mostrou
que é possível produzir conhecimentos, reflexões e mudanças de comportamentos alimentares ao
longo de seis meses. De modo geral, a modalidade online foi avaliada como positiva. O principal
ponto negativo foi a falta de contato humano. Conclusão: As adaptações metodológicas para o
trabalho mostraram que é possível realizar ações educativas críticas em ambiente virtual. O trabalho
possibilitou atendimento e cuidado nutricional individual a mulheres, de forma segura e que não
seriam atendidas de outra maneira durante o período de isolamento social.

Palavras-Chave: Educação Alimentar e Nutricional; Pedagogia Crítica; Educação on-line;


Metodologia; Pandemia.

ABSTRACT
Objective: to show the methodological strategies and some results of the critical food and nutrition
education work carried out in a virtual environment with mature and elderly women. Methodology:
online food and nutrition education work, with seven women with synchronous monthly meetings
over six months. The work used precepts of clinical nutrition to work on nutritional therapy using
dialogue, proposition of goals and nutritional advice and the problematization of food issues, labor
exams and food labels. The construction of drawings was used to explain the pathophysiology of the
diseases and, in some cases, images were sent from the Internet. The women were invited to make
their own food plans, which were problematized. Results: The critical educational work in a virtual
environment showed that it is possible to produce knowledge, reflections and changes in eating
behavior over six months. In general, the online modality was evaluated as positive. The main
negative point was the lack of human contact. Conclusion: The methodological adaptations for the
work showed that it is possible to carry out critical educational actions in a virtual environment. The
work enabled individual nutritional care and care for women, in a safe way and who would not
otherwise be attended to during the period of social isolation.

Keywords: Food and Nutrition Education; Critical Pedagogy; Online education; Methodology;
Pandemic.
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Introdução

O período entre 2019 a 2021 e parte de 2022 foi atravessado por um cenário
emergente e caótico na saúde pública do Brasil e do mundo. O surgimento de um novo vírus
altamente contagioso e letal chamado vírus da SARS-Covid-19 foi o responsável, só no
Brasil, por mais de 690 mil mortes (698.834 mortes até 24 de fevereiro de 20231) que
geraram cenas de guerra em hospitais e cemitérios, principalmente no primeiro ano da
pandemia.
A alta disseminação do vírus e a falta de vacinas levou à necessidade de medidas
extremas, entre as quais, o chamado “Lockdown”. A necessidade de isolamento para o
controle da disseminação da doença inviabilizou ou alterou muitos projetos de vida, viagens,
trabalho e também as pesquisas científicas, que em alguns casos foram inviabilizadas ou
tiveram que ser adaptadas.
Durante o período pandêmico, o uso da tecnologia passou a ser uma ferramenta
indispensável na vida das pessoas. O uso e acesso à internet possibilitou a continuidade do
ensino nas suas diversas modalidades (ensino fundamental, básico, técnico, superior e pós-
graduação), além de consultorias, reuniões, trabalho em home-office, atividades de assistência
à saúde com instruções on-line, como pilates, atividade física, ioga, além de consultas
médicas (telemedicina) e atendimento nutricional, que por sua vez, não eram práticas
comuns.
O isolamento social impossibilitou a realização de ações educativas em saúde em
formato presencial, como as ações de educação alimentar e nutricional (EAN) que também
precisaram ser metodologicamente adaptadas. A busca por metodologias mais humanizadoras
em EAN (individual ou coletiva) passou a ser um desafio ainda maior pois, apesar dos
avanços deste campo (Ottoni et al., 2022; Conte, Doll, 2021), a maioria das ações em nutrição
seguem enraizadas aos métodos tradicionais e prescritivos (Conte, Doll, 2021), oriundo da
formação técnica ou tradicional em que os profissionais da saúde são formados (Ottoni et al.,
2022; Boog, 2011; Costa, 2009).
O conceito de métodos tradicionais em EAN, refere-se aos formatos tradicionais de
ensino realizados ao longo da criação do curso de nutrição, embasando-se fortemente no
ensino de conteúdos clínicos e biológicos, que são fragmentados e transmitidos por meio de
aulas expositivas (Conte, Doll, 2021). De acordo com Costa (2009) a área na nutrição baseia-
se em aprendizagens fragmentadas e centradas no desempenho técnico (e quantitativo) dos
estudantes. Logo, a deficiente formação pedagógica dos professores universitários, voltada
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principalmente à investigação e ciência, contribuem para o insatisfatório domínio da


educação (Costa, 2009).
De modo geral, pode-se afirmar que a EAN se realiza principalmente através de
ensino2 propriamente dito, do que de ações educativas. Nesse sentido, o estudo das ciências
humanas e sociais passa a ser um diferencial, e ao mesmo tempo essencial para garantir a
abordagem humanista da nutrição (Ottoni et al., 2022).
A EAN, ao longo de sua história passou por diversas fases (Boog, 2013). Sob um
ponto de vista geral, pode-se dizer que a EAN apresenta três principais bases metodológicas
ao longo da história: a EAN tradicional, a EAN fora dos moldes tradicionais e a EAN crítica
ou crítica-problematizadora. A EAN “tradicional”, em sua criação, buscava traduzir de forma
simplificada os conceitos e conhecimentos técnicos da nutrição às pessoas leigas (Boog,
2013). Os métodos e técnicas utilizadas no trabalho educativo são condizentes com “o
modelo pedagógico tradicional, que acentuam os aspectos tecnicistas da atuação do
nutricionista” (Santos, Alves, 2015, p. 434).
Ao longo das décadas, pesquisadoras como Maria Cristina Faber Boog, Lígia Amparo
dos Santos, Elisabeta Recine propuseram metodologicamente muitos avanços sobre essa
área, por meio da aproximação com outros campos do conhecimento, como o da educação,
sociologia e antropologia. Nessa perspectiva não tradicional também se enquadram métodos
do campo da psicologia, mais especificamente da subárea da Teoria Comportamental (Conte,
Doll, 2021).
A EAN, de acordo com Boog (1999, 2013), inspira-se no educador Paulo Freire, a
qual deve ser pautada no diálogo. Considera a realidade das pessoas e os os saberes que elas
possuem, os quais, passam a ser aprofundados ou mesmo desmistificados. A EAN baseia-se
na construção coletiva de saberes utilizando materiais lúdicos, imagens, objetos (signos e
símbolos) e teatro, por exemplo (Boog, 2013).
A ideia de EAN crítica-problematizadora poderia ser entendida como “um modelo” de
trabalho, pautado na pedagogia Freireana, utilizando e compartilhando da mesma base de
trabalho da EAN não tradicional, utilizando o diálogo (horizontal) como principal caminho
para o trabalho educativo, todavia, apresenta algumas diferenciações, uma vez que pauta-se
na pedagogia crítica-problematizadora, inspirada no trabalho pedagógico de Paulo Freire e
outros pesquisadores críticos, como Ayane Au, Michel Apple, Dermeval Saviani, Ira Shor,
Henry Giroux.
A EAN crítica trata de ensino-aprendizagem questionador, não padronizado e não
hegemônico de educação, que ao mesmo tempo, se preocupa com os problemas sociais e com
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uma sociedade desfavorecida socialmente, usando a problematização 3 para instigar a


curiosidade, a geração de dúvidas, reflexões, levantamento de soluções possíveis e viáveis
para a resolução de problemas práticos do cotidiano, e capacidade de tomada de decisões, que
consequentemente, levam à ação (mudanças de comportamentos alimentares) e autonomia
sobre as escolhas alimentares.
A educação alimentar em uma perspectiva crítica pode servir como base metodológica
para educadores e diversos outros profissionais, como “médicos, terapeutas, cientistas sociais,
filósofos, antropólogos e outros” por ser “considerado um modelo de transdisciplinaridade”
segundo Gadotti (2009, p. 9). A pedagogia crítica e/ou problematizadora, busca a
participação ativa dos participantes - educandos, desenvolvimento de senso crítico e
autonomia e quando estes são expostos a determinadas situações e informações. Nesse
sentido, esse estudo buscou mostrar as estratégias metodológicas e alguns resultados do
trabalho de educação alimentar e nutricional crítica realizado em ambiente virtual com
mulheres adultas maduras e idosas.

METODOLOGIA

De acordo com Minayo (2008), por muito tempo se achou que as pesquisas
quantitativas, biomédicas ou mesmo epidemiológicas quantitativas poderiam responder às
questões e os porquês do adoecimento, bem como achar soluções para eles. Após os anos de
1970, surge um novo movimento para pensar questões relacionadas à saúde por meio da
história social, sob uma ótica marxista, e a partir de então passam a romper barreiras e
ampliar as “fronteiras do conhecimento, sem abrir mão do rigor” (Minayo, 2008, p. 76).
A educação crítica é uma perspectiva metodológica que extrapola a transmissão de
conhecimento, ao passo que gera situações de reflexão sobre as situações cotidianas. Ela
busca soluções práticas para a resolução de problemas do cotidiano (Padrão; Aguiar; Badrão,
2017) por meio do estudo da teoria, da prática dessas teorias e da materialidade ou
materialização das práticas (Saviani, 2003). Essa tríade, teoria, prática e materialização, na
perspectiva Freireana poderia ser traduzida como “práxis”, que pode ser entendida como a
“reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá –lo” (p. 21).
Já a EAN crítica, de acordo com Valente (1989), tem sua base na pedagogia
Histórico-Crítica e, portanto, não tem um modelo a ser seguido, uma vez que cada trabalho a
ser desenvolvido é único e depende das questões socioeconômicas (como faixa etária, gênero,
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escolaridade, renda) e das questões e demandas de saúde individuais e coletivas dos


participantes envolvidos.
Sobre o estudo: o que, com quem, quando, onde e como?
Trata-se de um estudo de intervenção de educação alimentar e nutricional crítica em
ambiente virtual, individualizado, ao longo de seis meses, utilizando Estudo de Múltiplos
Casos com sete participantes com idade igual ou superior a 50 anos, adstritas ao Sistema
Único de Saúde da cidade de ….., região noroeste do estado do……….. A pesquisa foi
aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
sob parecer nº 4.801.673 e número CAAE: 45803421.60000.5347.
Dentro dos encontros educacionais, trabalhou-se com as demandas nutricionais
individuais e de saúde de cada participante, utilizando para isso o trabalho “clínico”,
utilizando saberes da científicos da ciência da nutrição (clínica) por meio de referências
clássicas como Mahan & Raymond (2014) e Shils (2009), todavia, a construção do trabalho
clínico (terapia nutricional), abarcou métodos e técnicas pedagógicas da educação alimentar e
nutricional e da pedagogia crítica.
O trabalho educativo foi baseado principalmente no diálogo, na proposição de metas
e aconselhamento nutricional, conforme orientado por pesquisadoras da Educação Alimentar
e Nutricional, como Maria Cristina Faber Boog, Sônia Linden, Mônica Santiago Galisa. Não
obstante, o trabalho educativo utilizou, além do diálogo e do aconselhamento, a
problematização, uma “ferramenta” da pedagogia crítica, baseada em pesquisadores como
Paulo Freire (1967, 1987, 1996, 1997), Henri Giroux (2008, 2016) e Ana Paula Magalhães
(2012).
A problematização consiste em um ato pedagógico onde surgem ou são suscitadas
dúvidas em relação às questões abordadas, as quais passam a ser discutidas/problematizadas.
De acordo com Saviani (2008), o (a) educador (a) e alunos (educandos), juntos, buscam
identificar quais questões necessitam ser resolvidas no âmbito da prática cotidiana e do
contexto social em que as pessoas estão inseridas. As questões levantadas pelo (a) educador
(a) devem despertar o pensamento crítico dos participantes, bem como, estimular a busca
pelo aprofundamento do conhecimento e levantamento de soluções ou tomadas de decisão
(Freire, 1987, 1997).
A problematização de acordo com Pereira (2020) deve viabilizar a superação do
conhecimento popular, adquirido nas relações cotidiana (sincrético e fragmentado) para o
conhecimento científico, propiciando uma compreensão mais qualificada sobre as questões,
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por meio de situações reais e da realidade e contexto sociais em que os educandos estão
inseridos.
A determinação do número de participantes ocorreu em função do desenho do estudo
“Estudo de Múltiplos Casos”, no qual, não há um limite de participantes pré-estabelecido,
uma vez que poderá ser “os quais podem ser tanto uma única pessoa quanto um grupo de
pessoas” (Silva, Mercês, 2018). Contudo, considerando a profundidade e complexidade da
pesquisa (tese), além do número de encontros individuais (seis encontros oficiais), o intervalo
de no mínimo cinco e máximo sete pareceu ser o mais adequado. De acordo com Andrade et
al (2017, p. 2) o estudo de caso é uma pesquisa empírica e estruturada “que pode ser aplicado
em distintas situações para contribuir com o conhecimento dos fenômenos individuais ou
grupais.
O trabalho de intervenção ocorreu ao longo de seis meses, entre o período de abril a
setembro de 2021, por meio de vídeo-chamadas no Google Meet ou WhatsApp. O período em
questão era de isolamento social pela pandemia do vírus Sars-covid-19. A organização e
datas dos encontros foram sempre agendados com antecedência, por meio de telefonemas ou
mensagens/áudios pelo aplicativo WhatsApp.
A fim de contemplar mulheres com diferentes perfis socioeconômicos,
estrategicamente, foi indicado pela Secretaria Municipal de Saúde de ……., o trabalho com
mulheres residentes nos Bairros Getúlio Vargas (ESF 14 e 15) e São José (ESF 4).

Critérios de Seleção:
Foram consideradas na seleção, mulheres na faixa de idade igual ou superior a 50
anos, adstritas ao SUS, que não estivessem em tratamento nutricional em algum outro
programa de educação alimentar e nutricional individual ou coletivo. A faixa de idade
escolhida (50 +) se justifica por ser um “marcador determinante do envelhecimento”
(Ferreira, et al, 2013, p.410) que indica também o fim do período reprodutivo da mulher
mediante a drástica redução estrogênica, e, junto a ela, diversas alterações de ordem
biológica, fisiológica, metabólica e morfológica.

Logística e Seleção:
A escolha das candidatas foi feita por meio sorteio aleatório através da
disponibilização de números de telefones que foram fornecidos pelas ESFs. Imediatamente
após o sorteio, realizou-se a primeira ligação, onde era explicado brevemente o estudo. A
mulher que manifestasse interesse, era pré-selecionada. Na ligação, buscava-se identificar se
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a candidata possuía os critérios de seleção pré-estabelecidos. Em caso positivo, passava a ser


selecionada a entrar na pesquisa.
Preparação do Campo
Antes de iniciar a intervenção, foi realizada uma preparação de campo, através da
realização de um encontro virtual individual com cada uma delas com a finalidade de
conhecer a pesquisadora e vice-versa. Neste encontro, falou-se um pouco sobre minha vida
pessoal e profissional e também sobre o objetivo e funcionamento do estudo, o formato de
trabalho, entre outras questões. Cada uma das mulheres também falou um pouco de si, de sua
vida, da alimentação e dos motivos ou interesses em participar.
Na mesma ocasião, falou-se das questões éticas e buscou-se conhecer de forma mais
ampla o perfil de cada uma das participantes, suas demandas nutricionais e de saúde por meio
da aplicação de um questionário semiestruturado que contemplou também questões
socioeconômicas e sociodemográficas.
Questões Éticas
No primeiro encontro de preparação do campo foi falado sobre as questões éticas, os
direitos e deveres de cada uma delas, isenção de custos, possibilidade de desistência no
momento que quisessem ou necessitassem, a não necessidade de responder a determinada
perguntas se não quisessem, entre outras questões éticas previstas nas Resoluções 466/2012 e
510/2016.

Foi realizada a leitura do TCLE e o Termo de Autorização do Uso Imagens, Som e


Voz para Fins de Pesquisa, que foi enviado previamente para cada uma, via WhatsApp ou e-
mail. O consentimento na participação foi verbal. Cada participante também gravou um áudio
pelo whatsapp, informando seu nome e afirmando que consentiu em fazer parte do estudo e
autorizava o uso de suas imagens, som e voz no estudo.

Além disso, cada participante foi convidada a escolher um codinome para manter o
seu anonimato no estudo e também a liberdade de manter o seu nome, se assim desejasse.
Nesse sentido, surgiram os seguintes codinomes e nomes: Bere; Nega; Rosa; Rose; Joce;
Lúcia; Vagalume Aprendiz.

Instrumentos de Produção e Análise de Dados:


A produção, levantamento e avaliação dos dados ao longo da pesquisa, envolveu a
construção e aplicação de Questionário semi estruturado e Questionário para Entrevistas. O
questionário foi adaptado do instrumento “Propensão ao endividamento de pessoas idosas:
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um estudo sobre fatores de risco ao endividamento de pessoas idosas no Rio Grande do Sul”,
do pesquisador Johannes Doll e do questionário “Questionário de avaliação da qualidade de
vida e da saúde (QVS-80) de Leite et al. (2008). A investigação também contemplou
questões específicas elaboradas pelos pesquisadores a fim de responder a alguns dos
objetivos do estudo (antes e depois do estudo), bem como avaliar o trabalho educativo em
ambiente virtual (após a finalização da intervenção).
Todo o trabalho foi registrado em diário de campo. O estudo contemplou a Histórias
de Vida (Magalhães et al., 2017) das participantes relacionadas à alimentação ao longo da
vida e a avaliação de conhecimentos prévios sobre alguns assuntos específicos relacionados à
alimentação/nutrição que foram gravados, transcritos e analisados por meio de Análise de
Conteúdo (Minayo, 2008; Moraes, 1999).
Em casos que não foi contemplado os requisitos ou princípios para a realização da
análise, como a representatividade e homogeneidade, por exemplo, o método foi
desconsiderado. Nestes casos, a análise dos conteúdos considerou os principais elementos da
fala e a síntese dos mesmos. Cada um dos encontros individuais foi registrado em Diário de
Campo que posteriormente foi utilizado como registro e detalhamento de cada encontro.

Resultados

O estudo consistiu em um trabalho de EAN crítica utilizando metodologia de ensino


baseado em concepções freirianas no campo da alimentação e nutrição. O tempo de duração
do trabalho educativo foi de seis meses, com periodicidade mensal, e duração de cerca de
uma hora cada encontro educativo (variação de 45 minutos a 1 hora e 30 minutos).
Detalhamento dos encontros:
No Quadro 2 mostra de forma resumida, como foi pensado a organização dos
encontros virtuais. Destaca-se que a preparação do campo e o primeiro encontro foram
estratégicos e planejados para que todas as participantes tivessem as mesmas informações e
realizassem as mesmas “atividades”:
Preparação do campo: explicação da pesquisa, leitura do TCLE, consentimento e
aplicação de questionário semi-estruturado com questões acerca de dados socioeconômicos,
sociodemográficos, saúde, alimentação e atividade física.
Primeiro encontro (encontro 1 de 6): nesse encontro buscou-se conhecer a história
alimentar das participantes, por meio da investigação da infância, ao longo da vida adulta e
atual. Nesse mesmo encontro, buscou-se os conhecimentos e saberes que as participantes
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tinham em relação a alguns assuntos acerca da alimentação, entendimento (interpretação) dos


rótulos de alimentos e percepções sobre a saúde (como consideravam que estava a saúde e
porquê). Além dessas questões, nesse encontro, buscou-se conhecer as principais demandas
de saúde que cada uma das participantes possuíam e que precisavam ser trabalhadas nos
encontros seguintes.

Quadro 2: Organização e estruturação dos encontros virtuais


Ações Objetivo Instrumentos/Estratégias
Conhecer as participantes, Conversa livre sobre a vida.
Preparação do
suas demandas de saúde e Explicação detalhada da pesquisa e suas questões
Campo
falar sobre as questões Éticas éticas por meio do TCLE e consentimento verbal.
( Zero)
e funcionamento do estudo Aplicação de questionário semiestruturado
Conhecer a história da Entrevista gravada contendo questões da história
Primeiro
alimentação ao longo da vida da alimentação ao longo da vida e dos saberes
Encontro4
(hábitos) e os conhecimentos sobre algumas questões acerca de nutrição.
(Encontro 1)
prévios
Realizar um trabalho Trabalho baseado nas demandas individuais e nas
educacional crítico visando demandas gerais e nos graus de conhecimentos
Encontros mudanças de comportamento das participantes. Foi trabalhado a alimentação
Consecutivos alimentar e melhoria da atual (Recordatórios alimentares), o estudo dos
(Encontros saúde e estado nutricional. rótulos, a terapia nutricional com base nas
2, 3, 4, 5 e 6) alterações clínicas utilizando o diálogo, o
aconselhamento nutricional, proposição de metas
e problematização ao longo de seis meses.
Fonte: os autores

Encontros consecutivos
Os encontros consecutivos (encontro dois ao seis) foram trabalhados de forma
específica de acordo com cada demanda de saúde e realidade alimentar e econômica de cada
participante. Entre as principais doenças ou condições clínicas referidas, estiveram:
hipercolesterolemia, hipertensão arterial, pré-diabetes, obesidade, anemia, ferritina elevada,
problemas de intestino, hipotireioidismo.
Em cada um dos encontros, buscou-se sempre dialogar e problematizar os assuntos,
almejando não apenas gerar conhecimentos, mas também desmistificar alguns saberes
populares que poderiam ser errôneos, ou mesmo confirmá-los e aprofundá-los. Além disso,
suscitar reflexões sobre a alimentação, suas patologias e a relação entre elas. Entretanto,
pode-se afirmar que todas as construções foram muito particulares, respeitando as demandas
e anseios que eram trazidas a cada encontro.
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Entre as estratégias didáticas mais utilizadas, esteve a autoavaliação da alimentação e


da saúde e a problematização da alimentação, levantando os aspectos positivos relevantes,
bem como os comportamentos alimentares que contribuíram para a piora das suas condições
clínicas, a explicação de porque ou como alguns dos alimentos consumidos agravavam as
suas condições clínicas e quais alimentos eram importantes que passassem a integrar a
alimentação, por que eles eram importantes, e como agiam no organismo.
As explicações acerca das doenças e da relação com os alimentos ou seus
componentes, na maioria dos casos ocorreram por meio da construção de desenho, que a cada
explicação, ia sendo mostrado à participante, como por exemplo a formação das placas de
aterosclerose para mulheres que apresentavam hipercolesterolemia e/ou hipertensão arterial,
por exemplo (Figura 1).
Destaca-se, nesse sentido que, além de problematizar os alimentos e a doença
(trabalhar a fisiopatologia), buscava-se sempre mostrar alternativas e explicar porque
determinados alimentos deveriam ser evitados, por quais alimentos ou opções melhores eles
poderiam ser substituídos, porque eles deveriam passar a fazer parte da alimentação, como
eles poderiam ser inseridos e quais as opções menos onerosas.

Figura 4. Desenho de artéria e a explicação do processo de aterosclerose

Em cada um dos encontros, cada participante, ao final da “consulta”, recebia alguns


temas ou metas para que colocassem em prática, de acordo com a condição patológica e com
a alimentação atual, almejando a mudança de comportamentos alimentares. As metas
baseavam-se em sugestões, trocas de alguns alimentos da dieta, por outros, de acordo com a
condição econômica e acesso, respeitando os gostos e preferências alimentares, ou seja, não
eram metas impostas, e sim combinadas com a participante. Pondera-se que nem sempre as
metas eram propostas pela pesquisadora (nutricionista), ou seja: na maioria das vezes, na
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parte final do encontro questionava-se à participante: o que você vai fazer agora? O que você
se compromete a fazer em relação a isso?
No Quadro 3, pode ser visualizado a organização de cada um dos encontros. Pondera-
se que apenas o primeiro e o segundo encontro seguiram um planejamento prévio que foi
pensado previamente. Os demais encontros foram livres, ou seja, foram sendo construídos
com base nos principais acontecimentos que marcaram cada um dos encontros. De modo
geral, pode-se dizer que na maioria dos encontros, a lógica foi parecida, por exemplo, no
terceiro encontro a maioria das mulheres foram convidadas a aprender sobre a leitura,
interpretação dos rótulos (pois identificou-se no encontro de preparação do campo que elas,
de modo geral, ignoravam os rótulos como fonte de informação), todavia, em alguns casos,
no terceiro encontro, uma participante trouxe seus exames laboratoriais, que foram então
interpretados e problematizados.

Quadro 3: Síntese dos encontros educativos e dos temas trabalhados em cada encontro.

1 História de vida e demandas gerais: buscou-se conhecer a história pregressa e atual em


relação a alimentação, além das demandas nutricionais e de saúde das mulheres.
2 Conhecendo o comer: buscou-se conhecer e também problematizar a alimentação atual
das participantes por meio de Recordatório Alimentar de 24 horas. Foram sugeridas
algumas metas e combinados para que passassem a ser colocados em prática no cotidiano.
3 Estudo, interpretação e problematização de rótulos: as participantes foram desafiadas
a buscar alimentos prontos para consumo que possuíam em casa, os quais passaram a ser
objeto de estudo. Trabalhou-se a interpretação e problematização da lista de ingredientes,
da tabela nutricional e informações adicionais das embalagens.
4 Exames laboratoriais, diagnóstico e problematização: as mulheres foram convidadas a
realizar exames laboratoriais ou a disponibilizarem seus exames recentes que foram
interpretados e problematizados. Na ocasião foi trabalhado a fisiopatologia e a terapia
nutricional por meio de aconselhamento e determinação de metas.
5 O que falta mudar? nesse encontro as mulheres foram instigadas a falar das mudanças
que tinham realizado até ali e também das dificuldades encontradas e do que ainda não
tinham conseguido colocar em prática. Além disso, foram construídas/levantadas novas
alternativas e realizado novos combinados.
6 Aprendizagens e mudanças práticas: indagou-se novamente as questões realizadas no
primeiro encontro acerca de questões sobre alimentação, leitura e interpretação de rótulos,
tratamento nutricional. Reforçou-se a necessidade do seguimento dos cuidados na
alimentação e mudanças de comportamentos alimentares realizados até ali.
Fonte: os autores

O estudo dos rótulos envolveu a leitura, interpretação e problematização de alimentos


prontos para consumo que as participantes consumiam e tinham em casa (no momento do
encontro). Elas foram convidadas a irem até seus armários ou geladeira e trazer um ou mais
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produtos prontos para consumo que costumavam consumir. O ensino sobre a interpretação,
englobou principalmente a busca pelos ingredientes que compunham o alimento e a sua
problematização, a contagem de calorias por porção e problematização, quantidade de fibras,
sódio, gordura trans e seu “mascaramento” nos rótulos, além de aditivos químicos
alimentares. A explicação sobre a tabela nutricional envolvendo os macronutrientes foi mais
complexa e mais direcionada à participante diabética.
A interpretação e a problematização dos exames laboratoriais envolveram a
construção de desenhos para explicar a fisiopatologia de doença ou dos agravos relacionados
às condições clínicas pré-existentes, conforme já mencionado. Além da fisiopatologia das
doenças cardiovasculares, trabalhou-se com a construção e explicação da curva glicêmica e
do comportamento dos diferentes alimentos sobre a glicemia (participantes com pré-diabetes
e diabetes).
Pontua-se que no caso da participante diabética, foi também trabalhado
especificamente a contagem de carboidratos (SBD, 2016), onde explicou-se como funcionava
a contagem de carboidratos, a divisão da quantidade de carboidratos por refeição ideal para
ela, como a contagem ajudaria no controle dos níveis de glicemia. A participante foi
desafiada a buscar a informação da quantidade de carboidrato dos alimentos que ela gostava
ou costuma comer e também calcular e responder qual a quantidade que ela poderia comer do
alimento para que ficasse dentro da contagem.
Entre outras técnicas e métodos que se destacaram no trabalho de EAN crítica,
destacamos a construção de planos alimentares pelas próprias participantes. Essa ação
ocorreu em resposta à solicitação de pelo menos três mulheres que pediram ao longo dos
encontros “uma dieta” ou “cardápio”. Nesse momento, elas foram instigadas a elas próprias
produzirem um plano alimentar (que poderia ser naquele mesmo momento, ou construído e
enviado posteriormente ao encontro). O plano alimentar deveria considerar os alimentos que
elas tinham em casa ou que costumavam comprar, os conhecimentos que já tinham sobre
alimentação até ali e que consideravam ser viável.
Inicialmente a solicitação suscitou estranheza e demorou para ser enviada (em alguns
casos, a participante teve que ser cobrada para enviar). Após o envio, as participantes
receberam feedbacks que foram enviados por áudio, enaltecendo e parabenizando os pontos
positivos do plano alimentar e problematizado os alimentos que não poderiam ser mantidos
como parte de uma rotina alimentar, pois mantinham alguns hábitos e comportamentos
nocivos. Na problematização foi explicado porquê era importante que alguns determinados
alimentos fossem substituídos e quais melhores alternativas elas teriam.
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Alguns resultados do Trabalho Educativo


Os relatos mostraram que a maioria das mulheres realizaram mudanças na
alimentação em muitos aspectos. Entre alguns relatos, destacamos as seguintes falas:

Rose: “mudanças drásticas na alimentação”


Lúcia: “reformulei toda a minha maneira, e a minha alimentação,”
Joce: “mudança de hábitos alimentares”
Vagalume Aprendiz: “alimentação ficou mais balanceada”

Entre alguns dos relatos mais significativos se estiveram as respostas das participantes
Nega, Joce e Lúcia:

Nega: “no início quando tu me perguntou como é que era minha alimentação, a alimentação,
era toda errada [...] antes eu tinha que comer à vontade, mas agora eu vi que à vontade estava
me fazendo mal”.

Joce: “a diferença do meu hábito [...] eu acho uma diferença em mim nos lugares que eu vou,
eu olho, se eu acho que eu não posso comer, eu não como, mas eu substituo por uma outra
coisa”.

Lúcia: “Eu reformulei toda a minha maneira, e a minha alimentação, as quantidades, as


porções, e os alimentos também. Introduzi alimentos que eu não usava na alimentação e
adquirir novos hábitos”.

Entre algumas mudanças concretas na alimentação, foi referido reduções no volume


de alimentos consumidos, aumento do número de porções, introdução de novos alimentos na
dieta (Bere, Nega, Rose, Lúcia, Vagalume Aprendiz). Quatro participantes (Bere, Rosa,
Nega, Lúcia) passaram a consumir predominantemente o pão integral em substituição ao
branco. Seis mulheres (Bere, Nega, Rosa, Rose, Joce, Lúcia) aumentaram o consumo de
frutas, verduras e legumes e de outros alimentos integrais. Houve também relatos de maior
tempo de mastigação (comer com mais calma) (Rosa, Nega, Vagalume Aprendiz), além da
redução do consumo de carne vermelha (Nega, Vagalume Aprendiz) açúcares e/ou doces
(Nega, Joce, Vagalume Aprendiz).

Avaliação da EAN Crítica virtual pelas Participantes:

Após a finalização do trabalho educativo, as participantes foram questionadas a


respeito da modalidade dos encontros, ou seja, do trabalho em ambiente virtual, onde buscou-
se fazer uma comparação da modalidade de encontro virtual com o presencial (para quem já
14

havia tido a experiência do presencial), além da investigação sobre pontos positivos e


negativos dos encontros virtuais.
As respostas acerca das perguntas sobre a modalidade dos encontros, comparando o
formato virtual em relação ao presencial, mostrou que as participantes tiveram opiniões
distintas em relação ao formato dos encontros. As participantes Bere, Nega, Lúcia, Vagalume
Aprendiz afirmaram que não teria diferença no trabalho se ele tivesse sido presencial e as
outras duas5, Rosa e Joce, consideraram que “seria mais proveitoso” se os encontros tivessem
sido presenciais.
Lúcia: “Eu não acho que se os nossos encontros tivessem sido presencialmente, teria maior
entendimento nos diálogos, e maior aproveitamento. Acredito que o fato de ter sido realizado
on-line, não interferiu no aproveitamento e no entendimento.”

A participante Lúcia também afirmou que para ela a modalidade on-line foi melhor
pois possibilitou a sua participação na pesquisa, sem precisar se deslocar, pois do contrário
não seria possível6.

Quanto ao trabalho online, eu acredito que foi muito bom, muito proveitoso, [...] a gente
aproveitava o horário que estava em casa, não tinha o deslocamento. Isso facilitou, foi um
ponto positivo [...] o fato de ter sido on-line facilitou bastante.

A indagação a respeito dos pontos positivos do trabalho educativo mostrou que para
Bere e Nega o trabalho, mesmo sendo no formato on-line, permitiu que elas entendessem
tudo. As demais afirmaram que “foi um formato que possibilitou participar da pesquisa”:

Nega: “[...] Eu já tive atendimento presencial, mas eu entendi tudo direitinho [...] o ponto
positivo [...] foi quando você me pediu pra eu fazer um exame, e daí eu fiz e apareceu lá a
glicose quase alta, apareceu lá pré-diabética. E você fez um trabalho excelente comigo [...]”

Vagalume Aprendiz: “A ferramenta que a gente utilizou, permitiu que a gente realizasse um
trabalho importante, de uma forma nova, e o novo, ele precisa ser incorporado no nosso
trabalho diário. Eu achei maravilhoso [...] as nossas relações são pautadas por uma troca que
ela é invisível, e ela permeia as nossas emoções, o sentir, o abraçar, passa por isso: passa por
eu te ver, eu trocar impressões, eu tocar a tua aura, é por essas impressões mais sutis, e essa
troca é bem fazeja, ela é boa pras pessoas afins, então usar essa ferramenta, foi bom, o
trabalho aconteceu, porém, ficou faltando essa parte [...]”

Joce: “90% [...] eu aprendi, tô colocando em prática, me ajudou, sou muito grata a ti.”

A categorização das questões sobre os pontos negativos da modalidade online


mostrou que as participantes, Bere, Nega, Lúcia não tiveram nenhum ponto negativo. Para as
demais (Rosa, Joce, Vagalume Aprendiz), o ponto negativo foi a falta de contato físico,
15

mostrando que, apesar de todos os pontos positivos existentes, o trabalho presencial continua
sendo muito importante.
Vagalume Aprendiz “[...] O único ponto, na minha opinião, em desabono, digamos assim,
dessa ferramenta, é o fato de a gente não se ver, é o fato de a gente não se abraçar”.

Joce: “te dizer negativo, pra mim, 10%, nem isso. Só da gente não se encontrar, não se ver
pessoalmente, não ter mais o contato físico”.

Discussão

A presente pesquisa realizou um trabalho de EAN crítico em ambiente virtual e as


experiências neste processo apontaram para elementos específicos desta forma de trabalho
educacional. Esse estudo mostrou ser possível realizar um trabalho de EAN crítica em
ambiente virtual. As participantes tiveram atenção e assistência periódica (mensal) sobre a
sua demandas nutricionais e de saúde, além de ser um trabalho seguro sob o ponto de vista
das normas sanitárias de distanciamento vigentes. A modalidade online, entretanto, apesar de
suas potencialidades, apresentou também algumas limitações, como a falta de interação física
e social, inviabilizando a realização de um trabalho metodológico coletivo e mais ativo.
A EAN crítica em ambiente virtual, apresentou muitos elementos que podem ser
considerados diferenciados dos modelos de EAN tradicionais (Conte, Doll, 2021), entre os
quais, destaca-se o tempo de duração dos encontros educativos (média uma hora), o diálogo e
a problematização da alimentação por meio dos R24h, a problematização dos rótulos dos
alimentos e dos exames laboratoriais. Além das problematizações, foi considerado um
diferencial a da fisiopatologia das doenças e do comportamento dos alimentos por meio da
construção de desenhos, bem como a construção de planos alimentares pelas próprias
participantes (e a sua problematização) que podem ser considerados alguns elementos-chave
do trabalho educativo crítico.
É também relevante falar das dificuldades do trabalho de EAN em ambiente virtual,
que se deu em relação a alterações e oscilações da conexão com a internet, o que por vezes,
dificultou o diálogo e prejudicou algumas explicações mais específicas, como por exemplo, o
estudo dos rótulos. Para além das questões de conectividade, houve ainda um maior desafio,
o processo de desvinculação ou minimização do modelo tecnicista da formação de base.
O formato de trabalho e encontros à distância, ao passo que possibilita e possibilitou a
continuidade do trabalho e de acesso à informação, e assistência à saúde de algum modo, por
outro, apresenta limitações. De acordo com Buaes (2011), as interações sociais são essenciais
16

para a construção do conhecimento, pois possibilitam trocas, construções coletivas,


participação coletiva e maior segurança enquanto trabalhos individualizados ou com pouca
interação podem mais facilitar o domínio de um sujeito sobre o outro e dificultar uma relação
de horizontalidade no diálogo, inquirindo mais facilmente em um trabalho baseado em
prescrições e depósito de informações (Boog, 1997; Freire, 1987).
Um trabalho de EAN em ambiente virtual, realizado por Santos (2020), (em um
período anterior à pandemia de Covid-19), teve o objetivo de “Desenvolver, executar e
avaliar intervenção nutricional destinada a adultos, usuários das mídias digitais Messenger,
Whatsapp e Instagram”. A pesquisadora realizou um trabalho de EAN em ambiente virtual,
utilizando diferentes mídias sociais entre participantes das diversas regiões do Brasil (e até
mesmo fora do Brasil).
O trabalho consistiu basicamente no levantamento das questões de interesse dos
participantes e no envio de conteúdos diários por meio da produção de conteúdos variados de
imagens, vídeos animados, vídeos no Estilo “Self/Live, infográficos, GIF, textos, e-book
sobre Alimentação Saudável. Todo o trabalho desenvolvido foi avaliado ao longo do seu
desenvolvimento e ao final do trabalho educativo. Dentro do programa, os participantes
também responderam a questões do modelo transteórico para avaliar os estágios de mudança
de comportamento alcançados dentro do modelo Transteórico7 como: redução do tamanho
das porções dos alimentos, redução da quantidade de gordura. Além disso, os participantes
responderam a uma escala de conhecimentos nutricionais (antes e depois) da participação e
foram avaliados quanto ao seus desempenhos.
A EAN no formato on-line, como já mencionado, é um modelo pouco comum e ainda
muito novo e que pode ser realizada de distintas formas. Entre uma das suas grandes
vantagens, está a possibilidade de participar de qualquer lugar do Brasil ou do mundo, sem
deslocamento, e em qualquer horário. Todavia, quando passamos a trabalhar com o envio de
materiais informativos, imagens, vídeos, ou mesmo “lives”, estamos ou continuamos a
reproduzir o mesmo modelo bancário de depósito de informações. Aqui não desmerecemos
os trabalhos realizados virtualmente, pelo contrário, pois eles geram informações importantes
às pessoas, e as ajudam a melhorar a sua alimentação, sanar dúvidas e até mesmo a mudarem
os seus comportamentos alimentares.
A crítica se dá no sentido de que, se já é difícil trabalhar de forma humanizada,
dialógica, buscando-se construir conhecimentos coletivos e transformá-los em ações práticas
do cotidiano, mais difícil será alcançar e manter essas mudanças a longo prazo, quando as
ações educativas chegam ao fim. Logo, propõe-se que, em um trabalho educativo não
17

presencial, necessita mais ainda do esforço pela busca de interação humana, ou seja,
consideramos que seja pelo menos, realizada de forma síncrona, possibilitando diálogos entre
os pesquisadores/educadores e participantes.
Para Freire (1983) o conhecimento se constrói na coletividade. Ele ocorre por
intermédio de relações sociais das pessoas entre si e da relação e interação delas com o
mundo, com a cultura que ocorre por meio do diálogo e da reflexão crítica acerca do que se
conhece, almejando transformação. De acordo com Gadotti (2002), o conhecimento não fica
delimitado apenas ao que conhecemos, mas também no modo como ele é produzido e
utilizado na e pela sociedade.
Nesse sentido, a problematização uma prática fundamental no sentido de mostrar o
que é positivo, quais condutas são importantes e devem ser encorajadas e mantidas, bem
como falar das condutas alimentares que precisam ser modificadas, ou seja: o nutricionista
tem também a função de desmistificar os saberes populares que são errôneos, mas também
reforçar e ampliar os saberes populares que são verdadeiros, ou seja, devem ser
aprofundados.
Na EAN crítica, busca-se suscitar dúvidas e produzir as respostas, e não simplesmente
levá-las prontas. A EAN crítica deve oportunizar aos sujeitos a oportunidade de falar o que
sabem, refletir sobre os seus comportamentos e hábitos alimentares e compreender porque
eles são ou não saudáveis e em que implica aqueles comportamentos. Questões como: Como
você considera que está a sua alimentação na atualidade? O que você sabe sobre a doença? O
que você sabe sobre o tratamento? (Conte, 2023).
Métodos questionadores/problematizadores e ativos promovem o desenvolvimento de
pensamento crítico, ao passo que engajam os estudantes e professores. Assim, os
alunos/educandos/participantes não serão meros receptores de informação, mas sujeitos
ativos no seu próprio processo de aprendizagem (Ottoni et al., 2018).
A pesquisa de Perondi (2020) que buscou “identificar como os profissionais
nutricionistas, no âmbito Atenção Primária à Saúde (APS)” mostrou que “apesar do uso de
estratégias no sentido de melhorar a comunicação entre profissional x usuário, as práticas de
EAN realizadas com grupos na APS” (p. 115) ainda seguiam o modelo tradicional de
educação em saúde, e distantes da prática dialógica proposta por Paulo Freire. Ainda de
acordo com a pesquisadora, o modelo tradicional ainda é predominante na EAN e está
relacionado com as lacunas da própria formação profissional.
Nesse sentido, a capacitação dos professores da área de nutrição por meio do
engajamento da área da saúde com as áreas humanas e sociais se faz necessário, uma vez que
18

deve promover reestruturação das práticas pedagógicas na formação teórica e prática dos
alunos, e, posteriormente nas suas atuações profissionais. Assim, a busca por conhecimentos
de outros campos é relevante pois a formação de base no curso de nutrição, de modo geral,
não nos forma para sermos educadores, apesar de também sermos.
Além disso, ainda que haja disciplinas de Educação Alimentar e Nutricional nos
currículos acadêmicos, eles não contemplam as bases pedagógicas necessárias para formar
educadores ou nutricionistas críticos. De acordo com Boog (2013), profissionais bem
treinados (formados) são capazes de ouvir e compreender a comunicação verbal e não verbal,
interpretar questões da alimentação por meio de conhecimentos advindos de áreas como
psicologia, antropologia ou sociologia, formando assim educadores bem-sucedidos.

Conclusão
O trabalho em ambiente virtual e individual, pautado em uma perspectiva crítica,
utilizando do diálogo, aconselhamento e problematização mostrou que é possível produzir
conhecimentos, reflexões e mudanças de comportamentos alimentares ao longo de seis
meses. O trabalho possibilitou atendimento e cuidado nutricional individual a mulheres com
distintas condições clínicas de forma segura e que não seriam atendidas de outra maneira
durante o período de isolamento social.
A partir do trabalho realizado é possível reconhecer que não precisamos
necessariamente estarmos fisicamente em um espaço para realizarmos discussões profundas,
produzir conhecimentos, gerar reflexões ou mesmo provocar emoções, entretanto, para isso,
necessariamente o trabalho online necessita ser realizado de forma síncrona, viabilizando o
diálogo e a interação entre o educador (a) e os (as) participantes.
Conclui-se que o trabalho educativo em ambiente virtual foi uma modalidade viável,
possível e relevante durante o período pandêmico e que pode ser considerado em outros
momentos, desde que seja realizado em uma perspectiva dialógica e crítica. O trabalho de
EAN crítica em ambiente virtual pode ser considerado um trabalho inovador, que apesar dos
desafios do ambiente online pode atingir pessoas em qualquer lugar do país, desde que se
tenha acesso à internet, o que não é uma realidade para todos os brasileiros (as).
Entre os principais desafios e dificuldades do trabalho educativo em ambiente virtual
esteve a dificuldade no diálogo quando a conexão com a internet oscilava. Temas que
exigiam que a participante fosse mais ativa, como por exemplo, encontrar as informações
específicas nos rótulos dos alimentos, foram mais difíceis de serem trabalhados à distância.
19

Sob o ponto de vista das participantes, elas não consideraram que o trabalho online tenha sido
“inferior” a um trabalho presencial.
De modo geral, todas as participantes consideraram o trabalho bom, muito bom ou
excelente, entretanto, a falta de contato físico foi o principal ponto negativo, demonstrando
que as relações sociais presenciais seguem sendo insubstituíveis. O contato físico e as
interações sociais e coletivas possibilitam a abertura para discussões amplas, convergências e
divergências, bem como o levantamento de alternativas coletivas para a resolução de
problemas do cotidiano.
____________________________
Notas
1
Informação disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em 24 de fevereiro de 2023.
2
Boog (2013) faz uma importante diferenciação entre Ensinar e Educar. De acordo com a autora, ensinar remete
a algo concreto, implica em transmitir conhecimentos sobre determinado assunto ou conteúdo de nosso
domínio. Educar remete à pessoa, diz respeito a alguém. Educar no campo da Nutrição, transcende o ensino de
conteúdos técnicos da ciência da nutrição.
3
A problematização refere-se ao “processo em que estudantes e professores fazem perguntas críticas acerca do
mundo em que vivem, sobre as realidades materiais que ambos experimentam cotidianamente e em que refletem
sobre quais ações eles podem realizar para mudar essas condições materiais” (AU, 2011, p. 251).
4
No primeiro encontro também foi avaliado as condições de acesso e disponibilidade de alimentos que
possuíam, além de questões sobre privações nas compras de alimentos, porém não serão tratadas neste artigo.
5
A participante Rose não respondeu a essas duas questões finais. Ela respondeu outras informações, mas não as
questões em específico.
6
Essa mesma condição se aplica à participante Joce, que sempre participou no turno da noite, após o trabalho.
7
O Modelo Transteórico é um método da Nutrição Comportamental que busca avaliar as diferentes fases em
que os participantes/pessoas se encontram. O modelo contempla basicamente cinco fases, das quais estão: a Pré-
Contemplação, Contemplação, Preparação, Ação e Manutenção (CASTRO; BERNI, 2015).

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