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Imagens do Brasil nas obras de exílio de SZ e UB

Ulrich Becher nasceu em Berlim no dia 2 de janeiro de 1910. Era filho do


advogado alemão Richard Becher e da pianista suíça Elisabeth Ulrich.
Em 1932, publicou uma coleção de contos intitulada Männer machen Fehler
(Homens cometem erros). Em novembro de 1933, casou-se com Dana, filha do autor
austríaco Alexander Roda Roda e mudou-se para Viena. Mudou também de
nacionalidade, tornando-se austríaco.
Os nazistas declararam seus livros “arte degenerada” (“entartete Kunst”). Sua
esperança de poder exilar-se na Suíça devido ao fato de ser filho de uma suíça não se
realizou, pois sua postura claramente antinazista infringiu o princípio de neutralidade
desse país. A polícia de emigração negou-lhe a permissão de trabalho e sugeriu que
emigrasse para outro país. Em 1941, Ulrich Becher e sua esposa conseguiram fugir do
nazismo via França, Espanha e Portugal, instalando-se finalmente no Brasil. Aqui,
Becher, além de publicar alguns artigos jornalísticos no Estado de São Paulo, escreveu
quatro das cinco baladas da narrativa em verso Brasilianischer Romanzero (Romanceiro
brasileiro) e também a maior parte do romance em versos Die Ballade von Franz
Patenkind (A balada de Franz Patenkind). Durante três anos, o casal tentou um visto
para imigrar para os EUA, para onde finalmente se mudaram, em 1944, e onde nasceu
seu filho Martin Roda Becher.
Ulrich Becher volta para Viena em 1948, levando consigo o texto Der Bockerer
(O teimoso), escrito junto com Peter Preses. Na capital austríaca, essa peça tornou-se
um grande sucesso, sendo, mais tarde, levada para as telas do cinema e da televisão por
Franz Antel.
Em 1954, Ulrich Becher instalou-se em Basel, Suíça. Em 1955, recebeu o
Prêmio para Dramaturgia do “Deutscher Bühnenverein”; em 1976, o Prêmio da
“Schweizerischen Schillerstiftung” por sua obra geral, e, em 1980, foi condecorado com
a “Österreichisches Bundesverdienstkreuz 1. Klasse für Literatur und Wissenschaft”.
Faleceu em Basel, em 1990.
Stefan Zweig: nasceu em Viena, em 28 de novembro de 1881, oriundo de uma
burguesia judaica culta na Áustria do fim de século. Numa viagem para o congresso do
PEN Club em Buenos Aires, em 1936, encantou-se pelo Brasil, que o recebeu de braços
abertos e com todas as honras, prometendo “divulgar” o país com seus textos. Em 1940,
assustado com a queda de Paris e o avanço nazista, Zweig – já com a cidadania britânica
– resolveu viajar para o Brasil, a fim de colher material para o “livro brasileiro”.
Enquanto iniciou uma turnê de palestras pelo Brasil e pela Argentina, recebeu, no
consulado brasileiro de Buenos Aires, o visto de residência permanente, um grande
privilégio. Em seguida, dedicou-se a uma tarefa hercúlea: a publicação – praticamente
simultânea – de Brasil, um país do futuro em oito edições. O livro foi editado no Brasil
e Portugal, saindo em alemão pela Bermann-Fischer; em inglês, pela Viking, de Nova
York; com edições, ainda, em espanhol, sueco e francês; no Canadá e Inglaterra. Zweig
terminou sua autobiografia em Ossining, Nova York, antes de voltar para o Brasil. Ali,
em setembro de 1941, mudou-se com Lotte para Petrópolis, onde alugara uma pequena
casa na Rua Gonçalves Dias, 34. Desgostoso com os rumores de que teria se “vendido”
ao governo brasileiro para escrever o seu livro sobre o Brasil e com a sombria situação
do mundo mergulhado em guerra, Zweig foi se tornando cada vez mais deprimido. Na
noite de 22 para 23 de fevereiro de 1942, cinco meses depois de ter-se mudado para
Petrópolis, cheio de planos e projetos, Zweig consumou com Lotte seu pacto de morte
cuidadosamente preparado. Consciente do simbolismo de seu ato, naquele momento,
naquele lugar, cuidou dos mínimos detalhes. Chegou a passar a limpo sua Declaração
em que agradece a acolhida por parte do Brasil, que correu o mundo e se tornou uma
peça política, um libelo em favor da liberdade.

II: Literatura de exílio: Zweig escreve o que se pode chamar de literatura de exílio,
isto é, aquela literatura em língua alemã que foi produzida e/ou publicada no exterior,
inacessível quase sempre ao leitor de língua alemã. O termo exílio é compreendido aqui
na acepção de saída forçada por circunstância política. Por isso esses
autores/intelectuais não são considerados imigrantes, pois não teriam deixado seus
países se suas vidas não corressem algum risco.

As imagens
Dentre os escritores mais representativos, encontram-se, além de Stefan Zweig,
Ulrich Becher (Berlim 1910 – Suíça 1990), escritor e poeta alemão, naturalizado
austríaco, que morou no Brasil entre os anos de 1941 a 1944, e escreveu Brasilianischer
Romanzero e algumas peças de teatro: Samba e Der Herr kommt aus Bahia (KESTLER,
2003. p. 76-79), Otto Maria Carpeaux (Viena 1900 – Rio de Janeiro 1978), mudou-se
para o Brasil em 1939, em 1942 e 1943 publicou dois livros de ensaios A Cinza do
Purgatório e Origens e Fins. Apesar de não ser sua intenção inicial, Carpeux ficou no
Brasil até o fim de sua vida e tornou-se “um dos mais importantes críticos literários
brasileiros” (Kestler, 2003, p. 88). Paula Ludwig (Vorarlberg 1900 – Darmstadt 1974),
poeta, escritora e pintora austríaca, que viveu no Brasil entre os anos 1940 e 1953
(KESTLER, 2003, p. 124) e Leopold von Andrian-Werburg (Berlim 1875 – Suíça
1951), permaneceu no Brasil de 1940 a 1945. O autor de Der Garten der Erkenntnis (O
jardim do conhecimento, publicado em 1985), tinha afinidade com o movimento
monárquico austríaco e sua obra Österreich im Prisma der Idee. Katechismus der
Führenden, de 1937, foi imediatamente destruída e Andrian foi colocado na lista negra
da Gestapo (Kestler, 2003, p. 65). Depois de passar pela Suíça e pela França, Andrian
veio ao Brasil, onde já havia estado como enviado austríaco e, ainda segundo Kestler
(2003, p. 66), Andrian foi recebido solenemente pela Academia Brasileira de Letras e,
em sua estada aqui no Brasil, tinha contato com outros austríacos, entre eles Otto Maria
Carpeaux. Nem Paula Ludwig nem Leopold Werburg escreveram ou publicaram no
Brasil. As obras de Zweig, no entanto, vinham sendo traduzidas para o português e lidas
desde 1932.
Comparando as obras de Becher e Zweig, é possível perceber grandes
diferenças; a imagem do Brasil durante a Era Vargas, tecida por Zweig, tem pouco a ver
com o olhar que Becher lhe dedica. As obras de Becher, por exemplo, são as únicas, no
âmbito da literatura alemã de exílio, a usar elementos da cultura afro-brasileira para
criticar o comportamento do ditador alemão Adolf Hitler.
Independente da natureza da obra, os exilados de fala alemã no Brasil
consideram os brasileiros um povo muito afável. Segundo Eckl (2011, p. 134) os três
anos de exílio deixaram marcas na obra literária de Becher e ele próprio diz que “se
tivesse ficado no Brasil mais tempo, teria se estabilizado”.
Brasilianischer Romanzero, escrito quando ele ainda morava no Brasil, foi
lançada apenas quando ele estava de volta a Europa, é um poema narrativo, dividido em
cinco romances de diferentes extensões. A linguagem dos poemas é, em sua maior
parte, barroca e de estilo nervoso, desafia a ordem sintática do alemão e está carregada
de neologismos. Além disso, contém muitos empréstimos (vira-lata, pinga, morro,
Cantagallo etc) e traduções “literais” do português brasileiro para o alemão (Schwarzes
Gold [Ouro Preto], Richter-von-draußen [Juíz de Fora]), com respectivas explicações
didáticas nas “Notas sobre o Romanceiro”, no final do livro.
A peça Samba, de três atos, é situada no saguão do Hotel Duque de Caxias, em
Ibarahy-na-Serra, uma cidade “de médio porte” em Minas Gerais. Nesse hotel,
encontram-se hospedados vários europeus. Levando em consideração a caracterização
dos personagens, podemos concluir que a peça Samba é muito mais uma obra sobre
europeus fugitivos da guerra do que sobre o Brasil.
A peça Makumba, ambientada na cidadezinha mineira de Dois Corações, conta a
história de amor entre Eros, filha de Orestes (o bandido e macumbeiro local), e
Hannibal, rebelde e revolucionário da região. A relação de Eros e Hannibal é dificultada
pela inimizade entre os dois homens. Importante é ainda um desfile que está para
acontecer em Dois Corações, organizado pelo delegado em homenagem ao fim da
Segunda Guerra Mundial e no qual participam alguns protagonistas da peça. No
segundo ato, vê-se ainda a preparação de um culto de macumba no rancho de Orestes.
(BOHUNOVSKY, 2011, p. 4,5)
Stefan Zweig em seu famoso livro Brasil, um país do futuro apresenta um Brasil
exageradamente harmonioso e enaltece as potencialidades que enxerga no país – uma
abordagem totalmente contrária daquela que encontramos no Romanceiro brasileiro,
embora os dois escritores tenham vivido na mesma época e no mesmo país. Enquanto o
livro de Zweig continua sendo publicado e discutido no Brasil – vide aqui a nova
publicação da obra pela editora L&PM Pocket no ano de 2013, e o estudo sobre a
passagem do Zweig pelo Brasil, Morte no paraíso, de Alberto Dines de 2004 – Becher
continua praticamente desconhecido por aqui. Celeste Souza relaciona esse fato
diretamente à propagação de imagens menos utópicas e agradáveis do Brasil na obra de
Becher (SOUZA 2004, p. 238 apud BOHUNOVSKY, 2011, p. 2).
Becher utiliza imagens recorrentes de caráter paradisíaco para descrever a
natureza brasileira, mas utiliza adjetivos que não remetem necessariamente a um
imaginário paradisíaco. Como podemos perceber na transcrição que segue:

Nos Estados Unidos do Brasil,


Os cães selvagens passam ao longo dos rios
Vadiam ao longo dos rios amarelos de lama, marrons de excrementos,
Caçando impiedosamente em matilhas conspiradoras.

In den Vereinigten Staaten Brasiliens


Ziehen die wilden Hunde den Flüssen,
streunten den lehmgelben kotbraunen Flüssen
wildernd entlang in verschworenen Rudeln. (BECHER, 1962 apud
BOHUNOVSKY, 2008, p. 91)

Além dos verbos que dizem respeito aos cães, “vadiam” (“streunen”) e
“caçando” (“wildern”), são também os adjetivos que informam sobre a qualidade dos
rios, “amarelos de lama” (“lehmgelb”) e “marrons de excremento” (“kotbraun”) que não
combinam com descrições de uma paisagem supostamente edênica.
Bohunovksy (2008, p. 91) nos informa ainda, que nas imagens evocadas pela
poesia de Becher, a degradação nas cidades é certamente maior, mas o impacto negativo
da ação humana se faz sentir também nas áreas rurais. Ainda no mesmo poema, Becher
retrata mais detalhadamente também os outros moradores da selva brasileira. São
novamente os verbos e adjetivos que acompanham esses nomes que sugerem uma
sensação de ameaça, de uma harmonia enganadora e de lutas injustas entre
representantes da fauna brasileira com forças desiguais.

Muitos rios amarelos atravessam o país sem fim


Sempre quando vinha a chuva, eles levavam um amarelo de estrume.
Dentro deles boiavam hortênsias murchas e ratos bem mortos
e cadáveres de cães, cor de laranja.

Viele gelbe Flüsse durchwallen das Land ohne Ende.


Stets wenn der Regen kam, führten sie jauchiges Gelb.
Drin trieben welde Hortensien und maustoten Ratten
und orangenfarbene Hundekadaver.
(BECHER, 1962 apud BOHUNOVSKY, 2008, p. 92)

Essas imagens criadas por Becher sobre o Brasil estão longe de harmonizar com
as imagens criadas por Zweig. O Brasil apresentado por Zweig é, em primeiro lugar, um
país belo. Logo no início do livro, o autor afirma que, quando chegou ao Rio pela
primeira vez, ficou

[...] possuído por um torpor de beleza e de felicidade que excitava os


sentidos, crispava os nervos e dilatava o coração, ocupava o espírito, e quanto
mais se via nunca era o bastante. (ZWEIG, 2013, p. 14).

E o referido livro ele termina com a seguinte frase

Quem realmente é capaz de sentir o Brasil viu beleza suficiente para a


metade da vida. (ZWEIG, 2013, p. 250).

Zweig usa tons muito emotivos e positivos para descrever um país


aparentemente livre de preconceito raciais, segregação social e pleno de harmonia entre
homem e natureza. Para Becher nem a natureza nem os homens estão em plena
harmonia, e a natureza não oferece o conforto tão esperado e proclamado. No
“Romance da Morte do Beija-flor”, o eu lírico até associa a selva com a “loucura”, ou
seja, com a perda de memória, ou, talvez mesmo, com uma ameaça à própria saúde
mental. Podemos conferir no trecho que segue:
Como numa peneira, minha memória se foi.
Mariposas noturnas enormes sussurraram para mim: “Fique e se acomode!”
Mariposas diurnas enormes, azul como o céu, pó de ouro no meio,
Arrepelam um véu em frente do pulular e da espreita da selva,
Que me enrosca com flores ardentes de loucura.

Wie durch ein Sieb, so rann mir Erinnerung aus.


Riesennachtfalter beraunten mich: „Bleib und versäume!“
Riesentagfalter, himmelblau, Goldstaub die Mitte,
zupften mirr Schleier von Dschungels Wuchern und Lauern,
der mich umrankte mit flammenden Blumen des Wahns.
(BECHER, 1962 apud BOHUNOVSKY, 2008, p. 92)

No trecho em que descreve sua chegada ao Rio de Janeiro, Zweig repete três
vezes o termo “harmonia”, não podemos ignorar que isso escrito por alguém sem lar,
que ansiava por consolo e alento. Para ele não existia ressalva no país e nas relações
homem/natureza. Interessante notar como os dois autores divergem sobre o mesmo
objeto. O que para Becher é motivo de “loucura”, para Zweig é motivo de paz.

Tudo é harmonia, a cidade e o mar e o verde e as montanhas, tudo se mescla


sonoramente, nem mesmo os edifícios, os navios, os letreiros de néon
atrapalham, e essa harmonia se repete em acordes sempre variados: cidade é
diferente quando vista a partir dos morros, do mar, mas é sempre harmônica,
diversidade dissolvida em unidade sempre completa [...] Desde o momento
da chegada já sabemos que os olhos e os sentidos não se cansarão nessa
cidade única [...]. (ZWEIG, 2013, p. 158).

Em relação à população brasileira, Ulrich Becher focaliza sua atenção nos


pobres, nos negros, nos andarilhos e vagamundos, nos índios, nos moradores de favela,
que muito diferentes do negro que “sorri com seus dentes brilhantes e ainda ajuda o
estrangeiro a subir degraus do barro escorregadios” de Zweig que será citado adiante,
são vitimas da raiva, da fome e de muitas doenças, e cuja existência se assemelha com
as vidas de cães vira-latas. A paisagem urbana em geral é associada por Becher às
características de um lugar infernal cheio de miséria, um lugar decadente pela ação
humana – que, porém, estende essa decadência país afora. A seguinte passagem ilustra
bem essa afirmação:

No morro da Babilônia
vivem os pobres em casas de abelha.
Na verdade, uma colmeia abandonada,
na qual se aninhou um bulício não alado.
Olhem. Como um asilo de minhocas, apresenta-se
o morro babilônico para o observador nas profundezas
do colégio militar. Mas ao subir lá,
ele precisa pedir muitas desculpas
ao seu nariz
e admitir: mas aqui vivem seres humanos.

Auf dem Morro der Babylonier


hausen die Armen in Bienenwaben.
Wahr, als verlassener Bienenkorb,
drein sich unflügges Gewimmel genistet,
seht, als Würmerasyl präsentiert
sich der Babylonische Hügel
dem sinnierenden Betrachter in Tiefen
des Militärkollegiums. Doch klimmt
jener empor, muß er ach seine Nase
vielmals um Entschuldigung bitten
und sich gestehn: Hier wohnen ja Menschen.
(BECHER, 1962 apud BOHUNOSVKY, 2008, p. 95)

Nas “Notas sobre o Romanceiro”, Becher descreve a composição da população


brasileira apontando que a sua grande maioria seria composta de “pequenos camponeses
de pobreza inimaginável” e aborda assuntos como o grande analfabetismo, a malária, a
grande imortalidade infantil que, na época, chegava a 40%, ou mais, no Rio de Janeiro,
a sífilis, a peste, e a miséria. São esses os assuntos que predominam tanto nos seus
poemas quanto nas notas explicativas no final do livro.
Em contrapartida, o desejo de Stefan Zweig de ver harmonia manifesta-se não
apenas em passagens que tratam da natureza brasileira e do convívio entre homem e
natureza, mas também nas suas interpretações da convivência humana em geral. De
acordo com esse escritor, no Brasil, mais que em qualquer outro país do mundo,
concretizou-se uma harmonia racial, “uma convivência pacífica entre as pessoas apesar
da diversidade de raças, classes, cores, religiões e convicções” (ZWEIG 2006, p. 17). O
trecho a seguir, numa abordagem totalmente oposta a de Becher no canto “No morro da
Babilônia,” pode comprovar isso:

Às vezes quando, curioso, andava pelas favelas esses pitorescos casebres dos
negros que ficam nas encostas dos morros no meio da cidade como gaiolas de
pássaros, tive a consciência pesada e um mau pressentimento. Pois afinal eu
fora lá por curiosidade para ver o degrau mais primitivo da vida e observar
nos barracos de barro e de bambu, indefesos contra todo olhar, as pessoas em
sua condição mais primitiva e, com isso, indevidamente espiar para dentro de
suas casas e sua vida particular. No início, eu sempre esperava receber um
olhar raivoso ou um palavrão pelas costas, como um bairro proletário na
Europa. Mas, ao contrário, para essa gente de boa-fé o estrangeiro que se
perde naqueles cantos é um hospede bem-vindo e quase um amigo. O negro
que carrega água em baldes sorri com seus dentes brilhantes e ainda ajuda o
estrangeiro a subir os degraus de barro escorregadios. (ZWEIG, 2013 p. 131.)
Podemos perceber com clareza a tendência do autor de ocultar potenciais fontes
de conflito e restabelecer a sensação de harmonia. Num primeiro momento tendemos a
concordar com o autor, mas uma leitura mais atenta e um olhar mais criterioso nos ajuda
a enxergar exatamente o que ele pretende esconder. Ele evidencia pela imagem o que
tenta esconder pela linguagem. É clara a discrepância entre os versos “No morro da
Babilônia/ vivem os pobres em casas de abelha./ [...] uma colmeia abandonada,/ [...]
Como um asilo de minhocas [...]” e “[...] esses pitorescos casebres dos negros [...] que
ficam nas encostas dos morros no meio da cidade como gaiolas de pássaros [...] essa
gente de boa-fé [...]”. Tanto um quanto outro falam sobre as favelas e os pobres que a
habitam, no entanto cada um mostra aquilo que consegue ver. Ulrich Becher, apesar de
enfocar com frequência vários aspectos da miséria brasileira nos seus poemas, quando
se refere explicitamente ao problema racial , nas “Notas sobre o Romanceiro”, destaca
que aqui “não existem presunções ou preconceitos raciais”, o que “na história futura das
duas Américas” ainda se mostrará como “um grande ponto positivo do Brasil”
(BECHER, 1962 apud BOHUNOSVKY, 2008, p. 95, 96).
Zweig julga não haver preconceito racial ou diferença no tratamento entre
negros e brancos, ricos e pobres e se admira de ver que mansões e favelas convivem
lado a lado, que recebem o mesmo sol, a mesma luz e partilham o mesmo verde. No
entanto, até mesmo sua atitude diante da situação e das pessoas é em si preconceituosa e
segregadora. O fato de existirem favelas e de pretos serem pobres já em um sinal, claro
como o dia, de que existe sim preconceito e discriminação no Brasil. Mas talvez,
reconhecer isso, viesse a ferir a sensibilidade europeia de Zweig.
Ainda no que se refere a suposta harmonia e assimilação racial no Brasil
presente no livro de Zweig, é interessante citar o que diz Skidmore em seu livro O
Brasil visto de fora, que diz que, “desde a obtenção de sua independência em 1822, a
maioria da elite brasileira esforçara-se para esconder dos estrangeiros e de si própria a
“impureza” de sua história racial (SKIDMORE, 2001, p. 13). Mais adiante, no mesmo
trabalho, Skidmore afirma:

Além disso, o viajante estrangeiro, se perspicaz, inteligente e relativamente


esclarecido, podia frequentemente descrever o que via com mais
discernimento que a maior parte dos brasileiros educados. Contudo, esses
relatos de viagens nunca podem oferecer mais do que uma descrição
impressionista e mesmo a exatidão de seus fatos pode algumas vezes ser
posta em dúvida. (SKIDMORE, 2001, p. 21).
Percebe-se com clareza que a visão de Zweig estava contaminada por um
distanciamento cultural e por sua premente necessidade de fazer do país um paraíso,
recuperando assim um lugar de refúgio em substituição à pátria perdida.
Outro tema interessante é o carnaval. Becher e Zweig experimentaram o
carnaval do Rio de Janeiro e partilham suas impressões. Os dois autores conseguem
conferir à narrativa o mesmo tom positivo e encantado. Porém é o único momento em
que suas narrativas se encontram. Podemos conferir a seguir os relatos. Em seu ensaio
“Erinnerung an den cariokischen Karneval” Becher descreve assim o que viu:

Dias de fevereiro brasileiros: canícula, pleno verão quentíssimo. Todavia,


tinha que ver o carnaval carioca [...] Como Dana tinha passaporte alemão
[...], não podia viajar ao Rio [...] Algum hospede aqui do hotel deve ter lido
para essa Princesa Isabela Bahiana a “Maria Antonieta”, de Stefan Zweig!
Por isso, ela se vestiu como a malfadada rainha da França [...] Uma banda de
música de samba desceu de um morro com violas, flautins piccolo, maracás.
[...] todos [...] dançaram como se estivessem hipnotizados [...] no carnaval
cintilando ao calor. [...] Quando rompi por entre os foliões [...] até o molhe da
lagoa da Guanabara, imprevisivelmente distante, - os conveses dos barcos
vindos das ilhas balançavam por causa dos montes de sambistas. [...] Nessa
noite quente [...] passei pela Praça Onze, o centro de carnaval mais velho do
Rio, perto do Mangue. Lá, centenas de pessoas dormiam à espera de um novo
dia de carnaval. (BECHER, 1994 apud ECKL, 2011, p. 135).

Essas impressões não diferem muito das de Zweig. Na verdade, elas confirmam
em parte o que Zweig registrou sobre o carnaval no Rio de Janeiro:

[...] até parece que esse calor acumulado leva a uma explosão dos
impulsos que ocorre com regularidade no carnaval. Todo mundo sabe que o
carnaval no Rio não tem par no nosso mundo tão obscurecido pela tristeza
em termos de excesso de alegria e entusiasmo. [...] Todos vivem nas ruas,
dança-se e canta-se até tarde a noite, e tocam-se todos os tipos imagináveis de
instrumentos. Todas as diferenças sociais são abolidas, estranhos caminham
abraçados, todos falam com todos, [...] veem-se pessoas exaustas deitadas na
calçada sem que tivessem bebido uma só gota de álcool, [...] apesar da
liberdade de usar máscaras, não acontecem brutalidades ou inconveniências
em meio a uma multidão que dança infantilmente [...] é como aqueles
temporais de verão. Depois, volta o comportamento tranquilo [...]. (ZWEIG,
2013, p. 193,194)

Apesar de Becher e Zweig lançaram olhares diferentes sobre o Brasil, o


brasileiro e seus costumes, ambos concordam que o brasileiro é um povo afável, e
deixaram em suas obras impressões positivas quanto ao povo. Becher, no entanto, se
mostra menos ingênuo, ou encantado que Zweig.

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