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II: Literatura de exílio: Zweig escreve o que se pode chamar de literatura de exílio,
isto é, aquela literatura em língua alemã que foi produzida e/ou publicada no exterior,
inacessível quase sempre ao leitor de língua alemã. O termo exílio é compreendido aqui
na acepção de saída forçada por circunstância política. Por isso esses
autores/intelectuais não são considerados imigrantes, pois não teriam deixado seus
países se suas vidas não corressem algum risco.
As imagens
Dentre os escritores mais representativos, encontram-se, além de Stefan Zweig,
Ulrich Becher (Berlim 1910 – Suíça 1990), escritor e poeta alemão, naturalizado
austríaco, que morou no Brasil entre os anos de 1941 a 1944, e escreveu Brasilianischer
Romanzero e algumas peças de teatro: Samba e Der Herr kommt aus Bahia (KESTLER,
2003. p. 76-79), Otto Maria Carpeaux (Viena 1900 – Rio de Janeiro 1978), mudou-se
para o Brasil em 1939, em 1942 e 1943 publicou dois livros de ensaios A Cinza do
Purgatório e Origens e Fins. Apesar de não ser sua intenção inicial, Carpeux ficou no
Brasil até o fim de sua vida e tornou-se “um dos mais importantes críticos literários
brasileiros” (Kestler, 2003, p. 88). Paula Ludwig (Vorarlberg 1900 – Darmstadt 1974),
poeta, escritora e pintora austríaca, que viveu no Brasil entre os anos 1940 e 1953
(KESTLER, 2003, p. 124) e Leopold von Andrian-Werburg (Berlim 1875 – Suíça
1951), permaneceu no Brasil de 1940 a 1945. O autor de Der Garten der Erkenntnis (O
jardim do conhecimento, publicado em 1985), tinha afinidade com o movimento
monárquico austríaco e sua obra Österreich im Prisma der Idee. Katechismus der
Führenden, de 1937, foi imediatamente destruída e Andrian foi colocado na lista negra
da Gestapo (Kestler, 2003, p. 65). Depois de passar pela Suíça e pela França, Andrian
veio ao Brasil, onde já havia estado como enviado austríaco e, ainda segundo Kestler
(2003, p. 66), Andrian foi recebido solenemente pela Academia Brasileira de Letras e,
em sua estada aqui no Brasil, tinha contato com outros austríacos, entre eles Otto Maria
Carpeaux. Nem Paula Ludwig nem Leopold Werburg escreveram ou publicaram no
Brasil. As obras de Zweig, no entanto, vinham sendo traduzidas para o português e lidas
desde 1932.
Comparando as obras de Becher e Zweig, é possível perceber grandes
diferenças; a imagem do Brasil durante a Era Vargas, tecida por Zweig, tem pouco a ver
com o olhar que Becher lhe dedica. As obras de Becher, por exemplo, são as únicas, no
âmbito da literatura alemã de exílio, a usar elementos da cultura afro-brasileira para
criticar o comportamento do ditador alemão Adolf Hitler.
Independente da natureza da obra, os exilados de fala alemã no Brasil
consideram os brasileiros um povo muito afável. Segundo Eckl (2011, p. 134) os três
anos de exílio deixaram marcas na obra literária de Becher e ele próprio diz que “se
tivesse ficado no Brasil mais tempo, teria se estabilizado”.
Brasilianischer Romanzero, escrito quando ele ainda morava no Brasil, foi
lançada apenas quando ele estava de volta a Europa, é um poema narrativo, dividido em
cinco romances de diferentes extensões. A linguagem dos poemas é, em sua maior
parte, barroca e de estilo nervoso, desafia a ordem sintática do alemão e está carregada
de neologismos. Além disso, contém muitos empréstimos (vira-lata, pinga, morro,
Cantagallo etc) e traduções “literais” do português brasileiro para o alemão (Schwarzes
Gold [Ouro Preto], Richter-von-draußen [Juíz de Fora]), com respectivas explicações
didáticas nas “Notas sobre o Romanceiro”, no final do livro.
A peça Samba, de três atos, é situada no saguão do Hotel Duque de Caxias, em
Ibarahy-na-Serra, uma cidade “de médio porte” em Minas Gerais. Nesse hotel,
encontram-se hospedados vários europeus. Levando em consideração a caracterização
dos personagens, podemos concluir que a peça Samba é muito mais uma obra sobre
europeus fugitivos da guerra do que sobre o Brasil.
A peça Makumba, ambientada na cidadezinha mineira de Dois Corações, conta a
história de amor entre Eros, filha de Orestes (o bandido e macumbeiro local), e
Hannibal, rebelde e revolucionário da região. A relação de Eros e Hannibal é dificultada
pela inimizade entre os dois homens. Importante é ainda um desfile que está para
acontecer em Dois Corações, organizado pelo delegado em homenagem ao fim da
Segunda Guerra Mundial e no qual participam alguns protagonistas da peça. No
segundo ato, vê-se ainda a preparação de um culto de macumba no rancho de Orestes.
(BOHUNOVSKY, 2011, p. 4,5)
Stefan Zweig em seu famoso livro Brasil, um país do futuro apresenta um Brasil
exageradamente harmonioso e enaltece as potencialidades que enxerga no país – uma
abordagem totalmente contrária daquela que encontramos no Romanceiro brasileiro,
embora os dois escritores tenham vivido na mesma época e no mesmo país. Enquanto o
livro de Zweig continua sendo publicado e discutido no Brasil – vide aqui a nova
publicação da obra pela editora L&PM Pocket no ano de 2013, e o estudo sobre a
passagem do Zweig pelo Brasil, Morte no paraíso, de Alberto Dines de 2004 – Becher
continua praticamente desconhecido por aqui. Celeste Souza relaciona esse fato
diretamente à propagação de imagens menos utópicas e agradáveis do Brasil na obra de
Becher (SOUZA 2004, p. 238 apud BOHUNOVSKY, 2011, p. 2).
Becher utiliza imagens recorrentes de caráter paradisíaco para descrever a
natureza brasileira, mas utiliza adjetivos que não remetem necessariamente a um
imaginário paradisíaco. Como podemos perceber na transcrição que segue:
Além dos verbos que dizem respeito aos cães, “vadiam” (“streunen”) e
“caçando” (“wildern”), são também os adjetivos que informam sobre a qualidade dos
rios, “amarelos de lama” (“lehmgelb”) e “marrons de excremento” (“kotbraun”) que não
combinam com descrições de uma paisagem supostamente edênica.
Bohunovksy (2008, p. 91) nos informa ainda, que nas imagens evocadas pela
poesia de Becher, a degradação nas cidades é certamente maior, mas o impacto negativo
da ação humana se faz sentir também nas áreas rurais. Ainda no mesmo poema, Becher
retrata mais detalhadamente também os outros moradores da selva brasileira. São
novamente os verbos e adjetivos que acompanham esses nomes que sugerem uma
sensação de ameaça, de uma harmonia enganadora e de lutas injustas entre
representantes da fauna brasileira com forças desiguais.
Essas imagens criadas por Becher sobre o Brasil estão longe de harmonizar com
as imagens criadas por Zweig. O Brasil apresentado por Zweig é, em primeiro lugar, um
país belo. Logo no início do livro, o autor afirma que, quando chegou ao Rio pela
primeira vez, ficou
No trecho em que descreve sua chegada ao Rio de Janeiro, Zweig repete três
vezes o termo “harmonia”, não podemos ignorar que isso escrito por alguém sem lar,
que ansiava por consolo e alento. Para ele não existia ressalva no país e nas relações
homem/natureza. Interessante notar como os dois autores divergem sobre o mesmo
objeto. O que para Becher é motivo de “loucura”, para Zweig é motivo de paz.
No morro da Babilônia
vivem os pobres em casas de abelha.
Na verdade, uma colmeia abandonada,
na qual se aninhou um bulício não alado.
Olhem. Como um asilo de minhocas, apresenta-se
o morro babilônico para o observador nas profundezas
do colégio militar. Mas ao subir lá,
ele precisa pedir muitas desculpas
ao seu nariz
e admitir: mas aqui vivem seres humanos.
Às vezes quando, curioso, andava pelas favelas esses pitorescos casebres dos
negros que ficam nas encostas dos morros no meio da cidade como gaiolas de
pássaros, tive a consciência pesada e um mau pressentimento. Pois afinal eu
fora lá por curiosidade para ver o degrau mais primitivo da vida e observar
nos barracos de barro e de bambu, indefesos contra todo olhar, as pessoas em
sua condição mais primitiva e, com isso, indevidamente espiar para dentro de
suas casas e sua vida particular. No início, eu sempre esperava receber um
olhar raivoso ou um palavrão pelas costas, como um bairro proletário na
Europa. Mas, ao contrário, para essa gente de boa-fé o estrangeiro que se
perde naqueles cantos é um hospede bem-vindo e quase um amigo. O negro
que carrega água em baldes sorri com seus dentes brilhantes e ainda ajuda o
estrangeiro a subir os degraus de barro escorregadios. (ZWEIG, 2013 p. 131.)
Podemos perceber com clareza a tendência do autor de ocultar potenciais fontes
de conflito e restabelecer a sensação de harmonia. Num primeiro momento tendemos a
concordar com o autor, mas uma leitura mais atenta e um olhar mais criterioso nos ajuda
a enxergar exatamente o que ele pretende esconder. Ele evidencia pela imagem o que
tenta esconder pela linguagem. É clara a discrepância entre os versos “No morro da
Babilônia/ vivem os pobres em casas de abelha./ [...] uma colmeia abandonada,/ [...]
Como um asilo de minhocas [...]” e “[...] esses pitorescos casebres dos negros [...] que
ficam nas encostas dos morros no meio da cidade como gaiolas de pássaros [...] essa
gente de boa-fé [...]”. Tanto um quanto outro falam sobre as favelas e os pobres que a
habitam, no entanto cada um mostra aquilo que consegue ver. Ulrich Becher, apesar de
enfocar com frequência vários aspectos da miséria brasileira nos seus poemas, quando
se refere explicitamente ao problema racial , nas “Notas sobre o Romanceiro”, destaca
que aqui “não existem presunções ou preconceitos raciais”, o que “na história futura das
duas Américas” ainda se mostrará como “um grande ponto positivo do Brasil”
(BECHER, 1962 apud BOHUNOSVKY, 2008, p. 95, 96).
Zweig julga não haver preconceito racial ou diferença no tratamento entre
negros e brancos, ricos e pobres e se admira de ver que mansões e favelas convivem
lado a lado, que recebem o mesmo sol, a mesma luz e partilham o mesmo verde. No
entanto, até mesmo sua atitude diante da situação e das pessoas é em si preconceituosa e
segregadora. O fato de existirem favelas e de pretos serem pobres já em um sinal, claro
como o dia, de que existe sim preconceito e discriminação no Brasil. Mas talvez,
reconhecer isso, viesse a ferir a sensibilidade europeia de Zweig.
Ainda no que se refere a suposta harmonia e assimilação racial no Brasil
presente no livro de Zweig, é interessante citar o que diz Skidmore em seu livro O
Brasil visto de fora, que diz que, “desde a obtenção de sua independência em 1822, a
maioria da elite brasileira esforçara-se para esconder dos estrangeiros e de si própria a
“impureza” de sua história racial (SKIDMORE, 2001, p. 13). Mais adiante, no mesmo
trabalho, Skidmore afirma:
Essas impressões não diferem muito das de Zweig. Na verdade, elas confirmam
em parte o que Zweig registrou sobre o carnaval no Rio de Janeiro:
[...] até parece que esse calor acumulado leva a uma explosão dos
impulsos que ocorre com regularidade no carnaval. Todo mundo sabe que o
carnaval no Rio não tem par no nosso mundo tão obscurecido pela tristeza
em termos de excesso de alegria e entusiasmo. [...] Todos vivem nas ruas,
dança-se e canta-se até tarde a noite, e tocam-se todos os tipos imagináveis de
instrumentos. Todas as diferenças sociais são abolidas, estranhos caminham
abraçados, todos falam com todos, [...] veem-se pessoas exaustas deitadas na
calçada sem que tivessem bebido uma só gota de álcool, [...] apesar da
liberdade de usar máscaras, não acontecem brutalidades ou inconveniências
em meio a uma multidão que dança infantilmente [...] é como aqueles
temporais de verão. Depois, volta o comportamento tranquilo [...]. (ZWEIG,
2013, p. 193,194)