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Eu &

Por José de Souza Martins


Sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, professor da Cátedra Simón Bolívar da
Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall

José de Souza Martins: Desafios do novo


sebastianismo
A situação esquisita de que se tornou personagem sugere que é ele uma invenção,
uma construção
O bolsonarismo foi planejado como permanência do ausente, visibilidade do
invisível, morto que fala e acha que vai ressuscitar.
Em todo canto que se vá, seu fantasma está lá, com muitas caras, muitas vozes. Ele
mesmo, no entanto, é cada vez mais um ninguém
Ele é o todo de cada um que com ele se identifica, que nele vê o que julga ser.

24/02/2023 05h00 · Atualizado há 2 horas

Muito provavelmente, o restabelecimento da ordem após a catástrofe econômica e


política de quatro anos de incitação à baderna não é a única na importância e na
urgência. É preciso mais para superar o governo que desgovernou para criar um
vazio proposital, redesenhar o Estado e fragilizar a sociedade. A articulação golpista
de 2018 não foi feita apenas para ganhar uma eleição, mas para subjugar um país.

Falas presidenciais valorizaram a desordem. A bandeira do bolsonarismo não tinha


disfarce: era a de substituir valores, normas, direitos, concepções políticas e
conquistas sociais exatamente pelo seu contrário. O objetivo era evidente: implantar
o caos, transformar o país num caso de polícia, criar a necessidade de repressão
para enquadrar um inimigo fantasioso e fora de moda.
Analistas e comentaristas políticos experientes começam a chamar a atenção para o
fato de que Bolsonaro não tem competência para as tarefas intelectuais de
arquitetar as minúcias do que foi o desastre de seu governo e das pretensões do
bolsonarismo. Poderiam dizer que tudo se encaixa desde antes de sua posse e
durante todo o seu governo. Nenhuma bobagem, nenhuma tolice fora do lugar. Ao
mesmo tempo é o todo que está fora de lugar. Uma articulação de longa duração,
algo montado para transformar qualquer presidente que fosse o eleito em 2018 em
mandatário de curto mandato, mesmo o próprio Bolsonaro. Ele deu indicações de
consciência do descarte.
O bolsonarismo foi planejado como permanência do ausente, visibilidade do
invisível, morto que fala e acha que vai ressuscitar.

Em todo canto que se vá, seu fantasma está lá, com muitas caras, muitas vozes. Ele
mesmo, no entanto, é cada vez mais um ninguém. O que propõe a indagação: quem
é o verdadeiro Bolsonaro? Onde está ele? Quem o sustenta? Pode-se ver-lhe a
sombra nos mais estranhos e diferentes lugares.

A grande surpresa nesse processo foi a disponibilidade do enorme número de


cúmplices, civis e militares, de gente ansiosa por se armar e se tornar caçadora,
prontos para se tornar “patriotas”, sem levar em conta que patriota de verdade pega
no batente duro. Surgiu o patriota de fantasia, bandeira nacional transformada em
trapo para substituir blusa e cueca. Em Brasília, uma multidão sebastianista na
agonia da espera, fora e dentro do quartel.

A estratégia do bolsonarismo foi ampla, atacou em todas as frentes e todas


articuladas: Forças Armadas, igrejas e religiões, profissões, partidos, grupos
humanos residuais com traços claros e limítrofes de identidade marginal. Tudo que,
de diferentes modos, se situa no terreno complicado do que o sociólogo Everett
Stonequist definiu como “homem marginal”. Os casos mais extremos dessa
marginalidade são os dos seres humanos que não se encontram, julgando-se
permanentemente do lado oposto daquele em que gostariam de estar. São pessoas
que não são, seu lado mais perigoso. Todo o tempo passando para o lado de lá sem
sair do lá de cá. Querendo voltar sem ter atravessado a barreira da ida.
Essa situação sugere a necessidade urgente de dar à restauração da ordem a
dimensão severa de um projeto de reconstrução nacional e de despoluição
ideológica do país.

Os vencedores da guerra de 1939-1945 tiveram a lucidez de não repetir o erro de


1918. O programa de desnazificação decorrente da derrota da Alemanha abriu
espaço para uma redemocratização socialmente enraizada. Não deixou restos de
sementes no cisco da história.

Tudo que se sabe sobre Hitler é que ele não tinha competência para fazer o que fez
ou o que em seu nome fizeram. Já no governo, passava boa parte do tempo fechado
em seu quarto, levantava tarde e passava a maior parte do tempo conversando a
mesma conversa todos os dias. Hitler foi sendo inventado pelos cúmplices, pelos
bajuladores, pelos covardes, pelos oportunistas. Foi um ser imaginário, rodeado de
gente que nele via alguém que não existia de fato, mas que achava ser real.

A trajetória e o declínio de Bolsonaro já nos dias anteriores ao término do mandato


indica algo parecido. A situação esquisita de que se tornou personagem, de certo
modo, sugere que é ele uma invenção, uma construção. Ele é o todo de cada um que
com ele se identifica, que nele vê o que julga ser. O rápido esvaziamento do ex-
presidente o transformou num ser murcho, com perfil de ator à espera de um papel
enquanto o enredo flui.

Poderá ser grave engano considerá-lo de plantão à espera da próxima eleição


presidencial para eventual retorno ao poder. A personagem oculta maquinada nas
sombras, que ele personificou de 2019 a 2022, provavelmente encarnará em outra
figura que, com mais talento para o mal, dê continuidade ao desmonte da nação.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia


da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e
fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da
Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de
Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp,
2022).

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