Você está na página 1de 58

Sumário

coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
Wilson Gomes
Vladimir Safatle

entrevista Barbara Cassin

dossiê Hilda Hilst: um unicórnio na literatura brasileira


As faces espelhadas de Eros
Sob o signo da imaginação cênica
Uma prosa do tempo
Uma só múltipla matéria
O jardineiro da casa
A gestão de um legado
O que vem por aí
Traços de lirismo

livros
Investigação sobre a diferença
Restos de naufrágio

colaboraram nesta edição


coluna

Carta a homens brancos de esquerda


BIANCA SANTANA

Eu não quero ouvir vocês. Nenhum de vocês. Estou de luto. Está


doendo. Preciso de silêncio para dar espaço à dor e à raiva. Suas
análises, formulações, propostas não me interessam. Preciso ouvir a mim
mesma e a tantas outras mulheres negras cansadas de gritar.
Os tiros em Marielle Franco foram em todas nós. Eu sei que você
sente que foi em você também. Mas não me interessa o que você sente.
Não me interessa também saber que Marielle era uma negociadora e que
possivelmente ela te ouviria e acolheria. Abertura para o diálogo e
postura democrática não a protegeram das balas.
Pode ser que em algum momento eu queira te ouvir de novo. Espero
que não. Porque eu te ouço desde que existo. E sinto que poucas vezes
você parou para me ouvir. Você, com todas as boas intenções de um
homem de esquerda, sempre foi contrário ao machismo, ao racismo e
por isso mesmo assumiu para si o papel da revolução. Deixar isso para
mulheres, ainda mais para mulheres negras, seria um erro! Você, com
toda a inteligência iluminada e virilidade aguerrida que só um homem
branco tem, é obviamente quem pode mostrar os caminhos para a luta
política. Eu sei que você genuinamente acredita que o melhor para mim
é te seguir. Mas preciso revelar uma coisa: eu não acredito nem nunca
acreditei nisso. Mesmo quando balancei um sim com a cabeça, sorri ou
arregalei os olhos de admiração fazendo você se sentir fantástico.
Muitas vezes te deixei discursar sem interrupção ou discordância por
tática. Eu te dobrei algumas vezes desse jeito e até consegui seu apoio
fingindo seguir suas diretrizes. Mas cansei de fazer desse jeito. Pelo
menos por agora, essa tática não me serve mais. Porque posso me perder
no meu silêncio e acreditar eu mesma, ou dar a entender às minhas
iguais, que concordo, aceito ou estou deixando o espaço vazio para que
você ocupe. Definitivamente, não é isso.
Além do mais, estou engasgada. E a execução de Marielle, que nunca
vai ser digerida por mim, impede que qualquer outra coisa pare na minha
garganta. Eu não posso mais ficar quieta. Quando as balas silenciaram
Marielle, essa opção me foi arrancada. Vou falar. Vou gritar. Mesmo
que eu seja ouvida apenas por mim mesma. Porque eu sou muitas.
Sou mulher negra, 27% do Brasil. Sou mulher, 52% da população.
Sou eu quem cozinha, lava a roupa, limpa a privada, porque sou 92%
das empregadas domésticas e também gasto o dobro do tempo que você
nessas atividades. Em mais de 40% das casas, eu sou a chefe de família,
apesar de ganhar 23,6% menos do que você. Eu choro sem nenhuma
vergonha, cuido das minhas emoções e das suas. É do meu útero que
você e seus filhos nascem. Eu preciso me ouvir. Preciso ouvir quem
carrega as pessoas no ventre, nos braços e nas costas, apesar de todas as
condições adversas.
Ao contrário de você, eu tenho muito mais perguntas do que soluções.
Preciso formular melhor essas perguntas e direcioná-las de forma
adequada. Um exemplo: sou anticapitalista e anseio por uma vida que
não gere lucro para empresas e morte para as pessoas. Não sei como
fazer. Na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, a média de
rendimento das mulheres negras, em 2010, foi de R$ 403,65 por mês.
Essas mulheres mantêm a vida delas e a de seus filhos com relações e
trocas que extrapolam as capitalistas, porque é impossível viver em São
Paulo com esse valor. Essas mulheres eu quero e preciso ouvir, não
você.
Mas, por favor, não fique chateado. Você pode tentar conversar com
seus amigos. Talvez eles não te ouçam e aproveitem a oportunidade para
um monólogo, há uma limitação neles, mas você pode tentar. Também
posso te mandar umas flores ou te dar um chocolate ou postar nas redes
sociais alguma frase bonita sobre você. Se isso ajudar, faço de bom
grado, está bem? Me manda um e-mail bem curto, escrito “biscoito” no
assunto.
Com amor,
Bianca
P.S.: Em 13 maio de 2016, durante o I Seminário de Feminismo do
Iesp-Uerj, conheci Marielle Franco. Depois de minha participação
na mesa sobre produção e circulação do conhecimento, Marielle
levantou a mão e reforçou a importância de nós, mulheres negras,
ocuparmos aquele espaço e todos os outros. Ela disse que tinha
acabado de comprar a Revista CULT daquele mês, com a entrevista
que fiz com Eliane Dias, minha primeira contribuição aqui. “Ocupe
mesmo! E leve muitas pretas para as páginas da revista”, ela
convocou. De novo, e sempre: Marielle presente!
Vozes-mulheres
Vozes-mulheres
Conceição Evaristo
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
coluna

Psicopolítica do fascínio
MARCIA TIBURI

O sucesso das redes sociais no mundo atual se deve a sua “promessa de


felicidade”. Como meios de comunicação, de divulgação e difusão de
informação, elas propõem “conexão total”. Amigos, amores, prestígios,
encontros, revoluções são parte dessa oferta. E seria ótimo se fossem
apenas isso. Em última instância, as redes sociais prometem aquele
mesmo poder que jornalistas, escritores, estrelas de cinema, popstars e
outras “pessoas influentes” tinham no mundo analógico. Infelizmente,
uma outra e dupla função se esconde sob suas virtudes comunicacionais
e suas potências articuladoras tão louvadas entre nós.
As redes sociais podem parecer uma forma vazia a ser preenchida com
um determinado conteúdo, que seria escolhido pelo cidadão-usuário. A
verdade é que, desde que foi descoberto o funcionamento do
“algoritmo”, esse cálculo que permite saber o que cada um pesquisa,
compra, deseja e faz, o senso de liberdade nas redes vem sendo
questionado. Desde que todos sabem que estão mapeados pelas
empresas que comandam o terrirório da internet, a ideia de “livre-
arbítrio” vem se esfacelando.
Iludir e escravizar são funções do poder psicopolítico acobertadas nas
redes. Há quem não goste desse raciocínio, vendo nele apenas um
excesso crítico e pessimista. Apostam na liberdade humana, na
autonomia do usuário. Ora, se o usuário é sujeito ou objeto das redes – e
da internet como um todo –, é pergunta que só admite uma resposta
“dialética”: é as duas coisas ao mesmo tempo.
As redes se sustentam pelo trabalho voluntário de milhões de pessoas.
O fator “trabalho” no “uso” das redes sociais é ocultado. A acumulação
primitiva do capital na internet se dá como a exploração da mão de obra
como antigamente (e ainda hoje) acontecia com os donos das terras
explorando camponeses. Dizer que o ciberespaço é um latifúndio que se
torna produtivo pela exploração do cidadão ingênuo que entrega seu
tempo enquanto acredita que está apenas brincando não é exagero.
Trabalha-se de graça, enquanto é preciso acreditar que se está apenas
participando de um entretenimento, como se não houvesse esforço,
tempo gasto, desvio de outras atividades, lucro e mais-valia com esse
tipo de estrutura. O trabalho nos engana, pois parece apenas um
passatempo sem maiores consequências.
Muitos dos que analisam as consequências dessa ilusão pensam que se
trata de um vício, que o usuário é um adicto da internet, quando, na
verdade, ele foi capturado por escravizadores que usam um tipo de
mágica ou feitiço sobre as pessoas para convencê-las à ação sem que
elas pensem estar trabalhando e, assim, permitindo, sobre e contra seus
corpos e vidas, que sejam capturadas.
O trabalho invisibilizado não é mais apenas trabalho morto, mas
trabalho espectral, fantasma. Algo que existe e não existe ao mesmo
tempo. Podemos dar o nome de feitiço digital ao grande torpor gerado
no mundo a partir dessa inconsciência. Torpor ao qual os corpos já
haviam sido condenados pelo cinema e pela televisão. A fetichização é o
procedimento metodológico aplicado às consciências e corpos. Tudo,
rostos, palavras, corpos, imagens e estilos de vida são transformados em
mercadorias. Poucos não caem nas redes que, transformadas em
fascinódromos, administram todo tipo de ilusão narcísica.
A hipostasiação das próprias redes como lugares sagrados, nos quais
todos devem estar, serve para sacralizar o trabalho no “campo”
ciberespecial, quando ninguém mais percebe que se trata de propriedade
privada. Quem não se entregar a esse trabalho é um herege que
interrompe o funcionamento da instância ritual a ser garantida
diariamente. As redes sociais, nesse sentido, garantem o capitalismo
como religião, como falava Benjamin.
coluna

Gatos, lebres e fake news políticas


WILSON GOMES

No Brasil, aparentemente está todo mundo preocupado com a existência


e o uso político de fake news . E de forma tal que, como vimos no caso
da difamação após o assassinato de Marielle Franco, até as empresas de
jornalismo resolveram entrar em campo e mobilizar recursos para
desvendar o processo de fabricação e difusão de informações cujo
propósito era destruir a reputação da vereadora. Numa mobilização
singular, em poucos dias, três ou quatro das maiores redações do país
sucessivamente: capturaram nas redes sociais digitais e expuseram em
seus veículos as publicações que deram origem à disseminação de
informações falsas sobre Marielle; identificaram e desmascararam os
influenciadores que sustentaram e emprestaram ares de veracidade às
mentiras distribuídas em ambientes digitais, expondo e constrangendo,
por esse meio, autoridades públicas (desembargadora, delegado e
deputado) e ativistas envolvidos no assassinato de reputação;
remontaram a cadeia de distribuição das falsas notícias até chegar à sua
fonte – um site especializado em torcer e inventar fatos até que eles se
prestem como armas para desqualificar teses e interpretações da
esquerda – e o Goebbels digital que faz disso a sua atividade principal.
O jornalismo brasileiro vive uma crise intelectual e moral sem
precedentes. Em 2015, a grande imprensa brasileira entrou, quase como
se fosse uma competição entre os departamentos de jornalismo, em uma
espiral crescente de engajamento e parcialidade política de enrubescer
até os mais céticos e moderados. No caso do impeachment de Dilma
Rousseff, em algumas empresas mais que outras, tornou-se difícil
distinguir com nitidez o que era torcida e participação e o que era
cobertura jornalística, tantos foram os episódios em que o jornalismo foi
flagrado como militância.
E se ainda houve hesitações e divergência entre as redações, com
relação ao que fazer com o mandato de Dilma, deu-se ainda mais
convergência em outro fato, talvez ainda mais grávido de consequências:
a viabilização política das agendas da reforma trabalhista e da reforma
da Previdência. Os jornais trataram essas políticas públicas, levadas a
termo pelo governo Temer, como se o enquadramento adotado, as
premissas que as sustentavam e a previsão de consequências da sua
implementação fossem evidências absolutas, indiscutíveis, ante as quais
não cabia desafio ou a menor divergência. Uma atitude que combina
bem com a propaganda e muito mal com o jornalismo, mas que o
jornalismo de campanha que passamos a presenciar achou que não havia
mal algum em adotar.
Pergunte aos príncipes do jornalismo brasileiro e eles narrarão
orgulhosamente como o jornalismo brasileiro, independente e maduro,
colaborou com as instituições da política e do Estado para afastar uma
presidente que cometeu crime de responsabilidade e para livrar-se de um
partido envolvido em gigantesco esquema de corrupção. E como deram
todo o apoio possível para produzir uma opinião pública favorável para
que os políticos pudessem dotar o Brasil “das reformas de que o país
necessita”. Há paz e orgulho nas redações brasileiras, principalmente
porque com a mesma sanha com que o jornalismo asfixiou o
politicamente débil segundo mandato de Dilma Rousseff, lançou-se à
jugular do vibrante Michel Miguel Temer, quando o procurador Janot
demonstrou que a nova hegemonia política que emergiu do
impeachment era basicamente o clubinho de propinas da Odebrecht.
Baseado na crença no próprio sucesso, o jornalismo brasileiro exibirá
com orgulho o fato de, sem precedentes, em intervalo de apenas dois
anos, ter abatido uma presidente eleita, ter dado às instituições todos os
recursos para igualmente liquidar o presidente que a sucedeu, ter
apoiado as “reformas essenciais para o país”. E se falhou parcialmente
nas duas últimas tarefas, a culpa foi dos políticos, não do jornalismo que
se pratica por aqui.
Ante a constatação de que nunca se criticou tanto a parcialidade e a
superficialidade do jornalismo, veremos dois argumentos básicos de
defesa. Primeiro, a desqualificação dos críticos. Os jornalistas
importantes do país adotaram uma convicção intelectual que lhes impede
de considerar a plausibilidade de qualquer crítica ou divergência,
atribuindo a qualquer reparo, desaprovação ou discordância que recebam
a pecha de parcial, polarizada ou comprometida com posições no campo
político. Não foi o jornalismo que ficou parcial e levou à polarização
política; no discurso convenientemente adotado pelas estrelas da
redação, os críticos é que são parciais, intelectualmente comprometidos
e radicais. Escutá-los, para quê?
Em segundo lugar, adotou-se o uso de um extravagante argumento
segundo o qual, se todos estão insatisfeitos com o jornalismo, isso seria
um sinal de que o jornalismo há de ficar satisfeito consigo mesmo. Se
petistas e antipetistas me criticam diuturnamente, isso só pode significar
que estou fazendo um bom trabalho, dizem. Claro, não lhes ocorre que
podem estar conseguindo isto não por serem imparciais, mas por serem
parciais contra todo mundo, uma vez que duas parcialidades não formam
uma imparcialidade. Mas deveriam considerar esta possibilidade, pelo
menos como exercício lógico e espiritual.
Contrastando com a autoimagem e o discurso de autojustificação dos
jornalistas, há o fato de que este será o ciclo eleitoral de mais baixa
credibilidade do jornalismo desde a restauração da democracia. A
proliferação das fake news é uma gritante evidência desse fato. Sim, fake
news é um nome novo para velhas práticas de fabricação e distribuição
de boatos para fins políticos: destruição de reputações, indução ao medo
ou pânico diante do adversário ou de coisas que se alega que ele fez ou
fará, produção de fatos convenientes aos meus interesses etc. A
novidade nesse domínio consiste basicamente em duas coisas. Primeiro,
no fato de que são informações criadas para circular em ambientes
online e que são disseminadas basicamente em meios digitais. Nesse
sentido, conhecem os novos regimes de funcionamento da vida social
em ambientes digitais, as lógicas de distribuição e consumo de
informações em aplicativos de mídias sociais e de comunicação
instantânea, e as características da nova esfera de discussão e troca de
ideias políticas online. Em segundo lugar, elas precisam se parecer com
informações autênticas e por isso precisam se camuflar como “notícias”.
O jornalismo é hoje a referência básica de um sistema de autenticação de
narrativas factuais. Então a informação falsa precisa ser fabricada de tal
modo a parecer tratar-se de uma notícia.
A pergunta que todos deveriam fazer a esse ponto é: por que tem tanta
gente consumindo e distribuindo falsas informações políticas online? As
razões dos que as fabricam me parecem óbvias, mas por que tanta gente
consome e distribui, como se fossem notícias, informações de fontes
duvidosas ou que já se sabem parciais e politicamente comprometidas?
Não, por favor, não me venham com os argumentos tradicionais de que
as pessoas são estúpidas, sofreram lavagem cerebral da mídia ou são
todas monstros morais. Os consumidores e distribuidores de notícias
fabricadas são mais parecidos com vocês e comigo do que gostaríamos
de admitir.
Por que, então, comportam-se assim? Antes de tudo, é claro que as
pessoas não repassam essas informações de forma inocente, uma vez que
cada rede ideológica propaga basicamente as notícias que lhes são
convenientes, ou seja, que confirmam e reforçam os seus próprios
pontos de vista. Filtrando, por sua vez, as fake news do “outro lado”.
Mesmo sabendo, pressentindo ou suspeitando que o que compartilham é
tão fake e nada news , se o conteúdo confirma a minha fé, o ponho para
rodar na minha rede. Eventualmente acrescentando uma falsa
neutralidade – “estou apenas repassando” – ou um empolgado senso de
urgência e de mobilização “repassem antes que apaguem, a mídia
brasileira não deu, se cada um repassar 10 vezes logo alcançaremos 200
milhões”.
Uma hipótese provável para explicar por que esta gigantesca máquina
de engano e autoengano digital se move tão intensamente em nossos dias
é a perda da capacidade de distinção do que é o produto do jornalismo.
A percepção pública dominante é que se você der tons factuais a
qualquer narrativa, perde-se a capacidade de se distinguir entre uma
notícia autêntica e uma notícia fabricada. Mas como, perguntam os
jornalistas, se aquela “notícia” parece tão parcial, tão comprometida com
um ponto de vista, tão inclinada para um dos lados? Ora, será que não é
exatamente assim que a notícia, o produto por excelência do jornalismo,
aparece aos olhos dos leigos? Li recentemente que entre as notícias mais
replicadas no último ciclo eleitoral nos Estados Unidos uma boa parte
era fake news . Como é possível que as pessoas prefiram consumir
notícias fabricadas a notícias autênticas, indagam novamente os
jornalistas? Ora, meus amigos, o que acontece é que, infelizmente, do
jornalismo se espera qualquer coisa, mesmo a mais embaraçosa
parcialidade.
Mas ninguém compra sistematicamente gato por lebre, a não ser
quando não se têm mais sinais seguros e inequívocos que permitam
distinguir os dois bichos. O jornalismo deveria pensar um pouco sobre
isso. No afã de abraçar causas acima do seu compromisso deontológico
com imparcialidade e objetividade, na afobação por interferir na política
a ponto de produzir com urgência as mudanças que se creem
necessárias, o jornalismo acaba se sabotando de uma maneira
inesperada: o público está perdendo a capacidade de distinguir entre
notícias autênticas e fabricadas. Não é à toa que, de repente, o
jornalismo parece estar se esforçando muito para desmascarar o processo
de fabricação de informações falsas e os atores nele envolvidos. Parece
compromisso com a opinião pública, talvez até o seja. Mas é antes de
tudo autopreservação.
coluna

Criar o poder popular


VLADIMIR SAFATLE

Se aceitarmos que o Brasil vive o término do ciclo histórico da Nova


República, teremos que admitir que um dos principais sintomas de tal
esgotamento é o fim de toda possibilidade de governo. O Brasil é hoje
um país ingovernável. Enganam-se aqueles que veem tal impossibilidade
de governo como resultado de falhas institucionais sanáveis através de
um conjunto pontual de reformas políticas que afetariam,
principalmente, os processos eleitorais. Não, o Brasil não precisa de uma
“reforma política”, mas de uma refundação institucional.
A Nova República nasceu de um sistema de pactos e paralisias que
não existe mais. Ela foi a forma maior de uma era de acordos e
conciliações que perpassaram nossos últimos trinta anos. Nesse sentido,
nosso dito presidencialismo de coalização não foi uma distorção
institucional própria a uma democracia parlamentar incipiente. Ele foi a
expressão mais bem acabada de uma necessidade de fato, a saber, a
necessidade de submeter todo ímpeto político de transformação às
amarras de um sistema de alianças que visava moderar e limitar,
paralisar e travar.
Assumir que o Brasil saiu do horizonte histórico da Nova República
implica compreender a natureza das tarefas políticas que se colocam
atualmente para nós. Se não é possível mais governar o Brasil, então há
de se aproveitar o momento e insistir na necessidade de superar uma
noção de governo baseada na representação, na constituição de corpos
técnicos do Estado e em um sistema de balança entre três poderes.
É fato que tal chamado à superação pode parecer estranho para alguns.
Pois representação, tecnocracia e check and balance parece
completamente natural e expressão imediata de um comprometimento
com a democracia. Alguns poderiam inclusive falar que o Brasil não
deveria tentar abandonar uma democracia parlamentar que nunca
funcionou de forma condizente em suas terras, mas deveria enfim
procurar efetivamente implementá-la.
No entanto, notemos a oportunidade histórica que se desenha. O
Brasil entra em esgotamento institucional exatamente no momento em
que a democracia parlamentar começa a ser questionada em várias partes
do mundo por sua fragilidade diante da luta contra processos de
espoliação econômica e de controle da força do poder do sistema
financeiro mundial. Não por outra razão, a política mundial atual precisa
lidar com a recrudescência de demandas anti-institucionais.
Alguns podem ver isso como uma regressão social vinculada ao
retorno de formas de “populismo”. No entanto, tais demandas anti-
institucionais, bastante presentes na realidade brasileira atual, podem se
tornar o germe de formas renovadas de radicalização democrática. Não
deixa de ser sintomático neste sentido que, quando colocamos tal
possibilidade na mesa, aparece normalmente uma forma de demissão
intelectual singular expressa na recusa tácita em pensar as modalidades
possíveis de tal radicalização. Como se a imaginação política não
quisesse ir em direção à procura por experiência e exemplos que nos
mostrariam o caminho para uma reinstauração institucional do poder
político nacional.
Por exemplo, sabemos que uma forma de dar apenas a aparência de
aprofundamento democrático é a proliferação de conselhos setoriais com
função meramente consultiva. Vimos tal política ser implementada
principalmente nos dois governos Lula sem que ela se traduzisse em
mudança efetiva nas dinâmicas do poder. Pois mais do que reduzir a
força da deliberação popular à condição de aparato consultivo, trata-se
de permitir ao poder popular exercer-se em sua capacidade de veto,
deliberação e gestão. Lembremos a esse respeito como a constituição
islandesa previa que a manifestação de 10% dos eleitores poderia
obrigar que toda lei aprovada pelo Parlamento fosse suspensa e objeto de
referendo popular. Ou seja, a população poderia obrigar o Parlamento a
referendar suas leis através de plebiscito. O que significa uma forma
astuta de impedir que os “representantes do povo” decidam contra seus
próprios “representados”. Nós poderíamos utilizar tal princípio e tirar do
Congresso a atribuição de emendar e modificar a Constituição, exigindo
que toda reforma da Constituição só tenha validade se aprovada em
referendo.
Por outro lado, cabe a um processo de radicalização democrático
procurar fornecer à deliberação popular o poder imediato de gestão,
tirando o monopólio de tal poder das mãos do corpo gerencial do Estado.
Isso nos levaria a defender que o Estado deve decidir suas políticas
públicas a partir das decisões tomadas por conselhos populares setoriais
e por conselhos populares locais. Tais conselhos teriam como função
maior livrar o Estado da tecnocracia e do poder dos lobbies,
submetendo-o ao reconhecimento da inteligência prática das classes
trabalhadoras.
Pois um dos elementos fundamentais do poder de Estado é a
desqualificação contínua do que poderíamos chamar de “inteligência
prática” daqueles envolvidos diretamente no processo de trabalho. Por
exemplo, em uma democracia radical, a política federal de educação
seria de decisão do Conselho Setorial de Professores. O governo federal
apresentaria ao Conselho uma proposta que poderá ser homologada ou
modificada pelo Conselho que, por sua vez, será composto de todos os
professores vinculados ao ensino público. Assim, o corpo gerencial do
Estado fica submetido ao poder daqueles que trabalham efetivamente
com o processo educacional em seu dia a dia.
Da mesma forma, a política federal de saúde passaria a ser de decisão
do Conselho Setorial de Profissionais da Saúde. Um conselho formado
por todos os profissionais da saúde vinculados ao serviço público,
funcionando nos moldes de Conselho Setorial de Professores. Em todas
essas experiências, o Estado deixa de ser uma instância decisória para se
transformar em uma instância de reconhecimento de processos de
deliberação que se dão em seu exterior sem, no entanto, ser
simplesmente a expressão de interesses de mercado.
Nesse momento de questionamento acirrado dos limites da
democracia brasileira, cabe àqueles comprometidos com o horizonte de
transformação social aceitar o desafio concreto de criar o quadro
institucional capaz de dar presença efetiva ao poder popular.
entrevista Barbara Cassin
Lacan e a sofística grega
CLÁUDIO OLIVEIRA

A entrevista a seguir foi feita no dia 8 de novembro de 2017, numa


manhã fria de outono, na casa da filósofa francesa, na Rue Mouffetard,
em Paris. Foi nosso último encontro no período de um ano em que estive
sob sua supervisão, fazendo um pós-doutorado na França. Conheço
pessoalmente Barbara Cassin desde 1990, quando eu era ainda um aluno
de graduação em filosofia e ela veio ao Brasil dar um curso de uma
semana na Uerj e lançar Ensaios sofísticos .
A relação de Barbara Cassin com o Brasil é antiga e longa – foram
inúmeras vindas para lançar outros livros e dar outros cursos.
Pesquisadora do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS)
francês, ela nunca foi propriamente uma professora e só veio a orientar
algumas poucas teses de doutorado e pesquisas de pós-doutorado
tardiamente, através de convênios entre o CNRS e algumas instituições
universitárias francesas como o Centro Leon Robin, na Sorbonne e,
atualmente, no Labex TransferS, que reúne, além do CNRS, a École
Normale Supérieure e o Collège de France.
Traduzi para o português uma versão do seu primeiro livro, Se
Parmênides (Autêntica, 2015), e fiz a revisão da tradução de Jacques, o
sofista , que acaba de ser publicado pela mesma editora. Por ocasião dos
encontros que tivemos para tentar resolver os problemas quase
insolúveis de tradução de determinadas passagens, surgiu a ideia da
entrevista. Nela, Barbara Cassin narra não apenas seu encontro com
Lacan, na década de 1970, mas também seus encontros com Heidegger e
René Char, em Le Thor, no final dos anos 1960. Apesar de Heidegger e
Lacan terem sido autores que a marcaram profundamente, ela insiste que
o encontro mais fundamental foi com René Char, o grande poeta francês.
Os encontros com Heidegger e Lacan são, no entanto, mais visíveis na
sua obra, e talvez possamos afirmar que eles aconteceram em direções
contrárias: enquanto Heidegger funcionou como uma referência negativa
(como era possível falar dos gregos de outro modo, depois da poderosa
interpretação heideggeriana sobre eles?), Lacan é um autor do qual
Barbara Cassin foi se aproximando de modo cada vez mais intenso, até
surgir para ela a necessidade de escrever Jacques, o sofista (que foi
publicado na França em 2012). Mas já em Ensaios sofísticos , em 1990,
o leitor brasileiro podia ler “Ainda Helena, uma sofística do gozo”, um
artigo publicado na revista francesa Littoral em 1985, em que a autora
buscava demonstrar que, em Mais, ainda , seu Seminário XX, “Lacan se
explica por meio da filosofia, especialmente Parmênides e Aristóteles, e
esboça para a psicanálise, exatamente face à filosofia, um lugar análogo
ao que ocupa a sofística, um estatuto de discurso igualmente heterodoxo:
ele fala, poder-se-ia dizer, como sofista”. Da sofística à psicanálise,
afirma a autora, a semelhança exterior é por demais impressionante. O
psicanalista e o sofista não são filósofos, mas não podem desenvolver
seus discursos sem certa referência à filosofia que, por sua vez, também
não existe sem uma referência à sofística, no mundo antigo, e à
psicanálise, no mundo contemporâneo.
Há dois encontros que são muito importantes para você: com
Heidegger no seminário de Thor, em 1969, e com Lacan, por volta
de 1975. Ambos foram encontros pessoais, em carne e osso...
Barbara Cassin Na verdade, o encontro mais importante para mim foi
com René Char.
Você o encontrou em Thor também?
Sim. E foi determinante na minha vida, porque me permitiu não ficar
presa nem a Heidegger nem a Lacan. É graças a esse encontro que
consigo tomar distância e acreditar em minha liberdade. Que liberdade?
A de poeta.
Era a primeira vez que você o encontrava?
Em 1969 fui ao seminário de Thor convidada por François Fédier. Foi lá
que encontrei René Char. Eu era a única garota no meio daquela
assembleia de rapazes e lembro-me de ter chegado um pouco mais tarde
à casa dele (onde todos estavam instalados), sozinha. Todo mundo
estava sentado. Char se levantou e me disse: “Senhorita”, com um
instinto seguro... E acrescentou: “escolherá seu assento.” Depois voltei à
casa de Char e tivemos uma longuíssima história. No momento em que
eu estava indo embora, ele veio correndo como um louco e me deteve no
portão dizendo: “Espere, uns trocados para o pedágio.” Ele me deu
trocados para o pedágio! Isso ficou na minha memória. Foi esse o
encontro determinante, realmente. Heidegger era muito interessante,
apaixonante, mas era sempre um pouco repugnante. O que era
repugnante não era ele, que eu nem conhecia àquela época, era a
adoração de que ele era objeto. Eu me perguntava o que estava fazendo
ali. E chegaram a cuspir em mim uma vez no correio. Eu estava na fila e
disse meu nome para o funcionário. Nesse instante, o sujeito que estava
atrás de mim falou: “Você se chama Cassin, um nome judaico, e se senta
com aquele nazista?! Eu a vi tomando café da manhã com aquele
nazista!” E cuspiu em mim. Isso tudo para lhe dizer que o encontro
determinante foi com Char e não com Heidegger.
Entendo, porque era seu lado poeta.
Sim, Char me disse: você é poeta, vá fundo. É verdade que depois fiz
filosofia, mas me lembro de que dei a Char minha tese sobre Leibniz e
Arnaud porque era a única coisa que eu tinha. Sabe como é, o prazer de
dar e de receber. E ele me respondeu – sua resposta foi genial – que
aquilo era um pedaço de liberdade que eu estava lhe dando. E era
verdade.
Eu estava falando de Heidegger e de Lacan porque foram dois
encontros marcantes, mas também para apontar uma diferença: de
Heidegger você foi se afastando paulatinamente, enquanto, em
relação a Lacan, embora você o tenha encontrado bastante cedo,
levou um bom tempo para chegar a Jacques, o sofista. E, no final,
você o chamou de sofista, “Jacques, o sofista”, o que você nunca
poderia ter escrito acerca de Heidegger.
Não, a menos que fosse no sentido platônico! Esse canalha desse sofista
que ficou na moita por tanto tempo e que pediu que os “cadernos
negros” fossem publicados, coisa que não dá para compreender. Seria
realmente necessário refletir a esse respeito: por que ele pediu isso? Por
que ele não ficou escondido até o final? Mas, pensando bem, é
compreensível. É compreensível se ele fez isso por pensar que o
nazismo triunfou e que isso deve ser sabido – o que não é impossível –
ou se foi por querer que se saiba toda a verdade sobre sua maneira de
pensar. Aliás, talvez as duas coisas estejam ligadas.
Quando encontrou Lacan em 1975 você nunca tinha frequentado os
seminários dele?
Sim, eu já tinha ido ouvi-lo, sim.
Antes desse encontro, então?
Sim. Eu fui ouvir alguns dos seus seminários, principalmente na época
em que eram na École Normale Supérieure. Lembro que o jeito dele de
aumentar e diminuir o volume da voz me fazia pensar no jeito da atriz
Delphine Seyrig.
Então foi no início dos anos 1960?
Deve ter sido, acho que assisti aos últimos seminários dele na École
Normale Supérieure, quando eu ainda estava no curso preparatório para
os estudos literários.
Você ficou surpresa com o convite de Lacan?
Depois de defender minha tese de doutorado, que se transformou no
livro Se Parmênides, trabalhei para ganhar a vida, aliás muito
precariamente, como pedagoga de adolescentes psicóticos no
ambulatório Etienne Marcel. Nessa época, eu tinha vários amigos e
alguns amantes psicanalistas que deviam falar de mim para ele, talvez no
divã. Eu também fazia seminários com eles, para ganhar um pouco de
dinheiro – às vezes eles pagavam –, sobre a doxografia e sobre Hesíodo.
Achava que eles tinham que conhecer Hesíodo, que era ridículo falarem
de Édipo sem terem lido a Teogonia . Também li Parmênides com eles,
porque eu achava que não era possível compreender Platão sem ter lido
o próprio Poema de Parmênides. Fazia esses seminários em minha casa,
às vezes para um único aluno, às vezes para vários. Com esses
seminários e meu trabalho no ambulatório me pareceu normal que Lacan
ouvisse falar de mim.
“O psicanalista é a presença do sofista em nossa época.” Essa frase é
de um seminário de Lacan anterior ao seu encontro com ele. Ao
mesmo tempo, ele declarou em sua intervenção no Congresso de
Roma, em 1974: “Eu queimei as pestanas lendo o Sofista durante
essas pseudoférias. Devo ser sofista demais, provavelmente, para
que isso me interesse. Deve haver ali alguma coisa a que permaneço
tapado. Não aprecio, faltam-nos coisas para apreciar, falta-nos
saber o que era o sofista naquela época, falta-nos o peso da coisa.”
Isso foi antes de encontrar você.
Sim, acho que sim. Mas, quando me encontrou, ele não me falou de
sofística, me falou da doxografia.
Ele sabia que você trabalhava com a sofística?
Sim, acho que ele sabia que eu trabalhava pelo menos com os sofistas,
mas talvez já estivesse meio gagá. Eu trabalhava com Górgias, com
Górgias leitor de Parmênides, e com Platão e Aristóteles leitores de
Górgias.
O fato de que o autor contemporâneo a quem você atribuiu o epíteto
de “sofista” seja Lacan é importante. Alguma coisa do trabalho dele
produziu uma diferença no seu trabalho.
Lembro-me da paixão que senti quando li o seminário Encore [Mais,
ainda ]. Estava de férias aonde costumava ir com meus pais, na casa de
uma amiga em Kerfalher, no departamento de Morbihan, na Bretanha.
Lembro-me de ficar ansiosa para o almoço acabar logo e eu poder voltar
a ler o texto num ninhozinho que tinha preparado para mim em frente ao
mar. Lia rápido para saber o que vinha na sequência. Como se fosse um
romance policial. Foi a primeira vez que senti isso com um texto de
Lacan. Eu ainda não o havia encontrado pessoalmente, mas tinha
enviado para ele um livrinho, Initiation à l’explication de texte , que eu
mesma tinha escrito e imprimido numa prensa manual. Era um poema
comentando duas frases minhas, mas que pareciam do René Char, com
notas que eram elas próprias outros curtos poemas, às vezes escritos
duas vezes, uma em verso, outra em prosa. E o livrinho começava com
“maculaturas”, as folhas que a gente passa para limpar a máquina e tirar
o excesso de tinta, das quais o texto emergia cada vez mais legível. Eu o
enviei a duas pessoas: Derrida e Lacan. Lacan me respondeu três dias
depois: “Gosto muito das primeiras páginas”... Eu ainda não o conhecia
pessoalmente.
O que é mais importante para você: Lacan ou a psicanálise? Ou os
dois?
Acho que Freud é genial, mas é, digamos, mais normal. Enquanto em
Lacan não compreendo nada, portanto me interessa. Freud a gente
parece compreender, mas é sempre um prazer reler e perceber que a
gente não compreendeu – realmente, inteiramente. Lacan (e, naquela
época, os lacanianos) me surpreendia. Freud já fazia parte do
patrimônio, Lacan não.
A psicanálise tem uma relação com a filosofia, que tem uma relação
com a sofística, mas, ao mesmo tempo, o psicanalista não é um
filósofo...
Sim, ele está dentro e fora.
Isso despertou seu interesse desde o início?
O que me apaixonou desde o início foi trabalhar com os psicóticos. Era
apaixonante ver como eles falavam e como eu podia falar com eles, e o
que a linguagem era ali... O que era a palavra, a fala? O que era a
performance e como se podia trabalhar sobre aquilo? O que conto a
respeito do Crátilo no epílogo de Jacques, o sofista foi mesmo algo
muito importante. A morte dessa criança foi algo muito importante. O
fato de fazer com eles um jornal que a gente imprimia numa prensa
manual, que a gente ia mostrar ou vender para as putas da rua Etienne
Marcel, era fantástico. Aconteciam coisas incontroláveis. No fundo, o
que sempre me agradou foi isso, fazer coisas que a gente não sabe onde
vão dar. A gente sabe que pode fazê-las pequenas, estreitas, interrompê-
las, mas a gente não sabe até onde vão se a gente as deixa ir. E é a
mesma coisa no amor: a gente sempre pode parar, a gente sempre pode
fechar e organizar isso num todo bem normatizado, e então isso não vai
ultrapassar. O que é interessante é quando a gente deixa as coisas
ultrapassarem.
No livro, você escreve que seu encontro com Lacan se deu “por volta
de 1975”.
Porque devo ter falado muito disso com a Françoise Gorog, e ela me
disse que ele estava começando a ficar gagá por volta de 1976. Ela
estava em análise com ele e disse que se deu conta de que ele estava
gagá por volta de 1976. No final, ele estava gagá. Estava com os nós
borromeanos, remexendo em tudo isso, sentado à escrivaninha, e quando
se virou pra mim e disse: “Você é Stéphanie Gillot, não é mesmo?”,
estava gagá. O suficiente para estar meio desnorteado. Foi a partir de
tudo isso que eu disse “por volta de 1975”. Mas deve ter sido um pouco
depois.
Mas nos encontros no consultório dele você sentia isso?
Não, porque ele ficava de costas para mim. No começo, eu preparava as
sessões como uma louca. Levava textos para explicar a ele o que era a
doxografia, preparava um curso muito particular. E aí ele me dava as
costas.
E você continuava a falar?
Pelo menos tentava. E teve a vez em que ele se virou para mim e disse:
“Vá ver a Gloria”. Era a secretária dele. Então eu respondi: “Ah, quer
dizer que você vai me pagar?” Não sei como isso saiu. Porque eu tinha a
impressão de que ele queria dizer “Você vai pagar para ela”, e isso me
escandalizou. Aí ele respondeu: “Você é a Stéphanie Gillot, não é
mesmo?” E eu pensei: fechou. O círculo se fechou, a cobra mordeu o
rabo. A gente se encontrava duas vezes por mês. O círculo se fechou
porque eu tinha me enganado quanto à sua identidade quando ele me
telefonou, no início, e ele tinha gozado disso; agora era ele que tinha se
enganado quanto à minha identidade, e eu podia fazer o que queria: ir
embora.
É estranho que ele lhe desse as costas, porque normalmente é o
analisando que fica de costas para o analista e não o contrário.
Sim. Essas são minhas últimas imagens dele. Talvez não tenha sido
assim o tempo todo. Mas o que eu guardo na retina são aquelas costas se
remexendo. Em nós. E quando ele se vira, a pergunta: “Você é Stéphanie
Gillot, não é mesmo?”
Tradução Fernando Scheibe
dossiê Hilda Hilst: um unicórnio na literatura brasileira
As faces espelhadas de Eros
ELIANE ROBERT MORAES

Lançado em 1990, O caderno rosa de Lori Lamby foi considerado, no


calor da hora, um livro de virada radical na literatura de Hilda Hilst.
Afinal, como compreender a inesperada criação da escritora, que narrava
as escandalosas memórias sexuais de uma menininha de oito anos de
idade sem o menor pudor e sem reserva no emprego de palavras
obscenas?
Não foram poucos os leitores, amigos e críticos a declarar
perplexidade diante da “nova fase” da autora que, após quatro décadas
dedicadas a uma obra “séria”, passava a praticar, de forma ostensiva, o
que parecia ser o mais deslavado gênero pornográfico. Ela, por sua vez,
reagiu a tal desconfiança ora com declarações irônicas, no mais das
vezes justificando a opção pela falta de dinheiro, ora com discursos
cifrados, que demandavam interpretação. Um destes está na contracapa
de Amavisse , livro de poemas publicado na época, em que ela anunciava
aos leitores o controverso título, pedindo que lhe poupassem “o
desperdício de explicar o ato de brincar”. “A dádiva de antes (a obra)
excedeu-se no luxo./ O caderno rosa é apenas resíduos de um Potlatch ./
E hoje, repetindo Bataille:/ ‘Sinto-me livre para fracassar’”.
Acolher a possibilidade do fracasso se apresentava, portanto, como
condição do exercício da liberdade. De fato, o que estava em jogo para
Hilda naquela virada de década, que também prenunciava uma virada de
século, era seu desejo de explorar outras formas do dizer literário, de
excursionar por regiões não devassadas por seu gênio criador, de se
arriscar em projetos textuais ainda mais ousados. Em outras palavras,
fracassar significava transgredir, moto perpetuo de Georges Bataille que,
não por acaso, a escritora parecia eleger como anjo inspirador de sua
entrada no continente da escrita licenciosa.
A bem da verdade, não era a primeira vez que Hilda Hilst se
aventurava por outras searas literárias. Como se sabe, durante quase
vinte anos – isto é, desde a publicação de Presságio , em 1950 – sua arte
poética se voltou para formas puras e sublimadas. Valendo-se de uma
dicção elevada, marcada pela celebração do poder encantatório da
poesia, a autora cultivou uma lírica que se alimentava de modelos
idealizados, cujo tema privilegiado era o amor, fosse humano ou divino.
Uma primeira reviravolta na orientação de sua obra veio a ocorrer no
fim da década de 1960, quando ela escreveu oito peças de teatro que
exploravam não só um novo gênero, mas também uma nova matéria de
ficção. Sua dramaturgia, em paralelo à que se praticava na época,
abraçou o tom alegorizante, elegendo a opressão institucional como
tema de base que lhe permitia denunciar o autoritarismo do Estado, da
Igreja, da Escola e de outras instituições marcadas pelo jugo repressor .
Esse livro representou um novo divisor de águas na criação hilstiana,
introduzindo a prosa de uma escritora que até então só havia se dedicado
à poesia, além da breve incursão pelo teatro. Todavia, o fato de revelar a
mão da poeta em outro gênero foi menos relevante do que o
aparecimento de uma nova matéria literária que, nascida com a prosa,
iria daí em diante contaminar em definitivo a sua verve poética. Não por
acaso, foi nesse mesmo momento que ela inaugurou uma vigorosa linha
de força no interior de sua escrita, já decisivamente atenta aos domínios
de Eros.
Interessa aqui observar que, vinte anos antes de publicar O caderno
rosa de Lori Lamby , Hilda já penetrava com segurança nesses domínios,
iniciando uma exploração do erotismo sem precedentes nas letras
brasileiras, que a ocuparia até o fim da vida. Daí para a frente, sua
literatura vai revelar notável coerência, confirmada quando se lança um
olhar menos viciado à vasta produção que se segue a partir da década de
1970. Os livros “sérios”, não raro considerados “herméticos”, se revelam
então inesgotáveis fontes de reflexão sobre a matéria sensível, carnal e
sexual.
Dão exemplo os romances anteriores à safra dita pornográfica, como
A obscena senhora D que, desde o título, supõe uma atenção particular
ao corpo libidinoso. Publicado em 1982, o texto já ensaia um
procedimento típico da autora, fazendo tabula rasa de todos os discursos
para combinar inquietações metafísicas com prazeres escatológicos,
dúvidas teológicas com revelações eróticas, problemas da alma com
questões do sexo, expondo os pontos de toque entre o pensamento e as
demandas carnais. Procedimento que ganha acabamento lapidar na
trilogia obscena, e que pode ser sintetizado na interrogação que o
personagem de Contos d’escárnio – Textos grotescos vai colocar para a
amante, ao apreciar seus quadros obscenos: “É metafísica ou putaria das
grossas?”
Pergunta ardilosa que, ao aproximar um termo filosófico de uma
expressão das mais chulas, já evidencia a associação entre a metafísica e
a “putaria das grossas” que vai marcar a produção literária de Hilst a
partir de Fluxo-Floema . Por certo, reside aí a grande novidade
inaugurada por sua prosa, que se dispõe a realizar uma inesperada
incursão pelos domínios mais baixos da experiência humana. Assim, ao
confrontar sua poética do puro e do imaterial com o reino do perecível e
do contingente, a escritora excede a sua própria medida, submetendo os
modelos abstratos aos imperativos concretos da matéria.
O recato da investida dos primeiros livros de poesia em direção ao
ideal amoroso, humano ou divino, é substituído então pela violência de
um desafio lançado contra uma alteridade difusa que, tornada plural,
passa a ser referida por meio de uma multiplicidade de termos estranhos
e contraditórios. Com efeito, depois dos anos 1970, proliferam na escrita
hilstiana evocações a Aquele Outro, o Nada, o Luminoso, o Grande
Obscuro, o Nome, o Sem Nome, o Tríplice Acrobata, o Cão de Pedra, o
Máscara do Nojo, o Infundado, o Grande Louco, o Cara Cavada, a
Grande Face, o Guardião do Mundo... Levada ao absurdo, a tarefa de
designar essa alteridade – senão inominável, ao menos dispersa em uma
infinidade de nomes – termina operando uma subversão na disposição
inicial da poeta.
A totalidade e a plenitude outrora almejadas passam a se manifestar na
forma de nostalgia do passado, ou em seu correlato inverso que é a
percepção imediata do presente. No caso da lírica amorosa, essa
disposição revela-se em Júbilo, memória, noviciado da paixão , lançado
em 1974. Ao explorar a devoção da amante que se exaspera diante da
ausência do amado, o livro evoca uma consciência trágica da passagem
do tempo – rigorosamente particularizada num dos poemas como
“tempo do corpo”, tal como se pode ler: “Toma-me/ A tua boca de linho
sobre a minha boca/ Austera. Toma-me AGORA, ANTES/ Antes que a
carnadura se desfaça em sangue, antes/ Da morte, amor, da minha morte,
toma-me/ Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute/ Em cadência
minha escura agonia./ Tempo do corpo este tempo, da fome/ Do de
dentro. Corpo se conhecendo, lento,/ Um sol de diamante alimentando o
ventre,/ O leite da tua carne, a minha/ Fugidia./ E sobre nós este tempo
futuro urdindo/ Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida/ A vida se
derramando. Cíclica./ Escorrendo”.
Por certo, as duas estrofes que abrem o conjunto intitulado “Prelúdios-
intensos para os desmemoriados do amor” bastam para que se perceba aí
uma intensificação dos afetos cujo operador é inequivocamente o corpo.
A epifania do instante sensual se afirma em paralelo à ameaça da morte:
o AGORA coincide com o ANTES de um “futuro” sombrio que,
liquefeito como o tempo, escorre e se derrama. Entre a “escura agonia”
que o habita e a carne “fugidia” que o consome, o eu lírico sorve,
austero e ansioso, a fluidez do sexo e da vida em um só ato. Gravidade e
carnalidade se fundem para dar densidade a uma poesia erótico-
metafísica que transforma o amado em amante, valendo-se de sutil
ironia, mas sem jamais deixar de perseguir certo ideal do sublime.
Tal vertente vai ocupar um lugar central na poética densa dos livros
seguintes que, mantendo uma dicção elevada se comparada à prosa,
torna-se cada vez mais atravessada pelo apelo da sensualidade, mas
tragicamente atrelada à morte. Leia-se, por exemplo, o poema de
abertura de Do desejo : “Porque há desejo em mim, é tudo cintilância./
Antes, o cotidiano era um pensar alturas/ Buscando Aquele Outro
decantado/ Surdo à minha humana ladradura,/ Visgo e suor, pois nunca
se faziam./ Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo/ Tomas-me o corpo.
E que descanso me dás/ Depois das lidas. Sonhei penhascos/ Quando
havia o jardim aqui ao lado./ Pensei subidas onde não havia rastros./
Extasiada, fodo contigo/ Ao invés de ganir diante do Nada.”
Lançado em 199 2, o título se distancia em quase duas décadas da
publicação de Júbilo, memória, noviciado da paixão . Percebe-se que a
persona lírica está, então, mais à vontade com o emprego de um léxico
sexualizado: ali onde havia “um sol de diamante alimentando o ventre”,
aqui ela declara sem mais que “extasiada, fodo contigo”. Além disso, às
imagens alusivas do volume de 1974 – “boca de linho”, “leite da tua
carne” – os poemas mais tardios preferem a concretude de “visgo e
suor” ou de “carne e osso”. Enfim, se “antes, o cotidiano era um pensar
alturas”, daí em diante o eu lírico vai declarar sua profissão de fé na
“humana ladradura”, apostando na volúpia, “ao invés de ganir diante do
Nada”.
Lido ao lado da poesia erótico-metafísica de Hilda Hilst, o escandaloso
O caderno rosa de Lori Lamby excede a intenção obscena para revelar
sua notável capacidade de jogar com os limites da linguagem. Entende-
se por que o livro é dedicado “à memória da língua”, numa epígrafe que
bem caberia para o conjunto dos escritos da autora. Afinal, se essa
memória invoca desde a fala primitiva da criança até as mais elevadas
formas literárias, ela também guarda os registros mais abjetos da
experiência humana. Daí que as aproximações ousadas da autora, a
exemplo da associação entre a metafísica e a putaria, venham expor a
perigosa possibilidade de reversão que ameaça cada um desses polos.
Daí igualmente que não seja cabível isolar, em sua obra, uma escrita
“séria” de outra, “pornográfica”.
Cabe, pois, evocar aqui uma imagem potente e enigmática que se
encontra na novela Com os meus olhos de cão . Publicado originalmente
em 1986, o texto foi criado entre A obscena senhora D e O caderno rosa
de Lori Lamby , o que lhe confere um significativo lugar de passagem
entre a prosa de ficção grave e os romances de “bandalheiras”.
A novela tem como protagonista o matemático Amós Kéres, sujeito
amargurado e libidinoso, que vive exaurido por seus deveres cotidianos,
seja com a família, a profissão ou a sociedade em geral. De dia, as
incômodas reuniões de departamento na universidade o deixam em
estado de absoluto desconsolo. À noite, o professor retoma
pacientemente os estudos de matemática, buscando o abrigo glacial dos
algarismos para restaurar a ordem da vida. Mas a tentativa de escapar
das balbúrdias do dia a dia, impostas pelo convívio com os outros, lança
o atormentado Amós em uma desordem ainda maior, já que a solidão da
noite não cumpre a promessa de plenitude. O narrador assim descreve a
sensação que toma de assalto o personagem: “como se você conhecendo
cada canto de sua própria casa descobrisse, no vestíbulo por exemplo
por onde você passara muitas vezes, no vestíbulo de Deus, descobrisse
um rochedo de faces espelhadas ou um prisma negro”.
Imagem notável, a desse rochedo no meio de um vestíbulo, que talvez
só encontre um similar à altura no célebre “salão no fundo de um lago”,
concebido por Rimbaud em Une saison en enfer . A visão de Amós vem
perturbar as suas convicções, das mesquinharias do dia a dia às
abstrações aritméticas, colocando em xeque tanto o real quanto seu
correlato, o ideal. Ao designar a trivial entrada da casa como “o
vestíbulo de Deus”, a autora equipara a experiência mais prosaica do ser
humano à sua imagem mais idealizada, fazendo coincidir o imanente e o
transcendente. Ora, é justamente nesse lugar de passagem que irrompe
um terceiro plano, figurado pelo escandaloso penhasco negro, a instaurar
uma fenda definitiva na paisagem.
Sob o signo da imaginação cênica
WELINGTON ANDRADE

Se o teatro brasileiro trilhou, no final da década de 1950 e início da


década de 1960, um notável caminho de interlocução política com o
país, desejando veicular ideias que julgava fundamentais para a
transformação da sociedade, o ano de 1966 testemunhou o surgimento
de uma geração de criadores disposta a expressar uma nova mentalidade
e alargar as fronteiras da dramaturgia nacional. As principais tendências
formais e temáticas que conviviam nos palcos brasileiros de então eram
veiculadas pelas “peças desagradáveis” de Nelson Rodrigues, pela
comicidade popular de Ariano Suassuna, pelo misticismo e fanatismo
religioso explorado por Dias Gomes, pela saga rural de Jorge Andrade e
pelo teatro político de clara vocação para a forma épica de Bertolt
Brecht, identificado na dramaturgia de Augusto Boal, Gianfrancesco
Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho. Em outra frente de trabalho, certa
continuidade da estrutura formal e do espírito do teatro de revista e do
cabaré literário europeu era identificada nos shows musicais, na linha de
Opinião e Liberdade, liberdade , com forte engajamento político.
Primeiro entre os novos autores a surgir, Plínio Marcos é saudado pela
crítica como um acontecimento original, ao lançar mão de uma
atmosfera de expressionismo confessional e investir em um naturalismo
perturbador. Pouco tempo depois, profundamente influenciada por essa
nova moldura dramatúrgica, surgiria a chamada “geração de 69” –
formada por Antonio Bivar, Consuelo de Castro, Isabel Câmara, José
Vicente e Leilah Assumpção –, que, por sua vez, no início dos anos
1970, iria marcar o trabalho de Roberto Athayde.
Em artigo publicado na revista Comentário, no final de 1969, o crítico
e ensaísta Anatol Rosenfeld descreve as principais conquistas teatrais
brasileiras do período abordando entre elas o que nomeou de “a safra
dos novíssimos” e chamando a atenção para a produção dramatúrgica de
uma poeta que, embora não fizesse parte do grupo, mantinha com o
trabalho desenvolvido por seus representantes vínculos muito estreitos:
“A supremacia feminina entre os novíssimos é fortalecida pela obra
teatral de Hilda Hilst. Embora não pertença à mesma geração e já
consagrada como poeta, só recentemente invadiu o campo da
dramaturgia. O teatro de Hilda Hilst, cerca de oito peças, não se filia a
nenhum grupo. A autora é uma espécie de unicórnio dentro da
dramaturgia brasileira. Suas peças revelam acentuado teor poético e
certas tendências místico-religiosa, conquanto fora dos padrões de
qualquer religião tradicional”.
Observador de olhar acurado, Rosenfeld, no mesmo texto, assim
identificou as principais linhas de força das peças da autora:
“Estilisticamente tendem ao expressionismo, em virtude de certa
abstração que dá às personagens cunho arquetípico. A despeito do que
possa parecer à primeira vista, quase todas as suas peças giram, pelo
menos em vários de seus planos, em torno de questões atuais, abordadas,
no entanto, em termos simbólicos ou alegóricos. Ressurge, com
insistência, o problema do sufocamento do indivíduo e do amor, do
esmagamento da criatividade, da juventude, da justiça, da liberdade, sob
o peso das engrenagens tradicionais e dos poderes anônimos do nosso
‘mundo administrado’ e tecnicizado. São dignas de nota a alta qualidade
literária dos seus textos, assim como a experimentação de versos
coloquiais adequados à cena moderna”. Lembrava o crítico ainda que tal
obra não havia sido acolhida nos palcos por grupos profissionais, mas tal
situação haveria de mudar em virtude de a dramaturga ter sido agraciada
naquele mesmo ano com o Prêmio Anchieta por sua peça O verdugo .
Coisa que não chegou a ocorrer. Não obstante ter se tornado
conhecida a partir de 1969, em virtude do prêmio e de duas peças
montadas por estudantes, no final da década, no âmbito da Escola de
Arte Dramática de São Paulo, a dramaturgia de Hilda Hilst – concebida
entre 1967 e 1969 e que constitui um conjunto de oito peças: A empresa
[inicialmente intitulada A possessa ] (1967), O rato no muro (1967), O
visitante (1968), Auto da barca do Camiri [também chamada Estória,
muito notória, de uma ação declamatória ] (1968), As aves da noite
(1968), O novo sistema (1968), O verdugo (1969) e A morte do
patriarca (1969) – conservou-se como uma obra mais ou menos
marginal dentro do teatro brasileiro. Muitas dessas peças foram, sim,
encenadas desde então, mas não se pode afirmar que tal dramaturgia
tenha sido de fato escrutinada nos palcos do país, não a ponto de tais
textos terem sido alvos de encenações à altura da grande imaginação
cênica que se pode depreender deles.
Na ocasião do Prêmio Anchieta, Hilda declarou em entrevista ao
jornal Correio da Manhã que, em um mundo em que as pessoas queriam
se comunicar de uma “forma urgente e terrível”, só a poesia já não lhe
bastava, por isso ela havia procurado o teatro: “Considero o teatro uma
arte de elite, mas não no sentido esnobe da palavra. O que eu quero dizer
é que o homem quando entra numa sala de teatro deve sentir uma
atmosfera diferente daquela que sente no cinema”. Para além do
otimismo diante da nova forma literária que adotou naquele triênio tão
singular para a cultura brasileira, o que não pode passar despercebido é a
chegada das mulheres a um domínio antes exercido majoritariamente por
homens, fato captado com muita sensibilidade por Elza Cunha de
Vincenzo, em Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco
brasileiro contemporâneo , um verdadeiro marco nos estudos de
dramaturgia e gênero no Brasil: “Quem quer que se detenha sobre a
história dos movimentos do teatro brasileiro contemporâneo depara com
um fenômeno que não pode deixar de lhe chamar a atenção. No final da
década de 60 – mais precisamente em 1969 – em São Paulo, um
acontecimento até então inédito se desenha com nitidez no conjunto da
produção teatral: um número proporcionalmente grande de nomes de
mulheres-autoras surge com muita força e se impõe. Não é propriamente
a presença feminina que chama a atenção, mas o conjunto é que provoca
na crítica mais próxima do fato uma espécie de surpresa ou espanto, cuja
causa só em parte, no entanto, é imediatamente identificada”. Se na
combativa e revolucionária década de 1960, a ideia era defender um
teatro por meio do qual a sociedade brasileira tomasse consciência de si
mesma, nada mais natural que as mulheres fizessem uso da palavra e a
colocassem no centro do palco, redefinindo, assim, os liames dessa
consciência.
Estranhamente belo e poético e de difícil classificação, como convém
a um unicórnio, o teatro de Hilda Hilst não se furtou a tratar dos agudos
problemas políticos, sociais e existenciais que pairavam sobre aqueles
anos incríveis – somente não o fez pelo viés das formas do teatro
engajado mais conhecidas em nossos palcos, representadas, sobretudo,
pelos grupos Arena, Oficina e Opinião. A escritora produziu algo de
reconfortante não somente do ponto de vista político, sim, como também
sob um viés estético. Os textos de Hilda sentem “na pele” os efeitos
arrasadores da ditadura militar recém-instalada. Sofrem ainda direta ou
indiretamente as pressões em torno do maio de 1968 francês, marco de
uma nova atuação política no âmbito internacional. E aderem às novas
formas de combate contra os potenciais inimigos que surgiam: a
ampliação da dominação tecnocrática e a repressão aos novos modos de
comportamento. Em seus oito títulos para o teatro, a autora faz as mais
variadas experiências dramatúrgicas, tendo à sua disposição o amplo
leque das formas conhecidas, que têm seus limites testados, esgarçados
ou redefinidos. A moldura do drama (de onde brota também, às vezes,
uma atmosfera mais propriamente vinculada à tragédia ou ao teatro do
absurdo), os efeitos das formas pós-dramáticas (em que se misturam
simbolismo e expressionismo) e a prontidão crítica das experimentações
distópicas são os ingredientes básicos dessa dramaturgia. O agitado
panorama de debates, postulações e confrontos daquela geração faz com
que a autora exalte a liberdade individual diante de toda e qualquer
engrenagem política, ideológica ou partidária, propondo uma nova
forma de abordar a questão política ao uni-la ao problema da
subjetividade, às voltas com a iluminação do mundo interior.
Entre aqueles que se debruçaram sobre esta dramaturgia tão singular
(que parece agora estar sendo descoberta pela pesquisa universitária),
além de Anatol Rosenfeld (entusiasta de primeira hora, autor do artigo
“O teatro de Hilda Hilst”, publicado no Suplemento Literário do jornal
O Estado de S. Paulo, em 21/1/1969) e Elza Cunha de Vincenzo,
encontram-se Alcir Pécora (que organizou o Teatro completo da autora
para a Editora Globo) e Renata Pallottini (ela também uma
desbravadora, uma dramaturga pioneira). Cabe ao organizador dessa
dramaturgia uma observação preciosa – “... o efeito mais duradouro de
seu teatro foi como ensaio de sua prosa, que começava a praticar ao lado
da poesia, a qual já vinha publicando desde o final da década passada. A
rigor, a própria poesia de Hilda nunca mais foi a mesma depois da
experiência de dramaturga e da sua iniciação na prosa. De maneira
simplificada, é possível dizer que a dicção poética alta que buscava em
sua poesia ganhou contrapontos surpreendentes de humor, de registro
vulgar e de vivacidade dialógica que lhe deram mais alcance estilístico e
complexidade nos propósitos...” – enquanto é da também poeta e
dramaturga Renata Pallottini a definição que tão bem caracteriza a obra
teatral da escritora: “Seus heróis rebeldes são esmagados pela força, seus
jovens inquietos são calados. É exatamente isso o que quer o escritor:
mostrar, com palavras, personagens cujas palavras foram sufocadas.
Nada mais didático do que isso. Este trabalho, partindo de uma poeta de
palavras preciosas, é trabalho definitivo”.
Os anos seguintes tornar-se-iam muito injustos com uma autora como
Hilda Hilst – inconformada e inquieta criadora de uma dramaturgia que
procurou, de modo sui generis , resistir, baseada, sobretudo, no uso
expressivo da palavra.
Uma prosa do tempo
BRUNO ZENI

Cara Cavada, Cão de Pedra, Porco-Menino, Máscara do Nojo, Grande


Coisa Obscura, o Incognoscível – as imagens de Deus que permeiam a
obra de Hilda Hilst são tão impactantes quanto enigmáticas,
impenetráveis e desafiadoras. Suas narrativas se ocupam dessa procura
blasfema de uma imagem terrena e corpórea do divino, mas também de
um estado de Deus.
Não se trata de uma adoração ao Altíssimo, mas de uma investigação
baixíssima, sensual, erotizada, escatológica e animalesca do que ainda se
pode experimentar como fervor, transcendência e sentido do vivido.
“Blasfemando somos um pouco santos”, se lê em Estar sendo. Ter sido
(1997). O divino, em Qadós , “cospe pra lá e pra cá sem consultar a
direção do vento”.
Não é uma escrita abstrata ou filosofante, ainda que o impulso
filosófico esteja sempre presente. O fluxo narrativo se aterra, vai do
sagrado ao profano, do sublime ao abjeto, do espiritual ao carnal, do
poético ao chulo. E os personagens, apesar da solidão, vivem situações
de tensão com a comunidade, com os serviçais, com a família, com Deus
e até com seus editores, no caso dos escritores.
Os romances e novelas da autora são narrativas em que indagações
profundas aparecem de forma concreta na vida de personagens
marcantes: Hillé ( A obscena senhora D ); Ruiska e o anão ( Fluxo-
Floema ); Matamoros; Lori Lamby; Agda ( Qadós ); o professor de
matemática Amós Keres ( Com os meus olhos de cão ) ; o mendigo
escritor, o escritor Karl e sua irmã Cordélia ( Cartas de um sedutor ),
Lucius Kod ( Rútilo nada ), entre outros .
As perguntas recorrentes de sua obra são as fundamentais: o tempo, a
vida, a solidão, o envelhecimento, o corpo, o desejo, a morte e o alcance
da escrita. Essa prosa que se volta para si mesma e enreda o leitor em
um fluxo hipnótico é uma sondagem sobre o que a linguagem pode
compreender e comunicar.
ENCONTRO COM A OBRA
Tomei contato com a obra de Hilda Hilst em 1993, quando cursava
minha graduação em jornalismo na Escola de Comunicações e Artes da
USP. Foi ali, no círculo da revista Azougue, que os textos de Cassia
Borsero e Claudio Willer me despertaram definitivamente para a beleza
dessa escrita, especialmente para sua prosa de ficção, sem paralelo na
literatura brasileira. Nos poemas, escrevia com sotaque português (como
ela própria declarou), mas sua prosa trazia uma combinação de
oralidade, profundidade, banalidade e blasfêmia que a língua ainda não
conhecia.
No começo dos anos 1990, lançava a novela Rútilo nada , numa
edição que trazia também dois textos publicados anteriormente: Qadós
(cuja grafia foi atualizada para Kadosh , na reedição atual de suas obras
completas) e A obscena senhora D . O livro saía alguns anos depois da
série de livros obscenos.
A tão propalada guinada ao pornográfico fora, na verdade, uma
reorientação mercadológica, cheia de ironia: uma tentativa, muito
perspicaz, por parte da própria autora, de recolocar sua literatura no
campo do erótico para chamar atenção e atrair um público mais amplo,
sem abrir mão do estilo e dos temas que sua obra já desenvolvia.
A trilogia O caderno rosa de Lori Lamby , Contos d’esc á rnio –
Textos grotescos e Cartas de um sedutor (uma tetralogia com os poemas
de Bufólicas ) retoma e tensiona alguns temas que sempre fizeram parte
de sua literatura. Por exemplo, as relações ásperas entre escritor e editor,
que aparecem em Lori Lamby , já estavam em “Fluxo”, o texto que abre
o seu primeiro livro em prosa, Fluxo-Floema . E um texto posterior à
fase dita pornográfica como Rútilo nada é pornográfico a seu modo:
uma novela sobre o escândalo do desejo no seio de uma família
endinheirada e conservadora.
CONVERSA DE 20 ANOS
Na época em que a entrevistei, Hilda voltava a ser publicada com
regularidade pela editora Nankin, sob os cuidados do poeta e editor
Fabio Weintraub, que viria a reeditar depois, no ano 2000, também a
obra dramatúrgica da autora. Pela Nankin, saíram o romance Estar
sendo. Ter sido e as crônicas de Cascos e carícias (1998), textos que
Hilda escreveu para o jornal Correio Popular, de Campinas. As crônicas
trazem a primeiro plano alguns traços pouco comentados de sua obra: o
humor, a atenção ao tempo presente, a preocupação com o político e os
contrastes da realidade brasileira. Uma Hilda que já se conhecia, ainda
mais aguda.
Ao ingressar como redator e repórter da Revista CULT, depois de ter
feito algumas matérias, sugeri a pauta de entrevistar a autora, que vivia
reclusa na Casa do Sol, em Campinas, e continuava escrevendo e
publicando. A revista era editada por Manuel da Costa Pinto e tinha
Mauricio Domingues como diretor de arte. Para completar a equipe da
pauta, Manuel sugeriu o fotógrafo Juan Esteves, que faria as belas fotos
que ilustram a entrevista publicada na edição de número 12 da CULT,
em julho de 1998 [leia mais no Editorial].
A presença do fotógrafo era uma das nossas preocupações. Como
Hilda reagiria? De fato, ela inicialmente resistiu. Dizia que estava muito
velha para fotos, mas a habilidade e a cortesia de Juan Esteves
terminaram por conquistá-la.
Na conversa, regada a muitos copos de vinho do Porto, rodeados por
seus muitos cachorros, falamos do Baixíssimo, e ela afirmou não buscar
um Deus material: “Não conheço esse senhor. Eu sempre dizia que ele
estava até no escarro, no mijo, não que Ele fosse esse escarro e esse
mijo”.
Demos risadas com os temas de suas crônicas, e ela incorporou o dr.
Fritz, um médico que falava com sotaque alemão nos textos escritos para
o jornal. Concordou que a esquizofrenia do pai e a morte dele, quando
ela tinha apenas três anos, marcaram sua escrita: “O fato de ele ficar
louco me impressionou muito; eu não cheguei a conhecer meu pai, mas
eu fiquei sempre sonhando com esse homem”.
Reclamou dos leitores, que não a liam, e dos críticos, que escreviam
“coisas dificílimas” sobre ela. Autografou minhas primeiras edições com
um singelo “Bruno Amor. H Hilst/98”. Um relógio na parede dizia: “É
mais tarde do que supões”.
Eu voltaria a vê-la uma única vez, em 2001, na abertura de uma
exposição sobre sua obra, no Sesc Pompeia em São Paulo. Estava
radiante, feliz com a homenagem.
Apesar de os encontros pessoais não terem se repetido, a leitura de sua
obra, especialmente de sua prosa, ainda é uma das minhas formas
preferidas de oração – oração laica e muitas vezes blasfema, que repito
sempre em busca de algo que não sei nomear.
Uma só múltipla matéria
LEUSA ARAUJO

Difícil aceitar a morte de Hilda Hilst, justamente num ano em que seu
trabalho está mais vivo do que nunca. Para os que, como eu, tiveram a
alegria de estar perto dela e de compreender as razões de tanto
ressentimento acumulado com a falta de recepção de seus livros, ainda
fica uma ponta de desconfiança no ar. Mesmo com a publicação de sua
poesia reunida, ficção, teatro e crônicas, das matérias de imprensa e
teses acadêmicas, quanto desse entusiasmo pela escritora, poeta e
dramaturga representa um mergulho verdadeiro e a leitura tão desejada
por Hilda? Em outras palavras: o que pode ser mais excêntrico, excitante
ou deslumbrante do que a leitura de seus livros – hoje cuidadosamente
editados e lançados em todo o país e fora dele?
Quando a conheci na Casa do Sol, em 1985, com 25 anos, Hilda havia
completado 55, e já estava voltada para a reunião de seu trabalho (ela
não gostava de que chamassem de obra). Várias etapas foram quebradas
desde nosso primeiro encontro, e o diálogo se estabeleceu de imediato
por uma única razão: eu havia lido seus livros, todos os que pudera
arrebanhar nos sebos em São Paulo. Mas não cheguei a imaginar que
essa ligação – de profunda admiração pela maior escritora brasileira –
seguiria por quase os vinte anos posteriores, até sua morte, em 2004.
O que mais me atraía à Casa do Sol era ver a dedicação e a disciplina
quase monástica de Hilda – e que se expressou em mais de 50 títulos
entre prosa, poesia, teatro e crônicas.
Mesmo integrante da “KGB literária” – como a escritora chamava o
rol de seus poucos e secretos leitores –, sempre acreditei que esse
número cresceria cada vez mais e, por isso, me tornei uma “agente
literária” informal e ativa assessora de imprensa. E, mais tarde, como
escritora e pesquisadora, segui cumprindo essa espécie de pacto de
propagação de Hilda Hilst e suas conexões.
Por essa razão, me sinto à vontade para afirmar que somente um
“ardil” como o arquitetado por ela para o lançamento de O caderno rosa
de Lori Lamby em paralelo com Amavisse – anunciando a Hilda Hilst
pornógrafa, de um lado, e a despedida da escritora séria, de outro (que
não se cumpriu) – para atrair atenção maior sobre a obra escrita antes de
1990 e que restava obscura.
Apesar da falta de acesso aos livros publicados até então, quase
sempre por pequenas editoras (exceto Com os meus olhos de cão ), ao
relembrar a perplexidade com que os primeiros textos da tetralogia
obscena – O caderno rosa de Lori Lamby , Contos d’esc á rnio – Textos
grotescos , Cartas de um sedutor e Bufólicas – foram recebidos, fica a
sensação de que houve uma certa desatenção do leitor, ou mesmo da
crítica, em revirar textos passados.
O caderno rosa de Lori Lamby era uma novidade, sem dúvida. Mas
nada que destoasse de outras vozes na ficção e no teatro de Hilda. Como
não reconhecer no editor que encomenda bandalheiras ao pai de Lori o
recorrente editor-carrasco que encomenda “novelinhas amenas” ao
personagem Ruiska de Fluxo-Floema , escrito em 1970? Ou a volta ao
tema da “sexualidade sem culpa” da Matamoros-menina, de Tu não te
moves de ti (1980)? Ou ainda a forte presença do erotismo, como em
Agda, de Qadós (1973): “nenê rosado te dou doçuras, me dás babas,
mijadas, te amo, depois menina púbis delicado, te dou balas, botas, boró,
te dou sorrisos, és toda lisa, dura bocaxim, depois mulher te dou boró
outra vez para que me dês aquilo mesmo, te dou, me dás, depois velha
bruaca, bocarela, cala a boca, fedes amarelecida, não te dou, não me dás,
ninguém te toca, te pergunto: o corpo-porco ainda é o teu?”
Na verdade, o erotismo, a escatologia, o grotesco e o humor
desconcertante e cruel de HH sempre estiveram presentes notadamente
na ficção, no teatro e nas crônicas. Seja em Hillé, Tadeu, Amós,
Matamoros, o Diabo assistindo à partida de xadrez entre o Cardeal e o
Monsenhor são alguns dos muitos exemplos por que o leitor atento não
se deixaria lograr pelo ardil. Como bem observaram Edson Costa Duarte
e Clara Silveira Machado “as faces de Hilda formam
umasómúltiplamatéria, para usar uma expressão da própria autora (...)
podemos interpretar toda a sua ficção como um único livro”.
Com a publicação de O caderno rosa , a “devassa” e a “velha
pornógrafa” então – a exemplo do que quase sempre ocorre com
escritoras mulheres que se atrevem a tratar o tema do erotismo –
entrariam definitivamente para o anedotário em torno de Hilda Hilst. Na
intimidade, lembro que chorou ao ver na contracapa da primeira edição
francesa de A obscena senhora D mais uma confusão entre autora e obra
que reverberaria na crítica: “O jornal Libération publicou uma resenha
de L´obscène madame D , referindo-se a mim como ‘la cochonne
hystérique’, a porca histérica. Me comparavam ao Bataille; eu sou muito
ligada a ele mesmo. Mas me chamaram de porca histérica. Eu até chorei.
Pensei: ‘Quer dizer que não é só no Brasil, na França também?’ O
comentário todo era bonito, mas o título...”.
Não é de estranhar, portanto, que Hilda tivesse reagido publicamente,
em 1994, mais uma vez, aos estigmas que seguiam interferindo
decisivamente na recepção e nas decisões sobre a publicação ou não da
obra: “E aqui, no meu país eu sou tratada, depois de 40 anos de trabalho,
exatamente como era tratada aos olhos dos ‘hipócritas’ quando eu tinha
vinte anos: uma puta. Sim, porque eu era tão autêntica, tão livre, tão
inteligente, tão bela e tão apaixonante! Ahhhh! O ódio que toma conta
das gentes quando o talento é muito acima da média! E como se agrava
contra nós esse ódio quando se é mulher! E quando se fica uma velha
mulher, aí somos simplesmente velhas loucas, putas velhas, poetisas
sacanas, asquerosas, enfim!”
Sou leitora, não sou crítica literária. Mas tenho certeza de que quanto
mais lermos Hilda, mais encontraremos exemplos de seu pensamento
libertário, na vanguarda de seu tempo – pois ora vemos parentesco de
sua prosa com o existencialismo, com o surrealismo, com os “barrocos
da latino-américa” – como o chileno José Donoso; assim como
elementos do expressionismo alemão no seu teatro. Até mesmo a poeta
lírica segue na contracorrente das escolas literárias – o que a torna o
“unicórnio” na literatura brasileira contemporânea, parafraseando a
afirmação do crítico Anatol Rosenfeld a respeito da originalidade de
Hilda na dramaturgia.
Poucos escritores deixaram tão revelados nos versos e na ficção as
intenções, percursos, ideias sobre o mundo, angústias existenciais, como
Hilda Hilst. Reverenciou e citou escritores, poetas, filósofos, físicos – de
Nikos Kazantzakis, Pär Lagerkvist, Malcolm Lowry, Mora Fuentes,
Marx, Simone Weil, Beckett, Drummond, Lorca, Jorge de Lima,
Wittgenstein, Ernst Becker, Mario Schenberg; e especialmente mártires
e pessoas capazes de sacrifícios pelo outro, como Che Guevara, Santa
Teresa D’Ávila, Teresinha de Lisieux, Maximilian Kolbe. Todos estão
lá, ora nos versos ou no jorro dos seus personagens.
Acreditou na alma imortal, no ser-verdade que se esconde por detrás
das máscaras que o homem tem de usar para suportar o efêmero. Deixou
cartas para os pósteros (com muito humor e despudor), diários e
desenhos – tentando, quem sabe, encontrar leitores que, como ela,
amassem os Diários de Kafka.
Leu com a mesma seriedade matéria sobre o poder dos cristais da
revista Planeta quanto o L’irréversible et la nostalgie do filósofo
Vladimir Jankélévitch. E por anos pude vê-la, como quem consulta o
oráculo, tendo em mãos Ulisses , de James Joyce, e a biografia do iogue
Paramahansa Yogananda.
Ainda que tivesse uma voz linda e empostada à maneira das grandes
atrizes do teatro paulista, não gostava de falar em público, tinha aversão
às mesas literárias, pois sabia que sua batalha se dava num único terreno:
o da linguagem.
Deu as costas à literatura satisfeita, que considerava “entediante”, e
transgrediu não só na prosa – mas todas as vezes que o poético irrompeu
na sua literatura, original e única.
Ler Hilda Hilst é entrar nesse jogo do “unicórnio ” , em que a cada
lance sentimos diminuir a distância entre um homem e outro.
O jardineiro da casa
LEANDRO CARLOS ESTEVES

DA AMIZADE
Mora Fuentes chegou à Casa do Sol, morada de Hilda Hilst, em 1968,
com 18 anos, mas já dedicado à literatura. Um ano depois, HH enviava
ao escritor e também amigo Caio Fernando Abreu a “novela” Osmo , e
ele a saudou como “uma coisa realmente nova: ri feito uma hiena e
depois o texto ganha em angústia e desespero”. Caio entende que Osmo
derruba a estrutura de “mal-entendidos literários” e “faz montes para a
dignidade da linguagem, o estilo, as figuras, os ritmos”.
Durante anos julguei escutar a voz sarcástica de Osmo como sendo a
de Mora Fuentes, cheia de ironias e piadas com o espírito pequeno-
burguês (Ah! O que o Mora não diria dos apoiadores do golpe de 2016?
Quanta risada eu perdi). Hilda dizia que a novela era uma “ascendência
solitária de Beckett”, mas localizo aí o início de uma influência
recíproca.
Em 1970, depois de muito escrever e reescrever, Mora publica seu
primeiro conto no suplemento literário do Estadão: A e B
Incomensurável , algo próximo do estilo mordaz de Cortázar (com quem
Mora se parecia fisicamente), mas com o incomensurável de HildaZé.
Como convivi com os dois, vez em quando me perguntam sobre a
inspiração de Hilda na obra de Zé Mora Fuentes, mas me lembro logo
das tantas influências no sentido contrário: “Matamoros” (do livro Tu
não te moves de ti ) era o nome de uma antiga namorada do pai do Zé;
Estar sendo. Ter sido retrata o Zé em três personagens diferentes e um
deles é o próprio Mora: “(...) como rimos aquele dia e ... onde está o
Mora? Com a mulher, com o filho, escreveu aquilo: Sol no quarto
principal é muito bom, mas está triste, diz que está velho, imagine..., eu
estou o quê afinal?”.
Hilda compôs o “corpo-escrita” Agda (em Qadós ) sobre o romance
que teve com Zé e segue refletindo sobre o envelhecimento da
personagem Agda-HH diante do jovem por quem se apaixonara. O
contrário também foi copioso, as influências foram tantas que um dos
exercícios feitos por algum tempo na Casa do Sol consistia, quando do
café da manhã, de Mora ler o que tinha escrito para Hilda e ela
comentar: “nessa parte sou eu; nossa! essa ainda é a Clarice...” para que
o escritor pudesse se despir um pouco tanto de sua amada Hilda quanto
de Clarice Lispector, com quem Mora também teve um breve romance.
Clarice é a Olenska das cartas que Mora escrevia; uma delas ele inclui
no seu primeiro livro.
Imagine, leitor apaixonado por literatura, que meu amigo Zé namorou
HH e Clarice, as melhores e mais lindas escritoras: Hilda era
estonteante, e os olhos de Olenska até hoje me assombram.
Nosso escritor cultuou o chamado “gênero epistolar”, esmerava-se em
cartas como se fossem seus contos. Certo dia, Zé iniciou uma carta para
Olenska e, na metade, perdeu-se terminando por escrever para HH. A
confusão era compreensível. Depois desses romances tórridos,
novamente as cartas do Zé (acompanhadas de livros da Clarice que
enviava) garantem o retorno da bela artista plástica ruiva e hippie
militante Olga Bilenky, com quem se casou (as obras dela podem ser
vistas em capas de livros e CDs ou no IHH, incluindo a interessantíssima
série Mandalas ).
Apesar dos exercícios, a interlocução de Hilda com a obra de Mora é
marcante. Exemplos como o trecho da novela Sol no quarto principal
(infelizmente ainda também inédita) que comunica com a pontuação, o
ritmo, o fluxo-jorro de HH: “Me pergunto se alguém pode estar bem
com alguém tão morto por perto, meus braços nem sei se ainda são
meus, despencam dos ombros assustadoramente, queira Deus não
terminem aos tocos pelo chão, pés e pernas formigam num crescente não
sinto os sapatos, meu corpo é memória perdida, esse sou eu, um grito
antes do medo, poucos sabem, a garrafa de conhaque no armário, como
chegar até lá sem me desfazer em pedaços? Respiro fundo, a tontura
aumenta, Vou sobreviver – repito lá por dentro – vai passar, mas não.
Num descontrole absoluto, estou no tempo da morte dos pais”.
Foi mais do que a educação sentimental de Mora. Era conjunção.
Passada a paixão inicial, HidaZé se tornou uma dessas amizades pra lá
do corpo, coisa rara de amor puro e comunhão de objetivos. Tratavam-se
pelos apelidos de Sapo e Lacraia. Não era humana aquela amizade.
Hilda em carta de 30 de agosto de 1979 para Mora: “Agora mais lindo
foi saber que teu rim está belíssimo aí cravado (...) está adorando a nova
linda cálida doce casa dele, corpo amor do Sapo”. Mora era enfermiço,
seus rins nunca funcionaram e o primeiro de seus dois transplantes (com
o rim doado pela mãe, Mari Fuentes) foi pago por Hilda. Por fim, Mora
morreria prematuramente, com 57 anos de idade, em decorrência dos
muitos tratamentos a que fora obrigado a se submeter.
A ABADIA E OS ESCRITOS DE MORA
A ABADIA E OS ESCRITOS DE MORA
Era uma Abadia a Casa do Sol, o retiro-arquitetura projetado por Hilda e
executado por Dante Casarini, escultor que lá deixou os São Franciscos
que ladeiam a entrada principal e a madona mítica com seu menino no
pátio. São esses personagens (citados até agora) que fizeram o início da
Abadia e o mais fundamental: a disciplina conventual.
Hilda dedicava-se a ler durante a metade exata do seu dia e na outra
escrevia (tinha até uma meta de tantas palavras por dia a serem escritas).
Mora escrevia à noite e plantou o jardim durante as tardes (ofício esse
narrado em seus contos).
Eles encontraram uma tecelagem em Jaguariúna que vendia metros de
tecidos com restos de tinturaria. A própria mãe de Mora muda-se por
uma temporada para a Casa do Sol e confecciona com esses tecidos
manchados as batas singulares e lindas usadas como uniforme. Hilda
usou batas até sua morte. Olga e outros amigos da Casa as usam até
hoje.
Os dois e Olga dedicavam-se também aos desenhos. Há muitos deles
na Casa do Sol. Vezes sem conta tentei decifrá-los como um único
conjunto e a nada cheguei. Ainda hoje tenho essa tentação.
A Abadia tinha suas divindades: o desenvolvimento da linguagem e o
aprofundamento do “dedentro” (como diziam HildaZé), condição para o
“repensar contínuo” e para a descoberta da verdade essencial. Nada que
não fosse profundamente verdadeiro (na linguagem e no deserto da
alma) interessava a esses criadores. A Abadia, se não produziu uma
“escola artística”, deixou marcas fundas na literatura. De sua primeira
fase ainda temos a descobrir a obra de Mora Fuentes.
Uma de suas características que sempre me chamou a atenção foi a
forma com que tratou os miseráveis (povo de rua) nos seus contos. Isso é
raro entre os literatos brasileiros e também acaba passando para a obra
de HH em muitas crônicas e mesmo no Estar sendo. Ter sido surgem os
miseráveis (textos posteriores a 1992).
No seu conto “Amanhã, debaixo de Ponte Cadela”, publicado em
Fábula de um rumo , desfilam personagens como Daniel Tranca-Rua e
Zezinho Abre-Fossa que vivem no Viaduto, na “célula do nada”, na fila
da sopa, até que um deles é preso por roubo e nunca volta da prisão.
Mais tarde, no notável conto “Deus” (que ainda não encontrou abrigo
em livro), uma mendiga fica grávida do Altíssimo, tenta assassinar o
padre que se recusa a batizar seu futuro rebento com o nome de Deus e
acaba morta quando o Nada (ou seria Deus?) nasce.
Sempre um ser político, Mora dedica contos e novelas à resistência às
ditaduras, e talvez essa seja a qualidade que mais o aproxima dos tempos
duros em que vivemos. Seu pai, Benito Mora, fora militante anarquista,
combateu na guerra civil espanhola e finalmente fugiu de Franco em
1953 com o filho pequeno no colo.
Mais tarde, o anarquista Benito foi militante de destaque no PT de São
Bernardo do Campo. Lembro-me de sua disputada paella , que
preparava e servia ao povo de graça e para figuras como Lula e Jacques
Wagner. Fazia pipas e patinetes para a garotada daquele subúrbio, e seu
enterro atraiu multidão. Tocava piano, foi compositor e, às vezes, poeta.
Embora não abraçasse o anarquismo, Mora Fuentes lutou com sua
literatura contra o fascismo. O conto “Fábula de um rumo” (que deu o
nome ao livro) trata de um herói ocasional, que vivia fora da cidade
dominada e reprimida por militares, mas que levado por circunstâncias
acaba matando quatro desses repressores e ajudando o movimento de
libertação.
Na sua novela Sol no quarto principal , o personagem narrador
descobre diários de seu companheiro de quarto de pensão, morto
repentinamente, que mostram ter sido ele um torturador. As passagens
sobre o curso de tortura ministrado pelo Exército nacional, com a ajuda
de instrutores estrangeiros e as diferenças encontradas entre os
torturadores, violência planejada, rotineira e incessante, mantêm uma
inquietante semelhança com os dias de hoje.
Que José Luis Mora Fuentes seja publicado e conhecido!
A gestão de um legado
DANIEL FUENTES

Não lembro o dia exato que me contaram, mas provavelmente foi meu
pai em algum momento ao redor dos meus 14 ou 15 anos. Na minha
memória não houve uma conversa específica, mas várias que traziam à
tona o assunto e foram me fazendo compreender a importância do que
herdaria e de como isso deveria ser cuidado. Hilda mesmo nunca tratou
do assunto comigo, mas a verdade é que passei a fase final da minha
adolescência sabendo que seria herdeiro de seus direitos e que este
presente vinha com uma grande dose de responsabilidade que em algum
grau faria parte da minha vida adulta.
A verdade é que em 2004, quando Hilda morreu, a única parte
descomplicada do testamento eram seus direitos autorais, todo o resto
fazia um caldo muito complexo de herdeiros e dívidas de IPTU. No
mesmo ano meu pai, que havia ficado com a Casa do Sol, criou o
Instituto Hilda Hilst (IHH) com o intuito de juntar forças para garantir a
preservação da Casa, então com vários processos de execução para os
quase 3 milhões devidos à Prefeitura de Campinas.
A Casa, e não a literatura, era a urgência. A ação do IHH nos
primeiros anos de vida foi gerir este passivo com advogados e constantes
visitas às instâncias municipais de cobrança. Quem capitaneava esta
história era meu pai, e eu, ainda na graduação, participava lateralmente
deste xadrez que à época parecia insolúvel.
Sempre foi claro este duplo legado de Hilda, direitos autorais e Casa
do Sol, cujas demandas e potencialidades, ainda que obviamente em
diálogo, apontavam para diferentes conjuntos de ações necessárias,
sendo perfeitamente possível construir um “boom Hilda Hilst”, como o
que penso vivemos, sem com isso garantir a preservação da Casa
enquanto bem cultural socialmente relevante.
Essas diferentes dinâmicas de gerir a cultura se colocaram para mim a
partir de 2009 quando, com a morte de meu pai, decidi assumir a
presidência do Instituto Hilda Hilst e encarei, por um lado, um universo
de amplas potencialidades para a obra e, por outro, um bem cultural
físico com quase 10 mil metros quadrados na cidade de Campinas que
não tinha um modelo claro de como progredir e vencer seus desafios a
ponto de realmente cumprir sua vocação cultural.
Para a gestão da obra, o ponto de partida era uma Hilda que, mesmo
lentamente na época, ganhava público através dos livros então na editora
Globo, e ampliava o número de leitores, impulsionada por
desdobramentos em outras artes, especialmente o teatro. Aliás, é no
palco que Hilda postumamente viu sua obra (em especial a prosa)
definitivamente descer dos Olimpos intelectuais e alcançar as novas
juventudes. Logo foi possível começar uma nova leva de traduções no
exterior que, impulsionadas pelo interesse internacional que o Brasil
gerava no auge da bonança, se multiplicavam a partir de boas críticas
vindas dos EUA.
Se por um lado o caminho estava claro para a ampliação do público de
Hilda, o mesmo não pode ser dito da gestão da Casa. As possibilidades
existentes para um bem imóvel com valor cultural são muito mais áridas
em soluções – principalmente de financiamento – e partes de um custo
fixo muito maior e que piorava quando somado ao significativo passivo
que ameaçava a até então não tombada Casa do Sol.
Optei por abrir múltiplas frentes de atuação que dessem conta, dentro
do possível, dos diferentes estágios de cada universo deste legado.
Primeiro era necessário construir uma saída negociada – e não judicial –
do inventário que permitisse virar esta página e limpasse todas as
dívidas. Busquei ainda tombar a Casa para garantir a sobrevivência dela
no tempo, já que não bastava apenas eliminar a dívida pregressa, mas
também garantir que uma nova não fosse criada (o tombamento em
Campinas gera isenção de cobrança de IPTU, além de legitimar
socialmente a relevância do bem). Isso tudo se realizou apenas no final
de 2012 e, por isso, considero que 2013 é o “ano 1” real do Instituto
Hilda Hilst, pois só depois disso começamos a realmente trabalhar com
cultura de forma efetiva, repovoando de vida a Casa através de diversas
ações bem-sucedidas como nosso Programa de Residência, que já
superou a marca de 200 participantes, ou então as muitas temporadas
teatrais e, é claro, o trabalho com o acervo pessoal de Hilda, já
desdobrado em diversas outras realizações.
Noutro front , segui criando estratégias para sanar uma situação a meu
ver esdrúxula. Hilda ampliava seu público de forma muito mais
acanhada na literatura do que nas outras artes. Com isso em mente, fui
aprendendo com a presença do IHH nas redes sociais que o forte de
Hilda era crescer entre jovens (hoje quase 50% de seu público tem
menos de 34 anos) e mulheres (70%) e a linha editorial deveria ser
ajustada para facilitar a chegada dela a esses universos, sem, é claro,
desprezar os antigos leitores ou o cuidado com a qualidade de cada
publicação.
Esse plano de ação desembocou na que hoje chamo de Terceira Onda
Editorial de Hilda, com a Companhia das Letras no centro, cuidando do
core de sua obra, mas com publicações específicas trabalhadas em
projetos editoriais individualizados e pensados para ampliar seu alcance,
tal como o teatro pela L&PM e as crônicas pela Nova Fronteira. Aqui a
parceria com a agente Marianna Teixeira Soares foi fundamental para
construir um plano de longo prazo com as editoras.
Hoje a cultura está numa crise tão grande de financiamento no Brasil
que tem se tornado progressivamente mais difícil – em alguns casos
inviável – produzir algo que não tenha uma saída direta para o mercado,
como, por exemplo, a venda de um livro para o consumidor final. Para o
universo de Hilda isso cria uma situação perigosa e sui generis em que,
por um lado, seu público leitor chega a crescer 200% em um único ano
e, por outro, a preservação de sua memória e todos os seus
desdobramentos materiais e imateriais, representados na Casa do Sol e
em seu acervo pessoal, não encontram eco no Estado nem na sociedade
– mercado inclusive – para minimamente construir uma lógica
econômica que garanta a preservação e a democratização de suas
riquezas.
O que vem por aí
AMANDA MASSUELA

O teatro, a ficção e a poesia de Hilda Hilst ganham novas edições em


2018. Entre lançamentos e reedições, onze volumes chegam às livrarias
brasileiras no período pré e pós-Flip, que neste ano homenageia a
escritora e poeta jauense.
A L&PM publica pela coleção de bolso a dramaturgia completa da
autora em quatro volumes, que serão lançados em duas partes: O
verdugo + A morte do patriarca e As aves da noite + O visitante saem
em maio. Já O rato no muro + O auto da barca de Camiri e A empresa
+ O novo sistema têm lançamento previsto para o segundo semestre. A
apresentação geral das obras fica por conta da escritora e jornalista
Leusa Araujo.
Em maio, a Companhia das Letras relança toda a produção ficcional
de Hilda em Da prosa , caixa com dois volumes que incluem textos
inéditos de Daniel Galera e Carola Saavedra – ambos leitores e
admiradores da escritora. No mesmo mês, a editora ainda publica nova
edição de Júbilo, memória, noviciado da paixão , de 1974, e lança a
nova coletânea De amor tenho vivido , reunião de 50 poemas de amor
com ilustrações da artista Ana Prata.
A novidade mais aguardada fica para julho, quando sai a adaptação
gráfica de A obscena senhora D (leia mais na página seguinte). Também
em julho saem, pela Nova Fronteira, as crônicas que a autora publicou
no jornal Correio Popular, de Campinas, entre 1992 e 1995.
As Edições Sesc lançam ainda um livro de fotografias de Hilda de
autoria do artista gráfico, fotógrafo e pintor luso-brasileiro Fernando
Lemos – volume que também conta com um ensaio do editor e professor
da USP Augusto Massi sobre a produção poética e o encontro de ambos.
Em parceria com o Instituto Hilda Hilst, a editora digital e-galáxia
trabalha na publicação de trechos da obra da poeta em diálogo com os
escritos de seu pai, o jornalista e poeta Apolônio Hilst.
O conjunto de lançamentos constitui o que Daniel Fuentes chama de
terceira onda editorial hilstiana. Além dos livros, também há projetos
para o cinema – Hilda Hilst pede contato , de Gabriela Greeb, e
Unicórnio , de Eduardo Nunes.
Traços de lirismo
HELÔ D’ANGELO

Um dos livros mais emblemáticos de Hilda Hilst, A obscena senhora D


será o primeiro da autora a ganhar uma versão em graphic novel .
Lançado pelo selo Quadrinhos na Cia, da Companhia das Letras, a obra
é de autoria da ilustradora e quadrinista carioca Laura Lannes – que, aos
26 anos, já colaborou com veículos como The New York Times, The
Guardian, Buzzfeed e Folha de S.Paulo.
“Busquei trabalhar de um jeito que não obstruísse o livro. Ao mesmo
tempo, não queria mastigar tudo e cuspir na boca do leitor como uma
mãe-pássaro”, afirma Lannes . Em sua adaptação, as palavras de Hilda
Hilst são transformadas em narrativa imagética com desenhos e textos
combinados sem hierarquia. “Quis criar imagens para o livro, não no
lugar do livro”, afirma.
O convite para o projeto veio da própria editora, que a princípio
pretendia adaptar O caderno rosa de Lori Lamby ou Cartas de um
sedutor . A obscena senhora D , romance-reflexão sobre o tempo
narrado pela personagem Hillé, surgiu como possibilidade depois de
conversas entre a quadrinista e os editores. “Fiquei feliz com a escolha
de um livro poético, que me deu mais abertura em termos de imagens.”
Ainda assim, a artista conta que teve dificuldade para recriar o ritmo
fluido da prosa de Hilst e ao mesmo tempo conceber uma “estrutura
própria” que mantivesse traço original e qualidade à altura do texto.
“Hilda às vezes segue no fluxo de pensamento por uma, duas, três
páginas. Depois, cria um diálogo, um momento engraçado. Tentei
manter isso.”
Lannes revela algumas de suas estratégias para mimetizar, sem
ilustrar, a prosa da autora: vinhetas que eliminam a narração para focar
em imagens poéticas; grandes páginas duplas desenhadas – que dão a
mesma impressão da escrita sem pausas – e a opção pelas imagens em
preto e branco que, apesar de carregarem lirismo, são diretas,
exatamente como as palavras de Hilda.
Na adaptação – que traz como referências o traço bicolor de Jillian
Tamaki, a narrativa rebuscada de Moebius e a liberdade de Laerte –,
Lannes espera ter “mantido o espírito” de Hilst, que classifica como uma
urgência de “falar da mulher como um ser cheio de agência sexual, uma
criatura às vezes nojenta, raivosa, velha”. “A senhora D é uma
personagem incrível, tão distante dos arquétipos femininos comuns.
Acho que foi um encaixe muito feliz, eu não teria topado adaptar
qualquer livro.”
livros

Investigação sobre a diferença


AMANDA MASSUELA

“Por que aqueles judeus simplesmente não foram embora quando as


coisas ficaram ruins?”, foi o que Andrew Solomon, então aos sete anos,
perguntou ao pai depois que este lhe explicou pela primeira vez o que
havia sido o Holocausto. “Eles não tinham para onde ir”, ouviu de volta
– e, ali, dentro do Buick amarelo da família em uma estrada do estado de
Nova York, o menino judeu decidiu que aquilo jamais aconteceria com
ele, pois faria de tudo para que não lhe faltassem lugares para os quais
pudesse simplesmente ir.
E foi. Não sem algum sofrimento, já que o mundo o apavorava na
mesma medida em que despertava sua curiosidade de garoto e, mais
tarde, de repórter afiado. Das viagens organizadas pela mãe na infância
às atribuições jornalísticas e investigações de campo na vida adulta,
Solomon percorreu 83 países e sete continentes.
Conheceu lugares e pessoas que passavam por profundas
transformações de diferentes ordens – culturais, políticas, espirituais e
econômicas –, e são essas experiências que compõem a coletânea
Lugares distantes: Como viajar pode mudar o mundo , recentemente
lançada pela Companhia das Letras. O livro reúne artigos e ensaios
publicados ao longo de 25 anos em revistas, jornais e em algumas obras
de Solomon, autor que no Brasil ficou famoso por O demônio do meio-
dia (2000) – vencedor do National Book Award em 2001 – e Longe da
árvore (2012).
Ativista, escritor, conferencista e professor de psicologia clínica do
centro médico acadêmico da Universidade de Columbia, Solomon
defende que viajar representa, além de um ato político, uma prática de
resistência diante do crescente (e perigoso) isolamento entre pessoas,
ideias e nações. Se todos os adultos jovens fossem enviados por duas
semanas a um país estrangeiro, escreve, dois terços dos problemas
diplomáticos do mundo seriam resolvidos.
“Durante a campanha presidencial, alguém fez uma pergunta a Trump
sobre assuntos internacionais, ao que ele respondeu que era a América
que precisava da sua atenção naquele momento”, relembra o escritor em
entrevista à CULT por telefone. “Mas eu sinto que não é possível prestar
atenção à América ignorando o resto do mundo. Essa noção de que
podemos apenas ficar em nosso próprio canto, resolvendo os nossos
próprios probleminhas sem interagir uns com os outros, é muito perigosa
– e se tem algo contra o que o livro argumenta é essa ideia.”
Seus relatos de viagem mostram um mundo em transição: ele narra os
três dias da tentativa de golpe na então URSS em agosto de 1991, o
ambiente artístico da Rússia soviética, da China pós-maoista e da África
do Sul pós-apartheid; a luta de cidadãos de Ruanda, Camboja,
Afeganistão e Líbia contra regimes tirânicos. Os escritos, afirma o autor,
são um registro de “momentos de esperança”, ainda que nem sempre
tenham se concretizado em dias melhores para as populações.
Ele cita como exemplo o Rio de Janeiro, onde esteve em 2011 para
escrever uma reportagem para Travel + Leisure sobre como a cidade se
preparava para as Olimpíadas e a Copa do Mundo. “Pensava-se que a
pacificação das favelas [com as UPPs] levaria a um estado de paz
relativa, o que não aconteceu”, diz. Inteirado da crise da segurança
pública no Rio – quando foi entrevistado pela CULT, Marielle Franco
ainda não havia sido assassinada com quatro tiros –, Solomon acha a
intervenção federal nas favelas “muito triste, mas não inteiramente
surpreendente”.
REPÓRTER VIAJANTE
No livro, alguns dos trechos mais fortes estão nos ensaios sobre a
ocorrência da depressão entre mulheres do Camboja e de Ruanda, dois
países que tiveram sua população dizimada por guerras civis e violentos
conflitos étnicos. Foi no Camboja, em 1999, durante uma conversa com
Phaly Nuon – criadora de um orfanato e um centro para mulheres
deprimidas em Phnom Penh –, que Solomon entendeu que não poderia
escrever sobre depressão, um de seus principais temas, sem adotar uma
perspectiva transcultural.
“Sinto que a depressão é incorretamente entendida como um problema
moderno, ocidental e de classe média e eu quis demonstrar de uma vez
por todas que muitas das coisas que pensamos acontecer apenas conosco
são compartilhadas por muitas pessoas no mundo”, afirma.
Ele ressalta que a tarefa não foi fácil: “Pensei que eu precisava
descobrir como escrever algo que fosse inclusivo, e não que refletisse
apenas a experiência de um homem de meia-idade, branco e de classe
média com a depressão. Precisava ser muito maior e mais abrangente
que isso. Foi uma verdadeira jornada para mim.” Consultor especial de
saúde mental LGBT em Yale, o próprio autor convive com a doença.
Apesar de paralelo à obra de Solomon dedicada à psicologia e à
dinâmica familiar, Lugares distantes parte da mesma base de
investigação: a diferença. O livro pode ser considerado o ponto que
funde os grandes temas da produção intelectual do autor, já que foi o
contato com a diversidade de paisagens, modos de vida e de organização
da política ao redor do mundo que o incentivou a mergulhar com mais
intensidade nas diferenças entre indivíduos e na construção de
identidades.
Nada mais natural, considerando que, para ele, conhecer um lugar não
difere muito de conhecer uma pessoa: ambos são exercícios profundos
de psicologia – e, nesse ponto, os ensaios de Lugares distantes são muito
mais psicológicos do que propriamente políticos, mesmo quando
abordam processos eleitorais ou revolucionários.
Os relatos impressionam pela riqueza de detalhes e mostram o olhar
de um repórter atento, mas que não é mero observador dos fatos:
Solomon enfrenta tanques militares com um grupo de artistas russos,
aprende a linguagem indonésia de sinais na pequena aldeia de Bengkala,
participa de um ritual tribal para tratar a depressão no Senegal. No papel
de jornalista, compreendeu que há uma distinção entre o turista – aquele
que vai a lugares apenas para olhar a paisagem – e o viajante, sujeito
ativo que acaba modificado por aquela cultura (e às vezes deixa para trás
algo capaz de modificá-la também).
“A minha esperança é que, com o tempo, o ato de viajar leve abaixo
as barreiras do ‘exotismo’”, diz. “Se conseguirmos fazer com que as
pessoas continuem viajando, conhecendo outros lugares e estabelecendo
conversas com indivíduos diferentes de si, nosso mundo talvez se torne
melhor e mais maduro, com menos ódio e mais compreensão.”
livros

Restos de naufrágio
SILVIO ROSA FILHO

Na segunda semana de março, em passeata que saíra do vão do Masp e


seguia para os lados da Câmara Municipal, num sebo instalado sobre o
Viaduto Nove de Julho, encontrei um exemplar da 28ª edição brasileira
de Terra dos homens, o mesmo que tenho hoje à mesa, ao lado da
belíssima tradução de Rubem Braga. Voltei para casa. Palavras de
ordem ainda ressoavam entrelaçadas às que exigem investigação e
justiça pelos assassinatos de Marielle Franco, Anderson Gomes e tantos
e tantas de cujo nome, um dia, aprenderemos a não nos esquecer. Na
companhia de dois volumes, o lançado em 1939 e o que hoje faz parte da
coleção Clássico para todos, passei a noite colhendo algo daquilo que o
narrador – relatando suas aventuras quando jovem piloto do correio
aéreo – mais de uma vez designou com estas palavras: “restos de
naufrágio”.
Como voar não corresponde a um equivalente geral de sobrevoo, a
meditação do piloto não se confunde com divagações apartadas, mas
“envolve o homem em todos os velhos problemas”. Logo se percebe que
o ponto de vista desse homo viator não é o de Sírius, vértice de
triangulações abstratas que não distinguisse o que o espetáculo oferece
ao passageiro e o que a paisagem requer da tripulação.
Aprender o ofício de piloto com as meias palavras dos veteranos,
desvendar segredos e perigos de linhas aéreas mais ou menos
estabelecidas ou por estabelecer, como Paris/Buenos Aires/Santiago,
começava por disputar a pequena máquina a divindades elementares: a
montanha cujo pico enevoado poderia significar um encontro súbito e
explosivo; a tempestade, cujas metamorfoses em neve, areia e aguaceiro
colocavam o navegante em risco iminente de morte, congelamento nos
Andes, cadáver de barro, estátua ressequida no Saara; o mar, cujas
condições impedissem o pouso de emergência e tornassem inadiáveis a
queda forçada, afogamento de aviadores que no início do século passado
foram contados às centenas.
Com o companheiro mais próximo, a quem Terra dos homens foi
dedicado, o aprendizado continuava pelo apagamento dos presságios
fúnebres. Da noite de inverno em que ocorre o “seu batismo
profissional” até a postura do homem que luta, em nome de sua criação,
contra a morte. No caminho ainda legível dos astros como nos rastros de
uma caravana, no oásis assim como no centro do deserto, a grandeza de
um ofício se mostra, pois, antes de tudo, ao unir aqueles e aquelas a
quem estamos ligados para sempre por causa das provações vividas,
juntos.
Este livro é do tempo em que ainda era possível enxergar o planeta,
através dos instrumentos de bordo e das escotilhas, “como se fora
através de instrumentos de estudos”. Voltando dos confins do mundo, a
força de gravidade que une o homem a si mesmo é também aquela que
transforma seus pontos de escala em modos peculiares da memória.
Repõe, para o leitor, “a insígnia de toda uma constelação”.
Assim é do capítulo “Oásis”, “um conto de fadas cruel”, vivido nas
redondezas de Concórdia, Argentina. Ali, por uma noite, o piloto se
torna hóspede de um casarão, “quase uma cidadela”, com um senhor e
duas filhas. Da sala de visitas à sala de jantar, o oásis mundano remete
ao vivido na infância, quando as duas irmãs do pequeno Antoine
brincavam de dar nota aos convidados: cinco e meio, por exemplo,
quando eles deixavam que a conversa caísse em silêncio. À mesa
argentina, o jovem Antoine se vê sob o mesmo jogo: as duas moças,
além de reinar sobre animais domésticos que compunham um “novo
paraíso terrestre”, se divertem quando entre eles se faz um silêncio –
silêncio, porém, logo ocupado por algo que sibila levemente no
assoalho. Mas que seriam esses bichos que passam entre as pernas do
convidado? “Víboras”, diz uma das moças. “Fizeram o ninho num
buraco, debaixo da mesa”, diz a outra. E acrescenta: “Às dez horas da
noite elas voltam. Durante o dia caçam”.
Aos poucos o leitor se achega ao centro do deserto. Se no começo o
deserto é solidão e silêncio, as areias do Saara, por exemplo, passam por
transfigurações várias: somente com a sede é que o poço, velho
conhecido, resplandece na amplidão; ao nos enamorarmos pela
protagonista, que reside em Túnis mas aparece numa história de amor,
contada na Mauritânia, somente ali é que o deserto se abre, para nós,
como aquilo que já nascia em nós. Deixa de ser casa vazia. É habitado
por um adversário ou por uma tempestade em marcha; meninos pedindo
sua esmola em água; êxodos que a chuva anima; fiéis à espera de que
deus descanse de sua loucura. Quando as estrelas ali caminham
lentamente e um céu inteiro é que marca as horas, há lugar para os
amigos, dissidentes mas vencidos, voltarem a se rebelar. Há lugar para
ouvir Mohammed ben Lhaouissin, velho marroquino escravizado a pedir
que o escondam no avião que tem escala prevista em Marrakech. Verá o
leitor qual fisionomia se desenha para retratar esse escravo idoso que,
“às portas da vida”, “banhado por um mar de crianças”, brinca de se
tornar homem livre.
Num dia do ano de 1935, ao piloto acontece alcançar o coração do
deserto. Preso nos confins da Líbia, pensou que fosse morrer num
quadrado com 400 quilômetros de lado. O leitor ouvirá, com o crepitar
de um vocabulário cada vez mais ressequido, a realidade seguir
ganhando terreno diante do sonho, travessia de miragens que, articuladas
à sutileza de um escritor em plena maturidade, oferece uma matriz
simbólica para pensarmos – contra toda esperança e para muito além da
torrente de imagens – o lento crepúsculo do humanismo abstrato.
Verá o leitor que também a noite tem lá suas miragens. Para muito
além do Homem que aparece no rosto de todos os homens, o surgimento
de um beduíno da Líbia mais se parece com a derradeira miragem.
Terminado o curto círculo de autonomia da sede, quando André e
Antoine estão sozinhos no mundo e como que “esquecidos por uma
migração universal”, eis que o beduíno “caminha para nós sobre a areia
como um deus sobre o mar”. Encerrada a marcha da sede, lemos: “ele
simplesmente nos olhou”.
Chegamos ao epílogo do livro e encontramos o piloto do correio aéreo
no interior de uma máquina, que mais se assemelha a um trem fantasma.
Está em visita a uma “pátria em marcha”. Atravessa os vagões de
primeira e segunda classe, vazios; os de terceira, todavia, estão repletos
de operários deportados da França para a sua Polônia.
Senta-se ele, então, diante de um casal; e assistimos a um singelo
advento. Entre o homem e a mulher, havia se alojado uma criança que,
bem ou mal, dormia. “Inclinei-me sobre a fronte lisa, a pequena boca
ingênua. E disse comigo mesmo: eis a face de um músico, eis Mozart
criança, eis uma bela promessa de vida”. “Mozart criança irá para a
máquina de entortar homens”; nosso piloto voltará para o seu vagão. E o
que ele tem a nos dizer não se atém a sucedâneos de manjedoura ou de
aguadas filantropias.
Transcrevo apenas, aqui, as suas penúltimas palavras: “O que me
atormenta, as sopas populares não remedeiam. O que me atormenta não
são essas faces escavadas nem essas feiuras. É Mozart assassinado, um
pouco, em cada um desses homens”.
colaboraram nesta edição

Bruno Zeni é doutor em Letras pela USP, escritor e editor

Cláudio Oliveira é doutor em Filosofia pela UFRJ e professor


associado do Departamento de Filosofia da UFF

Daniel Fuentes é cientista político e presidente do Instituto Hilda Hilst

Eliane Robert Moraes é doutora em Filosofia e professora de Literatura


Brasileira no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da
FFLCH-USP

Fernando Scheibe é doutor em Literatura pela UFSC e tradutor

Juan Esteves é fotógrafo

Leandro Carlos Esteves é jornalista

Leusa Araujo é escritora, jornalista e editora

Você também pode gostar