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Investigação sobre a diferença
Restos de naufrágio
Psicopolítica do fascínio
MARCIA TIBURI
Difícil aceitar a morte de Hilda Hilst, justamente num ano em que seu
trabalho está mais vivo do que nunca. Para os que, como eu, tiveram a
alegria de estar perto dela e de compreender as razões de tanto
ressentimento acumulado com a falta de recepção de seus livros, ainda
fica uma ponta de desconfiança no ar. Mesmo com a publicação de sua
poesia reunida, ficção, teatro e crônicas, das matérias de imprensa e
teses acadêmicas, quanto desse entusiasmo pela escritora, poeta e
dramaturga representa um mergulho verdadeiro e a leitura tão desejada
por Hilda? Em outras palavras: o que pode ser mais excêntrico, excitante
ou deslumbrante do que a leitura de seus livros – hoje cuidadosamente
editados e lançados em todo o país e fora dele?
Quando a conheci na Casa do Sol, em 1985, com 25 anos, Hilda havia
completado 55, e já estava voltada para a reunião de seu trabalho (ela
não gostava de que chamassem de obra). Várias etapas foram quebradas
desde nosso primeiro encontro, e o diálogo se estabeleceu de imediato
por uma única razão: eu havia lido seus livros, todos os que pudera
arrebanhar nos sebos em São Paulo. Mas não cheguei a imaginar que
essa ligação – de profunda admiração pela maior escritora brasileira –
seguiria por quase os vinte anos posteriores, até sua morte, em 2004.
O que mais me atraía à Casa do Sol era ver a dedicação e a disciplina
quase monástica de Hilda – e que se expressou em mais de 50 títulos
entre prosa, poesia, teatro e crônicas.
Mesmo integrante da “KGB literária” – como a escritora chamava o
rol de seus poucos e secretos leitores –, sempre acreditei que esse
número cresceria cada vez mais e, por isso, me tornei uma “agente
literária” informal e ativa assessora de imprensa. E, mais tarde, como
escritora e pesquisadora, segui cumprindo essa espécie de pacto de
propagação de Hilda Hilst e suas conexões.
Por essa razão, me sinto à vontade para afirmar que somente um
“ardil” como o arquitetado por ela para o lançamento de O caderno rosa
de Lori Lamby em paralelo com Amavisse – anunciando a Hilda Hilst
pornógrafa, de um lado, e a despedida da escritora séria, de outro (que
não se cumpriu) – para atrair atenção maior sobre a obra escrita antes de
1990 e que restava obscura.
Apesar da falta de acesso aos livros publicados até então, quase
sempre por pequenas editoras (exceto Com os meus olhos de cão ), ao
relembrar a perplexidade com que os primeiros textos da tetralogia
obscena – O caderno rosa de Lori Lamby , Contos d’esc á rnio – Textos
grotescos , Cartas de um sedutor e Bufólicas – foram recebidos, fica a
sensação de que houve uma certa desatenção do leitor, ou mesmo da
crítica, em revirar textos passados.
O caderno rosa de Lori Lamby era uma novidade, sem dúvida. Mas
nada que destoasse de outras vozes na ficção e no teatro de Hilda. Como
não reconhecer no editor que encomenda bandalheiras ao pai de Lori o
recorrente editor-carrasco que encomenda “novelinhas amenas” ao
personagem Ruiska de Fluxo-Floema , escrito em 1970? Ou a volta ao
tema da “sexualidade sem culpa” da Matamoros-menina, de Tu não te
moves de ti (1980)? Ou ainda a forte presença do erotismo, como em
Agda, de Qadós (1973): “nenê rosado te dou doçuras, me dás babas,
mijadas, te amo, depois menina púbis delicado, te dou balas, botas, boró,
te dou sorrisos, és toda lisa, dura bocaxim, depois mulher te dou boró
outra vez para que me dês aquilo mesmo, te dou, me dás, depois velha
bruaca, bocarela, cala a boca, fedes amarelecida, não te dou, não me dás,
ninguém te toca, te pergunto: o corpo-porco ainda é o teu?”
Na verdade, o erotismo, a escatologia, o grotesco e o humor
desconcertante e cruel de HH sempre estiveram presentes notadamente
na ficção, no teatro e nas crônicas. Seja em Hillé, Tadeu, Amós,
Matamoros, o Diabo assistindo à partida de xadrez entre o Cardeal e o
Monsenhor são alguns dos muitos exemplos por que o leitor atento não
se deixaria lograr pelo ardil. Como bem observaram Edson Costa Duarte
e Clara Silveira Machado “as faces de Hilda formam
umasómúltiplamatéria, para usar uma expressão da própria autora (...)
podemos interpretar toda a sua ficção como um único livro”.
Com a publicação de O caderno rosa , a “devassa” e a “velha
pornógrafa” então – a exemplo do que quase sempre ocorre com
escritoras mulheres que se atrevem a tratar o tema do erotismo –
entrariam definitivamente para o anedotário em torno de Hilda Hilst. Na
intimidade, lembro que chorou ao ver na contracapa da primeira edição
francesa de A obscena senhora D mais uma confusão entre autora e obra
que reverberaria na crítica: “O jornal Libération publicou uma resenha
de L´obscène madame D , referindo-se a mim como ‘la cochonne
hystérique’, a porca histérica. Me comparavam ao Bataille; eu sou muito
ligada a ele mesmo. Mas me chamaram de porca histérica. Eu até chorei.
Pensei: ‘Quer dizer que não é só no Brasil, na França também?’ O
comentário todo era bonito, mas o título...”.
Não é de estranhar, portanto, que Hilda tivesse reagido publicamente,
em 1994, mais uma vez, aos estigmas que seguiam interferindo
decisivamente na recepção e nas decisões sobre a publicação ou não da
obra: “E aqui, no meu país eu sou tratada, depois de 40 anos de trabalho,
exatamente como era tratada aos olhos dos ‘hipócritas’ quando eu tinha
vinte anos: uma puta. Sim, porque eu era tão autêntica, tão livre, tão
inteligente, tão bela e tão apaixonante! Ahhhh! O ódio que toma conta
das gentes quando o talento é muito acima da média! E como se agrava
contra nós esse ódio quando se é mulher! E quando se fica uma velha
mulher, aí somos simplesmente velhas loucas, putas velhas, poetisas
sacanas, asquerosas, enfim!”
Sou leitora, não sou crítica literária. Mas tenho certeza de que quanto
mais lermos Hilda, mais encontraremos exemplos de seu pensamento
libertário, na vanguarda de seu tempo – pois ora vemos parentesco de
sua prosa com o existencialismo, com o surrealismo, com os “barrocos
da latino-américa” – como o chileno José Donoso; assim como
elementos do expressionismo alemão no seu teatro. Até mesmo a poeta
lírica segue na contracorrente das escolas literárias – o que a torna o
“unicórnio” na literatura brasileira contemporânea, parafraseando a
afirmação do crítico Anatol Rosenfeld a respeito da originalidade de
Hilda na dramaturgia.
Poucos escritores deixaram tão revelados nos versos e na ficção as
intenções, percursos, ideias sobre o mundo, angústias existenciais, como
Hilda Hilst. Reverenciou e citou escritores, poetas, filósofos, físicos – de
Nikos Kazantzakis, Pär Lagerkvist, Malcolm Lowry, Mora Fuentes,
Marx, Simone Weil, Beckett, Drummond, Lorca, Jorge de Lima,
Wittgenstein, Ernst Becker, Mario Schenberg; e especialmente mártires
e pessoas capazes de sacrifícios pelo outro, como Che Guevara, Santa
Teresa D’Ávila, Teresinha de Lisieux, Maximilian Kolbe. Todos estão
lá, ora nos versos ou no jorro dos seus personagens.
Acreditou na alma imortal, no ser-verdade que se esconde por detrás
das máscaras que o homem tem de usar para suportar o efêmero. Deixou
cartas para os pósteros (com muito humor e despudor), diários e
desenhos – tentando, quem sabe, encontrar leitores que, como ela,
amassem os Diários de Kafka.
Leu com a mesma seriedade matéria sobre o poder dos cristais da
revista Planeta quanto o L’irréversible et la nostalgie do filósofo
Vladimir Jankélévitch. E por anos pude vê-la, como quem consulta o
oráculo, tendo em mãos Ulisses , de James Joyce, e a biografia do iogue
Paramahansa Yogananda.
Ainda que tivesse uma voz linda e empostada à maneira das grandes
atrizes do teatro paulista, não gostava de falar em público, tinha aversão
às mesas literárias, pois sabia que sua batalha se dava num único terreno:
o da linguagem.
Deu as costas à literatura satisfeita, que considerava “entediante”, e
transgrediu não só na prosa – mas todas as vezes que o poético irrompeu
na sua literatura, original e única.
Ler Hilda Hilst é entrar nesse jogo do “unicórnio ” , em que a cada
lance sentimos diminuir a distância entre um homem e outro.
O jardineiro da casa
LEANDRO CARLOS ESTEVES
DA AMIZADE
Mora Fuentes chegou à Casa do Sol, morada de Hilda Hilst, em 1968,
com 18 anos, mas já dedicado à literatura. Um ano depois, HH enviava
ao escritor e também amigo Caio Fernando Abreu a “novela” Osmo , e
ele a saudou como “uma coisa realmente nova: ri feito uma hiena e
depois o texto ganha em angústia e desespero”. Caio entende que Osmo
derruba a estrutura de “mal-entendidos literários” e “faz montes para a
dignidade da linguagem, o estilo, as figuras, os ritmos”.
Durante anos julguei escutar a voz sarcástica de Osmo como sendo a
de Mora Fuentes, cheia de ironias e piadas com o espírito pequeno-
burguês (Ah! O que o Mora não diria dos apoiadores do golpe de 2016?
Quanta risada eu perdi). Hilda dizia que a novela era uma “ascendência
solitária de Beckett”, mas localizo aí o início de uma influência
recíproca.
Em 1970, depois de muito escrever e reescrever, Mora publica seu
primeiro conto no suplemento literário do Estadão: A e B
Incomensurável , algo próximo do estilo mordaz de Cortázar (com quem
Mora se parecia fisicamente), mas com o incomensurável de HildaZé.
Como convivi com os dois, vez em quando me perguntam sobre a
inspiração de Hilda na obra de Zé Mora Fuentes, mas me lembro logo
das tantas influências no sentido contrário: “Matamoros” (do livro Tu
não te moves de ti ) era o nome de uma antiga namorada do pai do Zé;
Estar sendo. Ter sido retrata o Zé em três personagens diferentes e um
deles é o próprio Mora: “(...) como rimos aquele dia e ... onde está o
Mora? Com a mulher, com o filho, escreveu aquilo: Sol no quarto
principal é muito bom, mas está triste, diz que está velho, imagine..., eu
estou o quê afinal?”.
Hilda compôs o “corpo-escrita” Agda (em Qadós ) sobre o romance
que teve com Zé e segue refletindo sobre o envelhecimento da
personagem Agda-HH diante do jovem por quem se apaixonara. O
contrário também foi copioso, as influências foram tantas que um dos
exercícios feitos por algum tempo na Casa do Sol consistia, quando do
café da manhã, de Mora ler o que tinha escrito para Hilda e ela
comentar: “nessa parte sou eu; nossa! essa ainda é a Clarice...” para que
o escritor pudesse se despir um pouco tanto de sua amada Hilda quanto
de Clarice Lispector, com quem Mora também teve um breve romance.
Clarice é a Olenska das cartas que Mora escrevia; uma delas ele inclui
no seu primeiro livro.
Imagine, leitor apaixonado por literatura, que meu amigo Zé namorou
HH e Clarice, as melhores e mais lindas escritoras: Hilda era
estonteante, e os olhos de Olenska até hoje me assombram.
Nosso escritor cultuou o chamado “gênero epistolar”, esmerava-se em
cartas como se fossem seus contos. Certo dia, Zé iniciou uma carta para
Olenska e, na metade, perdeu-se terminando por escrever para HH. A
confusão era compreensível. Depois desses romances tórridos,
novamente as cartas do Zé (acompanhadas de livros da Clarice que
enviava) garantem o retorno da bela artista plástica ruiva e hippie
militante Olga Bilenky, com quem se casou (as obras dela podem ser
vistas em capas de livros e CDs ou no IHH, incluindo a interessantíssima
série Mandalas ).
Apesar dos exercícios, a interlocução de Hilda com a obra de Mora é
marcante. Exemplos como o trecho da novela Sol no quarto principal
(infelizmente ainda também inédita) que comunica com a pontuação, o
ritmo, o fluxo-jorro de HH: “Me pergunto se alguém pode estar bem
com alguém tão morto por perto, meus braços nem sei se ainda são
meus, despencam dos ombros assustadoramente, queira Deus não
terminem aos tocos pelo chão, pés e pernas formigam num crescente não
sinto os sapatos, meu corpo é memória perdida, esse sou eu, um grito
antes do medo, poucos sabem, a garrafa de conhaque no armário, como
chegar até lá sem me desfazer em pedaços? Respiro fundo, a tontura
aumenta, Vou sobreviver – repito lá por dentro – vai passar, mas não.
Num descontrole absoluto, estou no tempo da morte dos pais”.
Foi mais do que a educação sentimental de Mora. Era conjunção.
Passada a paixão inicial, HidaZé se tornou uma dessas amizades pra lá
do corpo, coisa rara de amor puro e comunhão de objetivos. Tratavam-se
pelos apelidos de Sapo e Lacraia. Não era humana aquela amizade.
Hilda em carta de 30 de agosto de 1979 para Mora: “Agora mais lindo
foi saber que teu rim está belíssimo aí cravado (...) está adorando a nova
linda cálida doce casa dele, corpo amor do Sapo”. Mora era enfermiço,
seus rins nunca funcionaram e o primeiro de seus dois transplantes (com
o rim doado pela mãe, Mari Fuentes) foi pago por Hilda. Por fim, Mora
morreria prematuramente, com 57 anos de idade, em decorrência dos
muitos tratamentos a que fora obrigado a se submeter.
A ABADIA E OS ESCRITOS DE MORA
A ABADIA E OS ESCRITOS DE MORA
Era uma Abadia a Casa do Sol, o retiro-arquitetura projetado por Hilda e
executado por Dante Casarini, escultor que lá deixou os São Franciscos
que ladeiam a entrada principal e a madona mítica com seu menino no
pátio. São esses personagens (citados até agora) que fizeram o início da
Abadia e o mais fundamental: a disciplina conventual.
Hilda dedicava-se a ler durante a metade exata do seu dia e na outra
escrevia (tinha até uma meta de tantas palavras por dia a serem escritas).
Mora escrevia à noite e plantou o jardim durante as tardes (ofício esse
narrado em seus contos).
Eles encontraram uma tecelagem em Jaguariúna que vendia metros de
tecidos com restos de tinturaria. A própria mãe de Mora muda-se por
uma temporada para a Casa do Sol e confecciona com esses tecidos
manchados as batas singulares e lindas usadas como uniforme. Hilda
usou batas até sua morte. Olga e outros amigos da Casa as usam até
hoje.
Os dois e Olga dedicavam-se também aos desenhos. Há muitos deles
na Casa do Sol. Vezes sem conta tentei decifrá-los como um único
conjunto e a nada cheguei. Ainda hoje tenho essa tentação.
A Abadia tinha suas divindades: o desenvolvimento da linguagem e o
aprofundamento do “dedentro” (como diziam HildaZé), condição para o
“repensar contínuo” e para a descoberta da verdade essencial. Nada que
não fosse profundamente verdadeiro (na linguagem e no deserto da
alma) interessava a esses criadores. A Abadia, se não produziu uma
“escola artística”, deixou marcas fundas na literatura. De sua primeira
fase ainda temos a descobrir a obra de Mora Fuentes.
Uma de suas características que sempre me chamou a atenção foi a
forma com que tratou os miseráveis (povo de rua) nos seus contos. Isso é
raro entre os literatos brasileiros e também acaba passando para a obra
de HH em muitas crônicas e mesmo no Estar sendo. Ter sido surgem os
miseráveis (textos posteriores a 1992).
No seu conto “Amanhã, debaixo de Ponte Cadela”, publicado em
Fábula de um rumo , desfilam personagens como Daniel Tranca-Rua e
Zezinho Abre-Fossa que vivem no Viaduto, na “célula do nada”, na fila
da sopa, até que um deles é preso por roubo e nunca volta da prisão.
Mais tarde, no notável conto “Deus” (que ainda não encontrou abrigo
em livro), uma mendiga fica grávida do Altíssimo, tenta assassinar o
padre que se recusa a batizar seu futuro rebento com o nome de Deus e
acaba morta quando o Nada (ou seria Deus?) nasce.
Sempre um ser político, Mora dedica contos e novelas à resistência às
ditaduras, e talvez essa seja a qualidade que mais o aproxima dos tempos
duros em que vivemos. Seu pai, Benito Mora, fora militante anarquista,
combateu na guerra civil espanhola e finalmente fugiu de Franco em
1953 com o filho pequeno no colo.
Mais tarde, o anarquista Benito foi militante de destaque no PT de São
Bernardo do Campo. Lembro-me de sua disputada paella , que
preparava e servia ao povo de graça e para figuras como Lula e Jacques
Wagner. Fazia pipas e patinetes para a garotada daquele subúrbio, e seu
enterro atraiu multidão. Tocava piano, foi compositor e, às vezes, poeta.
Embora não abraçasse o anarquismo, Mora Fuentes lutou com sua
literatura contra o fascismo. O conto “Fábula de um rumo” (que deu o
nome ao livro) trata de um herói ocasional, que vivia fora da cidade
dominada e reprimida por militares, mas que levado por circunstâncias
acaba matando quatro desses repressores e ajudando o movimento de
libertação.
Na sua novela Sol no quarto principal , o personagem narrador
descobre diários de seu companheiro de quarto de pensão, morto
repentinamente, que mostram ter sido ele um torturador. As passagens
sobre o curso de tortura ministrado pelo Exército nacional, com a ajuda
de instrutores estrangeiros e as diferenças encontradas entre os
torturadores, violência planejada, rotineira e incessante, mantêm uma
inquietante semelhança com os dias de hoje.
Que José Luis Mora Fuentes seja publicado e conhecido!
A gestão de um legado
DANIEL FUENTES
Não lembro o dia exato que me contaram, mas provavelmente foi meu
pai em algum momento ao redor dos meus 14 ou 15 anos. Na minha
memória não houve uma conversa específica, mas várias que traziam à
tona o assunto e foram me fazendo compreender a importância do que
herdaria e de como isso deveria ser cuidado. Hilda mesmo nunca tratou
do assunto comigo, mas a verdade é que passei a fase final da minha
adolescência sabendo que seria herdeiro de seus direitos e que este
presente vinha com uma grande dose de responsabilidade que em algum
grau faria parte da minha vida adulta.
A verdade é que em 2004, quando Hilda morreu, a única parte
descomplicada do testamento eram seus direitos autorais, todo o resto
fazia um caldo muito complexo de herdeiros e dívidas de IPTU. No
mesmo ano meu pai, que havia ficado com a Casa do Sol, criou o
Instituto Hilda Hilst (IHH) com o intuito de juntar forças para garantir a
preservação da Casa, então com vários processos de execução para os
quase 3 milhões devidos à Prefeitura de Campinas.
A Casa, e não a literatura, era a urgência. A ação do IHH nos
primeiros anos de vida foi gerir este passivo com advogados e constantes
visitas às instâncias municipais de cobrança. Quem capitaneava esta
história era meu pai, e eu, ainda na graduação, participava lateralmente
deste xadrez que à época parecia insolúvel.
Sempre foi claro este duplo legado de Hilda, direitos autorais e Casa
do Sol, cujas demandas e potencialidades, ainda que obviamente em
diálogo, apontavam para diferentes conjuntos de ações necessárias,
sendo perfeitamente possível construir um “boom Hilda Hilst”, como o
que penso vivemos, sem com isso garantir a preservação da Casa
enquanto bem cultural socialmente relevante.
Essas diferentes dinâmicas de gerir a cultura se colocaram para mim a
partir de 2009 quando, com a morte de meu pai, decidi assumir a
presidência do Instituto Hilda Hilst e encarei, por um lado, um universo
de amplas potencialidades para a obra e, por outro, um bem cultural
físico com quase 10 mil metros quadrados na cidade de Campinas que
não tinha um modelo claro de como progredir e vencer seus desafios a
ponto de realmente cumprir sua vocação cultural.
Para a gestão da obra, o ponto de partida era uma Hilda que, mesmo
lentamente na época, ganhava público através dos livros então na editora
Globo, e ampliava o número de leitores, impulsionada por
desdobramentos em outras artes, especialmente o teatro. Aliás, é no
palco que Hilda postumamente viu sua obra (em especial a prosa)
definitivamente descer dos Olimpos intelectuais e alcançar as novas
juventudes. Logo foi possível começar uma nova leva de traduções no
exterior que, impulsionadas pelo interesse internacional que o Brasil
gerava no auge da bonança, se multiplicavam a partir de boas críticas
vindas dos EUA.
Se por um lado o caminho estava claro para a ampliação do público de
Hilda, o mesmo não pode ser dito da gestão da Casa. As possibilidades
existentes para um bem imóvel com valor cultural são muito mais áridas
em soluções – principalmente de financiamento – e partes de um custo
fixo muito maior e que piorava quando somado ao significativo passivo
que ameaçava a até então não tombada Casa do Sol.
Optei por abrir múltiplas frentes de atuação que dessem conta, dentro
do possível, dos diferentes estágios de cada universo deste legado.
Primeiro era necessário construir uma saída negociada – e não judicial –
do inventário que permitisse virar esta página e limpasse todas as
dívidas. Busquei ainda tombar a Casa para garantir a sobrevivência dela
no tempo, já que não bastava apenas eliminar a dívida pregressa, mas
também garantir que uma nova não fosse criada (o tombamento em
Campinas gera isenção de cobrança de IPTU, além de legitimar
socialmente a relevância do bem). Isso tudo se realizou apenas no final
de 2012 e, por isso, considero que 2013 é o “ano 1” real do Instituto
Hilda Hilst, pois só depois disso começamos a realmente trabalhar com
cultura de forma efetiva, repovoando de vida a Casa através de diversas
ações bem-sucedidas como nosso Programa de Residência, que já
superou a marca de 200 participantes, ou então as muitas temporadas
teatrais e, é claro, o trabalho com o acervo pessoal de Hilda, já
desdobrado em diversas outras realizações.
Noutro front , segui criando estratégias para sanar uma situação a meu
ver esdrúxula. Hilda ampliava seu público de forma muito mais
acanhada na literatura do que nas outras artes. Com isso em mente, fui
aprendendo com a presença do IHH nas redes sociais que o forte de
Hilda era crescer entre jovens (hoje quase 50% de seu público tem
menos de 34 anos) e mulheres (70%) e a linha editorial deveria ser
ajustada para facilitar a chegada dela a esses universos, sem, é claro,
desprezar os antigos leitores ou o cuidado com a qualidade de cada
publicação.
Esse plano de ação desembocou na que hoje chamo de Terceira Onda
Editorial de Hilda, com a Companhia das Letras no centro, cuidando do
core de sua obra, mas com publicações específicas trabalhadas em
projetos editoriais individualizados e pensados para ampliar seu alcance,
tal como o teatro pela L&PM e as crônicas pela Nova Fronteira. Aqui a
parceria com a agente Marianna Teixeira Soares foi fundamental para
construir um plano de longo prazo com as editoras.
Hoje a cultura está numa crise tão grande de financiamento no Brasil
que tem se tornado progressivamente mais difícil – em alguns casos
inviável – produzir algo que não tenha uma saída direta para o mercado,
como, por exemplo, a venda de um livro para o consumidor final. Para o
universo de Hilda isso cria uma situação perigosa e sui generis em que,
por um lado, seu público leitor chega a crescer 200% em um único ano
e, por outro, a preservação de sua memória e todos os seus
desdobramentos materiais e imateriais, representados na Casa do Sol e
em seu acervo pessoal, não encontram eco no Estado nem na sociedade
– mercado inclusive – para minimamente construir uma lógica
econômica que garanta a preservação e a democratização de suas
riquezas.
O que vem por aí
AMANDA MASSUELA
Restos de naufrágio
SILVIO ROSA FILHO