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A MORTE DOS GIRASSÓIS – Caio Fernando Abreu

Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me


olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar
para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia
apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo lenta pelos cordões,
rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais
pálido. Perguntei que-que foi, ele enfim suspirou: “Me disseram no
Bonfim que você morreu na quinta-feira”. Eu disse ou pensei dizer ou de
tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim.
Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me
libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar
aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar lá no
Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do
ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado:
enfim um lugar sem baixo astral”.

Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.

Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido


muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora
parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.

Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar


enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos
destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo
catita, parece que vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e


nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido
pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei
uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas
sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido
quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que
restava, que é sempre o que se deve fazer.
Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente
despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então,
como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra,
exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais
esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.

Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado


que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoie-o numa
espada de são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá
estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o
apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo.
Quando parecia quase bom, cráu! Veio chuva medonha e deitou-o por
terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme.  Aí me veio a ideia:
cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos
quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia
cheio de ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e
de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.

Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o


próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada
exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o
outro. Um com o talo torto, o outro com as mãos quebradas. Durou
pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala
por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada. Para que
caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à
terra. Depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa,
palma-de-santarrita, lírio ou azaleia, vai saber que tramas armam as
raízes lá embaixo no escuro, em segredo.

Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que
comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se
deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu?
Algumas pessoas  acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.

Zero Hora, 18 de março de 1995


O Homem Trocado – Luis Fernando Veríssimo

O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de


recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.

– Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.


– Eu estava com medo desta operação...
– Por quê? Não havia risco nenhum.
– Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos... E conta
que os enganos começaram com seu nascimento.

Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um
casal de orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com
olhos redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou
com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não
soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.

– E o meu nome? Outro engano.


– Seu nome não é Lírio?
– Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e... Os enganos se sucediam.

Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com
sucesso, mas não conseguira entrar na universidade. O computador se
enganara, seu nome não apareceu na lista.

– Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês
passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.
– O senhor não faz chamadas interurbanas?
– Eu não tenho telefone!

Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram
felizes.

– Por quê?
– Ela me enganava.

Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas que
não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico dizer: - O
senhor está desenganado. Mas também fora um engano do médico. Não era tão
grave assim. Uma simples apendicite.

– Se você diz que a operação foi bem...


A enfermeira parou de sorrir.
– Apendicite? - perguntou, hesitante.
– É. A operação era para tirar o apêndice.
– Não era para trocar de sexo?
Da Salvação da Pátria - Carlos Heitor Cony

Posto em sossego por uma cirurgia e suas complicações, eis que o


sossego subitamente se transforma em desassossego: minha filha surge
esbaforida dizendo que há revolução na rua (1).
Apesar da ordem médica, decido interromper o sossego e assuntar
(2): ali no Posto 6, segundo me afirmam, há briga e morte. Confiando
estupidamente no patriotismo e nos sadios princípios que norteiam as nossas
gloriosas Forças Armadas, lá vou eu, trôpego e atordoado, ver o povo e a
história que ali, em minhas barbas, está sendo feita.
E vejo. Vejo um heróico general, à paisana, comandar alguns rapazes
(3) naquilo que mais tarde o repórter da TV-Rio chamou de “gloriosa barricada”.
Os rapazes arrancam bancos e árvores. Impedem o cruzamento da Avenida
Atlântica com a Rua Joaquim Nabuco. Mas o general destina-se à missão mais
importante e gloriosa: apanha dois paralelepípedos e concentra-se na brava
façanha de colocar um em cima do outro. Estou impossibilitado de ajudar os
gloriosos herdeiros de Caxias, mas vendo o general em tarefa aparentemente
tão insignificante, chego-me a ele e antes de oferecer meus préstimos
patrióticos, pergunto para que servem aqueles paralelepípedos tão sabiamente
colocados um sobre o outro.
– General, para que é isto? O intrépido soldado não se dignou olhar-me.
Rosna, modestamente:
– Isso é para impedir os tanques do I Exército! Apesar de oficial da
Reserva – ou talvez por isso mesmo – sempre nutri profunda e inarredável
ignorância em assuntos militares. Acreditava, até então, que dificilmente se
deteria todo um Exército com dois paralelepípedos ali na esquina da rua onde
moro. Não digo nem pergunto mais nada. Retiro-me à minha estúpida
ignorância.
Qual não é meu pasmo quando, dali a pouco, em companhia do bardo
Carlos Drummond de Andrade, que descera à rua para saber o que se
passava, ouço pelo rádio que os dois paralelepípedos do general foram
eficazes: o I Exército, em sabendo que havia tão sólida resistência, desistiu do
vexame: aderiu aos que se chamavam de rebeldes.
Nessa altura, há confusão na Avenida Nossa Senhora de Copacabana,
pois ninguém sabe ao certo o que significa “aderir aos rebeldes”. A confusão é
rápida. Não há rebeldes e todos, rebeldes ou não, aderem, que a natural
tendência da humana espécie é aderir.
Os rapazes de Copacabana, belos espécimes: de nossa sadia
juventude, bem nutridos, bem fumados, bem motorizados, erguem o general
em triunfo. Vejo o bravo cabo-de-guerra passar em glória sobre minha cabeça.
Olho o chão.
Por acaso ou não, os dois paralelepípedos lá estão, intatos, invencidos,
um em cima do outro. Vou lá perto, com a ponta do sapato tento derrubá-los. É
coisa relativamente fácil.
Das janelas, cai papel picado. Senhoras pias exibem seus pios e
alvacentos lençóis, em sinal de vitória. Um cadillac conversível pára perto do
“Six”1 e surge uma bandeira nacional. Cantam o Hino também Nacional e
declaram todos que a Pátria está salva.
Minha filha, ao meu lado, exige uma explicação para aquilo tudo.
– É carnaval, papai ?
– Não.
– É campeonato do mundo?
– Também não.
Ela fica sem saber o que é. E eu também fico. Recolho-me ao sossego e
sinto na boca um gosto azedo de covardia.

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