Você está na página 1de 19

Educação e Pesquisa

ISSN: 1517-9702
revedu@usp.br
Universidade de São Paulo
Brasil

Goergen, Pedro
Questões im-pertinentes para a Filosofia da Educação
Educação e Pesquisa, vol. 32, núm. 3, setembro-dezembro, 2006, pp. 589-606
Universidade de São Paulo
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=29832311

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
Questões im-pertinentes para a Filosofia da
Educação

Pedro Goergen
Universidade de Sorocaba

Resumo

A crítica pós-moderna aos rumos da modernidade provocou uma


intensa discussão em torno de alguns pressupostos básicos da
tradição iluminista. Entre eles, encontram-se as noções de filoso-
fia da história, de sujeito e de valores. Vivemos um momento his-
tórico conturbado em que não só a filosofia da história, mas tam-
bém a razão e a subjetividade, os fundamentos e os valores, as
identidades e as certezas se tornam ambíguos. O estremecimento
desses conceitos angulares, que orientam o pensamento e a ação
do homem moderno, afeta a vida em todas as suas dimensões. E
como tais conceitos representam também os fundamentos da tra-
dição educacional, é particularmente a educação que se vê diante
de novos desafios, cruciais para o estabelecimento de seus obje-
tivos e suas práticas. O presente artigo procura assinalar a neces-
sidade de se incorporar à Filosofia da Educação os debates que
vêm sendo desenvolvidos nos campos da Filosofia, da Ética e da
Estética para averiguar tanto a procedência das teses pós-moder-
nas, quanto a sua eventual repercussão no campo da Educação.
Trata-se, portanto, de defender o ponto de vista de que não é
mais satisfatório rejeitar, em princípio, os argumentos dos cha-
mados pós-modernos, mas de averiguar se sua leitura da realida-
de contemporânea é justificada ou não e, na seqüência, avaliar as
implicações para o campo da teoria e da prática educacionais.

Palavras-chave

Filosofia da Educação – Filosofia da História – Sujeito – Valores –


Pós-modernidade.

Correspondência:
Pedro Goergen
E-mail: goergen@unicamp.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 589-606, set./dez. 2006 589
(Im)Pertinent questions for the philosophy of
education

Pedro Goergen
Universidade de Sorocaba

Abstract

The postmodern criticism of the directions of modernity has


given rise to an intense discussion over some of the basic
presuppositions of the Enlightenment tradition. Among these one
finds the notions of philosophy of history, of subject, and of
values. We live in a troubled moment of history in which not just
the philosophy of history, but also reason and subjectivity, the
foundations and values, the identities and certainties, become
ambiguous. The vacillation over these cornerstone concepts, that
guide the thought and action of the modern man, affects life in
all its dimensions. And because such concepts represent also the
foundations of the educational tradition it is education in parti-
cular that finds itself before new challenges, crucial to the
establishment of its objectives and practices. This article tries to
signal the need of incorporating to the philosophy of education
the debates that have been developed in the fields of philosophy,
ethics, and aesthetics to assess both the provenance of the
postmodern theses, and their possible repercussion in the field of
education. It is, therefore, a question of supporting the point of
view that it is no longer satisfactory to reject, as a matter of
principle, the arguments of the so-called postmodern, but that
we should investigate if their reading of contemporary reality is
or is not justified and, in the sequence evaluate its implications
for the field of educational theory and practice.

Keywords

Philosophy of education – Philosophy of history – Subject – Values


– Postmodernity.

Contact:
Pedro Goergen
E-mail: goergen@unicamp.br

590 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 589-606, set./dez. 2006
Mesmo os que são céticos com relação ao o conceito de história. Os pós-modernos assu-
conceito de pós-modernidade, hão de se interes- mem a polêmica tese do fim dos metarrelatos
sar pelas razões desse grande debate internacional e declaram sem fundamento a crença numa
que os pós-modernos provocaram. Dentre os filosofia da história, numa história do progres-
muitos pontos polêmicos que marcam esse de- so. Teria sido uma grande ilusão moderna acre-
bate, destacam-se três temas para os quais ditar na razão como garantia do curso unitário
converge grande parte das discussões. Trata-se, da história em direção a uma sociedade mais
em primeiro lugar, da tese que afirma o ocaso das justa e uma vida melhor. Com isso, colocam
grandes ideologias e metanarrativas, ou seja, o fim sob suspeita o principal fundamento de toda a
da idéia de filosofia da história; em segundo lugar, educação moderna que opera precisamente a
a desconstrução do conceito moderno de sujeito, partir do suposto de que a humanidade se
capaz de conhecer, dominar e conduzir os rumos encontra numa trajetória de progresso em dire-
da história; e, por último, a relativização dos va- ção a um futuro melhor.
lores e o surgimento de uma sociedade sem refe- A seguir, chama-se a atenção para o su-
rências, na qual todos os valores são comutáveis. posto definhamento do sujeito que se liga à cri-
Em outros termos, faz-se referência à atrofia da se de fundamentos. Tantas e tão profundas são
consciência histórica, do enfraquecimento da es- as mudanças que vêm ocorrendo na contem-
trutura do sujeito e da relativização dos valores poraneidade que o sujeito parece perder sua
universais. Essa leitura pós-moderna reflete a des- identidade e, com ela, a pretensão moderna de
confiança com relação às expectativas modernas, se tornar senhor e dominador da realidade e de
centradas nos conceitos de progresso histórico, de seu destino. O mundo administrado e automa-
sujeito autônomo e de valores laicos. tizado ofusca a autonomia do sujeito, limita e
Vivemos um momento histórico conturba- exterioriza o pensamento de modo que os ho-
do em que não só a filosofia da história, mas tam- mens se tornam seres genéricos de massa, uns
bém a razão e a subjetividade, os fundamentos e iguais aos outros, governados pelos aconteci-
os valores, as identidades e as certezas se tornam mentos sobre os quais não têm mais controle.
ambíguos. O estremecimento desses conceitos No contexto da educação, é importante saber
angulares, que orientam o pensamento e a ação do se a idéia de formação do sujeito ainda repre-
homem moderno, afeta a vida em todas as suas senta um elemento importante da paideia con-
dimensões. Particularmente a educação se vê dian- temporânea ou se tal suposto deve ser substi-
te de novos desafios que são cruciais para o esta- tuído pela instrução do indivíduo adaptada às
belecimento de seus objetivos e suas práticas. Não exigências do mercado.
sendo possível voltar no tempo e recuperar os Por último, são feitas algumas considera-
fundamentos e valores do passado nem tolerável ções em torno da questão dos fundamentos e
seguir vivendo na instabilidade, torna-se premen- valores como um dos temas mais discutidos na
te encontrar novas formas de legitimação. Essa é atualidade, com o objetivo de destacar as
a tarefa que a Filosofia e, no contexto da educa- inferências da crise ética sobre o agir educativo.
ção, a Filosofia da Educação pode e deve assumir. Tradicionalmente, a educação fundava-se nos
Como pequena contribuição a esse de- grandes supostos da metafísica ocidental como
bate, o presente ensaio oferece algumas refle- Deus, Natureza, Homem, Razão. Desde a crise
xões sobre os temas mencionados – história, desses supostos, que inicia com Nietzsche, avan-
sujeito e valores –, procurando demarcar al- ça com Heidegger e Foucault e se dissemina com
guns espaços que têm especial relevância para os pós-modernos, a teoria educacional ainda he-
a Filosofia da Educação. sita em colocar-se, reflexivamente, no horizonte
Parece adequado iniciar tratando de um dessa crise de fundamentos. Produz-se dessa for-
dos temas mais polêmicos da atualidade que é ma uma desconexão entre teoria e prática que

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 589-606, set./dez. 2006 591
deve ser tematizada do ponto de vista filosófico. mos, portanto, presos ao que há, ao que exis-
A Filosofia da Educação deve perguntar, com rigor te e ao que se impõe a todos.
e radicalidade, em nome de quem se educa. Segundo os pós-modernos, a confian-
São essas algumas questões que caracte- ça na razão, com seu metarrelato de progres-
rizam os nossos tempos e que devem ser lembra- so em direção a um estágio melhor da huma-
das ao se pensar o sentido e os rumos da edu- nidade, revelou-se uma falácia, tendo em vista
cação. A pretensão do texto não vai além de as barbáries humanas e ecológicas que marcam
assinalar a importância desse debate e de trazer o percurso da modernidade. Não há filosofia da
algumas contribuições, por ora ainda sucintas e história, não há metarrelato, não há progresso
dispersas, no sentido de destacar sua relevância natural e necessário. Se um dia acreditamos que
para o campo da Educação. Não é preciso dizer o progresso aconteceria por ser o caminho na-
que os três grandes temas aqui lembrados encon- tural da razão humana que, por sua bondade
tram-se separados apenas formalmente e que, na intrínseca, não poderia percorrer outro caminho,
realidade, estão profundamente imbricados uns incorremos em erro. Os fatos não deixam mar-
nos outros. São questões im-pertinentes porque gem a dúvidas: guerras, bombas atômicas,
são polêmicas, requerem acolhimento e exame holocaustos, destruição do meio ambiente, mi-
crítico. São incômodas porque desacomodam e séria, fome; no entender dos pós-modernos, são
exigem posicionamento. trágicas insanidades que ferem de morte a idéia
de progresso (Vattimo, 1996).
A questão da história Apesar do tom radical, não parece jus-
tificado supor que os pós-modernos pretendam
Os pós-modernos entendem que estamos dizer que o progresso seja impossível; apenas
dando adeus ao conceito moderno de historia, negam que ele se dê na forma de um curso
como idéia de constante progresso em direção a constante que, ao abrigo de uma metanarrativa
um mundo e a uma vida melhores. Em vez de ou de uma filosofia da história, conduza a
história, Lyotard fala de “aventura biográfica e humanidade para um estágio melhor. Lembram
intelectual”, como permanente re-escritura e bus- que, ao contrário dessa pretensão moderna,
ca sem fim. Nessa perspectiva, o homem vive a estamos vivendo a confirmação das previsões
constante tentativa de tornar-se testemunho de de Weber de que o mundo se tornará burocra-
um acontecer sem lei nem fundamento últimos tizado e racionalizado e que a própria razão
que lhe dêem sentido e rumo como história. ficará presa por entre as grades da burocracia
Disso resulta uma espécie de relativismo histó- e da racionalização, num cenário por comple-
rico, uma carência de fundamento, de verdade to desencantado e mecanizado. No dizer de
e de orientação. Apenas há aberturas históricas Vattimo (1996), não existe o ‘para onde’ e “su-
e os humanos se encontram ante a tarefa de primido o ‘para onde’, a secularização se tor-
“inventar uma humanidade capaz de existir num na também dissolução da própria noção de
mundo em que a crença numa história unitá- progresso...” (p. XIII).
ria, dirigida a um fim [...] foi substituída pela O pós-modernismo, no afã de resistir à
perturbadora experiência da multiplicação in- metafísica objetivadora (Vattimo, 1996) ou aos
definida dos sistemas de valores e dos critéri- metarrelatos de um projeto que se revelou
os de legitimação” (Vattimo apud Mardones corrompido (Lyotard, 1985), deixa-nos numa
2003, p. 29). Com o fim da unidade da histó- situação de “indigência crítica e sem forças para
ria, estaríamos chegando também ao fim da resistir à invasão e ao domínio das estruturas e
ética, uma vez que, sem uma certa idéia de poderes contra os quais se pretende lutar”
história e de humanidade, ficaríamos igualmente (Mardones, 2003, p. 32). Com isso, o pós-
sem projeto de liberdade e de justiça. Estaría- modernismo assume ares de uma racionalidade

592 Pedro GOERGEN. Questões im-pertinentes para a Filosogia da Educação


funcional, como também de uma ética circuns- as convulsões da nossa era: “Se há algo, é isso
tancial e circunstanciada. Se concordarmos com que justifica ver no pós-modernismo mais que
seus principais pontos de vista, ou seja, se aceitar- uma passageira e rapidamente esquecida moda”
mos a idéia da falência dos princípios e sentidos (Wellmer, 1996 p. 58).
universais, dos critérios e das metas abrangentes, Até um pensador engajado na defesa
estaremos condenados à resignação por falta de da razão como Horkheimer (1976) reconhece
critérios legitimantes da ação transformadora do que a mecanização é, na verdade, essencial à
real. Parece, então, justificada a acusação de neo- expansão da indústria, mas não sem acrescen-
conservadores feita por Habermas aos pós-moder- tar criticamente que
nos. A leitura conformista pós-moderna inviabiliza
o projeto da ilustração que, apesar das incongru- [...] se isso se torna a marca característica das
ências, insinua-se não só como justificado, mas mentalidades, se a própria razão é
também como vital para o futuro da sociedade. instrumentalizada, tudo isso conduz a uma certa
Embora tais expectativas preocupantes materialidade e cegueira, torna-se um fetiche,
justifiquem as reações contra o pensamento uma entidade mágica que é aceita ao invés de
pós-moderno, não é teoricamente sustentável ser intelectualmente aprendida. (p. 31)
ignorar suas sinalizações. Muitas de suas críti-
cas devem ser levadas a sério porque tocam em E quais seriam, pergunta Horkheimer
pontos nevrálgicos dos des-caminhos da razão (1976) na seqüência de seu raciocínio, as con-
moderna, tão bem salientados por Adorno e seqüências dessa formalização da razão? Con-
Horkheimer (1985) na sua Dialética do esclare- ceitos como justiça, igualdade, felicidade e to-
cimento que inicia com as seguintes palavras: lerância que no passado tinham a chancela da
razão, parecem ter perdido suas raízes intelec-
O esclarecimento tem perseguido sempre o obje- tuais, carecendo de confirmação da razão em
tivo de livrar os homens do medo e de investí- seu sentido moderno. A única autoridade que
los na posição de senhores. Mas a terra total- resta é a das ciências naturais e exatas, as
mente esclarecida resplendece sob o signo de quais, no entanto, não abrangem aquelas di-
uma calamidade triunfal. (p. 19) mensões do humano que não se enquadram
nos seus critérios de certeza.
O discurso de Horkheimer (1976) pres-
As palavras de Adorno e Horkheimer
sente os rumos do desenvolvimento que levaria a
atingem o âmago do paradoxo moderno: a ter-
um cenário em que “a arte foi separada da ver-
ra esclarecida, iluminada, representa ou, pelo
dade, assim como a política ou a religião”; um
menos, corre o risco de representar uma calami-
cenário em que “nenhum objetivo como tal é
dade triunfal. Coloca-se ao nosso discernimento
melhor do que outro” (p. 49-50). Percebe tam-
a escolha do melhor caminho a seguir diante da
bém que a tendência geral de “reviver as teorias
calamidade.
da razão objetiva do passado, a fim de dar algum
Em vista da barbárie que se instala, os
fundamento filosófico à hierarquia de valores”
pós-modernos saem a campo para denunciar o
mostra-se como inviável, uma vez que a
fim do sonho moderno. Na sua opinião, as des-
graças ocorridas no último século e a realidade
[...] verdade se forja numa evolução de idéias
socioecológica contemporânea encontram-se em
mutantes e em conflito. O pensamento é fiel a si
flagrante contradição com o otimismo do início
mesmo sobretudo quando está pronto a se con-
da trajetória moderna. Mesmo divergindo das
tradizer, porquanto preserva, como elemento ine-
posições radicais de Lyotard, Wellmer acredita,
rente à verdade, a memória do processo em que
com ele, que de fato o pós-modernismo reflete
esta foi alcançada. (p. 73)
em boa medida os problemas, o enodoamento e

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 589-606, set./dez. 2006 593
Ao contrário de Horkheimer, os pós- senvolvimento – que parece estar subjacente à
modernos não só constatam tais tendências, idéia de fim da história – e resignar-se à admi-
mas as consideram irreversíveis, reconhecendo nistração das cruéis assimetrias socioeconômicas
nelas o anúncio do fim da idéia moderna de com benefícios compensatórios que, no melhor
progresso e de filosofia da história. dos casos, podem aliviar a tragédia e o sofrimen-
Diante disso, Mardones (2003) levanta to, não é a melhor estratégia para se chegar a
a suspeita de que uma sociedade mais justa e democrática.
O grande desafio que se coloca como
[...] os que vêem neste abandono da história à tarefa é saber se a busca da vida boa, feliz e
sua evolução, a confirmação de que os pós-mo- humana se resolve pelo ‘grande relato’, confor-
dernos, por detrás da morte do sujeito e do fim me a idéia moderna, ou pelos ‘pequenos rela-
da história, nos deixam nas mãos do ‘imperati- tos’, como sugerem os pós-modernos. O que já
vo técnico’ da sociedade cibernética. (p. 30) sabemos é que os grandes projetos universais
enfrentam dificuldades ante o ainda avassalador
Estaria, então confirmada a tese de Niklas avanço do capitalismo que, pela inusitada incursão
Luhmann (1996) de que a emancipação é algo na microfísica da consciência humana, parece es-
obsoleto, porquanto, de hora em diante, quem tar inserindo em sua estrutura marcas indeléveis de
resolve os problemas do homem é o funcionamen- individualismo, egoísmo e mercadorização. Os
to sistêmico. A razão que comanda esse sistema é pequenos relatos, propostos pelos pós-moder-
uma razão funcionalista que tudo regula num nos, por sua vez, ameaçam despotencializar
processo que se fecha em si mesmo, transforman- qualquer impulso transformador mais radical,
do-se em autolegitimação. “O momento da pós- permitindo que a realidade se torne refém dos
modernidade”, conclui Welmer (1996), “é uma poderes que hoje a dominam e comandam.
espécie de explosão da episteme moderna, na qual Lendo com cuidado certas passagens
a razão e o seu sujeito – como lugar-tenente da do polêmico livro A condição pós-moderna, no
‘unidade’ e do ‘todo’ – se estilhaçam” (p. 50). E é qual Lyotard declara o fim das metanarrativas e
precisamente essa, dirão os pós-modernos, a inten- da filosofia da história, fica-se com a impressão
ção uma vez que a modernidade se revelou um de que Lyotard mais descreve o momento
grande fracasso. histórico atual do que o declara como defini-
A análise teórica dos pós-modernos tivo ou bem-vindo. Primeiro, é mister admitir
encontra seus limites em certas realidades que que Lyotard tem razão quanto aos seus prog-
não podem satisfazer-se com idéias como o fim nósticos relativos à crise das metanarrativas e à
da história, como a ‘des-construção’, o frag- instrumentalização do conhecimento. O mesmo
mento ou a vida privada. Trata-se da situação de vale para outras idéias expressas na mesma obra
carência e necessidade de grande parte da hu- como, por exemplo, a crítica ao conceito de soci-
manidade absolutamente carente de projetos edade como uma totalidade ou uma unicidade,
sociais coletivos que lhe abram perspectivas de sustentada desde Comte até Luhmann (Lyotard,
um futuro melhor, mais justo e digno. Podemos 1985). O debilitamento das narrativas, a crise do
concordar com suas teses no referente à análi- sujeito, a desconstrução do otimismo são todos fe-
se da realidade, mas nem por isso devemos nômenos muito reais, visíveis, por assim dizer, a
conformar-nos e aceitar a barbárie e a desuma- olho nu no quotidiano de nossas vidas. Tais
nidade como a cristalização de um destino, de constatações, no entanto, não significam que de-
uma visão política hegemônica e acomodada vamos conformar-nos com semelhante realidade.
quando se trata de enfrentar os grandes proble- Há uma passagem no próprio livro de Lyotard
mas do mundo contemporâneo. Abdicar da idéia (1985) que chama nossa atenção para a von-
de um esforço planejado e coordenado de de- tade e a capacidade de decidir do ser humano:

594 Pedro GOERGEN. Questões im-pertinentes para a Filosogia da Educação


Só se pode decidir que o principal papel do sa- despersonalização das relações pedagógicas;
ber é o de ser um elemento indispensável do mudança dos conceitos de espaço e de tempo
funcionamento da sociedade, e agir em conse- com desqualificação do espaço social como
qüência, quando se decidiu que esta é uma contexto de interação; colonização do mundo
grande máquina. Inversamente, só se pode con- da vida e da privacidade pelos interesses do
tar com a sua função crítica e desejar orientar- sistema; valorização do particular em prejuízo
lhe o desenvolvimento e a difusão nesse sentido dos princípios articuladores ou organizadores da
quando se decidiu que ela não constitui um totalidade; fortalecimento das divisões e dos
todo integrado e que permanece dominada por antagonismos que dificultam a construção da
um princípio de contestação. (p. 33) identidade e aceleram a falência do sujeito.
Por mais aparentes que sejam tais trans-
Parece estar subentendido nessa passa- formações no cenário pedagógico e por maior
gem que não se deve abrir mão do princípio da que seja a visibilidade teórica das teses pós-
contestação. No entanto, não foi esse o enten- modernas, a prática pedagógica continua sen-
dimento que prevaleceu. do realizada sob a inspiração dos tradicionais
A falácia e o risco do pensamento pós- relatos do progresso, da razão e do conheci-
moderno residem no fato de ter-se transforma- mento. De um lado, temos a desesperança, a
do em um novo iluminismo. Se, de um lado, os desorientação, a fragmentação e o nihilismo
pós-modernos detectam corretamente as aporias teóricos muito presentes no quotidiano dos
e os descaminhos da modernidade e seus efei- agentes educacionais; de outro, sobrevivem as
tos contrários aos anúncios otimistas dos profe- crenças iluministas como essa que confia na
tas modernos, falham, de outro, ao elevarem essa missão redentora da educação. Reside nisso
realidade ao nível de uma nova epifania. A um uma ambivalência que precisa ser tematizada e
só tempo, detectam as patologias do iluminismo aprofundada do ponto de vista da Filosofia da
e as consagram como legítimas e definitivas. Educação. Os grandes debates teóricos ainda
Essa naturalização dos des-caminhos dissemi- não chegaram à escola, pelo menos não de
nou-se pelo mundo intelectual e acadêmico, forma sistemática e rigorosa. Há uma certa
impregnando todas as áreas do pensamento com penumbra teórica que oculta a crise da Bildung,
conseqüências até hoje imprevisíveis sobre os da eventual emergência de uma nova paideia.
ideais e as práticas libertárias. A escola segue um tanto a esmo, tantando
As características gerais dessa mentali- encontrar respostas pragmáticas para os desa-
dade pós-moderna também influenciaram de fios que surgem pelo caminho. O resultado é
forma particularmente significativa o ambiente curso inseguro e vacilante de aderências que
educativo, favorecendo a implantação de um lhe são exigidas pelo mercado e pelos modis-
modelo educacional que privilegia a ‘formação’ mos teóricos, pela celeridade do novo, pela
vinculada à face mais aparente do sistema ca- superficialidade do informático.
pitalista que é o mercado. Para comprová-lo, No tempo em que as mudanças ocorri-
basta lembrar alguns aspectos de nossa prática am de forma mais lenta, o homem tinha con-
educativa com os quais estamos todos muito fa- dições de olhar para o passado e ver nele en-
miliarizados: transformação do conhecimento em raizado o presente e as expectativas de futuro.
mercadoria; enaltecimento da competitividade As pessoas tinham como se orientar, sentir-se
como elemento central das relações humanas seguras em relação ao que acontecia e viria a
como critério principal da determinação de obje- acontecer. Hoje, ao contrário, as mudanças
tivos, escolha de métodos e seleção de conteúdos; acontecem céleres, o passado perde sua força
aceitação das exigências do mercado como norte orientadora, deixa de oferecer amparo e pers-
orientador da ação educativa; aceleramento e pectivas ante um futuro que ninguém sabe

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 589-606, set./dez. 2006 595
como será. Imerso na mudança, o homem tor- existência no mundo industrial tardio e pelo que
na-se parte dela, tomado por uma espécie de estas interferem no processo educativo. Não se
embriaguez do movimento dionisíaco que o trata de submeter o pensamento pós-moderno a
cativa e envolve, impedindo que assuma seu um processo sumário de julgamento e condena-
próprio caminho e destino. Se antes era possí- ção, mas de impor-lhe o rigor do pensamento
vel, pela mesura das transformações, valer-se do crítico desde o viés do interesse emancipatório
passado como ponto de partida para a interpre- do homem e da sociedade. É preciso examinar
tação do presente e previsão do futuro, agora com o máximo de cuidado e rigor o que signi-
nada está distante o suficiente para que tendên- fica identificar sentido, realidade e verdade1 com
cias possam ser percebidas e pedagogicamente a totalidade social; é preciso examinar o que
aproveitadas para além do puro movimento. significa subsumir a idéia de história2 às noções
Tudo passa a assumir traços de impulsos ao de progresso e de superação; é preciso exami-
sabor de um utilitarismo banal, guiado pela nar o que significa assumir um pensamento
circunstância, sem sentidos abrangentes do identificatório que desconsidera a natureza con-
ponto de vista humano. Os interesses e as ide- traditória da realidade e a vontade de mudança
ologias que evidentemente existem assumem manifestada por indivíduos e grupos pelo mundo
traços de crime perfeito, como diz Baudrillard afora; é preciso examinar o que significa confor-
(1979), que não deixa rastos. mar-se com uma realidade que se revela perversa
A Educação encontra-se entre parado- e injusta com a maioria dos seres humanos.
xais e contraditórias exigências. De um lado,
sabe-se que ela precisa da tradição como con- A questão do sujeito
dição educativa para o presente e para o futu-
ro e, de outro, necessita considerar o ritmo e a O primeiro e mais palpável reflexo da
celeridade das mudanças e transformações. Se falta de perspectiva histórica se constata no en-
no passado o próprio acontecer histórico tinha fraquecimento do sujeito. Definha o sujeito forte
o sentido alegórico que ilustrava as grandes que sabia o que é a realidade, que era dono dos
idéias de Homem, de Deus, da Natureza que ori- objetos, que em seu percurso dispunha de fun-
entavam o mundo, agora o movimento não é damentos e perspectivas estáveis que o orienta-
símbolo de nada; ele é apenas movimento, sím- vam no sentido de um futuro melhor a conquis-
bolo de si mesmo, sem significado exterior a ele tar. Diante da debilitação desse sujeito forte,
próprio. O esvaziamento dos grandes cenários de Vattimo sugere a idéia de um sujeito fraco3 , um
sentidos ou significados teleológicos que gover- sujeito que já não domina desde o alto de seu
navam o mundo e o homem na sua história e pedestal de identidade, mas que se sente fraco e
que serviam de paradigma de leitura, interpreta- afetado pelas mudanças e transformações que o
ção e orientação, privou o homem de sua con- circundam e determinam. Para Mardones (2003),
dição de dominador. O homem foi jogado para essa é uma saida que aceita,
dentro do próprio movimento que, ao tornar-se
autônomo, o consome na medida em que o in- 1. Segundo Vattimo (1996), “pode-se dizer provavelmente que a experiência
tegra no próprio movimento. O movimento dei- pós-moderna [...] da verdade é uma experiência estética e retórica” (v. XIX).
2. A introdução da noção de não-história não significa a eliminação da
xa de ter um sentido de história, de orientação
idéia de progresso, mas a internalização do conceito de progresso, ou seja,
para um ponto futuro, ideal ou utópico, e se es- sua redução à contínua renovação exigida pela sociedade de consumo.
gota em si mesmo. Essa noção de renovação ou inovação é requerida para a pura e simples
sobrevivência do sistema. É supressão do ‘para onde’ (Vattimo, 1996). É
Pelo menos é esta a perspectiva assumi- preciso acrescentar que o próprio Vattimo (1992) acredita que “as dificul-
da pela leitura dos pós-modernos que merece dades do pensamento da pós-modernidade mostram que não se pode dei-
xar vago sem mais o posto antes ocupado pelos ‘metarrelatos’ e pela filo-
atenção crítica da Filosofia da Educação pelo sofia da história” (p. 35).
que evidencia a respeito das novas condições de 3. Sobre a noção de sujeito, ver as considerações de Vattimo (1996; 1992).

596 Pedro GOERGEN. Questões im-pertinentes para a Filosogia da Educação


[...] o imperialismo objetivante, encarnado na No entanto, esse aporte ao difícil cená-
tecno-ciência ocidental e a própria burocracia da rio do terceiro mundo e dos riscos, que repre-
administração pública do Estado moderno [...] que senta o caráter conformista e eurocêntrico das
tem um dinamismo expansivo que não cessa de posições pós-modernas, não justifica o descarte
manipular e colonizar mais e mais âmbitos. Desde a priori de seus argumentos críticos que desta-
a política até a educação ou as relações pessoais cam os descaminhos da modernidade. Nunca é
estão impregnadas de modelos tecnocráticos, for- demais salientar a importância da memória que
tes de coação e orientação. (p. 25) não nos deixa esquecer o que não deve ser
esquecido, que não nos deixa esquecer o que
Para os críticos do posicionamento não pode ser repetido. E isso que não pode
pós-moderno, importa não silenciar a pergun- acontecer de novo ocorreu não no terceiro
ta: se para suplantar o espírito objetivante do mundo, mas na Europa. Foi ali que, ao ampa-
sujeito forte for preciso enfraquecer o sujeito a ro do pensamento técnico-científico moderno,
ponto de abandonar o pensamento crítico, de aconteceu a tragédia de Auschwitz, uma
ingressar na experiência do erro, de tornar-se oclusão do pensamento iluminista. Ou não te-
vagabundo incerto de um esteticismo ria sido uma mera oclusão, mas um desdobra-
presentista, não estaríamos debilitando de mento irrefreável dos princípios fundantes do
morte o sujeito? Um sujeito, como foi dito próprio iluminismo moderno?
acima, permanentemente imerso no fluxo dos Os frankfurtianos, particularmente Ador-
acontecimentos, das sensações, sem consciên- no e Horkheimer, defendem o ponto de vista de
cia e memória, sem critérios e princípios para que as barbáries do último século não são uma
combater a sua desumanização, ainda poderia decorrência dos princípios modernos, mas re-
ser chamado de sujeito? E se abandonarmos a sultado de desvios, deturpações ou
idéia de sujeito, por quais caminhos estaríamos unilateralizações de tais princípios. Desvios
enveredando em termos de seres humanos? esses que podem ser corrigidos pela razão crí-
Mardones (2003) resume num parágra- tica. Consciente dessa relação entre Auschwitz
fo o núcleo dessa preocupação salientando os e os rumos do pensamento moderno, Adorno
riscos do pensamento pós-moderno: (1995) escreveu sua famosa frase: “a exigência
que Auschwitz não se repita é a primeira de
A esperança de alcançar uma ‘estetização geral da todas para qualquer educação” (p. 119). Ela nos
vida’ (Vattimo,1996) como alternativa ao funciona- leva a perguntar, trazendo a metáfora para o
lismo predominante na sociedade e no pensamento nosso contexto, se com o acolhimento da ra-
atuais, pode transformar-se na chegada de um su- zão identificatória moderna, tecno-científica,
jeito tão débil e fatigado para a rememoração das performativa e autoritária, e com o fim da au-
ambigüidades e barbáries da história, que nos tonomia crítica do sujeito, capaz de resistir e de
abandona à invasão do que existe. (p. 26) se rebelar com base em princípios diferentes
daqueles que o sistema faz prevalecer, não
Efetivamente, conceitos como ‘vagabun- estaríamos nos expondo inconscientemente ao
dagem incerta’ ou ‘fruição estética’ parecem pou- risco de permitir uma nova Auschwitz que, sem
co adequados ao fomento das relações humanas repetir o que aconteceu na Europa, não lhe
e da consciência histórica, urgentes em socieda- ficaria devendo nada em termos de tragédia
des imersas no subdesenvolvimento, no analfabe- pelos efeitos letais na sua nova versão em for-
tismo, na miséria, na fome e na violência. Nessas ma de miséria, de fome, de criminalidade e de
condições, soa irônico ou mesmo cínico falar de exclusão social.
um ‘presentismo estético’ quando o presente se Para a educação que se preocupa com
apresenta feio, triste e mísero. a formação do homem de hoje e de amanhã,

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 589-606, set./dez. 2006 597
que se empenha na construção de uma socie- do social. Temos que indagar quais os rumos
dade justa e democrática, essas questões são de uma inteligência sem história que “não per-
da mais alta relevância. Agora, no momento em cebe a dureza da vida e nem a situação dos
que “quanto mais o processo de autoconservação que nesta sociedade e neste mundo mal alcan-
é assegurado pela divisão burguesa do trabalho, çam a categoria de seres humanos”, que não
tanto mais ele força a auto-alienação dos indiví- nota a “carência de solidariedade com os mal-
duos, que têm que se formar no corpo e na alma tratados da história e da sociedade”, que não se
segundo a aparelhagem técnica”, se impõe a preocupa com “o sofrimento evitável da huma-
pergunta a respeito da natureza dessa educação, nidade e sem moral” (Mardones, 2003, p. 27).
que necessariamente deve ser emancipadora O fato de as feridas abertas da sociedade glo-
(Adorno; Horkheimer, 1985, p. 41). Como libertar bal como a exclusão, a fome, a doença, o anal-
“o eu integralmente capturado pela civilização”, fabetismo só aparecerem marginalmente nos
no momento em que ele “se reduz a um elemento textos dos autores pós-modernos europeus,
dessa inumanidade” ou imundície (Mattéi, 2002) comprovam sua pouca preocupação com o
no momento em que outro real, imerso no sofrimento, na injustiça e
na dor dos vencidos da história.
[...] os homens se reconverteram exatamente Para evitar imagens caricatas, é preciso
naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva entender que quando os pós-modernos falam do
da sociedade, o princípio do eu: meros seres fim do sujeito, não se referem ao fim do sujeito em
genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamen- si, mas ao fim do sujeito moderno como autor,
to na coletividade governada pela força. (Ador- supremo juiz e fundador de sentidos. Em outros
no; Horkheimer, 1985, p. 47) termos, o discurso pós-moderno não representa
uma resposta à pergunta cética, mas é apenas uma
E Vattimo (1996) radicaliza ainda mais crítica às aporias modernas, decorrentes de um
essas incertezas ao dizer que conceito objetivista e autoritário de razão, de su-
jeito, de homem e de história. Nesse sentido, tais
[...] o sujeito que nos é proposto defender da críticas somam-se as de Adorno e Horkheimer, que
desumanização técnica era, precisamente ele, a assinalam com igual insistência a coisificação do ser
raiz dessa desumanização, já que a subjetivida- humano. As práticas coisificantes da sociedade
de que se define doravante como sujeito do moderna estão inseparavelmente relacionadas à
objeto é pura função do mundo da objetividade, coisificação do homem pela ciência e pela técni-
tendendo [...] irrefreavelmente, a também se ca. O homem coisificado é apenas um exemplar,
tornar objeto de manipulação. (p. 35) um representante da espécie ou da instituição, o
executor de uma função e não mais um sujeito. No
Se, por esse lado, podemos reconhecer entanto, ao contrário de Adorno e Horkheimer, cuja
méritos na crítica pós-moderna aos rumos do crítica ao sujeito moderno tem o sentido de abrir
pensamento e do sujeito modernos com sua caminho para o surgimento de um sujeito menos
lógica de domínio identificador e excludente coisificado e instrumentalizado e, ao mesmo tem-
responsabilizada pelos descalabros contempo- po, mais autônomo e crítico com relação aos des-
râneos, temos que, de outra parte, perguntar caminhos da própria modernidade, os pós-moder-
também se o entendimento dessa realidade, a nos jogam a criança com a água do banho.
partir de conceitos como sujeito débil, jogo de Do ponto de vista da educação, cujo
linguagem , des-construção , fragmentação , discurso enaltece a formação do sujeito como
estetização e fruição da vida, destituídos de um de seus principais objetivos, é necessário
sentido crítico, não se torna igualmente perigo- refletir a partir do debate antes mencionado,
so pela falta de memória, acriticidade e senti- sobre o que significa, no contexto contempo-

598 Pedro GOERGEN. Questões im-pertinentes para a Filosogia da Educação


râneo, formar o sujeito humano, livre e autôno- da Educação, ou seja, esta precisa colocar uma
mo. Como entender os conceitos de cidadania, questão radical: como ainda podemos nos enten-
de autonomia, de responsabilidade social que der como seres falantes, como sujeitos de discur-
supõem sempre o sujeito como seu portador sos e ações que buscam entender e transformar a
num momento em que se fala de um sujeito realidade? No contexto de um mundo, de um sis-
débil ? Um dos ângulos principais deverá ser o tema que, quase autônomo, se torna mais e mais
da relação da idéia de sujeito individual com a imprevisível e refratário aos nossos conceitos e ao
dos sujeitos coletivos. Desde o liberalismo nosso agir como sujeitos, poderíamos dizer que o
moderno, a liberdade é entendida como a ‘li- sentido da filosofia da educação consiste na ten-
berdade de’, ou seja, a liberdade da tutela do tativa de explicar o que ainda é ou voltou a ser
Estado, da submissão dos indivíduos à coleti- indizível. Quando a realidade ultrapassa a capaci-
vidade. A liberdade é a liberdade que se iden- dade de expressá-la ou de apreendê-la é porque o
tifica com autonomia, isto é, com a obediência aparato conceitual envelheceu e é a hora e o
à lei que cada um impõe a si mesmo (Rousseau, momento da filosofia e do esclarecimento.
1973). A liberdade liberal dos modernos repre- Por isso, é importante que o esclareci-
senta a libertação, que se deseja definitiva, de mento não se restrinja ao âmbito da filosofia,
toda a forma de organicidade. Nesse sentido, as mas se torne uma consciência e um debate do
leituras pós-modernas não só se aproximam, qual todos participem. Criar as condições para
mas representam a radicalização do discurso isso é uma tarefa econômica, política e
liberal. Tudo é fragmento, jogo de linguagem, educativa. “O esclarecimento”, diz Scalfari
des-construção, sujeitos e conceitos ‘fracos’, (2001), “antes de ser uma filosofia, é uma prá-
individualidades. tica de vida e um compromisso ético do qual
Talvez o pensamento pós-moderno nos nenhum homem que tem em conta a dignida-
ensine, na contramão de seus próprios argumen- de do ser humano pode sentir-se exonerado”
tos, que há a urgente necessidade de se repensar, (p. 101). Por isso, o esclarecimento não deve ser
além da noção de sujeito em si, também a relação considerado como uma teoria, mas uma práti-
da noção de sujeito com conceitos identificatórios ca e uma ação comum aos seres humanos,
como classe, massa e povo que, com a valorização devendo, pela mesma razão, estar intimamen-
da individualidade, perderam sua força expressiva te ligado a um projeto educativo.
e congregadora ou até mesmo seu poder E a tarefa não parece fácil uma vez que
explicativo. O sujeito desintegrado da abrangência a desconfiança crítica com relação à modernidade
identificatória de tais conceitos não se sente mais não se limita apenas aos conceitos de ciência e
atingido de modo que os discursos ou apelos de progresso, mas estremece também a crença
político-revolucionários não surtem mais efeito, em valores e instituições tradicionais como a
caem no vazio, não atingem a consciência das função da família, do gênero, dos sindicatos e
pessoas. E isso não ocorre ao acaso: o capitalismo mesmo das classes. Com o enfraquecimento da
fortalece ao máximo o indivíduo, insuflando-lhe família, do papel do gênero, do sindicato e da
auto-confiança e ilusão de autonomia e poder para classe, o indivíduo fica isolado, sozinho e en-
que ele não se conscientize da fraqueza que o fraquecido. A solidariedade e o sentimento de
assalta quando se separa da coletividade. pertencimento ao grupo se esvanecem sob o
O mesmo fenômeno pode-se constatar no efeito da individualização e atomização, provo-
campo do discurso pedagógico. Tal discurso, quan- cados pela sociedade industrial. E pior: apesar
do fundamentado em conceitos identificatórios, das aparências de reversão desse cenário no con-
parece não afetar mais as pessoas. Interpretar e texto da globalização e das novas formas de co-
refletir sobre as conseqüências desse fenômeno é municação, o quadro de anomia e estranhamento
certamente uma das principais tarefas da Filosofia de si mesmo não parece alterar-se na sociedade

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 589-606, set./dez. 2006 599
pós-industrial. O ser humano perde a sua identida- de do poder, da violência do mais ousado e
de pessoal e, por isso, põe-se à procura reflexiva selvagem utilitarismo? Os pequenos contextos
de sua identidade. Esse é o momento em que nos e localismos, ao invés de apontarem para uma
encontramos e que precisa ser aproveitado. maior liberdade, não estariam representando
Infelizmente, essa busca é muitas vezes uma tirania mais severa do que aquela que
banalizada como egoísmo e narcisismo. Na ver- pretendem evitar? Se por detrás dos velhos
dade, é preciso entender o sentido dialético mais universalismos epistemológicos e éticos se es-
profundo dos gestos egóicos e narcisistas e reco- condia o terror dos dominadores e do totalita-
nhecer neles a nostalgia do indivíduo de sua rismo, não estaríamos, agora, às voltas com
própria identidade como sujeito, seja como pes- uma nova forma de domínio e de terror do
soa seja como coletividade. É preciso que a refle- imediato, do fragmento, do ativismo, do indi-
xão filosófica leve essas tendências a sério e vidualismo, da performance?
considere suas conseqüências para o campo da Essas questões, aqui formuladas de forma
Educação. Se a modernidade não pode cumprir as direta e simples, permeiam todo o debate entre
promessas de progresso, justiça, igualdade e de- modernos e pós-modernos. Independente do lado
mocracia, nada mais correto que pensar formas de em que estejamos, parece inegável que o mundo
retomar, nas atuais condições históricas, tais ob- contemporâneo vive, efetivamente, uma forte cri-
jetivos que continuam sendo dignos e justos. se de fundamentos e de referências universais
capazes de orientar o pensamento e a ação.
A questão dos valores O iluminismo é a confiança na razão.
Geralmente se identifica o pós-modernismo
Para J. F. Lyotard, estamos vivendo em como a negação dessa crença. Na verdade, o
meio a uma pluralidade de regras, de expecta- anti-iluminismo contemporâneo não equivale a
tivas e de comportamentos que expressam os uma desconfiança da razão teórica e científica
diferentes contextos vitais que nos cercam e (expressão máxima do iluminismo), mas a um
não temos condições de encontrar denomina- ceticismo em relação aos confrontos e às con-
dores comuns que tenham validade para além tradições entre a razão teórica e a razão práti-
dos limites do contexto (jogos) do aqui e do ca. Isso fica bastante evidente tanto na Dialética
agora. Vivemos imersos num pluralismo do esclarecimento de Adorno e Horkheimer
heteromorfo, de sorte que as regras não podem quanto na Condição pós-moderna de Lyotard,
ser senão heterogêneas também. A busca de para ficar apenas nesses dois exemplos. Para
valores transcendentes ou mesmo de consen- muitos pós-modernos, somente é possível ha-
sos, radicaliza Lyotard, transformou-se num ver uma moral comum entre os membros de um
desiderato obsoleto e suspeito porque por de- mesmo grupo (étnico, político, religioso ou
trás dos princípios universais se esconde sem- mesmo criminoso). Em conseqüência, não pode
pre o terror dos dominadores e a tendência ao haver uma moral comum numa sociedade aber-
totalitarismo. Consensos só são possíveis nos ta que, por definição, é povoada por membros
limites do local e na medida em que forem fle- de diferentes grupos. Nesse sentido, crêem que
xíveis e passiveis de revisão (Lyotard, 1985). já não se possa fazer uso público da razão com
Esse diagnóstico de Lyotard nos leva a vista a fins práticos, ou seja, éticos. Se a razão
perguntar se, dado o caso, nos encontraríamos moderna desencantou (Weber, 1997) o mundo
diante de um avanço ou de um grande retro- dos valores transcendentais e religiosos, bus-
cesso. Se não dispusermos mais de nenhum cando ela mesma impor-se como novo funda-
critério universal de verdade, de justiça, de mento de tudo, hoje ela precisa reconhecer
preferibilidade racional ou de discernimento seus limites que não extrapolam o espaço do
ético, como poderemos escapar da arbitrarieda- conhecimento científico e da produção.

600 Pedro GOERGEN. Questões im-pertinentes para a Filosogia da Educação


Esse pensamento pós-moderno represen- ser humano com o núcleo da humanidade
ta o rompimento de todos os compromissos de comum a todos, da participação da natureza
natureza axiológica e talvez resida nisso a razão ou essência do ser humano. Era, portanto, em
de seu sucesso num momento histórico em que torno dos princípios universais que se congre-
o homem busca a satisfação e o prazer individu- gavam e se sentiam humanos os humanos.
ais, desvinculando-se do grupo, da comunidade Hoje, ao contrário, vivemos um momento em
e da sociedade. Os iluministas, ao contrário, con- que os valores da solidariedade, do sentimen-
fiavam e confiam no uso público e prático da to e da co-pertença nascem de uma mediação
razão. É nesse sentido que, ao abrigo das teses muito mais direta. Não nos sentimos humanos
de Kant (1974), Habermas (1989) e Rawls (2005) pela identificação com princípios universais e
falam de uma ética pública como a possibilidade abstratos, mas porque compreendemos o outro
de encontrar respostas filosóficas no interior e como um de nós. No iluminismo, o dever da
com os recursos da tradição iluminista para as solidariedade nasce da adesão a um princípio
questões práticas de cada época. universal, à lei moral como um fato da razão
Com esse ponto de vista, concorda até prática. A obediência ao princípio do dever, da lei
Vattimo que, ao criticar o apelo à natureza, à moral, não negocia nem conhece compromissos.
verdade e às leis eternas das coisas defendidas No entanto, alguma coisa não funcio-
pelos iluministas, diz que “se desejo viver num nou bem no projeto iluminista. Como já foi
mundo que garanta a minha liberdade devo mencionado em outros momentos deste texto,
necessariamente expor-me ao risco de viver pode-se constatar que há pouca luz no mun-
numa sociedade democrática, na qual as leis do contemporâneo. Depois de ter tomado o
são feitas através do consenso argumentado caminho em direção à terra iluminada, muita
entre todos. Posso somente reduzir o risco de coisa ficou no escuro: na terra da razão ilumi-
deixar triunfar os loucos contribuindo para o nada, brilha um sol de desventura e barbárie. É
desenvolvimento da cultura coletiva, com inves- lapidar a constatação de Adorno e Horkheimer
timentos na escola, participando ativamente da (1985) de que “a terra totalmente esclarecida
escola pública e também evitando politicamente resplandece sob o signo de uma calamidade
que alguém possa impor a todos as próprias triunfal” (p. 19). Diante dos descaminhos
idéias sem debate”. Mas Vattimo (2001) acres- identificatórios e autoritários do iluminismo, a
centa que “valores co-divisos com base em única alternativa é aceitar a diferença e os
argumentações histórico-culturais, ética da res- conflitos como humanos e dignos de respeito.
ponsabilidade e política não têm necessidade Entretanto, não basta aceitar o pluralismo de
de fundamentos absolutos” (p. 39). Dessa for- valores, pois eles conflitam entre si e se
ma, o autor italiano parecer abrir espaço para conflitam, é preciso escolher. E a escolha não
uma fundamentação racional e, portanto, ain- deve transformar-se num massacre, mas no
da moderna de valores. Ao mesmo tempo em diálogo, no debate e no respeito.
que aceita o pluralismo de valores e dispensa o Ao rigorismo kantiano que representa o
recurso às verdades absolutas, confia na com- paradigma de uma ética universalista de prin-
petência da razão prática para encontrar prin- cípios, opõe-se a ética da responsabilidade que
cípios éticos suficientemente consistentes e atenta não para a coerência entre nossos atos
legítimos para orientar as ações e merecer o e princípios universais, mas para a coerência de
reconhecimento de todos. nossas ações em termos de suas conseqüênci-
Na tradição do humanismo iluminista, o as. Essa tendência desembocou, segundo Zima
sentido comum de humanidade e solidarieda- (2001), numa era da indiferença dos indivídu-
de nasce da com-ciência da pertença comum os, das relações, dos valores e das ideologias
ao gênero humano, da identificação de cada intercambiáveis. Uma era em que “valores mo-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 589-606, set./dez. 2006 601
rais, estéticos, políticos e até ideologias inteiras muitas culturas no momento em que aquela do
(como o fascismo e o comunismo) aparecem humanismo tradicional perde cada vez mais o
como intercambiáveis”, tornando-se “radical- reconhecimento e a força de persuasão? E para
mente questionável sua pretensão de validade que idéias convém educar as novas gerações de
universal e sua capacidade de generalização”. modo que a nossa frágil identidade tenha suces-
Nesse contexto, “não há mais conjuntos de so? [...] A razão e os valores universais dos quais
valores cristãos, liberais, socialistas ou nacio- essa era portadora, com o seu eurocentrismo,
nais que sejam inquestionáveis e passíveis de representam, ainda, uma visão de mundo e uma
consenso” (p. 44). Se a realidade efetivamente base sólida para perfazer o caminho? (p. 87)
confirma esse prognóstico, é preciso lembrar
novamente que as diferentes formas de viver tal Parece que o discurso de natureza
liberdade geram tensões: as diferenças cultu- universalizante está perdendo legitimidade em
rais, éticas e religiosas, que decorrem da ma- decorrência de seu déficit de contextualidade,
neira como o homem declina a sua liberdade, ou seja, é um discurso que não oferece respos-
geram conflitos difíceis de serem administrados tas à diversidade e à polissemia que, bem ou
especialmente no mundo globalizado. Posto mal, marcam o mundo contemporâneo. Do alto
que já não dispomos do recurso aos valores de seu pedestal autoritário, não atende às
transcendentais e o relativismo inviabiliza a especificidades e contextualidades que regem
convivência civilizada entre os homens, é ne- as expectativas do homem atual, razão pela
cessário buscar novos caminhos. qual sofre uma recusa baseada no pluralismo e
Habermas discorda da leitura dos pós- no particularismo. O posicionamento plural, em
modernos e recorre aos supostos kantianos para contrapartida, não considera que facilmente
desenvolver uma ética do discurso que busca pode transformar-se em indiferença que julga
superar o relativismo ético fundando a legitimi- igualmente legítimas quaisquer constelações de
dade em consensos discursivamente alcança- valores. O tão difundido discurso da tolerância,
dos. Faz uma leitura de Kant segundo a qual se na verdade, assume traços de indiferença. As-
exige do iluminista que busque a verdade, não sim, a chamada sociedade pós-moderna pode
que a encontre. Quando Kant fala do uso pú- ser representada como o movimento que osci-
blico da razão, ele não estaria pressupondo que la entre a tolerância e a indiferença. A liberação
tal uso deva levar a um único e previsto resul- dos mecanismos do mercado e do consumo
tado. O ‘sapere aude’ não estaria propondo certamente contribui para a disseminação da
uma certeza, mas um programa de busca e indiferença. A grande pergunta que precisa ser
reflexão sobre nossa realidade, observando os respondida diz respeito aos possíveis caminhos
sentidos aparentes e escondidos do que é hu- que poderiam conduzir a uma superação da
manidade ou, talvez, do que queremos que ela indiferença que aos poucos contamina todos os
seja, a fim de pensar coisas novas e melhores âmbitos da vida.
para o homem. A marcha aparentemente irreversível da
Com sua teoria, Habermas (2004) bus- globalização representa o brutal processo ante
ca encontrar uma saída para os impasses éticos o qual a singularidade individual, grupal ou
que se tornam bem aparentes nas perguntas cultural necessita afirmar-se. De outra parte, a
assim formuladas por Volpi: existência humana nunca é uma existência iso-
lada; ao contrário, é uma existência que só se
[...] dispomos hoje de uma antropologia parti- constitui em comunicação com a existência dos
lhada à altura dos problemas colocados pela outros. No contexto do mundo real, o homem
atual sociedade cultural de massa? Uma huma- só pode desenvolver-se na união com os ou-
nidade para cultivar como terreno comum às tros homens e essa convivência só pode ser

602 Pedro GOERGEN. Questões im-pertinentes para a Filosogia da Educação


pacífica e democrática, baseada em normas e sadamente declaram definitivas certas situações
valores respeitados por todos. ou certos períodos se revelaram falsas, porquan-
Lembrando novamente Baudrillard (1999), to fracassaram sob a pressão irreversível da di-
nâmica da história material e espiritual da huma-
[...] os próprios valores se degradam terminando nidade. Ainda existem movimentos originais de
por se confundirem no seio de um universo desafio e de resistência sociais e políticos à
fractal, aleatório e estatístico, na indiferença e globalização, à identificação de tudo sob o sig-
na equivalência, segundo uma aceleração per- no da integração no indiferente. Essa esperan-
pétua semelhante ao movimento browniano das ça não alivia a preocupação com os rumos da
moléculas. (p. 11) história contemporânea que, após a frustrada
revolta de 1968 e a derrocada da União Sovi-
E as tentativas de reabilitação dos valores ética na década de 1990, relegou o político e
frustram-se uma a uma por não sabermos recriar a ideologia política a um papel cada vez menos
a eletricidade de sua contradição. Assim acontece relevante, mas pelo menos nos permite não
com os valores individuais: “nós os reabilitamos, perder as esperanças no futuro.
não em sua tensão dialética com o social, mas sim No entanto, como reflorestar os espaços
no mesmo nível que o social” (Baudrillard, 1999, desertificados de valores e princípios depois de
p. 10). Essas palavras do filósofo francês nos todas as críticas de Nietzsche, Heidegger, Foucault,
alertam para o aspecto fundamental da indiferen- Bataille, Derrida, Vattimo, dentre tantos outros? O
ça. Tudo se decide não com base em princípios e que fazer depois da ‘morte de Deus’ e da desva-
valores dialogicamente consensuados, mas com lorização dos valores supremos? No campo da fi-
base no princípio da troca que desconhece o prin- losofia, dentre os muitos e importantes autores
cípio da contradição que é, exatamente, o seu como Vasquez, Rawls, Jonas, Macintyre,
princípio vivificante. Os valores não devem derivar Tugendhadt, Comparato, que se dedicam a essa
da realidade como seu espelhamento indiferente, tarefa, merece particular atenção a já lembrada
mas constituir-se em contradição com ela, alimen- teoria de Habermas que, apoiando-se em Apel,
tar-se e adquirir sentido no movimento de tensão desenvolve uma ética do discurso universalista e
com a realidade ou com atos que não corres- dialógica, tentando encontrar fundamentos para
pondem à felicidade do ser humano. um novo universalismo, sem necessidade de recur-
Mesmo admitindo que o grande con- sos transcendentais. Habermas (juntamente com
fronto entre o particular e o universal esteja Apel) pressupõe a existência de uma competên-
sendo decido a favor do particular, que “o es- cia comunicativa entre os diferentes jogos de lin-
pelho do universal está quebrado”, que “a de- guagem que se aprende ao se aprender a própria
mocracia, os direitos humanos, circulam como linguagem. Ou seja, Habermas e Apel vêem a pos-
qualquer outro produto global, tal como o sibilidade de comunicação entre os diferentes jo-
petróleo ou os capitais”, Baudrillard (1999) gos de linguagem e não sua separação absoluta.
mantém a esperança e reconhece que Isso não quer dizer uniformismo ou submissão à
tirania dos metarrelatos, mas apenas uma abertura
[...] talvez esteja aí uma possibilidade, já que comunicativa, o diálogo, a conversa permanente.
nos fragmentos desse espelho quebrado ressurgem Segundo a teoria de Habermas, não basta mais
todas as singularidades, ou seja, aquelas que apelar para fundamentos transcendentais a partir
acreditávamos ameaçadas sobrevivem, as que e em nome dos quais se possa decidir sobre
acreditávamos desaparecidas ressuscitam. (p. 23) questões éticas, políticas ou de convivência. As
normas ou os fundamentos da convivência pre-
E não poderia ser diferente, pois, como cisam ser permanentemente justificados ou vali-
nos ensina a história, todas as teorias que apres- dados por meio do diálogo, com base em argu-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 589-606, set./dez. 2006 603
mentos. A partir daí, pode-se prosseguir dizendo família, aos preceitos divinos e às doutrinas das
que a norma social tem um único fundamento que diferentes Igrejas. Ao contrário da primeira, essa
é a estrutura da argumentação: o convencimento última é teoricamente discreta, mas exerce gran-
mútuo, mediante o processo argumentativo entre de influência, velada e difusa, sobre a prática
os membros da sociedade, de que certa norma é educativa, tanto formal quanto informal.
a mais adequada para todos. Há, portanto, a pos- Além dessas duas dimensões, teoricamente
sibilidade de universalizar uma norma, na medida mais elaboradas, a tendência dominante que marca
em que, por argumentos, ela é considerada a mais a educação contemporânea é o ativismo cego, não
adequada para todos. A norma universal será aquela reflexivo, orientado para o atendimento às exigên-
que todos, em comum acordo, concordam em cias do mercado. Esse ativismo, que representa a
aceitar como norma universal. soma de burocracia, urgência e performatividade,
Pouco antes de sua morte, Jacques ocupa, quase por inteiro, o espaço, o tempo e os
Derrida disse que as expressões ‘vou educá-lo’ e sentidos do educar, visando sempre adaptar e in-
‘vou amestrá-lo’ tornaram-se hoje basicamente tegrar os educandos no sistema. Trata-se de um
equivalentes. Para amestrar, não é necessário agir educativo que se orienta pragmaticamente nas
muita reflexão, já que os objetivos estão postos exigências do sistema econômico e do mercado,
e estes não ‘podem’ ser tematizados quanto aos sem qualquer compromisso com referências ou
seus fundamentos4 . É preciso apenas conhecer a valores transcendentes.
realidade, respeitar suas urgências e exigências, e À semelhançca do que constatamos no
preparar os indivíduos para enfrentá-las da forma âmbito dos conceitos de filosofia da história e do
mais competente possível. Para tanto, além de sujeito, também no campo da moral vivemos um
conhecer bem as expectativas do real, é necessá- momento profundamente ambivalente. Até que
rio apenas dominar os conteúdos ou as habilida- ponto – esta é a pergunta que se impõe – a edu-
des e aplicar os métodos e as técnicas adequados cação ética ainda promete algum resultado se
para transferi-los aos educandos. A partir desse buscar convencer os educandos a pautarem seu
binômio – conhecimento e metodologia –, é comportamento em princípios universais num con-
possível realizar uma educação eficiente e desen- texto cultural em que tais princípios já perderam
volver nos educandos as competências necessá- sua legitimidade e não representam critério de
rias para sua inserção no sistema (mercado) e julgamento moral dos atos das pessoas? Os jovens
assim fazer jus às compensações oferecidas àque- já se tornam indiferentes aos valores universais e
les que atendem às suas exigências. se envolvem na fundação de uma cultura fortemen-
Essa parece ser a tendência dominante te particularista. Ora, é preciso não perder de vis-
nos diferentes âmbitos da atividade educativa ta que essa tendência, à primeira vista sugestiva e
hoje. Os fundamentos dessa atividade não entram progressista porque promete superar o tradicional
em tela de juízo por parte dos atores educacio- autoritarismo dos valores absolutos, também impli-
nais a não ser em duas dimensões. A primeira, de ca sérios riscos que não podem ser esquecidos. Se
caráter social, de orientação marxista ou socialista, aceitarmos os argumentos daqueles que acreditam
preocupada com um projeto de transformação ser impossível ou inócuo discutir a respeito da
social, com a democracia, justiça e direitos huma- universalização e generalização de valores, deve-
nos. Essa tendência revela-se teoricamente con- mos admitir também que não temos como argu-
sistente e ativa, mas na prática pouco influente mentar contra interesses privados que, alçados a
fora do ambiente acadêmico. A segunda, religio- valores pela força ou pela influência da mídia,
sa, conservadora e individualista, preocupa-se sim tentam se impor a todos. O que está em jogo é o
com o sentido do homem, da vida e do destino, confronto entre um discurso prescritivo e
mas desde uma perspectiva teológico-metafísica.
Busca preservar os valores tradicionais ligados à 4.Entrevista ao Jornal Folha de S.Paulo (10/10/2004, A 28).

604 Pedro GOERGEN. Questões im-pertinentes para a Filosogia da Educação


monológico de uma normatividade impositiva tra- tade de abandonar as posições dualistas e
dicional e o discurso da diversidade, da policemia maniqueístas cujos radicalismos e dogmatismos
e da pluralidade éticas. inibem, de parte a parte, o diálogo fecundo e
fecundador de práticas transformadoras. Talvez
Conclusão seja mais produtivo começar a falar de pontos de
vista ou, como disse acima, de problemáticas
O fim da filosofia da história, o enfraque- modernas ou pós-modernas postas em relação
cimento do sujeito e da deslegitimação dos valo- dialético-dialógica do que seguir no confronto
res são três teses que perpassam o assim chama- entre posições fechadas que se excluem a priori.
do pensamento pós-moderno. São três aspectos Poderíamos dizer que vivemos hoje uma nova
que, se confirmados, apontam para novos rumos problemática que exige novas respostas, adequa-
do pensamento moderno, com importantes das às novas circunstâncias. São essas novas cir-
inferências sobre a teoria e a prática educacionais. cunstâncias que nolens volens fazem emergir a
Na verdade, trata-se de uma eventual desesta- pergunta se as antigas soluções ainda dão conta
bilização dos fundamentos da educação moderna da nova realidade ou não.
que exige a atenção rigorosa e crítica por parte da A Filosofia da Educação, como fizeram
Filosofia da Educação. Quem, para que e em nome todos os grandes filósofos e sociólogos das úl-
de quem se educa são as questões subjacentes a timas décadas, deve voltar-se reflexivamente
essas temáticas e não é preciso insistir na sua re- sobre os pressupostos e as conseqüências da
levância para a práxis educativa. modernidade. Isso implica em refletir sobre o
Nos limites do texto, só foi possivel significado da absolutização da razão instru-
tangenciar algumas das inúmeras questões, mas mental, do universalismo, do domínio técnico-
que mesmo assim nos permitem algumas conclu- econômico da natureza, da mercantilização e
sões. Primeiro, é importante realizar um debate objetalização do sujeito, da desconstrução dos
sobre as principais teses levantadas pelos pós- valores. A Filosofia da Educação, e por conse-
modernos e examiná-las à luz da realidade, averi- qüência a própria educação, deve dar-se con-
guando o grau de sua validade. O que parece ta de que não é mais justificado ficar
necessário, desde já, é, portanto, superar uma certa dogmaticamente preso a supostos que há mui-
atitude maniqueista, bastante disseminada na edu- to tempo vêm sendo submetidos a uma refle-
cação do ‘a favor ou contra’ e passar ao exame xão crítica tanto por filósofos e sociólogos
cuidadoso e crítico dos pontos de vista defendidos quanto também pelos próprios cientistas.
por tantos pensadores pós-modernos. Segundo, Se tomarmos os quatro elementos essen-
que é urgente alertar para os riscos do ativismo ciais da modernidade – a liberdade individual, a
performático dominante que tem como manda- construção ativa do mundo, a racionalidade e a
mento máximo o ajuste das teorias e práticas às solidariedade –, restam-nos chances de encontrar
demandas do mercado, sem considerar o que tal saídas menos pessimistas que a de Max Weber com
opção representa para o indivíduo e para a soci- relação à racionalização. No entanto, para que isso
edade a médio e longo prazos. Por último, que é ocorra, é preciso colocar efetivamente mãos à obra,
necessário construir uma nova base dialógica como mesmo no contexto adverso de desemprego,
estratégia de validação de princípios educacionais. criminalidade, corrupção e decadência política.
Pode-se dizer que a teoria educacional Weber pensou a teoria da racionalização e
ou a Filosfia da Educação ostenta um déficit re- burocratização do mundo até suas últimas conse-
flexivo no que diz respeito ao enfrentamento das qüências e chegou a conclusões pessimistas a
grandes questões que emergem do debate entre respeito das possibilidades de uma futura liberda-
modernos e pós-modernos. A maior dificuldade de individual e social. Até hoje, suas previsões
parece consistir na falta de coragem ou de von- parecem confirmar-se, mas registram-se também

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 589-606, set./dez. 2006 605
contramovimentos que, embora ainda tímidos e ambivalências e contradições que subjazem às lei-
sem caráter revolucionário, permitem manter ace- turas que vêm sendo feitas da contemporaneidade,
sas as esperanças num futuro melhor. A Filosofia sinalizando suas características e visualizando suas
da Educação também pode e deve ter sua parte de implicações para, mediante o diálogo, avançar
responsabilidade nisso, fazendo aflorar as orientações para a praxis educativa.

Referências bibliográficas

ADORNO, Th., HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento


esclarecimento. Tradução Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985.

______. Educação e emancipação


emancipação. Tradução W. Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

BAUDRILLARD, J. O paroxista indiferente


indiferente. Tradução Ana Zachetti. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999.

______. Le Crime parfait


parfait. Paris: Galilée, 1979.

HABERMAS, J. Consciência moral e aagg ir comunica tivo


comunicativo
tivo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

______. Verdade e justificação


justificação. São Paulo: Loyola, 2004

HORKHEIMER, M. Eclipse da razão


razão. Tradução Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Editorial Labor, 1976.

LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna


pós-moderna. Tradução José B. de Miranda. Lisboa: Gradiva-Publicações, 1985.

LUHMANN, N. Soziale systeme


systeme: grundriss einer allgemeinen theorie. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1996.

KANT, I. Kritik der praktischen V ernunft


ernunft. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1974.

MARDONES, J. M. El neo-conservadorismo de los posmodernos. In: VATTIMO, G. et al. En torno a la posmodernidad


posmodernidad. Barcelona:
Anthoropos Editorial: 2003, p. 21-40.

RAWLS, J. Teoria da justiça


justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ROUSSEAU, J.-J. Contrato social


social. Lisboa: Editorial Presença, 1973.

SCALFARI, E. Attualità del’Illuminismo


del’Illuminismo. Roam-Bari: Editori Laterza, 2001.

VATTIMO, G. Ética de la interpretació


interpretació. Buenos Aires: Piados, 1992.

______. O fim da modernidade


modernidade. Tradução Eduardo Brandão. Sao Paulo: Martins Fontes, 1996.

______. Soffusi e deboli così li preferisco. In: SCALFARI, E. Attualità del’Illuminismo


del’Illuminismo. 2001, p. 35-42.

WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo


capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1997.

WELLMER, A. Finales de partida


partida: la modernidad irreconciliable. Tradução Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Frónesis, 1996.

ZIMA, P. V. Moderne/Postmoderne
Moderne/Postmoderne. Tübingen und Basel: A. Franke, 2001.

Recebido em 27.06.06
Modificado em 16.10.06
Aprovado em 06.11.06

Pedro Goergen é professor titular da Universidade de Sorocaba (Uniso) e professor titular colaborador aposentado da
Unicamp.

606 Pedro GOERGEN. Questões im-pertinentes para a Filosogia da Educação

Você também pode gostar