Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
Em Angola, os musseques são bairros informais localizados maioritariamente
em áreas peri-urbanas da capital, e fisicamente representam a segregação social no
tecido urbano das cidades. Os musseques correspondem aos “caniços” em
Moçambique, às favelas ou comunidades no Brasil e aos slums na África do Sul e na
Índia. Apesar de serem considerados bairros desordenados existe uma forte influência
da cultura rural atrelada a eles. No presente artigo, dentificou-se características da
arquitetura vernacular por aspectos culturais e etnoterritorialidades nos bairros das
Chicalas, levando-se em consideração a geodiversidade e os processos históricos
que nortearam a formação deste fragmento de tecido urbano. Aponta-se para a
necessidade de olhares mais humanizados e preocupados com a resistência da
cultura tradicional, nas cidades contemporâneas.
Introdução
Menezes (2000) afirma que “ao escrever sobre Angola, estão escrevendo
também sobre o Brasil, pois estamos irremediavelmente ligados pelo cordão umbilical
que alimentou a formação de nossa identidade e que nos coloca eternamente na
condição de filhos da Mamma Angola” (p.29).
Luanda, a capital de Angola foi refúgio para muitos migrantes no período da
Guerra Civil ocorrida entre os anos de, por ser não ter sido ela um território de batalha.
O êxodo rural e o aumento de sua população contribuíram para um crescimento
desordenado da cidade, tendo como subproduto deste processo um significativo
aumento dos bairros informais.
Tendo em vista o recorte cultural sobre o qual este presente artigo se debruça,
temos que em contexto angolano os bairros informais, geralmente assentado em
zonas de gênese ilegal ou peri-urbana das cidades, são aqui denominados por
musseques, conforme o vocábulo local. Em uma perspectiva comparativa, estes
musseques correspondem ao que no Brasil é conhecido por favelas; na África do Sul
na Índia por slums e, em Moçambique, por caniços. Conforme as classificações das
Nações Unidas, estes são bairros que se enquadram dentro dos níveis de pobreza
mais baixos estabelecidos pela ONU (UNHABITAT, 2003).
Contudo, apesar da conotação negativa que tais classificações possam inferir
sobre eles e para além da atual dinâmica citadina de exclusão, é importante destacar
que o termo musseque corresponde a um habitat onde o ser, o fazer, o morar e o
conviver em grupo sustentam a unidade e o pertencimento destes indivíduos, em
comunidade.
Em sua fase original, os musseques consistiam em habitações feitas de terra
crua ou adobe, taipa de pilão, pau a pique, madeira ou de zinco. Deste modo, o
conjunto dessas habitações acabava por seguir alguns critérios como a
disponibilidade do material, o tipo do solo e os conhecimentos dos indivíduos –
salientando o seu caráter vernacular.
Pelas limitações e atendimento às necessidades, dava origem a um padrão de
assentamento, uma tipologia construtiva, cujos espaços edificados estavam
profundamente atrelados às práticas daqueles indivíduos. São construções
tipicamente africanas e rurais, e que resistiram ao próprio desenvolvimento urbano,
apresentando algumas adaptações na medida em que os avanços tecnológicos da
construção civil se tornam mais acessíveis. O significado de musseque antecede as
classificações da ONU, posto que é um saber prático e cultural; uma tradição popular
em construir e habitar consolidada por gerações e permeada de sutilezas.
Neste sentido, estudar um musseque não é apenas avaliar os dados tabulados,
os índices de pobreza ou o impacto do crescimento urbano e valorização imobiliária
sobre as áreas que ocupam; mas mergulhar em um fragmento urbano negligenciado,
porém rico culturalmente – onde a miscigenação entre grupos se expõe no próprio
léxico.
O termo musseque é uma toponímia originária do dialeto luandense Kimbundu
e corresponde à descrição do primeiro assentamento realizado por grupos
antecessores: “de terra ou areia vermelha”. Isto é, casas rurais – de campo - que
rodeavam o centro urbano da antiga Luanda.Com o passar do tempo, o crescente
desenvolvimento urbano de Luanda, e a inserção de seu mercado na dinâmica
globalizada, os musseques passaram a englobar, em sua execução, materiais
estrangeiros – sobretudo europeus - como o uso do cimento ao invés da terra crua. A
utilização da terra ou do cimento pode ser compreendida como um indicativo de uma
organização interna hierárquica atrelada às possibilidades de acesso a recursos
financeiros.
Porém, apesar destas pontuais modificações, é possível identificar traços rurais
na espacialidade das habitações e, principalmente, no modo de vida da população
que nelas habitam. A atual área de musseque está relacionada às condicionantes
topográficas do sítio que acabam por naturalmente dividir o relevo da cidade de
Luanda em três grandes partes e todas elas com lógicas de ocupações diferenciadas.
A primeira a ser mencionada, é onde estão os musseques- a orla marítima -,
cuja altitude varia entre dos 2m a 5m acima do nível do mar, contendo também uma
porção artificialmente plana - fruto de um processo de aterro.
A segunda, identificada por “cidade baixa”, era a orla natural, altitudes variam
de 5m a 7m e atualmente é predominantemente ocupada por empreendimentos
comerciais e industriais. E a terceira, a “cidade alta”, localizada em área de planalto,
com altitude de aproximadamente 50m acima do nível do mar – onde se localizam o
centro histórico de Luanda, casas em condomínios, empresas e demais construções
de grande porte que apontam para o outro extremo da realidade: mais elitista. Sobre
esta paisagem serão feitas algumas observações.
A primeira delas é que assim como muitas cidades de topografia acidentada, a
lógica de ocupação e produção de cidades provenientes do colonialismo português
fez prevalecer nas porções mais altas as sedes administrativas e de poder
governamental ou religioso que organizavam e regiam a vida em sociedade.
Deste modo, esta relação espacial e de ocupação entre o “alto” e o “baixo”
coloca Luanda em proximidade a outras cidades oriundas do mesmo processo
colonial, tais como o Rio de Janeiro (RJ) e sua formação na área elevada no Morro do
Castelo, e Salvador (BA) onde os termos “cidade alta” e “cidade baixa” se fazem
presentes até hoje - ambas no Brasil. Por estratégia, visibilidade, comando ou
distanciamento das áreas de possíveis ataques, as cidades de origem portuguesa
apresentam o seu núcleo político e administrativo em local de destaque.
No que tange o caso de Luanda, o desenvolvimento da cidade alta avançou
sobre a área rural, ocasionando a expulsão de parte da população ali residente para
as áreas baixas e periféricas, na orla – além dos muitos que para lá foram no período
da Guerra Civil, como já comentado.
Figura 1. Identificação dos musseques, cidade baixa, cidade alta e condicionantes topográficas.
Fonte: Elaborado pelos autores a partir de imagem aérea disponibilizada pelo software Google Earth,
sobre a qual foram acrescidas as indicações das três grandes áreas em destaque, a linha de corte e
níveis. Corte ilustrativo, sem escala.
Figura 2. Alguns exemplos de habitações nativas dos vários grupos étnicos, seguindo a ordem
evolutiva, até ao modelo suburbano
Fonte: A Habitação Tradicional Em Angola. Aspectos da sua evolução.
A arquitetura angolana arcaica teve seu uso inicial no abrigo, cuja função
pontual limitou o tamanho destes espaços (Redinha, 1964, p. 7). Os assentamentos
eram divididos em dois grupos, um primeiro, designado de Lubata e correspondente
ao centro do poder político e outro que era a Senzala, correspondente a aldeia ou
assentamento que possuía uma estrutura social aonde o povo habitava por meio dos
vínculos familiares e laços amistosos.
Observa-se, então na (figura2) que as cubatas são distribuídas de uma forma
em que a casa do rei (soba) ou patriarca da família estivessem ao centro e o jango -
lugar aonde acontecem as reuniões importantes e cerimonias- no meio. A cubata
seguia um modelo que se adequava à realidade poligâmica, evidenciando a presença
da figura paterna e sua primeira esposa na casa do meio e, ao redor, as casas das
outras esposas e seus respectivos filhos. (figura3)
Figura 3. Alguns exemplos de habitações nativas dos vários grupos étnicos, seguindo a ordem
evolutiva, até ao modelo suburbano
Fonte: Novo conceito de habitação Kimbopolis. Arq Ilidio Daio.
Essa estrutura supracitada foi levada aos centros urbanos e consolidada nos
musseques. Frente a estas descrições, compreende-se aqui que os musseques são,
atualmente, o lugar aonde o urbano e o rural se encontram. Onde o europeu e o
africano se mesclam - um espaço heterogêneo de raças, etnias e culturas.
Mediante essa análise histórica habitacional podemos afirmar que o modelo de
vivência com a família alargada foi levado ao meio urbano, e o uso do quintal ou pátio
nas habitações da Chicala é uma herança vernacular. É importante salientar a
presença constante dos pátios, vistos como local dos encontros, da convivência, dos
acordos, dos plantios, da criação dos animais, do preparo do alimento, do lazer e das
tarefas diárias em família.
O pátio é o polo centralizador das atividades diárias e ordenador do fluxograma
existente nestas edificações – dele partem e se sustentam todas as lógicas do habitar
e a sua presença é vital para a perpetuação dos saberes e do continuar sendo –
enquanto indivíduos no mundo. Ele, deste modo, ganha especial destaque, pois serve
também de lugar de convívio e de estreitamento dos laços e vínculos entre famílias e
vizinhos - uma característica originária das antigas cubatas.
Como pode ser observado na figura 3, a implantação de tais residências pode
variar. No entanto, o pátio se faz presente e afirma a identidade local. Dentre as
variações possíveis e para além da existência do pátio, outros aspectos comuns aos
três modelos devem destacados: a frequente superlotação de agregados familiares
em uma só casa e um número elevado de membros da família dormindo no mesmo
quarto; o espaço de armazenamento de alimentos ou espaço de refeições e estar
localizados nos espaços externos cobertos.
O interior da casa, perde destaque na dinâmica destes espaços, servindo como
suporte a pernoite e ao guardar dos bens, segundo a prática da cultura camponesa.
BIO/CV:
Áurea Bianca Vasconcelos André
Graduação em Arquitetura e Urbanismo em andamento, pelo Centro Universitário
Adventista de São Paulo, campus Engenheiro Coelho/SP. Membro graduando do
grupo de pesquisa Desenho Urbano, sob a orientação do Dr. Mario Marangoni Filho e
a Dra. Jessica de Almeida Polito, envolvida com a realização de projetos e com a
produção científica e tecnológica do grupo. Áreas de interesse: Planejamento Urbano
e Regional, Políticas Públicas Habitacionais, Produção Territorial, Paisagem Cultural
e Teoria e História do Urbanismo.