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«A Bendita e
o maldito»
4 - As considerações demonológicas
5 - Os Segredos de Enoque
6 - Qumràn: un dualismo mitigato
1 - Introdução
O Livro Etíope de Enoque é uma coleção de cinco obras (Livro dos Vigilantes, Livro das Parábolas,
Livro da Astronomia, Livro dos Sonhos, Epístola de Enoque). O Livro dos Vigilantes, datável com
probabilidade por volta de 200 a.C., constitui um dado fundamental para o conhecimento do
mundo judaico pré-cristão, em particular para a demonologia. Na verdade, é citado como um
texto bíblico pelo Novo Testamento, como evidenciado pela Carta de Judas 14-15: «também
Henoc, que foi o oitavo patriarca depois de Adão, profetizou a respeito deles, dizendo: Eis que veio o Senhor entre
milhares de seus santos para julgar a todos e confundir a todos os ímpios por causa das obras de impiedade que
praticaram, e por causa de todas as palavras injuriosas que eles, ímpios, têm proferido contra Deus», que relata
uma profecia de Enoque.
Também no v. 6 é evidente que o autor retoma o conceito de Enoque, quando diz: os anjos que
não guardaram sua dignidade, mas deixaram sua casa Ele os mantém em eternos grilhões nas trevas, para o
julgamento do grande dia. É a queda dos anjos segundo a versão de Enoque e não do Livro dos
Jubileus, pelo qual os anjos não abandonaram suas moradas por vontade própria, mas por ordem
explícita de Deus.
1 - Introdução
O livro de Enoque também é mencionado muito frequentemente pelos Padres da Igreja,
especialmente os mais antigos, e é considerado inspirado por alguns deles. Em particular, a
doutrina da queda dos anjos é retomada, mesmo que o nome de Enoque não seja
mencionado explicitamente, em Justino (m. 165) e Taciano (m. 180) e Minúcio Félix (m. 260).
O último Padre da Igreja que leva em consideração o problema da culpa angélica na
perspectiva de Enoque, sem no entanto compartilhá-lo, é Cassiano (m. 435), depois do qual
não há mais notícias a respeito. Isso provavelmente se deve ao uso dos textos de Enoque
feitos pelos gnósticos sobre a figura do Messias pré-existente, que se afastava da concepção
cristã da Encarnação e da Trindade. Esta foi a causa que determinou a suspeita em relação a
Enoque e sua exclusão dos livros canônicos. No entanto, a doutrina cristã sobre o diabo e sua
função maligna não tem outro antecedente no mundo judaico tão decisivo quanto o livro de
Enoque. É, portanto, útil analisar as questões demonológicas nele contidas, considerando em
primeiro lugar os dados apresentados e, em seguida, destacando os aspectos conceituais que
deles derivam.
2 - Exposição dos dados
No Livro do Vigilante a queda dos anjos é descrita várias vezes com estes
termos: «Foram ter com as filhas dos homens, juntos dormiram com elas, com aquelas
mulheres, fizeram-se impuros e manifestaram estes pecados a elas, e as mulheres geraram os
gigantes e, portanto, toda a terra se encheu de sangue e pecado» (IX,8-9).
A culpa contém dois elementos:
a) a união sexual com as filhas dos homens
b) a manifestação de atitudes depravadas perante elas.
O pecado envolve, portanto, um aspecto carnal, que é central, e cognitivo ou
espiritual: «e tomaram para si as suas mulheres e cada um escolheu uma e começou a ir ter
com elas. E elas se juntaram a eles e ensinaram-lhes feitiços e magia e mostraram-lhes cortando
plantas e raízes. E engravidaram e produziram gigantes cuja estatura, para cada um, era de
três mil côvados» (VII,1-2).
2 - Exposição dos dados
Conta-se também que os anjos, filhos do céu, vendo as belas filhas dos homens,
apaixonaram-se por elas e decidiram livremente escolher mulheres e ter filhos
(VI,1-2). É, portanto, uma questão de livre escolha. Também é especificado que o
líder dos anjos, chamado Semeyaza, é o primeiro a tomar a iniciativa, ciente do grande
pecado que está prestes a cometer e a compartilhar a sua intenção com seus
companheiros. Estes, em número de duzentos, juram fidelidade ao seu líder e
comprometem-se a cumprir esse propósito com aliança mútua (VI,3-6).
A declaração é clara e peremptória sobre o pecado carnal. Apenas em um texto
encontramos a menção ao pecado da soberba, pois os anjos queriam ser iguais a
Deus: «o Senhor dos espíritos irou-se contra eles, porque agiram como se fossem o Senhor»
(LVIII,4). Disso deriva sua condenação eterna, pois somente o pecado de quem se
coloca no lugar de Deus não tem possibilidade de perdão (LVIII, 5).
2 - Exposição dos dados
Da união dos anjos com as filhas dos homens nascem os gigantes (VII,2), que são
descritos como seres violentos e maus, devoradores de homens e de toda espécie de
animais: «estes (os gigantes) comeram todo o fruto do cansaço de homens até que não possam mais ser
sustentados nem nomeados. Os gigantes se voltaram contra eles para comer os homens. E começaram a
pecar contra as aves, os animais, os répteis, os peixes e comeram a sua carne entre si e beberam o seu
sangue» (VII,3-5). A transgressão dos anjos causou uma impureza que afeta não apenas as
mulheres, mas, por meio de seus filhos, toda a humanidade e toda a terra. A essa altura, o
pecado e o mal se espalharam inexoravelmente: «as mulheres geraram gigantes e, portanto, toda
a terra se encheu de sangue e perversidade» (IX,9). O pecado dos anjos, portanto, é a origem do
pecado e do mal entre os homens. A situação de maldade que irrompe e se espalha sobre
a terra assume uma vastidão e um poder tão grandes que os homens não conseguem
suportar o peso e se libertar dele. Daí o seu clamor que sobe ao céu por socorro e
proteção (VIII,4).
2 - Exposição dos dados
O livro faz uma pausa para descrever o estado de corrupção provocado pelos
anjos caídos. Não apenas pelas más ações dos gigantes, mas também pelos
ensinamentos que os anjos deram aos homens sobre as realidades ocultas da
vida, levando-os a buscar e praticar o mal. Ensinaram-lhes a arte da guerra e
juntos os impulsionaram a viver na suavidade e vaidade do corpo: «Azazel
ensinou os homens a fazer espadas, facas, escudos, couraças e mostrou-lhes o que, depois deles, e
seguindo seu modo de agir, eles poderiam produzir: pulseiras, enfeites, tingimento e
embelezamento dos cílios, pedras, mais do que todas as pedras preciosas e escolhidas, todos os
corantes e (ele também lhe mostrou) a mudança do mundo. E houve grande maldade e muita
fornicação. E eles caíram no erro e todos os seus modos de vida foram corrompidos» (VIII,1-2;
cf. LXIX,6-7).
2 - Exposição dos dados
Outros anjos deram a conhecer a arte da adivinhação e a solução de feitiços, a astrologia,
os signos do zodíaco, o curso da lua (VIII,3-4). Um terceiro anjo, chamado Gadriel,
«induziu Eva a errar e mostrou o meio da morte aos homens» (LXIX,6). Um quarto, chamado
Penemu, «mostrou aos filhos dos homens o amargo e o doce e mostrou-lhes todos os segredos de sua
ciência. Ele ensinou os homens a escrever, com água de fuligem e papel e, por isso, são muitos os que
erraram, desde os séculos até os dias atuais» (LXIX, 8-9). Um quarto, chamado Kasdeyer,
mostrava «os golpes malignos de espíritos e demônios, e os golpes do feto no útero», ou seja, o aborto
(LXIX,12). Todo esse conhecimento causou desordem, maldade, orgulho nos homens,
que foram criados para serem santos e iguais aos anjos e que, por causa de seu pecado,
estão condenados à morte (LXIX,11). Portanto, a morte é uma consequência do pecado
e o pecado é derivado do conhecimento. A ideia será retomada pelos Padres da igreja,
que farão dos demônios a origem das ciências astrológicas e mágicas e das ciências
ocultas em geral.
2 - Exposição dos dados
Os inúmeros pecados que mancham a terra atraem a atenção do Criador, que
intervém com severo castigo divino. Em primeiro lugar, o Altíssimo decreta
provocar um dilúvio universal na terra, que destruirá tudo e todos os seres, com
exceção de Noé e sua família (X,2). Em segundo lugar, Deus envia o anjo Rafael
para castigar um dos líderes dos anjos maus: «amarre as mãos e os pés de Azazel e
coloque-o nas trevas, abra bem o deserto que está em Dudael e coloque-o lá. E coloque nele pedras
redondas e afiadas e cubra-o com a escuridão! E fique lá para sempre e cubra o rosto dele para
que ele não veja a luz! E, no grande dia do julgamento, que ele seja enviado para o fogo!»
(X,4-5). Em terceiro lugar, o Senhor castiga os gigantes, enviando Gabriel: «Ele vai
contra os bastardos e os condenados e contra os filhos da prostituta e os filhos dos anjos vigilantes.
Tire-os e envie-os um contra o outro! Eles mesmos, por não terem tempo, perecerão por matança
mútua» (X,9).
2 - Exposição dos dados
Finalmente Deus castiga o grande líder dos anjos caídos, dando a tarefa ao
poderoso Miguel: «anuncia a Semeyaza e aos outros que junto com ele se uniram com as
mulheres para se corromper, com elas, em toda a sua impureza: quando todos os seus filhos se
trespassam um ao outro e quando virem a morte de seus entes queridos, legal por setenta
gerações debaixo dos montes da terra até o dia do seu julgamento e seu fim, até que a
condenação eterna seja cumprida. E, então, eles os levarão para o inferno de fogo e serão
encerrados, por toda a eternidade, em tormentos e na prisão» (X,11-14).
Com esses castigos Deus quer restaurar a ordem e a paz na terra, para que os
homens possam redescobrir a alegria de viver, amar e honrar o Criador: «então
todos os justos louvarão (o Senhor) e estarão vivos até que gerem mil (=por mil gerações) e
cumprirão em paz todo o tempo de sua juventude e seus sábados. E naqueles tempos toda a
terra será trabalhada em retidão e tudo será plantado com árvores e se encherá de bênçãos»
(X,17-19). Esta perspectiva abre-se para um horizonte escatológico.
3 - Os anjos Semeyaza e Azazel
A lista dos nomes dos líderes angélicos também é dada, em versão dupla: a
primeira (VI,7) coloca 18 nomes «Semeyaza, que foi o líder deles. Urakibaramel,
Akibabel, Tamiel, Ramuel, Danel, Ezeqeel, Suraquyal, Azael, Armers, Batraal, Anani,
Zaqebe, Samsawell, Sartael, Turel, Yomyael, Arazazeyal»; a segunda (LXIX,1) coloca
21, sem seguir a mesma ordem ou o mesmo nome: «Semeyaza, Aristiqife, Armen,
Kakabaele, Turiele, Rumeyal, Daniele, Nuqaiele, Baraqel, Azazel, Armers, Betareyal,
Basasael, Ananel, Turyel , Simapisiel, Yetarel, Tumael, Tariel, Rumael, Izezeel».
Entre estes dois se destacam: Semeyaza (VI,3; X,11,14) e Azazel (VIII,1 e X,4,8).
Semeyaza é mencionado novamente no Livro dos Sonhos, onde o pecado de uma
estrela (LXXXVI), chamado Semayaza (identificável com o Semeyaza anterior) é
contado de forma alegórica; seu exemplo é imediatamente seguido por muitas
outras estrelas. A punição do pecado é então descrita: a primeira estrela é amarrada
de pés e mãos e lançada no abismo (LXXXVIII); em outro capítulo (XC,21-26) é
dito que todas as estrelas pecadoras são julgadas e punidas. Daí provavelmente a
conexão entre os anjos e as estrelas e o mito da queda da primeira estrela.
3 - Os anjos Semeyaza e Azazel
A figura de Azazel deve ser ainda mais sublinhada, pois seu nome aparece em um texto
do Antigo Testamento, Lv 16,7-10, onde é descrito o rito de Kippur: «E ele tomará os dois
bodes e os colocará diante de YHWH todas as entradas para a tenda da reunião. E Arão lançará sortes
sobre os dois bodes: uma sorte para YHWH e outra para Azazel. E Arão oferecerá o bode sobre o qual
caiu a sorte para YHWH e fará o sacrifício expiatório. E o bode sobre o qual a sorte caiu para Azazel o
fará permanecer vivo diante de YHWH para espiá-lo e enviá-lo a Azazel para o deserto».
Azazel do livro de Enoque corresponde ao mesmo personagem em Levítico, ou seja, a
um ser celestial transformado em demônio. Mas por trás de Azazel pode-se entender uma
divindade pagã, porque por trás do nome Azazel, demônio do deserto, esconde-se muito
provavelmente o deus Azizo que guiou e protegeu as caravanas árabes pelas trilhas do
deserto, que então era a estrela Vênus chamada Phosphoros pelos gregos e Lúcifer pelos
latinos. Durante o período helenístico, o culto de Dionísio e Pan se espalhou pela Palestina;
este culto tornou-se mais popular pela identificação das duas divindades gregas com
Dusares, o deus dos nabateus já mencionado por Heródoto como o Dioniso árabe ou Baco
do deserto.
3 - Os anjos Semeyaza e Azazel