Você está na página 1de 28

Curso

«A Bendita e
o maldito»

Curso «A Bendita e o maldito» Locus Mariologicus Instagram: @locusmariologicus


Centro de Pesquisa e Formação email: info@locusmariologicus.org
AULA 4
«Demonologia Veterotestamentária Apócrifa»
Sumário
1 - Introdução

2 - Exposição dos dados

3 - Os anjos Semeyaza e Azazel

4 - As considerações demonológicas
5 - Os Segredos de Enoque
6 - Qumràn: un dualismo mitigato
1 - Introdução
O Livro Etíope de Enoque é uma coleção de cinco obras (Livro dos Vigilantes, Livro das Parábolas,
Livro da Astronomia, Livro dos Sonhos, Epístola de Enoque). O Livro dos Vigilantes, datável com
probabilidade por volta de 200 a.C., constitui um dado fundamental para o conhecimento do
mundo judaico pré-cristão, em particular para a demonologia. Na verdade, é citado como um
texto bíblico pelo Novo Testamento, como evidenciado pela Carta de Judas 14-15: «também
Henoc, que foi o oitavo patriarca depois de Adão, profetizou a respeito deles, dizendo: Eis que veio o Senhor entre
milhares de seus santos para julgar a todos e confundir a todos os ímpios por causa das obras de impiedade que
praticaram, e por causa de todas as palavras injuriosas que eles, ímpios, têm proferido contra Deus», que relata
uma profecia de Enoque.
Também no v. 6 é evidente que o autor retoma o conceito de Enoque, quando diz: os anjos que
não guardaram sua dignidade, mas deixaram sua casa Ele os mantém em eternos grilhões nas trevas, para o
julgamento do grande dia. É a queda dos anjos segundo a versão de Enoque e não do Livro dos
Jubileus, pelo qual os anjos não abandonaram suas moradas por vontade própria, mas por ordem
explícita de Deus.
1 - Introdução
O livro de Enoque também é mencionado muito frequentemente pelos Padres da Igreja,
especialmente os mais antigos, e é considerado inspirado por alguns deles. Em particular, a
doutrina da queda dos anjos é retomada, mesmo que o nome de Enoque não seja
mencionado explicitamente, em Justino (m. 165) e Taciano (m. 180) e Minúcio Félix (m. 260).
O último Padre da Igreja que leva em consideração o problema da culpa angélica na
perspectiva de Enoque, sem no entanto compartilhá-lo, é Cassiano (m. 435), depois do qual
não há mais notícias a respeito. Isso provavelmente se deve ao uso dos textos de Enoque
feitos pelos gnósticos sobre a figura do Messias pré-existente, que se afastava da concepção
cristã da Encarnação e da Trindade. Esta foi a causa que determinou a suspeita em relação a
Enoque e sua exclusão dos livros canônicos. No entanto, a doutrina cristã sobre o diabo e sua
função maligna não tem outro antecedente no mundo judaico tão decisivo quanto o livro de
Enoque. É, portanto, útil analisar as questões demonológicas nele contidas, considerando em
primeiro lugar os dados apresentados e, em seguida, destacando os aspectos conceituais que
deles derivam.
2 - Exposição dos dados
No Livro do Vigilante a queda dos anjos é descrita várias vezes com estes
termos: «Foram ter com as filhas dos homens, juntos dormiram com elas, com aquelas
mulheres, fizeram-se impuros e manifestaram estes pecados a elas, e as mulheres geraram os
gigantes e, portanto, toda a terra se encheu de sangue e pecado» (IX,8-9).
A culpa contém dois elementos:
a) a união sexual com as filhas dos homens
b) a manifestação de atitudes depravadas perante elas.
O pecado envolve, portanto, um aspecto carnal, que é central, e cognitivo ou
espiritual: «e tomaram para si as suas mulheres e cada um escolheu uma e começou a ir ter
com elas. E elas se juntaram a eles e ensinaram-lhes feitiços e magia e mostraram-lhes cortando
plantas e raízes. E engravidaram e produziram gigantes cuja estatura, para cada um, era de
três mil côvados» (VII,1-2).
2 - Exposição dos dados
Conta-se também que os anjos, filhos do céu, vendo as belas filhas dos homens,
apaixonaram-se por elas e decidiram livremente escolher mulheres e ter filhos
(VI,1-2). É, portanto, uma questão de livre escolha. Também é especificado que o
líder dos anjos, chamado Semeyaza, é o primeiro a tomar a iniciativa, ciente do grande
pecado que está prestes a cometer e a compartilhar a sua intenção com seus
companheiros. Estes, em número de duzentos, juram fidelidade ao seu líder e
comprometem-se a cumprir esse propósito com aliança mútua (VI,3-6).
A declaração é clara e peremptória sobre o pecado carnal. Apenas em um texto
encontramos a menção ao pecado da soberba, pois os anjos queriam ser iguais a
Deus: «o Senhor dos espíritos irou-se contra eles, porque agiram como se fossem o Senhor»
(LVIII,4). Disso deriva sua condenação eterna, pois somente o pecado de quem se
coloca no lugar de Deus não tem possibilidade de perdão (LVIII, 5).
2 - Exposição dos dados
Da união dos anjos com as filhas dos homens nascem os gigantes (VII,2), que são
descritos como seres violentos e maus, devoradores de homens e de toda espécie de
animais: «estes (os gigantes) comeram todo o fruto do cansaço de homens até que não possam mais ser
sustentados nem nomeados. Os gigantes se voltaram contra eles para comer os homens. E começaram a
pecar contra as aves, os animais, os répteis, os peixes e comeram a sua carne entre si e beberam o seu
sangue» (VII,3-5). A transgressão dos anjos causou uma impureza que afeta não apenas as
mulheres, mas, por meio de seus filhos, toda a humanidade e toda a terra. A essa altura, o
pecado e o mal se espalharam inexoravelmente: «as mulheres geraram gigantes e, portanto, toda
a terra se encheu de sangue e perversidade» (IX,9). O pecado dos anjos, portanto, é a origem do
pecado e do mal entre os homens. A situação de maldade que irrompe e se espalha sobre
a terra assume uma vastidão e um poder tão grandes que os homens não conseguem
suportar o peso e se libertar dele. Daí o seu clamor que sobe ao céu por socorro e
proteção (VIII,4).
2 - Exposição dos dados
O livro faz uma pausa para descrever o estado de corrupção provocado pelos
anjos caídos. Não apenas pelas más ações dos gigantes, mas também pelos
ensinamentos que os anjos deram aos homens sobre as realidades ocultas da
vida, levando-os a buscar e praticar o mal. Ensinaram-lhes a arte da guerra e
juntos os impulsionaram a viver na suavidade e vaidade do corpo: «Azazel
ensinou os homens a fazer espadas, facas, escudos, couraças e mostrou-lhes o que, depois deles, e
seguindo seu modo de agir, eles poderiam produzir: pulseiras, enfeites, tingimento e
embelezamento dos cílios, pedras, mais do que todas as pedras preciosas e escolhidas, todos os
corantes e (ele também lhe mostrou) a mudança do mundo. E houve grande maldade e muita
fornicação. E eles caíram no erro e todos os seus modos de vida foram corrompidos» (VIII,1-2;
cf. LXIX,6-7).
2 - Exposição dos dados
Outros anjos deram a conhecer a arte da adivinhação e a solução de feitiços, a astrologia,
os signos do zodíaco, o curso da lua (VIII,3-4). Um terceiro anjo, chamado Gadriel,
«induziu Eva a errar e mostrou o meio da morte aos homens» (LXIX,6). Um quarto, chamado
Penemu, «mostrou aos filhos dos homens o amargo e o doce e mostrou-lhes todos os segredos de sua
ciência. Ele ensinou os homens a escrever, com água de fuligem e papel e, por isso, são muitos os que
erraram, desde os séculos até os dias atuais» (LXIX, 8-9). Um quarto, chamado Kasdeyer,
mostrava «os golpes malignos de espíritos e demônios, e os golpes do feto no útero», ou seja, o aborto
(LXIX,12). Todo esse conhecimento causou desordem, maldade, orgulho nos homens,
que foram criados para serem santos e iguais aos anjos e que, por causa de seu pecado,
estão condenados à morte (LXIX,11). Portanto, a morte é uma consequência do pecado
e o pecado é derivado do conhecimento. A ideia será retomada pelos Padres da igreja,
que farão dos demônios a origem das ciências astrológicas e mágicas e das ciências
ocultas em geral.
2 - Exposição dos dados
Os inúmeros pecados que mancham a terra atraem a atenção do Criador, que
intervém com severo castigo divino. Em primeiro lugar, o Altíssimo decreta
provocar um dilúvio universal na terra, que destruirá tudo e todos os seres, com
exceção de Noé e sua família (X,2). Em segundo lugar, Deus envia o anjo Rafael
para castigar um dos líderes dos anjos maus: «amarre as mãos e os pés de Azazel e
coloque-o nas trevas, abra bem o deserto que está em Dudael e coloque-o lá. E coloque nele pedras
redondas e afiadas e cubra-o com a escuridão! E fique lá para sempre e cubra o rosto dele para
que ele não veja a luz! E, no grande dia do julgamento, que ele seja enviado para o fogo!»
(X,4-5). Em terceiro lugar, o Senhor castiga os gigantes, enviando Gabriel: «Ele vai
contra os bastardos e os condenados e contra os filhos da prostituta e os filhos dos anjos vigilantes.
Tire-os e envie-os um contra o outro! Eles mesmos, por não terem tempo, perecerão por matança
mútua» (X,9).
2 - Exposição dos dados
Finalmente Deus castiga o grande líder dos anjos caídos, dando a tarefa ao
poderoso Miguel: «anuncia a Semeyaza e aos outros que junto com ele se uniram com as
mulheres para se corromper, com elas, em toda a sua impureza: quando todos os seus filhos se
trespassam um ao outro e quando virem a morte de seus entes queridos, legal por setenta
gerações debaixo dos montes da terra até o dia do seu julgamento e seu fim, até que a
condenação eterna seja cumprida. E, então, eles os levarão para o inferno de fogo e serão
encerrados, por toda a eternidade, em tormentos e na prisão» (X,11-14).
Com esses castigos Deus quer restaurar a ordem e a paz na terra, para que os
homens possam redescobrir a alegria de viver, amar e honrar o Criador: «então
todos os justos louvarão (o Senhor) e estarão vivos até que gerem mil (=por mil gerações) e
cumprirão em paz todo o tempo de sua juventude e seus sábados. E naqueles tempos toda a
terra será trabalhada em retidão e tudo será plantado com árvores e se encherá de bênçãos»
(X,17-19). Esta perspectiva abre-se para um horizonte escatológico.
3 - Os anjos Semeyaza e Azazel
A lista dos nomes dos líderes angélicos também é dada, em versão dupla: a
primeira (VI,7) coloca 18 nomes «Semeyaza, que foi o líder deles. Urakibaramel,
Akibabel, Tamiel, Ramuel, Danel, Ezeqeel, Suraquyal, Azael, Armers, Batraal, Anani,
Zaqebe, Samsawell, Sartael, Turel, Yomyael, Arazazeyal»; a segunda (LXIX,1) coloca
21, sem seguir a mesma ordem ou o mesmo nome: «Semeyaza, Aristiqife, Armen,
Kakabaele, Turiele, Rumeyal, Daniele, Nuqaiele, Baraqel, Azazel, Armers, Betareyal,
Basasael, Ananel, Turyel , Simapisiel, Yetarel, Tumael, Tariel, Rumael, Izezeel».
Entre estes dois se destacam: Semeyaza (VI,3; X,11,14) e Azazel (VIII,1 e X,4,8).
Semeyaza é mencionado novamente no Livro dos Sonhos, onde o pecado de uma
estrela (LXXXVI), chamado Semayaza (identificável com o Semeyaza anterior) é
contado de forma alegórica; seu exemplo é imediatamente seguido por muitas
outras estrelas. A punição do pecado é então descrita: a primeira estrela é amarrada
de pés e mãos e lançada no abismo (LXXXVIII); em outro capítulo (XC,21-26) é
dito que todas as estrelas pecadoras são julgadas e punidas. Daí provavelmente a
conexão entre os anjos e as estrelas e o mito da queda da primeira estrela.
3 - Os anjos Semeyaza e Azazel

Um pensamento semelhante foi expresso no capítulo XVIII,


quando Enoque, durante uma longa viagem sobrenatural, chega a
um lugar deserto onde encontra a prisão das «estrelas do céu e do exército
celestial». O anjo Uriel explica que «as estrelas que rolam no fogo são
aquelas que transgrediram a ordem de Deus: o Senhor se indignou com eles e os
aprisionou até o fim do seu pecado» (XVIII,14). A estrela pecaminosa
pode ser entendida como o símbolo ou representação de Azazel, o
líder dos anjos caídos e responsável pelo mal no mundo (XVIII;
XIX; XXI; LXXXVIII; XC). Nessa perspectiva, os dois
personagens, Semeyaza e Azazel, coincidem.
3 - Os anjos Semeyaza e Azazel

A figura de Azazel deve ser ainda mais sublinhada, pois seu nome aparece em um texto
do Antigo Testamento, Lv 16,7-10, onde é descrito o rito de Kippur: «E ele tomará os dois
bodes e os colocará diante de YHWH todas as entradas para a tenda da reunião. E Arão lançará sortes
sobre os dois bodes: uma sorte para YHWH e outra para Azazel. E Arão oferecerá o bode sobre o qual
caiu a sorte para YHWH e fará o sacrifício expiatório. E o bode sobre o qual a sorte caiu para Azazel o
fará permanecer vivo diante de YHWH para espiá-lo e enviá-lo a Azazel para o deserto».
Azazel do livro de Enoque corresponde ao mesmo personagem em Levítico, ou seja, a
um ser celestial transformado em demônio. Mas por trás de Azazel pode-se entender uma
divindade pagã, porque por trás do nome Azazel, demônio do deserto, esconde-se muito
provavelmente o deus Azizo que guiou e protegeu as caravanas árabes pelas trilhas do
deserto, que então era a estrela Vênus chamada Phosphoros pelos gregos e Lúcifer pelos
latinos. Durante o período helenístico, o culto de Dionísio e Pan se espalhou pela Palestina;
este culto tornou-se mais popular pela identificação das duas divindades gregas com
Dusares, o deus dos nabateus já mencionado por Heródoto como o Dioniso árabe ou Baco
do deserto.
3 - Os anjos Semeyaza e Azazel

Dionísio se identificou com YHWH e assim os cultos dionisíacos


foram lentamente introduzidos na prática de adoração do templo de
Jerusalém. Os cultos dionisíacos usavam o bode como vítima e símbolo
da divindade; desta forma justifica-se o uso massivo do bode como
vítima sacrificial no culto judaico. A reação ao helenismo que culminou
com a revolta dos Macabeus levou a uma purificação radical do templo
e de seu culto; o bode como vítima sacrificial permanece mas
transformado em vítima de expiação em favor do povo e como símbolo
da divindade pagã é demonizado, processo testemunhado pelo Targum
do Pseudo-Jonas que afirma que o bode se assemelha a Satanás.
4 - As considerações demonológicas
O Livro de Enoque apresenta, além dos dados ora expostos, algumas reflexões de
fundamental importância sobre a realidade dos demônios, sobre seu pecado e sobre o
mal no mundo. Em primeiro lugar, torna Azazel, cabeça dos anjos caídos, responsável
por todo pecado, já que a terra foi corrompida por suas obras e ensinamentos (X,8). Em
seguida, a situação dos anjos é descrita após sua culpa, devido à qual eles se tornaram
como homens (XII,4). Eles perderam sua natureza espiritual e imortal, transformando-se
em seres corruptíveis e mortais, pois se misturaram com carne e sangue humanos.
Viviam no céu segundo as características do espírito que não morre e não precisa se
prolongar no tempo por meio da geração (XV,3-5.6-7). Com efeito, «os espíritos celestes
têm a sua sede no céu, os espíritos terrenos, nascidos na terra, têm a sua sede na terra»
(XV,10). Eles «abandonaram o alto céu e a o trono celeste para sempre e se corromperam com as
mulheres» (XII,4). Por isso não podem mais falar com Deus nem erguer os olhos para o
céu (XIII,5). O pecado dos anjos não tem apenas um valor moral, mas também
ontológico, pois envolve o seu ser, que é degradado pela característica espiritual e
conformado à própria estrutura da carne, em virtude da união com ela realizada.
4 - As considerações demonológicas
O pecado dos anjos não é perdoado, para eles «não haverá paz na terra nem remissão de
pecados, eles vão chorar a morte de seus filhos e implorar para sempre e não haverá perdão ou
paz para eles» ( XII,5-6). A condenação eterna é reiterada em particular para
Azazel: «para você, já que você ensinou a violência e por todos os atos de blasfêmia, pela
violência e pecado que você mostrou aos filhos do homem, não haverá descanso, intercessão ou
misericórdia» (XIII,2). Para os anjos rebeldes, portanto, não há possibilidade de
retornar ao seu estado primitivo; sua sentença é para a eternidade. Mesmo suas
orações, lamentações e lágrimas não ajudarão (XIV,4-7). No entanto, o castigo
definitivo será realizado «no dia da grande condenação, para sempre, sobre os anjos
vigilantes e sobre os ímpios» (XVI,1; XXI,5). Enquanto isso, podem agir contra os
homens (XIX,1); em particular, as almas dos gigantes permanecem na terra para
trazer destruição e corrupção para lá, sem que Deus os puna ou reprima
imediatamente (XVI,1).
4 - As considerações demonológicas
Há, portanto, uma condenação já em andamento (XXI,9; LXV,11) e uma
condenação adiada para o evento escatológico (LIV,5-6; LV,4; LVI,l-4). Diz-se a
este respeito: «Miguel, Gabriel, Rafael e Fanuel vão prendê-los naquele grande dia e jogá-los
na fornalha de fogo ardente para que o Senhor dos espíritos os castigue por sua iniqüidade, uma
vez que eram servos de Satanás e levou a errar os que vivem na terra» (LIV,6). Aqui falamos
de Satanás, sem especificar sua figura. Nos últimos capítulos os satanás (no plural)
são anjos da corte de Deus que têm a tarefa de relatar a Deus os pecados dos
homens (XL,6) ou punir os ímpios (LIII,3). Neste último texto parece que Satanás
é um nome próprio, como símbolo do mal. Azazel pecou precisamente porque
serviu a Satanás. Quem é então Satanás para o autor? A resposta é difícil: poderia
ser entendido como o princípio do mal em oposição a Deus, mas isso envolveria
uma concepção dualista, estranha ao pensamento judaico; ou poderia ser
identificado com Semeyaza, como líder dos anjos caídos, mas não é provável.
4 - As considerações demonológicas
Avançando no texto é repetido: «Como Ele (meu Escolhido) se sentará no trono de
sua glória e julgará Azazel e toda a sua companhia e suas hostes, tudo em nome do Senhor dos
espíritos» (LV,4). A relação entre a primeira e a última frase, qual a diferença e
continuidade entre os dois momentos ou estados, não é especificada. Às vezes
tem-se a impressão de que a condenação escatológica se refere em particular aos
espíritos malignos dos gigantes, enquanto a atual é apenas para os anjos vigilantes.
Mas pelos textos citados acima parece que mesmo para este último há uma
condenação definitiva no fim dos tempos.
Segundo Enoque, existem dois tipos de anjos caídos: o primeiro é o dos anjos
vigilantes, que pertenciam à esfera espiritual e celestial e depois ficaram manchados
com o pecado carnal; a segunda é a dos espíritos dos gigantes, filhos nascidos dos
vigilantes, que ficam na terra e fazem mal aos homens. Estes são chamados de
espíritos malignos ou espírito dos ímpios (XV, 9-10) ou mesmo explicitamente demônios
(LXV, 6). Daí a distinção entre os anjos rebeldes, condenados ao inferno, e os
demônios, espíritos malignos, que praticam o mal no meio dos homens.
4 - As considerações demonológicas
As almas dos gigantes possuem forças superiores às dos humanos (LXV,6), com as
quais incomodam e violentam os habitantes da terra (XV,8-9). Eles são descritos nestes
termos: «os espíritos dos gigantes, dos opressores Nafil (=termo hebraico para gigantes) são
opressores corruptos, caídos, são violentos, fracassam sobre a terra, causam dor, não comem comida
alguma, não sofrem sede, e não se fazem conhecer, se elevam, estas almas, contra os filhos dos homens e
contra as mulheres” (XV,11).
Os anjos vigilantes, após a queda, possuem um aspecto como uma chama ardente e
podem aparecer em forma humana (XVII,1) ou assumir formas diferentes e múltiplas
(XIX,1). O lugar onde vivem é o inferno, a prisão dos anjos, configurado da seguinte
forma: «um grande fogo ali ardendo e flamejando e, nele, uma fenda cuja extremidade era toda para
baixo, cheia de grandes colunas de fogo que fizeram eles mesmos descem para lá e eu (Enoque) não pude
observar nem as medidas nem o tamanho e não pude ver sua origem» (XXI,7; cf. XVIII,11-15).
Falamos também de uma fornalha de fogo ardente (LIV,6); de «fenda da terra, profunda, em
colunas de fogo do céu» (XVIII,11); de um lugar deserto (XVIII,12); da rachadura no fundo da
ravina (LVI, 4).
4 - As considerações demonológicas
Talvez a descrição mais completa seja a seguinte: «aqueles anjos que mostraram
maldade os trancarão naquela ravina ardente que, antes, meu ancestral Enoque me mostrou a
oeste, em direção às montanhas de ouro, prata, ferro, chumbo e estanho. E eu vi aquela ravina na
qual (havia) grande agitação e flutuação das águas. E quando tudo isso foi feito, daquele metal
liquefeito, de fogo, e de sua agitação que os agitou, naquele lugar foi gerado um perfume de enxofre
(que) juntou-se àquelas águas; e aquela ravina de anjos que eles haviam desencaminhado queimou
sob aquelas terras. E, através de suas depressões, fluíram rios de fogo onde foram julgados aqueles
anjos que haviam desencaminhado os que habitavam na terra» (LXVII,4-7).
No Livro das Parábolas, escrito por volta da primeira metade do século I
a.C., há uma marcada tendência apocalíptica, que permanece difícil de
decifrar e entender. Mas a intenção do autor é enfatizar que o mal foi
introduzido no mundo pela queda dos anjos e que ele, ainda que continue
presente na história, será definitivamente derrotado com a vinda do Filho do
homem.
5 - Os Segredos de Enoque
Este segundo Livro de Enoque, também chamado de Enoque Eslavo, de difícil datação, pode
situar-se por volta do século I d.C. É importante para a demonologia, pois se distancia, em algumas
questões, do primeiro livro de Enoque, continuando a tradição.
A primeira coisa surpreendente diz respeito precisamente ao pecado dos anjos, que não é mais
o pecado carnal descrito no primeiro Enoque, mas um pecado de apostasia, pois os anjos não
ouviram a voz ou o comando do Senhor, preferindo seguir sua própria vontade (VII,3). O pecado
não consiste tanto na ação consumada, mas na atitude interior de oposição e desobediência a Deus.
Assim, passamos a um estágio de interiorização e espiritualização da concepção do pecado.
Em outro texto, é apresentada uma versão diferente da culpa angelical. Uma vez que o diabo se
opôs a Deus, tentando ser igual a ele, por causa disso ele se tornou Satanás, pois foi expulso do céu
e caiu no ar, perdendo o nome primitivo de Satanael.
Ele não mudou a natureza, mas transformou o pensamento ou o espírito de bom em mau
(XXXI,3). Em primeiro lugar ele tem inveja do homem, criado por Deus e feito Senhor da terra.
Por isso, começa a guerra contra Adão, entrando no paraíso terrestre e enganando Eva (XXXI,16).
5 - Os Segredos de Enoque
Também fala do lugar de tortura, um lugar terrível, onde existe «todo tormento e
tortura, escuridão e neblina e não há luz, mas um fogo escuro que se reacende continuamente e
um rio de fogo que avança contra todo esse lugar, existe frio e geada» (X,l-2). É guardado por
«anjos maus e cruéis que carregam uma arma e atormentam sem piedade». Provavelmente
são os demônios, que são colocados no inferno para punir as almas pecadoras,
como é dito em outro lugar: «eu vi os guardiões das chaves do inferno, que estavam perto de
portões muito grandes, seus rostos (eram) como (aqueles) de grandes víboras, seus olhos como
lâmpadas apagadas e seus dentes arreganhados até o peito» (XLII,1). O lugar infernal está
localizado no mesmo céu onde está o céu (X,l), mesmo que normalmente esteja
colocado sob a terra, como parece afirmar outra passagem do mesmo livro: «de lá
fui enviado e cheguei ao lugar de julgamento e vi o inferno aberto» (XL,12). O fato de
Enoque descer do lugar mais alto, do céu, para chegar ao inferno significaria que
este é mais baixo, ou seja, subterrâneo.
5 - Os Segredos de Enoque
No capítulo XVIII, quando é transferido para o quinto céu, Enoque conta ter visto uma
grande milícia, composta por personagens chamados Egrigori (do grego egrègoroì=vigilante),
talvez identificados com os anjos caídos. No entanto, eles têm aspecto humano, sua grandeza maior
(que) a dos grandes gigantes, como se fossem filhos dos vigilantes. Permanece um texto de difícil
interpretação, também porque se diz que choram por seus irmãos, os anjos apóstatas (cf.
VII,3), e pelo ultraje para com Deus. Existe portanto neles um arrependimento da culpa,
confirmado pelo fato que, depois das palavras encorajantes de Enoque, e eles retomam o seu
serviço e a sua oração a Deus (XVIII,8-9). De acordo com este texto, portanto, parece que o
arrependimento também é possível na esfera angélica, embora seja difícil obter o perdão. Isso,
em todo caso, depende da vontade inescrutável de Deus, junto do qual é necessário encontrar
intercessores benevolentes.
Uma última advertência é feita do diabo, como Adversário, que se regozijará e alegrará nas más
obras feitas pelos homens no tempo de Noé, quando acontecerá a destruição de toda a terra
ocorrerá com o dilúvio, da qual será salvo somente o filho de Lameque (LXX,6). O termo
adversário é usado pela primeira vez na obra para se referir ao diabo. Este termo encontrará
muita aceitação na tradição cristã.
6 - Qumran: um dualismo mitigato
Os escritos de Qumran extraem as consequências de uma afirmação do Segundo Isaías: «Eu
formo a luz e crio as trevas, faço o bem e crio infortúnios» (45,7). Numa concepção em que tudo é previsto e
predeterminado, até os pensamentos e ações dos homens (1Q 53,15-17; 1QH 1,8-29), mesmo o
espírito do mal e das trevas que exerce poder sobre os homens maus remonta a um ato criador
divino. O dualismo não é psicológico, isto é, limita-se a sinalizar no homem a inclinação para o mal:
assim como o espírito da verdade guia o bem, assim o espírito do mal e da injustiça, o anjo das trevas
de dimensões cósmicas, mantém sob o seu domínio os perversos (cf. 1QS 3,17-23).
Os dois espíritos, verdadeiras entidades individuais e não abstrações, estão em contínua luta um
com o outro, constituem filhos das trevas ou da luz aqueles que a eles estão sujeitos, ainda que o
Senhor nunca perca o controle da história. No momento presente o mundo fica à mercê de Satanás
que tenta levar os eleitos ao mal, aumentando sua fúria e sua crueldade. Agora estamos nos últimos
tempos, o pior que a humanidade é chamada a viver: o desfecho da história é, no entanto, concebido
de forma otimista.
A vitória final será do Senhor que enviará para libertar os fiéis o seu Messias, esperado com
inabalável confiança: ele virá em breve, não o Messias ou o reino de Deus como esperado em
Qumran, mas o exército romano que destruiu o mosteiro em 68 d.C. e o templo dois anos depois
revelou uma orientação diferente da história.
6 - Qumran: um dualismo mitigato
O problema da influência na formação da figura de Satanás em Qumran e mais
geralmente no pensamento judaico está aberto. Foram encontrados contatos com
Canaã, Babilônia e Grécia. Há inegáveis semelhanças entre a literatura apocalíptica e
qumrânica com o pensamento iraniano, ainda que não se possa excluir uma influência
em sentido contrário, nem como explicação suficiente o desenvolvimento da figura
demoníaca na tradição javista. Os pontos de contato dizem respeito ao diabo como
líder de um exército de espíritos malignos, a associação com a figura da serpente, a
função de seduzir, acusar, destruir típica do Ahriman persa, a luta entre a luz e
escuridão, o aumento do poder devastador do mal no fim dos tempos, a aniquilação
ou prisão do príncipe das trevas.
Em última análise, Qumran professa um dualismo limitado em relação ao iraniano,
o único até agora a manter a independência absoluta dos dois príncipes. Qumran
eventualmente recua do dualismo absoluto do Irã e enfatiza que o Príncipe das Trevas
também é uma criatura do Senhor e vive em um universo feito pelo Senhor que
contém em si os princípios da luz e das trevas.
GRATO PELA VOSSA ATENÇÃO
TEMPO PARA AS PERGUNTAS
PODEM LIGAR OS MICROS

Você também pode gostar