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Vilma Nunes da Silva Fonseca

Janete Silva dos Santos


João de Deus Leite
(Organizadores)

Narrações pandêmicas
e outras prosas

Araguaína
2023
REITORIA Eroilton Alves dos Santos
Airton Sieben Superintendente de Infraestrutura
Reitor pro tempore Clarete de Itoz
Natanael da Vera-Cruz Gonçalves Araújo Superintendente de Tecnologia da Informação
Vice-reitor pro tempore Andressa Ferreira Ramalho Leite
Kênia Ferreira Rodrigues Superintendente de Comunicação
Pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Roberto Antero da Silva
Denise Pinho Pereira Diretor do Centro de Ciências
Pró-reitora de Planejamento, Orçamento Integradas (Cimba) - CCI
e Desenvolvimento Institucional Andressa Francisca
José Manoel Sanches da Cruz Diretora do Centro de Ciências Agrárias - CCA
Pró-reitor de Assuntos Estudantis Fernando Holanda Vasconcelos
Warton da Silva Souza Diretor do Centro de Ciências da Saúde - CSS
Pró-reitor de Finanças e Execução Orçamentária Marco Aurélio Gomes de Oliveira
Andréia de Carvalho Silva Diretor do Centro de Educação,
Pró-reitora de Gestão e Humanidades e Saúde- CEHS
Desenvolvimento de Pessoas Meirilane Leocadio
Braz Batista Vas Diretora do Sistema de Bibliotecas da UFNT
Pró-reitor de Graduação Joana Marcela Sales de Lucena
Rejane Cleide Medeiros de Almeida Coordenação da Editora Universitária - EDUFNT
Pró-reitora de Extensão, Cultura
e Assuntos Comunitários
Conselho Editorial
Adriano Lopes de Souza   |  Alesandra Araújo de Souza Aos sobreviventes, aos que partiram e à
César Alessandro Sagrillo Figueiredo  |  Joaquim Guerra de Oliveira Neto
Mara Pereira da Silva  |  Rozana Cristina Arantes  |  Ruy Ferreira Da Silva
ciência que renovou nossas forças para
lutar pela vida.
Capa: Guilherme Silva Vanderley
Projeto gráfico de miolo: Zeta Studio

ISBN:
PREFÁCIO

CRÔNICAS DE UMA PANDEMIA

Nos dias de hoje, quando a vida parece tão fugidia, às


vezes, escapando pelos vãos dos nossos dedos, nada mais atual
do que uma crônica. Esse gênero literário (discursivo?) tem seu
objeto no cotidiano construído pelo cronista através da seleção
que o leva a registrar alguns aspectos e eventos e a abandonar
outros. Por isso é comum se dizer que se trata de um gênero
resultante da visão pessoal, subjetiva, do cronista ante um fato
qualquer, ou seja, a crônica é um registro do tempo, que pode
ser a retomada do passado ou o flagrante do presente.

Para realizar essa tarefa de resgate ou flagrante temporal,


o cronista procura esconder a complexidade pressentida sob uma
límpida naturalidade, como se fosse uma suposta conversa sem
rumo. É nesse sentido que podemos dizer que a crônica possui um
estilo que se aproxima da marcha do pensamento, sem artifícios
intermediários para a expressão do que está na alma. Para Anto-
nio Candido (1992), esse gênero se caracteriza pela linguagem
simplória, elaborada pelo cronista à semelhança de um diálogo
entre ele e o leitor, demonstrando a busca de uma aproximação
com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo.

Em seu sentido etimológico, ‘crônica’ deriva da palavra


grega khronos, que significa tempo. Não seria incorreto, por-
tanto, dizer que esse gênero se encarrega de fazer a descrição

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NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS

de acontecimentos em ordem cronológica. Assim, ao conceber sobre a condição humana, fazendo com que o leitor redescubra
uma crônica, o escritor faz um resgate do tempo de forma a dignidade de objetos, como trabalho, dor, prazer e alegria, que
que não canse o leitor, procurando esconder a complexidade se misturam a emoções esquecidas.
pressentida sob uma límpida naturalidade, como uma conversa
A retomada dessas características e do conceito de crônica
sem rumo, parecendo residir na relação com a elocução oral.
servem para nos fazer lembrar de que há muito sabemos que esse
Um cronista emprega, portanto, um estilo que se aproxima da
gênero, ao ser tomado como objeto de estudo em sala de aula, pode
marcha do pensamento, sem artifícios para expressar o que está
aproximar literatura e realidade, uma vez que oportuniza o contato
na alma, oscilando entre o relato impessoal, frio e descolorido
com temáticas que são capazes de desenvolver o diálogo e o senso
de um acontecimento trivial, e a recriação do cotidiano por
crítico, favorecendo um processo formativo amplo. A partir da
meio da fantasia.
leitura de crônicas variadas, é possível que se reconheçam os traços
Em relação ao narrador, ele é o próprio autor e tudo o que constitutivos que regem o gênero e, além disso, partir para uma
diz parece ter acontecido de fato, como se fosse uma reportagem. oficina prática de escrita que levará o escritor/autor a documentar
O limiar entre o jornalístico e o literário é tão presente assim como seus próprios olhares perante a vida. Tendo isso em vista, podemos
a semelhança com o conto. Sobre isso, Martins (1980) diz que: inserir os jovens educandos no universo da leitura escolar e forma-
tiva, levando-os a observar que nossos mundos particulares estão
Muitas vezes a crônica se chega tão próximo
presentes no texto literário assim como esses textos também estão
do acontecimento que redunda em simples presentes em nossos mundos particulares. É dessa aproximação e
reportagem, perdendo sua identidade. Outras, cumplicidade que surge a crônica: ligeira, subjetiva e construída
mantém suas características, chegando-se ao sobre os alicerces de uma linguagem simples, cotidiana.
conto sem nele se transformar, literatizando
o acontecimento. Esse meio termo entre o Definitivamente a crônica se trata de um gênero didático
acontecimento e o lirismo parece ser a postura
e passível de escolarização, assim como fazem os professores
ideal do cronista para a elaboração de sua
crônica. (MARTINS, 1980, p. 10)
que organizam essa singela obra. Aqui, não se trata de apenas ler
e interpretar crônicas, mas, num gesto ainda mais alvissareiro,
No dizer de Sá (2000, p.11), a crônica equilibra o coloquial trata-se do resultado de uma oficina de criação que traz luz a
e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível per- diferentes textos que ora são considerados/lidos como crônicas,
maneça como elemento provocador de outras visões do tema, ora provocam-nos, como leitores, a inquietude que o gênero deve
assim como acontece em nossas conversas diárias e em nossas provocar, na tentativa de encaixá-lo, classificá-lo.
reflexões. A crônica relata, então, uma circunstância, um pequeno Os estudantes (licenciandos em Letras pela UFNT, ainda
acontecimento do dia a dia, transformando-o em um diálogo nos primeiros períodos do curso), cronistas, autores dos textos

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NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS

divididos em três blocos nesta obra, evidenciam, neste trabalho, a APRESENTAÇÃO


importância da oficina de criação, a importância do conhecimento
e do domínio de diferentes gêneros literários (e discursivos) e Escrita, real e pandemia: entre
a importância de se conseguir deixar fluir toda uma gama de (circulação de) sentidos e não sentidos
emoção e de sentimentos que, por vezes, fazem com que nos
sintamos tristes, solitários e, apesar de tudo, acolhidos. “De qualquer modo, há um outro efeito da
linguagem, que é a escrita.”
Sua tarefa como leitor? Observar o lirismo trazido nesses
(Lacan, 1985)
textos que discutem, primordialmente, a dor enfrentada durante
os dois primeiros anos da pandemia de coronavírus e, em seguida, “Nudez, último véu da alma [...] A linguagem
decidir se vale a pena reduzi-los a uma mera classificação. fértil do corpo não a detecta nem a decifra.”
(Drummond, 2015)

Lúcia Maria de Assis


(Doutora em Linguística – Gostaríamos de iniciar estas considerações, parabenizando
Docente da Universidade Federal Fluminense) os acadêmicos do Curso de Letras/Português e Inglês, da Uni-
versidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), do Centro de
REFERÊNCIAS Ciências Integradas (CCI)/Cimba. Eles, em articulação conosco,
voltaram-se (e ainda se voltam) para a realidade da pandemia da
CANDIDO, Antônio. A vida ao rés-do-chão. In: CANDIDO, A. (org.) A crônica:
O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora Covid-191, com o objetivo de escrever sobre. O gesto simbólico
da UNICAMP, 1992. fomentado por nós, para a composição da presente obra, toca em
MARTINS, Sylvia. J. A. A crônica brasileira. Revista Stylos, n.1. São Paulo: um dispositivo caro e central para o humano, a saber: a escrita.
UNESP, 1980.
É que esta se configura como um dos modos que temos para
SÁ, Jorge de. A crônica. 6. ed. São Paulo: Ática, 2001.
lidar com aquilo que é da ordem do trauma, do real. Como real,
deparamo-nos com a pandemia.

Filiados à perspectiva da Psicanálise freudo-lacaniana,


estamos interessados na concepção de escrita em que o sujeito, no

1 A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu, em 11 de março de 2020, a


doença do novo coronavírus (SARS-COV-2) como uma pandemia. Contudo, em
31 de dezembro de 2019, a OMS fora alertada dos primeiros casos da doença em
Wuhan na China. No Brasil, em 26 de fevereiro de 2020, é registrado a ocorrência
do 1º caso da doença.

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campo da palavra, está sob o domínio dos efeitos do significante. tidos e de não sentidos, pois ela faz trabalhar o questionamento
Longe de um viés conteudista, deparamo-nos, nestas reflexões, da literalidade. O texto literário abre-se ao equívoco, dado o seu
com a escrita do sujeito. Escrever, portanto, pressupõe um giro endereçamento ao campo do outro (do semelhante) e do Outro
subjetivo da posição diante do trauma, ainda que precariamente: de (do campo da linguagem).
uma posição de fixação (prevalência2 do Real) para uma posição
Para além da pandemia, como acontecimento histórico,
de ficção (prevalência do Simbólico). É sabido que essa inversão
marcado por um tempo de clausura, de medo, de terror, de ameaça
de posição não é plena nem bem-sucedida, mas passível de se
de morte e de muitas mortes, estamos lidando com o seu poder
constituir como efeito da linguagem. É sabido, sobretudo, que
significante. Esse acontecimento, com suas forças destrutivas,
nos espaços acadêmicos, comumente, a escrita é convocada muito
potencializadas pela necropolítica, só poderá ser atravessado pela
mais para a circulação de textos próprios desses espaços e menos
capacidade simbólica de construir ficções com esse significante.
para a escrita dos sintomas (individuais e coletivos) dos sujeitos.
E a escrita pode ganhar aí contornos importantes, sobretudo, em
Sendo assim, o que está em jogo, nesta (re)inversão de espaços que naturalizam outro tipo de escrita, como é a Uni-
posição, é o refazer dos acontecimentos, lançando-se ao movi- versidade, uma escrita marcada pelo efeito da unidade textual.
mento de desdobrar-se a palavra, retroagir com a palavra, (re)
Na esteira da Psicanálise freudo-lacaniana, assumir a
velar com a palavra, metaenunciar com a palavra; no caso desta
perspectiva da pandemia, como real, significa dizer que não há
obra, com a palavra sob a sua dimensão escrita. Neste ponto, um
encontro com ela; há, na verdade, um movimento de deparar-
questionamento se (im)põe a nós: será que é possível refazer os
-se com ela. A semântica do lexema “deparar” põe em cena o
acontecimentos tão cruéis e permeados de horror da pandemia
“encontrar-se de modo inesperado (com); topar (...)” (HOUAISS,
da Covid-19? Talvez, no exercício arriscado da palavra, uma
2015, p. 294). Há o real; há a pandemia. Contudo, resta-nos assu-
possível resposta fosse dada por aquilo que a literatura ensinou
mir uma posição ética3, no sentido psicanalítico do termo em
à Psicanálise freudo-lacaniana.
que a experiência com a palavra ressignifique o acontecimento
Não perdendo de vista os limites, a posição de ficção da pandemia no campo da palavra. Diante desta assertiva, não
pressupõe movimentos de (re)elaboração de sentidos e de não estamos desconsiderando, no seio social, as decorrências que
sentidos. A literatura traz à tona o fracasso da circulação de sen- precisam ser dadas para os concernidos pela pandemia, sobretudo
os operadores da necropolítica genocida e ecocida.
2 Na lógica topológica, Lacan (1972-1973) encontrou um modo de formalizar a
constituição e o funcionamento do sujeito a partir da figura do “nó borromeano”.
Esse nó é estruturado, topologicamente, com base em três registros, que se 3 Na concepção lacaniana, a ética do sujeito toca no modo como subjetivamente
interdependem, quais sejam: Real, Simbólico e Imaginário. Na teoria lacaniana, renunciamos as forças destrutivas para nos inscrevermos no laço social; o individual
esses registros estão em uma relação inextricável. Sendo assim, já pensando no perde, para que o coletivo ganhe. Um outro modo de pensarmos nesta posição
comportamento da superfície de cada registro, Lacan (1972-1973) acentuou a ética é trazermos para a cena da Universidade outros processos de escrita; no caso,
perspectiva de que a incidência de um sobre o outro é dada pela prevalência. a experiência cruel, traumática e dolorosa com a pandemia.

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NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS

Inscritos exatamente nesta posição ética, nós organiza- com, tendo a escrita do sujeito como ponto de aplicação mais
dores e acadêmicos do Curso de Letras/Português e Inglês não sublime. É que passamos a construir outros espaços de escrita
cedemos em nosso desejo, também no sentido psicanalítico do na Universidade, não para avaliação quantitativa, cujo fim é a
termo, em (re)inventarmos outros sentidos e não sentidos com aprovação em dada disciplina; passamos a uma escuta e a uma
o significante “pandemia”. A posição assumida, nesta obra, é leitura sensível e colaborativa da experiência do sujeito com
produzir ficção entre sentidos e não sentidos, de modo que a seus traumas.
circulação deste resta como enigma. A transmissibilidade em
As 20 (vinte) narrativas que o leitor terá acesso, na pri-
jogo entre escrever sobre e ler sobre é a do enigma. Não se sabe
meira parte desta obra, incidem, insistem e repetem a captura
o que será transmitido. Só se sabe, insabidamente, que há real,
de seus autores no circuito do significante “pandemia” e de
que há pandemia, que há sujeito.
seus efeitos. As narrativas, de modo sensível, tocam na singu-
Não é à toa que, no título desta apresentação, por meio laridade da pandemia para cada um de seus autores. Insistimos
do recurso do tachado da fonte, a construção parentética na perspectiva de que a singularidade aí não está para a ordem
“circulação de” está interditada. Esse efeito de interdição do do inusitado, mas, sim, para a simbolização que se marca na
sintagma em tela serve-nos para marcar a perspectiva do jogo e pela linguagem. Sob o primado do axioma lacaniano de que
que estamos assumindo com o significante “pandemia”. É sig- a angústia é um afeto que não engana (LACAN, 1962-1963),
nificante, porque interdita a significação literal, porque o traço podemos considerar que o significante “pandemia” e a falta
com o tachado põe em suspenso o caráter categórico de que que ele faz trabalhar no campo do Outro passam a ganhar
haverá “circulação de”. Mas, ao mesmo tempo, esse mesmo recobrimento simbólico. É preciso dizer, é preciso escrever
traço produz a ideia de que poderá haver a “circulação de”; a sobre a pandemia e sobre outros aspectos da vida, ainda que
inscrição está lá, ainda que sob esse jogo da (im)possibilidade, o real permaneça irredutível.
acionado pelo tachado. O campo do significante é exatamente
O significante “pandemia” segue operando efeitos nas
isto: há efeitos de deslizamento, fazendo trabalhar o fracasso
vinte de três narrativas que compõem a primeira parte desta
da significação unívoca.
obra, isto é, no bloco sobre “Narrações pandêmicas”. Neste ponto,
Se há pandemia, se nós nos deparamos com ela, como usufruindo, mais uma vez, dos fundamentos da Psicanálise freu-
manifestação cruel do real, há, também, na justa medida, a (im) do-lacaniana, podemos pensar nesse significante em uma rede,
possibilidade de se fazer algo com ela, cuja resposta está para em uma cadeia, em que outros significantes se mostram atados.
a ordem da singularidade. Trata-se de singularidade e não de O sujeito é uma urdidura de fios significantes. No caso das nar-
aspecto inusitado, fazendo-se pensar em respostas pragmáticas, rativas a serem lidas, o leitor se deparará com a narratividade
irresponsáveis. E nós nos fiamos nessa perspectiva do fazer algo do horror da pandemia: isolamento, distanciamento, quarentena,

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NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS

doença, despedida, incerteza, cuidados, vacina, paciente, médico, colaborativo de socialização de leitura é ali tematizado em seu
caos, vírus, máscara etc. caráter intersubjetivo.

Esse campo de associação de palavras em torno do A obra traz, ainda, tanto no início quanto no final, uma
significante “pandemia” faz trabalhar o trauma desta sob o compilação de formulações significantes sobre a pandemia,
olhar sensível de um segmento populacional da sociedade, que produzindo o efeito de que se trata de manchetes de jornal. Apa-
é a juventude. As narrativas produzem ficções para diferentes rece, nesse texto, formulações verbais e formulações imagéticas,
enredos, personagens, espaço, tempo e narrador principal, con- dispostas em quadros justapostos. Nas primeiras formulações,
cernidos, ora pelo mal-estar da pandemia, ora pela esperança não perdendo de vista o campo da associação de palavras,
em dias vindouros. É a escrita que está ali em jogo como um aparecem recorrentemente: coronavírus, mortes, COVID-19,
modo de ficcionalização de (re)invenção do acontecimento mortos, pandemia, COVID-19, brasileiros, contágio, protestos
histórico da pandemia. etc. Nas segundas formulações, ocorrem a imagem de uma
injeção, logo na parte superior, a imagem que representa a tão
O leitor terá acesso a uma segunda parte da obra, intitulada
propalada morfologia do vírus da COVID-19, a imagem com
“Outras prosas”, contendo nove narrativas. O foco literário das
alguns instrumentos característicos de laboratório, tendo essa
narrativas são diversos: desde a narração de fatos do cotidiano até
representação do vírus como composição imagética, e a imagem
à perspectiva do que ainda virá, para citarmos alguns exemplos.
da bandeira do Brasil em segundo plano, tendo a representação
Nesta parte da obra, podemos, também, trabalhar com o campo
do vírus como primeiro plano.
de associações de palavras; o leitor irá se deparará com: carta,
síndico, mar, afogamento, lua, conversa, abraço, sorriso, assalto, Se, por um lado, a escrita convocou os concernidos pela
bolo, sol, amanhã, cais, tristeza etc. presente obra, por outro, é chegada a hora de a leitura convocar
o leitor, considerando, em ambos os casos, que a circulação de
Na terceira parte, “Algumas palavras sobre as experiências
sentidos e de não sentidos é da ordem do enigma. Não se sabe
de escrita”, os acadêmicos que se lançaram à proposta foram
o que se transmite, pois a linguagem nos dá o testemunho da
impelidos a escrever sobre a relação com a própria escrita. Nesse
incompletude do sujeito. Diante da escrita e da leitura, uma
exercício, o que esteve em foco foi o movimento de metaenunciar
posição parece ser certa: termos de nos haver com os signi-
sobre a escrita, com o mote de pôr em circulação sentidos e não
ficantes do trauma que a pandemia pôs, associativamente,
sentidos sobre o uso e a menção da palavra. Ainda com base na
em circuito.
técnica da cadeia associativa entre as palavras, vamos perceber
que essa metaenunciação passa a ser significativa, pois aparecem
Os organizadores
designações e adjetivações sobre a escrita. Além disso, o aspecto

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NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS

REFERÊNCIAS POR QUE NARRAR A


ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo. São Paulo: Companhia das Letras, EXPERIÊNCIA PANDÊMICA?
2015.
HOUAISS, Antônio. Pequeno dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa. São Paulo, Ed. Moderna, 2015.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1992. O livro Narrações pandêmicas e outras prosas surgiu
LACAN, Jacques. (1962-1963). Seminário, livro 10. A angústia. Rio de da compilação de textos em prosa produzidos pelos acadêmicos
Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2005. da Licenciatura em Letras, do Centro de Ciências Integradas,
LACAN, J. O seminário, livro 22: RSI. Inédito, 1974-1975.
da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), na
disciplina Letramento Literário, ofertada no primeiro semestre
de 2021.

À época, estávamos todos imersos no contexto excepcional


de isolamento social ocasionado pela pandemia provocada pelo
vírus SARS-CoV-2, o coronavírus causador da doença infecciosa
denominada Covid-19. Dentro deste quadro de excepcionalidade,
após a publicação da Portaria Nº 343, o Ministério da Educação
e Cultura (MEC) suspendeu as aulas presenciais nas Instituições
de Ensino Superior (IES). O texto em questão autorizava o uso
de Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs)
como suporte para a interação online:

Art. 1º Autorizar, em caráter excepcional, a


substituição das disciplinas presenciais, em
andamento, por aulas que utilizem meios e
tecnologias de informação e comunicação,
nos limites estabelecidos pela legislação em
vigor, por instituição de educação superior
integrante do sistema federal de ensino, de
que trata o art. 2º do Decreto nº 9.235, de 15
de dezembro de 2017.

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NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS

§ 1º O período de autorização de que trata o alunos apresentavam quadros de ansiedade e de depressão, em


caput será de até trinta dias, prorrogáveis, a alguns casos, devido à pré-disposição do organismo acionado
depender de orientação do Ministério da Saúde
pelas questões associadas ao isolamento, principalmente, para
e dos órgãos de saúde estaduais, municipais
e distrital. (BRASIL/MEC/PORTARIA Nº 343, aqueles que estavam distantes de suas famílias, pois residiam
2020, p. 1) na cidade por ocasião dos estudos universitários.

Foi nesse cenário que propusemos aos acadêmicos a pro-


Os professores precisaram, em caráter de urgência, adap-
dução de textos em prosa como registro escrito daquele momento
tar os seus programas de ensino para a modalidade de ensino
histórico, mas também como forma de eles extravasarem os
remoto emergencial mediado por TDICs. Dessa forma, as aulas,
sentimentos e as emoções aprisionados pelas tensões e pelas
as avaliações e todo o processo de ensino e aprendizagem pas-
incertezas que circundavam os seus pensamentos. No entanto,
sou a acontecer a partir da realização de aulas telepresenciais
tal como nos informa Derrida (1995),
(CAMARGO; DAROS, 2021; SANTOS; FONSECA, 2021).

Como informa o primeiro parágrafo, do artigo 1º, da Por- A escrita, aqui, em seu estatuto de “pharmacon,
taria Nº 343, havia um prazo passível de prorrogação (30 dias). não é nem o remédio, nem o veneno [...] Nem/
No entanto, diante do avanço da doença nas cidades brasileiras, nem, sendo ao mesmo tempo ou bem isso,
do acelerado número de pessoas infectadas e do aumento diário ou bem aquilo”, de acordo com a dosagem
e o corpo que a receber, no momento ou
de óbitos, todos esses fatores tornavam o retorno à normalidade
estado que a receber. (DERRIDA, 1995, p.
cada vez mais distante. Passamos a ler sucessivas publicações 10-11 apud ANDRADE, 2013, p. 30; aspas e
de reedições de portarias dos órgãos responsáveis pela saúde em itálico no original)
níveis federal, estadual e municipal que visavam conter os danos
da pandemia por meio de limitação de atividades que causavam A ideia não se restringia a apenas escrever como forma
aglomeração de pessoas. de superação das perdas e dores, pois o ponto alto da atividade
era dividir coletivamente a experiência, considerando o olhar
Destarte, somando todas as dificuldades encontra-
individual sobre a pandemia, através de leituras compartilhadas
das pelos estudantes, acompanhamos, através das mídias e
com os colegas. Tínhamos interesse em saber o efeito da pro-
de divulgações científicas, as notícias sobre o crescimento
dução do texto e da partilha, pois essa relação de confronto da
exponencial do adoecimento mental da população mundial.
realidade com a representação do real apresentava o potencial de
Para Faro et al (2020), “Quanto à saúde mental, é importante
afetar aquele que escreveu e a pessoa que leu através da escuta.
dizer que as sequelas de uma pandemia são maiores do que
Nas discussões dos textos produzidos, percebíamos os impactos
o número de mortes.” No nosso entorno acadêmico, muitos

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NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS

diários da pandemia nas nossas vidas e nos sentíamos, de algum Desse modo, olhávamos para aquelas formas textuais como
modo, fortalecidos pela troca de visões. um encontro com nós mesmos num movimento simbólico de visão
retrospectiva para avaliar a vida, tendo como marco temporal o
Como produtos dessas interações online, ao longo das aulas
“momento em que o mundo parou” (o trânsito, o trabalho, a escola,
telepresenciais foram gerados diferentes gêneros textuais em
o lazer, a rotina de afazeres, as festas etc.) e prospectando de forma
prosa (crônicas, contos, relatos e episódios). Apesar de a temática
positiva o reinício, talvez a segunda chance de sermos melhores, tal
que orbita tais produções está situada na narração da experiência
como a reflexão que nos aponta o narrador de “Catarse”:
pessoal na pandemia e tal aspecto pressupor uma vinculação
imediata aos temas mórbidos, fato que claramente aconteceu,
no entanto, algumas narrações apresentaram pontos de fuga e Quando o mundo lamentou, percebi que eu
também lamentava. Quando o mundo sentiu
de evasão. Esses textos traziam estórias com algo de comicidade
saudades de sair perambulando pelas ruas,
e de indignação (“Se não tirar foto a vacina não tem efeito” e do trânsito barulhento das cidades grandes,
“As queixas de uma máscara descartada”), reflexões filosóficas ou de sair para fora e se sentar na calçada
(“Dias incomuns”, “Cocoricó”, “Quinze dias”), o reencontro de para conversar com a vizinha, se reunir em
família ou entre amigos, reclamar que não
vizinhos desconhecidos (“A jiboia”) e outros.
tinha tempo para mais nada por causa do
Mesmo tendo como matéria-prima as inquietações da reali- trabalho ou dos estudos, percebi que eu
também lamentava.
dade, ou seja, a vida humana, essas narrações evocam elementos
(...)
imaginários frutos de inventividade através da manipulação Quem diria que eu, logo eu, sentiria algo que
intencional da linguagem para atingir efeitos de sentido diversos me mudaria para sempre.
nos textos. Como nos lembra Candido (2000, p. 53), “A arte, e
portanto, a literatura, é uma transposição do real para o ilusório A possibilidade de publicação de um livro, com textos dos
por uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de alunos participantes da disciplina Letramento literário, amadu-
ordem para as coisas, os seres, os sentimentos.” receu após debate sobre as produções escritas dos estudantes
de Letras, em reunião de colegiado, tendo sido impulsionada
O exercício dialético de livre expressão do Ser proporcio-
também com divulgação de edital de livre concorrência para
nado pela escrita literária pressupõe que “Esta liberdade, mesmo
e-book pela editora da UFNT. Vale destacar que houve, por parte
dentro da orientação documentária, é o quinhão da fantasia, que
dos organizadores, uma seleção cuidadosa do material, mediante
às vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para
leitura crítica e trabalho conjunto de revisão dos textos.
torná-la mais expressiva (...)” (CANDIDO, 2000, p. 13).
Assim, organizamos esta obra em três partes: a primeira,
intitulada “Registros da pandemia em formas livres de narra-

20 21
NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS

ção”, apresenta as crônicas, os contos, os relatos e os episódios SUMÁRIO


nucleados pelo tema pandemia; a segunda, denominada “Outras
prosas”, contém outras formas narrativas selecionadas a partir
de um conjunto de textos que os acadêmicos já tinham ou que
produziram concomitantemente à nossa atividade; e, por fim,
a terceira, que recebeu o título “Algumas palavras sobre as
experiências de escrita”, pois trata do depoimento de alguns Registros da pandemia em formas livres de narração 27
estudantes acerca da realização da experiência de escrever essas
narrações pandêmicas.
Outras prosas 69
Os organizadores
Algumas palavras sobre as experiências de escrita 91
REFERÊNCIAS
Sobre os autores 103
ANDRADE, V. B. Lacan e Llansol: figuras na direção da cura. In: MOURÃO, F.;
BRANCO, L. C. (Org). A cura da literatura: breve encontro intenso da
psicanálise com o texto de Maria Gabriela Llansol. Belo Horizonte: FALE/ Sobre os organizadores 107
UFMG, 2013.
BRASIL. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Índice remissivo 109
(CAPES). Portaria GAB nº. 259, de 17 de dezembro de 2019.
CAMARGO, F.; DAROS, T. A sala de aula digital: estratégias pedagógicas
para fomentar o aprendizado ativo, on-line e híbrido. Porto Alegre: Editora
Penso, 2021.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8.
ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
FARO, A. et al. COVID-19 e saúde mental: a emergência do cuidado. Estudos
de Psicologia (Campinas), n. 37, 2020. Disponível em: <https://www.scielo.
br/j/estpsi/a/dkxZ6QwHRPhZLsR3z8m7hvF/?format=pdf&lang=pt> Acesso
em: 18 set 2022.
SANTOS, J. S.; FONSECA, V. N. S. Impactos da pandemia na prática docente: a
urgência de aula remota atualizando gênero digital. In: Marize Barros Rocha
Aranha; João da Silva Araújo Junior; Ana Lúcia Rocha Silva. (Org.).
Tecnologia e ensino de línguas: metodologias e práticas. São Luiz:
EDUFMA, 2021, v. 1, p. 55-75.

22 23
(Colagem com efeito visual de manchetes de reportagens
de jornais sobre a Covid-19 no Brasil)
registros da pandemia
em formas livres de narração
QUINZE DIAS

Priscila da Costa Ferreira

Era uma terça, ou quinta, ou sábado. Não sei! Era um


desses dias monótonos que se assemelhavam com o final de
tarde de um domingo. É, era isso. Eu parecia estar preso no
tédio de um domingo solitário, vazio e estático, daqueles que
você só consegue procrastinar e se sentir inútil. Na esperança
do tempo passar, dormi. Acordei mais uma vez sem conseguir
distinguir o dia, preso naquele eterno domingo enfadonho. Era
o início dos 15 dias...

Eu parecia aquelas crianças que os pais impedem de


brincar na rua com os coleguinhas e ficam a observar toda a
movimentação pela janela. Mas dessa vez não havia movimen-
tação na rua, nem pessoas, nem carros, apenas vultos frutos do
déjà vu apresentado pela minha memória. Embora eu já tivesse
crescido, e a infância se tornado a minha maior saudade, naquele
momento, essa saudade imensa se dividia. Sentia saudade da
vida automática que eu tanto reclamava, da faculdade, do meu
emprego, do busão lotado e do barulho da vida na capital. Sau-
dade do calor humano.

Afastado de tudo, me tornei amigo das telas frias. Era


através delas que eu trabalhava, converti minhas atividades
cotidianas e recebi a orientação para o meu TCC. Era por telas
frias que eu via o rosto dos meus queridos e, mesmo sem o calor
humano, nos conectávamos. As telas frias deixaram de ser um
entretenimento e se tornaram uma necessidade.

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

No meu quarto há 110 azulejos. Sim, eu contei!! Tentando A JIBOIA


fugir do tédio e da solidão, testei novas receitas, tentei pintar,
praticar yoga e até uma horta no fundo do quintal eu plantei.
Inclusive, ainda estou colhendo bons frutos não só da minha Dara Souza
horta, como também do autoconhecimento que adquiri durante
esse processo solitário. A corrida deixou de ser contra o tempo Era por volta das dezesseis horas quando eu, sentada na
e começou a ser contra a solidão. cadeira de balanço da varanda, vi ele passar: “boa noite vizinha”,
Hoje, quase um ano após o início da quarentena, que me cumprimentou; “boa tarde meu rapaz, voltando cedo do
cheguei a acreditar duraria apenas 15 dias, pouca coisa mudou. serviço, não?”; “sim, sim. Acontece que deu problema em uma
Algumas flexibilizações, mas continuo em casa, dentro de um das entregas e o pessoal da gerência liberou a gente mais cedo.”;
eterno domingo, nos 15 dias que parecem ser infinitos. Agora, “ah…”. Na minha cabeça foi equivalente a horas o tempo que
por exemplo, além de todas as demais saudades, também sinto passou até que qualquer outra frase fosse dita. Nossa conversa
das pessoas que não posso mais ver pelas minhas companheiras fiada sempre foi monótona em bons dias e boas tardes e apenas
telas frias. Sim, eu perdi alguns queridos para a pandemia. por educação, mudando no nosso pico de interação que só ocorreu,
veja só: no momento do isolamento pela pandemia.

Numa manhã estressante, após duas reuniões virtuais


intermináveis, resolvi cuidar do meu jardim bem pobre de
variedade, com plantas melindrosas que herdei de minha mãe.
Comecei a regar algumas e, de relance, vi acima do muro
surgir meu vizinho. De início tomei um susto: “Meu Deus!”.
“Nossa moça, mil perdões. Apenas notei que um dos tijolos do
nosso muro compartilhado estava meio quebrado, então resolvi
consertar, mas posso fazer isso num outro horário.”. “Não não,
imagina. Apenas fui pega desprevenida. A propósito, não me
recordo do seu nome.”. “Ah não seja por isso. Sou Roberto,
Beto pra facilitar.”. “Prazer Beto, sou Lorna.”. “Lorna? Um
nome bem curioso.”. “Sim, não imagina o transtorno que foi
o período da escola.”. “Oh, me desculpe por recuperar más
recordações.”. “Não se preocupe, águas passadas.”. “De qual-

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

quer forma eu vou deixar esse serviço no muro para depois e Conversamos sobre plantas inicialmente, porém acabei desco-
não lhe perturbar mais por agora.”. “De forma alguma, vou brindo que nossos interesses culturais eram semelhantes. Senti
apenas regar as plantas e não lhe atrapalharei mais com minha como se estivesse numa conversa de bar com um velho amigo
conversa.”. “Falando em plantas, se me permite o conselho, essa e nem sabia que precisava tanto disso. Durante duas semanas
que a senhora está prestes a afogar não precisa de tanta água inteiras nos comunicamos diariamente, cada um trazia um tópico
assim.”. “Oh, você entende de plantas? Confesso que jardina- novo pra discussão e eu sentia que ali, no nosso muro comparti-
gem nunca fez parte da minha área de interesses, apenas tomo lhado, era meu local seguro de esquecimento do mundo. Um dia
conta agora que minha mãe…”. Um silêncio cortante penetrou ele não aceitou meu convite para entrar, me avisou que testou
minha alma ao me lembrar dela. Passei vários minutos sem positivo. Inicialmente entrei em pânico e um sentimento até
lembrar de como o mundo mudou, não, o meu mundo. “Sinto egoísta pairou sobre minha mente: “Eu vou perder ele também”.
muito.”. Ele me tirou do meu limbo momentâneo. “Obrigada, Mas me disse que estava com leves sintomas e que iria se isolar
mas sobre as plantas novamente, você entende de substratos?”. para também me proteger. Foram 3 semanas de isolamento sem
“Ah sim, não comentei ainda, mas sou jardineiro, trabalho numa nenhum contato e em meus pensamentos a memória de nossas
floricultura.”. “Pois você caiu do céu, sem querer abusar muito manhãs foi se encolhendo, Beto voltou a ser apenas o vizinho
de sua boa vontade, mas você poderia me instruir um pouco com quem eu não conversava e eu voltei a ser a moradora nova
sobre como cuidar dessa jiboia que insiste em querer morrer?” e sozinha que não sabia cuidar das plantas.
Ele deu uma longa gargalhada. “Ajudo sim, mas primeiro deixe
Penso que sua presença foi uma necessidade passageira,
eu descer essa escada.”. “O senhor não gostaria de vir aqui?
lidar com meu luto estava desgastante demais e ter ele ali por
Passei um café agora há pouco e já que aceitou me ajudar com
perto aliviava um pouco. Quando ele melhorou já não sentia
as plantas…”. ‘’Sem problemas. estou com saudades do ofício,
mais alegria em conversar comigo, sofria de muitas sequelas da
já estou em casa tem 2 meses.”. “Nossa, eu achei que estava
doença e por várias vezes sua mente divagava em confusão e
enlouquecendo há um mês de home office, imagino que deva
demorava a retornar. Parou de vir. Minha jiboia murchou e eu
estar bem mais estressante e preocupante para você.”. “Estamos
me fechei completamente. Hoje, quando me sentei lá fora na
todos no mesmo barco. vou dar a volta e tocar a campainha,
varanda, estava torcendo para vê-lo, agora que já fazia mais de
está bem?”. “Claro. vou lá pra frente também.”. Por sorte, estava
um ano do nosso primeiro encontro no fundo do quintal. “Eu
no meu horário de intervalo, então consegui passar quase duas
tomei a vacina”, ele me disse. “Que bom ouvir isso, eu tomei
horas conversando com meu vizinho.
a minha semana passada”. “Qualquer dia desses a gente podia
Foi uma manhã proveitosa, pois, embora ambos estivés- conversar de novo, não é?”. “Sim.”, disse sem empolgação. Ele
semos de máscara e a mais de 2 metros de distância, eu senti ia entrando em casa quando me falou uma última vez: “Quase
novamente aquela vivacidade que só uma conversa pode oferecer. esqueci, eu lhe trouxe um substrato pra sua jiboia.”. “Ela morreu.”

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

DESCULPA, AMOR! Em tal contexto, não usávamos máscaras ou nenhum


outro tipo de proteção, afinal a nossa segurança era o abraço, no
qual nos enrolamos um ao outro e deixamos o frio de lado para
Guilherme Silva Vanderley observar-nos apaixonados. Além do frio, que apaziguou, havia
pessoas naquela praça, poucas, é verdade, olhavam-nos assus-
Dentro dos olhos dela enxergava-me desesperado, ago- tados. Entretanto, nem ao menos ligávamos para os olhares dos
nizando em sofrimento e dor, sentimentos em confusão, altas curiosos, aquele era o nosso momento; todavia, depois de horas
proporções de angústia que me tomavam o corpo e a mente, — de conversa, de carinho, de abraços e beijos, despedimo-nos; ela
uma pandemia dentro de mim. Era dessa forma que me sentia subiu a rua olhando para trás, não querendo abrir mão daquele
naquele dia, no qual a encontrei no banco daquela praça, a duas instante; eu, por outro lado, caminhei depressa, agoniado, pois
ruas do centro da cidade, de certa maneira, afastados do grande algo me sufocava.
fluxo de pessoas que caminhavam para todos os lados procurando Ao chegar em casa naquele dia, fui direito ao quarto, não
refúgios seguros que pudessem protegê-las. Contudo, escondi liguei para os comentários turbulentos que me falavam; pois o
bem esses sentimentos dentro de mim, e aquela proteção que cheiro dela que ficara em mim era o suficiente para inutilizar os
todos buscavam, encontrei no colo aconchegante do amor que meus demais sentidos; eu não ouvia, não falava e dali a dias também
tenho por ela, no abraço quente que me presenteou, no cheiro não pude respirar, estava contaminado. De forma semelhante, ela
doce que nasceu em nosso beijo. também foi vítima da nossa paixão, esteve de cama por alguns
Naquele dia, os jornais não paravam, a televisão não dias, sentiu dores por todo o corpo, ligou-me desesperada mais
apresentava nada além daquilo, os grandes líderes falavam a de uma vez, porém, a sua suave voz falhara e já não tinha, de
todo instante; porém, eu só pensava nela e nas palavras que outrora, o mesmo encanto. Não demorou muito para que ela fosse,
ela havia dito naquela ligação que durou horas pela madru- às pressas, para o hospital; não pude vê-la, tampouco tocá-la, não
gada do dia anterior. Nessa conversa, ela disse amar tudo em pude sentir o seu cheiro e nem ao menos beijá-la uma última vez.
mim, disse querer-me até o fim, disse ter-me em mente a todo E somente hoje, um ano após perdê-la, posso estar aqui, ao seu
instante e depois disso convidou-me a vê-la naquela praça, lado, pedindo-lhe desculpas por amá-la demais.
embora o noticiário dissesse que não saíssemos, — fiquem
em casa, era o recado a todo momento. Não, não posso deixar
de vê-la, pensei; minha paixão já me controlava, e, quando a
vi se aproximando, olhei fundo nos seus olhos e senti que o
mundo inteiro desaparecia.

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A DESPEDIDA COCORICÓ

Suzana Pereira Dos Santos Hellen e suas galinhas

Parecia um dia como qualquer outro. O sol estava luzente, A pandemia, que a essa altura dos acontecimentos parece
como se tivéssemos a sensação de que algo iria acontecer hoje, ainda desenfreada, com certa ironia, me ensinou a desacelerar,
caminhei para a casa da minha tia. Sabe aqueles dias em que por isso, enquanto penso sobre como desenrolar esta crônica,
você tem a certeza de que vai acontecer, mas não quer acreditar, trago à memória meus primeiros dias de março de 2020, na
assim, eram as despedidas, elas sempre vinham como surpresas fazenda onde meus pais vivem.
e iam sem deixar rastros.
Bem longe da agitação urbana e de tudo relacionado a ela,
Ainda mais nos dias que vivemos pessoas vêm e vão como coisas simples para mim ganharam um novo valor, e na tentativa
bagagens de avião e números falados. Respirei fundo e entrei na falha do isolamento social me aproximei dos bichos...
casa, o silêncio pairava no ambiente. A casa era pequena, mas
Foi nesse contexto rústico e livre que pude observar o
bem confortável, no quarto onde ela estava deitada havia uma
comportamento das minhas galinhas, e como elas se relacionam
janela aberta e a luz do sol trazia uma sensação de pureza no
entre si, diga-se de passagem, foi a experiência mais “penosa”
lugar. E lá estava ela silenciosa com seus pensamentos e senti-
da minha vida. Elas são verdadeiras pérolas e agem com uma
mentos que ninguém sabia, os médicos já não davam esperanças
singularidade interessante, por isso, vou provar o que digo e,
de melhoras, eram seus últimos dias.
deixando de conversa, listarei alguns pontos que anotei ao longo
Sentei-me a seu lado e disse: – nós estamos bem, tia, o pai, a dos dias, estas análises estruturam o meu quintal para uma gali-
mãe e o Calebe. Este, meu sobrinho de quem ela tanto gosta. Observei nhada tranquila e saudável:
por mais alguns minutos, respirou fundo como se entendesse tudo
o que eu disse, peguei na sua mão e dei um beijo e saí. Voltei para I - Despertador: no quintal não se admitem preguiçosos, o dia
o dia que já não era como outro dia. As despedidas eram assim começa lá para as 5:00 da manhã, o cantar do galo rompe
frias e silenciosas e quando se podia despedir, ficaria um vazio, o silêncio da madrugada e as galinhas descem do poleiro
em meio a tantas coisas no mundo, rebuscado de uma tristeza que com fome na espreita do sonhado milho.
ninguém queria passar, mas sempre vinha como surpresas que não II - Orquestra: talvez esta seja a mais importante e leva o
se podia recusar. E assim foi a minha despedida. título do texto, cacarejar é uma questão de honra, e este
som possui inúmeros significados, e um deles, por exem-

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plo, indica que as fêmeas que botaram pela primeira vez Por fim, ainda sinto muito por tudo que a pandemia me
podem anunciar para todos que já são galinhas com todas impossibilitou, mas agora olhando sob outro prisma consigo
as penas, digo, com toda certeza. perceber os “cocoricós” fazendo mais sentido.
III – Poligamia e irmandade: é necessário partilhar o milho e
o marido, ou seja, não adianta fazer queixas nem cobrar
fidelidade, o esposo é para todas, mas quem poderá dizer
que isto é ruim? Pelo menos ele não ficará o tempo inteiro
ao pé da galinha e, caso o galo queira, poderá ciscar no
quintal do vizinho, às escondidas, é claro.
IV - Liberdade e dieta: notei que elas preferem subir nas mesas,
entrar em casa, e fazer ninhos em lugares inusitados faz
parte do desenvolvimento delas, como também comer
insetos, restos de alimentos, capins e qualquer coisa que for
comestível ou não, assim fazem uma nutrição equilibrada.
V – Proteção e defesa: percebi que algumas mães são tão
bravas que podem bicar você caso apenas tente chegar
pertos de seus filhotes, elas voarão na sua cabeça com
tanta veemência que nunca se esquecerá. Tudo isso para
mostrar que o pintinho pode até ser amarelinho, mas não
é para o seu bico, nem para petisco de predadores.
VI – Contraste e evolução: também aceitamos as diferenças,
no quintal possuímos galinhas de todas as cores, pesos e
tamanhos, aqui não há discriminação pois todas vieram do
mesmo antecessor, o Tiranossauro Rex, Darwin diria que
elas são uma versão mais descomplicada do tal predador,
suspiramos aliviados.
VII – Cálculo e euforia: as hortas são um prato cheio para elas,
pois ao menor sinal de deslize a festa está dada, irão ciscar
e desenterrar, comendo até os últimos grãos plantados, isso
significa que elas realmente sabem bem como soltar a franga.

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

COVID-19 – Ok! Mas pegue esse álcool e essa máscara. Perdi minha
família, por não acreditar no vírus, mas tive a sorte de ainda
estar viva e não quero morrer agora.
Letícia Sales dos Santos
– Tá bom! Sinto muito.

Um homem acorda em um hospital, sozinho. O hospital Já estava tarde, os dois decidiram dormir, como havia
“mais grande” da cidade estava abandonado, havia corpos empi- apenas um quarto e uma cama eles dormiram juntos. Naquela
lhados no fundo dele. Ele fica desesperado, pois não vê sua família, noite estava fazendo muito frio, então para se aquecerem eles
nem seus filhos e amigos, então ele sai andando para sua casa. se abraçaram, ele não resistiu à beleza da mulher e o seu corpo
colado nela e a beijou. Ele acordou com o barulho das tosses
Quando ele chega em sua casa, não tem ninguém, as fotos e secas, perguntou para ela:
roupas não estão mais lá, ele fica se perguntando o que aconteceu
naquela cidade que todas as casas estão abandonadas. Desespe- – Você está bem?
rado, sem saber o que tá acontecendo, ele pega seu carro e vai – Não, acho que você me infectou.
para uma cidade chamada Vânia, próxima a sua cidade natal.
Chegando lá, ele encontra com uma mulher no posto e pergunta: – Não é possível, estou me sentindo bem.

– O que está acontecendo? – Eu não te contei, mas algumas pessoas são assintomáticas.

– Você não sabe? Você tá infectado? – Não pode ser! Temos que encontrar um jeito para você
ficar bem. Não tem nenhuma vacina?
– Infectado?
– Ainda não, sinto muito.
– Sim. Alguns meses atrás, houve o começo de uma pan-
demia, grande parte da população foi infectada por um vírus A partir daquele dia, ele ficou isolado, não lembrava que
chamado COVID-19, desde então, ninguém mais pode sair ou havia transmitido para sua mulher e filhos, por causa do des-
tocar alguém sem usar álcool e máscara. respeito às leis, de ficar isolado e usar álcool e máscara. Infeliz-
mente, agora não é só seu corpo que está isolado, mas todos os
– Não estou infectado. Estava no hospital, mas lá está seus sentimentos de culpa, por não ter seguido as ordens e ter
abandonado e estou me sentindo bem. transmitido o vírus para as pessoas que ele amava.
– Tenho que ir.

– Espera! Posso ir com você? Estou procurando minha família.

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

A INCERTEZA DO AMANHÃ Talvez amanhã, quando eu acordar, será apenas um sonho


de uma vida que passou e que não se deu conta do valor das
pequenas coisas e que já era tarde demais para ser percebido,
Thays Viana Silva Braga na incerteza do amanhã viva o hoje, porque talvez amanhã eu
não acorde.

Amanhã, quando eu acordar, talvez será tarde para comtem-


plar o sol nascer, o canto dos passarinhos e o ar livre, a simples
dádiva de respirar, os momentos com alguém que amamos ou em
lugares que gostamos de estar; o ato de comer e beber e desfrutar
de tudo que nos é oferecido, a simples caminhada ao ar livre,
o abraço, beijos que despertam um sentimento de aconchego
de amor, carinho, o estar perto e em contato, que para muitos
sempre é algo comum e relativo, casa cheia, muitas companhias,
almoço em família, ir a praças, aos parques, barzinhos, boates,
festas, visitar um amigo apenas, para jogar conversa fora, dar
boas risadas...

Talvez amanhã, quando eu acordar, eu consiga medir a


dimensão do quanto perdi ao não dar valor às pequenas coisas,
ao pequeno ao gesto de alguém, ao que era pouco, há tempos e
hoje se torna muito e tão precioso.

Talvez amanhã, quando eu acordar eu consiga entender


a dor do outro, respeitar a solidão, a falta que é sentida a todo
tempo, daqueles que se foram sem nem dar o direito de despe-
dida, quero admirar as árvores, os animais, o barulho das águas,
as crianças brincando, o vendedor de balinhas e pipocas fazer
o seu trabalho.

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

CATARSE Eu jamais tinha parado para pensar nessas coisas, até


o dia em que me vi como prisioneiro do lugar que era minha
própria morada.
Isabel Ambrozio
Como assim? Eu indagava em todas as madrugadas que
não conseguia dormir direito, tentando entender o real motivo do
Era um dia comum como qualquer outro, e cada um cui- que tirava meu sono. Não era isso o que eu queria, um descanso
dava de sua própria vida. Os adultos voltavam do trabalho, as de todo o mundo? Não era verdade que eu desejava ficar o mais
crianças saíam da escola e frenéticas corriam pelas ruas para isolado possível?
chegar logo em casa. As avós assistiam suas novelas, e os avôs
jogavam cartas de baralho no fundo do quintal. As vizinhas se Se era tudo isso que eu queria, então por que não fiquei
juntavam na porta de casa para papear, e alguns vagavam por aí satisfeito quando me disseram que eu não podia mais sair de
sem saber o que aconteceria no dia seguinte. E assim era a vida, casa por um tempo indeterminado? Por que não sorri quando
até a notícia fatídica de que um vírus invadira casas, trabalhos, me disseram que eu tinha que manter uma distância considerável
escolas, ruas, e supermercados... e dominara tudo. das pessoas? Por que não senti alívio ao saber que uma máscara
cobriria parte do meu rosto e assim eu poderia esconder melhor
Dentro de tudo isso, estava eu. ainda a falta de um sorriso em minha boca?
E eu que torcia para que um dia conseguisse juntar dinheiro Foi em uma dessas madrugadas traiçoeiras que não me
suficiente para não ir para o trabalho e não precisar mais sair deixava ter o descanso que merecia, que realmente me dei conta
do conforto de minha casa. Eu que nunca havia parado para dos motivos... Eu não fiquei satisfeito, porque me lembrei das
descansar, ou que nunca pensava se o que comeria me faria vidas frágeis que sucumbiram ao coronavírus. Eu não sorri,
bem ou mal, ou sequer pensava em dar uma caminhada por aí porque foram incontáveis as vezes que vi no jornal a notícia de
pelo bem de minha saúde. Eu que nunca agradecia aos céus por que um filho perdeu a mãe, de que um pai perdeu o filho, e de
ainda estar de pé, por ter alimento, um teto sob minha cabeça, que uma única pessoa perdeu a família toda. Eu não senti alívio,
uma vida pacata, mas que valia a pena viver. Eu que nunca porque sabia que precisávamos de uma vacina para remediar a
me importava em dar bom dia aos meus vizinhos, sorrir sem situação, para que pessoas não perdessem mais outras pessoas,
motivo para uma criança curiosa, ceder o assento do ônibus para que o mundo parasse de sofrer.
para um idoso. Eu, eu e eu... que odiava o meu trabalho, que
odiava estar cercado por tantas pessoas tão robóticas quanto Eu não me senti bem no começo, e mesmo agora que já
eu, e que mesmo assim não fazia nada para mudar minha nos acostumamos com esse novo normal, ainda não consigo
própria situação. sorrir como outrora.

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

Quando o mundo lamentou, percebi que eu também lamen- DIAS INCOMUNS


tava. Quando o mundo sentiu saudades de sair perambulando
pelas ruas, do trânsito barulhento das cidades grandes, ou de
sair para fora de casa e de me sentar na calçada para conversar Idenilde Pacheco
com a vizinha, se reunir em família ou entre amigos, reclamar
que não tinha tempo para mais nada por causa do trabalho ou Havia acabado de chegar de uma viagem, o dia anterior tinha
dos estudos, percebi que eu também lamentava. sido de diversão com os amigos, desfrutando de momentos incríveis
Então, me senti melhor quando percebi que não era tão em meio à natureza. Extasiado com a beleza daquelas cachoeiras.
egoísta como imaginava. E se eu, a pessoa mais triste e insatis- Agora, de volta ao mundo real, à minha correria cotidiana,
feita, pude perceber que não estava bem antes ou agora, acredito os noticiários bombardeavam-me e traziam incertezas ao cenário
que ainda haja salvação para outros também. mundial. – Não vou mentir: não dei muita atenção a ponto de
Por isso, agora, quando acordo, faço uma prece por mim levar aquilo tão a sério.
e pelas pessoas que ainda esperam por dias melhores. Para os Com o passar dos dias fui percebendo que havia algo dife-
que acreditam que um dia poderemos sair de casa sem ter medo rente. De repente, estava eu confinado em casa e, confesso, gostei
de acabar infectados pelo vírus e levar isso para outras pessoas dos primeiros dias. Só comendo e dormindo. Ah! E suportando
também. Para os que esperam pelo dia em que não temeremos as chatices da minha esposa, atacada pela TPM.
mais a solidão que essa doença nos causou.
Não demorou muito, comecei a preocupar-me com as
Quem diria que eu, logo eu, sentiria algo que me mudaria finanças, pois aquela vida de come-e-dorme não pagaria o meu
para sempre. aluguel. – Decidi mudar de casa, fui morar em um setor mais
pacato onde o aluguel seria mais barato. Fiquei dias sem traba-
lhar... Obedecendo ao lockdown coloquei minha rede na varanda
e passava as tardes deitado, comendo ingá e zapiando. Entrando
em live e saindo de live. Desde então, o mundo era movido por
elas. De live em live eu via meus dados móveis acabarem e eu
ficar incomunicável como um prisioneiro em uma ilha deserta.

Tive a ideia de ler livros, adestrar minha cachorrinha,


enfim... atividades que abandonei com sucesso! Nada afugentava

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

aquela sensação estranha, de estar exilado em minha própria MOMENTOS…


cidade, tão grande e naquele momento deserta e silenciosa.

Naqueles dias incomuns, refleti sobre a brevidade da vida,


Débora Saraiva Rocha
sobre todas as regras que tínhamos que seguir, que de certa
forma tiravam e tiram a liberdade. Digo isso referindo-me à
minha esposa, que deixou de abraçar-me como antes quando eu Era uma manhã ensolarada com um céu azul divino.
chegava do trabalho. Estava ali naquele lugar, longe de tudo e de todos devido a um
momento épico que estava ocorrendo, uma grande pandemia
Hoje, quando chego em casa o abraço que recebo é: – Vá mundial. A tranquilidade e a paz que exercia aquele local me
tomar seu banho! Isso deixa-me irritado, mas entendo o cuidado assustavam de fato, era somente o som das árvores e dos pás-
e a preocupação que ela tem em não ficarmos doentes. saros, coisas com as quais não estava acostumada. Totalmente
isolada do resto do mundo, sem contato com as redes sociais,
sem ‘internet’, sem TV, enfim, era um saco. Como se já não
bastasse todo esse tédio, a minha avó materna (dona Marina)
me determinou a função de molhar as mil e quinhentas plantas
que ali rodeavam o nosso sítio. Que chatice! Aquilo era coisa
para gente velha, eu não gostava, na verdade, eu odiava, mas
para não ser a neta desobediente fazia.

Todo dia, pela manhã e à tardinha esse era meu dever.


Desempenhava isso de muito mal gosto, às vezes tinha que
mudar planta de jarro, tinha que remover as folhas mortas além
de jogar adubo direto, era literalmente um saco, e minha avó sabia
que eu não gostava, era nítido a minha falta de interesse. Não
tinha nada de “importante” para fazer ali, era somente molhar
planta, banhar no riacho e dormir, não achava a mínima graça
em exercer aquilo. Foi por isso que questionei a minha avó do
porquê ela insistia naquilo. Ela então chegou em mim, de forma
calma e paciente, pegou em minha mão e falou a seguinte frase:
“Você precisa aproveitar mais as coisas simples e boas da vida”.

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

Lentamente soltou minha mão e foi em direção a suas plantas, tar cada segundo, cada instante. Ah, minha avó! Este dia só me
fiquei sem entender nada, mas deixei para lá. traz arrependimentos e lembranças cruéis. Dói-me saber que não
irei mais ter a oportunidade de me despedir, de abraçá-la, e de
Na manhã seguinte, acordei com o pensamento inclinado
principalmente me desculpar por não aproveitar adequadamente
para aquela frase. Peguei um café preto acompanhado com uns
os momentos. Um vírus veio e tristemente fez um estrago em
bolinhos (feitos pelas mãos da fada Marina) e fui em direção ao
nossas vidas, agora meu coração chora despedaçado.
jardim, como era bem cedinho dava para ver o nascer do sol.
Encostei na parede de barro e fiquei observando a minha avó
cuidar das suas plantas, foi uma cena esplêndida, ela cantava
com uma energia que transmitia pelo ar, a conexão com as flores
eram surreais, até parecia que elas sorriam! Foi um momento
magico, fiquei encantada e sem palavras, e, ao mesmo tempo,
me questionava: como não tinha observado antes? Meu Deus! Na
parte da tarde as minhas encantações continuaram, dessa vez o
cenário foi o riacho, dona Marina banhava e “tibungava” como
uma criança, lavava aqueles cabelos branquinhos como flocos
de neve com uma alegria extrema. Quantas coisas deixei passar,
o orgulho tomou conta do meu coração de uma forma que não
conseguia enxergar a simplicidade das coisas.

Hoje, já não vejo mais o brilho do sol ou muito menos o


céu com aquele azul divino. Meus dias se tornaram cinzas sem
a sua presença. Me encontro aqui em uma rede, naquele mesmo
lugar longe de tudo, ao som somente da natureza e dos pássaros
que me rodeiam. Ainda não acredito que já se passou um ano
desde a última vez que estive aqui, em que tirei um mergulho no
riacho ou até mesmo molhei as plantas. Ah! Infelizmente não está
a mesma coisa, tem somente um pé de saudade no vaso do meu
coração, adubado de lembranças e regado com muita solidão.
Eu necessitava somente do poder de voltar, reviver tudo aquilo,
entretanto, de uma forma intensa e mais alegre possível, aprovei-

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

INÍCIO DA PANDEMIA Mais tarde fui ao mercado, saí pela rua e estava tudo deserto,
ao chegar lá, me deparei com todas as pessoas usando máscaras
e um rapaz na portaria com um litro de álcool jogando nas mãos
Andreia Pereira dos Santos de quem estava entrando no estabelecimento. Foi aí que tive a
certeza de que estávamos lidando com algo sério e gravíssimo.
Acordei pela manhã ansiosa e um pouco antes do horário, No dia seguinte, fui convidada para ir a um aniversario,
para dar tempo de me arrumar. Era meu primeiro dia na facul- fiquei meio pensativa, mas não recusei o convite. Fui, e me diverti
dade, e teria que estar no ponto de ônibus às 6:00 horas em ponto. bastante... (Depois vieram as consequências de minha teimosia).
Corri apressada, quando ouvi da minha casa a suada do ônibus Alguns dias depois, acordei doente, com dor de garganta e quei-
passando na rua de cima. mando em febre. Fui imediatamente ao hospital, e para minha
– Paraaa o ônibus, motorista! surpresa estava com COVID. Cheguei em casa triste, e passei
os piores dias de minha vida, isolada, sem contato com meus
Ele freou logo em seguida! Entrei imediatamente com o amigos e familiares. Eu tive a certeza de que nunca devemos
suor escorrendo no rosto, olhei para dentro do ônibus e todos desacreditar das coisas sérias, e que nossos atos podem trazer
estavam me olhando (Fiquei envergonhada). Cheguei na facul- consequências devastadoras para nossas vidas. Me recuperei,
dade, assisti todas as aulas. Mas, para a minha surpresa, e dos e fiquei com a lição de que podemos fazer nossa parte durante
demais alunos, logo fomos informados que não teríamos aulas esse período pandêmico. Fique em casa!
nos dias seguintes, e que a cidade iria entrar em quarentena. A
sala ficou um alvoroço, ninguém estava entendendo nada! Em
seguida a professora fala: Pessoal, acalmem-se! Teremos que ser
compreensíveis neste momento, e a melhor forma de nos prevenir
desse vírus é ficando em isolamento.

Eu estava sem acreditar, pois, só eu sabia o quanto estava


feliz por ter iniciado a vida acadêmica, e que dali para a frente
teria que me acostumar com aulas online (Coisa que sempre cri-
tiquei nas faculdades de ensino a distância). Cheguei em casa e
meus pais estavam assustados, olhei para a TV e todos os canais
só noticiavam sobre o maldito vírus.

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

PANDEMIA – Usar máscara?

– É apenas uma gripezinha, disse ele.


Isabella Cristina Morais O que antes era um rosto no mundo, era uma vida, virou
uma estatística. Juliana declara:
– Como estaremos daqui a dois anos? Rosana acha essa – Hora da morte: 10h20min, dia 05 de junho de 2020.
pergunta extremamente difícil. O mundo todo está sentindo o
mesmo que Rosana.

– E por que não há uma resposta imediata? Indiretamente,


há uma resposta, mas é difícil aceitar, associar com tudo que está
acontecendo, mudanças bruscas em frações de segundos, ainda
resta esperança, mas ao ligar o noticiário tudo muda.

Início de 2020, Rosana pulou as ondinhas com desejos de


um ano cheio de metas a serem cumpridas. O casamento marcado
para o mês de junho enchia seu coração de alegria, uma linda
cerimônia, família e amigos reunidos. Juliana também pulou
as ondinhas, uma médica solitária desejando um ano diferente,
amor, objetivos pessoais e profissionais para serem concretizados.
Ambas, estranhas unidas por um só proposito.

O casamento marcado teve que ser adiado, o mundo teve


complicações, um cumprimento que antes era feito com beijos
e abraços deixou de existir por segurança de uma saúde melhor.
Juliana, assustada com tantas negligências, com tantos pedidos
de ajuda, cada suspiro cansado era um pedido de socorro, o rosto
marcado por usar uma máscara em todas as horas, minutos, cada
segundo do dia. As duas se conheceram, mas não teve abraço,
apenas olhares buscando um fio de esperança. Rosana tinha um
noivo, tinha uma família, carregava uma vida em seu ventre.

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

QUANDO TUDO PAROU mostrar a face sem esconder sorriso, queremos assistir às aulas
sem telas nem vídeos. Queremos notícias simples, podem até ser
de CPI, só não queremos mais ouvir: precisa-se de vaga de UTI.
Fabiana Santos

E lá estava o mundo com suas preocupações rotineiras,


sem ter nenhuma noção da gravidade do que viria trazer tris-
teza à nação. Tudo começou em Wuhan, na China, no dia 31 de
dezembro do penúltimo ano. Desde então o que parecia mais
uma notícia de jornal, cerceou a liberdade mundial.

E na velocidade do vento houve uma declaração surreal, a


notícia que lemos e não demos moral, era a primeira de muitas
que nos trazia informações emergenciais de saúde pública de
caráter internacional. O que estava por vim ninguém acreditaria;
o mundo se encontrava em uma situação de Pandemia.

E de Covid-19 ela foi intitulada, e chegou para evidenciar


a fragilidade da nossa sociedade, de seu sistema econômico e
social, sentida também na vulnerabilidade do nosso próprio corpo,
e na saúde mental. E dentre tantas outras doenças que assolava a
nossa gente, nos encontrávamos sob mais uma perspectiva ainda
mais urgente de sobrevivência.

E a partir daí tudo mudou: “o mundo parou” e para milhões


de pessoas infelizmente a vida acabou. E quantos amados se
foram sem direito de despedida, a situação era grave, proibiram
idas e vindas, e nem o abraço nos restou; para a humanidade era
um risco o que antes amenizava a dor.

E aqui estamos nós com uma esperança no coração,


desenvolveram a vacina e dela esperamos imunização, queremos

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

ROTINA DE CUIDADOS NA PANDEMIA Por isso, evitava, ao máximo, proximidade com pessoas
que não utilizavam máscaras. Em um momento do dia, recebi
uma mensagem no meu celular. Era uma notícia muito triste, um
Jhonatas Viana Alencar dos moradores mais antigos da minha cidade morreu, vítima da
COVID-19. Ele tinha setenta e cinco anos de idade. Quando as
Em um certo dia, liguei minha televisão e comecei a assistir demais pessoas souberam da morte ficaram de luto em solida-
o jornal, que dizia: o número de mortes causadas pela COVID- riedade à família.
19 aumenta a cada dia. Isso me deixou muito assustado, fiquei Depois de receber essa notícia, fiquei preocupado com a
pensando na melhor forma de me proteger dessa terrível doença. minha avó. Ela é uma senhora de oitenta anos, possui uma saúde
Durante a pandemia, saía de casa apenas para comprar muito frágil. Eu ligava para ela constantemente, para saber como
comida, remédios e pagar as contas, obedecendo às recomenda- estava, dizia para ela cumprir corretamente o isolamento social,
ções das autoridades de saúde. E todas as vezes que eu precisava evitando sair de casa sem necessidade. E quando fosse sair, não
comprar algo, utilizava máscara e fazia o distanciamento social. esquecesse de usar máscara.

Quando estava andando pelas ruas, da minha cidade, observava Fiquei muito feliz, ao receber a notícia de que minha avó tomou
muitas pessoas aglomeradas, conversando sem utilizarem máscaras. a primeira dose da vacina contra a COVID-19. Tempos depois, ela
Isso me surpreendeu muito, pois, mesmo em tempos de pandemia, me ligou muito contente, dizendo que tomou a segunda dose. Essa
ainda havia muitas pessoas que não obedeciam às restrições. informação me deixou muito feliz. Depois liguei para ela dizendo
que, quando a pandemia acabasse, iria visitá-la, após muito tempo.
Logo depois, cheguei no mercado, para comprar man-
timentos, e lá tinha poucas pessoas, esperando na fila, para Sei que esse dia ainda vai chegar, e até lá estou aguardando
comprar comida. Dessa vez fiquei mais satisfeito, todas elas ansiosamente este reencontro. Tempos depois, parei para pensar
usavam máscaras. sobre a situação em que ainda vivemos, lembrando dos momentos
em que podíamos visitar, festejar, viajar, levar uma vida normal.
Logo pela manhã, quando voltava da padaria, ouvi uma pessoa A COVID-19 trouxe desânimo, isolamento e muita tristeza. Por
dizer que, na noite anterior, viu muitas pessoas se aglomerando em isso, quando tudo voltar ao normal, aproveitarei, ao máximo, o
uma casa próxima do centro da cidade. Confesso que ao ouvir essa tempo que foi perdido nessa pandemia, valorizando cada vez
informação fiquei mais cuidadoso ainda, pois a possibilidade de mais a família, os amigos e, principalmente, a vida.
essas pessoas terem contraído a COVID-19 era bem alta.

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

SE NÃO TIRAR FOTO A VACINA NÃO TEM EFEITO – Ah! Agora não se tem nem o direito de ir e vir como
bem quiser!

Mas mesmo com todo confronto feito com os fiscais, ela


Martha Aurora
não entraria sem a máscara, por isso resolveu colocar a que o
fiscal lhe entregou. Ao sentar-se na fila de espera, começou a
Dona Ana de 72 anos questionou a si mesma enquanto se observar e percebeu que, à medida que a fila andava, todos que
arrumava para ir ao postinho. tomavam a vacina tiravam uma foto. Ela se levantou revoltada
– O que contém na vacina? – E em sua cabeça se passavam e falou:
várias coisas e começou a imaginar. Seu pensamento foi lá para – Agora já sei, as vacinas escondem um segredo muito
o começo da pandemia, lembrou-se do falatório do pessoal sobre obscuro e tenso. E eu vou falar para todos, está ligada a um chip
essa doença ser criada pelo país asiático como sendo para gerar que é conectado no momento que é fotografado! O pessoal que
uma guerra. Logo veio uma luz à sua cabeça e, lembrando-se estava no local caiu na gargalhada.
também do falatório de chip do diabo que viu em seu facebook,
onde lembravam da profecia de que no futuro colocariam chips
com a marca “da besta” nas pessoas, ligando a vacina ao um
suposto chip.

– Hora se mais! Pensou alto ao olhar para a pequena tele-


visão que havia no seu quartinho.

– Esse pessoal não sabe falar de outra coisa, e agora na


hora que ligo essa televisão vejo que essa vacina realmente vem
da China. Mais um motivo para acreditar que realmente é uma
maneira de querer monitorar todo mundo! – E exclamou: – O
nosso mito tá certo!

Assim continuou a se arrumar, vestiu uma roupa qual-


quer e nem sequer colocou máscara, seguiu até o postinho
mesmo com todo seu questionamento pessoal. Ao chegar à
unidade de saúde foi obrigada a colocar sua máscara e criou
outra grande revolta.

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O PACIENTE UMA NOVA REALIDADE

Semaias S. Morais Emilly Nayady Consolação de Souza

Quando você ler esta carta, pode ser que eu tenha partido Em março de 2020, foi quando começou a primeira onda
para uma viagem sem volta. Escrevo hoje, para relatar meu sofri- da COVID-19 na minha cidade, fazendo com que todos mudas-
mento e de milhares de pessoas. Neste ano de 2020, minha vida sem sua rotina e utilizassem o isolamento social como medida
nunca mais foi a mesma. Recebi a terrível notícia, pelos veículos de prevenção. Em consequência causou impactos na saúde,
de comunicação, que o planeta estava passando por um período educação e economia gerando incertezas, insegurança e medo
pandêmico devastador. Lojas, comércio, igreja, faculdade, esco- na população. Muitas pessoas perderam seu emprego e tiveram
las, tudo parou. Os governos municipais em face da inércia do que se reinventar para poder conseguir sustentar suas famílias.
governo federal tiveram que tomar as rédeas e criar mecanismos
A empresa onde trabalhei fechou, deixando todos os fun-
para conter a pandemia. Um estado de caos se instalou no nosso
cionários desempregados. Por essa razão, decidi que precisava
país. O presidente, que mais parece um menino, não consegue
reverter a situação, pois tenho uma filha e o meu esposo está
lidar com as pressões políticas e da sociedade.
trabalhando como motoboy, porque a empresa onde trabalhava
Onde estou, não desejo para ninguém, há 30 dias em um reduziu o número de funcionários ocasionando sua demissão, e
leito de hospital, não sei o que acontecerá amanhã. Todos os dias agora preciso ajudá-lo nas despesas mensais de casa. Tive a ideia
penso que não sobreviverei, minha saúde a cada dia se vai, me de fazer máscaras de pano para vender, segundo a recomendação
sinto como se fosse uma bateria de celular que aos poucos vai se do ministério da saúde, o uso da máscara evita a disseminação
esgotando, sem ter a oportunidade de ser recarregada. Sinto-me do vírus; comecei vendendo para familiares e amigos; como a
lesado por um governo negacionista que nada fez para conter a máscara passou a ser um acessório do dia a dia, as vendas tiveram
proliferação do vírus. Se estou aqui neste ambiente hospitalar, um aumento significativo e atualmente tenho uma loja online que
deitado em uma cama, foi consequência de tais atitudes. atende ao público da minha cidade, o meu esposo faz as entrega
em domicílio e estou conseguindo atender todas as demandas.

A tecnologia é a principal aliada nesse momento difícil,


que exige criatividade para driblar as circunstâncias que ocorrem
devido às consequências causadas pela COVID-19. Neste sentido,
favorece também a educação, a minha filha estuda o ensino médio

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

e continua tendo aula através do ensino remoto. Vejo que, mesmo PANDEMIA E AS MUDANÇAS EM NOSSAS VIDAS
diante das dificuldades, os profissionais da educação não medem
esforços para continuar exercendo seu trabalho e ajudando os
alunos da melhor maneira possível, percebo tudo isso como algo Maria Alessandra Alves dos Santos
positivo, mesmo o vírus mudando a rotina de todos, mas a vida
segue adiante e exige que acompanhemos todas as mudanças Pandemia, de fato são várias emoções ao mesmo tempo,
para conseguir nos adaptar a uma nova realidade. uma praga que tem manifestado tantos sentimentos, em especial
Ainda não tomei a vacina, mas aguardo ansiosa para quando o de morte. Porque foi de repente que esse mal mudou a vida de
chegar a minha vez. Espero que retomemos a rotina de trabalho, todos os seres humanos. Assim, foi o medo que invadiu a vida
estudos, que o fluxo nas unidades de saúde e hospitais diminuam de todos. Olha só: muitos filhos que perderam seus pais, foram
principalmente em decorrência da COVID-19, que melhore a muitos pais que penderam seus filhos, mães que sonharam em
situação do cenário econômico do Brasil para gerar empregos ter filhos, mas, tiveram seus sonhos interrompidos, houve o
e mudar a realidade de milhares de pessoas. Aguardando esse desemprego de muitos pais de família...
momento extraordinário. Os hospitais em estado de calamidade, os médicos têm que
lutar contra o tempo para salvar vidas e já não tem mais vagas.
Os grandes heróis estão se cansando, estamos em seção limitada.

No entanto, está tudo tão mudado que precisamos andar


com nossos rostos tampados com as máscaras, o álcool virou
algo sem o qual não conseguimos viver, é essencial para nossa
existência.

Mas no final, teve alguma coisa boa? Sim, as pessoas se


tornaram mais caridosas com próximo, assim, como houve a
união de vários países para criar uma vacina para salvar vidas.
Confesso que tive e tenho muitos medos, mas veja, dias melhores
estão por vir. O aprendizado de tudo é que devemos aproveitar
cada minuto, a cada sol do amanhecer e a cada lua que surgir no
final do dia. Porque o que é de certeza é que amanhã tudo pode
ser diferente em nossas vidas.

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REGISTROS DA PANDEMIA EM FORMAS LIVRES DE NARRAÇÃO

AS QUEIXAS DE UMA MÁSCARA DESCARTADA nessa doença imunda, não custa nada usarem por consideração
e respeito com quem procura se cuidar direitinho. É triste! A
falta de empatia e respeito ao próximo é muito grande nos dias
Ágata Gomes da Rocha de hoje. E o pior é ver que grande parte da população age dessa
forma, vendo pessoas morrerem, observando a calamidade dos
Dentro dessa lata de lixo imunda, aumenta ainda mais a hospitais e, ainda assim, continuam sem mudar os seus hábitos.
decepção que sinto com os seres humanos, ao ver tanto desres- E para mim, então, uma máscara profissional, muitas vezes usada
peito com a sociedade. A falta de amor ao próximo, de solida- por algumas horas, e descartada como algo sem utilidade e des-
riedade. Ou apenas por maldade, preguiça, ou estupidez...não necessária dentro dessa lata imunda de lixo, várias espalhadas
sei. Qual a dificuldade em colocar uma máscara no rosto para por muitas ruas das cidades?! É triste.
a própria proteção e a proteção de outras pessoas? Se proteger
dessa doença maldita e tão fatal, que está assombrando todo o
mundo, é questão de empatia aos familiares, amigos e aos demais.
Em compensação, ainda é possível observar bons exemplos de
pessoas que cumprem com o que é pedido, que se cuidam, e em
todos os lugares procuram sempre se cuidar, higienizando as
mãos e usando máscaras corretamente, nem que sejam as feitas
em casa, e não tão eficientes, simplesinhas, porém dão grande
exemplo de quem quer preservar a própria saúde e a de seu
próximo. Imaginem eu, uma máscara com filtro e tratamento
eletrostático, clipe nasal interno e ainda tem elásticos de látex
com regulador, que se ajusta perfeitamente ao rosto, uma máscara
profissional PFF2, vendo tanta gente besta desprotegida, visto
que, ao que estou sabendo por aqui, algumas pessoas não acredi-
tam muito nessa história de pandemia não, é como dizem: “é só
uma gripezinha, que não faz muito mal não”. Faça-me o favor!
Sei que posso incomodar, algumas pessoas têm dificuldades de
me usar, mas usar somente quando precisar, quando for sair na
rua, quando tiver que estar em ambiente com muitas pessoas,
não será tão ruim assim. E mesmo que as pessoas não acreditem

66 67
O QUE A PANDEMIA ME TIROU

Lorrany Rocha

Era um dia ensolarado, um daqueles dias que parecia o pri-


meiro de uma inocente criança pela primeira vez em uma escola.

Assim era o pensamento daquela jovem universitária... tudo


era diferente, pessoas diferentes, ambiente diferente, professores
diferentes... e, afinal, aterrissei em uma universidade.

Tudo era muito novo e interessante, a correria do dia a dia,


as atividades a serem feitas, a apresentação de cada espaço daquele
outras prosas
universo, que até então seria meu por quatro anos. Degustando
de tudo aquilo como se não houvesse o amanhã, voltei para casa
na esperança de retomar à rotina na segunda.

Mas isso não aconteceu, recebi apenas uma mensagem,


via WhatsApp, informando que as aulas estavam suspensas por
tempo indeterminado, pois o vírus que se alastrou pelo mundo
estava chegando cada vez mais perto do meu universo, da minha
universidade, que deveria durar quatro anos, porém, durou menos
de dois meses.

68
UMA CARTA AO SÍNDICO

Guilherme Silva Vanderley

Estava tão perto das nuvens; poderia tocar as estrelas; em


um pequeno salto chegaria ao espaço; por outro lado, a ventania
vinha forte em meu rosto, que ardia; meus olhos fechavam-se,
mas eu tinha medo de cair, embora esse fosse o plano, aquilo
que me fez subir. Em dado momento, lá do alto, lá onde eu tudo
conseguia ver: os prédios, as casas, os rios e as pessoas, estas,
percebi que pareciam pequenas, quase invisíveis, assim como
eu. Formigas andando para lá e para cá, como se não tivessem
uma direção delimitada ou algo que as guiasse. Achei engraçado,
imaginei até ser o único que pensava naquilo — deveria mesmo
cair em cima de uma dessas formigas inquietas que não são mais
importantes do que eu, — foi o que pensei.

Naquele instante, em um ímpeto de coragem tresloucada,


coloquei-me frente ao parapeito, inclinei-me para olhar e senti
um calafrio que vinha da espinha para o topo da cabeça, esta
que pensava se eu sentiria ou não uma certa dor que não me
seria nada interessante. Uma pena, não tive coragem, quando, lá
embaixo, avistei-me andando como uma delas, sem direção, sem
rumo, apático; eu era uma formiga no alto de um arranha-céu e
se caísse o ar me faria flutuar levemente até o pouso frustrante
no chão, onde eu continuaria andando como uma delas. Depois
de perceber tal deprimente fato, encostei-me de cócoras ao lado
daquela parede de concreto que me impedira de cair, não chorei,
apenas respirei fundo mais uma vez.

71
OUTRAS PROSAS

Levantei-me bruscamente, procurando em mim aquela AFOGADA NO MEU PRÓPRIO MAR


impensada coragem que outrora me surgira na ideia de cair outra
vez. Não a encontrei, naquela noite ou nas outras muitas antes
dela, afinal sempre tive livre acesso àquele prédio no centro Kaillany Fernanda Oliveira Brito
da cidade, em qualquer horário, de qualquer dia, o ano inteiro;
fui lá muitas vezes buscando a tal coragem de cair. Contudo, Hoje é um daqueles dias difíceis, que eu não quero sair, não
agora, enquanto penso sobre como seguir as linhas dessa crô- quero me levantar, não quero me mexer, e desejava não existir.
nica, percebo que em uma noite dessas, nas quais eu sentia um
vazio que me preenchia de pensamentos suicidas, eu poderia ter Hoje é um daqueles dias em que eu não sou uma boa
encontrado aquela coragem, que sempre não surgia, — teria eu companhia para ninguém, muito menos para mim mesma, prin-
caído lá do alto. cipalmente para mim mesma.

Portanto, devo avisar ao síndico daquela alta montanha Sufocada, perdida, me afogando em alto mar, sem nenhum
de concreto; avisar que a sua segurança é falha, que o porteiro, colete salva-vidas, sem nenhum bote, sem nenhuma esperança,
aquele senhorzinho, que nem ao menos me questionava se eu era apenas com um coração dolorido e um vazio maior do que o mar
mesmo um morador, estava muito velho para o trabalho. Devo em que estou sendo continuamente afogada.
avisar também que acima do parapeito devia haver uma grade Hoje é um daqueles dias em que eu perco as contas de
alta e de muita resistência, que pudesse resistir aos mais loucos quantas vezes eu segurei o choro, de quantas vezes eu disse
pensamentos suicidas e às coragens surgidas em momentos de “eu estou bem, é só cansaço”, quando só eu sei o quanto estou
dor. Deveria eu avisar, além disso, que os altos prédios são um destruída. Eu minto porque algumas mentiras, quando são
convite ao suicídio, mesmo que lá de cima a vista seja tão linda. contadas várias vezes, viram uma verdade, e como eu queria
Bem como, lá do alto, tão perto das nuvens poderiam até tocar que fosse verdade.
as estrelas e em um pequeno salto chegar ao espaço.
Como eu queria que a dor que eu sinto em cada músculo,
essa dor que invade as minhas entranhas, fosse apenas o cansaço
que pode ser vencido com uma boa noite de sono. Falando em
sono, tem tanto tempo que eu não durmo, que eu não descanso
nem sonho. Minhas noites e madrugadas se resumiram a lamento
e solidão, escuridão, medo e murmúrios. Apenas tormentos, da
minha própria mente, do meu próprio mar.

72 73
OUTRAS PROSAS

Hoje é um dia difícil, daqueles que eu nem deveria ter CONVERSA INACABADA
ousado enfrentar, mas agora que eu estou no olho do furacão, a
única opção que me resta é esperar que passe, que de fato seja
apenas uma fase, como tantas pessoas dizem para mim Isabel Ambrozio  |  Kaillany Fernanda

Também dizem que é falta de Deus, que toda essa con-


fusão é um resultado da minha falta de fé, dizem também que Eu estava sentada no ponto de ônibus, enquanto esperava
se eu fosse mais forte eu não estaria me afogando no meu mar, impaciente pelo transporte público que me levaria até o meu
estaria andando sobre as águas dele. E como eu queria que fosse emprego. E o motivo da minha impaciência, além da demora
isso, como eu queria simplesmente intensificar minhas orações, do ônibus, é porque era o meu primeiro dia no novo emprego.
me ajoelhar e dar fim ao meu tormento. Eu tenho fé, se eu não Então, eu estava muito nervosa, e agora, também, possivel-
tivesse, já não estaria me debatendo, lutando, gastando meu último mente atrasada.
fôlego, eu já estaria no fundo do mar, completamente rendida. Fazer o quê, se eu dependia de um transporte que não era
exatamente pontual?

Enquanto me chacoalhava sem parar – meus tiques eram


insanos e humanamente impossíveis –, percebi a presença de
duas garotas próximas a mim, que conversavam entre si. Uma
tinha o cabelo pintado de rosa, talvez nos seus quinze anos de
idade, e a outra tinha o cabelo preso num rabo de cavalo alto, e
aparentava ter a mesma idade da primeira.

Foi então que me ocorreu de usá-las para me distrair,


ouvindo o que elas conversavam. Não me leve a mal, eu não
sou fofoqueira, estava apenas tentando controlar meus tiques
nervosos, focando minha atenção nelas.

Percebei que a de cabelo rosa era a que tinha mais falas


naquele diálogo, que, diga-se de passagem, mais parecia um
monólogo. A outra apenas ouvia tudo com atenção, e de vez em
quando acenava positivamente.

74 75
OUTRAS PROSAS OUTRAS PROSAS

– Você não concorda comigo, Gabriele? – perguntou a de – Vai entrar, ou não? Eu não tenho o dia todo para esperar
cabelo rosa. a princesa se decidir!

– Concordo... – a outra falou sem firmeza. Indignada, olhei para o motorista, contendo minhas emo-
ções pelos recentes acontecimentos, forcei um sorriso educado
Mas ela concordava com o quê, se parecia que ela não
– obrigado, mamãe, pela educação! –, e entrei no ônibus. Dei
queria concordar exatamente?
um último olhar para as garotas, mas elas já tinham ido embora.
– Só tome cuidado. – a que não falava nada, quero dizer,
Cheguei ao meu novo emprego, iniciei meu trabalho
Gabriele, finalmente abriu a boca.
“aparentemente” tranquila, como a boa profissional que era. No
– Mas eu estou! entanto, vez ou outra me lembrava das garotas. Me vi pensando
e cogitando possibilidades dentre os assuntos que elas poderiam
– Não está não... não queria que fosse eu a dizer isso, mas
ter conversado naquele momento. Mas nada fazia sentido.
acho que ninguém mais faria.
Com os pensamentos a mil, comecei a cometer pequenos
Minha nossa, a Gabriele estava muito falante!
erros durante meu primeiro dia, como: exclamar de repente, cho-
– Então me explica, por que só eu tenho que tomar cuidado? rar de angústia, rir de desespero, tremer de curiosidade. Enfim,
quase fui demitida porque estava envolvida num assunto que
Gabriele, então, se aproximou da garota de cabelo rosa, e
nem era meu, mas daquelas duas garotas!
eu, num gesto involuntário para ouvir melhor, seja lá o que ela
tinha para dizer à outra, me curvei no assento, joguei meu cabelo Ao chegar em casa, descobri a moral da história: nunca
para trás, deixando meus ouvidos totalmente expostos. Gabriele ouça uma conversa pela metade, muito menos vá embora antes
abriu a boca, então... o ônibus chegou de repente! Me coloquei que ela acabe.
de pé, num salto – um gesto mais assustado, do que de prontidão
pela espera. Voltei meus olhos para as garotas, mas, já era tarde.
Gabriele já havia se explicado, e eu não pude ouvir nada!

Como assim?! Pensei.

Ainda vi a garota de cabelo rosa com um olhar perplexo.


Então o ônibus buzinou, e o motorista – muito bem-humorado,
só que não – gritou a pleno pulmões:

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OUTRAS PROSAS

UM ABRAÇO DE SORRISOS ponto de causarem dor no momento da partida. Uma despedida


dos sorrisos, que se fecharam, é verdade, mas permanecem
abertos um para o outro.
Guilherme Silva Vanderley
Os corações, antes abraçados, revestidos de peles em
fogaréu, não esfriaram jamais, as suas batidas, em sincronia
Naquele instante de ansiedade, medo e insensata angús- perfeita, em desatino e insensatez, não se permitiram cessar.
tia, eu sorri como se não houvesse um amanhã e fosse a minha Então, corações e peles se juntaram novamente, e sempre juntos
última chance de sorrir. Sorri como se toda a dor fosse acabar e estão. Mesmo, às vezes, sem o sorriso que me faz sorrir, ando
no outro dia, pela manhã, nada de sentimentos ruins ou aquela sorrindo mesmo só, rindo para as paredes brancas como a pele
sensação de que irei viver mais um dia como outro antes dele ou que abraçou a minha. As paredes castanhas, como o castanho
depois, triste e apático. Naquele instante, todo o meu corpo sorriu, que abraçou o meu. Os cachos que abraçaram as minhas ondas,
numa sincronia que antes a minha pobre coordenação motora não e em ondas de olhares e sorrisos, restaram só risos bobos.
permitiria. O meu corpo gritou de felicidade, esbravejou porque
antes não havia sentido tamanha alegria, tamanha euforia.

Meu sorriso era largo, e sorria também, junto dele, todos


os meus olhares, que tinham sim uma direção que não revela-
rei, ou pelo menos não tão facilmente. Estávamos nessa dança
de olhares, de reflexos, que se cruzavam rapidamente, num
disfarce constrangido, revestido de paixão. Os olhos afogados
em um brilho forte, tão pequenos e amassados pelas montanhas
vermelhas que no rosto se apresentavam tão meigas. E então o
meu solitário sorriso ganhou companhia num abraço de sorrisos,
que não se soltaram mais.

Nesse abraço, não só os sorrisos se abraçaram, mas os


corações, as peles, os cabelos, as paixões e as temperaturas,
já igualadas num calor escaldante. Os sorrisos, que vestiam
roupas de verão, se despiram pouco a pouco e logo nus, um
no outro, fizeram do amor um espetáculo de sorrisos bobos e
apaixonados, esses sorrisos foram intensificando a paixão, ao

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O ASSALTO DO BOLO SÓ MAIS UM DIA DE SOL

Thays Viana Silva Braga. Guilherme Silva Vanderley

Era quase noite na cidade, e todos caminhavam pelas ruas, Era um dia de sol lá naquela pequena cidade na qual vivi
a tarde tranquila fora interrompida por barulhos de tiros. Todos por muitos anos. Nesse dia, mais ou menos pelo meio da tarde,
correram assustados sem entender o que acontecia, alguns se eu estava deitado em minha cama, lendo algum livro, não lembro
esconderam por trás de árvores, carros e outros corriam sem rumo. qual, mas devia ser algum romance clássico, esses são os meus
preferidos, diga-se de passagem. Quando, naquele momento,
Até que o assaltante aborda uma pobre mulher trabalhadora;
ouvi tocar o meu celular, era uma mensagem de WhatsApp de
que chegara ao portão de sua casa, depois de um cansativo dia
um amigo que vivia em uma cidade vizinha, não muito longe
de trabalho. Imediatamente, o assaltante anuncia:
e nem tão perto, um meio termo, nem lá, nem cá, como dizem.
– É um assalto! Ele me perguntou se eu estava bem, e logo eu respondi que sim,
perguntei o mesmo a ele, que de maneira mútua, afirmou que sim,
E a mulher levanta os braços ao alto e diz:
estava bem. Posteriormente, me perguntou quais eram os meus
– Por favor, não atire! planos para a semana, se eu iria para alguma festa ou algum bar,
sair, beber, curtir. Eu disse que não, não tinha nada programado.
– Pode levar, tudo que tenho!
Vendo a minha completa disponibilidade, esse amigo me
– Mas não me mate!
convidou para ir em sua cidade para uma grande festa, no con-
Logo o assaltante pega uma sacola que a mulher deixara vite ele dizia que eu ficaria em sua casa por alguns dias antes
cair ao chão e sai correndo. Após o susto, a mulher, mais calma, da festa e outros mais depois dela. Eu olhei o meu saldo no
procura uma sacola em que trazia um bolo para o lanche da tarde. banco, e o meu dinheiro na carteira, percebi que era pouco, mas
decidi viver essa aventura, então me organizei, arrumei a mala
Seria um assalto ou um assaltante querendo driblar a fome?
e embarquei no primeiro ônibus maltrapilho que passou no dia
seguinte. Comigo, levei a vontade de me divertir, de quem sabe
tentar uma dança ou algo a mais. Chegando lá, fui recebido com
alegria por meu amigo e seus familiares, era um clima de festa
na cidade, afinal, era um grande show, tinham algo a comemorar,

80 81
OUTRAS PROSAS OUTRAS PROSAS

não lembro muito bem do que se tratava e tampouco o motivo vez aquela ação outrora praticada: parar, beber a minha água e
real de tanta farra. Mas isso pouco importa, faltavam dois dias apenas observar, e, mesmo que olhassem para mim de uma forma
para a festa e eu já estava muito animado. meio estranha como quem julga um observador, eu permaneceria
ali, até que os olhos me fossem cheios de algo antes nunca visto.
Escolhi a dedo aquela roupa a qual usaria, uma calça em tons
Não demorou muito, em um momento de descuido, quando meu
terrosos, uma camisa preta para disfarçar quaisquer gordurinhas
coração pouco esperava, o atingi com um forte golpe, implacável.
que pudessem surgir e também porque o black me deixa com um ar
Olhei para ela como se não houvesse mais um mundo no qual eu
misterioso, é uma cor belíssima, afinal de contas. Coloquei alguns
estava inserido, era como se cada célula do meu corpo tivesse
acessórios: pulseiras, cordões e anéis, todos pretos ou em tons que
se voltado para aquela paisagem, sem qualquer tipo de defesa
remetem ao luto. Nem ao menos parecia que eu estava a caminho
ou retaliação, estava entregue.
de uma festa daquele estilo, entretanto, eu pouco me importava,
aquele era o meu jeito de me vestir e estava tudo às mil maravilhas. Ela se cobria de um all black que combinava com as cores
Partimos, então, para aquele baile, é assim que chamam hoje em que eu usava, ao lado dela pequenos seres que pouco importam,
dia. Chegando lá, me deparei com muita gente, algumas pessoas pois, ela, da forma que brilhava, era o mais belo espetáculo que já
conhecidas, outras nem tanto, e muitas outras eu jamais havia visto, tive o prazer de ver. As luzes ao seu redor favoreciam o vermelho
normal para uma festa com milhares de pessoas de todos os lugares. do seu batom, que refletia nas poucas nuvens que surgiam com
inveja do seu brilho. Eu, por outro lado, estava paralisado, não
Andei pelo ambiente por horas e horas, com meu amigo
ouvia o que me diziam, apenas acenava com a cabeça em sinal
e amigos dele, cansei. Depois de tanto andar, parei, comprei
de concordância, por pura educação. Meus olhos brilhavam tanto
uma água e me permiti observar aquele local, aquelas pessoas,
que podiam ser confundidos com alguns daqueles refletores de
aquelas músicas, aquele clima frio e ao mesmo tempo tão pro-
alta potência, que iluminavam o palco daquele artista, que nunca
pício ao calor, com tantos corpos ali juntinhos uns aos outros,
em sua vida teve o talento suficiente para compor uma melodia
alguns dançando, outros conversando, outros beijando, outros,
tão linda quanto ela.
assim como eu, apenas observando. Olhando para os lados o
tempo todo, tentando encontrar nos olhares algo que pudesse, Meu amigo me cutucou perguntando o que tanto eu olhava,
de alguma forma, me encantar. Não demorou muito, logo eu eu respondi lentamente que não era nada, por medo de revelar a
desisti e andei novamente, não dancei, não somente porque não ele que naquele momento eu era o homem mais feliz do mundo,
sei essa prática, mas também porque senti que aquela noite me medo de ter a minha felicidade roubada, medo de perder, por
traria algo mais que uma dança. um instante que fosse, a visão daquela gloriosa rainha. Então,
daquela forma, eu o ignorei, afinal ele tampouco existia agora.
Depois que percebi que a noite não era para danças e
No meu mundo só existia eu e ela, naquele momento, com aquele
tampouco para qualquer outra curtição, decidi tentar mais uma

82 83
OUTRAS PROSAS

clima, com aquela sensação de que tudo seria nosso, de que CASA DE CAMPO
todas as estrelas se apagariam só para verem o nosso brilhar.
E era verdade, todas elas se apagaram, e os outros planetas se
curvaram para ela, a nossa guia, aquela para quem olhamos em Emilly Nayady C. de Souza  |  Jhonatas Viana Alencar
noites de paixão, aquela que está em cada verso da minha pobre
poesia, a lua. De vez em quando, vou para a casa dos meus pais que fica
no interior do Pará, leva umas 5 horas para chegar até lá. Não
é tão longe, mas as responsabilidades da vida de adulto exigem
sacrifícios como viver longe deles, do lugar incrível onde cresci
e do qual tenho boas lembranças.

Na sexta-feira à tarde, fui para a casa de campo passar o


final de semana com eles, onde a paz e liberdade são o cenário
principal, impossível chegar naquele lugar e não recordar os
momentos maravilhosos e inesquecíveis que vivi na infância
e adolescência. A vida na cidade é agitada, caótica, não tenho
iniciativa nem de conversar com meus vizinhos, desconfio de
todos por não ter segurança e tranquilidade; com a Covid-19 a
sensação é pior, é de perigo e medo por toda parte. Aqui na casa
dos meus país se a realidade não fosse tão complexa poderia dizer,
com toda certeza, que o vírus não chegou até aqui.

Como tinha avisado para minha mãe que iria, quando che-
guei por volta das 7 horas da noite, ela já tinha preparado minha
comida favorita (arroz, feijão, e carne de sol com bastante cheiro
verde). Todos os dias acordávamos cedo para iniciar as ativida-
des diárias, meu pai começava indo para o curral ordenhar as
vacas e minha mãe ligava o rádio no último volume, e começava
varrendo o terreiro, me acordava com o som de músicas de raiz
e, para ajudar nos afazeres, coloquei o milho para as galinhas, e
para o porco que se chamava Afonso, em seguida fomos tomar

84 85
OUTRAS PROSAS

café. Logo após ajudei minha mãe a molhar a horta na qual O AMANHÃ
tinha tomate, alface, couve, um canteiro grande de cebolas e
de coentro, o famoso cheiro verde e capim santo; colhemos os
legumes para o almoço. Posteriormente, fui com meu pai para a Thays Viana Silva Braga
represa alimentar os peixes e garantir a mistura para o almoço.

Após o almoço, fomos para o barracão de palha e lá come- O amanhã, esse que a gente idealiza e almeja tanto que
çaram a contar histórias que eles ouviam quando eram crianças, chegue logo, talvez possa até existir um dia num breve espaço
uma delas me chamou atenção. Dizia que havia muito tempo de tempo. Mas estou convencida de que ele não está tão próximo
atrás, morava um velhinho solitário dentro de uma mata, ele quanto imaginamos que esteja, amanhã vai além da percepção
trabalhava quebrando coco e colhendo frutas para se alimentar, cronométrica de tempo. Os dias se repetem e se apagam e,
não tinha amizade com ninguém e quando anoitecia desaparecia assim, amanhã se torna uma utopia – que nunca chega, é como
na mata. Essa faz parte de uma das histórias de antigamente se estivéssemos presos em um túnel do tempo.
que meus pais sabem contar, então combinamos de fazer uma Amanhã ao acordar, talvez seja tarde para apreciar o nas-
caminhada pelas redondezas da nossa casa de campo, encon- cer do sol, ouvir o canto dos passarinhos, respirar ao ar livre. O
tramos um grupo de tetéu que, ao perceber nossa presença, nos almoço em família, estar com alguém que amamos, ir às praças,
perseguiram. A trilha era interessante, tinha pés de goiaba, jaca, bares, festas, dentre tantos lugares, talvez isso amanhã serão
manga, abacate, cupu, laranja, logo mais à frente avistamos um apenas momentos que estarão guardados na nossa lembrança.
córrego muito bonito com profundidade e água cristalina, onde
minha mãe lavava roupas. Acreditamos tanto no tal amanhã, que nele depositamos todas
as nossas esperanças. E é nesse amanhã que talvez eu entenda a dor
Depois de admirarmos essa beleza natural voltamos para do outro, a solidão que é sentida por causa do temido isolamento,
descansar e começar tudo outra vez. a falta daqueles que se foram sem ter tempo de se despedir e a
dimensão do valor que as pequenas coisas da vida têm.

Mas eu não sei que dia será finalmente amanhã. Pode


ser daqui a dez anos, vinte anos ou talvez esse amanhã não
chegue. Ninguém sabe. Enquanto não consigo resolver essa
equação, sigo na espera de que essa pandemia passará, o vírus
será vencido pela medicina e tudo voltará ao normal. E amanhã
vai ser outro dia.

86 87
OUTRAS PROSAS

CAIS EM TRISTEZA O Homem, muitas vezes, foi enganado, mas também enganou
a si mesmo, em um ou mais amores mentirosos, ninguém amou
ninguém. Na vida deste homem, muitas mágoas permanecem, o
Guilherme Silva Vanderley nome delas eu não sei, mas uma delas foi loira e depois morena,
foi ruiva e colorida, foi corte e ferida, foi o começo do fim, o
O Homem de crachá tem o nome de João, Pedro, Paulo, início da dor, do ir e vir, do medo e da intensa vontade de sumir.
Valdemar, chame-o como quer chamar. O Homem tem 21 ou 38 O Homem chora horas e horas, não consegue mais viver assim.
anos e muitas histórias tristes para contar. Este Homem que não O Homem sai de casa exatamente às seis, vai ao traba-
vive, vive por falar, que a vida que ele vive é muito dura de aturar. lho, faz um milhão de coisas idiotas, sem sentido além de mera
Contudo, vemos o Homem vivendo a balbuciar, ao sair de casa compilação de inutilidades. Além disso, ele almoça sempre o
cedo, — estou indo trabalhar —, e no fim da tarde, ao respirar, mesmo prato: arroz, feijão, salada e um copo de suco de manga.
tudo que ele quer é voltar para casa e descansar. Outrossim, é Em outros momentos, o Homem anda pela cidade, olhando
verdade que o vemos em outros lugares: boates, viadutos e bares. os letreiros, procurando alguma cartomante para chamá-la de
O vemos também aqui, onde ele está agora, neste cais, sozinho, caloteira. O Homem grita em silêncio pelas longas ruas que
como outrora. O Homem pensa sobre a vida e sobre os amores logo chegam ao fim, e, sem ter para onde ir, o Homem para por
não correspondidos, e, depois daqui, pelos becos escondidos, aqui, no cais, caindo em lágrimas que se vão, com o tempo e o
vai a uma festa, encher a cara até o fundo, se jogar na noite, se passar das águas.
perder de si e do mundo.
O Homem é um pobre homem, tinha sonhos, mas não vê
O Homem não tem culpa de ser tão solitário, vazio, triste, sentido em nada mais. Ele não tem cachorro, tampouco papagaio,
ordinário, não tem culpa de viver assim, pelos cantos, ouvindo odeia amar os animais. Ademais, o Homem odeia muitas outras
cantos que não encantam, enfim. Embora nada o encante, o coisas, como café frio, noite quente e um luar meio diferente.
Homem sorri, agoniante, tentando maquiar o mundo onde está, Porém, ele também tem seus gostos e costumes, como beber água
o trabalho, o fato que tem de acordar cedo, muito cedo. Este é ou tequila, de dose em dose, pelos bares, para esquecer a vida.
um Homem que chora pelas noites mal dormidas, pelos banhos Entre outras características, o Homem não é alto, tem um metro
demorados, pelo sono que não vem, pelos dias mal-humorados. e noventa centímetros de pura pequenez. Afinal, quem não se
Todavia, este Homem só quer ser amado, amar, ser revigorado, sente gigante jamais alcançará o céu. Deixando de lado frases
ele quer ser feliz. Porém quem vê o Homem, vê tristeza, mágoas, clichês, voltaremos ao nosso protagonista, pois precisamos dar
solidão, melancolia. Quem vai amar alguém assim? Ninguém. a ele mais atenção, enfim: o Homem não sente mais vontade de
Você amaria?

88 89
OUTRAS PROSAS

viver, ele não quer mais sentir como se nunca estivesse sendo
visto, ele quer não existir.

O Homem irá sair deste cais, andar pelas ruas desta cidade,
beber, namorar, gritar, ser quem nunca foi. O Homem vai chegar
em casa, sujo e vazio, sem ninguém para o amparar e, então,
morrerá nesta mesma noite. O Homem irá preparar um cenário
com flores, perfumes e bastante cor, como nunca antes fez. Este
Homem pegará uma lâmina e cortará os próprios pulsos, naquele algumas palavras sobre
cenário, ali na sala, assistindo ao seu filme favorito, eu não sei qual
é, não me pergunte. Pergunte a ele, aliás, pergunte mais coisas as experiências de escrita
a ele, pode ser que ele queira conversar. Entretanto, não adianta
mais perguntar, pois o Homem já se convenceu e percebeu que
só ele pode e vai entender a si mesmo. Só ele sabe o que sente e
só ele sabe o que fazer. Ninguém jamais entrará em sua mente.

90
Dara Gomes Souza

O processo de escrever (...) sobre o tema pandemia foi um


desafio e instigar a habilidade de condensar a enorme quantidade
de informações e situações novas, que esse período histórico nos
proporcionou, foi realmente árduo. Com o auxílio constante dos
textos teóricos, consegui pensar em algo que me deixou satisfeita,
busquei uma abordagem cômica e pouco mórbida, sem realmente
utilizar experiências e vivências pessoais para criar meu pequeno
universo dentro do texto.

Para construir minha narrativa, almejei o incômodo do


leitor ao se deparar com relações quebradas durante a pandemia
de COVID-19. Criei uma situação de conforto necessária à
protagonista; porém, ao concluir a história, esse acalanto lhe foi
retirado junto com o fim, a luz no horizonte para as questões da
pandemia [baixo índice de contaminação e vacinação].

Para esse processo de produção textual, tive que me


reencontrar com a escrita e pensar nas palavras de uma maneira
que nunca me ocorreu antes, me descobri uma boa cronista. A
realização da leitura durante a aula foi muito boa, meu texto
provocou riso em alguns e vários elogios de meus colegas e da
professora. Essa sensação de trabalho bem-feito me deixou muito
feliz, me sentindo competente novamente.

93
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DE ESCRITA

Participar da discussão dos textos dos colegas também foi HELLEN CAROLINY S. CARDOSO
muito enriquecedor para minha experiência com a escrita e o
desenvolvimento do raciocínio para construir histórias.

A aula de hoje foi o momento de apresentação dos textos


produzidos em conjunto, por sorte, meu grupo foi o primeiro,
e à medida que a crônica ia sendo apresentada aos colegas e
a professora, também fomos discutindo sobre a intenção do
narrador, o posicionamento dos fatos e o motivo da escrita.
Os trabalhos em grupo são sempre um desafio necessário
para praticarmos não só a leitura e a escrita como também o
acolhimento, o respeito, a responsabilidade consigo e com o
outro e com o aprendizado.

Posso dizer que o desafio da escrita em conjunto me pos-


sibilitou enxergar maneiras e sentidos semelhantes e ao mesmo
tempo diferentes dos meus, também aprendi que, para o grupo
conseguir produzir um material que atendesse ao que foi pedido,
foi preciso cautela nas escolhas das palavras e no tipo de men-
sagem que se deseja passar.

Portanto, apoio esse tipo de metodologia e digo que as


minhas experiências nos encontros semanais foram proveitosas,
afinal, já ficava esperando o link das aulas antecipadamente.
Tem outra coisa que faz com que as aulas ganhem destaque no
meu cronograma, é a frase mais icônica de todas as disciplinas:
“YES OR NO” – dita exclusivamente pela professora quando quer
receber nosso retorno acerca de qualquer pergunta feita. Assim,
além do Letramento Literário que recebemos, tivemos uma leve
introdução à Língua Inglesa. Thanks, Professora!

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MARTHA AURORA ISABEL AMBROZIO

A construção individual a princípio me deixou super aflita, Ao escrever individualmente meu texto, percebi que teria
por várias vezes achei que não conseguiria redigir uma crônica algumas dificuldades no desenvolvimento das ideias. (...) tentei
sozinha. Desde o dia que foi passada a atividade me peguei pen- tirar de minha própria realidade, todavia também tentei retra-
sando no que iria escrever, e compartilhei com alguns colegas tar o cotidiano das pessoas que viviam insatisfeitas com suas
de casa, que em um tom de brincadeira me sugeriram a ideia do vidas, mas perceberam que isso não era nada diante de tudo o
tema. Pensei várias formas de como eu poderia desenvolvê-lo. que aconteceu ano passado. As perdas sofridas, a sensação de
impotência, o medo constante de que as coisas não melhorariam
Em minha mente não queria algo triste, mesmo que o
nunca, foram essas e outras coisas que quis relatar.
momento fosse de profunda tristeza, mas, a princípio, como
somos brasileiros, brasileiro sempre tira uma graça de tudo. E Considerei as tantas reclamações que ouvi (e que também as
de uma forma leve e rápida as palavras foram se encaixando e fiz) de pessoas querendo um tempo para elas mesmas, pois estavam
um dia antes da entrega consegui entregar o meu texto. cansadas de seus trabalhos, estudos, da rotina cansativa do dia a
dia, por isso desejavam “ironicamente” que os finais de semana
Na aula, ao saber que teria que compartilhar, tive um pouco
fossem mais longos. Quando de fato isso aconteceu (a quarentena),
de medo, mas estava lá e era uma oportunidade a mais para apren-
essas mesmas pessoas ansiavam retornar aos seus cotidianos. Foi
der e é errando que aprendemos, então, com toda empolgação, li
buscando retratar essa ambiguidade que criei meu texto.
para a classe. Com o coração grato vi que a professora, mesmo
pontuando e sugerindo algumas mudanças, entendeu e gostou A respeito da leitura compartilhada, gostei muito de apre-
bastante da ideia principal da crônica, que era o humor. Vi que sentar meu texto aos colegas, pois assim pude descobrir quais
eu não havia escrito só um texto, eu havia aprendido e quebrado outras percepções puderam ser atribuídas ao meu texto. Acredito
barreiras que nem sabia que existiam em mim, afinal, a oficina que essa troca de opiniões é muito importante para saber se o
se deu como um grande aprendizado para a vida. que queria transmitir foi realmente entendido por todos.

‘’COM FOCO E PERSISTÊNCIA TUDO É POSSIVEL’’

96 97
KAILLANY FERNANDA OLIVEIRA BRITO ISABELLA CRISTINA MORAIS

No começo, quando a atividade foi proposta eu não Escrever não é fácil, requer esforço, concentração, doação
pensava que iria ter grandes dificuldades para escrever, apesar de si. Escrever uma situação, no momento do acontecimento,
das minhas fragilidades na hora de escrever, eu já havia escrito parece ser relativamente fácil, já que se torna uma espécie de
crônicas, contos, histórias e afins por diversão. Então, escrever desabafo, mas toda escrita tem suas complicações e complexi-
uma crônica não seria algo tão difícil, certo? Errado. dades. Por isso, descrever a realidade de um momento tão difícil
como esse que passamos foi árduo, principalmente, encontrar as
Quando me sentei na cadeira para escrever, as ideias
palavras que se encaixassem com uma dor mundial e ao mesmo
não vinham, as palavras não faziam sentido para mim e eu não
tempo uma dor particular, foi duro.
conseguia formular algo que considerasse apresentável. O medo,
a ansiedade e a falta de foco (falta essa que veio se tornar tão
presente em minha vida no pós-covid) me travaram, e nesse
momento, em meio tantas angústias, abri minha alma e as colo-
quei no papel. Aquele texto não era o melhor que eu tinha feito,
mas sem dúvida um dos mais sinceros, pois tudo o que guardei
e escondi, coloquei para fora através do texto.

Essa experiência de escrever uma crônica não foi apenas


de uma tarefa acadêmica, pois me afetou de forma global, ao
colocar para fora tudo o que estava engasgado e que eu não
conseguia dizer por outro meio. Muito Obrigada!

98 99
JHONATAS VIANA ALENCAR

Em uma das aulas, os alunos deveriam ler o texto produzido


individualmente, compartilhando a leitura com a professora e
com os demais colegas. Cada aluno apresentou o seu ponto de
vista sobre o tema, criando narrativas bem interessantes. Logo
após a leitura, a professora comentava e dava encaminhamentos
para os textos dos alunos.

A experiência da leitura compartilhada foi muito impor-


tante, pois tive a oportunidade de ler outras crônicas feitas pelos
colegas. A discussão do meu texto contribuiu muito para apontar
as questões que precisariam de ajustes.

(Colagem com efeito visual de manchetes de reportagens


de jornais sobre a Covid-19 no Brasil)

100
SOBRE OS AUTORES

Ágata Gomes da Rocha é graduada em Letras pela Universidade


Federal do Norte do Tocantins (UFNT). Foi bolsista do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). 

Andreia Pereira dos Santos é acadêmica do 6º período da Licen-


ciatura em Letras, do Centro de Ciências Integradas, da Universidade
Federal do Norte do Tocantins (UFNT). É bolsista do Programa de
Residência Pedagógica (PRP).

Dalila de Souza Barbosa é acadêmica do curso de Licenciatura


em Letras, (Língua Portuguesa e suas Literaturas), do Centro de
Ciências Integradas, da Universidade Federal do Norte do Tocantins
(UFNT) e está cursando o 6° período. É estagiária da Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-Graduação (PROPESQ), estágio não obrigatório da
UFNT. Além disso, foi bolsista no Programa Institucional de Bolsa
de Iniciação à Docência (PIBID), ofertado pela CAPES.

Dara Souza é acadêmica da Licenciatura em Letras, do Centro de


Ciências Integradas da Universidade Federal do Norte do Tocantins
(UFNT) e está cursando 8° período.

Débora Saraiva Rocha é acadêmica do curso de Licenciatura em


Letras (Língua Portuguesa e Literaturas), do Centro de Ciências
Integradas, da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT)
e está cursando o 6° período. Participa como bolsista do Projeto de
Monitoria Inclusiva da UFNT, que faz parte da Diretoria de Acessi-
bilidade, Equidade e Permanência (DAEP). Além disso, foi bolsista
no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID),

103
NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS

ofertado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de aos doze de idade. Natural do Estado do Maranhão, mudou-se aos
Nível Superior (CAPES). nove anos de idade para São Domingos do Araguaia no Estado
do Pará, onde iniciou os estudos na Educação Básica. Atualmente
Emilly Nayady Consolação de Souza é acadêmica da licenciatura
reside na cidade de Araguaína - TO.
em Letras, do Centro de Ciências Integradas, da Universidade Federal
do Norte do Tocantins (UFNT) e está cursando o 6° período. Participa Isabel Ambrozio é acadêmica da Licenciatura em Letras, do Centro
como bolsista CAPES do projeto de Residência Pedagógica através de Ciências Integradas, da Universidade Federal do Norte do Tocan-
do Núcleo Língua Portuguesa. tins (UFNT) e está cursando 6º período. De 2020 a 2022 foi bolsista
do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID).
Fabiana Santos é formada em pedagogia Faculdade de Filosofia e
Atualmente é voluntária do Programa Institucional de Voluntário
Letras De Boa Esperança (FAFIBE) e é acadêmica do Curso de Licen-
em Iniciação Científica e Tecnológica (PIVIT) e bolsista do Programa
ciatura em Letras (Língua Portuguesa e Literatura), do Centro de
de Residência Pedagógica (PRP). Ama cantar e tocar violão, às vezes
Ciências Integradas, da Universidade Federal do Norte do Tocantins
se atreve a escrever histórias de fantasia na calada da noite.
(UFNT) e, atualmente, está cursando o 7° período. É bolsista-resi-
dente do Programa Residência Pedagógica. Isabella Cristina Morais do Nascimento é acadêmica da Licenciatura
em Letras, Câmpus de Porto Nacional e está cursando 3º período.
Guilherme Silva Vanderley é acadêmico de Licenciatura em
Letras, no Centro de Ciências Integradas da Universidade Federal Jhonatas Viana Alencar é acadêmico da Licenciatura em Letras,
do Norte do Tocantins (UFNT), cursando o 6º período. Atuou de do Centro de Ciências Integradas, da Universidade Federal do Norte
2020 a 2022 como bolsista no Programa Institucional de Bolsas do Tocantins (UFNT) e está cursando o 6° período.
de Iniciação à Docência (PIBID), e participa como voluntário no
Kaillany Fernanda Oliveira Brito é acadêmica de Licenciatura em
Programa de Residência Pedagógica (RP), ambos executados pela
Letras, do Centro de Ciências Integradas, da Universidade Federal
CAPES. Além disso, é bolsista no Programa Institucional de Bolsas
do Norte do Tocantins (UFNT) e está cursando 6° período. É bolsista
de Iniciação Científica (PIBIC). No blog Em letras, divulga crônicas,
Capes do Programa de Residência Pedagógica como residente.
cordéis e resenhas.
Letícia Sales dos Santos é acadêmica da Licenciatura em Letras,
Hellen Caroliny S. Cardoso é acadêmica da Licenciatura em Letras,
do Centro de Ciências Integradas, da Universidade Federal do Norte
do Centro de Ciências Integradas, da Universidade Federal do Norte
do Tocantins (UFNT) e está cursando 8º período. Participa como
do Tocantins (UFNT).
bolsista (Capes) do projeto Residência Pedagógica de Língua Inglesa.
Idenilde Pacheco é acadêmica da Licenciatura em Letras, no
Lorrany Rocha é acadêmica da Licenciatura em Letras, do Cen-
Centro de Ciências Integradas da Universidade Federal do Norte
tro de Ciências Integradas, da Universidade Federal do Norte do
do Tocantins (UFNT) e está cursando o 6° período. Participa como
Tocantins (UFNT).
bolsista (Capes) do projeto Residência Pedagógica. É compositora
e poetisa. (Poemas não publicados). Escreveu seu primeiro poema

104 105
NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS

Maria Alessandra Alves dos Santos é acadêmica da Licenciatura SOBRE OS ORGANIZADORES


em Letras, do Centro de Ciências Integradas, da Universidade Federal
do Norte do Tocantins (UFNT).

Martha Aurora é acadêmica da Licenciatura em Letras, do Centro de


Ciências Integradas, da Universidade Federal do Norte do Tocantins
(UFNT) e está cursando o 6º período. Participa como bolsista-resi- Vilma Nunes da Silva Fonseca: Doutora em Letras (UFT), mestre
dente do Programa de Residência Pedagógica. em Estudos da Linguagem com área de concentração em Literatura
Priscila da Costa Ferreira é acadêmica do sexto período da Comparada (UFRN), especialista em Literatura Luso-Brasileira (UFRN)
Licenciatura em Letras (Língua Portuguesa), do Centro de Ciências e graduada em Letras (Licenciatura Plena Português-Inglês) também
Integradas, da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT). pela UFRN. Professora do Curso de Licenciatura em Letras, do Programa
Participa do Programa Institucional Voluntário de Iniciação Cien- de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) e do Programa de
tífica (PIVIC/CNPq) e é bolsista-residente no Projeto de Residência Pós-Graduação em Linguística e Literatura (PPGLLit), da Universidade
Pedagógica (CAPES).  Federal do Norte do Tocantins (UFNT) / Centro de Ciências Integradas
– Araguaína.
Semaias da Silva Morais é advogado, formado pela Faculdade
Católica Dom Orione (FACDO), acadêmico da Licenciatura em Letras, Janete Silva dos Santos: Mestrado e doutorado em Linguística
do Centro de Ciências Integradas, da Universidade Federal do Norte Aplicada pela Unicamp. Licenciada em Letras. Professora Associada da
do Tocantins (UFNT) e está cursando o 7º período. Universidade Federal do Tocantins (UFT), atuando no curso de Letras
(Licenciatura) e no PPGL (mestrado e doutorado). É líder do Grupo de
Suzana Pereira dos Santos é acadêmica da Licenciatura em Letras, Pesquisa em Linguagem, Educação e Sustentabilidade (LES) e vice-líder
do Centro de Ciências Integradas, da Universidade Federal do Norte do do Grupo de Estudos Tocantinenses em Análise de Discurso (GETAD).
Tocantins (UFNT) e está cursando 6º período. Participa como bolsista Desde novembro de 2021 é a coordenadora substituta eventual do
(CAPES) do Projeto de Residência Pedagógica do Núcleo de Língua PPGL (Portaria UFNT/UFT 219). É co-organizadora de algumas coletâneas
Portuguesa. de obras acadêmicas. Tem artigos publicados em periódicos nacionais.
Thays Viana Silva Braga é acadêmica do Curso de Licenciatura Atualmente faz pós-doutorado pela CSCS-IPL (PT), pesquisando a per-
em Letras -Língua Portuguesa, do Centro de Ciências Integradas, da formance/hibridismo de texto/gênero discursivo emerso/impulsionado
Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT). Foi bolsista do na/pela Pandemia do Covid-19.
Programa de Iniciação à Docência (PIBID) e, atualmente é residente
do Núcleo de Língua Portuguesa do Programa de Residência Peda-
gógica (PRP), ambos os programas financiados pela Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

106 107
NARRAÇÕES PANDÊMICAS E OUTRAS PROSAS

João de Deus Leite: É graduado no Curso de Letras, mestre e doutor, ÍNDICE REMISSIVO
pela Universidade Federal de Uberlândia. É Professor Adjunto na Uni-
versidade Federal do Tocantins. Foi membro do Conselho Municipal
de Educação de Araguaína/Tocantins (2018-2019). Tem trabalhado com
as seguintes temáticas: discursividades pedagógicas sobre o ensino e a
aprendizagem de língua portuguesa em diferentes situações discursivas,
A M
identidade/identificação de diferentes grupos vulneráveis. Realizou,
Máscara
como atividade integrante de seu doutoramento, Estágio Sanduíche Amor Medo
no Exterior, no Instituto Politécnico de Leiria (IPL) sob a orientação Morte
da Profa. Dra. Susana Nunes e do Prof. Luís Felipe Tomás Barbeiro. É C Mortos
Caos
coordenador do Programa de Pós-graduação em Demandas Populares
Catarse N
e Dinâmicas Regionais (PPGDire).  Compaixão Negacionismo
Contágio Negligência
Coronavírus
COVID-19 P
Crise sanitária Pandemia
Crise social Política
Crítica social
R
D Reflexão sobre a vida
Descaso
Desinformação S
Doença respiratória Saudade
Dor Saúde mental
Solidão
G Solidariedade
Generosidade
U
I União
Impotência Unidade de Terapia Intensiva (UTI)
Incerteza
Infecção V
Insegurança Vacina
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“A cavalo de galope / a cavalo de galope / a cavalo de galope / lá vem a
morte chegando”. Assim principiam os versos de Carlos Drummond de
Andrade, no poema A morte a cavalo. A morte se figurativiza de diferen-
tes formas nas culturas, ao longo do tempo, mas é sempre a “indesejada
das gentes”, como diz o poeta em outro texto. Aqui, ela vem a cavalo,
a aceleração sendo denunciada pelos efeitos rítmicos produzidas pela
repetição das palavras nos versos heptassílabos, que nos levam a ouvir
suas patas apressadas. Em seu lamento, Drummond fala da morte que
aos poucos vai levando os mais próximos, amigos, parentes, até que o
sujeito reste “sozinho e oco”. Se escrevemos e lemos nesse momento, foi
porque sobramos. E o que nossa escrita pode revelar?

A experiência da pandemia de Covid-19 obrigou-nos a pensar na brevi-


dade da vida, do tempo que talvez já não tivéssemos adiante, ou no que
restaria de nós quando tantos partiam. Foi nesse contexto que jovens
estudantes ingressaram no curso de Letras da UFNT de Araguaína e,
subitamente, tiveram suas aulas presenciais canceladas. Principiavam a
formação no curso superior sem aquilo que só existe no corpo a corpo
do sujeito com outros sujeitos, professores e alunos, com o espaço, com
as conversas na hora do café, com a amizade dos grupos de estudo,
com a solidariedade e afeto de pessoas que partilham inquietações e
aprendizado. A festa parecia que acabava antes de começar. Foi nesse
momento que a professora da disciplina de Letramento Literário propôs
um trabalho de escrita criativa, o que possibilitaria que diferentes vozes
encontrassem expressão para além daquilo que parece interessar mais de
perto ao mundo acadêmico: resenhas, artigos, ensaios. Emergiram então
os contos e crônicas aqui reunidos, muitos optando por tratar da pandemia
de modo ficcional, assumindo a apreensão do real sob uma perspectiva
de outro sujeito, um outro olhar. A morte seguia seu ritmo acelerado, a
galope, impedindo sonhos de formação. A escrita foi, então, um caminho
de resistência; a literatura de novo obstinada na tradução do intraduzível.

(Luiza Silva, cronista e poeta)

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