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O corpo com o qual nos importamos: figuras da antropo-zoo-gênese.

VINCIANE DESPRET1

O que existe realmente não são 'coisas feitas', mas 'coisas em feitura'. (William James, 1958a: 263)

Uma manhã em setembro de 1904, Berlim, 13 senhores, pertencentes a diferentes esferas sociais,
encontraram-se em um pátio na Rua Griebenow. Nunca haviam antes trabalhado juntos. Alguns deles
sequer se conheciam. Professor Stumpf era diretor do Instituto de Psicologia ; Dr. Heck era diretor do
jardim zoológico local; Sr. Hahn era professor na escola municipal; Dr. Miessner era veterinário; um dos
senhores era oficial do Exército aposentado; outro, um aristocrata; Paul Busch era simplesmente gerente
de circo. O pátio onde estavam trabalhando pertencia ao Sr. von Osten, antigo professor de matemática
no Ginásio de Berlim. Este cavalheiro também estava na reunião. Durante todo o dia, estas pessoas
dirigiram perguntas a um dos famosos alunos deste tempo, aluno do Sr. von Osten, Hans. Pediram que
resolvesse problemas de multiplicação e de divisão, e extraísse raízes quadradas. Foi também solicitado
a Hans que soletrasse palavras e que, entre outros testes, discriminasse entre cores ou tons e intervalos
na música. Hans não somente respondia de bom grado, como também, na maioria das vezes, oferecia a
resposta correta. Tinha mais ou menos 4 anos de idade. Porém,

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Tradução de Maria Carolina Barbalho, revisão de Ronald João Jacques Arendt

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o fato mais chocante não era sua pouca idade. Hans respondia às questões com batidinhas de seu pé
direito no chão. Hans era um cavalo.
Como podia um cavalo fazer aquilo? Esta era a questão a que estes senhores haviam sido chamados a
investigar. Esta história tinha começado realmente há alguns meses atrás, quando um jornal local
publicou um artigo relatando os maravilhosos dons do cavalo. A cada dia que passava, um número
crescente de visitantes curiosos vinha ao pátio observar o cavalo e seu mestre em atividade. Cientistas e
pessoas famosas vieram em seguida. Assim, emergiu uma das controvérsias mais intensas daquele
tempo: para alguns que viram Hans, não havia dúvidas sobre as realizações do cavalo, enquanto que,
para outros, a história não era nada mais do que uma questão de crença fundada numa fraude. Sr. von
Osten, ofendido pelas sugestões de fraude, apelou ao conselho de educação em Berlim. Como
conseqüência foi formado um comitê consistindo nos 13 senhores mencionados. Após horas da
observação, todos concordaram. Nenhum sinal podia ser percebido; nenhum truque como aqueles
usados com animais treinados no circo pudera ser visto. Mas a melhor evidência era que Hans respondia
a estes senhores na ausência de seu mestre!
Era Hans um gênio? Alguns pensavam que sim. Ou era, como outros sugeriram, um telepata que poderia
ler a mente de seus questionadores? Professor Stumpf, líder da comissão, teve cuidado ao escrever seu
relatório: nenhum sinal ou truque 'atualmente familiar' parecia estar envolvido (Pfungst, 1998). Insistiu
que isso não significava que se pudesse acreditar que Hans tivesse inteligência conceitual. Este caso,
concluía, é digno de investigações sérias e incisivas. Ou seja, mais pesquisa deveria ser feita.
Um dos assistentes de Stumpf na universidade, o psicólogo Oskar Pfungst, é, portanto, escalado para
resolver o mistério. Ele vai ao pátio onde Hans vive e se apresenta ao público, e coloca questões para
brilhante cavalo. Clever Hans lhe dá respostas corretas. Todavia, Pfungst não atribui a Hans uma
inteligência conceitual, nem acredita em algum fenômeno paranormal. Está convencido pelos resultados
obtidos por Stumpf e pelas outras testemunhas: não há nenhum truque envolvido (de outra maneira o
cavalo não responderia na ausência do seu mestre). A solução ao enigma deve ser encontrada em outro
lugar. Stumpf conclui em seu relatório que também ele não pôde observar nenhum sinal que fosse
'atualmente familiar'. Esta é então a solução: o cavalo deve estar seguindo pistas. São pistas que os seres
humanos não podem perceber e, além disso, elas lhe são dadas involuntariamente! E Pfungst irá
encontrá-las.
O psicólogo lista alguns dos senhores que vêm trabalhando com o cavalo e começa a trabalhar.
Cuidadosamente observa os questionadores colocando problemas matemáticos a Hans: nenhum sinal
parece estar funcionando. Entretanto, Pfungst ainda acredita que esses sinais estão sendo produzidos.
Como evidenciar sua existência? Sua

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hipótese é simples: se o questionador não conhecer a resposta à questão que efetua, ele não será capaz
de fornecer os supostos sinais, e o cavalo não responderá corretamente, o que provará que os sinais
involuntários estão efetivamente ocorrendo. Sr. von Osten pede a Hans para repetir um número a um
outro cavalheiro e sai do pátio. O último, que não ouviu o número escolhido, entra e pede a Hans para
repeti-lo. Hans falha. Se o questionador não souber a resposta, o cavalo não pode descobri-la. Há sinais,
então. Pfungst pode agora começar a tentar encontrá-los. E ele irá. Por horas a fio, observa, experimenta,

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põe diferentes hipóteses à prova: o que acontece se Hans não puder ouvir a pergunta? O cavalo ainda
conta. O que acontece se não puder ver o rosto do questionador? Hans ainda conta. O que acontece se
Hans não puder ver o corpo de seu questionador? Ele falha. O corpo está envolvido: Hans pode ler
corpos humanos. Comparando com cuidado os diferentes questionadores – todos os movimentos que
cada um produz quando faz a pergunta e espera a resposta final, e também questionadores que não
conseguiram levar Hans a ser bem sucedido – Pfungst chega à chave do enigma. Movimentos
involuntários mínimos (tão mínimos que não tinham sido percebidos até agora) são executados por cada
um dos humanos para quem Hans tinha respondido com sucesso às perguntas. Assim que o
questionador dá um problema ao cavalo, dobra sem querer ligeiramente sua cabeça e tronco para frente
(para olhar o pé que foi suposto de iniciar a batida). A tensão se acumula; o acúmulo de tensão resulta
em que o questionador mantenha a mesma posição. Mas, assim que o número desejado das batidas for
dado, o questionador relaxa, e dá involuntariamente uma guinada ligeira da cabeça e o tronco para cima.
O cavalo somente mantém seu pé direito no chão. Cada um dos questionadores observados por Pfungst
produziu esses movimentos. E nenhum entre eles sabia que estava assim fazendo, nenhum entre eles
notou que seus corpos estavam falando com o cavalo, dizendo-lhe quando começar e quando parar. Cada
um deles, exceto o cavalo, ignorava este fenômeno surpreendente: seus corpos estavam falando e se
movendo contra sua vontade, fora dos limites de sua consciência.

Corpos inteligentes

O aspecto o mais interessante dessa história é a maneira pela qual Pfungst decidiu construir o problema.
Sim, era um belo exemplo de influência, mas era, além disso, uma maravilhosa oportunidade de se
explorar uma pergunta fascinante. Por certo o cavalo não podia contar, mas podia fazer algo mais
interessante: não apenas ele podia ler corpos, mas podia fazer corpos humanos serem movidos e
afetados, e mover e afetar outros seres e executar coisas sem seu conhecimento. E isso podia ser
estudado experimentalmente. Hans poderia transformar-se num instrumento vivo

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que permitiria a exploração de relações muito complicadas entre consciência, afetos e corpos (1). Hans
poderia atuar como um dispositivo que induzisse novas articulações entre consciência, afetos, músculos,
vontade, eventos 'no limiar' da consciência (Pfungst, 1998: 203); ele poderia ser um dispositivo que,
além disto, tornasse estas articulações visíveis. Hans, em outras palavras, poderia vir a ser um
dispositivo que permitisse aos humanos aprender mais sobre seus corpos e seus afetos. Hans
incorporava a possibilidade de explorar outras maneiras pelas quais corpos humanos e não-humanos se
tornam mais sensíveis uns aos outros.
Pfungst estava tão interessado neste novo caminho que até criou uma tipologia de corpos humanos de
acordo com sua capacidade de ser afetado e de afetar. Por que somente algumas pessoas recebiam
regularmente respostas de Hans, enquanto a maioria as recebia apenas ocasionalmente? Os mais bem
sucedidos dentre os sujeitos que fizeram perguntas a Hans, escreveu ele, têm habilidade e tato para lidar
com animais. Têm o poder da concentração intensa na expectativa. Eles mostram uma grande facilidade
para descargas motoras ou têm tendência à gestualidade:

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. . . durante a infância somos treinados a manter todos nossos músculos voluntários sob uma determinada medida de controle.
Durante o estado da concentração (ao trabalhar com Hans), este controle é relaxado, e nossa musculatura transforma-se em
instrumento para a atuação de impulsos não-voluntários. (Pfungst, 1998: 204)

Lidar por longo tempo com pensamentos muito abstratos, por exemplo, enfraquece esta capacidade.
Corpos talentosos também têm o poder de distribuir a tensão, de sustentá-la o suficiente e relaxá-la no
momento certo. Em suma, o questionador deveria incorporar sua vontade de ser bem sucedido (um tipo
de 'você tem que' dirigido a Hans) ao mesmo tempo ignorando isso. E esta incorporação pode ser
caracterizada por outros dois termos: confiança e interesse. Confiança e interesse porque aqueles que
obtiveram sucesso com Hans o fizeram à medida que estiveram confiantes no sucesso: 'quando não
anteciparam o sucesso, eles falharam' (1998: 161).
O maior dom de Hans, explica Pfungst, era mostrar uma reação extremamente acurada a cada
movimento do questionador. Cavalos, adiciona Pfungst, são geralmente excelentes leitores de músculos:
lêem a mente de seu cavaleiro através da pressão das rédeas. Sabemos que, no caso de cavalos
perfeitamente treinados, o mero pensar do cavaleiro no movimento que espera que o cavalo execute é
aparentemente suficiente para levar o animal a fazê-lo. Pfungst cita a história de Tolstoy sobre a corrida
disputada entre o Conde Wronskij, montando Frou-Frou, e Machotin montando Gladiator (de Ana
Karenina):

No exato momento em que Wronskij pensou ser a hora de alcançar Machotin, Frou-Frou, adivinhando o pensamento de seu
mestre, aumentou seu ritmo consideravelmente sem nem mesmo haver sido incitada. Começou a se aproximar de Gladiator
pelo lado de dentro, o mais

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favorável. Mas Machotin não desistiria. Wronskij estava exatamente considerando que deveria conseguir passagem pelo
circuito maior, pelo lado de fora quando Frou-Frou já mudara de direção e começara a passar Gladiator por esse lado. (1998:
184)
Seguindo Tolstoy, podemos sugerir que o maior talento de Hans seria a capacidade de mudar
rapidamente de um sentido (o sentido da cinestesia) para outro: o visual. Os cavalos talentosos lêem em
geral através de sua pele e de seus músculos; Hans podia ler todos estes sinais visualmente. Hans era
verdadeiramente talentoso.
Ler músculos e fazê-lo visualmente era então seu único talento real? Não devemos nos apressar por uma
conclusão. É claro, não estamos tentando resgatar suas habilidades matemáticas; o que Hans parece ser
capaz de fazer é realmente muito mais interessante. Jean-Claude Barrey, um etólogo francês que vem
trabalhando com cavalos há anos, sugere interpretar o caso de uma outra maneira (entrevista, agosto
2003). Relendo as belas descrições de Tolstoy, percebe algo muito importante. O que Tolstoy descreveu
é conhecido hoje em dia como o fenômeno de 'isopraxia'. Movimentos involuntários do cavaleiro
ocorrem, como sugeriu Tolstoy, quando o cavaleiro pensa nos movimentos que o cavalo deveria
executar. O cavalo sente os movimentos e simultaneamente os reproduz. Uma análise cuidadosa desses
movimentos involuntários feitos pelo corpo humano mostrou que estes movimentos, de fato, são
exatamente os mesmos que o cavalo executa. A mão direita humana imita (e antecipa) o que o pé direito
dianteiro do cavalo fará; uma súbita contração na parte inferior das costas do cavaleiro é exatamente o
movimento que o cavalo fará para começar seu meio galope, e assim por diante. Ou seja, de acordo com
Barrey, cavaleiros talentosos comportam-se e movem-se como cavalos. Aprenderam a agir de um modo
cavalo, o que pode explicar como os cavalos podem estar assim tão bem sintonizados com seus
humanos, e como o simples pensamento de um pode simultaneamente induzir o outro a se mover. Os
corpos humanos foram transformados por e em um corpo de cavalo.

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Quem influencia e quem é influenciado nesta história, são questões que não podem mais receber uma
resposta clara. Ambos, ser humano e cavalo, são causa e efeito dos movimentos um do outro. Ambos
induzem e são induzidos, afetam e são afetados. Ambos incorporam a mente um do outro. Não
deveríamos, portanto, sugerir o mesmo para Hans e seus questionadores? Se pudermos ver, de acordo
com a hipótese de Pfungst, como corpos humanos influenciam a resposta do cavalo com sua
sensibilidade e talento peculiares, não deveríamos também imaginar a situação conversa: o cavalo
ensinara aos seres humanos, sem que eles se dessem conta, os gestos corretos a serem
(involuntariamente) executados. Pfungst parece hesitar. Primeiro, supõe que a maioria dos gestos
executados consiste em 'movimentos expressivos naturais'. Todavia, há um gesto que parece não
obedecer a essa regra e que poderia sustentar nossa hipótese onde seria permitida uma distribuição mais
justa da influência. Quando Pfungst pede a seus questionadores que pensem na resposta 'nula' ou 'zero',
nota que o gesto mínimo não é igual a quando

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estão na presença do cavalo. Quando concentram-se no pensamento 'nulo' ou 'zero', para Pfungst, o gesto
mínimo é uma ligeira elipse com a cabeça; quando eles perguntam ao cavalo, um balanço da cabeça é
observado, justamente o movimento usado pelo cavalo para responder. Como poderia ocorrer que
humanos substituíssem seus próprios movimentos espontâneos por aqueles do cavalo, a menos que
viéssemos a assumir que Hans lhes tivesse ensinado os gestos que ele precisava? Hans havia feito com
que eles se movessem de outra maneira, mudara os hábitos de seus corpos e fizera-os falar uma outra
linguagem. Ensinara-lhes como fazer para serem afetados diferentemente para que afetassem
diferentemente.
Uma outra característica deve nos levar a suspeitar que Hans pudesse ativamente 'influenciar' seu
questionador. Pfungst, no começo de sua pesquisa, observou que alguns questionadores receberam
inicialmente boas respostas do cavalo, mas falharam nas experimentações que se seguiram.
Contrariamente, outros necessitaram do que chamou de 'alguma prática', mas, depois de um tempo,
passaram a sair-se melhor e melhor. Que significado teria essa 'prática'? Como explicar que falharam
durante as primeiras experimentações e ao final obtiveram sucesso? É apenas prática humana, como
Pfungst supõe? Poderíamos sugerir uma história completamente diferente: eles tiveram que aprender a
que pistas Hans era sensível, sem saber que estavam aprendendo. Como isso pôde acontecer? A prática
não estava apenas no lado do questionador: Hans estava ensinando a eles o que o movimentava. Hans o
cavalo estava conduzindo-os tanto quanto os humanos o conduziam. Seus corpos humanos não apenas
eram sensíveis a seus próprios desejos de fazerem o cavalo ser bem sucedido, como também estavam
traduzindo o desejo do cavalo de lhes ajudar a conduzi-lo com sucesso. Não percamos esse último
ponto: Hans não teria se saído tão bem se não estivesse interessado pelo jogo, talvez por motivos
diferentes dos de alguns dos humanos. A hipótese na qual ele ensina aos humanos como movimentá-lo,
atesta sua 'opção pelo acordo', (2) na qual ele tentou alinhar sua ação com o que era esperado dele. De
alguma forma, confiança e interesse, ainda que por apostas muito diferentes, poderiam ser
compartilhados. Para além dos corpos humanos envolvidos profundamente engajados e interessados, os
feitos de Hans também atestam sua capacidade de se engajar ativamente no jogo proposto, de dar
atenção intensa aos mínimos gestos que expressam desejos, expectativas e afetos humanos, e de
responder-lhes de modo notável.

O Legado de Hans: Os ratos brilhantes e os ratos medíocres

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Não importa o quão interessante fosse essa pesquisa, esta não é a maneira na qual a história de Hans foi
transmitida. O Clever Hans tornou-se famoso na história da psicologia, mas por razões completamente
diferentes: hoje, quando a história do cavalo é trazida à baila, envolve apostas bem diferentes.
Influência, que era para Pfungst a melhor maneira

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de se estudar experimentalmente como os corpos podem 'se articular' de diferentes formas (Latour,
2000), transformou-se, para os psicólogos modernos, numa ameaça que eles lutam para erradicar. Meu
argumento é que, sempre que Hans, o cavalo brilhante, é requisitado a testemunhar sobre algo, sejam
macacos falantes ou corvos inteligentes, seu depoimento é sempre convocado para empobrecer o leque
de explicações.
O experimento de Rosenthal ilustra isso. Cerca de 60 anos após o episódio do Clever Hans, Rosenthal,
um psicólogo, decidiu pôr o caso à prova. O experimento é bem simples: Rosenthal (1966) pede aos
estudantes inscritos em uma disciplina de laboratório em psicologia experimental para repetir o trabalho
em ratos de labirinto brilhantes e ratos de labirinto medíocres, trabalho realizado há anos por um
psicólogo experimental famoso de Berkeley, Tryon. Muitos estudos mostraram, explica Rosenthal aos
alunos, que o contínuo cruzamento de ratos que se saem bem no labirinto levou a gerações posteriores
de ratos que seriam consideravelmente melhores do que 'ratos normais'; e o contínuo cruzamento de
ratos que se saíam mal em um labirinto conduziu a gerações de ratos que seriam consideravelmente
piores do que 'ratos normais'. Atribui-se a cada estudante um grupo de ratos para trabalhar, alguns deles
trabalharam com 'ratos brilhantes', enquanto os outros com animais 'medíocres'. Rosenthal diz a seus
estudantes que aqueles que estiverem trabalhando com ratos brilhantes devem esperar encontrar
evidências de bom desempenho, enquanto aqueles que estiverem trabalhando com os medíocres devem
esperar encontrar pouca evidência de aprendizagem em seus ratos. Os 'ratos de Berkeley', designados
assim a partir de então, foram distribuídos entre os estudantes no começo do experimento.
Os estudantes testaram os ratos, e confirmaram os efeitos da seleção: os brilhantes obtiveram bons
desempenhos na aprendizagem enquanto o desempenho dos medíocres, em oposição, foram bem fraco.
Na medida que cada rato fez o que se esperava, o que a experiência de Rosenthal nos mostra? Esses são
exatamente os termos em que o problema pode ser definido: cada um desses ratos fez exatamente o que
se esperou dele, e nada mais! Todos estes 65 pequeninos ratos, de fato, eram ratos comuns. Não tinham
vindo realmente de Berkeley; não eram o resultado de anos de um cuidadoso cruzamento, e seus tatara-
tataravós nunca tinham ouvido falar de Tryon. Embora tivesse sido dito aos estudantes que os ratos eram
diferentes, estes eram simplesmente ingênuos ratos albinos, que receberam aleatoriamente a etiqueta de
'brilhante' ou 'medíocre'. Se eu ousar fazer a comparação, estudantes ingênuos tinham estudado ratos
ingênuos.
Rosenthal, de fato, tinha somente um objetivo (que, a princípio, escondera de seus estudantes): ele
explica mais tarde que procurara encontrar na experiência as pequenas coisas que produzem diferenças -
as pequenas coisas que 'afetam os sujeitos para responder de maneira diferente da que fariam se o
experimentador fosse literalmente um autômato' (1966: 119). (3) Estas palavras não são usadas por
acaso, e a referência

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tem significado. O que a idéia de um autômato significa para Rosenthal? Vamos nos referir à etimologia:
o auto-mato é algo que é movido por si só, e somente por si, algo que não será movido, posto em

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movimento por outros. Em suma, é algo que não será afetado, e por isso não afetará, seu objeto de
pesquisa: um experimentador autônomo indiferente coletando dados indiferentes. De fato, o estudo
destas ‘pequenas diferenças’ que Rosenthal quis observar, estas diferenças que afetam o sujeito fazendo
com que responda diferentemente, era uma idéia maravilhosa. Mas a idéia original de Rosenthal não fora
explorar um mundo enriquecido e criado por estas diferenças; havia sido delimitá-los como suplementos
parasitas que contaminam seriamente a pureza da experiência. O que está em jogo é simples: o
dispositivo experimental é construído para mostrar e elucidar como os experimentadores produzem viés,
a fim de erradicar este viés, ou ao menos, de que se neutralizar seus efeitos.
A pergunta, entretanto, persiste: como os estudantes obtiveram os resultados que confirmaram suas
expectativas, ou, nas palavras de Rosenthal, como todas estas diferenças acabaram por produzir
resultados enviesados? Rosenthal não consegue nos dar respostas claras. Certamente, afirma que os
resultados não se devem a erros intencionais ou outros, já que cada estudante esteve sob atenta
supervisão. Sugere a atuação de alguns fatores emocionais: os ratos brilhantes foram manipulados mais
delicadamente, tratados com mais cuidado, provavelmente receberam mais incentivos. Além disso, os
estudantes foram obrigados a preencher um questionário, após o teste, e aí caracterizar sua relação com
seus ratos e como se sentiram com a experiência. Os experimentadores que trabalharam com ratos
brilhantes julgaram seus ratos mais simpáticos e mais agradáveis do que o fizeram os experimentadores
dos ratos medíocres.
Podemos ainda, como sugere Rosenthal, considerar o problema enquanto uma questão de poder e nos
perguntar o que aconteceria a um estudante cujos resultados fossem contrários ao que se supunha que
viesse a encontrar. Rosenthal foi cauteloso nisso, e a cada estudante foi dito, antes do experimento, que
não haveria nenhuma sanção externa; os desempenhos dos ratos não afetariam os desempenhos (as
notas) dos estudantes. No entanto, se a questão for construída nestes termos, nos termos do poder do
experimentador, parece-me que ela foge à questão real: o poder real da ciência não é tanto o poder, e
sim, a autoridade. Autoridade tem que ser compreendida aqui no sentido dado por Gregory Bateson: diz-
se que uma pessoa tem autoridade quando qualquer um que esteja sob a influência dessa autoridade faça
todo o possível para fazer seja o que for que esta pessoa diga ser verdadeiro.
Aqui podemos sugerir que Rosenthal não tenha refletido sobre a questão. Assim, se nós aceitarmos esta
definição da autoridade, não foi exatamente isso o que aconteceu neste experimento? Os estudantes
fizeram todo o possível, tudo que podiam, para fazer o que Rosenthal havia dito ser verdadeiro, porque
importava para eles que assim o fosse.

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O rato de Berkeley é um rato de prestígio, de uma universidade de prestígio; Rosenthal é um professor


famoso, ele é uma autoridade. A relação entre ele e seus estudantes tem de ser interpretada como uma
relação caracterizada pela autoridade. É claro, nós não negamos que os ratos foram chamados a atuar de
acordo com as expectativas; mas não devemos também dizer que os próprios estudantes agiram
belamente para cumprir as expectativas de Rosenthal? Não devemos admitir que os ratos tenham
cumprido expectativas além daquelas dos estudantes? Eles todos atuaram o melhor que puderam, assim
como Hans e seus questionadores. Todos eles demonstraram esta 'opção pela concordância'; seu desejo
de atingir o que se esperava de cada um deles em níveis diferentes.
Enquanto Rosenthal reclamava dos experimentos, o seu próprio fornecia uma reprodução bem sucedida
da caixa preta que quisera abrir, encaixotando junto, no escuro, ratos, estudantes e ele mesmo. Ao
comentar seu experimento, argumentou que os ratos brilhantes ou medíocres não eram brilhantes ou
medíocres 'na realidade', eram produzidos com tais propriedades em uma 'pseudo-realidade', no campo

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irreal dos produtos colaterais de crenças, expectativas e ilusões. Desse modo, Rosenthal dividiu a
realidade e distinguiu entre o que foi real e o que foi efeito da influência, dos interesses, dos afetos: ali
adiante, aquilo é Realidade em si, a coleção de dados de cientistas entusiastas (e 'automatizados'); aqui,
isto é subjetividade, construção, expectativas, ilusões.
Por que criticamos Rosenthal? Nós o culpamos por não se dar conta que os estudantes, assim como os
ratos, não estão em uma 'realidade real', enquanto acionados pelas crenças de Rosenthal.
Todavia, notem o seguinte: se nós seguirmos meu criticismo, estaremos fazendo ainda mais distinções
do que Rosenthal havia feito! Com Rosenthal, há uma distinção entre a realidade do mundo (os ratos
brilhantes e os medíocres deveriam estar lá, mas não estão; o estudante está lá, e na verdade iludido;
ambas ingenuidades são garantias do mundo real) e a 'realidade' do sujeito (isto é, a realidade falsa
produzida por crenças, subjetividade, artefatos). Com meu criticismo, nem os ratos nem os estudantes
estão na realidade do mundo, porque ambos estão na realidade do sujeito (ratos sendo produzidos pelas
expectativas dos estudantes, estudantes sendo produzidos pelas expectativas de Rosenthal).
O que é resta? Quase nada, receio. Rosenthal duplicou a ontologia (uma realidade falsa para o rato, uma
realidade real para o estudante). Nós não fizemos melhor. De fato, fizemos pior: nós na verdade
esvaziamos a ontologia. Não há mais realidade; nossa distribuição irônica baniu-a por completo. E nós
podemos esperar, agora, por alguém que virá falar-nos sobre nossas próprias crenças, sobre Rosenthal
atendendo às nossas expectativas. Como podemos dar à realidade sua parte por direito?
Para mudar esta situação (4) podemos reconsiderar o conceito de autoridade e
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o paralelismo entre e as expectativas de Rosenthal e as dos estudantes. O que Rosenthal faz com sua
autoridade? A etimologia da palavra nos sugere a resposta: ela não só permite, mas também autoriza.
Não deveríamos considerar que o que Rosenthal está fazendo, o que suas expectativas e autoridade estão
fazendo, é autorizar um estudante a se tornar um experimentador competente (não exatamente no
sentido de Rosenthal), (5) a se transformar num experimentador capaz de fazer um rato inteligente
existir (deixe-nos tomar os casos dos brilhantes para nossa finalidade, os outros estão lá justamente para
oferecer uma oposição e nos levar a pensar sobre o que significa o 'não propor ' ao animal dar o melhor
do que se espera). Conseqüentemente, podemos reconhecer que o estudante-experimentador, ao atender
às expectativas de Rosenthal, está se transformando também em um bom experimentador na 'realidade
real', produzindo boas realidades; produzindo ratos reais que se transformam em ratos inteligentes. As
expectativas de um bom experimentador autorizaram o rato a tornar-se competente; a autoridade de
Rosenthal permite que o estudante seja designado a produzir ratos competentes. (6)
Se definirmos expectativas em termos de 'quem autoriza', poderemos ver que tudo está se deslocando,
articulando muito mais coisas, permitindo a muito mais entidades pertencerem ao mundo real. Se
Rosenthal autorizou seus estudantes a se tornarem bons experimentadores, capazes de fazerem existir
ratos inteligentes, não deveríamos então reconhecer o mesmo papel para o rato? Não estaria o rato,
atendendo às expectativas de seu estudante-experimentador, autorizando o último a se transformar em
um experimentador competente capaz de criar um rato inteligente? Exatamente como nós, a partir da
redistribuição mais justa da influência entre Hans e seus questionadores, pudemos construir a situação
como uma situação na qual Hans possibilitava aos humanos que lhe interrogavam ganhar um corpo que
fizesse mais coisas, que sentisse outros acontecimentos, e que fosse mais e mais capaz de lhe guiar.
Em vez de uma distribuição bem definida que desorganiza dramática e paradoxalmente a realidade,
temos agora uma distribuição indeterminada que traz muito mais ordem. E, como se não bastasse, para
uma tal distribuição indeterminada – onde Rosenthal autoriza um estudante autorizar um rato e onde um
rato autoriza um estudante – encontramos, de certa forma a hipótese no próprio texto de Rosenthal. (7)

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Num certo momento, vemos Rosenthal imbuído de perplexidade: não seria o caso dos ratos terem, de
uma maneira ou em outra, influenciado os estudantes?

Devemos, então, considerar o comportamento do experimentador para com seu objeto como antecedente ou conseqüente ao
desempenho do sujeito? Talvez faça mais sentido considerar o comportamento dos experimentadores como ambos. (1966:
177)

Prestemos atenção a esta nova versão. Ela nos permite dar um papel ativo ao rato. Permite-nos devolver
a fala ao rato! Esta versão nos autoriza a autorizar Rosenthal, os estudantes, os ratos; autoriza-nos a
sermos autorizados por

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eles: permite-nos transformar uma cascata de má-fé no seu oposto, em uma cascata de existências novas
que levantam novas questões, uma cascata de confiança.
Se com essa pergunta Rosenthal parece dar uma chance ao rato, nós devemos mencionar que, na
sentença seguinte, muda de idéia. Os motivos para isso rapidamente aparecem: Rosenthal recorda de
repente o famoso caso
de Clever Hans. A 'influência' como a eterna origem do erro torna novamente à dianteira. Por que
Rosenthal parece de súbito mudar de idéia e aparece com essa história? A razão é óbvia. Porque não
pode aceitar transformações. Adota a versão mais empobrecida da maravilhosa história de Hans a fim de
nos lembrar que os ratos, enfim, não poderiam ser reais (naturalmente, todos nós concordamos, Hans
não poderia contar). Estes ratos não podiam ser afetados nem podiam afetar seus estudantes no processo
de obter realidade. E, convencer seus estudantes disso, provou ser a coisa a mais difícil! Porque, após o
experimento, estes estudantes, mesmo depois de terem sido esclarecidos sobre o objetivo verdadeiro da
pesquisa, continuaram a acreditar em seus ratos. Rosenthal comenta, ainda que ironicamente, que a
reação de alguns estudantes foi
... um repentino aumento de sofisticação na teoria da amostragem.... Muitos destes experimentadores indicaram que, sem
dúvida, por amostragem aleatória, os 2 grupos de ratos não difeririam na média. Entretanto, continuavam eles a afirmar, sob
amostragem aleatória, alguns dos ratos ‘medíocres’ seriam de fato medíocres pelo acaso, e que seu animal era um exemplo
perfeito de tal fenômeno.

Enredados entre o que seus ratos haviam lhes ensinado (nós agimos como agimos!) e o que Rosenthal
quisera provar, a única maneira de resolver este duplo entrelaçamento seria acreditar que um rato
diferentemente habilidoso existia realmente antes da experiência!
Como poderiam simultaneamente confiar em seus ratos e em seu professor se a ciência é definida como
um processo de revelar a realidade pré-existente ao invés da criação de uma realidade em processo?
Como poderiam acreditar em ambos?
Assim, toda a questão é uma questão de fé, de confiança, e esta é a maneira que eu sugiro que devemos
considerar o papel das expectativas, o papel da autoridade, o papel dos eventos que autorizam e fazem
coisas virem a ser. É porque os estudantes puderam confiar em seus ratos (no caso dos melhores,
obviamente), porque tiveram confiança no que os ratos eram capazes de desempenhar, e por sua vez,
porque estiveram confiantes que os ratos fariam deles bons experimentadores, que a experiência
funcionou. Os estudantes que obtiveram sucesso em transformar seus ratos em ratos brilhantes
ganharam sua confiança; assim como estes ratos brilhantes ganharam a confiança dos estudantes. Nós
podemos considerar também que foi devido à confiança dos estudantes na afirmação de Rosenthal que
eles puderam atender às suas expectativas e tomar essas expectativas como suas.

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Com certeza confiar é um tanto problemático num experimento baseado no engano, e esta é
provavelmente uma dificuldade que permanece. Mas não é difícil imaginar que mesmo se Rosenthal não
tivesse mentido, mesmo se tivesse proposto aos estudantes participarem

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da experiência 'como se' os ratos fossem brilhantes ou medíocres, isso teria funcionado. De qualquer
maneira, nós podemos dizer que os estudantes eram de confiança à medida que estivessem adequados às
expectativas de Rosenthal. E nós podemos também admitir que Rosenthal não teria conseguido projetar
toda a coisa se não confiasse na capacidade dos estudantes de atender às suas expectativas, isto é, à
capacidade que tinham de fazer ratos existirem diferentemente. É ainda mais claro que os estudantes
depositaram sua confiança em seus ratos, confiança emocional, confiança transmitida nos gestos, nos
corpos dos estudantes, nos corpos de todos estes ratos que foram manipulados, segurados, receberam
carinho, alimento e incentivo: os estudantes conseguiram sintonizar seus ratos a suas crenças. E este é o
fato o mais interessante desta experiência - um fato que é de certa forma difícil de se compreender -
estas crenças fizeram existir s novas identidades para os estudantes e para os ratos. Estas relações
emocionais, feitas de expectativas, fé, crença, confiança, que ligam cada rato a cada estudante, revelam a
essência mesma da prática: esta é uma prática de domesticação. Tão logo esta prática propõe novas
maneiras de se comportar, novas identidades, ela modifica os dois, cientista e o rato. Ambos
transformam a prática que os articula em o que podemos chamar de uma 'prática de antropo-zoo-gênese',
uma prática que constrói o animal e os humanos. (8). O rato propõe ao estudante, ao mesmo tempo em
que o estudante propõe ao rato, uma maneira nova de vir a ser, juntos, que fornece novas identidades:
ratos que dão aos estudantes a possibilidade de 'serem bons experimentadores', estudantes que dão a seus
ratos uma possibilidade de adicionar significados novos ao 'estar –com – um - humano', uma
possibilidade de revelar novas formas de 'estar -junto'. Não foi isso que aprendemos com Hans? Por um
lado, o cavalo inteligente deu a seus questionadores humanos a possibilidade de 'vir a ser com um
cavalo', desempenhando um corpo que um cavalo pode ler, adquirindo uma sensibilidade-cavalo. Por
outro, humanos ao domesticar cavalos oferecem a eles uma identidade nova: ser um cavalo – com – um
humano.
Confiança, escreve Isabelle Stengers, 'é um dos muitos nomes para o amor, e você nunca pode ser
indiferente à confiança que você inspira.’ (9) Esta confiança que conecta estudantes e ratos, esta
confiança que produz oportunidades e domesticação, pode agora permitir-nos redefinir crença. Se você
definir uma crença em termos de 'o que é', você sempre corre o risco de acabar com noções de erro, de
engano: o mundo está cheio de pessoas que acreditam que outros (errada e passivamente) acreditam.
Contrariamente, se você define 'crença’ de forma pragmática, não em termos de 'o que são', mas de 'o
que fazem', a cena muda completamente: transforma-se num local cheio de novas entidades ativas que se
articulam diferentemente. Esta será a definição pragmática que guiará nosso trabalho: uma crença é o
que faz as entidades 'disponíveis' aos eventos. É porque os estudantes acreditaram que seus ratos
poderiam ser brilhantes que ambos se tornaram disponíveis à transformação de suas identidades: serem
ratos bons e brilhantes por um lado; serem experimentadores realizados e cuidadosos (no sentido o mais
literal)

123

por outro. As articulações podem ser ainda mais complicadas: os ratos brilhantes estavam, em seu 'vir a
ser brilhante', fazendo cada um de seus estudantes disponíveis a seu 'vir a ser cientistas'; igualmente, os

10
estudantes faziam seus ratos disponíveis para criar novas relações com eles. Assim, não se restringe a
definição em prol de um 'quem' ou um 'o que' a serem feitos disponíveis ao acontecimento. Deixar
indeterminada ou hesitante a definição permite que muito mais entidades estejam ativas. Assim,
conquanto permaneçamos no reino do meio, podemos revelar como um estudante afetado e afetando se
faz disponível ao 'vir a ser' do rato, assim como o rato se faz disponível ao 'vir a ser' do estudante.
Todavia, para fazer esta definição prática, para articulá-la com a confiança, nós devemos apontar uma
distinção entre o 'estar disponível' e o 'ser dócil'. Nós dissemos que o estudante estava, tanto quanto o
rato, disponível a um evento que criaram juntos. Mas poderíamos dizer o mesmo sobre o macaco rhesus
que Harlow separou de sua mãe e de seus pares, a fim de medir os efeitos de um instrumento projetado
para criar desespero (e também para dar a Harlow a sensação de que ele era habilitado a falar de amor)?
(10) O único interesse de Harlow era obter macacos que fossem dóceis em termos de experiência.
Como podemos supor que um dispositivo foi projetado para produzir docilidade mais do que
disponibilidade? Penso que podemos esboçar a diferença pela possibilidade de 'resistência' (11) que cada
um dos dispositivos oferece àqueles a quem se dirige. Naturalmente, os estudantes 'esperam' alguma
coisa de seus ratos; mas cada um destes ratos pode sempre resistir ao que é dito sobre ele; ao que se
espera dele. Atender a expectativas, estar disponível à crença ou interesse de outros não é obedecer a
estas expectativas ou crenças. Encontro uma boa evidência disso nesta história.
Estamos ainda na experiência de Rosenthal. Um experimentador estudante comenta sobre o seu trabalho
ao final do processo: ‘Nosso rato, número X, era em minha opinião, um dos mais medíocres. Isto foi
especialmente evidente durante o treinamento para a discriminação’ (Rosenthal, 1966: 176). Entretanto,
por mais surpreendente que isto possa parecer, após a análise dos dados este rato surgiu como um dos
melhores da categoria medíocre, mesmo num teste da discriminação, e seus resultados eram muito
próximos aos da categoria brilhante. Faz sentido pensar que este rato tenha respondido, à sua própria
maneira, às expectativas que o estudante tinha sobre ele, e não se pode dizer que ele as tenha obedecido.
Sem dúvida, a profecia não foi cumprida, tendo em vista que o rato resistiu satisfatoriamente a ela; mas
isto não significa que tanto o rato, quanto o seu experimentador, não estivessem sutilmente disponíveis a
algo claramente relacionado à confiança. Isto fica claro quando lemos o que o estudante acrescenta:

. . . talvez pudesse ter sido desanimador (trabalhar com um rato tão medíocre) mas não foi. Na verdade, nosso rato teve a
'honra' de ser o mais medíocre de todas as seções. Acho que isso pode ter mantido nossos ânimos elevados por causa do
interesse. . . em nosso rato. (1966: 176) (12)

124

De fato, o rato não obedeceu às expectativas do estudante (supunha-se que era medíocre), mas ele estava
disponível a algumas expectativas mais sutis, as expectativas de alguém que cuida, de alguém que
confia, e mais, de alguém que estava interessado, alguém que interessava (inter-esse, estabelecer uma
relação). E este rato medíocre transformou-se, de algum modo estranho, em uma instância que é
generosa e tem honra, numa instância que mantém os ânimos elevados, revelando um experimentador
interessado que fez existir um rato muito interessante. Portanto, mesmo que o rato não tenha se ajustado
às expectativas (ao invés, resistiu com sucesso ao ser um dos melhores dentre os medíocres), ele estava,
entretanto, disponível para algumas dentre elas: as expectativas de um estudante interessado pedindo por
um rato interessante.
Por contraste, podemos dizer que o macaco rhesus literalmente torturado por Harlow mal poderia
encontrar meios de resistir aos instrumentos e às perguntas que foram dirigidos a ele. Uma das maneiras

11
de resistir a um instrumento é conduzir o experimentador a transformar suas perguntas em perguntas
novas, apropriadas a interpelar esse indivíduo específico. Em outras palavras, um instrumento que não
seja amparado na docilidade é um instrumento que é projetado para dar oportunidade ao sujeito da
experiência de mostrar quais são as perguntas mais interessantes a serem feitas a ele; isto é, as perguntas
que fazem com que ele seja mais articulado. Por contraste, como vimos, cada um dos macacos rhesus de
Harlow é articulado pelo instrumento de tal maneira que não há ninguém para levantar questões de
'ponto de vista', a questão sobre o que 'faz sentido' para um macaco rhesus ou a questão sobre como o
próprio experimento constrói um 'macaco-sem-ninguém'. Desse modo, Harlow não pode levar em
consideração a questão da relevância, a questão que interroga qual é a boa questão que oferece um vir a
ser interessante àqueles para os quais ela se dirige, isto é, a questão que interpreta e constrói sinais que
'fazem um mundo' para o animal. (13)
O contraste entre um cientista que conta com a disponibilidade tanto do instrumento e quanto do animal,
e um cientista que requer docilidade (este cientista sendo ele mesmo dócil aos pré-requisitos recebidos
da ciência) pode ser traduzido através de um outro contraste: o contraste entre a maneira de dirigir-se ao
sistema, de um lado, como alguém que toma cuidado, como alguém interessado em seu possível vir a
ser, e de outro, como um juiz ou um mestre. No primeiro caso, o animal é que articula o sistema, no
outro, é o sistema que articula o animal, que apenas tem de mostrar como ele obedece às leis. (14) Nós
encontramos evidência deste contraste quando nós observamos como um animal pode resistir ao que se
espera dele. Como pode um macaco rhesus resistir à experiência de Harlow? Mostrando desespero?
Claro que não, isso é exatamente o que se espera dele. Tornando-se feliz? Eu não apostaria nisso.
A definição de crença como 'disponibilidade' para os eventos, ao contrário

125

da docilidade na qual algumas práticas se baseiam, não pode ser reduzida a interesses sentimentais ou a
questões morais. É, antes de tudo, um problema de levantar questões mais interessantes que permitam
respostas mais articuladas, e, conseqüentemente, identidades mais articuladas. É uma questão
epistemológica. Além disso, definir crenças, expectativas como disponibilidade a uma 'afetação' que ao
mesmo tempo cria eventos e é criada por eles, pode também nos ajudar a superar a grande repartição que
resulta da 'vontade de fazer ciência'. Com a noção da 'disponibilidade', os sinais que correspondem ao
mundo e os que correspondem ao sujeito são redistribuídos de uma nova maneira. Ambos são ativos e
ambos são transformados pela disponibilidade do outro. Ambos são articulados pelo que os outros
'fazem-no fazer'. Essa é, na minha opinião, a característica mais interessante das práticas que podem ser
definidas como práticas de domesticação, práticas que se permitem impregnar por humanos: são práticas
que criam e transformam pelo milagre da sintonia.
Este milagre da sintonia seja entre Hans e seus questionadores, entre cavalos e seus cavaleiros, ou entre
os ratos e seus estudantes - experimentadores muda radicalmente a pergunta que devemos dirigir ao
corpo. Se nós formos forçados a abandonar a questão 'do que é o corpo', nosso caminho nos leva a
questioná-lo de uma maneira completamente diferente. Todos os nossos exemplos levantam o mesmo
problema: o que o corpo (nos) faz (os outros) fazer. E como todos os nossos exemplos sugerem, este
corpo que 'faz-fazer' é primeiramente articulado pelos afetos. Todos esses eventos que nós descrevemos,
ratos cuidados por mãos cautelosas, descargas motoras, tensões e atenção, desejos, interesses
incorporados, corpos que aprendem a sentir como um cavalo, pedem agora por uma teoria de corpos
afetados e que afetam. Isto é, uma teoria das emoções.

Como vocês se sentem em relação a teorias?

12
Se pedimos aqui por uma teoria de corpos afetados e que afetam, ou em uma palavra, uma teoria das
emoções, não nos esqueçamos do que aprendemos até agora. Se quisermos explorar como estas
experiências com ratos ou cavalos são construídas, se quisermos obter um caminho que dê a
possibilidade para que muito mais entidades sejam ativas, nós necessitamos de uma teoria que nos
impeça de decidir demasiadamente rápido o que é causa e o que é efeito, o que afeta e o que é afetado. A
teoria das emoções de James fornece bons meios para construir este local indeterminado: na sua teoria,
as emoções vêm a ser uma experiência indeterminada que separa mundo, mentes e corpos de uma
maneira radicalmente diferente; uma experiência que revela perplexidade. A experiência emocional de
James revela perplexidade no que nos permite superar a distribuição entre causas e os efeitos, entre
corpos e mentes, mundo e corpos, mundo e consciência. Primeiramente, a respeito do corpo mesmo,
James lembra-nos de sua peculiaridade: esta reside em uma estranha instância ambígua do ser; nosso
corpo pertence

126

às vezes ao mundo dos objetos – ao mundo lá de fora – pertence às vezes ao mundo dos sujeitos – o
mundo aqui de dentro. Em alguns casos, o corpo é o objeto a ser conhecido; em outros, vem ser o sujeito
que conhece; às vezes parte da natureza, do mundo objetivo, às vezes, vinculado à mente e aos
acontecimentos subjetivos.
A teoria das emoções de James revela o mesmo tipo da ambigüidade. De acordo com James, a
experiência emocional pertence a essa estranha instância das experiências onde nem o mundo, nem o
corpo, nem a consciência podem ser claramente separados, distribuídos.
A experiência emocional, em outras palavras, é uma experiência que nos faz hesitar. Cada um dos
eventos que a compõe pode não estar claramente demarcado, dificilmente pode ser definido enquanto
causa inequívoca ou efeito inequívoco e não há como afirmar com certeza se pertence ao mundo, ao
corpo ou à mente. Cada uma das experiências emocionais permanece duvidosa: elas se revelam
ambíguas, na medida em que não parecem ser nem completamente internas nem completamente
exteriores, ‘como se uma ruptura (diremption) tivesse se iniciado, mas não tivesse se completado. . . às
vezes o adjetivo vagueia como que incerto sobre onde se fixar' (James, 1890: 35-6). Devemos falar
sobre visões sedutoras ou sobre visões de coisas sedutoras? Sobre os sentimentos da raiva ou sobre
sentimentos raivosos? Sobre impulsos bons ou sobre impulsos para o bem? (15) Os dois, diz James,
ambos estão na mente e nas coisas.
Assim, a maioria de nossas teorias, quaisquer que sejam as classificações escolhidas, classifica as
emoções como se não fossem ambíguas ou duvidosas – ou, ainda mais, efetua esta classificação para
torná-las menos duvidosas – podendo ser caracterizada como operando a translocação das experiências
em um mundo ou no outro. Para algumas delas, eu rio porque a piada é engraçada, estou assustada
porque o mundo é assustador, enquanto que para outras a piada é engraçada porque eu rio, o mundo é
assustador porque eu estou assustada. Cada uma dessas teorias, buscando definir o que uma emoção é,
distribui os sinais em grupos discretos supondo que explicam, por um lado, como o mundo afeta a mente
e, por outro, como a mente afeta ou interpreta o mundo.
É claro que a ambigüidade que James quer produzir ou preservar não aparece à primeira vista. Ao definir
emoção 'como nada mais que o sentimento de um estado corporal, e [que] tem uma causa puramente
corporal' (1890: 459) – nós não choramos porque estamos tristes, e sim estamos tristes porque choramos
– nós freqüentemente distorcemos o sentido desta proposição interpretando-a como uma concepção
radicalmente materialista. Alguns críticos queixaram-se da perda do mundo (os empiristas, os realistas e

13
mesmo os teoristas sociais); (16) enquanto outros lamentaram a perda da consciência (Sartre, 1995, é um
exemplo). Tais repreensões contraditórias fornecem a melhor evidência de que não era a ausência do
mundo ou da consciência que era problemática, mas pelo contrário, sua modalidade de presença, sua
maneira de estarem presentes, hesitantes, perplexos, indecisos.

127

O que foi mais mal interpretado foi o objetivo de James em si: não se tratava de definir o que é sentido
mas o que faz sentir, não se tratava de definir um ser passivo sendo afetado, e sim um ser que tanto
produz emoções quando é produzido por elas. (17) Uma emoção não é o que é sentido, mas o que nos
faz sentir.
E, a respeito da pergunta de Sartre 'Onde está a mente?', James responderia que a mente está exatamente
onde deveria estar, na pele, na respiração, em todos estes ‘cantinhos da natureza física que nossos corpos
ocupam ' (James, 1958a: 151). E, à pergunta dos teoristas sociais 'Onde está o mundo?', responderia: o
mundo está no mesmo lugar, exatamente, e a emoção emerge na interseção do processo. Talvez chegasse
mesmo a dizer que a emoção faz a interseção do processo, e o faz durar. 'Nosso corpo em si', escreve, 'é
o exemplo privilegiado do ambíguo. Por vezes trato meu corpo puramente como uma parte da natureza
exterior. Por vezes, novamente, eu penso nele como 'meu', eu o classifico com o "eu", e então certas
mudanças e determinações locais que nele ocorrem passam por acontecimentos espirituais’ (1958a: 153).
Experiências ambíguas, corpos ambíguos, experiências que fazem corpos e corpos que fazem
experiências; sinais que vagueiam, hesitam em se fixar: nós produzimos a emoção, e ela nos produz. O
mundo interior está do lado de fora, o mundo exterior passa para dentro, às vezes sob o disfarce do
vinho que nos faz alegres, ou talvez nós devêssemos também dizer, na forma de um vinho que nosso
corpo faz alegre:

Observamos que pensamentos alegres dilatam nossas veias, e que uma quantidade apropriada de vinho, porque dilata as
veias, também nos dispõe a pensamentos alegres. Se o gracejo e o vinho trabalharem juntos, completam-se em produzir o
efeito emocional, e nossas exigências ao gracejo são menores na medida em que o vinho encarrega-se de uma parte grande da
tarefa. (1958a: 462)

É uma experiência de 'tornar disponível' que é descrita aqui, uma experiência através da qual tanto o
corpo quanto o que o afeta mutuamente se produzem. Cada um dos acontecimentos (vinho,
pensamentos, veias, gracejos) cria uma ocasião para os outros: devemos dizer que o vinho nos fez felizes
ou que nós fizemos o vinho alegre? Cada um autoriza os outros e é autorizado pelos outros. O mundo
nos dispõe a sentir, e nosso corpo torna o mundo disponível. Nossos sentimentos dispõem nossos
corpos, nossos corpos dispõem nossos sentimentos. (18)
Podemos agora compreender um pouco melhor o que foi perdido na história de Clever Hans
reinterpretada por Rosenthal. Rosenthal nos forçou a escolher entre verdade científica e interesse. Se nós
o seguirmos, perderemos um dos pontos de entrada que nos permitem explorar como os corpos podem
ser movidos por interesses; como interesses podem ser incorporados e transformados em afetos; e como
estes afetos - interesses incorporados, nas práticas científicas, transformam tanto o científico em si como
o objeto ativo (indutor) de seu interesse.
Entretanto, o que foi perdido no projeto de Rosenthal felizmente ainda está em ação em

128

algumas práticas. Isto provavelmente não é por acaso; podemos encontrar os mais interessantes

14
exemplos na prática do etologia. Se nós seguirmos com cuidado como alguns destes cientistas criam o
acesso às criaturas que estudam, a maneira pela qual eles são movidos por seus objetos de interesse, a
maneira pela qual eles lhes dão uma possibilidade de serem interessantes e articularem outras coisas,
observamos que os sinais que definem sujeito e objeto, o que fala e sobre o que se fala, subjetividade e
objetividade, são redistribuídos de uma nova maneira.

Novas distribuições: Lorenz e o 'vir a ser gralha'

No começo da primavera de 1928, por isso a primeira primavera dos meus 'quatorze' nascidos em 1927, Green-Yellow, o
déspota desse tempo, envolveu-se com Yellow-Red, a mais bonita entre as jovens disponíveis. Ela era quem eu também teria
escolhido. (Lorenz, 1985: 90)

Não teríamos aqui um exemplo perfeito de antropomorfismo? Do que devemos chamar isso: empatia,
projeção? Animal que vem a ser humano, que conta uma história humana, com palavras humanas?
Não andemos tão rápido, vamos reduzir o passo e propiciar uma redistribuição dos sinais. A jovem
gralha fêmea que Lorenz teria escolhido não é uma gralha antropomórfica. Antes, ao invés disso,
devemos sugerir o oposto; que é Lorenz quem foi metamorfoseado: ele se transformou em uma gralha.
Certamente, pensar desta forma permite-nos entender como ele poderia ter tido esta bela idéia de atribuir
a um não-humano uma competência que nós acreditamos ser sempre humana: a gralha é zoomórfica e
ela vê os outros como outros “eus”. E nós podemos sugerir que a gralha de Lorenz pôde ganhar esta
competência porque Lorenz foi capaz de se zoomorfizar. Porém, dizer que Lorenz tenha se tornado uma
gralha ainda é ir rápido demais, é ainda fazer a distribuição de acordo com analogias simples: essa
proposição, por o exemplo, poderia com facilidade referir-se à empatia. E fazer referência à empatia não
é resistir à distribuição, é desempenhá-la mais uma vez. Empatia, como explicação, não revela como
cada um deles, Lorenz e a gralha foram articulados na relação. Certamente, empatia transforma o sujeito
(quem sente empatia), mas esta mudança é muito localizada à medida que não dá realmente a seu objeto
a possibilidade de ser ativado como sujeito, o sujeito sentindo empatia permanecendo o único sujeito de
toda a coisa. Ao pretender ser habitado (ou localmente transformado) pelo outro, o empático na verdade
'assenta-se' no outro. A empatia nos permite falar sobre o que é ser (como) o outro, mas não levanta a
questão do 'que é ser "com" o outro'. Empatia é mais um 'preencher-se (de si)' do que levar em
consideração a sintonia. (19)
A história que narra como Lorenz encontrou sua primeira gralha pode nos ajudar a criar uma outra
interpretação.

129

Quando eu a comprei em uma pet-shop, foi por razões que


não têm nada de científicas: senti, de repente, a ânsia de encher aquele grande bico vermelho e amarelo que o pássaro
mantinha largamente aberto para mim com bons alimentos. (1985: 63)

Certamente, Lorenz, ao ser afetado pela solicitação do pássaro, metamorfoseou-se. A solicitação do


pássaro provocou o ‘imprinting’ em Lorenz: o que era um sinal específico, um padrão específico de
pássaros que induz um pai ou uma mãe a alimentar sua prole, desta vez incidiu sobre ele. A solicitação
da gralha ofereceu a Lorenz uma identidade nova; a paixão de Lorenz tomou então a forma de um
instinto de pássaro. E conseqüentemente, Lorenz agiu como se pertencesse àquela espécie e ele fez isso
de uma maneira tão convincente que a gralha foi capturada pelo jogo, e começou, depois de um tempo, a
ver Lorenz como um membro da espécie que precisava também ser alimentado. Entretanto, a história

15
ainda não está suficientemente detalhada. Esta gralha, por sua vez, explicou Lorenz, tentou
incessantemente alimentá-lo, e não descansou até que pudesse encher a boca de Lorenz com minhocas
frescas e outros bons alimentos. E, diz ele, quando estava se sentindo abandonada, ela externava o grito
pelo qual os pássaros jovens chamam de volta seus pais.
Quando a pequena fêmea de ganso Marina saiu do ovo, Lorenz decidiu ficar com ela por algumas horas
antes de confiá-la aos cuidadores dos gansos domesticados, assim ela poderia se recuperar. Ele
despendeu estas poucas horas observando-a. Mas, assim que a pequena fêmea de ganso foi dada aos
cuidados dos mais velhos, ela se recusou a permanecer e dirigiu a Lorenz um desesperado 'chamado de
abandono'. Lorenz tentou, mas não pôde convencê-la a não lhe seguir. Portanto, diz ele, eu me comportei
exatamente como se a tivesse adotado, fingindo ignorar que, na verdade, ela é quem me havia adotado.
Durante o dia inteiro, e os dias e os meses que vieram, Lorenz fez o papel de uma boa mãe ganso.
Há, explica Lorenz, dois tipos de etólogos de campo: o caçador (como Tinbergen), e o gado-reprodutor,
como ele mesmo. O caçador segue os animais em seu próprio campo, e os observa. O gado-reprodutor
os mantém com ele, e tenta fornecer a eles as condições mais naturais. O que Lorenz está tentando
construir é de fato um ethos, um ethos de ganso, mas é ainda mais, um ethos impregnado de humanos,
um ethos para o qual as ‘condições naturais’ são, de maneira indeterminada, as da natureza do animal e
as da natureza de quem o interpela, um ethos onde 'condição natural' nunca significa 'condição neutra'. O
que Lorenz constrói com sua fêmea de ganso (ou com sua gralha) é o ethos da domesticação.
Esse dispositivo se revela com clareza como um 'dispositivo de domesticação' quando Lorenz usa seu
próprio corpo como uma ferramenta para conhecer, como uma ferramenta para formular questões, como
um meio para criar uma relação que proporcione um conhecimento novo: como um ganso se torna
vinculado à sua mãe? Lorenz toma o lugar da mãe e se transforma de repente numa variável do
experimento. Revela então o 'período crítico', e a maneira pela qual a 'resposta que se segue' é tanto inata
por seu padrão e adquirida

130

quanto a seu objeto. O dispositivo, a fêmea de ganso e Lorenz construíram conseqüentemente as


condições práticas que permitem a cada um deles fazerem existir novas possibilidades, novas
disponibilidades: a fêmea de ganso adquire um comportamento flexível e surpreende Lorenz ao adotá-lo.
Lorenz se torna apto a ser uma mãe ganso e, conseqüentemente, a seu repertório científico podem ser
adicionadas novas questões sobre imprinting, novas questões sobre vinculação, novas maneiras de
coletar dados, novas competências e novas maneiras de efetivar sua prática científica.
O experimentador, longe de se manter em segundo plano, envolve-se: envolve seu corpo, envolve seu
conhecimento, sua responsabilidade e seu futuro. A prática de saber se transformou numa prática de
importar-se. E porque ele se importa com sua jovem fêmea de ganso, ele aprende o que, em um mundo
habitado por seres humanos e por gansos, pode produzir relações.
Ele envolve sua própria responsabilidade porque terá que dar conta das necessidades da fêmea de ganso,
(20) ser uma ‘boa mãe’ para ela, importar-se com ela, andar como ela, falar como ela, atender a seus
chamados, entender quando estiver assustada. Lorenz e sua fêmea de ganso, em uma relação de
domesticação, em uma relação que mudou as duas identidades, domesticaram um ao outro. (21) Lorenz
deu a seus pássaros a oportunidade de se comportarem como humanos, tanto quanto seus pássaros lhe
deram a oportunidade de se comportar como um pássaro. Ambos criaram novas articulações que os
autorizaram a falar (ou a fazer o outro a falar) diferentemente.
Portanto, quando Lorenz fala sobre o amor de ganso como muito similar ao amor humano, nós não
vamos reivindicar que seu ganso seja antropomórfico, nem que os seres humanos sejam 'gansomórficos.

16
(22) Num certo sentido, Lorenz, ao produzir um corpo de ganso, pode ser dito como sendo
'gansomórfico'. É porque ele podia amar num mundo de ganso, porque podia produzir um corpo afetado
(lembre-se do cavaleiro executando os movimentos do cavalo) que ele pôde comparar o amor do ganso
ao nosso próprio amor (o que lhe permite sugerir que é precisamente em sua maneira de apaixonar-se
que muitos pássaros e mamíferos se comportam como humanos). Com certeza, num certo sentido,
poderíamos também dizer que Lorenz, ao falar sobre o amor de ganso, é antropomórfico. Ele utiliza
palavras humanas, mas este antropomorfismo é algo além de uma simples atribuição: enquanto seu
corpo está produzindo e sendo produzido por uma nova identidade, esta experiência é uma maneira nova
de ser humano, o que adiciona novas identidades. Por isso, ser antropomórfico significa aqui adicionar
novas definições ao que é ser um ser humano. Lorenz adiciona novos significados ao amor, e novas
identidades que propiciam estes novos significados. (23) Esta prática da domesticação é, uma vez mais,
uma prática de antropo-zoo-gênese.
Mas esta experiência não é somente uma experiência antropomórfica ou zoomórfica. A experiência de
amar é antes de tudo uma experiência compartilhada (o que não permite inferir que seja uma experiência
simétrica, na medida em que Lorenz não espera que

131

a fêmea de ganso ou a gralha o amem da mesma maneira que ele as ama). Aliás, a experiência inteira é
uma experiência compartilhada, uma experiência de estar 'com'. Melhor que dizer que Lorenz tenha se
transformado numa gralha, sugiro que Lorenz tenha se transformado numa 'gralha-com-humano' tanto
quanto que a gralha tenha se transformado de certa forma num 'humano-com-gralha'; Lorenz não se
transformou num ganso, como tão rapidamente havíamos afirmado, ele se transformou 'com um ganso-
com um ser humano '.
Essa é uma nova articulação que envolve o ‘com’ enquanto proposição genérica, uma articulação
indeterminada de 'ser com' que nos leva a sugerir que finalmente, quando Lorenz fala sobre amor, ele
não articula palavras humanas. O oposto: Lorenz é articulado pelo arranjo que criou. O arranjo é
articular novas maneiras de falar, novas maneiras de ser humano com não-humano, humano com ganso,
ganso com humano. (24)
Esta experiência pela qual Lorenz constrói um 'ser com' ilumina um dos modos pelos quais corpos e
mundos se articulam: trata-se de uma modalidade particular de 'dispor' tanto o corpo quanto o mundo.
Lorenz produz um corpo de ganso para permitir que um mundo de ganso o afete (e também para
permitir que um mundo humano afete a um ganso). Ele aprende a ser afetado.
Ao perguntar sobre o que tem relevância em um mundo de ganso ou de gralha, ao fazer seu próprio
corpo articular essa pergunta da maneira que faz, Lorenz não só levanta a pergunta do ponto da vista
daquele para quem a pergunta é dirigida. Ele faz mais do que isso: ele ativa este ponto da vista, e desse
modo ele ativa seu objeto como um sujeito, um sujeito da paixão, um sujeito produzindo paixões; um
sujeito das perguntas, um sujeito produzindo perguntas. Lorenz não só faz emergir um sujeito do ponto
de vista que seu corpo está construindo, mas ele mesmo é ativado por aquele a quem fez existir. Ele é
ativado como um sujeito ao mesmo tempo criando e sendo criados pelas paixões. O significado de
paixão não se refere a nenhum suplemento parasita nem a nenhuma doce história de amor: significa
fazer um esforço para tornar-se interessado, para mergulhar na multidão de problemas apresentados por
uma gralha ou por um ganso, para crescer, para experimentar o seguir de uma mãe, o medo de estranhos.
(25) Significa importar-se. O que as paixões ensinam a Lorenz, e àqueles a quem dá a chance de
existirem, é que aprender a forma de se dirigir às criaturas que estão sendo estudadas não é o resultado
da compreensão teórica científica, é sim a condição desta compreensão.

17
'Des-apaixonar' o conhecimento não nos dá um mundo mais objetivo, apenas nos dá um mundo 'sem
nós'; e, conseqüentemente, 'sem eles' – as linhas são traçadas com muita rapidez. E, porquanto este
mundo apareça como um mundo 'com o qual não nos importamos', ele também se torna um mundo
empobrecido, um mundo de mentes sem corpos, de corpos sem mentes, corpos sem corações,
expectativas, interesses, um mundo de autômatos entusiastas observando criaturas estranhas e mudas;
em outras palavras, um mundo mal articulado (e mal articulador).

132

O que existe realmente não são coisas feitas, mas coisas em feitura. No entanto, coloque-se na feitura por um golpe de
simpatia intuitiva com a coisa e. . . você não estará mais preocupado com a pergunta sobre qual delas é a mais absolutamente
verdadeira. (James, 1958a: 263-4)

Notas

1. Pfungst escreve (1998: 241):


A inter-relação que existe entre as idéias com um alto grau de colorido afetivo e a musculatura do corpo (trazida à
luz neste processo), não é de maneira alguma um fato estranho a nós. Não obstante, é possível que este caso possa
não ter um valor menor tendo em vista as grandes dificuldades que em geral são encontradas na tentativa de se
estabelecer experimentalmente os mais delicados detalhes neste campo.
2. Veja a bela análise de Eileen Crist (1997: 41), de quem eu, por vezes, discordo neste artigo.
3. E conseqüentemente, o investimento emocional do experimentador profissional estaria em
coletar os dados o mais exatos possível (Rosenthal, 1966: 344). Claramente, os dados são dados,
por si mesmo, e esperam serem coletados por um autômato entusiasta.
4. Para uma maneira semelhante de dar possibilidade a uma nova distribuição, veja a análise da
experiência de Milgram por Isabelle Stengers (1993), que oferece os meios para pensar sobre
uma distribuição que multiplique, que complique a ontologia dos seres em relação.
5. Naturalmente que nós na verdade (e quase impropriamente, mas em benefício do mundo)
invertemos completamente o objetivo de Rosenthal.
6. E nós poderemos ver, conseqüentemente, o efeito impregnante da autoridade: ter a autoridade de
autorizar é fazer quem é autorizado ganhar autoridade, e, desse modo, ser designado para
autorizar, por sua vez, alguém mais (Rosenthal autoriza o estudante, estudante o rato, minha
análise autoriza Rosenthal e vice-versa, a análise seguinte, e assim por diante).
7. Esta nota é para aquelas que querem saber se Rosenthal atendeu às minhas próprias expectativas:
naturalmente que sim. Eu propus a ele uma modalidade nova de existência, e eu faço isso porque
eu nunca definirei minha própria prática como uma coleção de dados, mas como um jogo das
proposições que oferecem identidades novas.
8. Esta não é uma simples questão de interesse teórico. Um animal inteligente pode fornecer uma
oportunidade para o 'vir a ser' inteligente do etólogo que o observa. Os extraordinários pássaros
do Oriente Médio de Zahavi, os babblers, dão boa mostra disso (Despret, 1996). Considerar as
práticas etológicas como práticas de antropo-zoo-gênese, também produtoras de humanidade,
constitui portanto um interesse prático ou pragmático.
9. Conferência 'O coração de Deus e as coisas da vida' (1996). Isto é, na verdade, o que Rosenthal
culpa os cientistas, e seres humanos e não - humanos por produzir no laboratório e na pesquisa:
nenhum deles mostra suficientemente 'boa' indiferença.
10. Harlow era um primatologista famoso que visava revelar a necessidade vital do vínculo nos
macacos. Para essa finalidade, construiu um dispositivo que impedia dramaticamente que os

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macacos recém-nascidos estabelecessem ligações com a mãe e seus pares. Os macacos recém-
nascidos foram separados de sua mãe e pares, e isolados por meses em uma gaiola pequena. Os
efeitos dramáticos da separação (comportamento patológico e autodestrutivo, desespero e
depressão muito profunda), de acordo com Harlow, mostraram claramente que o vínculo é uma
necessidade primária. Todos os dispositivos foram construídos para avaliar as diferentes
situações que confirmam o efeito terrível da separação (já bem reconhecida por psiquiatras desde
a Segunda Guerra Mundial) (Harlow, 1964).
11. Resistência ou recalcitrância, ver os comentários de Stengers (1996-7), e de Latour (1997).
12. Rosenthal cita este comentário para mostrar que os experimentadores não estavam cientes de que
seus ratos não foram especialmente criados.
13. Naturalmente, é provável que os labirintos em T (T-mazes) não sejam os melhores sinais que
'fazem um mundo' para um rato branco-revestido (mas quem sabe, à medida que são criados por
e para laboratórios, como definir estes bons sinais a menos que nós lhes dermos a possibilidade
de nos ajudar a aprender isso). O problema é ainda mais óbvio (e obviamente mais complicado)
quando nós levantamos a pergunta do bom ethos para oferecer a um rato especialmente
produzido a fim de criar ratos que gostem de álcool, por exemplo. Mas nós podemos supor que
faz sentido para o que um rato ser manipulado, incentivado, acarinhado, alimentado.
14. Para uma análise semelhante no caso da psicologia humana, ver meu trabalho anterior sobre
emoções (Despret, 2004).
15. Ou, para dizer em nossas próprias palavras, nós rimos porque a piada é engraçada, ou a piada é
engraçada porque nós rimos?
16. Para exemplificar, ver Schachter e Singer (1962).
17. Por exemplo, ele fala sobre as disposições que nós cultivamos (James, 1890: 463).
18. Todos os atores, diz James, sabem este fato simples: se nós quisermos sentir uma emoção, nós
podemos dispor nosso corpo para produzi-la, e nós a sentiremos. O psicólogo Fechner, explica
James, diz quase a mesma coisa dele mesmo:
... quando eu ando atrás de alguém que não conheço, e imito tão precisamente quanto possível seu caminhar e
postura, tenho a mais curiosa impressão de me sentir como a própria pessoa deve sentir. Ir saltitando e requebrando
atrás dos maneirismos de uma jovem, te põem, por assim dizer, em um modo feminino da mente. (1890: 464)
19. O conceito de Bergson de simpatia, na medida em que significa algum tipo de 'ritmo articulado
de atividade', evita o empobrecimento que a empatia traz com ela.
20. Com as gralhas, Lorenz leva em consideração que protegê-las requer atenção: para chamá-las de
volta quando ficarem perdidas, por exemplo. Quando a colônia quase desapareceu, deixando
somente uma fêmea velha, ele adotou quatro fêmeas jovens para que assim ela não ficasse muito
solitária, e tratou de ajudá-la a adotá-las.
21. Certamente, o termo 'domesticação' pode evocar uma conotação de subordinação. Mas eu tomo
como dado aqui que a oposição que eu tentei construir entre o 'fazer disponível' e o 'ser dócil'
permite que nos refiramos assim às situações onde Lorenz e sua fêmea de ganso estejam se
domesticando mutuamente. Devemos também prestar atenção ao fato de que se domesticação se
refere univocamente às situações de controle ou de dominação, assim o é porque nós ainda não
temos uma boa teoria da vinculação (veja sobre este ponto, o trabalho de Latour).
22. Anseromórfico seria o termo certo aqui (anserine = de, como um ganso).
23. Ver o comentário de Latour no trabalho de Thelma Rowel em termos de 'dar uma oportunidade'
aos animais que ela interpela (2000).
24. Nas palavras de Lapoujade (1997: 39; comentando James) tornar-se-ia: não é Lorenz que produz
a interpretação, e sim o oposto, Lorenz se produz nas interpretações; aliás, 'ele é uma

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interpretação, uma interpretação de suas afeições corporais'. A paixão de Lorenz assim como a
paixão da fêmea de ganso não é o que é sentido, é o que lhes faz sentir. Lorenz produz um corpo
de ganso ou de gralha e é simultaneamente produzido por esta experiência.
25. Este é o contraste que deve ser esboçado no caso de Clever Hans. O caso só é interessante à
medida que desistimos das perguntas sobre a inteligência conceitual do cavalo.

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